Dinâmicas do contexto político e administrativo na construção da administração pública em Moçambique - Dynamics of the political and administrative context in the construction of public administration in Mozambique

May 31, 2017 | Autor: Albino Alves Simione | Categoria: Political Theory, Devolution and localism, Public Administration and Policy
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Dinâmicas do contexto político e administrativo na construção da administração pública em Moçambique Article · January 2016

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Revista FOCO - ISSN: 1981-223X

DINÂMICAS DO CONTEXTO POLÍTICO E ADMINISTRATIVO NA CONSTRUÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM MOÇAMBIQUE Albino Alves Simione1 Resumo Este trabalho tem como finalidade analisar a trajetória recente da administração pública e compreender as transformações que visam a modernização dos processos de gestão em Moçambique. Está baseado na revisão de literatura sobre os modelos de administração pública e na análise de documentos que expressam as diferentes práticas de gestão implementadas no período de 1975 a 2011. Adotamos uma abordagem qualitativa com enfoque exploratório sobre o caso da administração pública moçambicana e, sustentamos nosso estudo na análise de conteúdo de documentos oficiais que retratam as condições estruturais e institucionais sobre o desenho político da organização do Estado e as opções de gestão realizadas ao longo do tempo. Após fazermos um balanço que percorre a administração pública burocrática, a administração pública na era da democracia e o projeto implementado pela estratégia de reforma administrativa do ano de 2001, os resultados da análise empreendida mostram-nos que, apesar da introdução de um número grande de iniciativas de mudanças no seio da administração pública moçambicana, persistem desafios no contexto da agenda de modernização com destaque para o arcabouço institucional vindo do período de maior centralização administrativa, o grau de indução da descentralização exercido pelos governos central e locais e as fragilidades organizacionais e estruturais da administração pública que limitam e condicionam os processos de reformas que têm sido desenvolvidos. Palavras-chave: Administração Pública. Burocracia. Descentralização. Reforma Administrativa. DYNAMICS OF THE POLITICAL AND ADMINISTRATIVE CONTEXT IN BUILDING MOZAMBIQUE PUBLIC ADMINISTRATION Abstract This work aims to analyze the recent trend of public administration and understand the changes that seek to modernize the management process in Mozambique. It is based on literature review on the models of public administration and analysis of documents expressing different management practices implemented in the period 1975-2011. We adopted a qualitative approach with exploratory focus on the case of mozambican public administration and we maintain our study on the content analysis of official documents that depict the structural and institutional conditions on the political design of the State organization and management choices made over time. After doing a retrospective that runs bureaucratic public administration, public administration in the era of democracy and the project implemented by the administrative reform strategy of the year 2001, the results show us that despite the introduction of a large number of change initiatives within the mozambican public management, there are still challenges in the 1

Mestre em Administração, Professor de Gestão Pública e Doutorando em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa Estudantes-Convênio de Pós-Graduação – PEC-PG, da CAPES/CNPq - Brasil

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modernization agenda highlighting the institutional framework coming from greater administrative centralization period, the degree of induction of decentralization exercised by central and local governments and structural and organizational weaknesses of public administration that limit the processes of reforms that have been developed. Keywords: Public Administration. Bureaucracy. Decentralization. Administrative Reform. 1

INTRODUÇÃO Um balanço sobre a construção da administração pública em Moçambique iniciada em

1975 com o alcance da independência nacional, assim como, a análise às transformações realizadas no pós-independência consubstanciadas na implementação de reformas do Estado e administrativas revela-nos uma dupla realidade. Por um lado, que houve avanços e inovações nas estruturas administrativas instituídas, em alguns casos deixando marcas profundas de implantação de sistemas de organização, processos e práticas de gestão que permitem identificar uma clara tendência de modernização administrativa, se comparados com o período em que o país esteve submetido à colonização portuguesa. Mas, por outro lado, é possível constatarmos que os resultados e as implicações das mudanças que têm sido introduzidas apesar de positivos, mostram-se de certo modo desiguais e fragmentados. Ainda predominam fragilidades para o conjunto do Estado principalmente quanto a sua presença efetiva nas zonas rurais se comparada às zonas urbanas, afora a prevalência de problemas críticos relacionados com os recursos humanos e a qualidade das ações do poder público que, ainda afetam o funcionamento das organizações públicas e o fato de não terem sido definitivamente atacados. Moçambique adotou nos últimos quarenta anos dois modelos de Estado antagónicos sendo, um de caráter socialista e princípios centralizadores (1975 a 1987) e outro de natureza capitalista e princípios liberais (1987 a atual). Dada a diferença nas concepções e orientações sociopolíticas e econômicas desses dois modelos de Estado, consequentemente a dinâmica do funcionamento da administração pública tem refletido na prática e muitas vezes de forma paradoxal as influências e padrões desses modelos instituídos. Traçar os caminhos da trajetória recente da administração pública moçambicana considerando essas duas realidades que permeiam o Estado moçambicano e proceder a apresentação das concepções reformistas que marcaram logo a seguir os primeiros anos da independência nacional e, as referentes à modernização administrativa atualmente defendidas são o nosso propósito principal neste trabalho. Do ponto de vista teórico, nos baseamos tanto numa perspectiva exploratória (GODOY, 2010) assim como, em uma sintética reconstrução histórica relativamente aos principais ideias 71 V.8, nº 2, ago./dez. 2015.

