DIREITO À SAÚDE E EFETIVAÇÃO JUDICIAL DOS DIREITOS SOCIAIS. Trabalho de Conclusão de Curso (Direito - UNIFENAS) (2010)

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DIREITO À SAÚDE E EFETIVAÇÃO JUDICIAL DOS DIREITOS SOCIAIS TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO UNIVERSIDADE JOSÉ DO ROSÁRIO VELLANO – UNIFENAS (2010) Nairo José Borges Lopes1

RESUMO

O Estado Democrático de Direito surge, no Brasil, com a Constituição Federal de 1988, possuindo a tarefa de promover a concretização, sobretudo, dos direitos de segunda dimensão, que surgiram após o rompimento com o paradigma liberal-individualista que imperou no mundo até meados do século XIX. A força normativa adquirida pela atual Constituição e a ascensão do Poder Judiciário no cenário democrático passam a servir de meio para a concretização dos direitos fundamentais sociais, nos quais se inclui o direito à saúde, não raramente negligenciado pelo Poder Público. Conforme a expressa disposição constitucional, a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196). Depreende-se, assim, que o direito à saúde deve ser efetivado, prioritariamente, pelo Poder Executivo, por meio da elaboração de políticas públicas. Todavia, a crise de efetivação enfrentada pelo referido direito social tem gerado, reflexamente, sua judicialização, traduzida no excessivo número de demandas existente no Poder Judiciário buscando o fornecimento gratuito de medicamentos pelo SUS. Nesse sentido, a pesquisa foca-se precipuamente em três temas principais: a análise da efetividade do direito à saúde, inserido no contexto dos direitos fundamentais sociais; a possibilidade do Poder Judiciário buscar a concretização deste direito e; como deve este órgão, no exercício da jurisdição constitucional, interpretar o direito à saúde, sem, no entanto, afetar materialmente a independência de Poderes.

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Mestre em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal de Alfenas/MG (UNIFAL). Graduado em Direito pela Universidade José do Rosário Vellano (UNIFENAS). Membro da Comissão de Direito da Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil (subseção Alfenas/MG). Advogado nas áreas consultiva e contenciosa.

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SUMÁRIO

Introdução Capítulo 1 - Os direitos fundamentais sociais: declaração e evolução 2.1 Considerações iniciais 2.2 Direitos Naturais, Humanos e Fundamentais 2.3 As primeiras declarações de direitos humanos 2.4 Do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito: uma breve análise das dimensões de direitos humanos 2.4.1 O Estado Liberal e a primeira dimensão de direitos humanos 2.4.2 O Estado Social de Direito e a segunda dimensão de direitos humanos – crises de implementação (“O curso das idéias pede um novo leito”) 2.4.2.1 Do constitucionalismo social no Brasil e da (ainda) não implementação do Welfare State 2.4.3 O Estado Democrático de Direito como condição de possibilidade para a concretização dos direitos fundamentais sociais – um breve olhar sobre a Constituição brasileira de 1988 Capítulo 3 - Os direitos sociais a prestações materiais: uma análise da eficácia do direito à saúde 3.1 Considerações iniciais 3.2 Do caráter prestacional dos direitos sociais e da sua natureza normativa na ordem constitucional vigente 3.2.1 Dos direitos sociais prestacionais como direitos subjetivos dos cidadãos – breves considerações acerca de sua eficácia 3.3 Da efetividade do direito fundamental à saúde 3.3.1 O direito à saúde no ordenamento jurídico pátrio e sua fundamentalidade 3.3.1.1 O direito à saúde na Constituição Federal de 1988 3.3.1.2 Legislação infraconstitucional do direito à saúde 3.3.2. Algumas considerações acerca da eficácia e aplicabilidade do direito à saúde 3.3.2.1 Dimensões negativa e positiva do direito à saúde 3.3.2.2 A aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais e sua relação com o princípio da efetividade 3.3.3 O direito à saúde como consagrador do princípio da dignidade da pessoa humana 3.3.3.1 As modalidades eficaciais do princípio da dignidade da pessoa humana 3.4 A busca pela efetividade dos direitos sociais no âmbito judicial: breves apontamentos acerca da necessidade de uma atuação judicial concretizadora de direitos

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Capítulo 4 – Judicialização e direito à saúde 4.1 Considerações iniciais 4.2 O Neoconstitucionalismo no Brasil – uma abordagem preliminar e necessária 4.2.1 Alguns delineamentos em torno do princípio da dignidade da pessoa humana 4.3 O papel do Poder Judiciário no constitucionalismo do Estado Democrático de Direito 4.3.1 A judicialização das relações sociais e políticas 4.4 Da concretização do direito à saúde pelo poder judiciário – limites e possibilidades 4.4.1 Dos limites aparentes da atuação judicial na concretização do direito à saúde 4.4.2 Dos limites (reais) e dos parâmetros para a concretização judicial do direito à saúde 4.4.2.1 Do princípio da razoabilidade 4.4.2.2 Das reservas de consistência e coerência 4.4.2.3 O direito à saúde e a garantia do mínimo existencial relacionada à teoria da reserva do possível 4.4.3 Das possibilidades de intervenção judicial Conclusão Referências

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Introdução

A experiência constitucional brasileira demonstra que o Estado Social encontra-se ainda carente de uma devida realização. Indubitavelmente, a maior contribuição do Welfare State para o direito constitucional foi o reconhecimento dos direitos humanos de segunda dimensão, que agregaram ao Estado um novo papel. Todavia, ainda há no Brasil um longo caminho a ser trilhado entre a declaração e a efetiva prestação dos direitos sociais aos cidadãos. O caminho para a concretização dos direitos sociais, contemporaneamente, tornase possível com a instituição, pela Lei Fundamental brasileira de 1988, de um Estado Democrático de Direito, cuja principal característica revela a força normativa da Constituição e contribui para a máxima efetividade de suas normas. No Estado Democrático de Direito, o locus de satisfação das pretensões se desloca do âmbito administrativo para o judicial. Tal fato se deve, muitas vezes, ao espaço não preenchido pelo Poder Executivo quando deveria fazê-lo, por meio das políticas públicas, que são o instrumento para a concretização dos direitos sociais prestacionais, como, por exemplo, o direito à saúde (art. 196, da CF/88). Nesse contexto, ante a inércia da Administração Pública na prestação dos direitos sociais, assume grande relevância o papel do Poder Judiciário na concretização dos direitos fundamentais. O Poder Judiciário, edificado sobre um Estado Democrático de Direito, definitivamente, não pode revestir-se das mesmas características de quando concebido sob o paradigma do constitucionalismo liberal. Sua função não é – nem pode ser – a de mero espectador no cenário político-jurídico ou de um estático instrumento de declaração da vontade abstratamente positivada na lei. Nesse sentido, a discussão travada em torno da possibilidade ou não da intervenção judicial, no que se refere à efetivação dos direitos sociais, deve se dar com a devida compreensão do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro. A necessidade do cidadão em obter do Judiciário respostas em sintonia com a Constituição perfaz-se também em um direito fundamental, de modo que tal compreensão possibilitará a maior justeza nas decisões judiciais (STRECK, 2009b). No Brasil, a doutrina e a jurisprudência refletem a importância da discussão, porquanto revelam interpretações das mais variadas estirpes, no que se refere aos direitos sociais. Diante desse quadro, é de extrema importância que se dê uma abordagem coerente,

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razoável e, sobretudo, adequada à Constituição Federal de 1988, na questão específica da efetivação judicial dos direitos sociais, aí incluído o direito à saúde. Portanto, dada a atualidade da discussão, adotar-se-á como direito fundamental social específico para uma análise mais detalhada o direito à saúde, cujo caráter eminentemente prestacional consubstancia o debate e presta-se a exemplificar algumas questões que serão levantadas. Partindo dessa situação fático-jurídica, o trabalho a ser desenvolvido tem por objetivo primordial propor um caminho para uma legítima atuação judicial na efetivação dos direitos sociais, pela análise de princípios e situações que deverão, necessariamente, ser levadas em conta no exercício da jurisdição constitucional. Visando à elucidação da questão proposta, o trabalho terá como objetivos específicos: estudar a evolução dos direitos humanos, desde as suas primeiras declarações até o reconhecimento da segunda dimensão de direitos; analisar a eficácia dos direitos sociais no Brasil, seu tratamento constitucional e sua interpretação doutrinária e jurisprudencial; abordar o papel da jurisdição constitucional, trazendo à discussão as doutrinas que estudam o papel da Constituição e do Poder Judiciário no constitucionalismo democrático; e, por fim, analisar especificamente o direito à saúde, sua fundamentalidade, natureza normativa, tratamento constitucional e sua interpretação. Para a realização da pesquisa será utilizado o método dedutivo, partindo da análise da interpretação doutrinária e jurisprudencial dos direitos sociais prestacionais e, especificamente, do direito à saúde. Para tanto, serão analisadas as decisões dos diversos tribunais brasileiros, com maior ênfase à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Será estudado ainda o tratamento doutrinário referente ao tema, partindo da consulta a autores nacionais e estrangeiros que, direta ou indiretamente, contribuam para a realização dos objetivos propostos na pesquisa.

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2 DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS: DECLARAÇÃO E EVOLUÇÃO

A exemplo do ocorrido com outras grandes conquistas da humanidade, os direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais – ou, tão somente, direitos fundamentais sociais – foram conquistados após um período de intensa crise e revolução. Diversas mudanças econômico-político-sociais fizeram com que o Estado assumisse um novo papel perante a sociedade, agregando às suas funções a de promover a igualdade e o bem-estar por meio da intervenção em diversos setores das relações interindivíduos. Como dimensão integrante dos direitos fundamentais, o estudo dos direitos sociais deve inexoravelmente passar pelo processo de afirmação histórica dos direitos humanos e de como estes foram gradativamente inseridos nos documentos constituintes dos Estados, até mesmo porque, no Brasil, não há uma diferenciação jurídico-constitucional entre os direitos individuais (de defesa) – primeiramente declarados -, e os direitos fundamentais sociais, posteriormente surgidos2. Observando tal premissa, no presente estudo será abordada a própria evolução do constitucionalismo e das funções estatais, para, ao final, se delinear os traços indispensáveis à compreensão do Estado brasileiro na contemporaneidade e do papel da jurisdição na transformação da realidade social. Insta ressaltar, por oportuno, que o estudo focar-se-á mais detidamente nas duas primeiras dimensões de direitos humanos, em razão do objetivo proposto. Contudo, na medida do indispensável, e não olvidando-se de que o estabelecimento das dimensões de direitos é de cunho meramente didático3, embora bem retrate seu processo afirmatório, empreender-se-á breves reflexões acerca de outros direitos humanos, que não os diretamente incluídos no objeto do presente trabalho.

Conforme Sarlet (2009, p. 200), “não há como falar de uma dicotomia ou de um dualismo absoluto entre os direitos de defesa e os direitos sociais prestacionais em nosso ordenamento constitucional, no sentido de um antagonismo irreconciliável entre eles, já que ambos compartilham a mesma dignidade como direitos fundamentais, assumindo caráter nitidamente complementar, e não excludente, de acordo com a unanimidade da doutrina” 3 Isso porque na realidade os direitos fundamentais formam um sistema de proteção e garantia da dignidade da pessoa humana, sendo que antes de subdividirem-se em dimensões/gerações, eles se complementam. Com espeque nas esclarecedoras palavras de Oliveira Júnior (2003, p. 126), pode-se afirmar que “o maior de todos os equívocos que a sociedade contemporânea poderia cometer seria compreender os direitos fundamentais isoladamente (visão cartesiana). Tais direitos existem num contexto de solidariedade objetiva e subjetiva”. 2

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2.2 Direitos Naturais, Humanos e Fundamentais

Ao se estudar os direitos fundamentais, quaisquer que sejam, é indispensável que se busque na história e na própria filosofia do direito e política a sua origem. Um lugar comum do qual pode-se extrair a origem dos direitos fundamentais é o surgimento dos direitos naturais e das doutrinas jusnaturalistas4. Embora paire por parte de muitos estudiosos certa negação e descrença acerca da existência dos direitos naturais, parece-nos conveniente trazer ao presente estudo algumas questões a eles relacionadas, buscando, desde a sua origem, uma certa ideia de direitos ínsitos aos seres humanos A ideia de um direito natural nos remete a um conjunto de normas não positivadas que transcendem o tempo e são imanentes à natureza humana. Na antiguidade clássica, Cícero (apud BARROSO, 2009b, p. 320) assim se manifestou acerca da existência de um direito natural:

A razão reta, conforme a natureza, gravada em todos os corações, imutável, eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem (...). Essa lei não pode ser contestada, nem derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento pelo povo nem pelo senado (...). Não é uma lei em Roma e outra em Atenas, - uma antes e outra depois, mas uma, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno será sempre o seu imperador e mestre, que é deus, seu inventor, sancionador e publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar a si mesmo...

Por razões didáticas, pode-se se dividir o jusnaturalismo em duas grandes fases5. Primeiramente, com suporte nas doutrinas filosóficas de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, o direito natural era a incorporação, pelos homens, das leis superiores. Como ensina Bittar (2005, p. 227), fica claro nas concepções de ambos que a lei superior (a divina, para Santo Agostinho, e a eterna, para Santo Tomás de Aquino) emana de uma força sobrehumana, qual seja: Deus. 4

Para um estudo do percurso histórico do direito natural e da filosofia do direito, ver KAUFMANN, Arthur. Filosofia do direito. Tradução de António Ulisses Cortês. Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 2004, p. 2957. Sobre as doutrinas jusnaturalistas, conferir BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia do direito. 4.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 227-236. 5 Adeodato (2002, p. 189), por sua vez, salienta que, à semelhança do que ocorre no âmbito do juspositivismo, entre os jusnaturalistas há diferenças inconciliáveis sobre em que consistiria essa então denominada “natureza” suprapositiva. Didaticamente o autor enumera quatro grandes correntes jusnaturalistas: teológica, antropológica, democrática e de conteúdo variável.

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Rompendo com a ideia de origem divina do Direito Natural, o que Bittar considera uma verdadeira “revolução copernicana na esfera do Direito” (2005, p. 228), Hugo Grócio vem dizer que “o princípio último de todas as coisas não seria mais Deus, nem a natureza, mas a razão”. Nota-se, assim, que a figura divina não mais era o fundamento e a última justificação das normas jurídicas, deixando o pensamento humano de ser teocêntrico para atingir uma concepção antropocêntrica6. Para Kaufmann (2004, p. 37), o direito natural da modernidade apenas podia ser um direito natural secularizado, baseado na máxima de que um tal direito teria de valer mesmo na hipótese de Deus não existir. Essa nova concepção, segundo Bittar (2005, p. 228.), “prepara as bases intelectuais da Revolução Francesa (1789), que rompe, de modo definitivo e prático, com a teocracia e afirma, categoricamente, os direitos naturais”. Pode-se dizer, então, que a Escola de Direito Natural e das Gentes formulou o pensamento Iluminista surgido no século XVIII e cuidou também da criação de um denominado jusnaturalismo racionalista, imortalizado nos documentos de liberdade (FERREIRA FILHO, 2009, p. 10-11). Se, inicialmente, alguns direitos compreendidos como naturais integraram os textos das primeiras declarações, por herança histórica, conveniência ou necessidade, os mesmos foram reproduzidos nas Constituições de países atualmente intitulados democráticos, tais como o Brasil. Tal conclusão pode ser extraída pela simples análise do texto constitucional, haja vista que a mera positivação da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado implica na confluência entre a Ética e o Direito7, remetendo às doutrinas exsurgentes nos Século das Luzes. Acerca da compreensão do jusnaturalismo e da inserção nos textos constitucionais de “normas” oriundas do direito natural, Sarlet (1998, p. 103) ensina que

da concepção jusnaturalista remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que – de forma direta ou indireta – consagra a idéia da dignidade da 6

Conforme Ferreira Filho (2009, p. 10), deve-se a Hugo Grócio a laicização do direito natural. Nas palavras do autor, “o jurista holandês entende decorrerem da natureza humana determinados direitos. Estes, portanto, não são criados, muitos menos outorgados pelo legislador. Tais direitos são identificados pela ‘reta razão’ que a eles chega, avaliando a ‘conveniência ou inconveniência’ dos mesmos em face da natureza razoável e sociável do ser humano”. Neste mesmo sentido, afirma Barroso (2009b, p.321, nota 33) que “o surgimento do jusnaturalismo moderno é usualmente associado à doutrina de Hugo Grócio (1583-1645), exposta em sua obra clássica De iure belli ac pacis, de 1625, considerada, também, precursora do direito internacional. Ao difundir a idéia de direito natural como aquele que poderia ser reconhecido como válido por todos os povos, porque fundado na razão, Grócio desvincula-o não só da vontade de Deus, como de sua própria existência”. 7 Como se observará no decorrer deste trabalho, a reaproximação da Ética ao Direito é uma das mais importantes conquistas do direito contemporâneo, porquanto marca, precisamente, a superação do positivismo jurídico, lançando-se rumo ao pós-positivismo.

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pessoa humana justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude tãosomente de sua condição biológica humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado.

Portanto, a positivação de direitos fundamentais foi responsável por trazer ao âmbito constitucional direitos antes vistos como de índole natural, cuja finalidade precípua era assegurar e promover, sobretudo, a dignidade da pessoa humana, mas não sob a forma posta pelo Estado, e sim já concebida pelo homem, ou por ser inerente à sua natureza, ou por decorrer da própria experiência humana absorvida pela razão. Cumpre afirmar, assim, que os direitos naturais marcam, de certo modo, a irredutibilidade do ser humano, visto como um fim em si mesmo, concebendo valores irrenunciáveis agregados à sua natureza. E a sua incorporação pelos Estados reafirma esta noção, de modo que sua funções devem se convergir pela proteção do indivíduo e pela promoção de sua dignidade. Nesse contexto, Piovesan (2010, p. 29) sustenta

que passa a existir “um

reencontro com o pensamento kantiano, com as ideias de moralidade, dignidade, direito cosmopolita e paz perpétua. Para Kant, as pessoas devem existir como um fim em sim mesmo e jamais como um meio, a ser arbitrariamente usado para este ou aquele propósito”. Pode-se observar que há uma certa intersecção entre os direitos fundamentais e os naturais, sobretudo pela identidade teleológica. Todavia, o traço distintivo que é possível realçar é que aqueles são positivados na ordem interna dos Estados, enquanto os direitos naturais são extraídos não de normas postas, mas pela vontade divina ou pela reta razão, a depender da concepção adotada8. Pode-se dizer então que os direitos naturais foram formalizados nos documentos que, inicialmente, na história, enunciaram os direitos humanos. Mas, dito isso, resta-nos responder a uma última indagação: qual a relação existente entre os direitos humanos e os direitos fundamentais? Na Constituição brasileira de 1988 vislumbramos tanto as expressões direitos humanos (art. 4°, II) como direitos fundamentais (art. 5°, §1°). Uma leitura desatenta poderia crer que o constituinte utilizou diversas denominações tratando do mesmo objeto, afirmação esta que não resiste a uma análise mais detida.

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Para um estudo mais aprofundado, ver ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 188-194.

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Para ser sanado este possível equívoco, utilizamo-nos do pensamento de Comparato (2010, p. 70-71), que, em síntese, ensina que os direitos fundamentais são os direitos humanos reconhecidos e positivados “pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos estados quanto no plano internacional”. Portanto, para que formalmente sejam vistos como direitos fundamentais, devem os direitos humanos ser positivados no texto constitucional, em conformidade às condições sociais e históricas atinentes a cada Estado. Somente o poder constituinte é capaz de vislumbrar as necessidades e anseios do próprio povo que representa, elevando estas aspirações sociais à categoria de direitos fundamentais passíveis de concretização pelo Poder Executivo e, em caso de violação ou omissão em seu cumprimento, assegurados pelo Judiciário. Não muito distante do acima exposto, Pérez Luño (apud SILVA, 1997, p. 177) vislumbra os direitos humanos como um

conjunto de facultades e instituciones que, em cada momento histórico, concretam lãs exigencias de la dignidad, la liberdad y la igualdad humanas, lãs cuales debem ser reconocidas positivamente pos los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional9.

Vale dizer, ainda, que os direitos fundamentais são, por excelência, direitos humanos, tendo em vista seu conteúdo ampliador e garantidor não só da dignidade da pessoa humana, como também da liberdade e da igualdade, através de valores ínsitos à pessoa, imprescindíveis para o desenvolvimento do homem em sua dimensão biológica, psíquica e espiritual, reunidos na figura dos direitos humanos (TOLEDO, 2003). É possível, portanto, afirmar que tanto os direitos fundamentais, quanto os direitos humanos, embora em algum ponto ligados ao que classicamente denominou-se direitos naturais, encontram-se em processo de amadurecimento e reconstrução na sociedade, enquanto estes (naturais) se mostram a-históricos e indiferentes ao espaço10. Não parece ser outra a lição de Piovesan (2010, p. 113), quando afirma que os direitos humanos possuem o

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conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional. 10 Adotando-se uma concepção clássica do direito natural, como absoluto, universal e supra-histórico, ou seja, “vale acima do direito positivo estabelecido pelo homem, vale para todos os homens e vale para todos os tempos” (KAUFMANN, 2004, p. 37).

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traço da historicidade, na medida em que não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Mencionando Bobbio, a referida autora ainda diz que “os direitos humanos nascem como direito naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares (quando cada Constituição incorpora Declarações de Direitos) para finalmente encontrar a plena realização como direitos positivos universais” (PIOVESAN, 2010, p. 113). Verifica-se, portanto, que embora coincidentes na origem, tanto os direitos humanos quanto os naturais, a partir de sua incorporação pelos Estados, desenvolvem-se segundo as aspirações históricas e necessidades sociais, estando, portanto, em um processo de permanente modificação e amadurecimento.

2.3 As primeiras declarações de direitos humanos

É cediço que o estudo dos acontecimentos pretéritos se presta a elucidar o homem contemporâneo no enfrentamento de novos problemas e na aplicação do que até então já foi descoberto, evitando, desse modo, o retrocesso. Mesmo já percorrida uma década, o século XXI desponta, ainda, como um imenso horizonte a ser descoberto, marcado pelo pluralismo (político, ideológico, jurídico etc.) e trazendo ao Direito a maturidade necessária para que seus operadores possam compreender que mais importante do que declarar direitos é concretizá-los, combinando a vontade política com a disposição de instrumentos concretos capazes de assegurar e ampliar o valor da dignidade da pessoa humana. Por tal razão, faz-se oportuna a compreensão do surgimento dos direitos humanos na história e de sua evolução no tempo. Uma das ocorrências mais remotas em que se invocou um direito humano contra o arbítrio de um poder soberano se deu na “Antígona”, de Sófocles11, estreada provavelmente em 441 a.C. A protagonista, que intitula a obra, jungida por um verdadeiro espírito de resistência e de desobediência civil, busca dar sepultamento digno ao seu irmão Polinice, considerado traidor da pátria12.

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Cf. SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM, 2008. Cf. MACIEL, Adhemar Ferreira. Um pouco de Antígona e de direito natural. Revista de Informação Legislativa, Brasília, DF, v.33, n.132, p.37-38, out./dez. 1996. 12

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Estudiosos de vários gêneros viram em “Antígona” a ocorrência de duas doutrinas que durante um grande período permaneceram contrapostas, quais sejam o juspositivismo e o jusnaturalismo. Embora tal diferenciação, conforme sustenta Adeodato (2002, p. 189), tornese possível somente após um alto grau de sofisticação, de complexificação social, é possível vislumbrar tal fato na referida obra. Segundo o autor,

para Antígona já está perfeitamente clara a ideia de que o direito que o tirano quer e o direito que ela quer são inteiramente diferentes: o dele é autorreferente, baseia-se em sua vontade de chefe; o que ela quer tem por base uma força maior que qualquer vontade, vem dos próprios deuses (ADEODATO, 2002, p. 189)

Depreende então que havia interesses opostos na história narrada por Sófocles. Em um pólo estaria a lei criada pelos homens, que proibia que Antígona sepultasse o irmão traidor, sob pena de ser-lhe ceifada a própria vida; de outro, o direito natural, que movia a protagonista no sentido de dar sepultamento digno ao seu irmão, independentemente do que previam as leis postas. Ilustrando esse embate, tem-se no trecho a seguir transcrito a manifestação de Antígona sobre as leis (im)postas pelo soberano, ao mandar que deixasse insepulto Polinice13:

Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou, nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que é mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram. (SOFÓCLES, 2008, p. 35-36)

Embora não se possa conceber “Antígona” efetivamente como um marco, no decorrer da História diversos movimentos e revoluções reivindicaram o reconhecimento de direitos humanos14, os quais foram conquistados com maior vigor somente no século XVIII, com as revoluções Americana e Francesa no período Iluminista15. Veja-se o seguinte trecho, em que Antígona informa à Ismene sobre o decreto de Creonte: “Não conheces o decreto de Creonte sobre nossos irmão? A um glorifica, a outro cobre de infâmia. A Etéocles – dizem – determinou dar, baseado no direito e na lei, sepultura digna de quem desce ao mundo dos mortos. Mas quanto ao corpo de Polinice, infaustamente morto, ordenou aos cidadãos, comenta-se, que ninguém o guardasse em cova nem o pranteasse, abandonado sem lágrimas, sem exéquias, doce tesouro de aves, que o espreitam famintas. (...) O assunto lhe é tão sério que, se alguém transgredir o decreto, receberá sentença de apedrejamento dentro da cidade (...)”. (SÓFOCLES, 2008, p. 8-9). 14 Não olvidamos que, embora o constitucionalismo seja expressão de uso mais recente na história, já desde a antiguidade pode-se notar a existência de um certo ideal de Constituição. Todavia, considerando a proposta do presente estudo, tomaremos como ponto de partida para uma reflexão as declarações de direitos 13

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Naquele período histórico se iniciaram as mais importantes declarações de direitos da modernidade, as quais serviram de base para diversos documentos constitucionais posteriores16. Pode-se afirmar, com Comparato (2010, p. 62), que o registro de nascimento dos direitos humanos na História é o artigo I da Declaração de Direitos de Virgínia, de 16 de junho de 1776, que diz: Todos os homens são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurança.

Buscando, do mesmo modo, a limitação do poder estatal e a enunciação dos direitos e garantias fundamentais, veio à lume, na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, com o fito de reavivar o sentimento de liberdade individual. Guardadas as fartas similitudes entre as duas declarações - as quais se adotam aqui como marcos iniciais -, o documento europeu não pretendeu buscar a felicidade como o americano. Como ensina Bobbio (2004, p. 83) ,

observando-se bem, há algumas diferenças de princípio: na Declaração de 1789, não aparece entre as metas a alcançar a “felicidade” (a expressão “felicidade de todos” aparece apenas no preâmbulo) e, por conseguinte, essa não é mais uma palavrachave desse documento, como era o caso, ao contrário, nas cartas americanas, a começar pela da Virgínia (1776), conhecida dos constituintes franceses, onde alguns surgidas a partir do século XVIII, época em que nasce o constitucionalismo liberal, conjugando-se ao Estado moderno. Somente para ilustrar, Moraes (2003, p. 33) considera como os mais importantes antecedentes históricos na Inglaterra das declarações de direitos humanos fundamentais os seguintes: a Magna Charta Libertatum, outorgada por João Sem-Terra em 15.06.1215, a Petition of Right, de 1628, o Habeas corpus Act, de 1679, o Bill of Rights de 1689 e o Act of Seattlemente, de 12.06.1701. 15 Vale citar, tomando por base a lição de Barroso (2009b, p.321), que o Iluminismo “designa a revolução intelectual que se operou na Europa, especialmente na França, no século XVIII. O movimento representou o ápice das transformações iniciadas no século XIV, com o Renascimento. O antropocentrismo e o individualismo renascentistas, ao incentivar a investigação científica, levaram á gradativa separação entre o campo da fé (religião) e o da razão (ciência), determinando profundas transformações no modo de pensar e de agir do homem”. 16 Ferreira Filho traz que as Declarações de Direitos precedem as Constituições, haja vista que são aquelas que rompem com o passado e reduzem, em texto solene, o pacto social. Nas suas palavras: “O pacto social prescinde de um documento escrito. Entretanto, nada proíbe que seja reduzido, em texto solene. Isto, inclusive, tem a vantagem da clareza e da precisão, bem como um caráter educativo. Tal documento o século XVIII cuidou de formalizar. Não é ele a Constituição que já o presume existente. É a declaração de Direito. (...) Só mais tarde, por economia de tempo e trabalho, é que se passou a estabelecer num mesmo documento a declaração de Direito (o pacto social) e a Constituição (o pacto político)” (FERREIRA FILHO, 2009, p. 5-6).

