Dinâmicas governativas no Estado do Brasil: comunicação política e provimento de ofícios (1648-1657)

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ANAIS ELETRÔNICOS

Universidade do Estado da Bahia Universidade Católica do Salvador Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local (UNEB) Programa de Pós-Graduação em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (UCSAL) 12 a 15 de setembro de 2016 Cidade da Bahia, Cabeça da América Portuguesa

ANAIS ELETRÔNICOS

Salvador EDUNEB 2017

Dinâmicas governativas no Estado do Brasil: comunicação política e provimento de ofícios (1648-1657) Hugo André Flores Fernandes Araújo Doutorando em História Social (UFRJ) Introdução A governação do Estado do Brasil estava assentada em algumas dinâmicas fundamentais, no presente texto analisaremos duas delas: o envio de correspondências dos governadores-gerais no interior do Estado do Brasil e o provimento de ofícios. Nosso objetivo por ora é tão somente identificar as principais características dessas dinâmicas. Em trabalhos futuros exploraremos as especificidades dessas ações de governo. A comunicação política foi um dos instrumentos centrais da governação na América lusa. Na última década diversas pesquisas coletivas se debruçaram sobre esta temática buscando compreender as particularidades da dinâmica ultramarina da comunicação política na monarquia portuguesa1. As principais questões que norteiam estas pesquisas tem se concentrado na investigação da troca de correspondências em uma dimensão oceânica, no estabelecimento e no reforço de vínculos políticos e econômicos entre a Coroa e as conquistas, assim como na circulação e na conexão de pessoas entre as conquistas dispersas pelo ultramar lusitano 2. Neste sentido, buscamos analisar uma parcela fundamental da comunicação política ainda não foi devidamente contemplada por estas pesquisas: a dinâmica interna da comunicação política no Estado do Brasil 3. Desta forma, objetivamos caracterizar a correspondência dos governadores-gerais do Estado do Brasil a fim de compreender as particularidades que conformavam este nível da comunicação política. Assim identificaremos os interlocutores da correspondência políEstamos nos referimos aos projetos internacionais: “A comunicação política na monarquia pluricontinental (1580-1808)” coordenado por Nuno Gonçalo Monteiro; e “A monarquia e seus idiomas: corte, governos ultramarino, negociantes, régulos e escravos no mundo português. (séc. XVI-XIX)” coordenado por João Fragoso. 2 Outros projetos também se dedicam a analisar as dinâmicas do governo à distancia empreendidas pelas monarquias ibéricas: “Vencer la distancia: Actores y prácticas del gobierno de los impérios español y português.” http://distancia.hypotheses.org/ 3 A inspiração por trás desta escolha de pesquisa é proveniente da crítica de John Elliott endereçada a uma parte dos estudos da chamada Atlantic History: “much of the work thus far published with an explicitly Atlantic focus has tended to focus upon the connections that tied the many areas of the Atlantic together (...) without much concern about specifying how those connections and transnational relations affected the internal histories of the areas that they connected”. GREENE, Jack P.; MORGAN, Philip D. “Introduction: The presente state of Atlantic History.” In: GREENE, Jack P.; MORGAN, Philip D. (Eds.) Atlantic History: A critical appraisal. New York: Oxford University Press, 2009. p. 6-7 1





tica do governo-geral, os circuitos de comunicação e os temas discutidos. Não iremos analisar as particularidades da escrita das cartas, tema de grande importância que conta com uma razoável produção bibliográfica 4. A análise do volume de correspondências emitidas pelos governadores-gerais nos permite entender de modo mais detido as nuances conjunturais da América portuguesa, bem como nos indica quais eram as dificuldades e os obstáculos que desafiavam a gestão do vasto território do Estado do Brasil, sobretudo no momento em que a ocupação neerlandesa no nordeste ameaçava o domínio lusitano na América. O provimento de ofícios na monarquia portuguesa é uma temática que também recebeu atenção de pesquisas nos últimos anos. Alguns desses estudos têm destacado a necessidade de analisar as especificidades dessas práticas a fim de construir uma compreensão mais delineada dos mecanismos de recrutamento e provimento dos ofícios. Estes estudos também têm apontado como vários ofícios possuíam grande importância e impacto nas sociedades da América portuguesa 5. Neste sentido, concordamos com a constatação de Bartolomé Yun Casalilla quando este afirma que “la historia de los impérios está indisolublemente unida a la de las élites políticas, económicas y culturales de las áreas que los forman” 6. Compreendemos, portanto, que a análise dos provimentos nos permite apreender aspectos fundamentais da gestão da monarquia e do funcionamento dos ofícios providos.

