DIREÇÃO DE ARTE EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: UM ESTUDO SOBRE A RECONSTITUIÇÃO DE ÉPOCA

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UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ - DEPARTAMENTO DE PÓSGRADUAÇÃO A DISTÂNCIA EM DIREÇÃO DE ARTE EM PROPAGANDA, TV VÍDEO

Emilly Joana dos Santos Dias

DIREÇÃO DE ARTE EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: UM ESTUDO SOBRE A RECONSTITUIÇÃO DE ÉPOCA

Rio de Janeiro Fevereiro, 2015

Emilly Joana dos Santos Dias

DIREÇÃO DE ARTE EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: UM ESTUDO SOBRE A RECONSTITUIÇÃO DE ÉPOCA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito para aprovação no Programa de MBA em Direção de Arte para Propaganda, TV e Vídeo, da Universidade Estácio de Sá. Sob orientação da Professora Ms. Leliane A. Castro Rocha.

Rio de Janeiro - RJ Fevereiro, 2015

MBA EM DIREÇÃO DE ARTE PARA PROPAGANDA, TV E VÍDEO

Emilly Joana Santos Dias

DIREÇÃO DE ARTE EM DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS: UM ESTUDO SOBRE A RECONSTITUIÇÃO DE ÉPOCA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Estácio de Sá, como requisito para a obtenção do grau de Especialista em Direção de Arte para Propaganda, TV e Vídeo.

Aprovado em 28 de Fevereiro de 2015.

Examinadores:

____________________________________________________ Prof(a). Leliane Aparecida Castro Rocha

_____________________________________________ Prof. Raul Fonseca Silva

NOTA FINAL_______

RESUMO O presente trabalho tem como função apresentar o labor do Departamento de Arte, o qual se confgura como parte componente (e imprescindível) do fazer cinematográfco/audiovisual. Ele ainda trará comparações sobre o diferente funcionamento do departamento no cinema e na TV, assim como esclarecerá os papéis dos integrantes do grupo da Arte. Esse trabalho irá realizar uma análise do flme “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), dirigido por Bruno Barreto e da minissérie, de mesmo nome, produzida e veiculada pela Rede Globo entre 1997 e 1998. O objetvo dessa análise é de compreender como a Direção de Arte foi executada nas duas plataformas de formatos audiovisuais diferentes: no cinema e na televisão. Além de destrinchar as artmanhas de construção dessa “magia invisível”, o foco principal empregado nesse estudo é o entendimento de como a reconsttuição de época e a localização espaço-temporal foram desempenhados nos produtos analisados, respectvamente. Não cabe ao estudo fazer juízo de valor a respeito da construção das mesmas e se elas foram bem sucedidos no desenho do projeto e na sua execução nos produtos analisados. A metodologia utlizada para realização deste estudo será baseado na leitura dos frames de cada um dos produtos de forma a ver a composição dos quadros, a utlização do mobiliário e objetos para confecção dos cenários e, também, a construção dos personagens da trama (a forma de se vestr, de falar, o universo visual que os circunda). Palavras-Chave: Direção de Arte. Desenho de Produção. Dona Flor e Seus dois maridos. Cenografa. Reconsttuição de Época.

ABSTRACT This work was made in order to present the Art Department (showing the diference of this department’s organizaton in cinema and television). Explaining the multple functons of the art department and also clarifying the role of all components of the art department crew, this work makes a comparison between the movie “Dona Flor e seus Maridos” (1976), directed by Bruno Barreto and the TV series, with the same name, produced by the Rede Globo in 1998, in order to analyze the PRODUCTION DESIGN of both products, maintaining the focus on the analysis of period tme recreaton. This work will not make an evaluaton about the projects (syaing if they are good or bad), but it will study the chiefs of the department's work, to see if they were capable of re-creatng the tme-period in an efcient way. The methodology used to accomplish this work is based on the interpretaton of the frames of the flm and the frames of the TV show in order to understand the compositon, the art directon, the scenario constructon and the universe the characters are involved in. Keywords: Art Directon. Producton design. Dona Flor e Seus dois maridos. Scenography. Period Time re-creaton.

AGRADECIMENTOS Dedico esse trabalho a Jânio, Ana e Alice, minha família amada, que sempre incentvou meus vôos, a perseguição dos meus desejos e que nunca duvidou de mim! Família esta que sempre me pôs para viver intensamente e lutar por tudo aquilo que eu sonhasse. Agradeço, primeiramente, Danilo Dantas, amor-amigoparceiro que teve a santa paciência de me acalmar, orientar, acompanhar para que eu pudesse concretzar, com competência e qualidade, o presente trabalho. Também ao amigo André por ter revisado meu texto e me ajudado com referências bibliográfcas. Agradeço ainda, Vera Santos, segunda mãe que puxou minha orelha quando precisei e me ensinou a SEMPRE ACREDITAR EM MIM MESMA!

Sumário 1. INTRODUÇÃO...................................................................7 2. DIREÇÃO DE ARTE - COMO FUNCIONA?........................11 3. DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS, O LIVRO................16 3. RECONSTITUIÇÃO DE ÉPOCA.........................................23 4. RECONSTITUIÇÃO DE ÉPOCA NO FILME E NA MINISSÉRIE “DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS”...............................25 4.1 Reconsttuição de época no flme................................25 4.2 Reconsttuição de época na minissérie........................28 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................33 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................38 7. ANEXO........................................................40

7 1. INTRODUÇÃO “Tudo é possível. O Design de Produção (Producton Design) cria o estado de espírito, a atmosfera e o contexto de um flme através do uso expressivo do espaço, dos objetos, das formas e cores. O desenhista de produção (Producton Designer ou PD) interpreta o mundo escrito para a tela, juntando todos os elementos visuais para criar um mundo de histórias”. 1

O presente trabalho tem como função apresentar o Departamento de Arte, o qual se confgura como parte componente (e imprescindível) do fazer cinematográfco/audiovisual. Explicitando as diversas funções desse departamento, assim como esclarecendo os papéis dos integrantes do grupo da Arte, esse texto utliza a comparação entre o flme “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), dirigido por Bruno Barreto e a minissérie, de mesmo nome, produzida pela Rede Globo em 19982, de modo a analisar a direção de arte dos mesmo, mantendo o foco principal na reconsttuição de época e localização espaço-temporal dos produtos analisados, respectvamente. Como apontado anteriormente, qualquer produto flmico/audiovisual dotará de um departamento de arte para construção dos seus cenários e SETS. Dito isso, porque focar esse trabalho na reconstuição de época de duas linguagens diferentes: um flme e uma minissérie? A resposta está na noção de que recriar um tempo, um lugar3 e um grupo de pessoas localizado em um determinado período histórico é um desafo estmulante, uma vez que além de enfrentar problemas de fornecimento de material, equipamentos e mobiliários pertencentes a uma época específca, PD, 1

Tradução própria do trecho “Anything is possible. Producton Design creates the mood, atmosphere

and context of a flm through the expressive use of space, objects, forms and colour. The Producton Designer interprets the writen word for the screen, bringing all the visual elements together to create a story world” retrado do site: Producton Design - LFS Acessado em 26/01/2015 2

Wikipedia_Dona Flor e seus dois Maridos (minissérie)

. Acessado em 25/01/2015 3

Tradução Própria do trecho “ Re-creatng a tme, a place, a group of people long since faded from

memory”. retrado do site: Director Guild of America (DGA)_Re-creatng History: . Acessado em 25/01/2015.

8 Diretor de Arte, Cenógrafo e Produtor de Arte devem evitar ao máximo a contaminação do mundo hodierno na reconsttuição dos seus cenários, da linguagem, da atmosfera retratada. A maioria das pessoas que assiste aos flmes ou produtos audiovisuais é totalmente alheia à importante função que a direção de arte e cenografa desempenham neles. Essa anulação da percepção do trabalho do cenógrafo e diretor de arte, no entanto, faz parte da “magia do cinema”. Essa magia não é necessariamente (muito menos obrigatoriamente) aplicada ao teatro, por exemplo, já que nas peças teatrais não existe uma preocupação autêntca de se reproduzir uma exata e fechada realidade, esta que, muitas vezes, corresponde à atual realidade ou corresponde ao nosso imaginário de como seriam realidades passadas ou futuras. Muito embora a cenografa tenha uma relação muito próxima em ambas as expressões artstcas, suas funções e diálogo são totalmente diferentes, uma vez que, no cinema, o departamento de Arte, além de compor o teor visual do flme ou produto audiovisual, se confgura também como o grande feitceiro que solidifca a ilusão do cinematógrafo ou do universo audiovisual. Ao construir o suporte visual (seja na escolha da tonalidade de cor que a história irá assumir ou na construção dos cenários), o departamento de Arte se empenha de tal maneira para que o resultado do seu trabalho seja como um testemunho “em tempo real” que os espectadores teriam das ações e fatos ocorrentes com os personagens e essas ações e fatos fossem verdadeiros. A exceção da regra para a construção dessa ilusão geralmente reside em flmes ou projetos que usam o espaço/cenários com intuito dramátco, ou seja a “arte não invisível”. Um exemplo notável disso ocorreu no Expressionismo Alemão: “os primeiros flmes Expressionistas foram feitos com orçamentos restritos. Todo desenho de produção/direção de arte foi pautado na construção de SETS não realístcos, geometricamente absurdos. Além disso, desenhos eram projetados nas paredes para representar luzes, sombras e objetos. A fotografa e a caracterização também contribuíram para a construção desse universo sombrio, cheio de altos contrastes. Os plots e as histórias estavam sempre tratando de loucura, insandidade, traição, além de temas que marcavam a Alemanha devastada da Primeira Guerra Mundial, a oposição ao mundo materialista e ao racionalismo moderno. 4 O 4

Adaptação e tradução prórpias das informações colhidas no link: Wikipedia_ German Expressionism

Acessado em 26/01/2015

9 Expressionismo Alemão pretendia dirigir uma reação contra o realismo. As distorcões serviam, dessa forma, para aforar o estado interno, emocional de um povo, num determinado momento histórico (pós guerra), mais até do que polemizar o que ocorria na superfcie, ou seja, no país, na polítca, no mundo”.