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que têm caracterizado a administração pública moçambicana e, procuramos fundamentalmente através de um olhar analítico acerca do passado recente apreender como se caracterizam os modelos de gestão pública que foram sendo implementadas nos últimos tempos. Do ponto de vista prático, concentramos mossa atenção às mudanças recentes particularmente, nas principais experiências de gestão púbica introduzidas a partir do ano de 2001 visando, sobretudo a reestruturação e adequação dos processos operacionais ao nível do aparelho burocrático estatal e a adoção de novas formas de gestão orientadas para promover a elevação dos padrões de ação do poder público e a maior satisfação das demandas da sociedade e eficácia no oferecimento dos serviços aos cidadãos. Há muito que tem sido exercida pela sociedade uma elevada pressão para mais e melhores serviços (VALÁ, 2008) e, existe uma expectativa de alcance de uma solução urgente para os vários problemas de caráter técnico e de gestão que têm afetado de forma recorrente todo o conjunto do setor público e nas diferentes esferas governamentais, tanto no nível central assim como no dos entes subnacionais. A sociedade espera da administração pública que introduza dentre várias medidas alternativas para fazer face às insuficiências que têm caracterizado a atuação do poder público, estratégias visando a melhoria do atendimento de suas necessidades sociais, o uso eficiente de recursos públicos, o reforço das ações e dos resultados das políticas públicas, a elevação da transparência dos atos e da gestão, maiores intervenções para ampliar a accountability, a criação de instituições robustas e eficientes e a constituição de um quadro de servidores públicos cada vez mais profissionalizados e competentes. À luz das considerações acima apontadas neste texto pelo menos duas questões importantes devem ser postas de modo a possibilitarem a compreensão sobre o estágio de desenvolvimento da administração pública moçambicana, nos seguintes termos: como os valores e as orientações ideológicas acerca do modelo de Estado têm influenciado o processo de construção da administração pública nos últimos anos? De que forma o desenho institucional inspirado na reforma administrativa recente permite a aplicação de práticas de gestão consideradas modernas e o melhoramento no funcionamento das organizações do setor público moçambicano? Na abordagem que seguimos com vista a buscamos possíveis respostas para estas questões, procedemos um mapeamento sobre o desenvolvimento da administração pública moçambicana no qual destacamos as transformações importantes realizadas no período de 1975 a 2011. De modo a assinalarmos as distinções entre as várias medidas políticas e administrativas implementadas nesse período, tomamos como base três grandes marcos históricos que representam os diferentes modelos de administração que foram sendo adotados. 72

O primeiro marco está relacionado com a institucionalização da administração pública centralizada (1975-1987); o segundo tem a ver com a implantação da administração pública descentralizada e estabelecimento de estruturas administrativas autónomas (1987-1990-2001) e, por fim; o terceiro marco refere-se à constituição de uma administração pública que privilegia a eficiência, transparência, accountability e a prestação de serviços de qualidade aos cidadãos e participativa na sua gestão (2001-2011…). A análise efetuada sobre o carácter, concepções e os pressupostos das práticas de gestão pública e a natureza das reformas administrativas adaptadas pelo poder público em cada um desses modelos de administração pública implementados, revela não só uma recorrência de temas, dilemas e paradoxos, mas tem também, o mérito de aprofundar a constante busca de relevância e de novos conhecimentos para o melhor entendimento dos problemas práticos e operacionais que têm afetado o aparelho burocrático estatal. O olhar histórico que adotamos neste trabalho pode ajudar na compreensão sobre a validade e a relevância do saber administrativo no âmbito nacional, pois, muitas vezes, só a sua aplicação delimita seus aspetos positivos ou negativos. Assim, podemos perceber um conjunto de medidas e de práticas que mostram ensaios, acertos, erros e novas promessas de abordagens diferentes para a administração pública em Moçambique. O artigo é constituído por cinco partes iniciando por esta introdução. Na próxima apresentamos uma discussão sobre a formação e desenvolvimento do Estado Moçambicano e destacamos as medidas de caráter político e administrativo que acompanharam a estruturação da administração pública nos últimos tempos. Na terceira nos dedicamos a abordar a estratégia qualitativa adotada neste trabalho e o método de estudo de caso como procedimentos que nortearam a realização desta investigação para então na quarta, nos concentrarmos na discussão analítica sobre as implicações dos diferentes modelos de administração pública que foram sendo adotados pelo Estado moçambicano nos últimos quarenta anos. Finalmente na quinta tecemos algumas considerações e avançamos possíveis desdobramentos para pesquisas futuras. 2 A FORMAÇÃO DO ESTADO E DA ADMINISTRAÇÃO MOÇAMBICANA: dinâmicas sobre os processos e estruturas

PÚBLICA

A formação do Estado e da administração pública moçambicana pode ser apreendida na literatura como um fluxo constituído de três momentos históricos, onde o aparelho administrativo configurou-se também em três modelos principais. O primeiro modelo é referente ao Estado Socialista e Centralizado que vigorou a partir de 1975 período do alcance da independência nacional da colonização portuguesa. Era um modelo 73 V.8, nº 2, ago./dez. 2015.