Dentre os vários estudos sobre escrita de cartas destacamos o dossiê organizado por um especialista neste tema: BOUZA, Fernando (Coord.) Cultura epistolar em la alta Edad Moderna: Usos de la carta y de la correspondencia entre el manuscrito y el impreso. Cuadernos de Historia Moderna. Anejo IV, 2005. A escrita de cartas pelos governadores-gerais também foi objeto de pesquisa: Cf. SANTOS, Marília Nogueira dos Santos. Escrevendo Cartas, governando o Império: A correspondência de Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho no governo-geral do Estado do Brasil (1691-1693). Dissertação (Mestrado em História). Niterói: UFF, 2007; MENDES, Caroline Garcia. A circulação e a escrita de cartas do governador geral do Estado do Brasil Francisco Barreto. (1657-1663) Dissertação (Mestrado em História). Campinas: Unicamp, 2013. 5 Roberta Stumpf tem analisado as políticas de provimento de ofício do ponto de vista da monarquia, observando especificamente os casos de propriedades de ofício e discutindo a existência e as formas de venalidade de alguns desses ofícios. Cf. STUMPF, Roberta Giannubilo. “Os Provimentos de ofícios: A questão da propriedade no Antigo Regime Português.” Topoi. n°. 29, v. 15, Jul-Dez, 2014; STUMPF, Roberta Giannubilo. “Venalidade de Ofícios e Honras na Monarquia Portuguesa: um balanço preliminar”. In: ALMEIDA, Suely. C.C. de; SILVA, Gian. C. de M.; SILVA, Kalina V; SOUZA, George F. C. (Orgs). Políticas e Estratégias Administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Editoria Universitária UFPE. 2012. Analises mais especificas sobre os ofícios militares também tem ressaltado a importância desses postos para a lógica de serviço imperial e para o reconhecimento e acrescentamento social. Cf. MOREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri. Os ofícios superiores e inferiores da tropa paga (ou de 1ª. linha) na capitania do Rio de Janeiro, 1640-1652: Lógica social, circulação e a governança da terra. Tese (Doutorado em História). Niterói, UFF, 2015; CRUZ, Miguel Dantas da. “A nomeação de militares na América portuguesa: Tendências de um império negociado”. Varia Historia. Belo Horizonte. Vol. 31, n. 57. set/dez 2015. 6 CASALILLA, Bartolomé Yun. “Entre el império colonial y la monarquía compuesta. Élites y territorios en la Monarquía Hispánica” In: CASALILLA, Bartolomé Yun (Org.). Las Redes del Império: Élites sociales en la articulación de la Monarquía Hispánica, 1492-1714. Madrid:Marcial Pons História. Universidad Pablo Olavide, 2009. p. 11.

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A Comunicação política no interior do Estado do Brasil (1648-1657) Nossa principal base documental para analisar dinâmica interna da comunicação política são as cartas publicadas nos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional 7. A documentação publicada é em sua grande maioria proveniente dos livros de registro de cartas, onde eram anotadas as missivas emitidas pelos governadores-gerais. Até o momento não conseguimos precisar com que rigor as correspondências eram registradas nestes livros, o que nos impossibilita identificar o quão representativos são esses dados em relação ao total de cartas escritas pelos governadores-gerais para outros oficiais na América portuguesa. Para o período analisado (1648-1657), contabilizamos um total de 557 8 cartas (Gráfico 1). Destas, 23 cartas foram emitidas pelo Conde de Vila Pouca de Aguiar (1647-1650), número absolutamente discrepante e que explicita a defasagem desta série documental para este período. Já para o governo do 2º. Conde de Castelo Melhor (1650-1654) encontramos a quantidade mais expressiva de 266 cartas, o que certamente retrata de modo mais aproximado a rotina da governação, da mesma forma encontramos 268 cartas emitidas pelo Conde de Atouguia (1654-1657). A título de comparação, Caroline Garcia Mendes encontrou em sua pesquisa de mestrado um total de 150 cartas do governador-geral Francisco Barreto, entre os anos de 1657-1663, destinadas a várias autoridades do Estado do Brasil 9.

Utilizamos os seguintes volumes da coleção: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. III. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. IV. Rio de Janeiro: Augusto Porto & Cia. 1928; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. V. Rio de Janeiro: Augusto Porto & Cia. 1928. Ao longo do texto utilizaremos a sigla DHBN para nos referir a estas obras. 8 As datas extremas dos recortes se referem à datação encontrada nas cartas. Assim a carta mais antiga de nossa série é referente à 06/01/1648, mas sabemos que o Conde de Vila Pouca de Aguiar havia tomado posse do governo em 22/12/1647. A data extrema final de nosso recorte é referente à 27/04/1657, de modo que o governo do conde de Atouguia se encerrou em 18/06/1657 quando Francisco Barreto tomou posse como governador-geral. 9 Cf. MENDES, Caroline Garcia. A circulação e a escrita de cartas do governador geral do Estado do Brasil Francisco Barreto (1657-1663). Dissertação (Mestrado em História). Campinas: Unicamp, 2013. p. 50-52. Vale ressaltar que a autora não lista nesta contagem as correspondências para câmaras municipais, muito embora a autora as utilize pontualmente ao longo de sua análise. Certamente este total seria significativamente maior com a inclusão destas.