Figura 1: Exemplo de Direção de Arte não invisivel - O Gabinete de Dr. Caligari (1919).

O teatro, por sua vez, que desde a Grécia Antga já produzia monumentais peças com os efcientes mecanismos de cenografa e cuja fórmula fora emprestada ao cinema, usa a direção da sua arte em termos mais livres, muitas vezes desempenhando grandes funções dramátcas. O teatro moderno é um grande exemplo disso. A composição do cenário de uma casa não mais deve seguir necessariamente o padrão de cama, parede e fotos. Muitas vezes a luz e uma única cadeira, ou banheira, são o sufciente para problematzar o drama e compor o visual de um monólogo. Em “Não sobre o Amor” (2008), de Felipe Hirsch, por exemplo, o ar fantástco que a peça possui é primeiro comunicado pela cenografa. A janela está no teto, as cadeiras estão anexadas às paredes e o chão não é mais o local em que se anda. Refetndo sobre o ilustrado acima, entender e mostrar os bastdores desse departamento de ilusões no cinema é, pois, o dever do presente trabalho.

10

Figura 2: Cenário do espetáculo “Não sobre o amor” (2008) Direção: Filipe Hirsh 5.

5

Foto retrada do site: htp://www.pco.org.br/conotcias/ler_materia.php?mat=6059

11 2. DIREÇÃO DE ARTE - COMO FUNCIONA? “É recente a assimilação do trabalho da Direção de Arte enquanto elemento de estruturação da imagem no cinema. Por muito tempo o trabalho dessa equipe foi entendido apenas por seus aspectos decoratvos, fcando o trabalho de construção da imagem cinematográfca deslocado para outros departamentos, tais como a Fotografa ou a Direção. Além disso, (...) com o desenvolvimento das técnicas cinematográfcas, em especial nas formas naturalistas de representação, gerou-se uma educação do olhar do espectador que tornou os artfcios da Direção de Arte (ainda) menos sensíveis nas produções recentes. Desse modo o público em geral tende a considerar a organização fsica dos espaços no cinema como um dado “natural”, sem intervenção de uma equipe e de um conceito plástco de organização espacial da imagem...”.6

Se formos buscar por uma defnição para “Direção de Arte” em inglês, a inclinação direta de tradução para o termo seria “Art Directon”, o que se confgura como um equívoco. Nos Estados Unidos e em países de língua inglesa, esse ofcio é designado como Producton Design. “O Producton Designer (PD) é o agente que cria o conceito visual de um flme através do design 7 (concepção e criação de uma ideia) além de coordenar a construção de cenários fsicos, ou seja, a realidade visual. Ele se consttui como força criatva do departamento de arte8”. Na televisão, especifcamente no caso da TV Globo, parte da função exercida pelo PD fca dividida entre os chefes dos departamentos de Cenografa e Produção de Arte. O primeiro, fca responsável por toda parte “pesada” da construção da realidade visual, ou seja, formatação de espaços, construção de cenários, pintura, texturização, papel de parede, escolha e disposição do mobiliário, planejamento de 6

Trecho retrado do capítulo “Considerações preliminares sobre a Direção de Arte” componente da

dissertação de Jacob, Elizabeth Mota “Um lugar para ser visto: A direção de Arte e a construção da Paisagem no Cinema”. Páginas 49 e 50. 7

O termo deriva, originalmente, de designare, palavra em latm, sendo mais tarde adaptado para o

inglês design. Denomina-se design qualquer processo técnico e criatvo relacionado à confguração, concepção, elaboração e especifcação de um artefato. Esse processo normalmente é orientado por uma intenção ou objetvo, ou para a solução de um problema. Retrado do link: . Acesso em 05/02/2015. 8

Tradução minha do fragmento: “Producton designer delivers the visual concept of a flm through

design and constructon of physical scenery. The designer is the seminal, creatve force of the art department.” Retrado do livro The Art Directon Handbook for Film, de Michael Rizzo, página 3.

12 paisagismo, disposição de luminárias - os cenógrafos são os arquitetos do audiovisual. Esse arquiteto deve construir de tal forma que a ilusão se torne real, que o bidimensional seja crido como tridimensional aos olhos da câmera, conferindo altura, largura e profundidade ao cenário, esse que muitas vezes parece falso quando visto a olho nú. A escolha das cores, para compor cada ambiente, deve ser feita de forma que não venha causar problemas à equipe de iluminação, da mesma forma, devem ser pensandas a disposição e a correta projetção de paredes, tetos e espaços, como por exemplo, a inclinação que as paredes dos cenários devem ter: ângulos maiores que 90 graus, em média 110˚, de modo a facilitar a mobilidade das câmeras e dos atores dentro do espaço cênico. Esses detalhes apontados anteriormente são alguns dos pré-requisitos técnicos que fazem parte do labor cenográfco para televisão.

Figura 3: A inclinação de 110˚ das paredes que, perante aos “olhos” da câmera ainda mantêm a impressão de paredes não inclinadas, ou seja, paredes com angulação de 90˚. Isso ajuda a movimentação das câmeras nos cenários e a iluminação dos ambientes e atores 9.

Já a Produção de Arte é o departamento responsável pelos Props (objetos de cena), por todo e qualquer material que desempenhe uma função na trama (objetos descritos e requsitados no roteiro) e que se envolva diretamente com os personagens, ou seja: jantares, objetos pessoais, carros, roupa de cama, louça, portaFigura retrada do livro “Cadernos das Ofcinas de Direção, Globo, Paulo José 2014. Caderno da Cenografa, página 172. 9

13 retratos, fotografas, presentes, armas, dentre tantos outros. O produtores de arte seriam um tpo de Decoradores de Interior e, além de acompanhar todo take de cada cena realizada, ele deve compor o quadro a ser flmado, prezar pela adequação de cena (tanto na forma como os atores irão manusear os tralheres, à forma correta de falar, ao trabalho de acompanhamento e assessoria de funcões específcas, no caso de haver uma luta, operação hospitalar, etc.). O Produtor de Arte deve prezar, também, pelas contnuidades dos objetos e Props que possuem interação direta com os personagens. O Diretor de Arte usa sketches, modelos, ilustrações, fotos, colagens, maquetes, entre outros materiais, tudo em prol da construção dessa identdade visual que necessita, muito além da arquitetura, de espaço, décor, tonalidade, objetos (Props) e texturas10. Estando à frente das decisões conceituais do departamento de arte (e diplomátcas com os outros diretores), ele opera com um grande tme o qual transporá para realidade efeitos criatvos nascidos das referências, estudos e sketches. A aparência e estlo de qualquer produto para cinema ou para televisão são criados pela imaginação, pela artstcidade e pela colaboração do diretor com o diretor de fotografa e, no caso do cinema, com o diretor de arte. Esse últmo é o responsável pela interpretação do roteiro e da visão do diretor, transformando-os em ambientes fsicos nos quais os atores podem desenvolver seus papéis e a sua história. Como não é comum a função do Diretor de Arte na televisão, os diretores de novelas ou minisséries decidem juntamente com o cenógrafo e o produtor de arte, nas reuniões de bloco, os briefngs dos espaços a serem desenvolvidos, adequandoos às realidades dos personagens, à temátca do produto, ao contexto da trama. Um melhor entendimento da defnição do processo de “design de produção” , se dá por intermédio de alguns termos, tais como: metáforas visuais; paleta de cores; projetos arquitetônicos de determinadas épocas; locação; design e SETS. São ainda delegadas a esse designer a coordenação e a escolha dos fgurinos, da maquiagem, da caracterização, dos cortes e estlos de cabelo. Reside nesse ponto outra controvérsia entre os mundos do Cinema e da Televisão, uma vez que nas equipes dos produtos televisivos existe a total autonomia dos departamentos de carcterização e fgurino, em relação ao departamento de Arte. Os motvos para essa independência são simples de entender: há um imenso volume de necessidades 10

Adaptação traduzida – da autora do presente texto (Emilly Dias) – sobre o primeiro capítulo “What

is Producton Design?” do livro The Filmmaker's Guide to Producton Design, de Vincent LoBruto.