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direitos inherent (traduzido, de modo um pouco forçado, como “inata”) são protegidos porque permitem a busca da “felicidade” e da “segurança”.

Nota-se que a felicidade almejada é inerente, sim, aos documentos sociais que posteriormente surgiram, mas não aos do constitucionalismo liberal-individualista que imperou após as primeiras declarações. Não é por outra razão que Bobbio (2004, p. 83) diz que “à medida que tomou corpo a figura do Estado liberal e de direito, foi completamente abandonada a ideia de que fosse tarefa do Estado assegurar a felicidade dos súditos”17. O Estado Liberal, como se verá, pregou a liberdade como valor máximo da sociedade, acreditando na capacidade de cada indivíduo se autodeterminar e buscar a realização de suas metas e o alcance da felicidade por seus próprios meios. Em sintonia a esse entendimento, de cunho liberal, para Kant (apud BOBBIO, 2004, p. 99)

um governo fundado no princípio da benevolência para com o povo, como é o caso do governo de um pai em face dos filhos, ou seja, um governo paternalista (imperium paternale), no qual os súditos, como filhos menores que não podem distinguir entre o que lhes é útil ou prejudicial, são obrigados a se comportar passivamente, para esperar que o chefe do Estado julgue de que modo eles devem ser felizes, esse governo é o pior despotismo que se possa imaginar.

Com as primeiras declarações, os direitos humanos passam a ser vistos sob diferentes pontos de vista, sendo, porém, unânime o entendimento de que se perfazem como um meio de salvaguarda contra o poder absoluto dos governantes, marcando o núcleo substancial de diversas constituições18. De início, nota-se que as declarações agregam em si valores consubstanciados no reconhecimento de direitos humanos, os quais são destinados a assegurar, sobretudo, a liberdade individual, valor máximo da sociedade burguesa daquela época. De outro modo, os 17

Atualmente, no Congresso Nacional brasileiro, tramita a Proposta de Emenda Constitucional nº. 513/10, de autoria da Deputada Manuela D’ávila, do PcdoB/RS, que pretende inserir a busca da felicidade dentre os direitos sociais da Constituição brasileira de 1988, cuja enunciação passaria a ser a seguinte: “Art. 6º São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” Em verdade, tal projeto, embora possua alguma valia social, nada trará de novo à realidade social brasileira, porquanto a felicidade, no contexto dos direitos sociais, decorreria da efetivação dos direitos já existentes. Ademais, cumpre indagar sobre normatividade que possuirá tal direito social, caso positivado. 18 Para Moraes (2003, p. 34), “a ideia de constitucionalismo e supremacia de certas normas fundamentais sobre as demais sempre esteve centrada em um ponto fundamental: a necessidade de limitação e controle dos abusos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado” (grifos no original). Nota-se, ainda hoje, a recorrente menção a esses postulados nas diversas Constituições existentes, não sendo errôneo dizer que tais premissas, dentre outras, consubstanciam aquilo que se denomina de núcleo material da Constituição.

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direitos declarados tiveram também por escopo evitar a ingerência estatal na autonomia dos cidadãos. Não é outra a dicção do art. 2° da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Art. 2°. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”. O período marcado pelas declarações de direitos contribuiu também para o surgimento do constitucionalismo moderno19. A Declaração de 1789, por exemplo, estabelece que toda sociedade na qual não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação de poderes, não tem Constituição (art. 16). Nota-se, deste modo, que o ideal constitucional trazido na Declaração de 1789 está intimamente ligado ao reconhecimento de direitos fundamentais e à separação de poderes estatais. Fixados alguns apontamentos acerca do surgimento das primeiras declarações, insta adentrar ao tema das dimensões de direitos humanos, do qual decorre a própria evolução do constitucionalismo.

2.4 Do Estado Liberal ao Estado Democrático de Direito: uma breve análise das primeiras dimensões de direitos humanos

Inicialmente, deve-se ter em mente que a denominação Estado de Direito aqui utilizada diz respeito a três concepções do mesmo fenômeno, a liberal, a social e a democrática. O surgimento do Estado de Direito confunde-se com o surgimento do Estado Liberal, pois esta forma de organização estatal foi a primeira feição - ou etapa - assumida por aquele. Percorrer o processo evolutivo do Estado de Direito implica, inevitavelmente, o estudo das etapas de afirmação dos direitos humanos. Tomando por base a doutrina das dimensões de direitos, o estudo percorrerá o período de constituição e modificação do Estado Liberal, não olvidando da importância (e da insuficiência) do reconhecimento, tão somente,

Nas palavras de Saldanha (1982, p. 17) o constitucionalismo é, em verdade, “um movimento, um processo, uma tendência a um tempo doutrinário e institucional (...)”. Segundo o referido autor, o constitucionalismo funda-se, de modo geral, “sobre as bases mesmas da vida política moderna: o racionalismo, o laicismo, o individualismo burguês, a vida urbana. Mais diretamente, funda-se sobre o iluminismo e sobre o liberalismo: o iluminismo como corrente vinda da época de Leibniz e de Locke, postuladora de geometrismos e de direitos; o liberalismo (tanto econômico quanto político) como movimento crente em leis naturais e em liberdades, portulador de leis escritas e de controles para o poder” (Id., p. 20). 19

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dos direitos individuais e da necessidade posterior de haver um Estado preocupado em tutelar direitos sociais, cujos titulares inicialmente situavam-se na classe trabalhadora. Vale dizer que não se buscará aqui trazer as peculiaridades dos Estados e das Constituições que surgiram, tanto na América quanto na Europa, mas sim identificar o traço comum dos momentos constitucionais vividos, de modo que melhor se compreenda o surgimento e a evolução dos direitos fundamentais sociais. A justificativa para esta abordagem histórica deve ser bem compreendida. Os direitos fundamentais, como hoje positivados e interpretados, sofrem, direta ou indiretamente, as influências de sua afirmação histórica. O estudo de seu reconhecimento é necessário não somente para que se tenha ideia da importância de existir uma limitação ao poder estatal ou da necessidade de ampliação das funções do Estado, como também pelo fato de os direitos humanos constituírem o núcleo materialmente identificável das Constituições. De outro modo, a compreensão do atual Estado Democrático de Direito depende do estudo das etapas que o precederam. Pode-se afirmar, nesse prisma, que o próprio papel do Poder Judiciário foi influenciado por esta evolução, no que tange à interpretação e aplicação dos direitos fundamentais. Diante disso, torna-se imprescindível o estudo das etapas constitucionais subjacentes aos paradigmas do Estado de Direito, uma vez que o pensamento de cada época influencia no modo de entender e aplicar o Direito.

2.4.1 O Estado Liberal e a primeira dimensão de direitos humanos

A formação do Estado de Direito, de índole liberal, se deu concomitantemente aos grandes acontecimentos político-jurídico-sociais dos séculos XVII e XVIII20, como as revoluções: (i) Inglesa (Puritana e Gloriosa), que teve sua expressão mais significativa no Bill of Rights, de 1689; (ii) Americana, cujos princípios foram expressos na Declaração de Independência das treze colônias americanas, em 1776; e (iii) Francesa21, que teve sobre as

Conforme Ferreira Filho (2009, p.2), “A expressão Estado de Direito é posterior à sua esquematização. É devida Welcker, aparecendo pela primeira vez em 1813”. 21 Neste ponto, insta trazer o pensamento de Hannah Arendt, quando diz que a Revolução Gloriosa “não foi vista como uma revolução, mas como uma restauração do poder monárquico aos seus direitos pretéritos e à sua glória. (...) Foi a Revolução Francesa e não a Americana que colocou fogo no mundo. (...) A triste verdade na matéria é que a Revolução Francesa, que terminou em desastre, entrou para a história do mundo, enquanto a Revolução 20

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demais a virtude de dar universalidade aos seus princípios, os quais foram expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (DALLARI, 1989, p.125). Diante desses acontecimentos, o Estado de Direito surge com o principal escopo, que o identifica, de impor barreiras ao governo dos homens, mormente quando dotados de poderes absolutos (decorrentes da vontade divina)22, por meio da separação dos poderes23 e da declaração/formalização e garantia24 dos direitos naturais – segundo Recaséns Siches (apud SALDANHA, 1987, p. 39), a Revolução Francesa foi uma “apoteose do Direito Natural”. Como a própria denominação sugere, um Estado de Direito não é fundado na vontade absoluta dos homens, mas no império da lei25. Conforme Elías Díaz (apud MENDES, COELHO e BRANCO, 2009, p.64), pode-se afirmar que o Estado de Direito é aquele cujo poder e atividade estão regulados e controlados pela lei, entendo-se “direito” e “lei”, nesse contexto, como expressão da vontade geral (volonté générale). Citando Zagrebelsky, Barroso (2009, p. 243) ensina que a expressão ‘Estado de direito’ traz em si um valor e uma direção. O valor é a eliminação da arbitrariedade na relação da Administração com os indivíduos; a direção é a inversão da relação entre poder e Direito, que deixa de ser, como no Estado absolutista e no Estado de polícia – rex facit legem – e passa a ser lex facit legem.

Americana, com seu triunfante sucesso, permaneceu como um evento de importância pouco mais que local”. (apud BARROSO, 2009b, p.322). 22 Ensinam Streck e Morais (2006, p. 45) que a “base de sustentação do poder monárquico absolutista estava alicerçada na idéia de que o poder dos reis tinha origem divina. O rei seria o ‘representante’ de Deus na Terra, o que lhe permitia desvincular-se de qualquer vínculo limitativo de sua autoridade”. 23 Partindo da análise do entendimento liberal ortodoxo, Saldanha (1987, p. 38) salienta que “o Estado deveria ter por núcleo um sistema de garantias, e a primeira garantia seria a própria separação de poderes. Daí a fundamental e primacial relevância do ‘princípio’ (para as críticas posteriores, o ‘dogma’) da separação de poderes (...)”. Com efeito, tal princípio prestava-se a limitar o poder estatal, servindo, como sustenta Bonavides (1993, p. 61), de “escudo aos direitos de liberdade”. Prosseguindo, afirma este autor que a elaboração da técnica da separação de poderes deve ser entendida como “a arma de que se valeu a doutrina para combater sistemas tradicionais de opressão política”. O princípio em comento sofreu, com o advento do Estado Social de Direito, fortes mutações teleológicos, uma vez que o fundamento de sua elaboração era precisamente a redução das atividades do Estado, as quais no constitucionalismo social foram substancialmente alargadas. 24 Ainda conforme Saldanha (1987, p. 38), o Estado Liberal, “teoricamente nascido do consentimento dos indivíduos, tinha por finalidade fazer valerem os direitos destes. Daí a necessidade de estabelecer os limites do poder, mais as relações entre este poder e aqueles direitos. Ou seja, o Estado existiria para garantir tais direitos” (grifos no original). 25 Nas lições de Chevallier (2009, p. 201-202), “O conceito de ‘Estado de direito’ apareceu no século XIX na doutrina jurídica alemã (Rechtsstaat), antes de ser transposto para a França e, depois, para outros países europeus, à custa de uma série de adaptações (...). O Estado de direito é tanto o Estado que age por meio do direito, como o Estado que se subordina ao direito, como ainda o Estado cujo direito comporta certos atributos intrínsecos; essas três versões (instrumental, formal, substancial) desenham várias figuras possíveis, vários tipos de configurações do Estado de direito, que não são isentos de implicações políticas”.

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O Estado de Direito fez-se de terreno fértil para o surgimento do constitucionalismo e para as Declarações de Direitos. As primeiras Declarações, posteriormente fortificadas pelas Constituições, reconheciam a existência apenas de direitos individuais universais. Tal reconhecimento se dava, no entanto, de forma aparente, porque determinados direitos, na realidade, não eram fruídos de forma universal, como, por exemplo, o direito de sufrágio26. O Estado de Direito, em sua primeira feição (liberal), foi, segundo Comparato (2010, p.63), “a fórmula política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime27 – o clero e a nobreza - e tornar o governo responsável perante a classe burguesa”. Nesse sentido, ainda no século XVIII, por não se contentar apenas com o poder econômico, a burguesia queria tomar para si o poder político, o qual era, até então, “privilégio da aristocracia, legitimando-a como poder legalracional, sustentado em uma estrutura normativa a partir de uma ‘Constituição’ – no sentido moderno do termo – como expressão jurídica do acordo político fundante do Estado” (STRECK e MORAIS, 2006, p. 51). A ascensão política da burguesia prestou-se a legitimar sua ideologia liberal, pautada na preservação da liberdade de comércio e na enunciação de direitos individuais, “que só de maneira formal e parcial se concedem também aos indivíduos das classes inferiores” (DÍAZ apud MENDES, COELHO e BRANCO, 2009, p.68). Com o liberalismo surge a noção de sujeito de direitos, sendo este capaz de, por si, reger unicamente sua relações, surgindo nesse período, o contrato e o mercado28. Com o surgimento das primeiras Constituições, os Estados passaram a garantir os direitos inicialmente declarados e a conceberem os indivíduos não mais como súditos, mas como cidadãos. Nesse sentido, Ferrajoli (1995, p.860) ensina que

[e]s así como la transformación del estado absoluto en estado de derecho acontece a la vez que la transformación del súdito en ciudadano, es decir, en sujeto titular de

Segundo Bonavides (1993, p. 31), “a burguesia enunciava e defendia o princípio da representação. Mas representação, a meio caminho, embaraçada por estorvos, privilégios, discriminações”. 27 Acerca do rompimento do Antigo Regime pela Revolução Francesa, ver TOCQUEVILLE, Alexis de. O antigo regime e a Revolução. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. Organizado por J.-P. Mayer. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. Citando Tocqueville, Saldanha (1987, p. 38) salienta que a “Revolução Francesa, implantando um novo tipo de Estado, não desfez o arcabouço administrativo do Estado absoluto. As características centralizadoras foram mantidas (...)”. 28 Zippelius (1997, p. 377) afirma, assim, que o contrato “é a expressão e o instrumento da autonomia privada mediante a qual as partes interessadas conformam, elas próprias, os direitos e deveres que lhes dizem respeito. Este padrão de regulação encontra-se em contraposição com o padrão do ‘ser administrado’, ou seja, a determinação destas relações jurídicas por uma instituição supra-ordenada”. 26

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derechos ya no sólo ‘naturales’ sino ‘constitucionales’ frente al estado, que resulta a su vez vinculado frente a él. El llamado contrato social, una vez traducido a pacto constitucional, deja de ser una hipótesis filosófico-política para convertirse en un conjunto de normas positivas que obligan entre sí al estado y al ciudadano, haciendo de ellos dos sujetos con soberanía recíprocamente limitada29.

É sob a égide do paradigma de Estado de Direito liberal-burguês que se deu o surgimento da primeira geração/dimensão de direitos fundamentais. A classificação dos direitos fundamentais em gerações levou alguns juristas a não aceitarem essa fragmentação, ao fundamento de que a “sucessão generacional” implicaria, certamente, na superação das gerações anteriores pelas posteriores30. Em contrapartida, se fala em uma teoria da interdependência dos direitos fundamentais, de modo que estes não mais sejam vistos como meros marcos de um processo histórico-cronológico. Por tais motivos é que no presente trabalho será utilizada a terminologia dimensões de direitos fundamentais, no lugar de gerações. Com isso é possível conceber que os direitos fundamentais não se sucedem, ou se superam, mas se complementam e se aprimoram, no sentido de que a evolução dos direitos humanos agrega novos valores à concepção dos mesmos. Superada a questão terminológica, vale anotar que os direitos fundamentais de primeira dimensão possuem estreita relação com o pensamento iluminista e jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, no qual nomes como Locke, Rousseau, Kant31, dentre outros, trouxeram uma nova concepção de liberdade, afirmando a finalidade precípua do Estado como sendo a realização da liberdade do indivíduo32.

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[é] assim como a transformação do Estado Absoluto em Estado de Direito acontece com a transformação do súdito em cidadão, diz-se, em sujeito titular de direitos já não são “naturais”, mas, sim, “constitucionais” frente ao Estado, que, por sua vez, vincula-se a ele. O chamado contrato social, uma vez traduzido a pacto constitucional, deixa de ser uma hipótese filósofico-política para converter-se em um conjunto de normas positivas que obrigam entre si o Estado e o cidadão, fazendo deles sujeitos com soberania reciprocamente limitada. 30 Para Antônio Augusto Cançado Trindade (apud MENDES, COELHO e BRANCO, 2009, 759-760), por exemplo, “trata-se de uma classificação que, além de inconvincente, historicamente indemonstrável e juridicamente infundada, ainda tem servido de válvula de escape para que muitos governos, descomprometidos com a efetivação dos direitos sociais, nada façam para concretizá-los, a pretexto de que mais importante é cuidar dos direitos civil e políticos – o que ele já ‘fazem’ -, até porque, para observá-los, na quase-totalidade dos casos, basta ‘não fazer nada’, ou seja, não cometer violências contra os cidadãos”. 31 Para um estudo do pensamento kantiano no contexto do liberalismo, ver: BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 77-106. 32 Segundo Saldanha (1987, p. 42), o Estado Liberal “era uma sistemática de explicitações, montada a partir da ideia de que o poder existe com base no consentimento dos homens, e de que ele existe para garantir a tais homens uma série de liberdade”.

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Acerca do reconhecimento e da declaração dos direitos de primeira dimensão, salienta Barroso (2000, p.100) que

os direitos individuais, de origem marcada pelo jusnaturalismo, tiveram como primeira manifestação ‘legislativa’ a Declaração de Direitos inglesa, de 1689. Não obstante, o seu ciclo de formação e aperfeiçoamento encontra-se ligado ao pensamento iluminista francês do século XVIII e à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.

Especificamente a respeito da Declaração Francesa de 1789, salienta Ferreira Filho (2009, p.22) que sua finalidade foi de “proteger os direitos do Homem contra os atos do Governo”. Com base nisso, pode-se afirmar que os direitos fundamentais individuais (primeira dimensão) são os assecuratórios das liberdades clássicas, negativas ou formais e dos direitos políticos. São, em verdade, direitos negativos, pois importam em uma abstenção, em um não-fazer por parte do Estado. Os direitos de primeira dimensão garantem aos indivíduos a salvaguarda contra o poder estatal, pois quanto maior o leque de liberdades (negativas), menor será a possibilidade de o Estado interferir na autonomia individual dos mesmos. A tarefa do Estado é limitada à manutenção da ordem e da segurança, de modo que “toda a intervenção do Estado que extrapole estas tarefas é má, pois enfraquece a independência e a iniciativa individuais”33 (STRECK e MORAIS, 2006, p. 61). A primeira dimensão de direitos diz respeito aos direitos fundamentais como a vida, a liberdade34 (de locomoção, de pensamento etc.), a igualdade perante a lei (isonomia formal), a propriedade e outros. Do ponto de vista econômico, o liberalismo traz a liberdade de comércio e de contrato. Conforme tratou-se de anotar, a primeira dimensão abrange também os direitos políticos, entendendo esses, em síntese, como o direito de nacionalidade e o direito de cidadania. 33

Conforme Zippelius (1997, p. 389), a ideia pela qual não deve o Estado ultrapassar/extrapolar seus fins identifica-se com o que hoje se denomina por princípio da proibição do excesso, o qual foi “criado” inicialmente pela Corte Constitucional alemã, sendo frequentemente utilizado pela jurisprudência brasileira como uma das faces protetivas dos direitos fundamentais, ao lado do princípio da proibição da proteção insuficiente. 34 Ferreira Filho (2001, p.283) traz o pensamento de Duverger, que estabelece dois grupos de direitos. Primeiramente, as liberdades-limites, como, p.ex., liberdade pessoal, direito de propriedade, liberdade de comércio, de indústria, de religião etc., que impedem a ingerência do Estado numa esfera íntima da vida humana. E também as liberdades oposição, por exemplo, liberdade de imprensa, de reunião, de manifestação etc., que servem de meio de oposição política. Streck e Morais (2006, p. 58-59), por sua vez, trazem dentro do núcleo moral do liberalismo as “liberdades individuais de pensamento, expressão, crença etc.; civil, que indicam os canais e as áreas livres e positivas da atividade e da participação humanas; sociais, que correspondem ao que chamamos de oportunidade de mobilidade social, sendo que todos têm a possibilidade de alcançar uma posição na sociedade compatível com suas potencialidades”.

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O pensamento que guiava o liberalismo era, pelo que já se pode notar, o mínimo de interferência do Estado na vida dos cidadãos35. Não cabia ao Estado, portanto, decidir acerca de assuntos ínsitos ao indivíduo, como por exemplo, sobre a crença ou moralidade dos súditos. Porém, foi no campo econômico que mais nitidamente se viu as mudanças propostas pelo Estado Liberal. Nesse sentido, cabia ao Estado tão-somente as funções de garantir a segurança e a propriedade. Quanto ao resto, estando o caminho livre à iniciativa de cada um, cabia a cada indivíduo reger suas relações e buscar a realização de seus desejos da forma que melhor lhe aprouvesse. O Estado Liberal legou ao mundo ocidental grandes avanços. Não se trata de enumerá-los, mas de apontar os principais. Para Streck e Morais (2006, p. 69), o “projeto liberal teve como consequências: o progresso econômico; a valorização do indivíduo, como centro e ator fundamental do jogo político e econômico; técnicas de poder como poder legal, baseado no direito estatal (...)”. A respeito dos benefícios trazidos por esta nova organização estatal, Dallari (1989, p. 235) também diz que

o Estado liberal, com um mínimo de interferência na vida social, trouxe, de início, alguns inegáveis benefícios: houve um progresso econômico acentuado, criando-se as condições para a revolução industrial; o indivíduo foi valorizado, despertando-se a consciência para importância da liberdade humana; desenvolveram-se as técnicas de poder, surgindo e impondo-se a idéia do poder legal em lugar do poder pessoal. (grifos no original)

Não obstante a prodigiosa evolução ocorrida neste período, o individualismo atingiu patamares tão elevados que a classe detentora do poder cerrou os olhos às injustiças ocorridas sob o manto protetor (ou minimamente intervencionista) do Estado que se estabelecera, que somente privilegiava os economicamente fortes. Nas palavras de Bonavides (1993, p. 45), a liberdade então reinante “expunha, no domínio econômico, os fracos à sanha dos poderosos”. A História nos mostra que o Estado Liberal percorreu o caminho para seu próprio infortúnio, se é que se pode dizer assim. No cenário europeu do final do século XVIII, a classe trabalhadora, que posteriormente se organizou sob o sistema socialista, sofreu Como bem ponderam Streck e Morais (2006, p. 68), “o Estado negativo – com um intervencionismo zero – nunca foi experimentado, pois, desde sua criação, a atividade estatal sempre se deu, em maior ou menor escala, voltada para fins distintos, porém algum grau de intervencionismo sempre foi experimentado, até mesmo porque, em caso contrário, estaríamos diante da própria supressão do Estado como ente artificial que deve responder às características postas pelo Contrato Social”. 35

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drasticamente com o governo da burguesia. Aos trabalhadores, a declaração de igualdade formal em nada adiantou, pois “patrões e operários eram considerados, pela majestade da lei, como contratantes perfeitamente iguais em direitos, com inteira liberdade para estipular o salário e as demais condições de trabalho” (COMPARATO, 2010, p.65-66). A grande oferta por mão-de-obra, consequência direta da revolução industrial, gerava, por via reflexa, a redução da remuneração percebida e estimulava a manutenção das péssimas condições de trabalho. Nesse sentido, bem assentou Dallari (1989, p.258), para quem “o individualismo exacerbado afirmou a liberdade como um valor, mas limitou-se a considerá-la um direito,sem se preocupar em convertê-la numa possibilidade” (grifos no original)36. Nas palavras de Comparato (2010, p.66), o resultado dessa atomização social, como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do século XIX. Ela acabou, afinal, por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e por provocar a indispensável organização da classe trabalhadora.

Desse modo, após a organização da classe proletária, novos movimentos sociais provocaram mudanças relevantes na estrutura política liberal, forçando o Estado a assumir uma postura asseguradora não só de direitos individuais. O Estado de Direito inicia um processo de mutação e também de ampliação de suas funções, caminhando para a adoção de uma postura ativa perante os cidadãos e preocupando-se com os problemas não só individuais, mas, sobretudo, sociais.