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de Estado em que do ponto de vista político, era dirigido através de um regime de governo de partido único a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) que dominava o executivo e controlava todo o processo de produção de leis dentro do legislativo. Do ponto de vista administrativo era um Estado caracterizado por uma administração pública altamente burocrática que concentrava todo o poder decisório e autoridade administrativa nas estruturas centrais do governo. O Estado socialista estava essencialmente voltado para a criação dos alicerces para a criação do Estado “novo” independente que, segundo argumentam Plank (1991) e Soiri (1999) seria administrado a partir de programas e práticas de gestão centralmente definidas e planejadas. A vigência desse modelo de Estado foi de doze anos tendo sido extinto em 1987 quando da adoção do Estado inspirado no sistema de economia de mercado, isto é, capitalista que privilegia a aplicação dos princípios liberais na sua forma de organização socioeconômica. O modelo de administração pública fundamentado nos ideais do socialismo tinha como um de seus objetivos principais o resgate da identidade do povo moçambicano e o estabelecimento de uma estrutura política e administrativa que estivesse ao serviço dos interesses da respectiva sociedade. Como comenta Plank (1991) esse modelo estava inicialmente orientado para superar as situações vigentes no período da administração colonial portuguesa que era caracterizado por possuir princípios de atuação parciais, baseados na exclusão social e particularista na forma de oferecimento dos serviços públicos aos cidadãos. Portanto, vale ressaltar que uma das principais formas de atuação do regime administração colonial estava baseada na diferenciação no gozo dos direitos fundamentais, sobretudo os socias entre os cidadãos moçambicanos nativos e os cidadãos portugueses. As políticas sociais eram diferenciadas e concretizadas por meio da implementação de programas de saúde, educação, assistência social e outros orientados para grupos específicos de cidadão nacionais colonizados, os quais eram geralmente mais fracos e precárias quando comparados aos programas destinados exclusivamente aos cidadãos de origem portuguesa. Desta feita, os modelos de Estado e da administração pública inaugurados no período pós-colonial, propuseram-se a alterar a ordem política e social anterior e, introduziram, assim, uma reforma burocrática sustentada nas concepções do sistema socialista cujo objetivo central era suplantar as práticas de gestão parciais do regime anterior e promover a instauração de uma administração pública que estivesse verdadeiramente ao serviço do interesse nacional. As transformações passaram então pela aprovação de um conjunto de normas que serviram para operacionalizar o novo Estado socialista instituído a partir de 1975. Desse conjunto de normas importa elencar como as principais, o Decreto nº 1/75, de 27 de Julho, que instituiu a organização da administração pública para o aparelho central e as Leis 74

nº 5/78; 6/78; e 7/78 ambas de 22 de Abril, que estabeleceram respetivamente, a regulamentação das funções dos governos provinciais, a extinção de todos os corpos administrativos coloniais e, a criação das estruturas administrativas do Estado com funções executivas e, as Normas de Organização e Direção do Aparelho de Estado Central (NODAEC) aprovadas pelo Decreto nº 4/81 de 10 de Junho. Autores como Abrahamsson e Nilsson (1995) assinalam que o desenvolvimento do modelo burocrático do período socialista foi essencial para a construção do Estado independente na segunda metade do Século XX e promoção de uma relativa melhoria das condições de vida no país. Nisso, é inegável que ele teve uma grande importância visto que pautou por uma lógica de universalização das políticas, por exemplo, visando a extensão e oferta de serviços públicos (saúde e educação) antes não oferecidos de forma ampla e com a qualidade aceitável para todos moçambicanos. De modo a concretizar a ampliação no oferecimento dos serviços e assegurar o alcance das metas definidas sobre as políticas públicas, o Estado socialista tinha como fundamento a racionalização baseada no planejamento governamental e controle das externalidades produzidas pelo mercado, além de um papel essencial que visava garantir o “acesso igualitário” dos cidadãos aos serviços prestados pela administração pública. No entanto, a partir de meados da década de 1980 começaram a surgir os primeiros problemas políticos e socioeconômicos que denotavam um desgaste das estruturas instituídas no período a seguir ao alcance da independência nacional, que refletiam-se, consequentemente, na dinâmica do (dis)funcionamento do modelo socialista em vigor e nos resultados das ações governamentais. Concretamente, os problemas registrados implicaram na fragilização dos princípios centralizadores tidos como vetores principais da constituição de uma administração pública forte e eficaz, mas também na precarização das ações do poder público e fraca articulação interinstitucional com base na lógica da hierarquia da burocracia que orientava quer o sistema político do Estado e todo o processo de gestão pública gerando assim uma crise de sustentação do próprio modelo de administração socialista. Nessa perspectiva, como discorre Simione (2013) foram formuladas diversas críticas ao modelo podendo ser destacadas como principais as referentes à rigidez do sistema burocrático implantado; a excessiva centralização; a falta de poder de iniciativa e inovação dos entes subnacionais e a reduzida eficácia administrativa e fraca presença do poder público, sobretudo nas zonas rurais. O cenário político, econômico e social da segunda metade dos anos oitenta era marcado, conforme apontam Macamo e Neubert (2003) por um registro de redução drástica das 75 V.8, nº 2, ago./dez. 2015.

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capacidades do Estado em prosseguir a sua política fiscal e de gastos no âmbito do socialismo adotado, sobretudo devido aos efeitos da guerra civil que decorria desde 1977 opondo o Governo de Moçambique e o Movimento de Resistência Nacional (Renamo) que reivindicava a partilha do poder político. O conflito tinha grandes implicações para a capacidade de intervenção social do governo, mas também para a continuação do projeto socialista de Estado, visto que o governo foi obrigado a desviar parte de sua atenção dos programas de ideologização socialista e de revolucionalização do país de modo a enfrentar os avanços e consequências da guerra. Portanto, as crises fiscal e política constituíram-se, dessa forma, a par de outros fatores de ordem econômica como os elementos que contribuíram para acelerar a derrocada do modelo weberiano de cariz socialista. Em um ambiente de crise fiscal e política a máquina administrativa do Estado e as estruturas de gestão pública implantadas foram invariavelmente afetadas e a sua capacidade de resposta fortemente reduzida. Macamo e Neubert (2003) assinalam que a rigidez no funcionamento do modelo burocrático e a não adequação à situação sociopolítico vivida pelo Estado com destaque para a forma de partilha do poder político, surgiu a percepção generalizada de que o modelo socialista havia-se convertido de solução para problema, precipitando, desta feita, o nascimento de um novo modelo de Estado, Democrático e Descentralizado. A partir de 1987 foram então iniciadas as primeiras mudanças de grande impacto na forma de estar do Estado moçambicano e não só, mas também, na forma de ser de sua administração pública. Os marcos principais das transformações iniciadas são a adesão de Moçambique às instituições de Breton Woods, o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) nesse mesmo ano, bem como a introdução de uma nova Constituição da República (CRM) pluralista e de cunho mais liberal em 1990. Particularmente, a CRM introduziu um novo sistema político que se baseia nos princípios da democracia pluripartidária e na multiplicação de centros de poder político e administrativo. A constituição também modificou o modelo de planejamento centralizado da economia e, estabeleceu as bases para a implantação do liberalismo econômico inspirado na aplicação de regras baseadas na lógica do funcionamento do mercado e nos princípios fundamentados do capitalismo. Mazula et al. (1998) apontam que esse novo quadro constitucional abriu espaço igualmente para a criação de novas esferas de governo – com a criação dos municípios em 1997 que, são entes públicos guiados por práticas de gestão autonomizadas e participativas. Nisso, podemos afirmar que a municipalização possibilitou o exercício e partilha do poder político na esfera local e o surgimento de práticas de gestão de certo modo inovadoras.