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Gráfico 1 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, V. A circulação de ordens e de informações através das correspondências constituíase então no “principal instrumento de comunicação e exercício de governo nesse momento” 10. A preocupação em superar as distâncias e os fatores que poderiam interferir na dinâmica de comunicação foi expressa em várias cartas e até mesmo nos regimentos, afinal “os cazos do mar são vários, e se não podem prevenir como convém” 11. Neste sentido, destacamos que a comunicação com territórios próximos à zona de controle dos neerlandeses era uma tarefa significativamente mais difícil. A superioridade naval dos holandeses obrigava que a maior parte das correspondências seguisse o itinerário do interior dos sertões. Para se comunicar com o mestre de campo general Francisco Barreto, o Conde de Castelo Melhor teve que recorrer a vários intermediários 12. As ações de corso e apresamento eram outro grande constrangimento à comunicação pela via náutica 13. Além da captura de embarcações, com cargas e prisioneiros, os holandeses também investiram sobre o recôncavo, saqueando e queimando engenhos 14 . COSENTINO, Francisco Carlos C. “Comunicação entre governadores, capitanias e câmaras: a governação do Brasil, 1654-1681”. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História da ANPUH. Natal, RN. 2013. p. 7. 11 Capítulo 20. “Regimento que trouxe o senhor Conde de Castelo Melhor sobre a armada da companhia Geral de Comercio”. (11/10/1649) BNRJ-SM, Códice 9, 2, 20. (1642-1753). N°. 2. 12 Como fica explícito em duas cartas de 1650, que foram enviadas para a Torre de Garcia D’Avilla, que deveria remetê-las para Belchior Alves, na capitania de Sergipe Del Rey. A partir dali as cartas seguiriam se “encaminhando de logar a logar té se entregarem na Varge (sic) ao Mestre de Campo General por ser este o meio mais prompto para lhe chegarem com a maior antecipação e segurança que sua grande importância pede” 12/09/1650. DHBN, Vol III, p. 78. 13 Charles Boxer indica que entre 1647-1648 o número de navios apresados pelas ações neerlandesas chegava à vultosa soma de 220 embarcações. BOXER, Charles. The Dutch in Brazil (1624-1654). Oxford: Clarendon Press, 1957. p. 280-289. 14 Essas ações são mencionadas pelo Conde de Castelo Melhor ao pedir donativo voluntário aos oficiais da câmara do Rio de Janeiro em 20 de Março de 1650. DHBN, Vol IV, p.467- 468. - Estima-se que em dezembro de 1648 as incursões da armada de De With, que contava com cerca de 2000 soldados, conseguiu assolar as freguesias do recôncavo queimando “vinte e dois engenhos de açúcar, roubando quanto achou no distrito deles” SANTIAGO, Diogo Lopes. Op. cit. p. 529. – Wanderley Pinho cita as ações de Van dem Brand e Van 10





Com efeito, a alternativa buscada pelo governo-geral para minimizar a efetividade dessas ações foi o envio de instruções que visavam indicar uma forma segura de navegação até o porto da Bahia. Em algumas cartas encontramos as medidas tomadas para evitar o encontro com as embarcações neerlandesas. Em uma carta para o Alferes Domingo Pinto, que servia na Torre de Garcia d’Ávila, o Conde de Vila Pouca de Aguiar ordenava que as embarcações que saíssem dali ao sol posto, e se venha com toda a vigilância sempre encostado a terra metter entre os fortes de São Diogo e Santa Maria, donde achará as lanchas e venha com advertência de estar o Inimigo nesta Bahia e naus suas no meio della, (...) e dobre a ponta de Santo Antonio de maneira que ainda que ache vento escasso se possa metter entre os fortes e não possa perigar se amanhecer no mar para o que convém que não saia sem tempo tão feito que julgue elle certeza na viagem 15.

A opção por navegar durante a noite, sempre se mantendo próximo à costa, a fim de buscar a proteção dos fortes foi uma das formas encontradas para escapar ou minimizar as ações de apresamento. As instruções para navegação segura foram enviadas principalmente para Ilhéus 16, mas também encontramos o envio dessas para a capitania do Rio de Janeiro 17. A circulação deste tipo de informação foi importante ferramenta de governo, sobretudo se levarmos em consideração que as ações holandesas também buscaram se adaptar, utilizando desertores e embarcações luso-brasileiras para realizar saques e apresamentos 18. No Quadro 1 listamos em ordem decrescente a quantidade de correspondências por capitania. É importante destacar que as capitanias relacionadas não refletem o total das capitanias existentes no século XVII, mas sim aquelas que foram explicitamente mencionadas nas cartas. Goch, mencionando o saque e a destruição de 23 engenhos entre o final de 1648 e fevereiro de 1649. Cf. PINHO, José Wanderley de Araújo. História de um engenho do Recôncavo: Matoim, Novo Caboto, Freguesia. (1552-1944). 2ª. Edição, ilustrada e acrescida de um Apêndice. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1982. p. 122.; Cf. MELLO, Evaldo Cabral de (Org). O Brasil holandês. (1630-1654). Seleção, introdução e notas de Evaldo Cabral de Mello. São Paulo: Penguin Classics, 2010. p. 446 – 447. Evaldo Cabral de Mello estima que os neerlandeses apreenderam 1500 caixas de açúcar durante essas ações. MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 3ª edição. São Paulo: Editora 34, 2007. p. 68. 15 13 de Dezembro de 1648. DHBN, Vol. III, p. 26. 16 Em 1652 esse tema foi recorrente, indicando que as ações de corso vinham causando grandes prejuízos. Neste ano encontramos cartas para Antônio de Couros Carneiro, capitão mor de Ilhéus, para Gaspar de Souza Uchoa, tenente de Mestre de Campo na fortaleza de Morro de São Paulo e também para Antônio da Silveira, mestre de Navio. Cf. 12/04/1652. DHBN, Vol. III, p.161-162; 12/04/1652. DHBN, Vol. III, p.162-163; 04/05/1652. DHBN, Vol. III, p. 164-165; 07/05/1652. DHBN, Vol. III, p.166; 07/05/1652. DHBN, Vol. III, p. 166-167. 17 Antônio Teles de Menezes envia para Salvador Correia de Sá e Benavides as mesmas instruções, recomendando as medidas para a navegação segura e a busca de informações em Ilhéus sobre a atividade do inimigo naquelas águas. 31/03/1648. DHBN, Vol. IV, p. 432-434. 18 Duas cartas mencionam que os holandeses utilizavam o navio de João de Souza Borges para ações de corso (22/01/1652. DHBN,Vol. III, p. 144-145). Outras duas cartas mencionam que o capitão Dom Pedro de Bíveros teria desertado e se unido aos holandeses, se valendo de ser muito conhecido no recôncavo para saquear freguesias e capturar pequenas embarcações. As cartas são enviadas a fim de que a notícia fosse divulgada por todo o recôncavo a fim de inibir essas incursões. (07/03/1652. DHBN, Vol. III, p. 152-154). 