2.4.2 O Estado Social de Direito e a segunda dimensão de direitos humanos – crises de implementação (“O curso das idéias pede um novo leito”37)

Diversos acontecimentos, cuja gênese se deu na transição dos séculos XVIII para o XIX, fizeram com que o Estado de Direito, até então liberal, agregasse à sua figura abstencionista uma função positiva, empenhada em resguardar também determinados direitos

Como bem assinalado por Zippelius (1997, p. 379), “a benção de uma economia que se desenvolvesse sem intervenções nem restrições por parte do Estado revelou-se, para milhares de operários apanhados pela engrenagem das novas fábricas e minas, como sistema de exploração deshumana”. 37 A expressão é de Paulo Bonavides (1993, p. 30). 36

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sociais38. Em verdade, múltiplos fatores contribuíram para tal mudança. No entanto, abordálos todos no presente trabalho comprometeria sua objetividade, razão pela qual forçoso apenas remetermos o leitor a algumas obras, mais afetas à Teoria do Estado e à Ciência Política, para a melhor compreensão do contexto global da época ora estudada39. Dado o contexto revolucionário surgido com a industrialização e a intensa urbanização, os movimentos exsurgentes encontraram amparo e força ideológica no Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848) e nas doutrinas marxistas, que criticavam o capitalismo burguês e o sentido formal de direitos do homem proclamado no século XVIII, postulando liberdade e igualdade materiais40. Essas reivindicações justificavam-se pelo simples fato de que “a liberdade, consagrada nas Constituições, não tinha chegado até aqueles que só possuíam sua força de trabalho” (DALLARI, 1989, p.240). Em razão disso, grandes foram os esforços da classe proletária no sentido de se exigir do Estado uma atitude interventiva e protecionista. Importa acrescentar, com apoio nas lições de Zippelius (1997, p. 381) que “além de regulações meramente intervencionistas são também necessárias prestações positivas no quadro da previdência social do Estado a fim de satisfazerem de forma adequada importantes necessidades vitais”. Diante desses fatos, o Estado Liberal quedou-se, surgindo, por sua vez, o Estado Social de Direito, também denominado Estado do bem-estar social (ou, na denominação americana, Welfare State). Conforme Zippelius (1997), este modelo de Estado situa-se no

De acordo com Comparato (2010, p.66), “o reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico e social foi o principal benefício que a humanidade recolheu do movimento socialista, iniciado na primeira metade do século XIX. O titular desses direitos, com efeito, não é o ser humano abstrato, com o qual o capitalismo sempre conviveu maravilhosamente. É o conjunto dos grupos sociais esmagados pela miséria, a doença, a fome e a marginalização”. 39 Das fartas obras relacionadas ao assunto, importa mencionar as por nós reputadas mais condizentes aos fins propostos na presente pesquisa: STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 69-78; BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 5. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 177-200. 40 Importa esclarecer que o Estado Social não se confunde com o Estado Socialista. Aquele estaria, na verdade, no curso do caminho para a consecução deste. Para Bonavides (1993, p. 182-183), um Estado poderia ser adjetivado de socialista no momento em que buscasse remover o Estado capitalista, “ditando-lhe a esfera de ação, alargando o número das empresas sob seu poder e controle, suprimindo ou estorvando a iniciativa privada (...)”. O autor traz ainda os seguintes exemplos, pelos quais é possível ver um traço socialista nos Estados: “Quando Attlee passa para o Estado a exploração das minas de carvão da Inglaterra, ele dá um passo para o socialismo. Quando Churchill, Eden e Macmillan recuam daquela direção e revogam a referida medida, retrocedem eles à ordem capitalista. Quando o Brasil cria o monopólio estatal do petróleo e funda a Petrobrás, não toma essa iniciativa doutrinariamente em nome de um Estado social, mas de um Estado socialista, embora não o confesse” (BONAVIDES, 1993, p. 183). 38

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campo de tensão entre as tendências liberais e as totalitárias41, e possui como principais componentes o bem-estar público e a busca da justiça social. Esse novo modelo de organização política teve por escopo superar o individualismo reinante no Estado liberal, buscando, para tanto, o implemento de instrumentos que garantissem condições mínimas de subsistência por meio da promoção da igualdade material e da realização da justiça social. Afirma-se, nesse contexto, que o surgimento do Welfare State implica o desaparecimento do caráter assistencial, caritativo da prestação de serviços, passando direitos como os de alimentação, renda, saúde, habitação, educação, dentre outros, a figurarem como próprios dos cidadãos (STRECK, 2002). Para Bonavides, um Estado seria digno de intitular-se social quando,

coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá a trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa privada (...). (1993, p. 182)

A maior contribuição operada pelo Estado Social na seara do Direito se deu, evidentemente, pela proclamação de direitos sociais e econômicos42. Embora, de forma específica, os direitos sociais consagrados fossem, em sua maioria, relacionados aos trabalhadores, o Estado Social prestou-se ao amadurecimento do conceito e amplitude dos direitos fundamentais, que, nesse período, não mais eram vistos tão-somente como uma salvaguarda do indivíduo contra o arbítrio estatal. Trazia consigo, de outro modo, o dever

Segundo o autor, é tarefa interminável encontrar um “justo meio” entre a tutela totalitária e a tendência liberal. Trata-se, em verdade, de um movimento pendular a relação entre o Estado-providência e o liberalismo, não podendo-se olvidar que tal dilema envolve “conceder liberdade a menos, sufocando, desta forma, uma necessidade elementar, ou deixar liberdade a mais, abrindo assim demasiado a porta às possibilidades de abuso a que se está sempre disposto a recorrer” (ZIPPELIUS, 1997, p. 381). 42 Para Elías Díaz (apud MENDES, COELHO e BRANCO, 2009, p.68), o Estado Social de Direito buscou a “superação do individualismo, por meio do intervencionismo estatal e da atenção especial aos chamados direitos sociais”. 41

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prestacional. Deveras elucidativa, nesse sentido, as palavras de Zippelius (1997, p. 396) para quem

[o]s direitos fundamentais convertem-se, no Estado social, também em fundamentos de direitos a prestações face ao Estado, ou pelo menos em fundamentos de tarefas do Estado: as garantias de liberdade são aqui entendidas não só como permissão do laissez faire, mas também como garantias das condições do desenvolvimento da liberdade. O princípio da igualdade de tratamento converte-se em veículo para alcançar além de uma garantia jurídica meramente formal, um nivelamento social e principalmente económico. (grifos no original)

O documento que marcou o início da transição da concepção liberal para a social foi a Constituição francesa de 1848, mormente em seu art. 13, ao dizer que o Estado estabelecerá “trabalhos públicos para empregar os braços desocupados”, visando, portanto e, de certo modo, a propiciar um meio para erradicar a miséria e a improdutividade dos cidadãos. Neste sentido, com relação à Constituição Francesa de 1848, afirma Comparato (2010, p.182) que “não se pode deixar de assinalar que a instituição de deveres sociais do Estado para com a classe trabalhadora e os necessitados em geral, estabelecida no art. 13, aponta para a criação do que viria a ser o Estado do Bem-Estar social, no século XX”. Daí em diante, diversos outros documentos marcaram a definição do traço social do Estado que surgia e da própria noção de direitos fundamentais. São dessa época também as doutrinas sociais da Igreja, materializadas na encíclica Rerum Novarum, editada pelo Papa Leão XIII em 1891; a Constituição Mexicana de 1917, considerada por alguns como o marco consagrador da nova concepção de direitos fundamentais; a Declaração Russa, de janeiro de 1918; e a Constituição alemã de Weimar, de 191943. Acerca da importância histórica da Constituição mexicana de 5 de fevereiro de 1917, Comparato (2010, p. 190) afirma que este foi o primeiro documento a atribuir aos direitos trabalhistas a qualidade de direitos fundamentais. Tal é sua importância que a Constituição de Weimar, em 1919, trilhou a mesma via da Carta mexicana, e todas as convenções aprovadas pela então recém-criada OIT (Organização Internacional do Trabalho), na Conferência de Washington do mesmo ano de 1919, regularam matérias já constantes da 43

Cf. PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A Constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social à luz da Constituição Mexicana de 1917. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 43 n. 169, p. 101-126. jan./mar. 2006

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“Constituição Política dos Estados Unidos Mexicanos”, quais sejam: a limitação da jornada de trabalho, a proteção da maternidade, a idade mínima de admissão de empregados nas fábricas e o trabalho noturno dos menores na indústria. Nas palavras de Comparato, a Constituição mexicana

firmou o princípio da igualdade substancial de posição jurídica entre trabalhadores e empresários na relação contratual de trabalho, criou a responsabilidade dos empregadores por acidentes do trabalho e lançou, de modo geral, as bases para a construção do moderno Estado Social de Direito. Deslegitimou, com isso, as práticas de exploração mercantil do trabalho, e portanto da pessoa humana, cuja justificativa se procura fazer, abusivamente, sob a invocação da liberdade de contratar (COMPARATO, 2010, p. 193).

Na Europa, o documento que inicialmente reconheceu os direitos sociais dos cidadãos foi a Constituição de Weimar, advinda como produto da grande guerra de 19141918. A situação gravíssima em que jazia a Alemanha após a primeira Guerra serviu de mola propulsora para a elaboração de um documento cuja finalidade não era tão-somente reconhecer a independência do indivíduo, mas criar um mínimo de condições que possibilitariam sua independência social e o reerguimento do próprio Estado. Nesse sentido, ensina Barroso (2009, p.34) que a Constituição de Weimar, de 11 de agosto de 1919, foi elaborada em um contexto de intensa turbulência política, tornando-se um dos documentos constitucionais mais influentes da história, não obstante sua curta vigência, encerrada, de fato, em 1933. Neste mesmo sentido, ensina Bonavides (2001, p.168) que

logo no período de entreguerras surgiu o modelo redentor: o constitucionalismo de Weimar. Depois de malograr na Alemanha ao tentar concretizar o Estado social, entrou ele, porém, a inspirar, com a energia do novo pensamento constitucional de matrizes sociais, os grandes projetos de Constituição que a Europa e boa parte do mundo buscavam estabelecer. Abria-se assim a era dos direitos da segunda geração, considerados, então, na categoria dos direitos fundamentais, sendo portanto a grande novidade constitucional do século.

Acerca da Constituição alemã de 1919 e da proclamação de direitos sociais, também se manifesta Ferreira Filho (2009, p.49), destacando como questões relevantes

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a sujeição da propriedade à função social (...), a repartição das terras (reforma agrária) (art. 155), a possibilidade da ‘socialização’ de empresas (art. 156), a proteção ao trabalho (art. 157), o direito de sindicalização (art. 159), a previdência social (art. 161), a co-gestão das empresas (art. 165)44.

Pode-se dizer, portanto, tomando por base as lições de Jorge Miranda (2003), que a Constituição do Reich alemão, de 11 de agosto de 1919, foi a primeira das grandes Constituições europeias a interessar-se profundamente pela questão social, contrastando, assim, com a aparente neutralidade liberal. Em elucidativa síntese, à qual aqui nos filiamos, Streck e Morais (2006, p. 78) ensinam que o Estado Social de Direito

emerge definitivamente como consequência geral das políticas definidas a partir das grandes guerras, das crises da década de 1930, embora sua formulação constitucional tenha se dado originalmente na segunda década do século XX (México, 1917, e Weimar, 1919). O new deal americano de Roosevelt, o keynesianismo e a política social do pós-Segunda Guerra na Inglaterra estão entre os fatores relevantes que demonstram a estrutura que está se montando. Com a I Guerra Mundial, tem-se a inserção definitiva do Estado na produção (indústria bélica) e distribuição (alimentos etc.); com a crise de 1929, há um aumento das despesas públicas para a sustentação do emprego e das condições de vida dos trabalhadores; nos anos 1940, há a confirmação desta atitude interventiva, instaurando-se a base de que todos os cidadãos como tais têm direito a ser protegidos contra dependências de curta ou longa duração.

Na clássica divisão dos direitos fundamentais em dimensões, os direitos sociais se situam na segunda categoria, pareados aos direitos econômicos e culturais. Como já assentado, o modelo liberal-burguês demonstrou a insuficiência das classes destituídas de poder econômico se autodeterminarem em busca de seus desejos, fazendo-se necessária a providência

estatal

no

sentido

de

garantir

condições

existenciais

mínimas

aos

hipossuficientes, mediante a promoção de direitos básicos, como a educação, o trabalho em

44

Abordando a Constituição de Weimar, de 1919, Jorge Miranda (2003, p. 204), também destaca alguns temas dignos de nota: “[a] relevância constitucional dos problemas sociais traduz-se primacialmente em: 1.º) a regulamentação de domínios até então esquecidos, como o casamento (art. 119.º), a juventude (art. 120.º), a educação (arts. 142.º e segs.) ou a vida económica (arts. 151.º e segs); 2.º) a atribuição aos cidadãos de direitos sociais; 3.º) as limitações impostas ao princípio da liberdade contratual (art. 152.º) e à propriedade privada (art. 153.º), em virtude da função social que desempenham”. Na vigente Constituição brasileira, diversos são os dispositivos que, claramente, sofreram influência desta concepção de Estado, como os artigos 1º, IV, 3º, 6º, 193 e seguintes, somente para citar alguns.

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condições dignas, a seguridade social e outros. Para Comparato (2010, p.206), os sujeitos destinatários desses novos direitos

são grupos sociais inteiros, e não apenas indivíduos, que passam a exigir dos Poderes Públicos uma orientação determinada na política de investimentos e de distribuição de bens; o que implica uma intervenção estatal no livre jogo do mercado e uma redistribuição de renda pela via tributária.

Verificada a situação gerada pelo modelo liberal, pode-se concluir que a liberdade, quando minimamente afetada, é capaz de gerar as condições mais drásticas de desigualdade. A autonomia da vontade dos cidadãos para firmarem compromissos por sua própria conta e risco não impedia que os mais fortes, sobretudo economicamente, se destacassem. Por tal razão é que Barroso (2000, p.101) salienta que a intervenção estatal45 destina-se a neutralizar as distorções econômicas geradas na sociedade, assegurando direitos afetos à segurança sociais, ao trabalho, ao salário digno, à liberdade sindical, à participação no lucro das empresas, à educação, ao acesso à cultura, dentre outros.

Logo, diante da iminente necessidade de se buscar a igualização das classes, viu-se como o instrumento hábil à consecução de tal desiderato a enunciação dos direitos sociais, ultrapassando, mas não suprimindo, a formalização dos direitos de primeira dimensão. Tal forma de intervenção caracteriza-se como indireta, pois o Estado não participa ativamente no cenário econômico, uma vez que, neste caso, o Estado exerce, efetivamente, atividade econômica, estando pareado aos agentes privados. No âmbito dos direitos humanos até então concebidos, enquanto os direitos individuais objetiva(ra)m afastar as ingerências do poder estatal no tocante à liberdade individual, os direitos genericamente denominados sociais passavam a garantir das liberdades materiais, para o que deve o Estado implementar políticas públicas que garantam aos cidadãos condições igualitárias de convivência social.

45

O intervencionismo, de acordo com as lições de Streck e Morais, é verificado somente na primeira fase da decadência do regime liberal. Após essa intervenção, que se dava muitas vezes de forma esporádica e circunstancial, a segunda fase é marcada por um “dirigismo”, pelo qual o Estado “passa a ser mais firme e coerente, com atos sistemáticos de ajuda e reforço à iniciativa privada, inclusive com objetivos políticoeconômicos predeterminados”. O último estágio é a “planificação”, que possibilita previsões que abrangem maior período temporal, possibilitando a análise econômica global. (STRECK e MORAIS, 2006, p. 77).

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Nas palavras de Azambuja (2003, p.168), os direitos individuais “constituem, em essência, obrigações negativas para o Estado, isto é, a proibição de os poderes públicos agirem contra a vida, a propriedade, a liberdade de locomoção, de culto, de expressão de pensamento dos indivíduos”, enquanto os direitos sociais “são normas de ação, obrigações positivas, para o Estado, de promover, assegurar e melhorar a saúde pública e a assistência social sob todas as suas formas”. São direitos positivos, pois dependem das prestações estatais para efetivar-se. Nesse período histórico de alargamento das funções estatais, com a inserção dos direitos de segunda dimensão nos textos constituintes, tem início o que se convencionou denominar de “constitucionalismo social”, que para Barroso (2009, p.65) é o

consagrador de normas de proteção aos trabalhador, emblematicamente representado pela Constituição mexicana, de 1917, e pela Constituição Alemã de Weimar, de 1919. Nos Estados Unidos, essa modificação do papel do Estado veio com o New Deal, conjunto de políticas públicas intervencionistas e de proteção dos direitos sociais, implementado pelo Presidente Roosevelt ao longo da década de 30. No Brasil, a Constituição de 1934 foi a primeira e dedicar um capítulo à ordem econômica e social.

Em razão do caráter preponderantemente positivo da atuação estatal, os direitos sociais são definidos por alguns autores como direitos de crédito46, consubstanciando uma possibilidade de os seus titulares exigirem do Estado determinada prestação. Esta característica determinante implica na necessidade de o Estado garantir a concretização dos direitos sociais (prestacionais) mediante a promoção de políticas públicas. Segundo o ensinamento de Grau (2003, p. 26), “a expressão políticas públicas designa todas as atuações do Estado, cobrindo todas as formas de intervenção do poder público na vida social” (grifos no original). Desse modo, as políticas públicas se configuram como o meio utilizado pelo Estado para a efetivação dos direitos sociais e, consequentemente, para a consecução do almejado bem-estar. Fixados estes apontamentos e compreendidos os Nesse sentido, insta trazer à lume a lição de Clémerson Clève, quando diz que o “nascimento de um conjunto de direitos de crédito frente ao Estado (saúde, alimentação, habitação, etc.) altera profundamente a natureza dos direitos humanos. Estes agora serão, a um tempo, liberdade e créditos, do indivíduo (ou grupo) frente o Estado. Se as liberdades se manifestavam através de uma prestação prevalentemente negativa do poder público (abstenção do Estado), os créditos exigem uma prestação prevalentemente positiva, ou seja, a disposição de medidas públicas dirigidas à solução das demandas tipificadas como direitos.” E prossegue: “Os direitos de crédito são o solo sobre o qual floresce a capacidade, complemento indispensável das liberdades no e contra o Estado. E estas, como numa cadeia contínua, são o terreno a partir do qual novas liberdades, ou seja, outras gerações de direitos serão possíveis.” (apud PIOVESAN, 2010, p. 13-14). 46

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principais traços do Estado Social de Direito, resta dizer sobre a sua implementação no cenário político-jurídico-social brasileiro.

2.4.2.1 Do constitucionalismo social no Brasil e da (ainda) não implementação do Welfare State

Muito ainda se dirá sobre o Estado Social, ou de como sua implementação, efetivamente, não ocorreu em terrae brasilis. Para constatar esta afirmação, basta um simples olhar pela atual Constituição brasileira, que retoma o compromisso para com a desigualdade e a pobreza, buscando suprimi-las pela via dos direitos sociais enunciados (arts. 3º e 6º). Vale dizer que as tendências neoliberais que despontam no cenário político nacional, muitas vezes distantes da realidade brasileira ou mais afetas às elites, vão de encontro às metas traçadas pela Constituição, mostrando-se como nefastas à efetivação dos direitos sociais47. Isso porque “a minimização do Estado em países que passaram pela etapa do Estado Providência ou welfare state tem consequências absolutamente diversas da minimização do Estado em países como o Brasil, onde não houve o Estado Social” (STRECK, 2009, p. 23). Tal modelo estatal fora, primeiramente, vislumbrado no Brasil com a Constituição de 1934, que, segundo Bonavides (2004), inaugurou a terceira grande época da história constitucional brasileira48. Preocupada com a questão social, a Revolução de 1930, que tinha à frente Getúlio Vargas, contribuiu para a promulgação da Constituição de 1934, a qual inovou no ordenamento jurídico brasileiro no tocante aos direitos sociais, trazendo para o constitucionalismo nacional o que já era pensado em outros países, como o México (1917) e a 47

Para Streck (2009), considerando-se que o Estado Social ainda não existiu no Brasil, é evidente que o agente principal de toda a política social seja o Estado. As políticas neoliberais, por certo, não apontaram para esse caminho. O autor cita, ainda, o exemplo francês, segundo o qual após um avanço dos neoliberais, a pressão popular exigiu a volta das políticas típicas do Estado Providência. As consequências da crise financeira mundial enfrentada em 2008 podem, também, afetar as estruturas do Estado Social: “ A crise financeira internacional ameaça tornar-se ais aguda outra vez. Os governos, endividados com o resgate dos bancos privados em 2008, não conseguem pagar a dívida pública. (...) O custo dessa operação de resgate comandada pelos grandes bancos internacionais e operada pelos governos dos países mais industrializados é o desmonte do estado de bem-estar social construído para atender à pressão dos movimentos sociais nos anos 196. A amarga receita neoliberal não foi abandonada e promove cortes nas políticas que asseguram direitos: aposentadorias, políticas sociais, reajustes de salários” (BAVA, 2010, p. 3). Por certo, a crise ocorreu com maior vigor em países como os Estados Unidos da América, Grécia, Irlanda, Inglaterra, França e Alemanha. Contudo, a situação não deixa de ser alarmante e merece, cada vez mais, a atenção do Estado, de modo a não comprometer as políticas do Estado Social. 48 Para o constitucionalista, esta época é marcada por “crises, golpes de Estado, insurreição, impedimentos, renúncia e suicídio de presidentes, bem como queda de governos, repúblicas e Constituições” (BONAVIDES, 2004, p. 366).

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Alemanha (1919). Conforme Silva (1997), a Constituição de 1934, ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais, inscreveu um título sobre a ordem econômica e social e outro sobre a família, a educação e a cultura, com normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição alemã de Weimar. Foi, enfim, um documento de compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo. O texto constitucional contemplava, em sua maioria, regras atinentes aos direitos trabalhistas, criando a Justiça do Trabalho e o instituto do salário mínimo, por exemplo49. Sem olvidar a contribuição deste documento na realidade constitucional brasileira, mormente pela superação da concepção homem-indivíduo, a Constituição teve pouca aplicabilidade e curtíssima duração. Nas palavras de Barroso (2000, p. 20), a Constituição de 1934, “em uma fórmula de compromisso entre capital e trabalho, delineou o arcabouço formal de uma democracia social, que não se consumou”. Sem entrar em detalhes sobre a experiência constitucional brasileira, o que importa dizer é que, no Brasil, não obstante a existência de documentos que delinearam os traços do constitucionalismo social, o Welfare State encontrase (ainda) carente de implementação50. Para Bonavides (2004, p. 368), o Estado Social,

em razão de abalos ideológicos e pressões não menos graves de interesses contraditórios ou hostis, conducentes a enfraquecer a eficácia e a juridicidade dos direitos sociais na esfera objetiva das concretizações, tem permanecido na maior parte de seus postulados constitucionais uma simples utopia.

Por isso, é forçoso reconhecer na Constituição de 1988 o resgate das promessas do Welfare State. Os seus postulados – aqui incluídos os fundamentos, objetivos e princípios (expressos e implícitos), agregam ao Estado Democrático de Direito as condições de possibilidade para o suprimento das insuficiências das etapas constitucionais anteriores, ainda não realizadas, “representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantias dos direitos humanos fundamentais (STRECK, 2009, p. 37). Bonavides (2004, p. 369) cita como novas matérias constitucionais: “a subordinação do direito de propriedade ao interesse social ou coletivo, a ordem econômica e social, a instituição da Justiça do Trabalho, o salário mínimo, as férias anuais do trabalhador obrigatoriamente remuneradas, a indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa, o amparo à maternidade e à infância, o socorro às famílias de prole numerosa, a colocação da família, da educação e da cultura debaixo da proteção especial do Estado”. 50 Oportunas as palavras de Mello (2006), para quem a Constituição Brasileira de 1988 representa perfeitamente o ideário do Estado Social, que, todavia, entre nós, jamais passou do papel para a realidade. Trazendo alguns exemplos, o autor cita ainda alguns artigos: arts. 1º, III e IV, 3º, 3º, I, III e IV, 7º, II e IV, 170, caput, e incisos III, VII e VIII, 184, 186, IV, 191, 193 e 194. 49

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2.4.3 O Estado Democrático de Direito como condição de possibilidade para a concretização dos direitos fundamentais sociais – um breve olhar sobre a Constituição brasileira de 1988

De início, importa traçar duas ressalvas. A primeira: o constitucionalismo brasileiro, denominado democrático, surgido com a CF/88, é a base de todo o nosso estudo. Logo, a breve menção que se fará aqui ao fenômeno do Estado Democrático de Direito e ao constitucionalismo a ele subjacente terá como escopo somente demonstrar que este modelo estatal buscou resgatar as promessas do Welfare State51, agregando à Constituição a força normativa necessária à concretização de suas normas. A segunda ressalva é que as mudanças reputadas por nós como mais relevantes à compreensão jurídica advindas com o Estado Democrático de Direito (a saber: a mudança da dogmática jurídica tradicional e da hermenêutica constitucional, o surgimento do póspositivismo, a judicialização das relações sociais e políticas, o papel destacado da jurisdição constitucional etc.) serão tratadas mais detalhadamente no quarto capítulo, ao qual remetemos o leitor. Constata-se, literalmente, que o constituinte de 1988 teve por intenção primordial constituir a República Federativa do Brasil em Estado Democrático de Direito, o qual, para além da acepção apenas política do termo, nos remete a uma verdadeira estrutura jurídica pautada em valores e princípios garantidores dos direitos fundamentais52. Um traço marcante da Constituição brasileira de 1988 é a positivação de diversas normas próprias de um Estado Social. De início, veja-se seu preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, Nesse sentido, já afirmamos, em outro trabalho, que “a Constituição de 1934 relegou ao plano das promessas a tarefa de se efetivar os direitos sociais, cabendo, como o tempo incumbiu-se de demonstrar, ao Estado Democrático de Direito a tarefa de assegurar a efetividade de determinados direitos fundamentais” (LOPES, 2010). 52 A adjetivação que se dá ao Estado não é mera enunciação formal. Segundo Silva (1997, p. 120), a democracia há de ser um meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos. Além disso, a democracia deve ser participativa, pluralista e destinada a romper com as opressões e desrespeito a todo e qualquer direito, principalmente os fundamentais. 51

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promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Conforme Häberle (2001, 148 e 276), o preâmbulo é uma espécie de Constituição da Constituição, funcionando como uma “ponte no tempo”, seja para evocar ou esconjurar o passado, a depender das circunstâncias históricas de cada processo constituinte; seja para falar ao presente, ocasionalmente orientando desejos; seja, enfim, para contemplar tanto o presente quanto o futuro e, com relação a este, ademais, para antecipar, quanto possível, o encontro de um povo com esse almejado porvir (MENDES, COELHO e BRANCO, 2010, p. 73-74). A despeito do entendimento de que o preâmbulo é desprovido de força normativa, é forçoso reconhecê-lo como importante vetor interpretativo do ordenamento jurídico, pois, ainda que não possa ser exigido o seu cumprimento53, de forma isolada, direta ou indiretamente, a Constituição a partir do texto preambular positiva preceitos orientadores. Vale destacar as palavras de Jorge Miranda (apud MENDES, COELHO e BRANCO, 2010, p. 76), para quem o preâmbulo “não é um conjunto de preceitos, é um conjunto de princípios que se projetam sobre os preceitos e sobre os restantes sectores do ordenamento – e daí, a sua maior estabilidade, que se compadecem de resto, com a possibilidade de revisão”. Com a instituição inicial do Estado Democrático de Direito, nota-se que o constituinte buscou não somente a formulação formal de uma nova carta constitucional, mas, efetivamente, romper com o regime ditatorial que corroia os ideais democráticos e mortificava os direitos fundamentais alcançados até então. Isso porque o referido modelo estatal é pautado, sobretudo, na garantia e concretização dos direitos fundamentais, de modo geral e, especialmente, dos de segunda dimensão, porquanto resgata as promessas do Estado Social. Exemplificando tal afirmação, note-se os incisos do art. 3º, que nitidamente trazem como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar da pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos. Na ADI nº. 2.076, Rel. Min. Carlos Veloso, discutia-se a omissão da expressão “sob a proteção de Deus” no preâmbulo da Constituição do Estado do Acre, ao argumento de que tal dicção deveria constar na Constituição estadual, por ser “ato normativo de supremo princípio básico com conteúdo programático e de absorção compulsória pelos estados”. Na hipótese, decidiu o Supremo Tribunal Federal: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. - Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. - Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente. (ADI nº. 2.076, Relator: Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 15.08.2002, DJ 08.08.2003, grifos acrescentados). 53

33

O Estado Democrático de Direito pode ser definido então como uma organização política do poder, o qual se assenta em determinados princípios elementares e na declaração e garantia dos direitos fundamentais, cuja efetivação é sua finalidade e motivo pelo qual foi criado (TOLEDO, 2003, p.114). Princípios que antes se mostravam (in)suficientes dentro da realidade do Estado Liberal e do Welfare State merecem nova roupagem no Estado Democrático de Direito, possibilitando não somente sustentar a permanência de determinados direitos fundamentais, como também buscar a sua ampliação, horizontal e verticalmente, quantitativa e qualitativamente54. A Constituição, nesse contexto, dada sua supremacia, deve nortear toda e qualquer interpretação constitucional e infraconstitucional (constitucionalização do direito), seja em razão das normas nela albergadas, seja em decorrência dos fundamentos e objetivos que constitui. Seus princípios e fundamentos devem inexoravelmente guiar a atividade hermenêutica e servir de meio para a manutenção e ampliação da dignidade da pessoa humana, do bem comum e para operar a máxima efetividade aos direitos fundamentais55. O processo de elaboração de uma Constituição não é influenciado somente pelo contexto contemporâneo à sua criação. É, na verdade, uma condensação inevitável de toda a história político-jurídico-social até então vivenciada, com vistas a construir uma nova realidade. E, principalmente, quando esta Lei Fundamental tem a intenção de criar um Estado Democrático de Direito, deve abarcar em seu texto, direta ou indiretamente, meios que proporcionem aos cidadãos o efetivo exercício dos direitos fundamentais, de modo que também seja possível a realização da almejada justiça social. Sintetizando a ideia de supremacia constitucional e do papel exercido pela Constituição Federal no direito contemporâneo, vale transcrever a lição de Barroso (2009, p.84), segundo o qual

a Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como conseqüência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível. Para assegurar essa supremacia, a ordem jurídica contempla um conjunto de mecanismos conhecidos como jurisdição constitucional, destinados a, pela via judicial, fazer prevalecer os comandos contidos Afirma Piovesan (2010, p. 24) que a Carta de 1988 introduz “indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil”. 55 Segundo Streck (2002, p. 127-128), “a noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissolúvel que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito”. 54

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na Constituição. Parte importante da jurisdição constitucional consiste no controle de constitucionalidade, cuja finalidade é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos que sejam incompatíveis com a Constituição.