14 produtvas diárias, a quantdade de props é volumosa, assim como de cenários, de cenas e de frentes de gravação (em uma novela, às vezes, são gravadas 5 frentes em locais/locações diferentes, em um único dia). O planejamento de telenovelas é diário, então sempre há um espaço de tempo muito pequeno para planejamento de atvidades, dessa forma, torna-se inviável a orquestração “exclusiva” desses quatro departamentos, que mesmo sendo responsáveis pela criação do visual do produto, são totalmente independentes uns dos outros. Devido às novas pressões de mercado (também à alta compettvidade), modifcações nas linguagens e o advento de tantos aparatos “modernizadores” da imagem (como a HDTV, por exemplo, e câmeras em altssima defnição de imagem) uma nova tendência a ser adotada pelas emissoras de TV é a contratação desses profssional do design visual. Essa escolha visa a incorporação da unidade visual cada vez mais nítda nos futuros projetos. O PD/Diretor de Arte passará a ser o fltro de “fscalização” e aprovação das atvidades desempenhadas pelos quatro departamentos: Produção de Arte, Caracterização, Cenografa e Figurino de forma a unifcar, cada vez mais, os produtos. Em contrapartdo a isso, a independência dos departamentos tem se tornado presente na indústria cinematográfca (principalmente de baixo orçamento), uma vez que, no decorrer dos anos, o grande fuxo de produção, construção e rapidez com os quais são concretzados os projetos audiovisuais, acabou por “forçar” a cisão dos departamentos. Muitos PDs ainda coordenam a caracterização e o fgurino, mas, como dito, na indústria cinematográfca brasileira de baixo orçamento, esse cargo e essa aglomeração de função têm se tornado cada vez mais raros. Os departamentos de Arte, Cenografa, Figurino, Caracterização, Efeitos Especiais necessitam da contratação de profssionais de diversos perfs para executar funções multfacetadas, todas em favor da construção de um mundo “real” e “fsico” tomando como base as descrições e palavras contdas no texto cinematográfco/ audiovisual – o roteiro. Essas funções e os seus agentes produtores são: 1)

A composição do visual do flme (como coloração, texturas e referências) e cenários: Diretor(a) de Arte, Cenógrafo(a), Cenotécnicos(as) Contra-regras, Pintores(as) de Arte, Produtor (a) de Objetos, Aderecistas, Produtor de Arte e seus respectvos assistentes e/ou estagiários; 2) A confecção e escolha de fgurinos para elenco e fgurantes: Figurinista, Modelista, Costureiras, Produtora de Figurino, e todos os respectvos assistentes e/ou estagiários;

15 3) A Caracterização e Maquiagem dos personagens e fgurantes: maquiador(a), cabeleireiro(a), manicure e assistentes; 4) Efeitos-especiais: técnicos responsável pelos efeitos e assistente(s).

Figura 4: Organograma que demonstra as divisões do cinema e, mais detalhadamente, da Equipe da Arte. Da esquerda para direita temos: Cenotécnicos (ou construtores de Set – e as funções subordinadas a eles); Pintor de arte (ou Pintor de SET, e as respectvas funções subordinadas); Decorador de SET: Cenógrafo e Produtor de Arte e Produtor de Objetos (adaptando esta função à realidade brasileira) e, por últmo, temos os Efeitos Especiais (com funções subordinadas tais quais, make-up, tros, ttulos, miniaturas, etc.). Em vermelho, funções do cenógrafo na televisão. Em azul, funções divididas entre cenógrafo e produtor de arte na televisão. 11

11

Ilustração retrada do livro The art directon handbook for flm, de Michael Rizzo, página 25.

16 3. DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS, O LIVRO. “Dona Flor e seus dois maridos” pertence à segunda fase de produção de Jorge Amado, quando o escritor, já desligado das causas [do partdo comunista e] da classe operária, começa a escrever povoando seus romances de fguras populares, o que ele denominava de baianidade. Esta fase se inicia em 1958, com a publicação do romance “Gabriela, cravo e canela”.12

Em 1966, o escritor baiano Jorge Amado publica o livro “Dona Flor e seus dois maridos” pela editora Companhia das Letras. O que há de tão interessante e peculiar nessa obra, que além do sucesso de vendas que perpassam os anos, é o livro mais adaptado para outros formatos (cinema, televisão e teatro)? A resposta poderia estar na fgura de Dona Flor, sensual mulher baiana, prendada cozinheira e que vive no fantástco triangulo amoroso, com seus dois maridos: o farmacêutco fel e trabalhador Teorodo Madureira e o falecido malandro, bêbado, viciado e voluptoso Vadinho. A resposta poderia estar, também, na descrição nostálgica de uma cidade da Bahia de 1940, que estava em um tpo de redoma, isolada das modifcações decorrentes no mundo moderno. Uma Bahia pacata, sincrétca, pequena, praiana, dos cassinos, das crenças, da comida exótca, das mulheres bonitas. Pois bem, esta descrição minunciosa, folhetnesca13, tão rica de detalhes, essa retratação de costumes, falas, cores e da sinestesia que pertenciam à Salvador de outrora, foi uma das responsáveis pelo arrebatador sucesso da obra de Jorge Amado. A característca do romance que mais interessa a esta análise é a construção imagétca que Jorge Amado consegue fazer não só da cidade (Salvador), como também de todos os cenários dentro e acerca dos quais os personagens pintavam e bordavam. “Dona Flor e seus dois maridos” foi estruturado de uma forma que é, ao mesmo tempo, tão pessoal, tão próximo e tão detalhadamente descritvo que a mente do leitor automatcamente recria na cabeça cada espaço, festa, comida, situção delineada. Isso pode ser notado no seguinte trecho do primeiro capítulo do livro:

12

Trecho adaptado e retrado da dissertação de mestrado “Dona Flor e seus dois maridos - o livro e a

minissérie”, Nundes, Adalgisa (2008), página 58. 13 Literatura de folhetm: . Acessado 05/08/2015

17 Todas as quintas-feiras à noite, Carla reunia uma espécie de salão literário em seus amplos aposentos. Compareciam poetas e artstas, boêmios, algumas fguras gradas (...) e as raparigas do castelo prontas a aplaudir os versos e a rir das anedotas. Serviam bebidas e docinhos. Carla presidia o soirée, reclinada num divã repleto de coxins e almofadas, vestndo túnica grega ou pedrarias, ateniense de fgurino ou egípcia de Hollywood, recém saída de uma ópera.

O trecho acima descreve o bordel “Castelo” pertencente a uma prosttuta, de origem italiana, chamada Carla. Se o trecho acima fzesse parte de um roteiro, o diretor de arte, cenógrafo e produtor de arte possuem as seguinte informações, de antemão: Carla é extravagante, seus aposentos são amplos, espalhafatosos. Bebidas e excessos são permitdos. Declamações ébrias também. Italiana exagerada: de pedras, ópera, Hollywood,, túnica. A partr do descrito e de todo arsenal de conhecimentos acumulado pelo profssional de criação, começa a ser feito o processo de pesquisa.

Figura 5: Referência de Cabaré14

Após a pesquisa, o cenógrafo começa a delinear os seguintes conceitos para os cenários: a paleta de cores, dimensões dos espaços a serem construídos (quando projetados para estúdios) ou determinação de quais as modifcações serão necessárias para tornarem o espaço já existente (locação) coerente com as intenções Foto retrada do site . Acesso no dia 1/02/2015. 14

18 do designer de produção e do cenógrafo. Com as cores defnidas, serão decididas as tonalidades das paredes, cortnas, papel de parede, azulejos, cobogó, entre outros. Além disso, começam a pesquisar o mobiliário. Se for uma novela de época, por exemplo, será necessário pesquisar o tpo de madeira usado no determinado país/ cidade, tpos de móveis que compunham as casas dos personagens, levando em consideração o nível social dos mesmos, entre outros. Nessa etapa, também são determinados o tpo de iluminação e objetos de iluminação a serem utlizados (luminárias de teto, luminárias de pé, arandelas, luz dicróica, incandescente, LED, etc.), isso porque a temperatura da cor, que indica a cor aparente da luz emitda, muitas vezes pode interferir na coloração fnal dos cenários (papéis de paredes, estofados, quadros, etc), mudando a conceituação antes estabelecida. Ao longo do processo de desenhos dos cenários, os chefes do departamento de arte (PD, cenógrafo e produtor de arte) começam a pensar nos objetos menores, decoratvos que darão a “vivência” necessária aos personagens (almofadas, tapeçaria, telefones, portarretratos, agendas, pesos de papel, papeladas, agendas, etc.). Todos esses objetos, no entanto, devem seguir o projeto apresentado em pranchas e as característcas específcas de cada personagem. Para ilustrar o processo de construção criatva do PD/ Diretor de Arte/ Cenógrafo, foram coletadas pranchas de um projeto de reforma de um interior de 107 metros quadrados, realizado pelo cenógrafo e diretor de arte Rafael Blas 15. As fguras ilustram as seguintes etapas de contrução de um projeto cenográfco: projeção e desenho do “cenário”, que são sintetzadas por plantas baixas com divisões de ambiente, medidas, portas, janelas, etc. (Figura 6); paleta de cor do projeto (Figura 7), pesquisa de referência de mobiliário (Figura 8) e projeto de mobilário em 3D (Figura 9).