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Quadro 1 – Correspondências por Capitania (1648-1657) 19 Valor % Valor Absoluto

Ilhéus

Rio de Janeiro

Bahia

São Vicente

Sergipe del Rei

Espírito Santo

Não informado

Porto Seguro

Pernambuco

Itanhanhém

Total

28,74 159

19,19 106

13,33 79

11,63 64

11,63 64

8,56 47

2,98 16

1,90 10

1,72 9

0,32 1

100 555

Cabe ressaltar que não encontramos correspondências enviadas para as capitanias anexas a Pernambuco (Itamaracá, Rio Grande, Paraíba e Ceará 20), com a exceção de Sergipe del Rey. Em parte o número reduzido de cartas para Pernambuco e suas anexas pode ser explicado pela conjuntura de guerra contra os holandeses, que dificultava a comunicação em áreas de conflito. Por outro lado, Francisco Barreto que detinha a patente de Mestre de Campo General e Governador de Pernambuco, possuía poderes e jurisdição que lhe conferiam relativa autonomia em relação ao governo-geral 21. A comunicação com outras partes da América22 até onde percebemos está alocada em outros fundos documentais, mas certamente esta foi menos freqüente, principalmente com os territórios da América Espanhola em função da guerra contra a coroa de Castela que se estenderia até 1668 23. O principal destino das correspondências foi a capitania de Ilhéus seguida pela capitania do Rio de Janeiro. O destaque de Ilhéus se deve à sua reconhecida importância para o abastecimento do recôncavo. Do total de 159 cartas enviadas a capitania de Ilhéus, 63 tratam de temas relacionados ao abastecimento do recôncavo, de Salvador, e do apresto das armadas, problemas constantes que o governo-geral buscava solucionar. Sendo que destas 54 tratavam da produção e envio de farinha de mandioca, 5 sobre o sustento do presídio da Bahia e 4 sobre pedidos de mantimentos 24.

DHBN, Vol. III, IV, V. Não incluímos neste quadro 2 cartas enviadas para expedições. Seguimos aqui as referências apontadas em: “Relatório sobre o Estado das Capitanias conquistadas no Brasil, apresentado pelo Senhor Adriaen van der Dussen ao Conselho dos XIX na Câmara de Amsterdã, em 4 de Abril de 1640.” In: MELLO, José Antônio Gonsalves de. (Org). Fontes para a história do Brasil Holandês. Vol. 1- A Economia Açucareira. 2ª. Ed. Recife: CEPE, 2004. p. 137. 21 Isso fica evidente principalmente em parte da documentação que compõe a Coleção Conde dos Arcos do Arquivo da Universidade de Coimbra. Como observamos em levantamento preliminar no Códice: Disposições dos Governadores de Pernambuco (1648-1696). AUC. CA. Cod. 31. 22 Referimo-nos à comunicação com o Estado do Maranhão, que gozava de jurisdição independente do Estado do Brasil. António Teles da Silva afirmava ter ajudado os moradores daquele território nas lutas contras os holandeses. Cf. ARAÚJO, Hugo André. F. F. Governação em tempo de guerra: Governo geral do Estado do Brasil e a gestão da defesa (1642-1654). Dissertação (Mestrado em História). Juiz de Fora: UFJF, 2014, p. 83-84. 23 Sabemos que apesar da guerra contra os espanhóis houve tentativas de restabelecer relações comerciais com o Rio da Prata, como a iniciativa malsucedida de António Teles da Silva em 1643. Ibidem. p. 73. 24 O papel das vilas de Ilhéus no abastecimento do recôncavo foi indicado por Francisco Carlos Teixeira da Silva. O autor indica que a “vocação” para o mercado interno foi algo percebido e incentivado pelo governogeral, mesmo que de modo coercitivo, com proibições e restrições ao desenvolvimento de outras atividades. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. A morfologia da escassez: crises de subsistência e política econômica no Brasil colônia. (Salvador e Rio de Janeiro, 1680-1790). Tese (Doutorado em História). UFF: Niterói, 1990. p. 130. 19