A CF/88 contempla em seu texto diversos direitos fundamentais (individuais, sociais, coletivos, de nacionalidade etc.), sem prejuízo de outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5°, §2°). A positivação dos direitos de segunda dimensão, cuja gênese se deu, conforme estudado, no contexto do constitucionalismo social, é o grande traço do Welfare State na atual Constituição. Por tudo isso é que Bonavides sustenta que a CF/88 é “basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado social” (2004, p. 371). Para o constitucionalista,

os problemas constitucionais referentes a relações de poderes e exercício de direitos subjetivos têm que ser examinados e resolvidos à luz dos conceitos derivados daquela modalidade de ordenamento. Uma coisa é a Constituição do Estado liberal, outra a Constituição do Estado social. A primeira é uma Constituição antigoverno e anti-Estado; a segunda uma Constituição de valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no Poder”. (Id., Ibid.)

Dessas preciosas lições, e de tantas mais, é que o estudo da efetividade dos direitos fundamentais sociais não pode jamais se afastar. O contexto atual de concretização desses direitos é típico do Estado Social, cujo objetivo, a promoção do bem-estar, está inscrita/reproduzida, expressa e implicitamente, na Constituição. Em razão da positivação de tais metas no texto constitucional é que, reafirma-se, a Lei Fundamental brasileira é tipicamente dirigente e compromissória. Nas palavras de Streck (2004) o estudo do constitucionalismo contemporâneo é tarefa que (ainda) se impõe. Para o autor, as

noções de força normativa da Constituição e de Constituição dirigente e compromissória não podem ser relegadas a um plano secundário, mormente em um país em que as promessas da modernidade, contempladas nos textos constitucionais, carecem de uma maior efetividade (Id., p. 78).

O Estado Democrático de Direito é, portanto, o locus privilegiado (STRECK, 2004) onde desaguam os ideais não efetivados do constitucionalismo social, mormente no que se refere aos direitos de segunda dimensão. E não sendo estes eficazmente garantidos pelas

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instâncias eleitas para sua promoção (Legislativo e, principalmente, Executivo), cabe ao Poder Judiciário possibilitar tal fruição, uma vez que, no cerne do fenômeno do constitucionalismo democrático, cabe sobretudo a este Poder a guarda da Constituição e a busca por sua efetividade56. Assim, uma vez entendida a natureza e a (baixa) efetividade das normas definidoras de direitos sociais prestacionais, inclusive do direito à saúde, o que se delineará mais à frente, torna-se imperioso compreender, guardadas as devidas limitações, como tais questões encontram no Judiciário a resposta final, passando esse poder, muitas vezes, a assumir o papel de concretizador daqueles direitos. Mutatis mutandis, em termos deveras simplificados: trata-se de estudar a questão democrática/majoritária contraposta à jurisdição constitucional (contramajoritária), surgindo, nesse contexto, o locus de tensão entre o direito e a política. Figura, assim, a jurisdição constitucional como um freio a eventuais maiorias no poder57.

Conforme Streck (2009, p. 37-38), “[a] democratização social, fruto das políticas do Welfare State, o advento da democracia no pós-guerra e a redemocratização de países que saíram de regimes autoritários/ditatoriais, trazem à luz Constituições cujo texto positiva os direitos fundamentais e sociais. Esse conjunto de fatores redefine a relação entre os Poderes do Estado, passando o Judiciário (ou os tribunais constitucionais) a fazer parte da arena política, isto porque o Welfare State lhe facultou o acesso à administração do futuro, e o constitucionalismo moderno, a partir da experiência negativa de legitimação do nazifascismo pela vontade da maioria, confiou à justiça constitucional a guarda da vontade geral, encerrada de modo permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica” (grifos no original). 57 Na edição de 2004 de seu Curso de Direito Constitucional, alertava o Professor Paulo Bonavides: “poderosas forças coligadas numa conspiração política contra o regime constitucional de 1988 intentam apoderar-se do aparelho estatal para introduzir retrocessos na lei maior e revogar importantes avanços sociais, fazendo assim um antagonismo fatal entre o Estado e a Sociedade. Não resta dúvida que em determinados círculos das elites vinculadas a lideranças reacionárias está sendo programada a destruição do Estado social brasileiro. Se isso acontecer será a perda de mais de cinquenta anos de esforços constitucionais para mitigar o quadro de injustiça provocado por uma desigualdade social que assombra o mundo e humilha a consciência desta Nação. Mas não acontecerá, se o Estado social for a própria Sociedade brasileira concentrada num pensamento de união e apoio a valores igualitários e humanistas que legitimam a presente Constituição do Brasil” (BONAVIDES, 2004, p. 371). 56

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3 DOS DIREITOS SOCIAIS A PRESTAÇÕES MATERIAIS: UMA ANÁLISE DA EFICÁCIA DO DIREITO À SAÚDE

3.1 Consideraçoes iniciais

Com o advento do constitucionalismo social surgiu também a discussão envolvendo o papel assumido pelo Estado na efetivação dos direitos de segunda dimensão. De certo modo, a positivação de tais direitos possibilitou a ampliação da própria concepção que até então se tinha dos direitos fundamentais, agregando ao tema a noção positiva ou prestacional do Estado. Todavia, de nada aproveitaria reconhecer a existência de direitos sociais se, em contrapartida, não se garantissem mecanismos com o escopo de efetivá-los ou, além disso, não concedesse aos cidadãos a possibilidade de exigirem, por via reflexa, o cumprimento do munus atribuído ao Poder Público, em caso de omissão deste. No tocante a essas garantias, o Estado Social mostrou-se insuficiente, pois não operou, efetivamente, as mudanças às quais se propôs realizar. Nesse sentido, Coelho (2009, p. 69), afirma que

a insuficiência maior do Estado Social de Direito residiria em não ter conseguido realizar a desejada e sempre prometida democratização econômica e social, a economia do gênero humano proclamada pelos entusiastas do neocapitalismo.

Por isso, ao ver crítico de Elias Díaz, urge superar esse modelo, rumo ao chamado Estado Democrático de Direito, em cujo seio se realizaria a integração conciliadora dos valores da liberdade e da igualdade, da democracia e do socialismo. (grifos no original)

Assim, todo o pensamento subjacente ao paradigma do Estado Democrático de Direito se presta – e também se fundamenta - a dar a máxima efetividade aos direitos fundamentais positivados na Lei Maior, devendo-se levar em consideração os princípios e parâmetros

que

devem

guiar

a

atividade

soberana

do

Estado

(legislativa,

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administrativa/executiva e judiciária) no reconhecimento e efetivação desses direitos, sobretudo quando importam em um facere estatal58. Portanto, o que se buscará abordar nas próximas linhas, considerando-se o já assentado ao final do capítulo anterior, é a inovação trazida pela Constituição Federal de 1988 no que tange aos direitos sociais, de cunho prestacional (material)59, e sua força jurídicoeficacial. Tomando como fundamento a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, §1º, CF/88) e sua vinculatividade, serão também analisados os direitos sociais na condição de direitos subjetivos dos cidadãos e a possibilidade destes exigirem judicialmente do Poder Público o seu cumprimento.

3.2 Do caráter prestacional dos direitos sociais e da sua natureza normativa na ordem constitucional vigente

Se de um lado os direitos proclamados inicialmente no século XVIII eram reconhecidos como direitos de defesa, pois impunham ao Estado um non facere, os direitos sociais são de índole marcadamente positiva, ou seja, dependem, em sua maioria, de uma atuação ativa do Estado para serem realizados60/61. Os direitos fundamentais sociais positivados em nossa Lei Maior concentram-se no art. 6º, que estabelece:

58

Esse dirigismo constitucional relacionado à busca pela efetividade dos direitos sociais, vinculando os Poderes da República, se traduz na “eficácia vinculativa dos direitos sociais”. Ao contrário da Constituição portuguesa, que prevê expressamente a vinculação das entidades públicas e privadas aos direitos fundamentais (art. 18/1), a Constituição brasileira trata somente da sua aplicabilidade imediata (art. 5, §1º), norma esta da qual se extrai a dupla eficácia (positiva e negativa) dos direitos fundamentais. Assim é que Sarlet vai afirmar que do “efeito vinculante inerente ao art. 5º, §1º, da CF decorre, num sentido negativo, que os direitos fundamentais não se encontram na esfera de disponibilidade dos Poderes públicos, ressaltando-se, contudo, que, numa acepção positiva, os órgãos estatais se encontram na obrigação de tudo fazer no sentido de realizar os direitos fundamentais” (SARLET, 2009, p. 366). 59 Na clara lição de Sarlet (2010, p. 105), os direitos sociais prestacionais “encontram-se, por sua vez, a serviço da igualdade e da liberdade material, objetivando, em última análise, a proteção da pessoa contra as necessidades de ordem material e à garantia de uma existência com dignidade (...)”. 60 Conforme ensinamento de Silva (1997, p. 277), “os direitos sociais são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais”. (grifos acrescentados) 61 Vale atentar, neste ponto, para o que ensina Ingo W. Sarlet, para quem as diferenças mais sensíveis entre os direitos de defesa (primeira dimensão) e os direitos (sociais) a prestações materiais não residem somente no seu objeto (abstenções ou ações estatais), mas se mostram também na sua esfera de densidade normativa e eficacial, o que desemboca no problema crucial do reconhecimento individual subjetivo a prestações materiais estatais (SARLET, 2009, p. 201).

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Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Em conformidade às lições de Bulos (2009, p. 674), os direitos sociais podem ser classificados da seguinte forma: direitos sociais do trabalhador; da seguridade (direito à saúde; à previdência social e; à assistência social); da educação, cultura, lazer, segurança e moradia; da família, da criança, do adolescente e do idoso; e dos grupos (liberdade sindical; direito de greve; estipular contrato coletivo de trabalho e; co-gestão e autogestão)62. Tomando por base a dimensão subjetiva dos direitos sociais, Canotilho afirma que eles são verdadeiros direitos a prestações, pois

(1) a partir da garantia constitucional de certos direitos; (2) se reconhece, simultaneamente, o dever do Estado na criação dos pressupostos materiais, indispensáveis ao exercício efectivo desses direitos; (3) e a faculdade de o cidadão exigir, de forma imediata, as prestações constitutivas desses direitos. (1998, p. 435)

Neste enquadramento teórico dos direitos sociais, observar-se-á a existência de direitos sociais que não exigem grandes atuações estatais, ao contrário de outros (saúde, educação etc.) que, na maioria das vezes, necessitam de disponibilidade orçamentária para que possam atingir patamares mínimos de satisfação pelos seus destinatários, motivo pelo qual merecem maior atenção dos entes atribuídos de realizá-los. Ensina ainda Canotilho (1998, p. 435-436) que

a expressa consagração constitucional de direitos económicos, sociais e culturais não implica, de forma automática, um “modus” de normativização uniforme, ou seja, uma estrutura jurídica homógenea para todos os direitos. Alguns direitos económicos, culturais e sociais, são verdadeiros direito sel-executing (ex.: liberdade de profissão, liberdade sindical, direito de propriedade); outros são direitos a prestações dependentes da actividade mediadora dos poderes públicos (exs.: direito à saúde, direito ao ensino).

62

Frise-se que à época desta caracterização, o direito social à alimentação ainda não havia sido incluído no rol do art. 6º, o que veio a concretizar-se com a promulgação da Emenda Constitucional nº. 64, de 04 de fevereiro de 2010.

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Nesse mesmo sentido, em estudo relativo à efetividade das normas constitucionais, Barroso (2000), afirma que podemos dividir os direitos sociais em três categorias, que implicam em consequências diversas. Primeiramente, há os direitos sociais de cunho negativo, que importam na abstenção estatal, e geram situações prontamente desfrutáveis. Tal característica, além de ser peculiar à maioria dos direitos fundamentais de primeira dimensão, é também vista em alguns direitos sociais, como o direito de greve, previsto no art. 9° da Constituição brasileira. Em razão disso, esse direito é desfrutável independentemente de uma atuação estatal ou disposição normativa que o regulamente. Por isso, esta característica obsta ao Estado que limite o livre exercício do direito de greve, uma vez observados os parâmetros/limites estabelecidos na ordem jurídica. Para Barroso (2000), outra característica peculiar aos direitos sociais é a sua programaticidade. Ou seja, há direitos que dependem de norma infraconstitucional integradora para que sejam usufruídos. As normas constitucionais de caráter programático transferem ao legislador ordinário a competência para regular o exercício de determinados direitos capitulados em seu texto. O legislador infraconstitucional, no entanto, somente servirá de instrumento para a obtenção do bem jurídico resguardado pela Lei Maior, não podendo criar normas de caráter substancial, pois estas já foram normatizadas pelo texto constitucional63. O descumprimento ao dever jurídico de legislar pode dar ensejo à inconstitucionalidade por omissão. Nesse aspecto, insta salientar que, por menor que seja a densidade da norma positivada, ainda é possível se vislumbrar um núcleo jurídico positivo do qual decorre a possibilidade de o cidadão não ser prejudicado naquilo que lhe é assegurado, ainda que mínimo seja seu âmbito de proteção. A terceira característica, e mais importante para o contexto do presente trabalho, diz respeito aos direitos sociais que exigem prestações positivas do Estado. Quando do estudo dos direitos sociais advindos sob a égide do Estado Social de Direito, dissemos que, na sua essência, da maneira como foram declarados, visavam à melhoria das condições de existência da classe trabalhadora64 e, além disso, almejavam o bem-estar dos cidadãos. É nesse sentido que Frascati ensina que “eventual concretização da norma pelo legislador não teria, pois, o condão de conferir um novo direito ao indivíduo (ou consolidar os direitos sociais como direitos subjetivos plenos, como defendem alguns), mas apenas dotar o direito originário a prestação de pretensão acionável, por meio da criação de pressupostos necessários para tanto” (2008, p. 91-92). 64 Insta citar aqui o ensinamento de Sarlet (2009, p. 200), quando diz que os direitos dos trabalhadores podem ser considerados como uma categoria específica dos direitos sociais, “na medida em que sua titularidade – ao contrário dos direitos sociais a prestações em geral (saúde, educação, assistência social, etc.), que são 63

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Atualmente, a ratio essendi dos direitos fundamentais sociais, sobretudo dos de caráter prestacional, não se diferencia muito do que foi estabelecido pelo Welfare State, pois a exigibilidade de prestações materiais do Estado objetiva o implemento de condições mínimas de dignidade aos cidadãos, principalmente aos que não dispõem de recursos financeiros para, por si próprios, satisfazerem suas necessidades. Ainda que os direitos fundamentais sejam universais, isto é, destinados a todos, indistintamente, é para as classes mais inferiores, do ponto de vista econômico, que os direitos de segunda dimensão devem ser preferencialmente destinados. Elucidando-nos acerca deste caráter prestacional, Sarlet (1998, p.259) ensina que

os direitos sociais a prestações, ao contrário dos direitos de defesa [de primeira dimensão], não se dirigem à proteção da liberdade e igualdade abstrata, mas, sim, como já assinalado alhures, encontram-se intimamente vinculados às tarefas de melhoria, distribuição e redistribuição dos recursos existentes, bem como à criação de bens essenciais não disponíveis para todos os que dele necessitem.

Nas lições de Alexy (1993, p. 194-195), os direitos de os cidadãos exigirem do Estado uma ação positiva podem dividir-se em dois grupos: o daqueles cujo objeto é uma ação fática e o daqueles cujo objeto é uma ação normativa. Isso possibilita-nos afirmar que há direitos a prestações em sentido amplo, que se dividem nas duas formas acima delineadas por Robert Alexy65/66. Assim, conforme sustentado por Frascati (2008, p. 85),

[a] partir de um conceito abrangente, os direitos a prestações podem abarcar diferentes direitos que reclamam uma conduta positiva do Estado: aqueles que têm por objeto uma prestação de natureza normativa, material (fática), ou de participação. Dentro do âmbito dos direitos a prestações, os direitos sociais reclamam, especialmente, prestações de natureza fática, isto é, que sejam criados e colocados à disposição de seus titulares determinados bens materiais e imateriais, sendo, em razão desta especificidade, referenciados de direitos sociais a prestações em sentido estrito.

direitos de todos – se encontra restrita à classe dos trabalhadores, além de terem como destinatários principalmente as entidades privadas (os empregadores). 65 Nesse mesmo sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 201. 66 A segunda categoria acima referida, quando se tomou por base o estudo de Luís Roberto Barroso (2000), dizia respeito aos direitos sociais a prestações normativas, cuja efetividade é alcançada mediante a elaboração de norma infraconstitucional integradora.

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Ponto de maior relevo para nosso estudo diz respeito, no entanto, aos direitos sociais a prestações fáticas ou materiais (direitos a prestações em sentido estrito). Estes, para Alexy (1993, p. 482), “son derechos del individuo frente al Estado a algo que – si el individuo poseyera medios financieros suficientes y si encontrase en el mercado una oferta suficiente – podría obtenerlo también de particulares”67. Importa trazer nesse ponto que os direitos a prestações podem ser visto sob dois aspectos peculiares, referentes aos direitos originários ou derivados a prestações. Os direitos originários a prestações possibilitam que o cidadão busque fruir determinado direito prestacional diretamente da forma como positivado na Constituição. Os direitos derivados, por sua vez, pressupõem uma intermediação, uma política pública já existente para serem fruídos. Acerca desta questão, Sarlet (2009, p. 206) ensina que

um direito originário a prestação, poderá mesmo resultar, para além de gerar uma pretensão (individual ou coletiva) à satisfação do bem assegurado pela Constituição, na condição de direito subjetivo, na exigência de políticas púlicas que precisamente irão ter como finalidade assegurar a fruição de tal prestação. Se, por sua vez, um titular de direito fundamental for excluído do âmbito dos beneficiários da política pública, o fato de ter assegurado um direito fundamental, lhe assegura, em princípio, a possibilidade de acionar o poder público e exigir o acesso à prestação.

O direito à saúde, objeto de nosso estudo, em grande parte já se encontra regulado, mormente no que concerne ao estabelecimento, pelos entes da Federação, dos medicamentos contidos em suas listas. Porém, não é raro haver no Poder Judiciário demandas buscando o fornecimento de medicamentos não incluídos nas listas do Sistema Único de Saúde, ocasião em o intérprete (juiz) deverá considerar o direito fundamental à saúde positivado constitucionalmente (direito originário à prestações). Feitos esses apontamentos, cumpre indagar – e isso deve ser seriamente encarado no atual paradigma de Estado de Direito -, acerca da capacidade das normas definidoras de direitos sociais (prestacionais) concederem aos cidadãos a faculdade de exigir (direito subjetivo68) do Estado a prestação devida. Portanto, a fim de delinearem-se algumas características dos direitos sociais prestacionais, contribuindo para a noção de sua efetividade,

os direitos a prestações em sentido estrito são direitos do indivíduo perante o Estado a algo que – se o indivíduo possuísse condições financeiras suficientes e se encontrasse no mercado oferta suficiente – poderia obter-lo também de particulares. 68 Entenda-se “direito subjetivo” aqui como “qualquer expectativa positiva (de prestação) ou negativa (de não sofrer lesões) adstrita a um sujeito por uma norma jurídica” (FERRAJOLI, 2004, p.37). 67

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insta tratar acerca da possibilidade de se compelir judicialmente os o Poder Público, na qualidade de destinatário dos direitos sociais, à prestação que constitui o seu objeto (SARLET, 1998, p. 279). 3.2.1 Dos direitos sociais prestacionais como direitos subjetivos dos cidadãos – breves considerações acerca de sua eficácia

Durante considerável espaço de tempo, até mesmo alguns anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, não fora conferida aos direitos fundamentais sociais a força jurídica de que tanto necessita(va) a sociedade brasileira69. Diversos autores já afirmaram que as normas constitucionais definidoras de direitos sociais a prestações eram/são normas de eficácia limitada ou leges imperfectae, isto é, sua eficácia fica(ria) condicionada à criação de eventual norma reguladora, interposta, que, ao menos, disponha/dispusesse sobre o procedimento para sua fruição ou que melhor delimite/delimitasse a matéria insuficientemente tratada no texto constitucional. Em clássica monografia, José Afonso da Silva (2004) buscou tratar da eficácia das normas constitucionais, qualificando-as da seguinte forma: normas de eficácia plena são as que receberam do constituinte a normatividade suficiente, tendo, portanto, aptidão para gerar efeitos independentemente de norma infraconstitucional integradora; normas de eficácia contida são aquelas suficientemente tratadas no texto constitucional, mas que dão a possibilidade de outras leis restringirem sua eficácia e aplicabilidade; por fim, normas de eficácia limitada são as insuficientemente normatizadas no texto constitucional, cabendo ao legislador ordinário densificá-las, por meio de norma infraconstitucional integradora. 69

Cf. BARROSO, Luís Roberto. A doutrina brasileira da efetividade. In Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, t. III, p. 61-77. Arremata este autor que a doutrina da efetividade pode ser resumida numa proposição: “todas as normas constitucionais são normas jurídicas dotadas de eficácia e veiculadoras de comandos imperativos” E acrescenta: “Nas hipóteses em que tenham criado direitos subjetivos – políticos, individuais, sociais ou difusos – são eles direta e imediatamente exigíveis, do Poder Público ou do particular, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico. O Poder Judiciário, como consequência, passa a ter papel ativo e decisivo na concretização da Constituição” (BARROSO, 2005, p. 74-75. De alguma forma, nosso estudo se move nessas ideias. Porém, há que se fazer uma ressalva: a posição que cabe ao Poder Judiciário, a despeito de ser muitas vezes protagonista no cenário políticojurídico, não possibilita o exercício “ativista” da jurisdição. Esclareça-se: apesar de sermos favoráveis a um certo grau de judicialização – o que é uma consequência natural do modelo de Estado e de Constituição existente no Brasil, qualificado pela crise de representatividade -, não nos coadunamos ao entendimento de que cabe ao Poder Judiciário se imiscuir em certas questões mais afetas ao âmbito do debate público. Assim, como se observará no capítulo seguinte – frise-se que nossa pretensão é a de, tão-somente, colocar o debate em pauta, fomentando o estudo das possibilidades da justiça constitucional -, o que se pretende é contribuir para que a jurisdição, de um modo geral, seja exercida legitimamente, respeitadas a coerência e autonomia do direito, devendo-se deixar claro que judicialização não confunde-se com ativismo, discricionariedade e, muito menos, arbitrariedade.

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Partindo desta qualificação, os direitos de caráter prestacional, na maioria das vezes, somente adquiririam densidade normativa capaz de gerar sua fruição com a elaboração de norma infraconstitucional que delineasse seu objeto. Ou, além disso, somente teriam força jurídica após a formulação da pertinente política pública que o concretizasse. A efetividade dos direitos sociais a prestações estaria vinculada, portanto, à elaboração de ulterior disposição normativa, que, neste diapasão, teria maior valor que a própria Constituição, podese dizer. Tal entendimento não mais há razão de ser. Sem desconsiderar o grande avanço ocorrido com as obras que trataram sobre o tema em termos de eficácia das normas constitucionais referentes aos direitos de segunda dimensão - ainda que não conferissem a eles a necessária força normativa -, à luz da ordem constitucional atual, isto é, pós-88, não mais pode ser tais direitos compreendidos dessa forma, sob pena de sua efetividade restar prejudicada em razão de sua suposta e aparente limitação eficacial. Uma das grandes conquistas do direito constitucional contemporâneo é a atribuição de força normativa às normas constitucionais. É dizer: as normas constitucionais não mais são vistas como mera aspiração moral, carentes de vinculatividade e normatividade70. A Constituição Federal, há algum tempo, deixou de ser vista como documento meramente político para adquirir status de modelo jurídico dotado de supremacia e força normativa. Nas palavras de Streck (2009, p. 254) [a]s assim denominadas “normas programáticas” não são o que lhes assinalava a doutrina tradicional: “simples programas”, “exortações morais”, “declarações”, “sentenças políticas”, etc., juridicamente desprovidas de qualquer vinculariedade; às normas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da Constituição(grifos no original).

Desse modo, o pensamento dominante hoje – e conformado ao Estado Democrático de Direito - é no sentido de dar a máxima efetividade71 aos direitos fundamentais, sobretudo àqueles que buscam a melhoria das condições de vida dos cidadãos,

Vale citar a lição de Rui Barbosa, que já na primeira metade do século passado dizia: “Não há, numa Constituição, cláusulas a que se deva atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições. Todas têm a força imperativa de regras” (1933, p. 489). 71 Guerra Filho traz como cânone hermenêutico na interpretação constitucional o da máxima efetividade (ou da eficiência ou da interpretação efetiva), dizendo que ele determina que, “na interpretação de norma constitucional, se atribua a ela o sentido que a confira maior eficácia, sendo de observar que, atualmente, não mais se admite haver na Constituição normas que sejam meras exortações morais ou declarações de princípios e promessas a serem atendidos futuramente” (2005, 403-404). 70

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mormente por possuírem estreita relação com o princípio da dignidade da pessoa humana. Resumindo a questão da importância da discussão da força normativa dos direitos fundamentais sociais, Frascati (2008, p. 82-83) salienta que,

após muito afirmar serem os direitos sociais desprovidos de força jurídica ou meras promessas políticas – em razão de sua natureza de normas programáticas, não exequíveis por si mesmas, e do seu regime jurídico não sistematizado, disperso no texto constitucional -, a doutrina volta, mais uma vez, seus olhos a esses direitos, buscando, principalmente, a partir de uma conexão dos direitos sociais com o princípio da dignidade humana e da concepção de uma dimensão objetiva desses direitos, reafirmá-los enquanto direitos justiciáveis e/ou vinculativos dos poderes constituídos e dos particulares.

Com base nisso, as normas constitucionais, em razão de sua força normativa, não devem ser vistas como meras aspirações utópicas do constituinte. Pretendem tais normas transformar a realidade, deixando elas de ser, como bem ressaltado por Streck (2009b), um direito meramente legitimador das relações de poder. Para o autor, o Direito, “nos quadros do Estado Democrático (e Social) de Direito, é sempre um instrumento de transformação, porque regula a intervenção do Estado na economia, estabelece a obrigação de realização de políticas públicas, além do imenso catálogo de direitos fundamentais-sociais” (STRECK, Id., p. 2). Traçadas essas premissas, importa trazer breves comentários acerca da questão dos direitos sociais prestacionais como instituidores de direitos subjetivos72. São diversas as críticas formuladas no sentido de não se conferir aos direitos sociais prestacionais o status de direito subjetivo, destacando-se as seguintes teses, examinadas por Sarlet (2009): segundo alguns autores – e as posições doutrinárias são/foram, por vezes, acatadas no Judiciário -, os direitos sociais prestacionais carecem de uma plena justiciabilidade, sendo merecedores do qualificativo leges imperfectae; a natureza aberta da norma e sua formulação vaga impossibilita que se extraiam delas as adequadas prestações; a efetivação do direitos social estaria condicionada à disponibilidade de recursos por parte do Estado (reserva do possível); a judicialização dos direitos sociais acarretaria a não observância da separação de Poderes, uma vez que não compete ao Judiciário interferir na (re)distribuição de prestações somente

72

Para Sarlet, tema digno de se ocupar é o que envolve a eficácia/efetividade dos direitos sociais no que concerne à sua capacidade de colocar o cidadão na posição de exigir do Estado, com fundamento direito no preceito constitucional, a tomada de alguma posição, ou seja, “se há como compelir judicialmente os órgãos estatais, na qualidade de destinatários de determinado direito fundamental, à prestação que constitui seu objeto” (SARLET, 2009, p. 305).