15

As quatro fguras que estão destacadas nas páginas posteriores foram retradas do site: . Acesso 01/02/2015

19

Figura 6: Planta Baixa sem medidas, apenas com divisões dos espaços.

Figura 7: Paleta de cor do projeto a ser executado.

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Figura 8: Prancha contendo mobiliário referência para construção do projeto. Pode-se notar que a paleta de cores está sendo respeitada, de acordo com projeto préestabelecido.

Figura 9: Projeto em 3D (provavelmente desenhado em AUTOCAD) do ambiente a ser reformado/construído. Nota-se que, além do couro e da madeira, as cores das paredes e roupas de cama também respeitam a paleta de cores (fgura 6). Os móveis escolhidos seguem a prancha de referência (fgura 7).

21 Como o livro é uma obra individual, de apreciação individual, cabe a cada leitor criar os ambientes descritos pelo autor à sua própria maneira (esta que, muito provavelmente, é dessemelhante à concepção original, concepção do autor). Cada leitor, então, é o diretor de arte do universo de uma obra literária, já que ele cria na sua mente os cenários onde ocorrem as aventuras dos personagens. Entendemos, pois, a partr dessa breve ilustração sobre os afazeres dos chefes do departamento de arte/cenografa, que a função dos mesmos é traduzir para o mundo material e bidimensional as palavras contdas em uma história descritva, que é o roteiro. Esse, por sua vez, descreve ações e fornece aos departamentos muito menos informação visual que um autor de livro, como Jorge Amado, faz. Dentro da imensa gama de possibilidades criatvas, há uma forma de recriação que se confgura como uma das mais desafadoras para os departamentos de arte, cenografa, fgurino e caracterização: a reconsttuição de uma época, num determinado local. Os departamentos, embebecidos de pesquisas e preocupações com adequação, se responsabilizam pela refeitura e releitura de uma época específca, requisitada no roteiro. De maneira crônica e quase folhetnesca, Jorge Amado adorna "Dona for e seus dois maridos" com a reconstrução de uma década, anterior ao escrito, mas na qual ele viveu, uma Bahia a qual ele viu nascer, estarrecer, modernizar. O romance tem um minuncioso trabalho de reconsttuição de 1940, presentes em descrições, vocabulários, estlos de fala e costumes específcos a dessa década, além de termos que caracterizam e identfcam a baianidade: Ainda da amurada do navio desatava a boca de azedumes, aos gritos para Dona Norma no cais da Bahia a esperá-la, a pedido de Dona Flor: - Enfm o excomungado bateu as botas, hein! O paquete estava atracando, repleto de uma impaciente população de viajantes atravancados de pacotes, de cestas, de sacolas, de embrulhos os mais diversos, contendo frutas, farinha de mandioca, inhame, e aipim, carne de sol, chuchu e abóboras.

Esse trecho demonstra a vívida e complexa realidade do Cais do Porto e regiões próximas ao Mercado Modelo, onde viajantes de cidades menores, como Cachoeira, Feira de Sant’ana, Nazareth das Farinhas iam à capital, ora para visitar amigos e familiares, ora para trazer mercadorias para vender na feira de Água de Meninos, também localizada na Cidade Baixa. A movimentação era intensa nessa região, principalmente porque o sistema rodoviário na Bahia ainda não era tão desenvolvido. Portanto barcos, paquetes (embarcações), saveiros, faziam o

22 transporte de carga e de pessoas da São Salvador para regiões interioranas e viceversa. Nota-se que ele descreve os elementos que os viajantes carregam: além dos pacotes contendo mercadorias, as pessoas carregavam farinha de mandioca (a região de Cachoeira e Nazareth das Farinhas era bastante povoada pelos engenhos de farinha e plantação de mandioca), corda de caranguejo (vivos, pois eram recém trados dos manguezais, também muito frequentes na região da Ilha), carne do sol (cortes de carne de boi salgadas, para melhor durarem, principalmente em locais sem energia elétrica). Já nos trechos destacados abaixo, o autor usa o vocabulário “dialétco” da Bahia de 1940, sendo que muitos desses termos são até hoje largamente utlizados no estado: Puxa! A senhora tnha mesmo raiva de Vadinho, hein? - Oxente! E não era para ter? Um vagabundo sem eira nem beira, pau-d'água, jogador, não valia de nada... E se meteu na minha família, virou a cabeça de minha flha, trou a desinfeliz de casa pra viver às custas dela... (...) Parava ante Dona Norma, descansava a maleta, a cesta e o pacote no chão para melhor examinar a outra, medí-la de alto a baixo, e dizer-lhe, num elogio velhaco: - Pois, sim senhora... Não é para lhe gabar mas vosmicê engordou um bocado... Está bonitona, moderna, gorda de fazer gosto benza-te Deus e te livre de mau-olhado.

E qual seria a relevância de destacar elementos como paquetes, corda de caranguejo, farinha de mandioca; termos como capadócios (ladrões), chibungo (gay), entre xingas e sopapos, bolivam, etc.? A importância se encontra na efciente criação de uma fdedignidade descritva. A produção de arte tem que estar atenta à adequação de épocas, de falas, de postura, para que, ao ser veiculado, o público se transporte para aquela época de maneira integral, crendo que aquele espaço e aquelas pessoas REALMENTE pertencem àquela época reconstruída.

23 3. RECONSTITUIÇÃO DE ÉPOCA Uma das principais atrações do cinema é a sua habilidade de transportar a audiência para um mundo inteiramente novo. Se a história é fccional ou baseada num evento real, flmes podem levar os expectadores para cada locação, período de tempo ou status econômico que eles nunca experimetaram antes. Design de Produção é o segredo atrás da mágica (...) O design de produção de um flme de época em partcular cria um mundo intrigante e aprimora a história através do estlo, exemplifcação de um período de tempo determinado e a representação do personagem. 16

O Victoria and Albert Museum, é um dos espaços mais importantes do mundo de concentração, estudo e discussão acerca do design (seja ele focado nas artes plástcas, vestmentas ou mobiliário). Em um artgo “Refetndo sobre períodos históricos no fgurino de teatro - Refectng Historical Period in Stage Costums”, podese ter a fantástca ideia de como funciona a reconsttuição de época nas vestmentas do teatro, por exemplo. Mas a abordagem do cotdiano, das difculdades e dos desafos que os profssionais das áreas enfrentam é tão bem descrita, que pode ser aplicada aos outros departamentos da indústria cinematográfca e audiovisual. A produção integrada é um desenvolvimento do século XX. No século XIX, fgurino e SETS eram efetuados por artesões diferentes, os quais trabalhavam de maneira independente, uma vez que o foco primário estava no artsta e o realismo era o estlo que prevalecia. O ideal de unidade visual e de produção como um conceito total foram estabelecidos no início do século XX (por volta de 1900). A evolução levou o diretor a fundir os elementos separados - texto, conceito, performance, design e luzes - em um todo contnuo. O teatro é uma arte contemporânea que possui uma audiência contemporânea com olhos contemporâneos, do seu tempo. Dessa forma, o designer não cria uma autêntca reconstrução de um vestdo histórico, mas cria os seus essenciais atributos enquanto os reinterpreta para os dias atuais. (...) uma produção, mesmo sendo uma reconsttuição de Tradução livre e própria do trecho “A large atracton to cinema is its ability to transport an audience to an entrely new world. If the story is fctonal or based on a real event, movies can take the viewer to any locaton, tme period, or economic status that they’ve never experienced before. Producton design is the secret behind the magic. (...)Producton design, of a period flm in partcular, creates an intriguing world and enhances the story through style, exemplifcaton of a tme period, and representaton of character”. Retrado do artgo de Kelsey Egan: Film Producton Design: Case Study of The Great Gatsby Acesso no dia 05/02/2015 16

24 época, pode (ainda assim) ser vista como uma a criação do período na qual ela é encenada nos palcos: pelo jeito que ela refete a moda atual, o corte que ela possui, o tecido e a costura escolhidos, a maquiagem e o cabelo17.