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O governo-geral enviou 106 cartas para a capitania do Rio de Janeiro, o que representa 19,19% do total de correspondências emitidas. Esse dado é um dos indicativos da crescente importância política e econômica que capitanias do sul conquistaram ao longo do século XVII, sobretudo a capitania do Rio de Janeiro. Outro indício foi apontado por Marcello Loureiro, através da análise da comunicação política da capitania do Rio de Janeiro com o Conselho Ultramarino. O autor indica que durante a década de 1640 o volume de cartas enviadas pela capitania fluminense foi superior ao emitido pela “cabeça do Estado do Brasil” 25. Precisamos ressaltar que não consideramos o aumento do fluxo da comunicação por si só como catalisador do aumento de importância desta capitania no cenário imperial. Esses dados são importantes para ressaltar a inserção da capitania na dinâmica imperial de comunicação, contudo, essas informações ganham maior dimensão quando aliados com as conclusões apresentadas por Antônio Carlos Jucá de Sampaio. De acordo com o autor, durante a ocupação holandesa no nordeste a capitania fluminense alcançou o patamar de terceira maior região açucareira, atrás de Pernambuco e Bahia. Encontramos 22 cartas que tratam especificamente das temáticas relativas à produção de alimentos, fiscalidade e do comércio do açúcar da capitania fluminense. Antônio Carlos Jucá também destaca que durante este período a economia da capitania se favoreceu de um sistema agrário próspero, produzindo alimentos em fartura, colaborando com o excedente para o abastecimento das capitanias do Norte 26, sobretudo da Bahia que sofria com a constante escassez de alimentos 27, como indicamos anteriormente. Para analisar quantitativamente os temas abordados na comunicação política do governo-geral apresentamos no Gráfico 2 as tipologias de assunto, bem como a representatividade destas no fluxo de comunicação no Estado do Brasil. Organizamos os assuntos de acordo com os principais poderes e competências que eram delegados ao governogeral. Buscamos utilizar classificações que se aproximassem do vocabulário político coevo, neste sentido utilizamos os seguintes termos: Governação, Fazenda, Milícia, Justiça, Outros.

25 LOUREIRO, Marcello José Gomes. “O Conselho Ultramarino e a sua pauta: aspectos da comunicação política da monarquia pluricontinental (1640-1668) – notas de pesquisa.” Nuevo Mundo Mundos Nuevos. Colloques, mis en ligne le 14 octobre 2013. Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/65830. Acessado em: 23/05/2015. 26 Essa questão também foi sinalizada por Luís Felipe de Alencastro: ALENCASTRO, Luís Felipe de. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 361-363. 27 SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império: hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c. 1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 65. .

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Gráfico 2 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, V.

As correspondências classificadas como Governação englobam instruções e ordens encaminhadas aos oficiais de governo. Destacam-se os envios e os pedidos de noticias sobre diversos assuntos; a mediação política, tanto em situações de tensões como no estabelecimento de novos acordos; o envio de instruções específicas, que variavam de acordo com o receptor e com a conjuntura; e o provimento de serventias da alçada do governogeral. O destaque do volume de correspondências associadas a esta tipologia (46% ou 257 cartas) é um forte indicativo de que as funções dos governadores-gerais estavam concentradas na supervisão dos oficiais e na constante troca de informações. A tipologia Fazenda agrega temas relativos ao comércio, a fiscalidade, produção de alimentos e mercadorias, bem como discussões sobre os valores e os pagamentos de soldos. Também incluímos nessa categoria instruções remetidas aos provedores da fazenda, e ainda os pedidos de envio de mantimentos para sanar os problemas de abastecimento na Bahia. A representatividade destes assuntos atesta que estas eram questões centrais para o governo-geral, sobretudo quando levamos em consideração as dificuldades conjunturais de abastecimento de gêneros, a retração no comércio e os elevados custos de defesa. A gestão da defesa é observada através das correspondências que classificamos como Milícia. Composta por cartas com instruções de reforço defensivo, ordens de envio de soldados e oficiais militares, discussões sobre sustento de soldados e do presídio de Salvador, assim como noticias sobre o envio de navios para defesa e comboio, e ainda diversas instruções específicas transmitidas aos oficiais militares. É importante ressaltar como esses assuntos se enquadram dentro das prioridades do governo-geral, uma vez que a maioria esmagadora das ordens destinava-se a cuidados e preparativos de defesa, praticamente não há menção a ofensivas. As cartas relacionadas à temática da Justiça apresentavam ordens para a execução de devassas e para prisões; discussões sobre a delimitação jurisdicional de ofícios e de territórios; e ainda instruções específicas encaminhadas aos oficiais responsáveis pela justi-

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ça28. Deste modo, as correspondências corroboram a percepção de que os poderes e prerrogativas de justiça do governo-geral primavam pela conservação da ordem. Assim, cabia ao governador-geral “como representante do rei, agir como árbitro, mantendo a harmonia e evitando a intromissão de funções e competências entre os diversos órgãos e poderes” 29. A partir do restabelecimento do Tribunal da Relação em 1653 30 os assuntos de justiça convergiriam para esta instituição, fato este que pode ter influenciado o volume desta temática nas correspondências. A tipologia que genericamente denominamos de Outros agrupa um grupo diminuto de cartas que destoam significativamente das demais tipologias. Ao todo são 16 cartas, sendo que destas 3 se referem à execução de obras em localidades, 4 tratam do envio de clérigos, 1 sobre escravidão, 5 sobre assuntos particulares, 2 sobre arrecadação de esmolas e 1 sobre envio de gêneros específicos. Em suma, entendemos que as tipologias nos indicam como o governo-geral distribuía seu tempo no processo decisório, o que não significa, por exemplo, que as questões relativas à governação fossem mais importantes do que as questões de fazenda ou milícia. O que estas tipologias nos revelam é a freqüência com que os assuntos figuravam na pauta da comunicação política. Certamente havia uma demanda maior pela troca de informações e pela gestão de ofícios, o que entendemos como sendo despachos cotidianos e, portanto, fundamentais ao funcionamento do governo. Por outro lado, isto não diminui a atenção e o cuidado dispensado aos assuntos como a resolução de conflitos de jurisdição, a organização da produção e do abastecimento do recôncavo da Bahia ou a gestão da defesa litorânea. Estes temas figuravam na comunicação política com uma apresentação textual que refletia um senso de urgência que não se observa nas demais tipologias. Portanto, o que buscamos aqui foi distinguir e compreender os assuntos abordados na comunicação política a luz do contexto dinâmico do Estado do Brasil, sem com isso hierarquizá-los por sua importância.