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veiculadas por meio de políticas públicas, o que acarretaria a supressão do debate político em ternos de tais programas etc. Os argumentos mostram-se, muitas vezes, razoáveis. Porém, devem ser, na medida do possível, adequadamente contestados. Insta esclarecer, contudo, que o enfrentamento de tais questões, isto é, dos argumentos tendentes a excluir da apreciação judicial as prestações materiais de direitos sociais – como ocorre com o direito à saúde, à educação, enfim, à garantia de uma existência digna -, será operado no próximo capítulo, por ocasião da tentativa de se estabelecer as possibilidades da jurisdição constitucional. Resta, por ora, averbar que as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais (subjetivos) são também passíveis de ser violadas pelos seus destinatários (entes federativos), seja em razão de ação ou omissão. Nesse ponto, a inobservância do dever jurídico imposto pela norma adjudicadora de direitos gera ao seu titular a pretensão de ver assegurado judicialmente o direito violado. A imperatividade das normas coloca o cidadão na posição de exigir do Estado sua pretensão (direito subjetivo público), notadamente pela via judicial, com espeque no direito fundamental insculpido no art. 5º, XXXV, da CF/88, cujo texto diz: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Em

síntese,

conforme

ensina

Barroso (2005, p. 74), as características essenciais de um direito subjetivo são:

a) a ele corresponde sempre um dever jurídico por parte de outrem; b) ele é violável, vale dizer, pode ocorrer que a parte que tem o dever jurídico, que deveria entregar uma determinada prestação, não o faça; c) violado o dever jurídico, nasce para o seu titular uma pretensão, podendo ele servir-se dos mecanismo coercitivos e sancionatórios do Estado, notadamente por via de uma ação judicial.

No contexto da afirmação dos direitos subjetivos, percucientes revelam-se as lições de Chevallier, para quem na pós-modernidade parece ter havido novamente a revalorização do sujeito de direitos, com a sua colocação no centro do universo jurídico, a ponto do autor relacionar tal fenômeno com a “absolutização do eu”, próprio dos tempos atuais. Para além do âmbito individual, Chevallier (2009, p. 137) alerta que a subjetivização é

operada também em proveito de um conjunto de categorias sociais (por exemplo, as mulheres) ou de grupos sociais mais vulneráveis (por exemplo, homossexuais), aos quais serão reconhecidos um conjunto de direitos: não apenas essas categorias e esses grupos tendem a ser sempre mais numerosos (detentos, alunos de escolas

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públicas, pacientes em hospitais, não fumantes...), mas ainda se constata um movimento de aprofundamento e de concretização dos direitos que a eles são garantidos. O processo passa por muitas etapas, de diferente natureza.

Para concluirmos, pode-se afirmar, com arrimo em Canotilho (1998, p. 434), que os “direitos sociais são compreendidos como autênticos direitos subjectivos inerentes ao espaço existencial do cidadão, independentemente da sua justicialidade e exequibilidade imediatas”. Assim, “nem o Estado nem terceiros podem agredir posições jurídicas reentrantes no âmbito de protecção destes direitos” (Id., p. 434).

3.3 Da efetividade do direito fundamental à saúde

Estudar o direito à saúde no Estado Democrático de Direito brasileiro é tema que envolve grandes discussões, em razão da interdisciplinaridade. Sob o enfoque eminentemente jurídico-constitucional, é inevitável que se delimite o âmbito de estudo acerca do referido direito fundamental, tanto pelas peculiaridades a ele inerentes, quanto pelas amplas possibilidades de o mesmo ser abordado. Desse modo, o objeto do qual nos ocuparemos nas próximas linhas dirá respeito, em termos gerais, sobre: (i) a positivação do direito social à saúde no texto constitucional, sua fundamentalidade, fazendo-se menção ainda à legislação infraconstitucional relacionada à matéria; (ii) a força normativa do direito social à saúde e sua aplicabilidade imediata; e (iii) a relação entre o direito à saúde e o princípio da dignidade da pessoa humana.

3.3.1 O direito à saúde no ordenamento jurídico pátrio e sua fundamentalidade

A ordem constitucional inaugurada em 1988 houve por bem situar o direito à saúde no rol dos direitos fundamentais (Título II, Capítulo II, art. 6º). Essa positivação, por si só, já refutaria os argumentos tendentes a excluir o direito à saúde do catálogo de direitos fundamentais. Todavia, a fundamentalidade do direito social em questão é decorrente não só

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de sua situação formal, mas, sobretudo, em razão de sua própria natureza, afirmação que atesta a sua fundamentalidade material. Segundo Sarlet (2007, p. 3), a fundamentalidade do direito à saúde pode ser vista tanto sob o ângulo formal quanto material. A fundamentalidade formal decorre do direito constitucional positivo, desdobrando-se em três elementos:

a) como parte integrante da Constituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também a saúde), situam-se no ápice de todo o ordenamento jurídico, cuidando-se, pois, de norma de superior hierarquia; b) na condição de norma fundamentais insculpidas na Constituição escrita, encontram submetidos ao limites formais (procedimento agravado para modificação dos preceitos constitucionais) e materiais (as assim denominadas ‘cláusulas pétreas’) da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe o art. 5º, parágrafo 1º, da Constituição, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais são diretamente aplicáveis e vinculam diretamente as entidades estatais e os particulares.

A fundamentalidade material, por sua vez, guarda simetria com a relevância do bem jurídico tutelado pela ordem constitucional. No caso do direito social em questão, inegável sua sobeja importância no ordenamento jurídico, uma vez que sem a garantia do direito à saúde o cidadão ficaria incapacitado até mesmo de exercer outros direitos e de viver com dignidade. Nesse sentido, Sarlet (1998, p. 298) afirma que

pela sua inequívoca relevância sob o aspecto de garantia do próprio direito à vida, poder-se-á ter como certo que o direito à saúde, ainda que não tivesse sido reconhecido expressamente pelo Constituinte, assumiria a feição de direito fundamental não-escrito implícito, a exemplo, aliás, do que ocorre em outras ordens constitucionais (...).

Tal é a importância do direito à saúde que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, reconhece-o em seu art. XXV, item 1, afirmando que toda pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários. Inegável também, no que se refere à fundamentalidade material, que em razão de sua estreita relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito à saúde figura como “cláusula pétrea” na ordem constitucional.

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Não obstante os pressupostos aqui sustentados para a configuração do direito à saúde como fundamental, vozes desavisadas, apegadas à exegese fria e descompromissada do texto legal, o entendem como não “acobertado” pela garantia da cláusula pétrea73, ao argumento de que a Constituição Federal, quando estabelece as matérias não passíveis de sofrer reforma, cita somente os direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, IV, da CF/88)74. No entanto, há que se discordar deste entendimento. A literalidade da lei não deve levar o intérprete a equívocos, razão pela qual a solução para tal problema deve considerar os direitos fundamentais na sua unidade e materialidade, vistos como condição de possibilidade para a concretização das promessas constitucionais. No dizer atento de Moro (2004, p. 260),

[o] problema da concretização da Constituição não pode ser reduzido à questão semântica da classificação abstrata das normas constitucionais segundo a linguagem empregada no texto. Tal abordagem apenas oculta o verdadeiro problema dos limites da jurisdição constitucional, cuja solução passa pela “questão interpretativa”. (...) Se, ao resolver a “questão interpretativa”, o juiz reconhecer a existência de determinado direito em nossa Constituição, ele deverá concretizá-lo, ou, mais propriamente, tornálo realidade. É o que se exige da autoridade judiciária.

Por todos os argumentos possíveis de exposição, merece maior atenção aquele que identifica no princípio da dignidade da pessoa humana um critério para a aferição da fundamentalidade dos direitos e, em razão disso, para limitar o poder reformador. Nesse sentido, de forma elucidativa, Barroso (2009, p. 178-179) preleciona que o postulado da dignidade da pessoa humana integra a

identidade política, ética e jurídica da Constituição e, como consequência, não pode ser objeto de emenda tendente à sua abolição, por estar protegido por uma limitação material implícita ao poder de reforma. Pois bem: é a partir do núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana que se irradiam todos os direitos Nesse sentido é o entendimento de Gilmar Ferreira Mendes (apud BARROSO, 2009, p. 178): “Parece inquestionável, assim, que os direitos e garantias individuais a que se refere o art. 60, §4º, IV, da Constituição são, fundamentalmente, aqueles analiticamente elencados no art. 5º”. 74 Para além desse argumento, Sarlet (2009, p. 423) cita outros, merecedores de transcrição: “No direito pátrio, há quem sustente que os direitos sociais não podem, em hipótese alguma, ser considerados como integrando as ‘cláusulas pétreas’ da Constituição, isso pelo fato de não poderem (ao menos na condição de direitos a prestações) ser equiparados aos direitos de liberdade do art. 5º. Para além disso, argumenta-se que, se o Constituinte efetivamente tivesse tido a intenção de gravar os direitos sociais com a cláusula da intangibilidade, ele o teria feito, ou nominando expressamente esta categoria de direitos no art. 60, §4º, inc. IV, ou referindo-se de forma genérica a todos os direitos e garantias fundamentais, mas não apenas aos direitos e garantias individuais”. 73

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materialmente

fundamentais,

que

devem

receber

proteção

máxima,

independentemente de sua posição formal, da geração a que pertencem e do tipo de prestação a que dão ensejo.

É importante que se compreenda, a priori, que os direitos fundamentais positivados na Constituição de 1988 integram um sistema aberto ao qual poderão ser inseridos outros direitos dotados de fundamentalidade. Corroborando essa afirmação, vale citar, exemplificativamente, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento da ADIn n. 939-DF75, quando reconheceu a fundamentalidade e, por consequência, a intangibilidade do princípio da anterioridade da lei tributária. Em outras palavras, reconheceu o caráter jusfundamental de norma não incluída pelo constituinte no rol de direitos e garantias individuais (art. 5º), levando em conta o conteúdo do direito protegido. Portanto, também com base na cláusula de abertura material dos direitos fundamentais, é possível a inclusão nesse rol de outros direitos que não os inscritos como tais no texto constitucional. Além disso, soaria paradoxal, face à natureza nuclear essencial do princípio da dignidade da pessoa humana, atribuir perenidade ao direito à vida e, de outro modo, não o fazer com relação ao direito à saúde, uma vez que aquele não pode ser garantido e usufruído sem a promoção deste. Tomando por base ainda a lição de Sarlet (2007, p. 11), pode-se afirmar que

sempre haverá como sustentar que, em virtude da inequívoca relevância do bem jurídico tutelado (em suma, a vida, a dignidade e a integridade física e psíquica do ser humano), as normas jusfundamentais sobre a saúde enquadram-se no chamados limites implícitos à reforma constitucional 76.

Por esses argumentos conclui-se que o direito à saúde está incluído na dicção do art. 60, §4º, inc. IV, da Constituição, devendo a atenção do intérprete voltar-se mais à fundamentalidade do direito colocado em exame e menos à literalidade da norma, não olvidando dos princípios e do espírito subjacente ao constitucionalismo contemporâneo.

3.3.1.1 O direito à saúde na Constituição Federal de 1988

75

STF, ADI 939, Relator: Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em 15.12.1993, DJ 18.03.1994. Do mesmo autor, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 107. 76

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A Constituição brasileira de 1988 foi pioneira na positivação do direito à saúde como direito fundamental social. Em diversas passagens do texto constitucional, o constituinte de 1988 abordou temas relacionados à saúde, seja prevendo princípios informadores, estabelecendo regras de competências a ele relacionadas ou ainda dando diretrizes para as ações e serviços de saúde. Na ordem constitucional vigente, o direito fundamental à saúde vem positivado genericamente no art. 6º da Constituição Federal de 1988, juntamente a outros direitos sociais. No decorrer do texto constitucional, diversos dispositivos tratam do direito à saúde notadamente no que concerne à competência dos entes federativos na sua promoção e na instituição de programas tendentes a realizá-lo. Nesse contexto, especial atenção deve ser dada à Emenda Constitucional n. 29/00, que acrescentou a alínea “e” ao inciso VII do art. 34, possibilitando a intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal no caso de não-aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais (compreendida a proveniente de transferências) na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. A Emenda modificou ainda o inciso III do art. 35, facultando, também, a intervenção dos Estados nos Municípios na mesma hipótese elencada no inciso VII do artigo 34 (SCHWARTZ e BORTOLOTTO, 2008, p. 258). Já no Título VIII, referente à Ordem Social, a Lei Fundamental brasileira situou o direito à saúde como pertencente ao capítulo da Seguridade Social, ao lado da previdência e assistência sociais. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais. Dessa enunciação, dada pelo art. 193 da CF/88, transparece os postulados do Estado Social de Direito, no sentido de proporcionar o bem-estar social e a justiça material. Tratando especificamente do direito em questão, o art. 196 da Constituição da República estabelece que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Ainda diz nossa Lei Fundamental, em seu art. 197, que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, cabendo ao Poder Público dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle. O artigo citado corrobora ainda mais a relevância do direito à saúde,

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afirmando seu caráter público e prevendo a possibilidade de a execução dos serviços de saúde serem feitos também por pessoa física ou jurídica de direito privado. As demais disposições constitucionais relacionadas à saúde encontram-se distribuídas tanto no art. 198 como no art. 220 da CF/88. O primeiro estabelece as diretrizes e preceitos a serem seguidos pelo sistema único que integra os serviços públicos de saúde. O segundo diz respeito às atribuições constitucionais do SUS (Sistema Único de Saúde). Não obstante a importância desses artigos, sua transcrição se mostra inviável no presente trabalho, razão pela qual recomendamos a leitura dos mesmos em consonância ainda com o art. 227 e seu §1°, que dispõem sobre a assistência à saúde das crianças e adolescentes.

3.3.1.2 Legislação infraconstitucional do direito à saúde

Tendo a Constituição Federal ditado as diretrizes e os caminhos a serem perseguidos pelos serviços de saúde, cabe à legislação infraconstitucional complementar as disposições da Carta Magna, evitando, desse modo, argumentos desavisados tendentes a reduzir o direito à saúde ao nível da programaticidade. Sendo assim, temos no ordenamento jurídico pátrio, figurando como uma das principais normas a discorrer sobre o tema, a Lei n. 8.080 (Lei Orgânica da Saúde), de 19/09/1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. A referida lei, logo em seu art. 2°, institui o direito a saúde como direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Diz ainda que a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País. Corroborando a característica albergada pelo direito à saúde, tendo em vista que o mesmo pertence aos direitos fundamentais de segunda dimensão, o §1° do supracitado artigo diz ser dever do Estado a formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

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Além de dispor sobre as atribuições do Sistema Único de Saúde (SUS), bem como regulamentar a sua direção e gestão (Capítulo III), a referida lei traz alguns princípios de observância obrigatória na efetivação do direito à saúde, dos quais consideramos como mais importantes os da universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência e a integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. Sem olvidar a importância inerente às normas infraconstitucionais relacionadas ao direito à saúde, far-se-á, para uma melhor noção da amplitude do tema, somente a citação de algumas das mais relevantes para o presente contexto. No ordenamento jurídico brasileiro, podemos citar as seguintes leis referentes ao direito à saúde, sem prejuízo de outras regulamentações existentes sobre o tema: 

Lei n. 5.991, de 17 de dezembro de 1973, que dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos;



Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990. Lei Orgânica da Saúde;



Lei n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS;



Lei n. 9.313, de 13 de novembro de 1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes da AIDS;



Lei n. 9.782, de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências;



Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental;



Lei n.10.651, de 16 de abril de 2003. Dispõe sobre o controle do uso da talidomida;



Lei n. 10.742, de 6 de outubro de 2003. Define normas de regulação para o setor farmacêutico, cria a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos e dá outras providências;



Lei n. 11.347, de 27 de setembro de 2006. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos e materiais necessários à sua aplicação e à monitoração da glicemia

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capilar aos portadores de diabetes inscritos em programas de educação para diabéticos; 

Lei n. 13.317, de 24 de setembro de 1999 (Código de Saúde de Minas Gerais. Estabelece normas para a promoção e a proteção da saúde no Estado e define a competência do Estado no que se refere ao Sistema Único de Saúde – SUS.

Nota-se, pelo exposto, o crescente número de leis (aqui estão somente algumas, ressalte-se) dispondo sobre o tema, principalmente após o advento da Constituição Federal de 1988. No entanto, a produção legislativa, mesmo já sendo um importante e considerável passo para a promoção da dignidade da pessoa humana e proteção do direito à saúde, porquanto positiva direitos derivados a prestações, não é suficiente para a satisfatória fruição do referido direito social. No Brasil, cada dia mais, observa-se o crescente número de cidadãos que fazem uso do serviço público de saúde. Devido a esse crescente e elevadíssimo número de pessoas, o sistema público, por vezes, não supre a contento (ou sequer supre) a demanda social existente, fundamentando sua posição nos mais diversos argumentos. Acerca destes limites (aparentes e reais), invocados pela Administração Pública na impossibilidade do cumprimento do comando normativo definidor do direito à saúde, dedicaremos capítulo específico. Assim, assentadas essas premissas acerca da legislação relacionada ao direito à saúde, buscar-se-á aprofundar acerca de sua efetividade na ordem jurídica brasileira.

3.3.2. Algumas considerações acerca da eficácia e aplicabilidade do direito à saúde

Conforme se observou acima, o direito à saúde é dotado de intensa formulação legislativa. Por essa razão, rechaça-se o argumento de que o referido direito social carece de eficácia e aplicabilidade em razão da ausência de norma infraconstitucional integradora. Questão de maior polêmica diz respeito, no entanto, à extensão do direito à saúde positivado constitucionalmente (artigos 6º e 196) e à possibilidade de o cidadão pleitear os serviços ou ações pretendidos com base no direito subjetivo originário a prestações decorrente da positivação do preceito constitucional. Nesse momento, imprescindível se torna a análise

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da norma77 extraída do art. 5º, §1 da CF/88, da sua incidência no direito fundamental à saúde e até que ponto o torna imediatamente aplicável.

3.3.2.1 Dimensões negativa e positiva do direito à saúde

O direito à saúde, tal como positivado na Constituição, pode ser estudado sob diversas perspectivas (dimensões), as quais influenciam diretamente no seu modo de efetivação. Na sua dimensão negativa, aquele se classifica como autêntico direito de defesa frente ao Estado e, também, aos particulares. Nesse prisma, o cidadão não pode sofrer agressões ou limitações no direito que lhe é garantido. Tanto o Estado quanto os particulares possuem o dever de não causar lesões a outro cidadão, no que concerne ao seu direito à saúde. Exemplificativamente, caso venha a existir uma lei que impeça determinados cidadãos78 de usufruir os serviços proporcionados pelo Sistema Único de Saúde, sem que, por outra via, não seja suprida essa deficiência normativa, certamente este ato será interpretado, à primeira vista, como inconstitucional, por ferir o direito assegurado ao seu titular, podendo tal ato figurar como objeto de uma demanda judicial individual ou coletiva em que se discuta sua constitucionalidade, concreta ou difusamente (SARLET, 2007, p. 10). Ainda no plano da dimensão negativa do direito à saúde, pode-se citar como salvaguarda o princípio da proibição do retrocesso79. Tal princípio visa à não-supressão dos Vale dizer, por oportuno, que a expressão “norma” mencionada neste trabalho baseia-se nas lições de Eros Grau, segundo o qual “a norma encontra-se, em estado de potência, involucrada no texto. Mas ela se encontra assim nele involucrada apenas parcialmente, porque os fatos também a determinam (..) a norma é produzida, pelo intérprete, não apenas a partir de elementos textuais que se desprendem do texto (mundo do dever-ser), mas também a partir de elementos do caso ao qual será aplicada, isto é, a partir de elementos da realidade (mundo do ser). Interpreta-se também o caso, necessariamente, além dos textos e da realidade – no momento histórico no qual se opera a interpretação – em cujo texto serão eles aplicados” (2009, p. 32). Ainda segundo Eros Grau: “A interpretação do direito é atividade voltada ao discernimento de enunciados semânticos veiculados por preceitos (disposições, textos). O intérprete desvencilha a norma do seu invólucro (o texto); neste sentido, o intérprete produz a norma” (GRAU, 1996, p. 102). 78 Nas lições de Sarlet (2009), com fundamento no princípio da isonomia, caso tenha o Estado contemplado determinados cidadãos ou grupos com prestações, não poderá excluir outros do benefício. Segundo o autor, “[a] partir de uma compreensão do postulado da proibição de arbítrio à luz do princípio do Estado Social de Direito, o direito geral de igualdade adquiriu um conteúdo material, no sentido de que um tratamento discriminatório em favor de determinado grupo apenas se justifica se para tanto houver motivo justo, que, por sua vez, deve ser aferido com base nos parâmetros fornecidos pelo princípio do Estado Social” (SARLET, 2009, p. 301-302). 79 Para uma melhor compreensão do princípio da proibição do retrocesso e da possibilidade de sua inserção na ordem jurídico-constitucional brasileira, conferir: SARLET, Ingo Wolfgang. Proibição de retrocesso, dignidade da pessoa humana e direitos sociais: manifestação de um constitucionalismo dirigente possível. 77

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direitos histórica e cotidianamente conquistados. Desse modo, os direitos já positivados na Constituição e na legislação infraconstitucional (e também reconhecidos no plano internacional) não são passíveis de serem restringidos pelo poder constituinte derivado ou pelo legislador infraconstitucional, ou ainda pelos demais Poderes da República80. Desse modo,

o conteúdo impeditivo deste princípio torna possível brecar planos políticos que enfraqueçam os direitos fundamentais. Funciona até mesmo como forma de mensuração para o controle de constitucionalidade em abstrato, favorecendo e fortalecendo o arcabouço de assistência social do Estado e as organizações envolvidas neste processo (ALMEIDA, 2007, p. 177).

O princípio da vedação de retrocesso ganha força ainda em razão da adoção de limites implícitos ao poder de reforma da constituição, de modo que, em razão da fundamentalidade dos direitos sociais e de sua proximidade com o postulado da dignidade da pessoa humana, ganham o status de cláusulas pétreas. Ainda acerca da vedação do retrocesso, Barroso (2009b, p. 381) sustenta entendimento de que esta proibição possui aplicação no plano da eficácia dos princípios constitucionais. Assim, leciona que além das funções acima expostas, a por ele denominada “eficácia vedativa de retrocesso” (Ibid., p. 381) propõe, por outro lado, a ampliação dos direitos fundamentais. E acrescenta:

o que a vedação do retrocesso propõe se possa exigir do Judiciário é a invalidade da revogação de normas que, regulamentando o princípio, concedam ou ampliem direitos fundamentais, sem que a revogação em questão seja acompanhada de uma política substitutiva ou equivalente. Isto é: a invalidade, por inconstitucionalidade,

Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE). Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 15, set./out./nov. de 2008. Disponível em: . Acesso em 02.11.2010. 80 Nesse sentido, com arrimo nas lições de Brigit Toebes, baseando no princípio da proibição do retrocesso social, Milanez (2004, p. 198) afirma que “uma vez promulgada lei estabelecendo determinadas garantias ao direito à saúde, não é permitido ao Estado suprimi-las sem fornecer uma justificativa razoável. Este princípio foi aplicado na prática pelo Tribunal Constitucional Português para decidir que Portugal violara o dever de respeitar o direito à saúde quando revogou legislação que estabelecia um departamento nacional de saúde”. Extrai do julgado do Tribunal Constitucional o seguinte: “a partir do momento que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional desta deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para a satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social” (TC 39/84, DR, I, 05.05.1984).

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ocorre quando se revoga uma norma infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em seu lugar. (BARROSO, 2009b, p. 381)

No que toca à dimensão positiva do direito à saúde, ele assume a feição de direito a prestações. Já se assinalou que os direitos sociais a prestações (materiais) constituem um direito de exigir do Estado a prestação ou serviço que constitui seu objeto. A dicção constitucional definidora do direito à saúde é de pouca clareza conceitual. Assim, à primeira vista, compete aos demais entes federativos (União, Estados e Municípios) a fixação e delimitação da prestação concretizadora do mesmo. É na dimensão positiva do direito à saúde que se situam os mais relevantes problemas enfrentados tanto pelos Poderes Executivo e Legislativo, quanto pelo Judiciário, quando instado a se manifestar acerca de pretensões cujo objeto se consubstancia na concessão de determinada prestação concretizadora do referido direitos social81. A indagação que se coloca diz respeito, portanto, à (i) legitimidade do Poder Judiciário para efetivar o direito fundamental à saúde, uma vez que a questão tangencia a esfera da disponibilidade orçamentária do Poder Executivo, influenciando as determinações das políticas públicas julgadas oportunas e convenientes pelos administradores, devidamente avalizadas pelo Legislativo, bem como à (ii) sua interpretação e aplicação. Com relação à legitimidade interventiva do Poder Judiciário (e da jurisdição constitucional), no que se refere à concretização dos direitos sociais, o capítulo posterior buscará tratar do tema, trazendo como possíveis correntes a serem seguidas o substancialismo e o procedimentalismo. Desse modo, ocupar-nos-emos, por ora, da questão da interpretação do direito à saúde, por via judicial, tomando por fundamento o princípio da efetividade82 combinado à função interpretativa da norma-princípio insculpida no art. 5º, §1º, da CF/88 e à força normativa dos princípios e normas constitucionais. Frise-se, desde logo, que neste tópico ainda não serão abordados os princípios balizadores das decisões judiciais cujo objeto é o direito à saúde na sua feição prestacional. Embora umbilicalmente relacionado à função e ao papel exercido pelo Poder Judiciário na 81

Milanez (2004, p. 199) afirma que é sob o aspecto positivo que o direito à saúde traz maior ônus para o Estado, “porque exige do mesmo mais do que mera abstenção ou adoção de medidas que impeçam terceiros de danificar a saúde de outros indivíduos. Mais do que isso, requer-se do Estado nesta área a realização de ações que aumentem o nível de proteção já oferecido, melhorando, com isso, o sistema da saúde de forma geral. Assim, por exemplo, se o Estado fornece de graça medicamentos para pessoas HIV-positivas estará implementando o direito à saúde”. 82 Nas judiciosas críticas feitas por Lenio Streck sobre o panprincipiologismo reinante na práxis jurídica brasileira, cita o princípio da efetividade da Constituição como um “princípio tautológico. Isso porque, no atual “paradigma neoconstitucionalista, a efetividade das normas constitucionais já é compreendida pela hermenêutica como um pressuposto essencial”.

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efetivação do comando constitucional violado, o estudo aqui operado com relação ao princípio da efetividade não se afasta muito do que já se disse acima. Desse modo, a seguir somente atentaremos para sua aplicação na efetivação do direito à saúde, visando, a priori, afastar os argumentos atualmente superados que tendem a tratar o direito à saúde como norma destituída de força normativa.