A falta de material e mobiliário em quantdade e disponibilidade no mercado, os desafos e altos preços de se encontrar determinado objeto para execução de uma cena, o desafo de representar uma década, tentando distanciar o tempo vivido e as lembranças de outrora são algumas difculdades de se recriar uma época. De qualquer sorte, o reforço visual e de linguagem faz com que as criações imagétcas sejam atraentes, convidatvas e convincentes para esse público hodierno, que possui uma gama de referências cada vez mais amplas, com isso o visual do ontem ainda permance embebido com os traços do hoje. Mesmo assim, o foco realista dos produtos cinematográfcos e televisivos, impulsiona os criadores a transportarem os roteiros para os espaços mais críveis e parecidos com a realidade de tempos anteriores. Em muitos casos de recriação e a projeção de ambientes, a autentcidade é sacrifcada e os princípios arquitetônicos são violados, tudo em prol das reações emocionais que estão sendo buscadas. Minha própria polítca de trabalho tem sido mais acurada e autêntca possível. Contudo, de modo a enfatzar vigorosamente o local, eu frequentemente exagero: torno um objeto inglês mais inglês que ele naturalmente seria ou “Russializar” de maneira mais intensa a Rússia18 - Citação de William Cameron Menzies (1930). 17

Tradução livre e própria do trecho: “The theatre is a contemporary art with a contemporary

audience with a contemporary eye and must be of its tme. So a designer does not create an authentc reconstructon of a historical dress but retains its essental atributes while reinterpretng it for today. Ofen only in retrospect can a producton be seen as a creaton of the period in which it is staged - by the way it refects current fashion, its cut, the selected fabrics and trimmings, make-up and hair. The integrated producton is a 20th-century development. In the 19th century, costume and sets were devised by diferent crafsmen working independently. This didn't mater while the primary focus was on the performer and realism was the prevailing style, so sets and costumes blended. The idea of visual unity and a producton as a total concept was established in the early 1900s, and the director evolved to fuse the disparate elements - text, concept, performance, design, lightng - into a seamless whole”. Retrado do site: Victoria and Albert Museus - Refectng Historical Period in Stage Costums. . Acessado no dia 05/08/2015. 18

Tradução livre do trecho retrado do artgo de Kelsey Egan: Film Producton Design: Case Study of

The Great Gatsby, página 7. Acessado no dia 05/08/2015 .

25 4. RECONSTITUIÇÃO DE ÉPOCA NO FILME E NA MINISSÉRIE “DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS” Realizar uma reconsttuição de época em um produto audiovisual é localizar a história contada no passado, transportando os espectadores para o tempo e o local em que o enredo se passa. Para isso, se faz necessário representar os principais elementos da época específca (1940, no caso do livro de Jorge Amado), o que inclui objetos (livros, automóveis), vestuário, caracterização (cabelo, maquiagem), costumes (sotaques, termos utlizados). A reconsttuição deve ser de acordo com a história e com o que foi discriminado no roteiro. Nessa seção, serão analisadas duas adaptações do livro “Dona Flor e Seus Dois Maridos”: o flme dirigido por Bruno Barreto (1976) e a minissérie da Rede Globo (1998). Ao adaptar a história do livro, o flme e a minissérie adotaram projetos diferentes quanto a reconsttuição de época. Isso pode ser percebido logo no primeiro frame de cada produto. No primeiro frame do flme, lê-se “MadrugadaDomingo de Carnaval 1943” (Figura 10). Já no da minissérie, lê-se apenas “Salvador Domingo de Carnaval” (Figura 11). O flme expressamente pretende localizar a história na Bahia da década de 1940. A minissérie, por outro lado, não parece localizar a história em nenhuma época específca (os elementos utlizados vão desde a década de 50 até a década de 90). 4.1 Reconsttuição de época no flme O flme “Dona Flor e seus dois maridos” (1976) tem a sua adaptação mais fel ao texto de Jorge Amado, principalmente com a preocupação de narrar a história cronologicamente parecida com o livro, mantendo a importância e traços de personalidade dos personagens criados por Amado, assim como a época em que se passa a história e as característcas da cidade, palco do triângulo amoroso. A época recriada é um leve panorama dos anos 1940, mas percebemos em muitos detalhes, saturação das cores, cabelos, às vezes até em alguns vestuários, etc., fortes infuências dos anos 70 (esta que foi a década de realização da película). Por outro lado, o flme parece ter uma certa preocupação em desterritorializar ou universalizar o território onde se situa a história. O flme se passa na Bahia e isso é mostrado diversas vezes, mas podemos notar que os signos de baianidade não são reforçados ou estgmatzados, de tal modo que isso dá lugar para

26 que os signos mais brasileiros “se expressem”. Um exemplo para entender isso é a trilha sonora escolhida, esta que poderia ser formada por músicas de Caetano Veloso, Maria Bethânia, ou Antônio Carlos e Jocaf (que tnham uma música chamada “Dona Flor” lançada dois anos antes), mas a trilha escolhida foi compostas por música de Chico Buarque. Ou seja, em vez de reforçar a ideia de Bahia, a trilha sonora tenta tornar a história de Dona Flor um drama mais universal, sobre mulheres. Além da expressão da “brasilidade”, os suportes visuais em geral (roupa, carros, cabelos, etc.) comunicam época, status social e personalidade dos personagens. A construção e organização efcientes desses elementos, além da impressão de verossimilhança e simpata que causa nos espectadores, aproxima os mesmos ao universo retratado na tela. Observando os frames da obra, percebe-se a preocupação do Diretor de Arte, do Figurinista e do Chefe de caracterização em retratar esse local e essas pessoas “pacatas e interioranas” de uma década de 40, numa cidade da Bahia parada em um tempo bucólico. Mesmo com todo esforço de construção de época, referências setentstas puderam ser notadas, por exemplo, nas roupas e cabelos da amiga de Dona Flor, Dona Norma (fguras 12 e 13). A moda predominante no fnal dos anos 30 até meados dos anos 40 seguia o padrão da linha mais reta, sóbria, pesada e masculina19 - devido à infuência dos uniformes militares e também ao crescente número de mulheres que trabalhavam nas indústrias e fora de casa. Sabe-se que a Salvador dos anos 40 não era uma cidade grande, contnuava pouco urbanizada e ainda era dominada pelas classes com fortes característcas aristocratas. Pensando nisso, talvez, a fgurinista tenha escolhido um antgo padrão de roupas mais leves, mangas bufantes e babados (fgura 14) que eram largamente utlizadas em vestdos de verão, que, de certa forma, contrapunham o ideal contemporâneo da linha reta e reforçavam mais o caráter de antquado dos personagens. Da mesma forma, podemos perceber a preocupação de retratar uma época com que o diretor de arte projetou o universo de Dona Flor. A casa da personagem é simples, decorada com poucos móveis, todos em madeira, retratos pintados de familiares pendurados na parede da sala (fguras 13 e 17), muito comum no interior do Nordeste, desde o século XIX20. A casa de Dona Flor não possui muitos cômodos, e os mesmos trazem em si uma característca interiorana, o imóvel tem pé direito alto, 19

Mais informações sobre a moda nos anos 40, consultar o site: Moda Histórica:

htp://modahistorica.blogspot.com.br/2013/05/1940-militarismo-new-look-e-carmen_28.html

27 pouca mobília e a maioria dela é feita de madeira escura e desenho retlíneo (cristaleira, bufê, cadeiras, mesas). A cozinha é rústca, possui um fogão à lenha com bocas de ferro, janelas inteiras pintadas (fgura 15), feitas de madeira, paredes revestdas até aproximadamente 1,60m com azulejo branco e friso decorado na extremidade superior, sendo o restante das paredes pintadas de rosa, para fazer a ligação com o corredor que lhe dá acesso. Os objetos escolhidos para comporem a cozinha reforçam o caráter retrógado, atrasado, “arcádio” da Bahia relatada por Amado: Dona Flor cata arroz numa peneira de palha, suas panelas são de ágata calorida, chaleira de ferro (Figuras 15 e 16) e alumínio, todas penduradas em um porta-panelas de ferro, utensílios que ainda hoje são usados por muitas famílias simples residentes nos interiores do Nordeste. Outro ambiente que denota o passado é a sala de estar, decorada com um piano vertcal (que provavelmente nunca ninguém toca, mas reside nesse cômodo como herança de outrora), algumas cadeiras de palhinha e madeira escura, dispostas em círculo, ao redor de uma pequena mesa coberta por uma toalha de crochê e adornada por um singelo vaso com fores, de louça pintada, as paredes possuem um tom verde-claro (como se pintadas de cal, misturadas com pó xadrez). Aqui nessa sala estão pendurados os retratos pintados (mencionados no anteriormente) e é de onde vemos o portachapéus e guarda-chuvas feito de madeira, o qual fca na entrada da casa de Dona Flor. Além dos elementos visuais, o comportamento, os termos falados e o costume de uma sociedade, num local e numa época igualmente fazem parte da pesquisa e adequação para a reconsttuição de época. Nas cenas do velório 21 de Vadinho, o diretor de arte optou por aproveitar a tradição existente no nordeste brasileiro (trazida por Jorge Amado) de “beber o defunto” (fguras 15 e 17), ou seja, fazer todo o ritual de velório dentro da casa do morto, servindo aos convidados comidas e bebidas alcóolicas ou não (na maioria das vezes licores fnos, para famílias mais abastadas e cachaça nas famílias mais pobres) enquanto eles velam o corpo, geralmente por 24 horas. Esta não é, por si só, uma tradição EXCLUSIVAMENTE baiana, assim entende-se porque os diretores situam bem levemente a história na Bahia. A cena do Carnaval, também exerce essa função, pois em vez que mostrar um Para mais informações sobre foto pinturas: htp://veja.abril.com.br/blog /sobreimagens/brasileiros/fotopintura/ 21 Beber o morto e beber o defunto: htp://www.mixologynews.com.br/2011/2785/ Carpideiras: htp://kilombocultural.blogspot.com.br/2008/06/frica-de-todas-as-cores-sons-esabores.html 20