Entendemos que as instruções específicas podiam ser cartas como as que tratavam de repreensões e advertências sobre condutas indesejáveis de oficiais que lesavam jurisdições e prerrogativas, tal como as encaminhadas ao governador do Rio de Janeiro (23/05/1650. DHBN, Vol. V. p. 7-9) e ao sargento-mor Gaspar Carrilho de Matos (17/10/1651. DHBN, Vol. V, p. 35-36.). Mas também consideramos estas pudessem ser ordens como um pedido de informação sobre presos remetidos, a fim de que fossem julgados de modo justo (12/06/1652. DHBN, Vol. III. p. 171-172), ou como a ordem para que o regimento do Tribunal da Relação fosse registrado na câmara do Rio de Janeiro para ser observado e praticado. 12/08/1653. DHBN, Vol. V. p. 53. 29 COSENTINO, Francisco Carlos C. “Governo-Geral do Estado do Brasil: governação, jurisdições e conflitos (séculos XVI e XVII)”. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. (orgs.) Na Trama das Redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2010. p. 412. 30 Os governadores-gerais tinham assento no tribunal como “regedores”. O regimento da Relação do Estado do Brasil determina funções e prerrogativas que os governadores-gerais dispunham ao atuar no tribunal, tal como o provimento das serventias dos ofícios de justiça e fazenda e o poder de ordenar a tomada de residência de oficiais quer serviam por triênios, entre outras funções. Cf.“Regimento da Relação do Estado do Brasil” In: MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Raízes da formação administrativa do Brasil. Tomo II. IHGB. Conselho Federal de Cultura. 1972. p. 659-670.

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Provimento de ofícios do governo-geral: características gerais (1648-1657) A documentação que utilizamos para analisar o provimento de ofícios também faz parte da coleção dos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional 31. Utilizamos em nossa análise especificamente os tipos documentais pelos quais o governo-geral nomeava e provia os oficiais subordinados, mais especificamente utilizamos patentes, provisões, alvarás de reformação, portarias e vias de sucessão (Gráfico 3). r

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Gráfico3 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, XVIII, XIX, XXXI

Devemos chamar atenção para o fato de que existiam outros instrumentos de governo como bandos, sesmarias e regimentos, contudo tratam-se de documentos específicos que auxiliam a compreensão de outras dinâmicas de governo. Identificamos 172 provimentos de ofícios feitos pelo governo-geral, cifra esta que atesta o grau lacunar desta série de dados. Não dispomos de meios para identificar a representatividade destes dados, mas entendemos que a própria dispersão destes documentos reflita as lacunas. No Gráfico 432, onde relacionamos o número de provimentos por ano encontramos valores bastante discrepantes, contudo é preciso notar que a curva do gráfico em certa medida se assemelha aquela apresenta no Gráfico 1, pois os anos iniciais apresentam dados muito defasados ao passo que o ano de 1656 aparece nos dois gráficos como o ponto mais alto. A título de comparação, em um levantamento preliminar no Códice 31 da coleção Conde dos Arcos, encontramos 65 disposições de governo feitas por Francisco Barreto como governador da Utilizamos os seguintes volumes da coleção: Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. III. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1928; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. IV. Rio de Janeiro: Augusto Porto & Cia. 1928; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Typographia Monroe, 1930; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Typographia Monroe, 1930; Documentos Históricos da Biblioteca Nacional. Vol. XXXI. Rio de Janeiro: Typ. Arch. De Hist. Bras., 1936. 32 A data extrema inicial que encontramos é de 15/06/1648 ao passo que a data extrema final de nosso recorte é referente à 06/06/1657, poucos dias antes de Francisco Barreto assumir o governo.

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capitania de Pernambuco entre 1648-1657, destas 18 eram provimentos de postos militares e de ofícios civis 33. °

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Gráfico 4 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, XVIII, XIX, XXXI No Quadro 2 analisamos a dispersão geográfica dos provimentos. Primeiramente, esses dados nos indicam a abrangência jurisdicional 34 do governo-geral uma vez que encontramos nomeações e provimentos para 12 capitanias. Contudo, é evidente que o protagonismo da capitania da Bahia representasse 58,85% dos provimentos que, afinal se tratava da sede do governo-geral e “cabeça” do Estado do Brasil. Este dado está diretamente relacionado com os tipos de ofícios providos (Gráfico 5), uma vez que Salvador detinha um grande número de oficiais militares, o principal tipo de ofício existente no Estado do Brasil.

Provimentos por Capitania (1648-1657) 35 Valor % Valor Absoluto

Ilhéus

Rio de Janeiro

Bahia

São Vicente

Sergipe del Rei

Espírito Santo

Pernambuco

Porto Seguro

Capitanias anexas36

Não Informado

Total

13,07 20

0,65 1

58,85 90

3,26 5

8,49 13

2,61 4

2,61 4

1,93 3

3,96 6

4,57 7

100 153

Disposições dos Governadores de Pernambuco (1648-1696). AUC. CA. Cod. 31. Neste sentido entendemos jurisdição não apenas como o conjunto de poderes e prerrogativas, mas também como uma circunscrição espacial. Cf. SILVA, Ana Cristina Nogueira; HESPANHA, António Manuel. “O quadro espacial.” In: HESPANHA, António Manuel. (coord.) História de Portugal. Vol. 4. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p. 35-41. 35 DHBN, Vols. III, IV, XVIII, XIX, XXXI. Não incluímos neste quadro 19 provimentos para expedições. 36 Estamos nos referindo especificamente a: Cabo Frio – 1; Alagoas –1; Itanhanhém – 1; Rio de São Francisco –2 ; Rio Grande – 1. 33