3.3.2.2 A aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos fundamentais e sua relação com o princípio da efetividade

As normas definidoras de direitos extraídas da Constituição podem ser classificadas como direitos subjetivos, ou seja, dão ao seu titular a legitimidade de se exigir do Estado, sobretudo judicialmente, o direito nela deduzido, uma vez não observado. Assim, tendo por base o direito de acesso à justiça83, o cidadão possui a faculdade (o que se torna quase uma necessidade inexorável quanto se trata de violação ao direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana) de acionar o Estado visando à garantia do direito violado, cabendo ao Poder Judiciário “proporcionar a realização concreta dos comandos normativos, inclusive ante a eventual omissão do Poder Público” (BARROSO, 2000, p. 141). No caso do direito à saúde, a atuação judicial deve se redobrar de escrúpulos, uma vez que o conteúdo da prestação pleiteada assume feições constitucionais, visando à garantia do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Muitos são os argumentos utilizados pelos destinatários da norma a fim de se esquivar de seu cumprimento. Alguns, razoáveis, outros nem tanto. Ainda sem considerar as peculiaridades que o tema é capaz de realmente proporcionar, pode-se afirmar, genérica e abstratamente, que no exercício da jurisdição o magistrado deve buscar extrair das normas constitucionais sua máxima efetividade, buscando a aproximação do dever-ser normativo ao ser da realidade social. Justifica-se essa tomada de

“O direito à ação, tradicionalmente reconhecido no Brasil como direito de acesso à justiça para a defesa de direitos individuais violados, foi ampliado, pela Constituição de 1988, à via preventiva, para englobar a ameaça, tendo o novo texto suprimido a referência a direitos individuais.” (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 2007, p. 87). Por estes termos, nota-se a intenção do constituinte originário em dar guarida no Poder Judiciário não só aos direitos individuais, mas à toda lesão ou ameaça a direito, inclusive social, uma vez que estes, dentre os fundamentais, são os direitos mais transgredidos, sobretudo pelos entes atribuídos de realizá-los. 83

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posição porque o Direito, de um modo geral, e o direito constitucional, particularmente, no Estado Democrático de Direito, intentam transformar a realidade84. Pelo princípio da efetividade, devem ser afastados, a priori, os argumentos tendentes a relegar a aplicabilidade das normas constitucionais, sobretudo as definidoras de direitos sociais, ao plano das promessas. Conforme já observado, argumentos dessa estirpe não mais possuem guarida no constitucionalismo democrático. Nesse mesmo sentido, o Min. Celso de Mello, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 271.286/RS, não obstante caracterizar como programática a norma inscrita no art. 196 da CF/88, sustenta uma exegese compromissada à efetivação do direito à saúde. Veja-se, por exemplo, o seguinte trecho da ementa:

O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado (STF, RE nº. 271.286 AgR, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 12.09.2000, DJ de 24.11.2000).

Nesse prisma, visando a fortalecer o pensamento subjacente ao princípio da efetividade, a força normativa atribuída às normas e princípios constitucionais assume relevante função. Conforme salienta Barroso (2007, p. 5), em trabalho desenvolvido por solicitação da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro, “a essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa”. No escopo de efetivar os direitos contidos no Texto Constitucional, a doutrina da aplicabilidade direta das normas constitucionais merece destaque. Depreende do art. 5º, §1º, da CF/88 a seguinte redação: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Conforme o ensinamento de Sarlet (1998, p. 235), esta normaprincípio foi introduzida no texto constitucional por força da influência de outras ordens constitucionais, destacando-se, nesse contexto, o art. 18/1 da Constituição Portuguesa de 84

Conforme propugnado por Streck (2009b), no atual paradigma de Estado de Direito, passa-se de um direito meramente legitimador das relações de poder para um direito com potencialidade de transformar a sociedade.

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1976, o art. 332 da Constituição do Uruguai e o art. 1º, III, da Lei Fundamental da Alemanha de 1949. A literalidade da norma é clara, não gerando maiores discussões, a exemplo do que ocorre com o art. 60, §4º, da CF/88. Assim, o princípio da aplicabilidade imediata se estende a todas as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais (formais e/ou materiais), bem como às inscritas fora do catálogo e às decorrentes dos tratados internacionais (PIOVESAN, 2010). No que tange ao direito à saúde, bem como aos demais direitos sociais prestacionais, os argumentos em prol e contrários à aplicabilidade imediata das normas são fartos. Ao que nos parece, os problemas maiores se encontram na fruição do direito à saúde extraído diretamente da norma constitucional, uma vez que se trata de direito originário a prestações. Quanto aos direitos derivados, ou seja, aqueles que já se encontram delimitados infraconstitucionalmente, não vislumbramos problemas de grande monta quando se fala na sua aplicabilidade plena e imediata, à exceção dos argumentos próprios que circundam o tema (reserva do possível, carência orçamentária, afronta do princípio da separação dos Poderes, dentre outros), os quais serão oportunamente abordados. Todavia, quando se pretende obter, judicialmente, determinada prestação com base, tão-somente, no preceito constitucional definidor do direito à saúde, os critérios solucionadores ultrapassam a dimensão da razoabilidade e da proporcionalidade (também utilizados na interpretação das prestações derivadas de norma infraconstitucional). Naqueles casos, em que por vezes entram em colisão princípios constitucionais, o intérprete deve guiar sua atividade por parâmetros bem definidos, de modo a superar a visão programática do direito à saúde, por um lado, e não comprometer as prioridades da Administração Pública em virtude de um juízo ingênuo que o leve a crer que a norma constitucional pode tudo. Pelo exposto, depreende-se que o direito à saúde pode ser compreendido, principalmente, sob dois prismas. Sob o viés negativo, o direito à saúde é interpretado como direito de defesa, isto é, nem o Estado e, tampouco, os particulares podem restringir o direito garantido e concedido ao seu titular, sob pena de violação da norma constitucional. Nesta concepção, menciona-se ainda o princípio da vedação de retrocesso, que proíbe, de um lado, a restrição dos direitos e dos princípios já conquistados no âmbito constitucional e, de outra banda, impõe uma progressiva ampliação dos direitos fundamentais. Visando ainda a fornecer maior imperatividade ao direito à saúde positivado no Texto Constitucional, tem-se a norma do art. 5º, §1º da CF/88, que torna as normas definidoras de direitos fundamentais imediatamente aplicáveis. O direito à saúde se qualifica,

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formal e materialmente, como direito fundamental, razão pela qual também é imbuído de plena eficácia e aplicabilidade imediata. Corroborando a normatividade do direito à saúde, presta-se o princípio da efetividade a extrair das normas constitucionais sua máxima potencialidade, de modo que se alcancem os fins propostos pelo constituinte, em consonância com o pensamento subjacente ao constitucionalismo contemporâneo e ao Estado Democrático de Direito. Em decorrência desse entendimento, não mais merecem guarida os argumentos tendentes a destituir de força normativa o direito à saúde positivado na Constituição. Os poderes atribuídos de realizá-lo devem ter compromisso com o texto constitucional, uma vez que o direito à saúde foi positivado para ser concretizado pelo Estado e em virtude da atuação do Poder Judiciário, inclusive85. Adiante, visando a ampliar a compreensão do tema, será analisada a relação existente entre o direito social em questão e o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual além de exercer importante papel na determinação da fundamentalidade daquele, atua também como parâmetro para a ampliação de sua efetividade.

3.3.3 O direito à saúde como consagrador do princípio da dignidade da pessoa humana

Dentre os direitos fundamentais existentes no sistema jurídico pátrio, alguns assumem certa proeminência, tendo em vista que, uma vez violados, podem prejudicar a fruição dos demais direitos reconhecidos, vistos sistematicamente. Tal ocorre com o direito à saúde. Sua relação com outros direitos e com diversos princípios é notória. Tome-se, por exemplo, a inviolabilidade do direito à vida (art. 1º, caput, da CF/88). Embora afixado no rol dos direitos individuais (primeira dimensão), é inegável a sua íntima relação com o direito à saúde positivado constitucionalmente, uma vez que sem a satisfação deste, não será garantido aquele. Indubitável também se mostra a relação entre o direito à saúde e o princípio da dignidade da pessoa humana, mormente quando se fala na garantia do mínimo existencial. O princípio da dignidade da pessoa humana, conforme se verá, funciona também como vetor da atividade interpretativa (eficácia hermenêutica), condicionando o intérprete na 85

Nesse aspecto, conferir a vinculação dos Poderes aos direitos fundamentais in: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 365-374.

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aplicação da norma que melhor atenda aos valores constitucionais. Diante de tão importante função, a aplicação do direito à saúde deve se redobrar de escrúpulos, dada sua proximidade com direitos fundamentais e princípios de imensurável importância ético-jurídica. É essa relação, quase íntima, que coloca como consagrador do princípio da dignidade da pessoa humana o direito à saúde, inserindo-o no núcleo garantista do mínimo existencial, fato que maximiza a necessidade de sua efetivação.

3.3.3.1 As modalidades eficaciais do princípio da dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana configura-se como uma cláusula geral86, dotada de plasticidade, ou seja, seu conteúdo, abrangência e efetividade não são extraídos do texto constitucional, uma vez que o constituinte não pretendeu esvaziar a matéria do princípio em exame, deixando ao intérprete a tarefa de delineá-lo87. Nesse sentido, Barroso (2009) ensina que o sentido e o alcance da norma não estão integralmente no enunciado normativo, razão pela qual a função do intérprete não poderá se limitar à revelação do que lá se contém, mas, além disso, ele terá de integrar o comando normativo com sua própria avaliação. Nesse prisma, os princípios constitucionais fundamentais possibilitam ao intérprete superar as contingências que somente a realidade pode determinar88, servindo como vetor exegético, de modo a buscar a concretização dos valores constitucionais. Nota-se, desse modo, que a inserção de princípios de elevada carga axiológica no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre com o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88), contribui sobejamente para a proposta do neoconstitucionalismo, marcando Conforme salientado por Barroso (2009, p. 309), “a expressão cláusula geral designa o gênero, do qual são espécies os conceitos jurídicos indeterminados e os princípios. Conceito jurídico indeterminado identifica um signo semântico ou técnico, cujo sentido concreto será fixado no exame do problema específico levado ao intérprete ou aplicador da Direito. Princípio, por sua vez, traz em si uma idéia de valor, um conteúdo axiológico. Por essa razão, calamidade pública é um conceito jurídico indeterminado; solidariedade é um princípio”. 87 Insta trazer aqui o alerta feito por Streck (2009b, p. 375) nos seguintes termos: “quando se diz que a Constituição e as leis são constituídas de plurivocidades sígnicas (textos ‘abertos’, palavras vagas e ambíguas, etc.), tal afirmativa não pode dar azo a que se diga que sempre há várias interpretações e, portanto, que o direito permite múltiplas respostas, circunstância que, paradoxalmente, apenas denuncia – e aqui chamo à colação as críticas de Dworkin a Hart – as posturas positivistas que estão por trás de tais afirmativas”. Isso porque, segundo o autor, afirmar que tais cláusulas gerais atribuem ao juiz maior liberdade interpretativa nada mais é do que corroborar com a principal característica do positivismo: a discricionariedade. 88 Importante a menção aqui à Lenio Luiz Streck (2009b), para quem os princípios, no paradigma póspositivista – melhor delineado no próximo capítulo – marcam o resgate do mundo prático ao Direito, fato que foi suprimido pelo positivismo de matriz kelseniana. 86

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a reaproximação do Direito à ética. Além disso, presta-se ainda para elevar o grau de fundamentalidade de determinados direitos, vinculando a atuação dos Poderes da República à sua garantia e promoção. No Brasil, após a promulgação da Lei Fundamental de 1988, os princípios deixaram de ser vistos como fonte subsidiária do Direito para atingir um patamar equiparado às regras (caso seja adotada a diferenciação regra-princípio89). Os princípios constitucionais transcenderam da subsidiariedade ao papel de protagonistas, em razão de sua posição privilegiada no ordenamento jurídico, tanto em razão da sua topologia formal, quanto pelos valores que abrigam. Assim, situando no vértice da pirâmide jurídica, as normas constitucionais possuem posição privilegiada na relação com as demais normas formalmente inferiores à Constituição, funcionando como parâmetro de validade destas. Sob o ponto de vista substancial, os princípios constitucionais, sobretudo os fundamentais, abrigam um conteúdo eminentemente axiológico, inserindo, desta forma, valores suprapositivos no sistema jurídico pátrio. Esses princípios, além de normatividade e como uma decorrência desta, possuem diversas modalidades eficaciais, a saber: positiva, negativa, vedativa de retrocesso e hermenêutica. Todas essas modalidades já foram, de algum modo, delineadas anteriormente neste trabalho, razão pela qual somente serão operadas algumas abordagens pontuais que não devem passar despercebidas. A eficácia positiva traduz-se na possibilidade que tem o jurisdicionado de exigir do Estado condições mínimas de sobrevivência por meio do implemento de políticas públicas. Não garantido esse patamar mínimo de dignidade, em razão da insuficiência da prestação ou da inércia estatal, ao titular do direito se abre a possibilidade de acionar o Poder Judiciário, a fim de vê-lo garantido e, por consequência, sua dignidade preservada e, o quanto possível, ampliada. No que toca à eficácia negativa e sua decorrência como vedativa de retrocesso, os argumentos não se diferem muito dos explicitados anteriormente. A eficácia hermenêutica, por sua vez,

consiste na capacidade do princípio da dignidade da pessoa humana orientar a correta interpretação e aplicação das regras e demais princípios de um dado sistema

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A esse respeito, conferir: DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 23 e seguintes.

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jurídico, a fim de que o intérprete escolha, dentre as diversas opções hermenêutica, aquela que melhor tutele a idéia de existência digna no caso concreto (SOARES, 2006, p. 93).

Feitos estes breves apontamentos, a inferência que se faz é a de que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser utilizado como vetor interpretativo do direito à saúde, contribuindo para a sua efetividade e fundamentalidade. Em verdade, o que se observa ao tratar desses dois temas (princípio da dignidade da pessoa humana e direito à saúde), é a reciprocidade existente entre eles. Isto é, ao mesmo tempo em que o postulado da dignidade da pessoa humana condiciona a interpretação do direito à saúde, determinando ainda materialmente sua fundamentalidade, este funciona como meio consagrador do referido princípio, contribuindo também para a garantia do mínimo existencial. Os Tribunais pátrios têm aplicado dito entendimento, fundamentando suas decisões - cujo objeto diga respeito a alguma prestação concretizadora do direito à saúde -, no princípio da dignidade da pessoa humana. Veja-se, por exemplo, a seguinte ementa lavrada em sede de reexame necessário pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

MANDADO DE SEGURANÇA - PACIENTE PORTADOR DE DOENÇA NEUROLÓGICA - DISCINESIA TARDIA - PRESCRIÇÃO MÉDICA - USO DA MEDICAÇÃO

POR

LONGO

PERÍODO

-

DIREITO

À

SAÚDE

-

PREVALÊNCIA. SEGURANÇA CONCEDIDA. Evidenciando-se que o paciente já se encontra no uso da medicação indicada, com satisfatória resposta terapêutica há cerca de um (1) ano, quando se deferiu a liminar, temerária a interrupção do fornecimento da medicação e do próprio tratamento. Tal entendimento/conclusão reforça a necessidade e a legalidade do atendimento da pretensão em defesa do direito da impetrante, com a manutenção da liminar e concessão da segurança, em definitivo, garantindo-se a eficácia do direito maior à saúde, que consagra a dignidade da pessoa humana e o direito à vida. SÚMULA: REJEITARAM PRELIMINAR

E,

NO

REEXAME

NECESSÁRIO,

CONFIRMARAM

A

SENTENÇA, PREJUDICADO O RECURSO VOLUNTÁRIO, VENCIDO O VOGAL. (TJMG, Apelação cível/reexame necessário nº.: 1.0024.06.2155908/002(1). Relator: Geraldo Augusto. Data do Julgamento: 27/11/2007. Data da Publicação: 18/12/2007).

Tomando mais amplamente o direito à saúde, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por ocasião do julgamento de recurso de apelação, determinou àquele Estado-membro o fornecimento de determinado número diário de fraldas ao recorrido, portador de

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significativo atraso neuropsicomotor, em prestígio do princípio da dignidade da pessoa humana. A ementa tem o seguinte teor:

APELAÇÃO CÍVEL. MEDICAMENTOS. FRALDAS. DIREITO À SAÚDE E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ASSEGURADO EM CONSTITUIÇÃO. Considerando que a qualidade de vida da infante é o bem tutelado, que a família não tem condições de arcar com os custos do tratamento necessário e que a saúde é direito de todos e dever do Estado (CF, artigo 196 e CE, artigo 241), não merece reforma a decisão que determina o fornecimento das fraldas. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO. (TJRS, Apelação cível nº. 70032746612. Relator: Alzir Felippe Schmitz. Data do julgamento: 10/12/2009. data da publicação: DJ 16/12/2009).

Depreende, pelo exposto, a importância da discussão a respeito da eficácia e efetividade do direito à saúde e sua contribuição na garantia e promoção da dignidade da pessoa humana, mormente no que concerne ao seu núcleo essencial (mínimo existencial). A correta compreensão dessa esfera mínima de garantia de determinados direitos fundamentais é imprescindível para a existência de uma atuação judicial pautada na razoabilidade e compromissada com a efetivação do direito à saúde, sem prejudicar as regras atinentes ao jogo democrático. Não obstante a possibilidade de se estudar o tema da garantia do mínimo existencial no presente capítulo, dada sua relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, entendemos por bem abordá-lo a partir de sua relação com a cláusula da reserva do possível, por influenciar diretamente a interpretação desta.

3.4 A busca pela efetividade dos direitos sociais no âmbito judicial: breves apontamentos acerca da necessidade de uma atuação judicial concretizadora de direitos

A doutrina da efetividade, ao lado da atribuição de imperatividade das normas constitucionais, tem subsidiado interpretações de grande importância para a realização dos direitos prestacionais pela via judicial. Com efeito, já não se concebe atualmente um juiz alheio aos valores preconizados no texto constitucional, indiferente aos postulados éticos e descompromissado com a realidade que o cerca.

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Compreendidos os direitos sociais como direitos subjetivos, a sua efetivação se perfaz em tarefa primordial no Estado Democrático e Social de Direito fundado sobre o postulado da dignidade da pessoa humana. Nessa tarefa, o princípio da efetividade conjugado à imperatividade das normas constitucionais possibilita condicionar a atividade hermenêutica do aplicador da norma na busca pela concretização das normas constitucionais. Todavia, para que isso ocorra, é necessário que o magistrado atue com razoável grau de criatividade, mediante uma visão crítica dos problemas colocados ao seu exame e possuindo como norte a busca pela efetividade das normas. Para tanto, deve o juiz ser possuidor não apenas de conhecimento técnico, entendimento este que predominava e era naturalmente aceito há pouco tempo. A figura do juiz positivista, apegado à exegese lógica das leis deve ser abandonada, em prol do surgimento de um juiz que reiteradamente busque adaptar o direito - cuja compreensão é bem mais ampla do que os textos legais - à realidade, respeitada sua integridade e autonomia, de modo a buscar uma interpretação dos textos adequada à realidade e à Constituição. O magistrado do Estado Democrático de Direito deve possuir intimidade com a causa humana. Assim, o juiz de um Estado Democrático de Direito deixa o qualificativo de legalista e passa a ser um juiz constitucional, compromissado com a efetivação de normas, princípios e fins oriundos da Constituição. Vale, neste ponto, a citação de Azevedo (1989, p. 71), para quem

na medida em que se interessar pelo drama de seu tempo, o juiz poderá perceber a verdadeira dimensão e a inserção histórica de seu trabalho, situando e compreendendo a ordem jurídica no contexto humano global. Na medida em que acresça ao seu saber técnico uma visão de mundo tão dilatada quanto possível, o juiz enriquecer-se-á interiormente, podendo melhor avaliar os dados reais, humanos, que constituem a razão de ser, tantas vezes esquecida, de todo processo.

Não muito distante deste entendimento, Barroso (2009b, p. 264) sustenta a necessidade de uma atuação judicial mais criativa, no tocante à efetivação das normas constitucionais. Nesse sentido, expõe que

um dos pontos capitais relativamente ao princípio da efetividade é a necessidade de o Poder Judiciário se liberar de certas noções arraigadas e assumir, dentro dos limites do que seja legítimo e razoável, um papel mais ativo em relação à concretização das normas constitucionais. Para tanto, precisa superar uma das

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patologias crônicas da hermenêutica constitucional no Brasil: a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo.

Este movimento pela efetividade tem se tornado uma das tarefas de maior relevo na concretização dos postulados constitucionais. A busca por uma sociedade livre, justa, solidária e compromissada com os ideais de justiça social somente pode ser empreendida com o devido respeito às normas constitucionais, sobretudo àquelas voltadas a atender aos mais necessitados, que dependem, parcial ou totalmente, do Estado para garantir sua dignidade ou, ainda, um patamar mínimo que possibilite a existência. Partindo da lição acima transcrita, cumpre afirmar que a efetividade dos direitos sociais a prestações não deve restar condicionada somente ao alvedrio dos Poderes Legislativo e Executivo. Havendo a violação da norma constitucional (por ação ou omissão), cabe ao Judiciário, dentro dos limites e possibilidade atinentes à sua atuação, intervir para que sejam observados os direitos sociais não/insatisfatoriamente concretizados. Neste sentido, ainda no esteio de Barroso (2009, p. 221), o caminho para a efetivação das normas deve ser percorrido não só por todos os Poderes da República, como também pela sociedade, que, pelo exercício da cidadania, deve exigir a concretização dos direitos que lhe são garantidos. Em elucidativa síntese,

a efetividade da Constituição há de assentar-se sobre alguns pressupostos indispensáveis. Como referido, é preciso que haja, da parte do constituinte, senso de realidade, para que não pretenda normatizar o inalcançável, o que seja materialmente impossível em dado momento e lugar. Ademais, deverá ele atuar com boa técnica legislativa, para que seja possível vislumbrar adequadamente as posições em que se investem os indivíduos, assim como os bens jurídicos protegidos e as condutas exigíveis. Em terceiro lugar, impõe-se ao Poder Público vontade política, a concreta determinação de tornar a realidade os comandos constitucionais. E, por fim, é indispensável o consciente exercício de cidadania, mediante a exigência, por via de articulação política e de medidas judiciais, da realização dos valores objetivos e dos direitos subjetivos constitucionais. (grifos no original)

Pelo acima exposto, conclui-se que a busca pela efetividade deve ser empreendida por todos os intérpretes da Constituição, dependendo, de certo modo, da consciência dos titulares do direito violado de exigirem dos Poderes a concretização dos direitos sociais. Neste

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desiderato, o Poder Judiciário passa a exercer importante função, uma vez que deve zelar pelo estrito cumprimento da Constituição Federal. Assentadas estas bases, passa-se ao estudo do destacado papel do Poder Judiciário na atual fase do direito constitucional, levando-se em consideração a possibilidade de efetivação judicial dos direitos fundamentais-sociais.

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4 EFETIVAÇÃO JUDICIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS

4.1 Considerações iniciais

A efetividade das normas constitucionais depende, em maior ou menor grau, da atuação conjunta de seus intérpretes90. Quando essas normas consubstanciam direitos sociais, que devem ser promovidos pelo Estado e, a priori, pelos poderes democraticamente eleitos, inúmeras questões vêm à tona. Todavia, este dogma vem, a cada dia, relativizando-se diante da realidade vivida no Brasil. Para o nosso contexto, atenção maior deve ser dada à questão específica da garantia e promoção dos direitos sociais prestacionais – e notadamente do direito à saúde pelo Poder Judiciário, em vista da não/insuficiente observância (formulação de políticas públicas adequadas, p. ex.) dos mesmos pelos Poderes Legislativo e Executivo. Partindo do pressuposto analisado ao final do capítulo anterior de que o Poder Judiciário, na atual quadra constitucional, deve se libertar de determinados dogmas que, direta ou indiretamente, limita(va)m sua atividade, a elaboração de justificativas para essa afirmação torna-se imprescindível. É cediço que as decisões judiciais cujo objeto diga respeito a direitos de cunho prestacional afeta, de alguma forma, as deliberações políticas dos demais Poderes, uma vez que disponibilizar recursos para o cumprimento das determinações judiciais implica, na maioria das vezes, desviá-los dos destinos inicialmente vislumbrados pelos Poderes Legislativo e Executivo. Posto isso, com pouco esforço é possível antever as discussões (iniciais, ressalte-se) que daí advêm. Desse modo, cumpre analisar qual proporção assumida nesse contexto das relações enrte o Direito e a Política, e qual a legitimidade do Poder Judiciário para operar a efetividade dos direitos sociais, à vista dessas implicações. Para tanto, é necessário que se compreenda o constitucionalismo contemporâneo e o papel da Constituição no Estado Democrático de

Apoiado nas lições de Peter Häberle, ensina Coelho (1998, p. 158) que “no contexto de um Estado de direito, que se pretende democrático e social, torna-se imperioso que a leitura da Constituição se faça em voz alta e à luz do dia, no âmbito de um processo verdadeiramente público e republicano, pelos diversos atores da cena institucional agentes políticos ou não porque, ao fim e ao cabo, todos os membros da sociedade política fundamentam na Constituição, de forma direta e imediata, os seus direitos e deveres.” (grifos no original) 90

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Direito para, ao final, concluir acerca da postura do Judiciário quando instado a atuar na aplicação dos direitos fundamentais sociais. Neste desiderato, conforme sustenta Streck (2007), é necessário levar em conta três questões atuais, que se interpenetram: (i) a necessidade de uma redefinição na relação entre os Poderes do Estado; (ii) a admissão de que a justiça constitucional pode ter um papel intervencionista; e (iii) um certo grau de dirigismo constitucional. Buscar-se-á, portanto, no presente capítulo, trazer os fundamentos para uma atuação judicial não só espectadora, mas sobretudo transformadora da realidade, tomando por base a efetivação dos direitos sociais.

4.2 O neoconstitucionalismo no Brasil – uma abordagem preliminar e necessária

O último quarto do século XX marcou o declínio do positivismo jurídico91 e o reencontro (ou co-originariedade92) entre o Direito e a Moral. A decadência do positivismo é associada, em termos históricos, à derrota do fascismo na Itália e, notadamente, do nazismo na Alemanha, movimentos que, sob o manto da legalidade, cometeram uma das maiores barbáries da história ocidental93. Conforme apontado por Barroso (2009b, p. 327), “ao fim da Segunda Guerra Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido.” O Direito, a partir daí, tem buscado incessantemente sua legitimidade. Daí em diante tem início na Europa uma onda pela redemocratização dos Estados, tendo como principal marco a Lei Fundamental de Bonn da Alemanha, de 1949. Antes disso, a redemocratização ocorreu também na Itália, em 1947, e posteriormente em Portugal, em 1976, e na Espanha, em 1978. No Brasil, o direito constitucional renasce juntamente ao Os “positivismos” são diversos. O positivismo jurídico ao qual nos referimos é o normativista, cujo maior expoente fora Hans Kelsen, que teve na obra Teoria Pura do Direito a sua mais explicita formulação. Nas palavras de Amorim (2008, p. 147), “para Kelsen o Direito é concebido como um sistema de normas que regula a conduta humana. E segundo ele, este sistema está estruturado de forma hierárquica, de maneira que cada norma retira sua validade de uma norma superior, até que se chegue ao ápice deste sistema, onde encontramos a ‘norma hipotética fundamental’ (Grundnorm), que valida todas as demais normas”. Foi, segunda a autora, por meio desta abstração que Kelsen buscou seu objetivo maior: “isolar o Direito das demais ciências para que ele fosse uma ciência autônoma” (Id. Ibid., p. 148). 92 Como bem ressalta Streck (2009b, p. 173), no paradigma do Estado Democrático de Direito “a moral deixa de ser autônoma-corretiva, para se tornar co-originária ao (e com o) direito. Tem-se, assim, a todo o momento, como pano de fundo, a recorrência da discussão acerca da relação ‘direito-moral’”. 93 Para uma melhor compreensão: BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 305-345. 91

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Estado Democrático de Direito, com a promulgação da Constituição Federal em 05.10.1988. Estes são os marcos históricos do neoconstitucionalismo mundial e brasileiro, respectivamente. O pós-positivismo, que, por sua vez, pode ser concebido como um marco filosófico desse novo paradigma, traz um tempo no qual a cisão direito-moral é impossível, questão que assume feições de grande importância na interpretação do Direito. Nesse sentido, para Streck (2009b, p. 7), no pós-positivismo “uma teoria da interpretação não prescinde de valoração moral, o que está vedado pela separação entre direito e moral que sustenta o positivismo”. Portanto, para o autor (Id., Ibid.),

pós-positivismo deve ser entendido com o sentido de superação e não (mera) continuidade ou complementariedade. Pós-positivismo será compreendido, nesse contexto, no interior do paradigma do Estado Democrático de Direito instituído pelo constitucionalismo compromissório e transformador social surgido no segundo pósguerra, que é aquilo que vem sendo denominado de neoconstitucionalismo.