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Portanto, a partir da segunda metade dos anos noventa a estrutura do Estado moçambicano passou, assim, a ser constituída por três níveis de governo: os Órgãos Centrais (OC) representados pelos ministérios e agências nacionais, os Órgãos Locais do Estado (OLE) representados pelos governos provinciais e distritais e os Órgãos do Poder Local (OPL) representados pelas autoridades municipais. Com essas considerações importa sublinhar que o surgimento do modelo de Estado democrático decorreu das fragilidades do modelo anterior que era fundamentalmente baseado no excesso de centralismo nos OC e uma reduzida autonomia decisória dos OLE e, buscou dotar à administração pública de suas primeiras características descentralizadas apresentadas através do Programa de Reforma dos Órgãos Locais (PROL) em 1991. O PROL veio introduzir novos princípios de orientação jamais vistos no setor público moçambicano com a institucionalização da descentralização, democracia participativa e o controle social, além de distinguir as atividades referentes à administração direta e as competências da administração indireta, concretizando desta feita a ideia de que as políticas públicas são processadas pelos diferentes entres governamentais por meio do princípio das competências concorrentes e de partilha de responsabilidades entre as esferas de governo. Segundo assinalam Abrahamsson e Nilsson (1995) as transformações políticas do dentro do Estado registradas, sobretudo com a assinatura do Acordo Geral de Paz (AGP) que pôs fim a guerra civil que opunha o governo da Frelimo e a Renamo em 1992, tiveram implicações positivas para o estabelecimento de novas formas de partilha do poder político e no funcionamento da administração pública. Isto é, em face do ambiente de paz e de estabilidade política do início dos anos noventa, verificou-se uma maior abertura para a construção da democracia, o exercício da cidadania e a institucionalização de eleições periódicas que, decorrem desde o ano de 1994. A descentralização territorial através governos municipais (que possuem significativa autonomia fiscal) e a descentralização administrativa pela via dos governos provinciais e distritais (sem autonomia fiscal) passou a ser fortemente defendida e, em ambos os casos a sua implementação implicou um amplo processo de mudanças nas relações entre a sociedade e o aparelho estatal. Constituíram-se dessa forma, novas formas de interação social no processo das políticas públicas, que tem a participação pública como seu foco principal. Como explicitam Valá (2008) e Brito (2009) a sociedade passou a exigir com maior frequência a melhoria dos serviços públicos para além de uma maior presença da administração pública próxima dos problemas que a afetam. Importa salientarmos que esse quadro de reformas na estrutura política do Estado foi influenciado, também pelos organismos multilaterais de financiamento que, passaram a incluir, em seus projetos de assistência à Moçambique, questões 77 V.8, nº 2, ago./dez. 2015.

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como o fortalecimento da sociedade civil e o seu diálogo com o Estado (BANCO MUNDIAL, 1992), além de promover o debate sobre a natureza das novas formas de organização social. A agenda em torno da reforma do aparelho estatal passa a integrar a redefinição do próprio papel deste, quando também ganha reconhecimento e destaque nos debates nacionais a importância do setor produtivo e do setor voluntário (MACAMO e NEUBERT, 2003) e a sua participação como atores relevantes para a formulação e implementação das políticas públicas. A ideia era a institucionalização de novas práticas voltadas para o oferecimento de serviços públicos, majoritariamente nas comunidades locais onde a presença de instituições do Estado e prestação de serviços sociais são precárias ou inexistentes. Portanto, buscava-se através dessas entidades uma forma de flexibilizar e tornar eficaz a satisfação das demandas crescentes da população. As reformas da década de noventa foram igualmente marcadas por medidas macroeconômicas que, focalizaram segundo destaca Castel-Branco (1994) questões como, o ajuste fiscal, a liberalização comercial, a redução de gastos públicos, a estabilização monetária e a privatização de empresas estatais, balizadas numa visão neoliberal que, propunham um Estado mínimo. Contudo, nos finais dessa década surgiram debates em torno desses temas que foram acompanhados conforme expressa a CIRESP (2001) de uma visão geral de reforma administrativa para integração e articulação das diferentes medidas políticas, econômicas e administrativas que foram sendo implementadas de tal forma que refletissem os princípios promovidos pelas correntes da New Public Management (NPM) e do New Public Service (NPS) conjeturados, sobretudo no nível internacional no início dos anos de 1980 e 1990 respectivamente. Assim, surgiu a terceira variante, a do Estado Democrático que tem como principal característica além do pluralismo na organização política e democrática (Artigo 3 da CRM) a implementação de reformas gerências fundamentadas nas ideias da NPM (SIMIONE, 2013). Surgiu no entorno da aplicação dos novos padrões de gestão pública avançados por essas correntes teóricas. Segundo Toonen (2010) a NPM está orientada para a redução de custos e maximização da eficiência da administração pública; redução das hierarquias; o downsizing visando à flexibilidade organizacional e a descentralização com ações como o abandono dos processos de padronização característicos da administração pública weberiana; o controlo pelos resultados e elevação do desempenho e; a orientação para a qualidade dos serviços prestados ao cidadão. Já Denhardt e Denhardt (2000) sustentam que o NPS privilegia como elementos centrais da gestão a adoção de práticas gerenciais cujo foco é a eficiência, a transparência e 78

accountability no sector público. No contexto moçambicano essas práticas de gestão corporizaram o que ficou conhecido como a agenda de modernização da administração pública implementada a partir de 2001. A implementação desse conjunto de práticas pela Estratégia Global de Reforma da Administração Pública (EGRSP) constituiu-se na “bandeira principal” da gestão pública durante uma década, 2001 a 2011 tendo sido introduzidas transformações profundas na organização, estrutura e cultura da administração pública dentro de que se designou pelo termo “reforma administrativa”. O Quadro 1 apresenta de forma resumida os três modelos de Estado e as características da administração pública segundo as práticas de gestão que foram sendo adaptadas no período de 1975-2011 em Moçambique. Quadro 1 - Formas históricas do Estado e da administração pública em Moçambique. Evolução do Estado e Modelos da Administração Pública Descrição