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Contudo, estes dados também nos sugerem outras linhas de percepção. Sobre o número baixíssimo de provimentos para a capitania do Rio de Janeiro entendemos que isto se deva a alguns outros fatores, além da já mencionada lacuna na série documental: o status de capitania real, o que significava que a grande parte dos postos de governo, milícia, fazenda e justiça fossem prerrogativas reais, ainda que o regimento do governo-geral tivesse a prerrogativa de prover a serventia dos ofícios pelo período de um ano ou até que o provimento régio fosse efetuado. No caso de Pernambuco, como afirmamos anteriormente, o baixo número de provimentos do governo-geral estava relacionado às prerrogativas concedidas a Francisco Barreto como mestre de campo general e governador de Pernambuco. Após a capitulação dos holandeses o monarca concedeu a Francisco Barreto, por uma provisão datada de 29 de Abril de 165437, as prerrogativas para prover “os officios da Justiça e Fazenda destas capitanias [de Pernambuco] e cargos da guerra e mais pessoas que me parecessem das que se acharão na Recuperação de Pernambuco” 38. Este gesto, que teve profunda influência sobre a governação nos anos seguintes, estava assentado em dois pontos centrais que marcaram a governação nesta conjuntura: a remuneração régia dos serviços, “se não como elles merecem, ao menos como he possivel, e permitte o aperto em que as guerras deste Reino tem posto tas cousas em todas as partes” 39; e a necessidade administrativa de suprir os postos vagos a fim de que o controle efetivo da capitania fosse estabelecido e viabilizado pela governação. Pouco tempo depois os efeitos dessa atitude começavam a produzir descontentamento. Por um lado, o Conde de Atouguia a frente do governo-geral queixava-se dos resultados decorrentes e questionava a eficiência da medida afirmando: “se o intento de Vossa Majestade é querer honrar este Governo, com se restituir a sua antiga autoridade em nenhuma ação a tem mais perdida, que na forma em que hoje provê os postos militares” 40. A crítica do governador-geral incidia sobre aquele que era um dos pontos fundamentais da prática governativa e também alvo de controvérsias: o provimento dos postos militares. As mudanças introduzidas promoveram a descentralização dos provimentos militares e podiam dar margem a provimentos indevidos e, por conseqüência, a conflitos de jurisdição. Este caso em questão nos auxilia a compreender a centralidade dos provimentos no quadro geral da governação. Nos anos seguintes o Conde de Atouguia insistentemente escreveu para a Coroa explicitando suas queixas e atestando que a concessão feita a Francisco Barreto havia extrapolado o caráter único e provisório, e que, portanto passavam a Varnhagen publicou a provisão no apêndice de seu livro. Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História das lutas com os hollandezes no Brazil: Desde 1624 até 1654. Viena d’Austria, 1871. p. 345-346. Esta provisão foi discutida no Conselho Ultramarino antes de chegar a sua forma final, como percebemos na consulta de 31/03/1654. AHU_ACL_CU_015, Cx.6 , D. 467. 38 Francisco Barreto cita a provisão de 29 de Abril de 1654 em todos os provimentos que encontramos neste códice. 23/03/1655. AUC, CA, Cod. 31, f. 21v. 39 VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Op. cit. p. 345. 40 DHBN, Vol. IV, p. 257. 37

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lesar a autoridade do governo-geral. Nestas cartas o governador-geral criticava a postura da coroa, enfatizando que os ministros do rei faltavam com a obrigação de lhe advertir a gravidade da situação, pois não explicitavam “a diferença que há de Mestre de Campo General ao Capitão General, de quem é súbdito” 41. O Conde de Atouguia também reforçava seu argumento lembrando que “semelhante estilo, nunca praticado em Reino, ou Exército que o Capitão General governasse” e que tal ação acabava por “privá-lo da maior autoridade que tinha, que é prover os postos militares” 42. O governador-geral alegava que a quebra de hierarquia enfraquecia sua autoridade. Neste sentido é possível entender melhor a centralidade do provimento de ofícios para o governo-geral, mais especificamente dos postos militares, pois estes representavam a maioria esmagadora dos provimentos43 (isto é, 79% ou 136 provimentos) como vemos no Gráfico 5.

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Gráfico 5 - Fonte: DHBN, Vols. III, IV, XVIII, XIX, XXXI

Os ofícios militares aparecem em destaque, como afirmamos anteriormente, em razão da quantidade de postos e patentes existentes na estrutura do Estado do Brasil. No Gráfico 5 apresentamos estes dados com as subdivisões existentes, de modo que os ofícios de Tropa paga se referem a soldados profissionais que recebem soldo real e que na grande maioria dos caso estavam inseridos nas principais unidades de defesa, os terços. Cf. DHBN, Vol. IV, p. 266; DHBN, Vol. IV, p. 265. Grifo nosso. DHBN, Vol. IV, p. 265. 43 No gráfico apresentamos a distinção entre os tipos de postos militares, mas para chegar a essa cifra os tratamos aqui os ofícios militares de modo agregado, utilizando os seguintes dados: Tropa paga (55 provimentos ou 33%); Milícia e Ordenança (49 provimentos ou 28%); Expedição (21 provimentos ou 12%) e Fortificação (11 provimentos ou 6%).