No que tange ao marco teórico, o neoconstitucionalismo operou mudanças na dogmática e hermenêutica jurídica convencionais. Segundo Barroso94, três grandes transformações podem ser identificadas com esta compreensão do direito constitucional: a) o reconhecimento de força normativa à Constituição; b) a expansão da jurisdição constitucional; e c) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Conforme leciona Barcellos (2005), resumidamente, as características específicas mais destacadas deste novo direito constitucional podem ser ordenadas em dois grupos: um que congrega elementos metodológico-formais e outro que reúne elementos materiais. Sob o prisma metodológico-formal, o neoconstitucionalismo opera em três premissas fundamentais, a saber: (i) a normatividade da Constituição, isto é, o reconhecimento

de

que

as

normas

constitucionais

são

dotadas

de

imperatividade/coercitividade; (ii) a superioridade da Constituição com relação às demais leis e atos normativos; e (iii) a centralidade da Carta no ordenamento jurídico, devendo ser concebida como um filtro da interpretação jurídica. Neste aspecto, segundo a referida autora, inserem-se no âmbito do direito constitucional discussões acerca da eficácia jurídica dos princípios constitucionais, das 94

Conferir BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, n. 58, p. 129/173, jan.-mar. 2007.

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possibilidades de controle das omissões inconstitucionais e da interpretação das normas infraconstitucionais à luz da Constituição Federal. Do ponto de vista material, o neoconstitucionalismo é caracterizado pelos seguintes elementos: (i) a incorporação expressa de valores (dignidade da pessoa humana) e opções políticas gerais (redução das desigualdades sociais) e específicas (a prestação de serviços de saúde) nos textos constitucionais, sobretudo no que diz respeito à promoção da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais; e (ii) a expansão de conflitos específicos (colisão de normas constitucionais, v.g., liberdade de expressão e de informação e intimidade, honra e vida privada) e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional. Nesse sentido, muito antes de vincular a interpretação somente das normas constitucionais, o neoconstitucionalismo marca a confluência de ideias despontadas após o segundo pós-guerra com o fito de operar uma releitura da própria dogmática jurídica. No Brasil, a Constituição tem se mostrado como instrumento capaz de promover a proteção dos direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana. Para o nosso contexto, e com o fito de melhor compreender as características deste novo direito constitucional, é importante que se acrescente os seguinte fundamentos, trazidos à lume por Barroso (2009, p. 249-250), quando afirma que

a doutrina pós-positivista se inspira na revalorização da razão prática, na teoria da justiça e na legitimação democrática. Nesse contexto, busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a ética.

Portanto, assentadas essas bases, as próximas linhas serão dedicadas à doutrina dos princípios, com maior atenção ao da dignidade da pessoa humana e sua eficácia interpretativa, dada sua proximidade com o objeto proposto no presente trabalho.

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4.2.1 Alguns delineamentos em torno do princípio da dignidade da pessoa humana95

Empreender o estudo do princípio da dignidade da pessoa humana no atual paradigma constitucional é tarefa imprescindível não só em razão da inserção de valores suprapositivos no ordenamento jurídico, mas, sobretudo, em razão de seu caráter garantidor, uma vez que a sua positivação implica no reconhecimento e na promoção de uma série de direitos materialmente fundamentais. O tema, por si só, ocuparia o título de extenso estudo. Desse modo, visando à continuidade e unidade do presente trabalho, o referido princípio será abordado tomando por base sua eficácia interpretativa e seu potencial garantista concernente ao núcleo do mínimo existencial. Atente-se, contudo, que não se efetuará uma digressão mais aprofundada acerca do valor da dignidade da pessoa humana, sob os enfoques filosófico, sociológico ou jurídico, porquanto serão mencionados, tão-somente, alguns assuntos imprescindíveis à compreensão da sua relação com o direito à saúde, uma vez que este será abordado mais detalhadamente em outra oportunidade. A Constituição abarca em seu texto uma diversidade de normas, que ora se traduzem em regras, ora em princípios, isto é, em mandados de definição e em mandados de otimização96, respectivamente. Quanto às regras, geralmente, não se vislumbram maiores problemas na sua aplicação, o que pode ser resolvido mediante mera subsunção dos fatos à norma. Caso não seja observada a determinação da norma, certamente estará ela violada. Já com relação aos princípios, Alexy (1993, p. 86) ensina que 95

Para uma compreensão mais aprofundada sobre o tema, conferir, por todos: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. 96 Sintetizando as ideias de Alexy, Barroso (2009b, p. 331, nota 60) ensina que as regras “veiculam mandados de definição, ao passo que os princípios são mandados de otimização. Por essas expressões se quer significar que as regras (mandados de definição) têm natureza biunívoca, isto é, só admitem duas espécies de situação, dado seu substrato fático típico: ou são válidas e se aplicam ou não se aplicam por inválidas. A exceção da regra ou é outra regra, que invalida a primeira, ou é a sua violação”. E, acerca dos princípios, diz que os mesmos se comportam diversamente. “Como mandados de otimização pretendem ser realizados da forma mais ampla possível, admitindo, entretanto, aplicação mais ou menos intensa de acordo com as possibilidades jurídicas existentes, sem que isso comprometa sua validade. Esses limites jurídicos, capazes de restringir a otimização do princípio, são (i) regras que o excepcionem em algum ponto e (ii) outros princípios de mesma estatura e opostos que procuram igualmente maximizar-se, impondo a necessidade eventual de ponderação”.

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principios son normas que ordenan que algo sea realizado em la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optmización, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos em diferente grado y que la medida debida de su cumplimiento no solo depende de las posibilidades reales sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determinado por los principios y reglas opuestos.97

Neste prisma, diversos princípios constitucionais assumem função não só integrativa e subsidiária na aplicação do Direito, mas, sobretudo, dão unidade ao ordenamento e assumem posição destacada no sistema jurídico. Os princípios funcionam, portanto, como um mecanismo dinâmico na solução de normas constitucionais, servindo de instrumento para a inserção de valores suprapositivos no texto constitucional. Em vista de sua normatividade, os princípios não se situam no texto constitucional somente como um convite aos Poderes Públicos na concretização dos mandamentos constitucionais. A força normativa atribuída às normas constitucionais, por vezes consubstanciadas em princípios, pretende dar a máxima efetividade aos mesmos, isto é, operar a conjugação do dever-ser normativo ao ser da realidade. Assim, ainda em conformidade ao pensamento de Barroso (2009, p. 329), pode-se dizer que os papéis desempenhados pelos princípios no ordenamento são: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete. Tendo em vista o objeto da presente pesquisa, cumpre mencionar, ainda que perfunctoriamente, o fundamento da dignidade da pessoa humana98, previsto no ordenamento jurídico pátrio no art. 1º, III, da CF/88. Conforme se depreende do texto constitucional, a dignidade da pessoa humana, além de ser matriz de diversos direitos fundamentais, foi alçada pelo constituinte originário a princípio fundamental da República Federativa do Brasil. Por esse motivo, o referido princípio “constitui valor-guia não apenas dos direitos fundamentais,

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princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Portanto, os princípios são comandos de otimização, que estão caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não depende somente das possibilidades reais, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. 98 Com o fito de diferenciar as expressões “dignidade da ‘pessoa’ humana” e “dignidade humana”, Sarlet (1998, p. 106) leciona que “a dignidade constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada, e não de um ser ideal ou abstrato, não sendo lícito confundir as noções de dignidade da pessoa humana e dignidade humana (da humanidade)”.

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mas de toda a ordem constitucional” (SARLET, 1998, p. 110), servindo de pressuposto para a unidade e harmonia do sistema jurídico. Nesse mesmo sentido, afirma Piovesan (2010, p. 27) que “o valor da dignidade da pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional”. De forma peculiar, Bonavides (2001, p. 233) salienta que

toda a problemática do poder, toda a porfia de legitimação da autoridade e do Estado no caminho da redenção social há de passar, de necessidade, pelo exame do papel normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser, portanto, máxima, e se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados.

Desse modo, segundo o citado autor, “nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana” (2001, p. 233). No ordenamento jurídico pátrio, o princípio da dignidade da pessoa humana exerce diversas funções, dentre elas, resumidamente, a de demarcar a fundamentalidade dos direitos, operando determinante contribuição na identificação de outros direitos fundamentais decorrentes do regime e dos princípios adotados na Constituição Federal de 1988, ou dos tratados internacionais dos quais a República brasileira seja parte. O princípio pode ser visto também sob diferentes perspectivas. Com arrimo no ensinamento de Sarlet (1998), pode-se dizer que a dignidade da pessoa humana é, simultaneamente, limite e tarefa do Estado. Como limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade é direito que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, uma vez que, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado. No que tange à dignidade como tarefa do Estado, referido princípio, segundo o autor,

reclama que este [Estado] guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo, portanto dependente (a dignidade) da ordem

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comunitária, já que é de se perquirir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do estado ou da comunidade [...] (SARLET, 1998, p. 106).

Dando prosseguimento ao estudo das múltiplas facetas do princípio da dignidade da pessoa humana, este pode ser visto ainda tanto pelo prisma abstrato (ou subjetivo), como pelo concreto (ou objetivo). Subjetivamente, dignidade se relaciona com a liberdade e os valores do espírito e, no plano concreto, diz respeito à existência de condições materiais de subsistência. É no plano objetivo que com maior intensidade se fala na garantia do mínimo existencial – tema ao qual retornaremos oportunamente -, que garante ao cidadão uma esfera intocável de garantias (dimensão negativa) e, por vezes, depende de prestações positivas do Estado para se ver preservado (dimensão positiva). Esta esfera intocável de direitos básicos envolve várias garantias jusfundamentais, como, por exemplo, patamares mínimos de saúde, uma educação básica capaz de atender ao mínimo exigido em determinada sociedade, uma renda mínima que possibilite ao trabalhador adquirir os bens materiais e imateriais suficientes ao seu sustento, dentre outros. Nota-se, portanto, que a dignidade pode ser variável de acordo com as necessidades da sociedade na qual se vive. No entanto, uma premissa nos parece certa: a garantia do mínimo capaz de gerar uma existência digna aos cidadãos se reveste daqueles direitos básicos garantidos no ordenamento jurídico, direitos esses que, a variar conforme as necessidades contextuais (e pessoais), uma vez não garantidos ou efetivados, são passíveis de figurar como objeto de uma demanda judicial. Conforme preleciona Barcellos (2002, p. 305), a compreensão de uma esfera intocável de garantias, no que tange aos elementos materiais de dignidade, é composta pelo mínimo existencial,

que consiste em um conjunto de prestações mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade. (...) Uma proposta de concretização de mínimo existencial, tendo em conta a ordem constitucional brasileira, deverá incluir os direitos á educação fundamental, à saúde básica, à assistência no caso de necessidade e o acesso à justiça.

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Dessas lições se conclui que o mínimo existencial, além de assegurar a garantia de direitos materialmente fundamentais, também é composto por um de natureza instrumental, qual seja o direito de acesso à justiça. Assentadas essas bases iniciais e meramente elucidativas acerca do princípio da dignidade da pessoa humana, cumpre tecer alguns comentários sobre da sua eficácia exegética, isto é, do modo como o princípio da dignidade da pessoa humana funciona como vetor interpretativo no exercício da atividade jurisdicional. No plano da eficácia interpretativa, os princípios podem, em alguns casos, assumir a função de condicionadores da atividade exegética, isto é, havendo a possibilidade de aplicação de duas normas ao mesmo caso concreto, o intérprete deve guiar-se pela que melhor atenda à vontade constitucional, tomando por base os postulados principiológicos. Desse modo, é inegável que, na atividade hermenêutica, o princípio basilar da dignidade da pessoa humana assume carga valorativa destacada. Em diversas ocasiões nossos Tribunais Superiores julgaram casos de grande relevância tomando por base o postulado inscrito no art. 1º, inc. III, da CF/88. Na decisão abaixo transcrita, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a submissão do réu a exame de DNA ofende o postulado da dignidade da pessoa humana, além de outras garantias fundamentais correlatas: Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, 'debaixo de vara', para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos. (HC 71.373, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 10/11/94, Plenário, DJ de 22/11/96).

Nesse outro julgado, o STF julgou improcedente o pedido formulado em ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra o art. 5º da Lei Federal n. 11.105/2005 (Lei da Biossegurança), que permite, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos

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por fertilização in vitro e não usados no respectivo procedimento, e estabelece condições para essa utilização. Veja-se:

Prevaleceu o voto do Min. Carlos Britto, relator. Nos termos do seu voto, salientou, inicialmente, que o artigo impugnado seria um bem concatenado bloco normativo que, sob condições de incidência explícitas, cumulativas e razoáveis, contribuiria para o desenvolvimento de linhas de pesquisa científica das supostas propriedades terapêuticas de células extraídas de embrião humano in vitro. Esclareceu que as células-tronco embrionárias, pluripotentes, ou seja, capazes de originar todos os tecidos de um indivíduo adulto, constituiriam, por isso, tipologia celular que ofereceria melhores possibilidades de recuperação da saúde de pessoas físicas ou naturais em situações de anomalias ou graves incômodos genéticos. Asseverou que as pessoas físicas ou naturais seriam apenas as que sobrevivem ao parto, dotadas do atributo a que o art. 2º do Código Civil denomina personalidade civil, assentando que a Constituição Federal, quando se refere à “dignidade da pessoa humana” (art. 1º, III), aos “direitos da pessoa humana” (art. 34, VII, b), ao “livre exercício dos direitos... individuais” (art. 85, III) e aos “direitos e garantias individuais” (art. 60, § 4º, IV), estaria falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa. Assim, numa primeira síntese, a Carta Magna não faria de todo e qualquer estágio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva, e que a inviolabilidade de que trata seu art. 5º diria respeito exclusivamente a um indivíduo já personalizado. (ADI nº. 3.510, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 28 e 29/05/08, Plenário, Informativo n. 508).

Não menos importante do que os julgados acima transcritos, mas adotando a mesma linha de raciocínio, no sentido de aplicar o princípio da dignidade da pessoa humana como vetor interpretativo na atividade jurisdicional, o STF possibilitou o cumprimento de pena nos moldes da prisão domiciliar à condenada por tráfico ilícito de entorpecentes, portadora de doença grave, não obstante o regime de cumprimento não autorizar tal medida. Nos termos de decisão lavrada pelo Min. Rel. Celso de Mello,

a transferência de condenado não sujeito a regime aberto para cumprimento da pena em regime domiciliar é medida excepcional, que se apóia no postulado da dignidade da pessoa humana, o qual representa, considerada a centralidade desse princípio essencial, significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente no país e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo. Concluiu-

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se que, na espécie, impor-se-ia a concessão do benefício da prisão domiciliar para efeito de cumprimento da pena, independentemente da modalidade de regime de execução penal, pois demonstrada, mediante perícia idônea, a impossibilidade de assistência e tratamento médicos adequados no estabelecimento penitenciário em que recolhida a sentenciada, sob pena de, caso negada a transferência pretendida pelo Ministério Público Federal, ora recorrente, expor-se a condenada a risco de morte. RHC provido para assegurar a ora paciente o direito ao cumprimento do restante de sua pena em regime de prisão domiciliar, devendo o juiz de direito da vara de execuções criminais adotar as medidas necessárias e as cautelas pertinentes ao cumprimento da presente decisão. (RHC n. 94.358/SC, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 29/04/2008, destaques acrescentados). (grifo no original)

Mesmo diante da proeminência do princípio em questão no ordenamento jurídico, somente à luz do caso concreto, no entanto, poder-se-á dizer, com segurança, haver a prevalência da dignidade da pessoa humana sobre outro princípio, em casos de colisão entre eles, uma vez que tanto os direitos fundamentais como os princípios não são absolutos, havendo meios próprios e pertinentes utilizados na sua aplicação e limitação, quando necessária. É importante ter em mente, ainda, que quando a colisão afetar, por sua vez, o núcleo do próprio princípio da dignidade da pessoa humana, isto é, a esfera do mínimo existencial, o critério solucionador do conflito passará a ser outro, como adiante se demonstrará com mais propriedade. Importa reforçar, com base no que fora afirmado, que na atual quadra do direito constitucional, a dignidade da pessoa humana figura no núcleo dos direitos fundamentais e como fundamento destes, servindo de instrumento hábil para a realização de uma leitura moral das normas (infra)constitucionais, buscando a solução mais condizente ao pensamento constitucional contemporâneo. Desse modo, salienta Piovesan (2010, p. 32) que “o valor da dignidade da pessoa humana, bem como o valor dos direitos e garantias fundamentais, vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro”.

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4.3 O papel do Poder Judiciário no constitucionalismo do Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito, nas palavras de Barroso (2007, p. 10), é a “síntese histórica de dois conceitos que são próximos, mas não se confundem: os de constitucionalismo e de democracia”99. A observância dos direitos fundamentais pelas maiorias democraticamente eleitas marca a conjugação saudável entre constitucionalismo e democracia. A prioridade dos Poderes Legislativo e Executivo, cujos órgãos se compõem por representantes eleitos pelo povo (art. 1º da CF/88), é a realização, na máxima extensão possível, dos direitos fundamentais, aos quais sua atuação são vinculados. Evidentemente, a priori, cumpre a esses poderes a concretização dos direitos fundamentais, uma vez que são suas as atribuições de elaborar leis, alocar recursos e formular e executar as políticas públicas nas áreas de educação, saúde, segurança e outros (BARROSO, 2007, p. 11). Todavia, nem sempre as deliberações políticas observam, rigorosamente, os ditames constitucionais, no tocante à efetivação dos direitos fundamentais. Essa ausência de observância se torna ainda mais saliente e visível quando a efetivação diz respeito aos direitos prestacionais, os quais dependem, quase invariavelmente, da implementação de políticas públicas pela Administração.

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Para Streck, a contraposição entre democracia e constitucionalismo é um perigoso reducionismo. Para o autor, “a afirmação da existência de uma ‘tensão’ irreconciliável entre constitucionalismo e democracia é um dos mitos centrais do pensamento político moderno, que entendo deva ser desmi(s)tificado” (STRECK, 2009b, p. 19). Segundo ele, “se existir alguma contraposição, esta ocorre necessariamente entre democracia constitucional e democracia majoritária, questão que vem abordada em autores como Dworkin, para quem a democracia constitucional pressupõe uma teoria de direitos fundamentais que tenham exatamente a função de colocar-se como limites/freios às maiorias eventuais” (Id., Ibid., grifos no original). Para Moraes (2003, p. 66), “[a] questão da legitimidade da justiça constitucional em confronto com a legitimidade da maioria legislativa coloca-se de forma acentuada no campo do controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que se concede a um Corpo de Magistrados poderes para a declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, afetando a produção legiferante do Parlamento, enquanto representante das aspirações populares em uma Democracia representativa”. Todavia, conforme sustenta o autor, a legitimidade da justiça constitucional parte da ideia de complementaridade entre Democracia e Estado de Direito (ou Constitucionalismo), “pois enquanto a Democracia consubstancia-se no governo da maioria, baseado na soberania popular, o Estado de direito consagra a supremacia das normas constitucionais, o respeito aos direitos fundamentais e o controle jurisdicional do Poder Estatal, não só para proteção da maioria, mas também, e basicamente, dos direitos da minoria” (Id., Ibis.,, p. 67).,

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Configurada essa hipótese, cabe ao Poder Judiciário velar pelo cumprimento das normas constitucionais, uma vez que é dotado de competência e legitimidade100 para tanto. Nesse sentido, para que os magistrados exerçam suas funções dentro dos limites possíveis e legítimos de atuação, é imprescindível que esta seja balizada por critérios bem definidos. Contudo, é no estabelecimento desses parâmetros (limites e possibilidades) que as opiniões se divergem, porquanto guiadas pelas mais diferentes orientações, sejam elas de cunho institucional, teórico, filosófico ou político. Para além disso, as implicações ultrapassam a questão acerca da possibilidade ou não da intervenção judicial. Questão que deve ser amplamente debatida atualmente trata-se, em verdade, do modus de efetivação judicial dos direitos fundamentais sociais. Possibilitar o acesso do Judiciário a essas questões é uma necessidade que se impõe no neoconstitucionalismo e que, em certo grau, decorre da própria crise de representatividade enfrentada por certas instituições democráticas. Todavia, mais importante que esse reconhecimento, é buscar uma adequada compreensão da Constituição101, mormente no que toca à fundamentação das decisões judiciais e ao modo como os juízes aplicam as normas constitucionais. Com base no estudo até então percorrido, pode-se dizer que os direitos sociais não se destinam a manter o status quo dos cidadãos, como ocorre com os direitos tipicamente de defesa (individuais), mas pressupõem seja criada ou colocada à disposição a prestação (fática ou normativa) que constitui seu objeto, já que os direitos de segunda dimensão objetivam a realização da igualdade não apenas formal, mas garantir a participação do povo na distribuição pública de bens materiais e imateriais (SARLET, 1998, p. 257). Neste desiderato, é de fundamental importância o papel assumido pelo Poder Judiciário quando instado a se manifestar nos casos em que o objeto da demanda diga respeito à prestação de algum direito social, em razão da ação ou omissão violadora da norma constitucional levada a cabo pelos Poderes Legislativo e/ou Executivo.

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Em verdade, as maiores críticas no que toca à efetivação judicial dos direitos sociais situa-se no âmbito da legitimidade, mais especificamente na legitimidade da justiça constitucional, que, no Estado Democrático de Direito, funciona como um autêntico freio contra maiorias eventuais. 101 Conforme bem apontado por Streck, uma baixa compreensão da Constituição leva, na maioria das vezes, a uma baixa aplicação. Conforme o autor, “se o intérprete possui uma baixa pré-compreensão, isto é, se o intérprete pouco ou quase nada sabe a respeito da Constituição (e, portanto, da importância da jurisdição constitucional, da teoria do Estado, da função do Direito, etc.), estará condenado à pobreza de raciocínio, ficando restrito ao manejo dos velhos métodos de interpretação e do cotejo de textos jurídicos no plano da (mera) infraconstitucionalidade (por isto, não raro juristas e tribunais continuam a interpretar a Constituição de acordo com os Códigos e não os Códigos em conformidade com a Constituição!). Numa palavra: para este tipo de jurista, vigência é igual a validade, isto é, para eles, texto e norma significam a mesma coisa” (STRECK, 2004, p. 95).

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Todavia, o Judiciário nem sempre possuiu este proeminente papel na busca pela efetividade da Carta Constitucional. Com efeito, o constitucionalismo liberal estabeleceu como função precípua do Estado a de legislar102. A Constituição era vista como um documento eminentemente político, desprovido de força normativa e incapaz de vincular a atividade jurisdicional na efetivação dos direitos fundamentais em seu bojo arrolados. É de se compreender, pois a observância dos direitos fundamentais então reconhecidos se operava, quase exclusivamente, pelo non facere estatal. Neste período, marcado pelo formalismo jurídico, o intérprete da norma tinha a tarefa de simplesmente declarar o direito positivo. Não exercia, portanto, um papel criativo e transformador da realidade que o cercava. Nas palavras de Bobbio (1995, p. 212),

o positivismo jurídico concebe a atividade da jurisprudência [atividade cognoscitiva do direito visando à sua aplicação] como sendo voltada não para produzir, mas para reproduzir o direito, isto é, para explicitar com meios puramente lógico-racionais o conteúdo de normas jurídicas já dadas.

Para o juspositivismo, sobretudo de matriz kelseniana, trazer para o direito noções que não as reproduzidas na lei, como, por exemplo, preceitos de ordem moral ou social, demonstrava-se inconcebível, pois era a rejeição aos valores e a qualquer orientação de cunho metafísico que caracterizava o positivismo, inclusive o jurídico (CAMARGO, 1999, p. 113). Desse modo, na visão clássica do direito, influenciada pelo pensamento de Montesquieu, o juiz é concebido tão-somente como a boca que pronuncia as palavras da lei. Na lição de Barroso (2009, p. 230), nada mais é que “um ser revelador de verdades abrigadas no comando geral e abstrato da lei. Refém da separação de Poderes, não lhe cabe qualquer papel criativo”. Durante muito tempo, essa foi a forma pela qual se via o Direito e na qual se desencadeou uma série de acontecimentos que contribuíram para a desigualdade social. Decorrido o tempo necessário para o amadurecimento do saber jurídico, notou-se que a pureza do direito e a neutralidade do intérprete não atendiam às aspirações de justiça e legitimidade do poder. Como observado, sob o manto da legalidade cometeram-se um dos maiores abusos contra os direitos do homem e da humanidade. Deste modo, visando a operar uma releitura da dogmática jurídica tradicional, surge um conjunto de movimentos e ideias genericamente denominados “Teoria Crítica do Nas palavras de Saldanha (1982, p. 41), “[o] Estado liberal revelou-se em verdade um Estado legislativo, já pela proeminência que tomaram os corpos legislativos no plano político, já pela absorção da idéia de direito objetivo e positivo dentro do conceito de lei”. 102

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Direito”103 (BARROSO, 2009, p. 230-235). Trazida por ideais nem sempre uniformemente compreendidos no tempo e no espaço, a teoria crítica chega ao Brasil sem o devido público, pois o ambiente vivenciado durante a ditadura militar não era propício a difundir e conceber uma doutrina que tinha como escopos principais proporcionar uma leitura ética do Direito, à luz de princípios e valores nem sempre encontrados na lei. Este ambiente veio a modificar-se com a redemocratização iniciada em 1985 e consolidada formalmente em 1988. A decadência do positivismo jurídico ocorrida após a segunda metade do século XX marca a volta dos valores ao Direito, fazendo surgir uma onda pela redemocratização no mundo ocidental. Os regimes nazi-fascistas na Europa demonstram que o Direito não pode ou não deve ser compreendido como uma ciência pura e neutra, afastada de valores, princípios éticos e da própria realidade na qual se assenta104. A centralidade do princípio da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados passa a servir de crivo para toda interpretação jurídica. O Poder Judiciário, pelo exercício da jurisdição constitucional, é o órgão que deve zelar pela Constituição Federal e sua efetividade. Como observado, seu papel não mais se resume em reproduzir o que o legislador julgou conveniente positivar. As leis nem sempre condizem com o pensamento constitucional vigente em cada Estado, cabendo ao Poder Judiciário invalidar atos dos outros Poderes – p. ex., declaração de inconstitucionalidade -, ou atuar na ausência de manifestação expressa do legislador, por via da construção jurídica, da mutação constitucional ou da integração das omissões constitucionais (BARROSO, 2009, p. 283). Nesse sentido, a legitimidade do Poder Judiciário para o exercício adequado da jurisdição constitucional situa-se na confluência de ideias que traduzem o constitucionalismo democrático. Segundo Barroso (2009, p. 286), nesse modelo, “a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é assegurar as regras do jogo democrático, propiciando a participação política ampla e o governo da maioria. Mas a democracia não se resume ao princípio majoritário.” O segundo papel assumido pela Constituição é o de “proteger valores e direitos fundamentais, mesmo contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos”.