1975-1987

Natureza do Estado

Estado Socialista.

Orientação da Administração Pública

Características da Administração Pública

Adoção de um sistema de administração baseado nos princípios da burocrática centralmente controlada e planejada. Exercício do controle e autoridade das estruturas administrativas de nível central e falta de autonomia e de poder de decisão dos governos locais (províncias e distritos). Direção econômica, técnica e administrativa vinculada às ações de desenvolvimento planificado do país.

1987-1990-2001 Institucionalização do Estado Capitalista e criação do Estado Democrático. Coexistência entre Administração burocrática do Estado e da burocracia descentralizada no contexto da criação das Autarquias Locais. Surgimento da administração indireta do Estado, privatização e criação de formas descentralizadas de gestão pública e estabelecimento de estruturas administrativas autónomas.

Prestação de serviços públicos com novos modelos de gestão que Escopo da promovem a eficiência Administração econômica do Estado e Pública autonomização dos processos de tomada de decisão. Fonte: Elaboração do autor com base na revisão da literatura.

2001-2011… Estado Democrático.

Adoção de novos princípios de gestão pública norteados pelos padrões da gestão interativa e interorganizacional. Transformações do modelo de administração tradicional, modernização e institucionalização primeiramente de princípios da New Public Management (NPM) e mais recentemente do New Public Service (NPS). Administração com enfoque na eficiência, transparência, accountability, votada para a prestação de serviços de qualidade aos cidadãos e participativa na sua gestão.

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MÉTODO DA PESQUISA A fim de apresentarmos respostas às questões levantadas neste trabalho, optamos pela

abordagem qualitativa com caráter interpretativo como estratégia de pesquisa (GODOY, 2010). Na investigação adotamos a perspectiva exploratória e identificamos os marcos históricos referentes às principais mudanças políticas e econômicas do Estado registradas em Moçambique que, permitiu distinguir: (i) o Estado socialista marcadamente fundado na administração pública centralizada (1975-1987); (ii) a institucionalização do Estado capitalista e criação do Estado democrático apoiado por uma administração pública descentralizada e estabelecimento de estruturas administrativas autónomas (1987-1990-2001) e, por fim; (iii) o Estado democrático fundamentado na administração pública que privilegia a eficiência, transparência, accountability e a prestação de serviços de qualidade aos cidadãos e participativa na sua gestão (2001-2011…). Para compreensão das práticas de gestão pública implementadas nesses períodos históricos aptamos pelo método de estudo de caso único de Yin (2005). Os critérios de escolha para a realização de um estudo do tipo caso único são justificados em primeiro lugar, pela sua pertinência teórica (em relação ao objetivo proposto na pesquisa). Em segundo lugar pela pertinência prática que se traduziu na possibilidade de se aprender com as informações e as experiências do caso bem como, a sua acessibilidade para a investigação. Pesquisas desenvolvidas com base no método de estudo de caso tornam-se adequadas quando o propósito é “investigar um fenómeno empírico e evidenciar a complexidade social no qual este se manifesta, sejam as situações problemáticas para análise dos obstáculos, seja em situações bem-sucedidas para ilustrar os modelos exemplares” (YIN, 2005, p. 32). A sua apropriabilidade nesta pesquisa decorreu da possibilidade de realização de uma investigação aprofundada e contextualizada da organização e estruturação da administração pública moçambicana, tendo-se revelado profícuo para evidenciar as diversas situações do caso escolhido (práticas de gestão pública implementadas), portanto, as suas especificidades, características e interfaces que corporizam o objeto em investigação. A coleta e a análise de dados desta investigação foram realizadas de forma simultânea. Na coleta nos baseamos essencialmente em cinco documentos (vide o quadro 2) que expressam as políticas e as práticas de gestão que têm representado a realidade institucional e estrutural da administração pública no período de 1975 a 2011. Essa escolha permitiu a coleta de dados sobre as diferentes práticas de gestão pública adotadas ao longo do período em referência. Essas fontes foram selecionadas intencionalmente e fundamentam-se na sua eficácia e adequação aos questionamentos levantados e aos objetivos definidos para este trabalho.

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Utilizamos a análise de conteúdo como técnica para a análise dos dados coletados. Esta técnica possibilita a utilização de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das informações obtidas que, permitiram a inferência de conhecimentos relativos ao sentido e significados das mensagens (BARDIN, 2004, p. 37). A análise de conteúdo começou pela constituição do corpus da análise e a definição das categorias de análise para cada modelo de administração pública identificado na exploração dos documentos. Utilizamos como critérios para a constituição das categorias os pressupostos, concepções e padrões de gestão pública que explicam cada um dos modelos analisados. Em seguida, nossa análise cingiu-se na interpretação das práticas de gestão que têm sido implementadas que, expressam o arcabouço político e institucional do funcionamento da administração pública ao longo do tempo. O Quadro 2 apresenta os documentos analisados, a categorização e a técnica de análise utilizadas na investigação efetuada. Quadro 2 - Fontes de coleta de dados e categorias da análise adotadas. Ord.