28 carnaval tpicamente baiano, o flme mostra um carnaval de rua que poderia se passar em outro lugar do Brasil, como Rio, Olinda, Recife, etc. O signo de baianidade expressa, presente nessa sequência é uma careta (Figura 17 e 18), tpo de fantasia comum no interior da Bahia, muito embora esse não seja um signo que remete facilmente o espectador a Salvador. 4.2 Reconsttuição de época na minissérie De modo a fazer um período de tempo se tomar “real/ vivo” em um flme, é absolutamente crucial ter uma produção e decoração de SETS impecáveis. Sem eles, os cineastas não seriam capazes de convencer a sua audiência sobre a história a ser contada, assim como trasnportá-los para outras eras. O Designer de Produção é o responsável por nos convencer que estamos testemunhando o passado. Uma regra consensual, porém não formal, que o Designer de Produção e decoradores de set devem seguir é a “Lei contra o anacronismo”. Esta lei empírica estabelece que os realizadores dos flmes não devem incluir objetos que não existam no período de tempo em que se passa a história, porque eles foram inventados posteriormente. Todo período de tempos terá elementos (legados) dos períodos anteriores, além dos seus elementos específcos ao seu próprio período 22.

O roteiro da missérie “Dona Flor e Seus Dois Maridos” parece querer reunir num mesmo teto todos os clichês ou símbolos marcantes, que representam a Bahia, misturando muitas épocas e locais diversos. Destarte os autores fzeram as seguintes escolhas para personagens e universos pertencentes à Bahia, num recorte de tempo de pelo menos 50 anos: o bicheiro Neca do Abaeté, que mais parece um coronel do sertão do começo do século XX, tenta “capar” um dos amigos de Vadinho; o grupo de músicos do irmão de Dona Flor que referencia um estlo tropicalista (homenageando Caetano Veloso); há um personagem que emula Glauber Rocha; todas as locações são localizadas de frente para o mar (hospital, a casa de Vadinho, a casa de Dona Flor23), além dos elementos como: trios elétricos, Esporte Clube Bahia, Carnaval,

Tradução livre do trecho retrado do artgo de Kelsey Egan: Film Producton Design: Case Study of The Great Gatsby, pá gina 4. Acessado em 5/02/2015. 22

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Mesmo que isso seja impossível, já que essas casas parecem estar no Pelourinho ou Carmo, que

NÃO fcam de frente para o mar.

29 Caruru, Vatapá, Dorival Caymmi, Ivete Sangalo, ACM (ele é sitado na trama como senador Guimarães, sendo, em verdade, o senador Magalhães), etc. Do mesmo modo, a direção de arte da minissérie parece ter assumido essa “geléia geral” dos clichês e mesclou diversos estlos, épocas, etc, fora de ordenacão lógica para realizar a ambientação dos personagens de Jorge Amado. Talvez a escolha fosse bem sucedida se essa mistura resultasse numa Bahia fantasiosa, que fosse a mescla de todas essas épocas retratadas, ou ainda se cada núcleo de personagem tvesse para si um universo imagétco específco que o representasse de forma clara, tão logo ele aparecesse na trama. Não é esse o caso: a direção de arte parece ter escolhido cada um dos elemento em separado, sem qualquer ligação para seu signifcado em conjunto. O fgurino da minissérie não dá uma coesão temporal, não divide núcleos de personagens em grupos com característcas específcas, distnguindo-os uns dos outros. A maior parte dos personagens usa roupas da década de 90 (fgura 19), mas, em geral, o fgurino dos personagens não segue nenhum padrão determinado. Dona for, quando em casa, tem roupas mais simples, sem marcar muito um época específca, geralmente adornada com rendas, tecidos leves de cores geralmente neutras, compostas por vestdos ou vestuário de duas peças. Os decotes e cumprimento das roupas de Dona Flor, dão uma característca faceira. Ela usa acessórios pequenos e discretos. As alunas de Dona Flor e a mãe da mesma, por outro lado, parecem seguir um padrão “modernizado” dos anos 60. Tanto nos acessórios (colar de pérola, sapatos, bolsas) quanto nos cabelos caracterizados. O fgurino de Vadinho e dos seus amigos é formado por roupas tpicas da década de 70 (Figura 21). O mesmo se dá com Propalato, produtor boate em que Marilda canta (Figura 22). Ao que parece, a tentatva era de colar aos personagens o estlo de malandro de pornochanchadas da década de 70. Por sua vez, o fgurino de Heitor e os outros componentes da banda é fortemente baseado na moda hippie do fnal da década de 60, começo da década de 70 (como se fzessem uma homenagem aos Tropicalistas ou Novos Baianos). Após a tentatva de compreender o perfl da caracterização de alguns personagens da minissérie, percebe-se que parece não haver uma ordem na coerência geral na escolha do fgurino dos mesmos. Um mesmo personagem troca de tpo de fgurino sem qualquer motvação aparente. Um exemplo é Marilda, que está utlizando o fgurino mais neutro ao ser apresentado na trama, apesar de usar bracelete e brincos de coco característcos dos anos 90, quando decide fazer um teste para cantora na casa noturna de Propalato. Na cena

30 seguinte, o teste, ela usa fgurino da década de 90, tpico das cantoras de axé music daquela época. Ao voltar para a casa de Dona Flor, ela contnua com o mesmo fgurino usado no teste. A escolha dos objetos utlizados na série também não parece ter nexo temporal. Por exemplo, na festa em que Dona Flor conhece Vadinho, a comida foi encomendada para Dona Flor, mas, ao ser realizada a festa, a comida está disposta numa mesa adornada como um bufet de comida baiana tpica (fgura 23), com panelas de barro envernizada, rechaud e suporte de ferro, arranjos de fores tropicais e uma longa toalha branca, com detalhes azuis, que remetem aos azulejos portugueses e à Yemanjá (rainha do mar, orixá dos mares, muito venerada na Bahia). As mesas dos convidados também estão seguindo esse padrão: arranjos de for central, com fores tropicais, cadeiras cobertas de lycra branca e toalha de mesa branca com detalhes em azul. A festa está totalmente dentro dos parâmetros de grandes coqueteis que hotéis organizavam para recepção de turistas, comum na década de 90. Por outro lado, o escritório de Neca do Abaeté há objetos das mais diversas épocas. As décadas de 60 a 90 são marcadas pelo seguintes elementos: ventlador de pé feito de ferro, a cadeira na qual Mirandão está amarrado (Figura 24), o telefone de baqualite branco que está em um das mesas, a máquina de datlografar característca dos anos 90, outro telefone, que também é da década de 90, assim como o sofá e armários organizadores de ferro. A falta de coerência temporal também pode ser notada nos automóveis escolhidos. Os carros que Vadinho dirige são predominantemente da década de 70, mas os demais presentes na história são marcadamente da década de 90. Bons exemplos são o carro de Teodoro (Fiat Duna), a ambulância que leva a mãe de Teodoro ao hospital (Ford Pampa - fabricado entre 1982 a 1997), além do ônibus Mercedes Benz no qual Teodoro bate, que é um modelo característco da década de 80. Há ainda outros carros, como os estacionados no páto exterior à entrada do hospital, como um Fiat Palio, que tem sua primeira “geração” circulando no mercado em 1996, um ano antes do início da produção da minissérie. - ver fgura 25. O mix de elementos pertencentes a diferentes décadas também pode ser notado nos cenários da minissérie. Um exemplo disso é a boate “Novo Tabaris”. Apesar de Propalato estar sempre trajando um fgurino tpico dos anos 70, o seu local de trabalho, a boate, possui uma reconsttuição cenográfca congruente com a década de 90 (fgura 26) - as caixas de som, os instrumentos musicais, as arandelas -, misturada a elementos marcantes da década de 70 (fgura 21), como o uso do néon