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Milícia e Ordenança se referem aos corpos não profissionais que exerciam funções militares. Os oficiais de Milícia eram de modo geral “vassalos em tempo parcial, não assalariados e arregimentados segundo seu lugar de origem” e estavam “organizadas em terços de base territorial – comarcas, freguesias – não remuneradas, a não ser quando em serviço ativo” 44. No caso das ordenanças a composição da tropa eram feita por “homens que não possuíam instrução militar sistemática nem recebiam soldos”, eram arregimentados entre os “moradores locais não arrolados na milícia, que permaneciam em suas atividades particulares e somente eram mobilizados em caso de perturbação da ordem pública” 45. Os oficiais que alocamos na categoria Expedição eram aqueles que foram enviados para expedições punitivas de negros e de indígenas, iniciativas que se tornaram freqüentes na segunda metade do século XVII. A composição destas tropas era muito diversa e em algumas ocasiões incluíam inclusive companhias de estrangeiros46. Os oficiais da categoria Fortificação eram aqueles designados especificamente para guarnecer fortes, fortalezas e plataformas. Possuíam grande importância no sistema defensivo, e até onde podemos perceber sua composição também era bastante diversa, com oficiais que recebiam soldo e outros que nada recebiam além da distinção do ofício, “as honras e preeminências, que lhe tocam” 47 e possíveis emolumentos 48. Entre os demais ofícios listamos aqueles relacionados ao Governo, isto é, as patentes que os governadores-gerais concediam aos capitães-mores de capitania para o governo político e militar. Os ofícios de Fazenda e Justiça são relativos aos níveis inferiores e auxiliares da administração49, uma vez que cargos superiores como o de Provedor-mor, Provedor, Ouvidor e Desembargador da Relação eram de provimento régio. Também encontramos ofícios muito específicos como os de Mestre da Ribeira e Mestre dos Calafates dos Galeões incluídos na categoria Construção Naval. Os provimentos relacionados na categoria Indígenas se referem a provimentos de Capitães de Aldeia. O provimento de ofício nos fornece um panorama geral sobre a gama de ofícios existentes nos Estado do Brasil e de que modo o governo-geral se relacionava com a gestão

IZECKSOHN, Vitor. “Ordenanças, tropas de linha e auxiliares: mapeando os espaços militares lusobrasileiros”. FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima. (Orgs) O Brasil Colonial. Vol. 3. (1720-1821). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 493. “Seus oficiais inferiores também eram eleitos entre os civis, com apenas algumas patentes superiores” sendo providas pelo governo-geral e eram organizados “por categorias da população: brancos, ricos, comerciantes, pretos, forros, pardos, em corpos separados”. Loc. cit. 45 Loc. cit. 46 “Ordem que se passou ao Capitão João Pedy para ser Cabo de uma das tropas dos extrangeiros que vão á mesma jornada do Sertão.” 03/09/1651. DHBN, Vol.XXXI, 103-104. 47 “Registro da patente do Alferes reformado Agostinho do Valle Capitão da plataforma da Gamboa do districto da Patatiba.”. 30/04/1654. DHBN,Vol.XVIII, 304-306 48 Luiz Guilherme Scaldaferri analisa mais detidamente o perfil e as funções dos capitães de fortaleza do Rio de Janeiro e indica como estas funções eram permeadas por significados e distinções importantes em nível local. Cf. MOREIRA, Luiz Guilherme Scaldaferri. Navegar, lutar, pedir e ... receber: O perfil e as concorrências dos capitães das fortalezas de Santa Cruz e de São João nas consultas ao Conselho Ultramarino, na segunda metade do XVII, no Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em História). PPFHIS/UFRJ, Rio de Janeiro. 2010. 49 Referimos-nos mais especificamente aos cargos de Almoxarife, Meirinho da Fazenda, Meirinho da Correição e Escrivão.

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dos mais variados níveis desta hierarquia. Se a predominância dos ofícios militares reflete quantidade de cargos e a centralidade destes para o cotidiano da governação, por outro lado percebemos que a jurisdição dos governadores-gerais poderia se estender até os níveis mais inferiores e locais, refletindo na escolha de oficias para aldeias, vilas e freguesias.

Considerações finais O governo-geral possuía uma ampla jurisdição sobre o Estado do Brasil, o que permitia que sua influência na governação pudesse ser exercida a distância através da comunicação política, obtendo informações e enviando ordens necessárias a condução do governo. O provimento de ofícios também permitia ao governo-geral interferir na gestão do cotidiano através da nomeação de oficiais e da delegação de determinadas funções. As duas dinâmicas governativas que apresentamos neste texto nos revelam o protagonismo do governo-geral. Neste sentido, nosso objetivo foi caracterizar essas dinâmicas e apresentar o potencial analítico que estas análises permitem. No caso da comunicação política é possível reconstruir trocas de cartas recorrentes e identificar e acompanhar o desenvolvimento de determinados assuntos, assim como as relações estabelecidas entre os interlocutores. Os provimentos, por outro lado, nos permitem identificar os critérios de recrutamento e provimento de ofícios, possibilitando, de modo inicial, vislumbrar alguns traços do perfil de alguns cargos, bem como as trajetórias de serviços. Além disso, podemos identificar a dimensão e a importância que alguns ofícios detinham. Nos trabalhos seguintes analisaremos estas questões de modo mais vertical a fim de construir uma percepção mais profunda sobre as dinâmicas administrativas do governo-geral do Estado do Brasil ao longo do século XVII.

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