Documentos Analisados

Período de Implementação

1

Decreto nº 1/75 de 27 de Julho

1975

2

Categorias de Análise

Técnica de Análise

- Administração burocrática

Leis nº 5/78; 6/78; e 7/78 ambas de 22 de Abril

- Centralismo da gestão 1978

3

Normas de Organização e Direção do Aparelho de Estado Central – NODAEC

- Controlo hierárquico - Planejamento centralizado 1992

4

5

Programa de Reforma do Órgãos Locais - PROL Estratégia Global de Reforma do Sector Público - EGRSP 2001-2011

Análise de Conteúdo

- Descentralização - Autonomia de gestão - Participação pública - Eficiência administrativa - Transparência da gestão - Accoutability e prestação de contas

Fonte: Elaboração do autor com base na análise de documentos.

A finalidade do procedimento adotado foi evidenciar as múltiplas experiências de gestão pública e o contexto formal legal em que se enquadram as reformas implementadas na

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administração pública de modo a permitir uma leitura sobre as suas interconexões ao longo da história de construção do Estado de Moçambique independente.

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O CENTRALISMO E OS PARADOXOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Os resultados da análise efetuada ao modelo de administração pública burocrática do

período (1975-1987) caracterizado por práticas de gestão como o centralização da gestão, controlo hierárquico e planejamento centralizado – permitiram-nos constatar que existiu nesse período um enorme contraste entre uma expressiva capacitação em termos de diretrizes para o funcionamento da administração pública nacional e uma fraca capacidade de implementação das políticas formuladas. Essa constatação configura um primeiro paradoxo de uma administração pública fragmentada e frágil. Noutros termos, se administração pública foi dotada de poderosos instrumentos de decisão (dentro da linha socialista) estaria limitada, por outro, por precários instrumentos de gestão. Esta constatação contrapõem-se ao diagnóstico dominante de estudos anteriores (SOIRI, 1999; VALÁ, 2008) cujo cerne dos problemas da gestão burocrática estariam relacionados apenas à falta de recursos humanos capacitados, à explosão e sobrecarga das demandas de assistência às populações afetadas pela guerra, a escassez de recursos para implementar os programas governamentais, as restrições relacionadas com a participação pública na gestão e à baixa capacidade do Estado de penetrar e coordenar as suas ações ao nível das comunidades locais. Ao contrário, análise permitiu-nos compreender que os pontos de estrangulamento situam-se, sobretudo no âmbito da execução das políticas públicas, da capacidade de fazer cumprir as decisões tomadas e de assegurar uma atuação eficaz das instituições públicas e a continuidade dos programas governamentais. Constatamos que a aprovação do Decreto nº 1/75, de 27 de Julho, sobre a organização da administração pública para o aparelho central, fez emergir uma nova agenda sobre o modelo e a estrutura da administração do Estado. A análise realizada mostrou-nos que estruturalmente esse dispositivo estabeleceu uma organização administrativa assente no modelo administrativo de concentração de poderes nos órgãos centrais do Estado. Aos órgãos locais do Estado (províncias e distritais) apenas funcionavam como também argumenta Valá (2008) como executores das decisões centralmente tomadas. A centralização da gestão delineada nas Leis nº 5/78; 6/78; e; 7/78 ambas de 22 de Abril, sobre a regulamentação das funções dos governos provinciais, a extinção de todos os corpos 82

administrativos coloniais e, a criação das estruturas administrativas do Estado com funções executivas mostra-nos que, nos primeiros anos da vigência do Estado novo, na componente da administração pública foram introduzidas várias medidas que foram legitimadas tendo como objetivo, garantir a institucionalização do modelo que concentrava todo o poder de decisão nos OC do governo e relegava os OLE à simples implementação das decisões centralmente tomadas. A autonomia destes últimos era reduzida ou até inexistente e, esta situação limitava o espírito de iniciativa dos níveis inferiores da administração, uma vez que eram desprovidos de todo o poder de decisão e de todos os recursos e capacidades para realizar as atividades necessárias à pronta satisfação dos interesses das comunidades locais. Por sua vez, a análise às concepções expressas pelas Normas de Organização e Direção do Aparelho de Estado Central (NODAEC) aprovadas pelo Decreto nº 4/81, de 10 de Junho, permitiu-nos constatar que estas representaram uma nova forma de organização e estruturação do Estado que reproduzia inteiramente as visões do regime socialista adotado. Argumentamos que essas normas definiam, por um lado, os órgãos centrais do aparelho do Estado como o instrumento unitário do poder e da ação governamental do Estado e, por outro, expressavam as visões sobre a direção, planejamento e controle em que o Estado assumia e garantia o modo de produção e de funcionamento da economia. De forma geral, a análise às características distintivas desse conjunto de normas centralizadoras mostra-nos que pretendeu-se reforçar do poder do Estado e das suas instituições mediante a alta concentração decisória na cúpula tecno-burocrática, paralelamente a um debilitado poder de implementação ao nível local. Esta última tendência refletiu a convergência de três processos interligados: uma crise de autoridade do Estado e das suas instituições ao nível local, o desgaste dos princípios e valores da centralização política e administrativa, além da erosão da capacidade do Estado como um todo de realizar suas funções básicas. Sob o impacto da conjugação desses fatores, reduziu-se drasticamente a capacidade de administração pública fazer-se representar e penetrar no conjunto do território nacional e de incluir no seu raio de ação todos os segmentos da sociedade, garantindo desta feita o acesso aos serviços públicos essenciais. Portanto, este seria o segundo paradoxo a ser salientado, pois, assistiu-se a constituição de um poder burocrático dentro de um modelo burocrático com fraca capacidade de atuação e pouco eficaz nos seus resultados. Noutros termos, o reforço do núcleo central tecnocrático contrastava com os empecilhos de uma burocracia com fraca capacidade operacional, destituída de autonomia no nível local e de uma estrutura de incentivos que favorecesse níveis superiores de desempenho. 83 V.8, nº 2, ago./dez. 2015.