31 em discotecas, as cadeiras estofadas de veludo amarelo, o modelo de mesas de madeira, os bancos altos para o balcão do bar (esse que tem um design e iluminação que deixam dúvidas se a intenção é reconstruir os anos 70 ou assumir os anos 90) e luminárias de mesa, todos utlizados em conjunto para compor a locação da boate. Entre os cenários, a casa de Dona Flor aparentemente tem um design sessentsta (fgura 27), muito marcado em alguns elementos como: sofá de couro branco e vermelho, geladeira, a maçaneta de louça da porta da sala, os retratos da parede (os quais datam épocas mais antgas), o telefone, o fltro de barro (que já era usado anteriormente), caixa de costura de madeira, a mesa de costuras com máquina de costura, cadeiras e mesas, etc. Por outro lado, percebemos que o fogão, os potes de plástco, as panelas de alumínio, as compotas de doces que fcam em cima da geladeira, a jarra d’água que Marilda pega enquanto canta “Vatapá” de Caymmi, são todos tpicos dos anos 90, muito embora mais pontuais, pois a referência predominante do desenho da casa de Dona Flor é a década de 60. Entre as cenas da minissérie, as cenas da morte e do enterro de Vadinho são o “paradigma” de como a reconstrução de época da minissérie é construída. Como no livro, a morte de Vadinho é mostrada num desfle de Carnaval. Apesar de Vadinho estar desflando em um bloco tradicional do Carnaval baiano, fundado em 1949, a cena obviamente representa um dia de Carnaval da década de 90. Isso fácil de ser notado pelas roupas dos fgurantes, pelas bolas que futuam sobre a multdão e pelos trios elétricos, todos tpicos da década de 90. De fato, em um dos takes da sequência dos carnaval, conseguimos ver o ano impressa em uma bandeira daquele desfle: 1997 (Figura 28). No enterro de Vadinho, há uma bandeira do tme de futebol Esporte Clube Bahia datada 1993/1994 (Figura 29). Mas, mais importantes que essas datas marcadas em objetos de cena e Props, é a dubiedade sobre o tempo no qual se passam essas sequências analisadas. Se, por um lado, elas obviamente se passam da década de 90 ao interromperem, por exemplo, um show de Ivete Sangalo, com a procissão fúnebre de Vadinho (Figura 30), por outro lado, todo o funeral é feito de maneira retrógrada, em casa, como era o costume. Além disso, muitos personagens partcipavam do velório com o vestuário das décadas de 60 e 70. Inclusive um dos personagens, que faz “cinema novo” e foi “amigo de Glauber Rocha”, flma toda a cerimônia com uma câmera de Super 8, comum nas décadas de 70 e 80, mas de cunho fetchista nos 90 e atualmente (Figura 31). Analisados, pois, alguns dos aspectos componentes do visual da minissérie, entende-se como a direção de arte, a produção de arte e a cenografa trabalham de

32 maneira diversifcada, de projeto para projeto, muitas vezes de forma contraditória. O conceito de cada projeto a ser executado não depende de esforços e criatvidade individuais dos chefes de departamento de arte, por exemplo. Um produto audiovisual é pensado por diversos profssionais (diretor, diretor de fotografa, diretor de arte, cenógrafo, fgurinista, caracterizador, etc.). Dessa forma, o resultado que é “impresso” na tela difcilmente é de assinatura una. Os imaginários de mundos são construídos de modo tão diverso, complexo e não consensual que a riqueza do trabalho do Design de Produção, portanto, reside em não só traduzir para uma realidade fccional as palavras de um roteiro, mas adequar para os personagens determinados elementos que tornem a sua existência crível.

33 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar o flme e a minissérie “Dona Flor e seus dois maridos”, pudemos notar que as escolhas pela construção do projeto de arte, além de não serem consensuais, divergem em diversos aspectos. O flme tenta ser o mais fel e próximo à obra de Jorge Amado, embora tenha trazido para si um cunho mais universal para a história e seus personagens, principalmente à fgura de Dona Flor. A fdelidade ao livro ocorre quando o roteirista e diretor escolhem manter a narração da história na década de 1940, ao utlizar os jargões e diálogos criados pelo próprio escritor e ao manter a candência da narração igual ao livro. Pensando nisso, a equipe de arte e cenografa juntaram seus esforços criatvos para reconstruírem essa década de 40, essa Bahia idílica. Eles desenharam seus cenários de acordo com cada personagem.

Cores dos cenários, tpo de

mobiliário escolhido: mobílias mais simples, para famílias mais simples e móveis mais sofstcados para família mais ricas. Um caso notável da construção do ambiente, refetndo o status ou personalidade dos personagens, ocorre quando a casa de Dona Flor fca totalmente repaginada quando Teodoro passa a morar com ela, sua então esposa. Antes a casa de Flor possuía cores mais alegres e desconexas e mobília mais simplória. Depois que Teodoro passa a ser o “cuidador” da casa, ele troca a empregada (que agora trabalha com uniforme), as cores das paredes fcam mais padronizadas e “pasteurizadas”. A cozinha fcou toda em tom de branco, Teodoro começa a ordenar os utensílios com etquetas, os móveis foram também pintados de branco, assim como as cortnas também assumiram essa coloração. Os corredores e as salas agora têm cores uniformes, assumindo a tonalidade ocre. Essa mudança expressa a preocupação do personagem com o ambiente em que reside, coisa que não ocorria com Vadinho, que além de descuidar da casa e da esposa, saqueava o que havia de valor para gastar na jogatna.

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Figuras 32 e 33: Comparação entre os momentos da cozinha de Dona Flor – momento colorido (fgura 32) é quando há permanência de Vadinho e o momento com tonalidades uniformes (fgura 33), denota a predominância de Teodoro

Já a minissérie escolheu o caminho de se distanciar da versão original do livro, ao resgatar dele apenas os personagens e ao ambientar a história na Bahia. Mas, o

35 que vemos é uma Salvador diferente da descrita por Jorge Amado, principalmente ao optar pela alternatva de tornar “atemporal” a história de Florípedes. Como foi dito ao longo do tópico 4.2, a atemporalidade do programa televisivo algumas vezes trouxe uma mistura de signos que mesclaram diferentes épocas e não delineou uma identdade classifcável e facilmente compreensível aos núcleos da trama. Essa mescla é perceptvel não só no trabalho do departamento de Arte, como no departamento de caracterização, de fgurino, nos carros e também nos eventos que fazem parte dos episódios. Não podemos classifcar, desta forma, a minissérie como um produto de época, que reconsttui uma época. Portanto podemos compreender, a partr do estudo dos dois produtos analisados neste trabalho, que a signifcação do labor da arte é invisível ao olho do espectador comum, muito embora esse mesmo público tenha se tornado mais treinado e exigente com advento dos equipamentos em HD e, também, com a vasta gama de informação disponível. O departamento de Arte e os outros que compõem o organograma das indústrias televisiva e cinematográfca estão se aprimorando cada vez mais para contnuar a exercer a mágica do invisível. A magia dos flmes e produtos televisivos esteve e sempre estará presentes no cotdiano das audiências ao longos dos anos. O público hodierno possui, além do grande número produtos e plataformas disponíveis no mercado, enorme facilidade de acesso aos mais diversos conteúdos, de diferentes linguagens e de distntos países. Contanto, não podemos afrmar que o fato de uma produção estar tecnicamente mais apurada, mais avançada, tecnologicamente a frente e portadora de mais recursos, irá trazer melhores resultados à fnalização em relação aos seus antepassados. O flme “Dona Flor e seus dois Maridos” (1976) conseguiu exercer de maneira coerente a localização e uma reconstrução temporal mais bem estruturada, se comparado com seu sucessor, a minissérie de 1998. Não afrmo, contudo, que a atemporalidade seja um recurso que não pode ser utlizada ou que deva ser evitada como opção para a construção de uma narratva cinematográfca ou televisiva. Há duas maneiras de criar a atemporalidade numa narratva audiovisual: uma é tolhendo os signos específcos de cada década, como é acontece em “Central do

36 Brasil” (1998) e em “Abril Despedaçado” (2001). No primeiro, apesar de não haver grandes esforços em “esconder” o ano de produção do longa-metragem, existe também um claro esforço em não deixar óbvio os anos 90. Um bom exemplo disso é o plano geral do início do flme, o qual apresenta a Central do Brasil. Neste Plano Geral não vemos nenhum signo direto como os letreiros luminosos, as propagandas, roupas específcas, dentre outras coisas que rapidamente identfcaria a década de 90: poderia ser o fnal dos anos 80, fnal dos anos 70, por exemplo. Já em “Abril Despedaçado”, o primeiro frame do flme diz: “Sertão Brasileiro – 1910”. Logo a primeira vista, já sabemos que se trata de um flme de época, mas em todas as sequências do “Riacho das Almas”, vemos esse local idílico, sofrido, seco, que é o sertão do Brasil, representado de uma forma “neutra” que remete o flme a um tempo “indeterminado” e um local – sertão – mais “universal”. “Abril Despedaçado”, desta forma, poderia se passar nos anos 20, 40, 60 ou até mesmo nos anos 2000. Muitos poderiam contestar a falta de luz elétrica ou água encanada, mas sabemos que esta é uma realidade social ainda vigente em muitos interiores do Brasil. Além da anulação do ano específco, ao tolher fgurinos e objetos de épocas demarcadas, falas ou eventos históricos (como acontece em “Alto da Compadecida” (1999), quando Lampião e seu bando invadem a cidade onde ocorre a história), o longa de 2001, dirigido por Walter Salles, torna o sertão, que é uma sub-região Brasileira, a qual compreende 8 estados do Nordeste e o norte de Minas Gerais 24, em um local unifcado, por isso com uma característca mais universalizada dentro do eu contexto narratvo. A outra forma de tornar atemporal um produto audiovisual, é a mistura dos signos de décadas diferentes. Esta foi a opção escolhida pelas produções da minissérie “Dona Flor e seus dois maridos” (1998) e do longa-metragem “Lisbela e o Prisioneiro” (2003). No flme de Guel Arraes (2003), temos os seguintes mix dos símbolos de diferentes décadas: o cinema, o qual poderia ter sido construído tanto da década de 1920, quanto da década de 50, Lisbela assiste a flmes em preto e 24