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Em resumo, a análise às normas do período de centralização administrativa mostra-nos que a gestão pública revelava-se amplamente desconectada e com um perfil que compreendia a existência de uma ordem hierárquica arraigada numa base fragmentada de administração e de falta de poder, sobretudo para a tomada de decisão nas esferas subnacionais o nível das províncias e distritos.

4.1

O Ideal Democrático e a Gestão Pública Descentralizada Os resultados da análise realizada ao modelo de administração pública descentralizada e

estabelecimento de estruturas administrativas autónomas do período (1987-1990-2001), caracterizado por práticas de gestão que privilegiam a participação pública, descentralização e autonomia da gestão – mostram que nesse período, o contexto sociopolítico dos finais da década de oitenta e do início da década de noventa foi marcado, sucessivamente pela adesão ao sistema de economia de mercado, revisão constitucional e o AGP constituíram-se nos pilares fundamentais (BRITO, 2010) para o desenvolvimento do sistema democrático e a introdução de novos valores na atuação da administração pública. Constatamos que os aspetos relacionados com a participação da sociedade nos assuntos públicos e o exercício pleno da cidadania passaram a ser a tónica do debate sobre o estabelecimento de novas relações entre o Estado e os diferentes atores sociais no processo de gestão das políticas públicas. Nessa perspectiva, a análise permitiu identificar que o PROL introduzido em 1991 tornou-se no primeiro sinal do estabelecimento de um quadro de reformas institucionais e de iniciativas legislativas direcionadas para o nível local que, estavam orientadas para a descentralização política, envolvendo a devolução de poderes para as comunidades locais e a criação das autarquias locais (MAZULA et al., 1998). Na sua essência o PROL exprimia os anseios da autonomia política das esferas subnacionais com vistas ao aprofundamento da democracia e a redução das insuficiências da administração pública ao nível local. Nesse sentido, os seus princípios romperam com o centralismo nas práticas de gestão pública e impuseram-se como as alavancas para o desenvolvimento da democracia participativa e a partilha do poder de decisão pelos diferentes níveis de governo, isto é, entre os órgãos centrais e locais do Estado (SOIRI, 1999). O que podemos salientar é que, o PROL mostrava-se a favor da descentralização do poder decisório ou seja, da transferência de competências e responsabilidades na gestão das políticas públicas do nível central para o local. Uma constatação importante é que as concepções da descentralização foram construídas sob a suposição de que formas descentralizadas de 84

prestação de serviços públicos seriam mais democráticas e que, além disto, fortaleceriam e consolidariam a democracia. Igualmente tal consenso supunha que formas descentralizadas de prestação de serviços públicos seriam mais eficientes e que, portanto, elevariam os níveis reais de bem-estar da população. Reformas do Estado que seguem os argumentos mencionados anteriormente (ARRETCHE, 1996) seriam desejáveis, dado que viabilizariam a concretização de ideais progressistas, tais como equidade, justiça social, redução do clientelismo e aumento do controle social sobre o Estado. De acordo com essa linha de ideias, importa destacar que a análise efetuada aponta que em Moçambique tem-se defendido e com maior incidência desde a aprovação da Lei n° 2/97, de 18 de Fevereiro, sobre o enquadramento jurídico da municipalização, a introdução de uma descentralização de tipo gradual e, que se caracteriza como uma descentralização democrática (MANOR, 1999) que, representa um processo político justificado como estratégia para a democratização do poder, através da ampliação dos níveis de participação cidadã e da multiplicação de estruturas de poder, com vistas à melhoria da eficiência da gestão pública. Fala-se também de uma descentralização administrativa (CAVALCANTE, 2011) que compreende a deslocação dos centros de decisão para as esferas locais, dentro da lógica da desconcentração, segundo as práticas de gestão propostas pela Lei n° 8/2003, de 19 de Maio, a Lei dos Órgãos Locais do Estado (LOLE) e o seu respetivo regulamento, o Decreto n° 11/2005, de 10 de Junho. Salientamos que, estas últimas normas possibilitaram a atribuição de competências exclusivas aos órgãos locais (província e distritos) eliminando de certa forma os problemas da extrema dependência hierárquica e falta de autonomia das unidades administrativas locais, por meio da institucionalização de uma gestão pública relativamente coordenada e interdependente. Portanto, a ideia central da descentralização tem sido justificada em função da necessidade de buscar-se maior eficácia na gestão pública, eliminação de intermediações burocráticas e possibilidade de um contacto mais próximo com o cidadão e constituição de instâncias de tomada de decisão inovadoras, isto é, que promovem colaboração e participação pública no processo de formação e implementação de políticas públicas, os Conselhos Consultivos Locais (CCL) criados ao nível dos distritos e dos municípios. 4.2

As Inovações Administrativa

na

Gestão

Pública

e

a

Agenda

de

Modernização

Os resultados da análise efetuada ao modelo de administração pública implementado através da Estratégia Global de Reforma do Sector Público, EGRSP no período (2001-2011…) 85 V.8, nº 2, ago./dez. 2015.