Para mais informações sobre o sertão acessado em 10/02/2015

37 branco, referenciando à produção vigente na década de 20, a fachada desse cinema é uma reprodução dos existentes entre as décadas de 20 à década de 60, nas quais havia a predominância de cinema de bairro no Brasil (capitais e interiores), a roupa de Lisbela data os anos 60, enquanto as roupas de Leléu, Douglas e Frederico Evandro são específcas da década de 70. Além desses signos, existem ações em “Lisbela e o Prisioneiro” que remetem ao século XIX, como a venda intnerante de produtos genéricos e caseiros, além de garrafadas, e a chegada do circo nas cidades, entre outros. Estas ações, apesar de estarem enfraquecidas, podem ser anda hoje encontradas em muitas regiões do Nordeste brasileiro. Baseada em todas as informações dadas acima, o que difere a minissérie “Dona Flor e seus dois maridos” e o flme “Lisbela e o prisioneiro”, uma vez que ambos os produtos optaram pelo mesmo projeto de reconsttuição temporal? A resposta pode residir na escolha feita pelos chefes dos departamentos da minissérie de “pôr em um mesmo pacote” tantos signifcados, sem delinear um projeto específco, seja para os personagens, seja para os núcleos partcipantes da história. Essa falta de delineamento talvez tenha causado um prejuízo à “atemporalidade” pretendida pela minissérie de Dias Gomes. O flme “Lisbela e o prisioneiro”, mesmo baseando seu projeto de arte no atemporal, delimita determinadas característcas para cada personagem e cenário: o cinema segue o desenho dos anos 20, Leléu representa os anos 70, o núcleo da delegacia representa uma repartção do interior, de algum tempo no passado. O mesmo não pode ser observado ou separado facilmente na minissérie, pois um mesmo núcleo possui várias facetas, por exemplo, Neca do Abaeté. Ele tem o escritório todo no modelo antgo, misturando elementos que vão do começo do século até os anos 90, embora a predominância seja dos anos 60. Ele e seus capangas se vestem com roupas setentstas, sua flha igualmente. Quando ela casa com Mirandão, a casa deles é totalmente decorada com móveis e objetos da década de 90. Essa falta de coesão pode ser, dessa forma, o motvo pelo qual a atemporalidade da minissérie não tenha sido bem sucedida.

38 6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA Artgos: EGAN, Kelsey Egan in Film Producton Design: Case Study of The Great Gatsby. Artgo para o departamento de Media Arts & Entertainment- Cinema, da Elon University Acesso no dia 05/02/2015 NUNES, Adalgisa in Dona Flor e seus dois maridos - o livro e a minissérie, Dissertação de Mestrado para o Programa de Mestrado da Universidade Metodista de São Paulo (2008) . Acesso no dia 01/02/2015. Livros: JOSÉ, Paulo in Cadernos das Ofcinas de Direção, Caderno da Cenografa. Ed. Globo, 2014. LOBRUTTO, Vincent in The Filmmaker's Guide to Producton Design. Ed. Allwoth Press, 2002. RIZZO, Michael in The Art Directon Handbook for Film, Ed. Focal Press, 2005. Sites: Director Guild of America (DGA)_Re-creatng History: . Acessado em 25/01/2015. Producton Design - LFS Acessado em 26/01/2015 Rafael Blas – Direção de Arte e Cenografa . Acesso 01/02/2015 Victoria and Albert Museus - Refectng Historical Period in Stage Costums. . Acessado no dia 05/08/2015. Moda Histórica Acesso no dia 1/02/2015 Veja Abri_ Foto Pintura:

39 Acesso no dia 05/02/2015 Mixology News_Beber o morto e beber o defunto: Acesso no dia 05/02/2015 Kilombo Cultural_Carpideiras: Acesso no dia 05/02/2015 Wikipédia – Abril despedaçado. Acessado em 15/02/2015 Wikipédia – Auto da Compadecida (o flme). Acessado em 15/02/2015 htp://pt.wikipedia.org/wiki/O_Auto_da_Compadecida_(flme) Wikipédia – Behind the Sun. Acessado em 15/02/2015 Wikipédia – Central do Brasil. Acessado em 15/02/2015 Wikipedia – Design . Acesso em 05/02/2015. Wikipedia_Dona Flor e seus dois Maridos (minissérie) . Acessado em 25/01/2015 Wikipedia_ German Expressionism Acessado em 26/01/2015 Wikipédia – Lisbela e o Prisioneiro. Acessado em 15/02/2015 Wikipedia – Literatura de folhetm: . Acessado 05/08/2015 Wikipédia – Sertão Brasileiro. Acessado em 15/02/2015

40 7. ANEXO: FOTOS

Figura 1:

(1976).

Primeiro frame do flme Dona Flor e Seus Dois Maridos

41

Primeiro frame de minissérie Dona Flor e Seus Dois Maridos (1998). Figura 2:

Figura 3: Roupa de D. Norma com marcas dos anos 70

42

Figura 4: Essa figura mostra a roupa e cabelos de D. Norma representando os anos 70. Também mostra os retratos pintados e a mobília de D. Flor, reconstituindo datas mais antigas, como os anos 40.

43

Figura 5: Nesse frame vemos roupas e cabelos referntes às décadas de 40 e 70 (como o vestido roxo), além de as mangas bufantes (presentes no vestido verde e no vestido rosa)

Figura 6: Esta figura mostra a cozinha da Dona Flor: janelas de madeira, paneleiro de ferro com panelas de alumínio colorido, peneira de palha, etc. Ela ainda representa o costume antigo do nordeste brasileiro de “beber o morto” quitutes, licores e café sendo sevidos no velório de Vadinho.

44

Figura 7: Esta figura mostra as referências antigas usadas no filme: penteado, vestido, licor, fogão a lenha, chaleira de ferro e panela de ágata colorida.

Figura 8: Aqui vemos o velório em casa (beber o defunto), a careta, figura típica dos carnavais na Bahia e, também, os retratos pintados.

45

Figura 9: Vemos o Carnaval de rua na Bahia e a careta (ao fundo)

Figura 10: A maior

parte dos personagens da minissérie “Dona Flor e Seus Dois Maridos” usam fgurinos tpicamente da década de 90.

46

figura 11 :

Vadinho e seus amigos usam fgurinos tpicos da década

de 70

Figura 12: Nesta ilustração vemos que Propalato

usa fgurino tpico da década de 70 e que a boate onde ele trabalha tem referências também dessa época.

47

Figura 13: Marilda na casa de Dona Flor, em que predomina um fgurino da década de 60 e na casa de show, em que veste um fgurino da década de 90.

Figura 14: Ilustrção do Buffet de comida baiana.

48

Figura 15: Elementos do escritório de Neca que rementem à dácadas diversas: cadeira onde Mirandão está amarrado, corda de sisal, ventilador de ferro, sofá, máquina de escrever da década de 90, além das próprias roupas dos personagens que representam os anos 70).

49

Figura 16: Os carros da minissérie. Em cima, carros que Vadinho dirige, ambos com modelos da década de 70. Abaixo, o carro de Teodoro e a ambulância que leva a mãe de Teodoro para o hospital. Ambos modelos da década de 90. O ônibus é de um modelo intermunicipal da década 80 (inclusive sem plotagem e com letreiro em branco).

50

Figura 17: Instrumentos musicais, microfones e caixas de retorno de som típico dos anos 80.

51

F i g u r a 18:

Representação dos anos 60 na casa de D. Flor

52

Figura19:

Cena da morte de Vadinho na minissérie. Na bandeira,

“1997”.

Figura 20:

93/94”

Enterro de Vadinho. Na faixa, “Bahia, campeão de

53

Figura 21: Show

de Ivete Sangalo é interrompido pela procissão do caixão de Vadinho.

Figura 22: A procissão

Super 8.

do caixão de Vadinho é flmada por uma

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