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caracterizado pela adoção de práticas de gestão como a eficiência, transparência, accountability e a prestação de serviços de qualidade aos cidadãos – mostram-nos que atualmente, diferentemente das duas reformas administrativas introduzidas nos períodos anteriores, os pressupostos e princípios das mudanças pretendidas estão embasados nas doutrinas da NPM e do NPS. Desde o ano de 2001 as ideias reformistas têm em vista responder aos desafios da modernização administrativa e criação de processos e estruturas organizativas adaptadas às práticas de gestão pública contemporânea amplamente defendidas nos países ocidentais como fatores-chave para impulsionar a melhoria do desempenho do setor público inclusive nos países em desenvolvimento como Moçambique. Aliás, para o caso moçambicano a partir de 2001 foram criados vários mecanismos administrativos inovadores que vão ao encontro dessas novas concepções de gestão. Podemos citar como exemplos a criação de mecanismos para garantir a disciplina fiscal, a Unidade Técnica de Reforma da Administração Financeira do Estado (UTRAFE) e do Sistema de Administração Financeira do Estado (SISTAFE). Portanto, esses mecanismos constituíram-se como grandes inovações relativamente à forma de organização e gestão de recursos financeiros públicos e, o seu foco está na ampliação da eficiência administrativa do setor público. Na mesma vertente, de forma mais intensa a partir de 2006 a gestão pública passou a ser avaliada através de indicadores de desempenho que privilegiam o alinhamento entre os principais instrumentos de governança no setor público, o Plano Económico e Social (PES) e o Orçamento do Estado (OE). Estes incorporam uma nova lógica e visão de planejamento e execução, mas também de prestação de serviços à sociedade dado que, privilegiam a gestão por resultados, a imposição de uma cultura de responsabilização dentro da administração pública bem como, a entrada de novos atores (por exemplo, o processo de contratação e oferecimento de bens e serviços implantado pelo Decreto n° 15/2010, de 25 de Maio) no processo de gestão das políticas públicas mediante a criação de parcerias público-privadas. Defende-se através da EGRSP um maior acesso dos grupos de interesse ao processo de gestão do sector público encarado, nesta perspectiva, como um mecanismo para ampliar a accountability e prestação de contas e permitir a atuação da administração pública de forma mais participativa e coordenada. Formula-se que novos atores provenientes do sector privado assim como da sociedade civil devem interagir com maior frequência com o Estado e suas instituições, possibilitando a redução das fronteiras existentes o que permite elevar a participação pública e democratizar o processo de formação e tomada de decisão sobre as políticas públicas. Importante de destacar também como resultado da reforma é a implementação do Decreto n° 5/2006, de 12 de Abril, que no âmbito da desconcentração de competências para o Governador Provincial e Administrador Distrital promoveu novas práticas de contratação para os 86

quadros de pessoal ao nível local concretizando, assim, a ideia da profissionalização dentro de um sistema de carreiras que obedece a tabelas salariais e a esquemas de promoção próprios. Por sua vez, a implementação do Estatuto Geral dos Funcionários e Agentes do Estado (EGFAE) em 2009 pela Lei n° 14/2009, de 17 de Março, permitiu proceder a uma gestão de recursos humanos a partir de mecanismos modernos e de técnicas de avaliação de desempenho. Nesta mesma vertente, os princípios de gestão introduzidos pelo Decreto n° 15/2010, de 25 de Maio indicam uma contribuição importante para a elevação da transparência no uso dos recursos e contratação e oferecimento de bens e serviços, trazendo maior racionalidade e flexibilidade organizacional no papel e qualidades do gestor público. Finalmente, a análise aos objetivos do Sistema de Gestão de Desempenho na Administração Pública (SIGEDAP) aprovado em 2009 pelo Decreto n° 55/2009, de 12 de Outubro, mostra-nos a realização de um grande salto nos processos de avaliação da administração pública, pois, visa aperfeiçoar a gestão determinada por objetivos, orientada para resultados e dotada de instrumentos de gestão necessários para atuar e responsabilizar, motivando as lideranças, os funcionários e agentes do Estado para um desempenho de qualidade e reconhecendo o mérito e a excelência.

5

CONSIDERAÇÕES FINAIS A revisão da literatura e a análise exploratória realizadas neste trabalho permite-nos

destacar algumas considerações importantes acerca da dinâmica e transformações em curso na administração pública moçambicana. Em primeiro plano, a forma anterior de expansão do Estado que implicou, sobretudo o fortalecimento institucional do nível central em detrimento dos níveis provincial e distrital, paradoxalmente implementada no período de maior centralização política, financeira e decisória, em um contexto de crise de capacidades estatais do governo central, explica boa parte dos processos que têm caracterizado a construção da administração pública. Argumentamos, em segundo plano que a agenda de descentralização e modernização pretendida é fortemente condicionada pelo dilema do fortalecimento das estruturas administrativas locais e da redução das funções dos órgãos centrais do governo. Nesses termos, uma leitura importante é que a administração pública tem-se constituído a partir de um pressuposto que a orienta para a superação do padrão fragmentado e frágil que lhe é característico desde a altura da independência nacional. 87 V.8, nº 2, ago./dez. 2015.

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Contudo, conforme mostram os resultados da análise realizada, as práticas de gestão dos últimos anos têm contribuído para o fortalecimento das capacidades administrativas do setor público e superação dos limites estruturais e organizacionais, ainda que de forma inicial, fato que permite que a descentralização e modernização seja atualmente uma “possibilidade real”. Para o efeito torna-se fundamental consolidar e fortalecer os diferentes mecanismos de gestão já institucionalizados e voltados para a materialização das mudanças em curso, sobretudo no nível local onde os desafios da gestão são ainda maiores. Para pesquisas futuras, sobre a administração pública no contexto moçambicano torna-se interessante examinar as questões relativas à institucionalização das práticas de gestão pública descentralizadas e avaliar as suas implicações para a melhoria da prestação dos serviços públicos aos cidadãos. Dado que as reformas em curso possibilitaram a convivência de diferentes esferas governamentais, importa analisar as ligações entre a municipalização e as articulações intergovernamentais estabelecidas no âmbito da implementação das políticas públicas e da elevação da qualidade de vida dos cidadãos. Finalmente, outro aspeto fundamental a ser explorado tem a ver com o aprofundamento da discussão acerca da eficácia da ação governamental no nível local aliada ao problema da accountability quer política como administrativa e, portanto, se a maior concretização dos novos arranjos administrativos adotados favorece a criação de mecanismos que contribuem para a ampliação do controle socia e a maior participação do público nos processos de gestão.

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