Para Eros Grau (2003, p. 148), inexiste uma teoria crítica do direito. Nas palavras do autor: “O que há são movimentos ou correntes de crítica do direito”. 104 Por isso, apropriada a lição de Streck (2009b), quando afirma que os princípios, no contexto do (neo)constitucionalismo, marcam, em termos hermenêuticos, a inserção do mundo prático no Direito, questão que restou obnubilida no positivismo jurídico, com o seu modelo de regras. 103

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Tal característica é própria dos países que adotaram o constitucionalismo democrático (centralidade dos direitos fundamentais, adoção de uma jurisdição constitucional, normatividade dos princípios, estabelecimento de um órgão judiciário hierarquicamente superior como guardião da Constituição Federal, novas formas de interpretação do direito) após o segundo pós-guerra e, no caso brasileiro, após o regime militar. Todavia, esta noção não é uníssona, razão pela qual retornaremos ao tema logo adiante, quando serão abordadas as teses substancialistas e procedimentalistas acerca do papel da Constituição e a possibilidade do controle judicial das políticas públicas. Cumpre dizer no momento, de modo geral, que é inconcebível na atual fase do direito constitucional um Judiciário estanque e indiferente aos valores e princípios positivados na Lei Fundamental. Da mesma forma que hoje se evita uma ditadura do Poder Judiciário, no sentido de funcionar como real legislador positivo, assumindo posturas próprias do ativismo, deve-se também afastar o pensamento ultrapassado de que o magistrado tem por função, tãosomente, reproduzir o direito posto - através de uma auto-contenção -, olvidando do caráter cogente-vinculativo das normas constitucionais (direitos fundamentais) e da possibilidade de sua concretização com base nos princípios fundamentais. No entanto, para que isso seja possível, é necessário que o princípio da separação dos poderes receba uma releitura, abrindo a possibilidade de o Poder Judiciário fazer jus ao comando constitucional que o investe como guardião da Lei Maior. Neste aspecto, bem assinala Coelho (2009, p. 119), quando afirma a necessidade de rever o dogma da separação dos poderes

para adaptá-lo ao moderno Estado constitucional, que sem deixar de ser liberal, tornou-se igualmente social e democrático, e isso não apenas pela ação legislativa dos Parlamentos, ou pelo intervencionismo igualitarista do Poder Executivo, mas também pela atuação política do Poder Judiciário, sobretudo das modernas Cortes Constitucionais, crescentemente comprometidas com o alargamento da cidadania e a realização dos direitos fundamentais.

Ao Judiciário não é dada outra função, nesse contexto, senão a de atuar como coparticipante do processo de elaboração das normas (aqui entendidas como produto da interpretação), as quais, quando elaboradas, não levam em conta, pela própria impossibilidade, a infinidade de possibilidades que a realidade pode proporcionar. A lei abstrata, antes mesmo de ser um fim ao julgador deve ser o meio pelo qual se exercerá a

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atividade hermenêutica105, levando em consideração a permanente mutação das relações sociais. Nesse sentido, preleciona Azevedo (1989, p. 73) que

o direito e a formação jurídica, que condiciona a concepção que do direito se tenha, necessitam libertar-se dos antolhos positivistas, que levam à paralisia da consciência crítica do jurista, cortando-lhe a iniciativa, reduzindo-o a testemunha sem ação diante dos acontecimentos.

Frise-se, a priori, que este poder criativo do juiz não deve afrontar a segurança jurídica, levando o magistrado a suplantar regras em prol do subjetivismo/decisionismo, tão próximos da arbitrariedade. Há que se elucidar, no entanto, que é o uso correto desse “criativismo judicial” que proporcionará uma melhor segurança jurídico-social, uma vez que “ter a ordem estabelecida como inquestionável e, logo, imutável, leva a subestimar as forças sociais em ascensão e mutação, conduzindo à desconformidade entre o processo histórico e o processo legal que nele se insere” (AZEVEDO, 1989, p. 75).

4.3.1 A judicialização das relações sociais e políticas

Conforme se observou, o Poder Judiciário assumiu certa proeminência no período constitucional democrático ora vigente, cabendo a ele assegurar o cumprimento das normas constitucionais, sem olvidar das regras inerentes ao bom desempenho do jogo democrático. O papel hoje assumido pelo Judiciário se deve a uma série de fatores, internos e externos. Conforme preceitua Barroso (2009, p. 383), “recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo”. Por esses motivos, não sem justificativa, muitas questões políticas e sociais tiveram no Poder Judiciário o seu desfecho. Tanto questões de grande monta (como, p. ex., aspectos centrais da Reforma da Previdência – contribuição dos inativos), como questões 105

Não se deve dizer também que a lei é somente a ponta do iceberg, e pela interpretação descobrir-se-ia os valores a ela subjacentes. Como bem salienta Streck (2009b), sem seu Verdade e Consenso, interpretar não é retirar sentido da norma, buscar sua vontade (ou a do legislador), e sim atribuir sentido, porque, do contrário, estaríamos reféns (ainda) do esquema sujeito-objeto, que imperou nas metafísicas (clássica e moderna), e pelas quais se baniu do direito o mundo prático, escondendo-o atrás da discricionariedade interpretativa.

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corriqueiras (legalidade da cobrança de assinaturas telefônicas; fixação do valor máximo de reajuste de mensalidade de planos de saúde)106, foram delineadas por meio de decisões judiciais. A judicialização de diversas matérias acaba sendo consequência do modelo constitucional adotado no Brasil, onde tem-se uma constituição que trata dos mais diversos temas e busca traçar regras atinentes aos vários setores da sociedade. Algumas das normas constitucionais definem, ainda, a força de efetivação de determinados direitos, sendo o caso do direito à saúde um típico exemplo, ao ditar que o referido direito será garantido mediante políticas sociais e econômicas (art. 196). As políticas públicas são elaboradas, a rigor, no âmbito da Administração Pública, não cabendo, a priori, ao Poder Judiciário intervir nas mesmas. No entanto, com a ampliação cada vez maior do fenômeno da judicialização – que não deve ser confundido com ativismo judicial – inúmeros questões relacionadas aos direitos sociais são colocadas ao exame judicial, que em muitos casos tem sido o locus de satisfação dessas pretensões. Nesse momento, coloca-se em discussão inúmeras questões relevantes e, dentre elas, a da legitimidade da justiça constitucional prover tais demandas. O debate é paradigmático, tornando-se impossível em um só trabalho abordar com amplitude os temas relacionados. Assim, limitar-nos-emos a tecer algumas posições acerca da possibilidade (ou não) do Poder Judiciário efetivar os direitos sociais e trazer alguns parâmetros propostos na doutrina para que a jurisdição seja legitimamente exercida. É cediço que os órgãos dos Poderes Executivo e Legislativo são compostos por membros eleitos pelo povo. No caso do Poder Judiciário, seus componentes são investidos mediante aprovação em concurso público (art. 93, I, da CF/88). Assim, a indagação que se coloca está no modo como uma decisão judicial pode afastar a validade de uma postura avalizada pela vontade popular. Correndo-se o risco da simplificação, pode-se dizer que tal dilema se estabelece entre jurisdição (constitucional) e democracia107. O ponto justificador desse papel ativo, além dos próprios e inerentes à compreensão do pós-positivismo que orienta o Estado Democrático de Direito, situa-se na legitimidade democrática adquirida pelo Poder Judiciário neste último quarto de século. O mundo observou, em meados do século XX, o declínio dos valores em prol da barbárie, com as experiências nazi-fascistas na Alemanha e na Itália. Ultrapassado esse período, no qual a morte se operou sob os desígnios da legalidade, a redemocratização passou 106

Exemplo retirados da obra de Luís Roberto Barroso: Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 384. 107 Sobre o tema, conferir MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

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a ser o meio para se resgatarem os valores há pouco esquecidos e ultrajados. Para viabilizar a redemocratização daqueles países e dos que posteriormente passaram também por experiências ditatoriais, como foi o caso do Brasil (1964-1985) – guardadas as devidas diferenças -, tornou-se necessário: primeiro, positivar normas de conteúdo moral no texto constitucional, o que pode ser vislumbrado pelos princípios constitucionais relacionados à pessoa humana; e segundo, o estabelecimento de um poder ao qual caberia a guarda da Constituição, cujo texto passou a abrigar, desde então, um maior número de direitos, garantias e princípios fundamentais que formaram o seu núcleo material. Somado a este fator histórico, o Estado Democrático de Direito surge com o propósito de suprir as falhas do Estado Social que o precedeu, realizando a justiça material por meio da efetivação dos direitos fundamentais sociais. Tal propósito, dada sua relevância, vem explícito preambularmente no texto constitucional pátrio. Combinando essas duas premissas (a tarefa de realizar a justiça material trazida pelo Estado Social e a necessidade de um poder que assegure o cumprimento dos postulados morais da Constituição), a conclusão que se tem é a de que o Poder Judiciário passa a assumir importante papel na concretização dos direitos sociais, em observância aos princípios e direitos fundamentais positivados na Lei Maior, com vistas a materializar o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido é que Streck (2002, p. 128) salienta que

esse conjunto de fatores redefine a relação entre os Poderes do Estado, passando o Judiciário (ou os tribunais constitucionais) a fazer parte da arena política, isto porque o Welfare State lhe facultou o acesso à administração do futuro, e o constitucionalismo moderno, a partir da experiência negativa de legitimação do nazi-fascismo pela vontade da maioria, confiou à justiça constitucional a guarda da vontade geral, encerrada de modo permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica.

Buscando responder, ou ao menos elucidar a problemática, Barroso (2009, p. 385386) afirma que a legitimidade democrática do Poder Judiciário para determinar aos demais poderes que façam ou deixem de fazer algo situa-se em duas etapas:

A primeira, mais tradicional, assenta raízes na soberania popular e na separação dos Poderes: a Constituição, expressão maior da vontade do povo, deve prevalecer sobre as leis, manifestações das maiorias parlamentares. Cabe assim ao Judiciário, no desempenho de sua função de aplicar o Direito, afirmar tal supremacia, negando validade à lei inconstitucional. A segunda, que lida com a realidade mais complexa

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da interpretação jurídica contemporânea – que superou sua compreensão formalista e mecanicista do fenômeno jurídico, reconhecendo o papel decisivo do intérprete na atribuição de sentido às normas jurídicas -, procura legitimar o desempenho do controle de constitucionalidade em outro fundamento: a preservação das condições essenciais de funcionamento do Estado democrático. Ao juiz constitucional cabe assegurar determinados valores substantivos e a observância dos procedimentos adequados de participação e deliberação.

Cumpre estabelecer, portanto, quando cabe ao Judiciário agir e, lado outro, em que situações deve tão-somente assegurar a observância desses procedimentos para uma satisfatória participação e deliberação democrática. A efetivação dos direitos sociais deve ser operada, primeiramente, no plano político, pelo debate público, isto é, por meio de representantes democraticamente eleitos, cujas funções precípuas se traduzem na elaboração de leis e na execução de políticas públicas para efetivá-las. Todavia, como é cediço, em algumas ocasiões tais Poderes não suprem as necessidades dos cidadãos (ou as suprem parcialmente), razão pela qual estes buscam, pela via judicial, a fruição do direito não satisfeito (ou violado). Nota-se, nesse contexto, que o Poder Judiciário, quando instado a se manifestar nesses casos, exercerá, inexoravelmente, um papel político. Desse modo, é imprescindível que não se mencione o embate existente na atualidade acerca de duas teorias que buscam explicar o papel da Constituição, bem como da possibilidade do Poder Judiciário assegurar o seu cumprimento, inclusive determinando ao Poder Público a criação/modificação/execução de determinada política pública. Para solucionar – ou, ao menos, clarificar - essa questão, o intérprete há que se socorrer de duas correntes de pensamento, quais sejam, a substancialista e a procedimentalista. O ponto comum é que ambas procuram definir o papel e as possibilidades da Constituição Federal. Em breve síntese, pode-se assim delineá-las: aos que admitem o controle judicial das políticas públicas e uma maior intervenção do Poder Judiciário, visando à preservação dos direitos fundamentais, atribui-se o rótulo de substancialistas; aos que repudiam este mesmo controle, com vistas a preservar a incolumidade do processo político majoritário e afastar do âmbito judicial a discussão acerca dos caminhos das escolhas políticas, dá-se o título de procedimentalistas108. 108

Tomando por objeto a função do Supremo Tribunal Federal no Brasil, Silva formula algumas indagações intimamente relacionadas às teses que ora se abordam: a discussão mais urgente que se coloca deve

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Dissertando sobre o tema, Barcellos (2005) observa que se trata da compreensão de duas ideias diversas acerca do próprio papel da Constituição, salientando que

a primeira delas sustenta que cabe à Constituição impor ao cenário político um conjunto de decisões valorativas que se consideram essenciais e consensuais. Essa primeira concepção pode ser descrita, por simplicidade, como substancialista. Um grupo importante de autores, no entanto, sustenta que apenas cabe à Constituição garantir o funcionamento adequado do sistema de participação democrático, ficando a cargo da maioria, em cada momento, histórico, a definição de seus valores e de suas opções políticas. Nenhuma geração poderia impor à seguinte suas próprias convicções materiais. Esta segunda forma de visualizar a Constituição pode ser designada de procedimentalismo (BARCELLOS, 2005, p. 87-88).

Tratando também sobre o tema, Streck (2002, p. 141) resume o pensamento substancialista da seguinte maneira:

Em síntese, a corrente substancialista entende que, mais do que equilibrar e harmonizar os demais Poderes, o Judiciário deveria assumir o papel de um intérprete que põe em evidência, inclusive contra maiorias eventuais, a vontade geral implícita no direito positivo, especialmente nos textos constitucionais, e nos princípios selecionados como de valor permanente na sua cultura de origem e na do Ocidente. Coloca, pois, em xeque, o princípio da maioria, em favor da maioria fundante e constituinte da comunidade política

Em posição avessa ao substancialismo, Streck traz, dente outros, o pensamento de Habermas109, o qual critica com veemência a invasão da política e da sociedade pelo Direito. Traduzindo o proposto por Habermas, Streck diz que

o paradigma procedimentalista pretende ultrapassar a oposição entre os paradigmas liberal/formal/burguês e o Estado Social de Direito, utilizando-se, para tanto, da interpretação da distinção entre política e direito, à luz da teoria do discurso. Parte dizer respeito sobre o papel do STF na interpretação constitucional. “Cabe a esse Tribunal fazer valer determinados valores constitucionais? Se sim, como decidir quais prevalecem em cada caso concreto? Ou ao STF cabe apenas zelar pelo bom funcionamento procedimental do regime democrático, deixando para o legislativo a tarefa de decidir sobre os valores constitucionais a serem concretizados? (SILVA, 2007, p. 143). 109 Para Habermas, dizem Wermuth e Sparemberger (2009, p. 132-133), “no processo democrático de criação legislativa, os cidadãos devem se reconhecer como autores do Direito, e não como seus destinatários. Ou seja, o cidadão não é um simples cliente da burocracia estatal, mas um ator autônomo que constitui a sua vontade e opinião no âmbito da sociedade civil e da esfera pública, canalizando-a em um fluxo comunicacional livre para o interior do sistema político. Nessa lógica, a comunicação política dos cidadão envolve todos os assuntos de interesse público e resulta, ao final, nas decisões de corporações legislativas.

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da idéia de que os sistemas jurídicos surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados Sociais, denotam uma compreensão procedimentalista do Direito (2002, p. 134).

O papel do Tribunal Constitucional (esta noção pode ser vislumbrada amplamente, tomando o termo como o próprio exercício da jurisdição constitucional), na visão habermasiana, deve se limitar à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, limitando-se a proteger um processo de criação democrática do Direito. Propõe ainda um modelo de democracia constitucional que não possui como condição prévia fundamentar-se nem em valores compartilhados, nem em conteúdos substantivos. Nas palavras de Streck:

o Tribunal Constitucional não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza dos seus problemas e a forma de sua solução (2002, p. 138).

Quando Habermas sustenta esse entendimento, segundo o qual a Constituição somente deve servir de instrumento para que os cidadãos operacionalizem sua efetividade, por meio da discussão110, tal possibilidade, ao menos sob o ponto de vista brasileiro, mostra-se ainda inviável. Diante da “incapacidade” de o cidadão participar conscientemente do processo político, ou melhor, estabelecer elos comunicacionais aptos a reconhecer nas leis a sua própria vontade, é que se faz necessária a atuação judicial, reflexamente, no sentido de proporcionar a fruição dos valores substantivos albergados na Constituição do Estado Democrático de Direito. Assim, apoiada em sua força normativa, a Constituição deve ser o meio de se assegurar os direitos fundamentais e, sobretudo, os de índole essencialmente prestacional. Conforme assinalado pelo próprio Streck (2002, p. 142), Habermas fez estas considerações levando em conta tão-somente o paradigma do Estado Social de Direito, olvidando, ao que parece, do conjunto de ideias que compõem o constitucionalismo contemporâneo, que sustenta o paradigma do Estado Democrático e Constitucional de Direito. Ainda nas palavras do autor (Id., p. 143), Habermas subestima o Direito no que concerne ao

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Ao dissertarem sobre a noção procedimentalista, tomando por base o panorama proposto por Garapon, Wermuth e Sparemberger dizem que “ao invés da cura salvífica dos indivíduos, competiria a ela [Justiça] auxiliá-los a encontrar, nas suas próprias relações sociais, as soluções para os problemas que os afligem. Nesse sentido, competiria ao Judiciário não uma intervenção no âmbito da política, mas sim na revitalização do tecido social. Ou seja, ao juiz competiria um papel de terapeuta social e não de interventor político” (2009, p. 132).

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seu plus normativo e à fórmula instituída pelo Estado Democrático de Direito, que supera as noções anteriores do Estado Liberal e do Estado Social. Não se trata de dizer que Habermas não trabalha com a noção de Estado Democrático de Direito, mas que ele não reconhece a necessária diferenciação que existe entre este e o modelo do Estado Social. Diferentemente do Estado Social, que surgiu a partir de uma crítica reformista do modelo anterior (liberal), o Estado Democrático de Direito marca, na verdade, a superação dos modelos que o precederam e, além disso, estabelece a “revalorizaçao do jurídico, como contraponto à plenipotenciariedade da razão política que tantas sequelas deixou” (STRECK, 2002, p. 143). Assim, segundo o referido autor (Ibid., p. 143-144),

o Estado Democrático de Direito é um novo paradigma porque foi engendrada, no campo do direito constitucional e da ciência política, uma nova legitimidade, no interior da qual o Direito assume a tarefa de transformação, até mesmo em face da crise do modelo de Estado Social, onde as políticas públicas começaram a se tornar escassas, questão que colocava em risco a realização dos direitos sociais e fundamentais. (grifos no original)

Nota-se, ao longo da vivência destes três paradigmas de Estado de Direito acima mencionados, que diferentes poderes protagonizaram e, por consequência, marcaram o modo de se garantir e promover os direitos fundamentais, ou seja, o modus de realização da Constituição. No paradigma liberal, as funções estatais se concentravam nas mãos do parlamento, o qual tinha o dever de elaborar as leis, enquanto os demais poderes atuavam timidamente/contemplativamente na realização da vontade estatal e na satisfação das necessidades dos cidadãos aos quais eram reconhecidos, tão-somente, os direitos individuais. Com o paradigma social e o surgimento dos direitos sociais, a concentração passa para o âmbito Executivo111, sendo esse o poder atribuído de realizar os direitos sociais por

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Essa mudança de paradigmas dá início, segundo Moraes (2003), à crise do sistema representativo. Segundo o autor, “diferentemente do Estado Liberal, em que o Poder Legislativo, enquanto detentor da vontade geral do povo, predominava entre os demais poderes, a partir do Estado Social, o Poder Executivo vem assumindo, cada vez mais, o papel de grande empreendedor das políticas governamentais, relegando a segundo plano o Parlamento e, consequentemente, os partidos políticos, e fazendo surgir, com mais força e vitalidade, por absoluta necessidade prática, outros atores da competição política. Assim, a idéia básica do Estado Liberal, em que a crença da soberania popular e da representação política permaneciam intocáveis, como instrumentos infalíveis da participação da sociedade no poder, foi afastada pela chegada do Estado Social, demonstrando, claramente, que, diante das grandes transformações socioeconômicas, os representantes do povo muito pouco decidem, e os que decidem carecem de grande representatividade política” (Id., Ibid., p. 47).

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meio da promoção de políticas públicas, as quais, a bem da verdade, muitas vezes refletiam os interesses não dos cidadãos, mas dos grupos eventualmente no poder112. Com a superação destes dois modelos, nota-se no atual paradigma do Estado Democrático de Direito uma tendência a atribuir ao Poder Judiciário o protagonismo na efetivação dos direitos fundamentais por meio do exercício da jurisdição constitucional. Tal fato fora de antemão justificado acima, tomando por base duas premissas, relacionadas ao papel do Estado Democrático de Direito e à atribuição da guarda da Constituição ao Poder Judiciário, mais especificamente à Corte Constitucional (no Brasil, o Supremo Tribunal Federal). Conforme salientado por Streck (1999, p. 37-38), no Estado Democrático de Direito há – ou deveria haver – um sensível deslocamento do centro de decisões do Legislativo e do Executivo para o Judiciário (...) Se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. (grifo no original)

Com a onda pós-positivista integrada ao rótulo do neoconstitucionalismo, a atuação do juiz passa a ser orientada por uma nova hermenêutica, isto é, toda e qualquer interpretação jurídica se torna, direta ou indiretamente, interpretação constitucional, que traz consigo novas formas de compreender e aplicar o Direito. Desse modo, ainda que implicitamente, o magistrado deve verificar, no caso concreto, se a norma a ser por ele aplicada se conforma à Constituição. Assentado isso, a discussão em torno do controle judicial das políticas públicas no atual paradigma do Estado de Direito é necessária, uma vez que é por meio delas que o Poder Público operará a efetividade dos direitos sociais, isto é, por meio de prestações positivas é que o Estado buscará a aproximação, o quanto possível, da norma à realidade. Atente-se, todavia, para um fato que, de tão claro, pode ofuscar a visão dos mais desavisados. Estamos (ainda, isto é, mesmo após a instituição do Estado Democrático de Direito) falando em efetivação dos direitos sociais, porém, desta vez, pelo Poder Judiciário, fato que pressupõe, à primeira vista, a sua não-efetivação pelo Poder Público.

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Cf. STRECK, 2002, p. 144-145.

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Assim, razão assiste a autores como o já citado Streck ao afirmar que o Brasil é um país de modernidade tardia (onde o Estado Social sequer concretizou-se113), motivo pelo qual a adoção da tese procedimentalista, embora pareça viável em outros países, torna-se incompatível com as características do Estado brasileiro, que, sem verdadeiramente ter sido social, pretende ser democrático. Nesse prisma, vale a citação de Streck (2002, p. 148-149), que bem reproduz o entendimento que se deve ter da Constituição: percebemos a Constituição ‘como’ Constituição quando a confrontamos com a sociedade para a qual é dirigida; (...) quando examinamos os dispositivos que determinam o resgate das promessas da modernidade e quando, através de nossa consciência da história efetual (...), nos damos conta da falta (ausência) de justiça social; percebemos a Constituição ‘como’ Constituição quando constatamos, por exemplo, que os direitos sociais somente foram integrados ao texto da Constituição exatamente porque a imensa maioria da população não os têm, ou seja, a linguagem introdutória dos textos relativos aos direitos sociais surgem exatamente a partir de ‘sua’ falta; a Constituição, é, também, desse modo, a própria ineficácia da expressiva maioria de seus dispositivos; percebemos, também, que a Constituição não é somente um documento que estabelece direitos individuais, sociais e coletivos, mas, mais do que isto, ao estabelecê-los, a Constituição coloca a lume a sua ausência, desnudando as mazelas da sociedade; enfim, não é a Constituição uma mera Lei Fundamental que ‘toma’ lugar no mundo jurídico, estabelecendo um ‘novo dever-ser’, até porque antes dela havia uma outra ‘Constituição’ e antes desta outras quatro na era republicana..., mas, sim, é da Constituição, nascida do processo constituinte, como algo que constitui, que deve surgir uma nova sociedade. (grifo no original)

Deste trecho pode-se notar que o constituinte houve por bem inserir os direitos sociais no texto constitucional, bem como estabelecer os meios para que o Estado alcance seus objetivos, os quais estão inscritos já no preâmbulo constitucional e reforçados no art. 3º, devendo os Poderes da República priorizarem a sua realização. A complexidade do tema não nos permite efetuar maiores digressões. Desse modo, pelo que fora exposto, a adoção da perspectiva procedimentalista afigura-se inviável no Estado Democrático de Direito brasileiro, dada a desigualdade (social, econômica, cultural)

“O assim denominado Estado Social não se concretizou no Brasil (foi, pois, um simulacro), onde a função intervencionista do Estado serviu para aumentar ainda mais as desigualdades sociais” (STRECK, 2009, p 49.). 113

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reinante no país. Diante desse contexto, necessária se torna uma atuação judicial ativa e razoável no sentido de efetivar a ordem constitucional vigente, devendo o Poder Judiciário optar por um “intervencionismo substancialista”, sob pena de as “promessas da modernidade” serem, novamente, relegadas ao plano das promessas de uma futura e, quase improvável, efetividade. Neste sentido, operada essa realização do Estado Social, de modo que possibilite a existência de uma igualdade material, talvez, após isto, possamos adotar a perspectiva procedimentalista, uma vez que “o sistema de diálogo democrático não tem como funcionar de forma minimamente adequada se as pessoas não tiverem condições de dignidade ou se seus direitos, ao menos em patamares mínimos, não forem respeitados” (BARCELLOS, 2007, p. 8). Diante do quadro acima delineado, não se está afirmando a possibilidade de o Poder Judiciário efetuar o controle de toda e qualquer política pública ou de intervir no cenário político jurídico sem o mínimo de legitimidade, de modo que haja o suprimento da deliberação político-majoritária pelas decisões judiciais, levadas a cabo, muitas vezes, sob o enfoque da micro-justiça. Todavia, é imprescindível que os poderes estatais, seja na elaboração do orçamento, seja na execução das políticas, visem, prioritariamente, à efetivação dos comandos constitucionais fundamentais, mormente no que toca à esfera do mínimo existencial, uma vez que estão àqueles vinculados. Situado este debate, cumpre dizer que acerca dos parâmetros a serem utilizados pelo Poder Judiciário na efetivação dos direitos sociais, especificamente do direito à saúde, será dedicado tópico específico. Visando ainda à melhor elucidação do tema, veja-se o entendimento esposado pelo Min. Celso de Mello, com relação à possibilidade de o Poder Judiciário determinar a execução de políticas públicas à Administração:

Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. (RE nº. 410.715 AgR/SP, Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 22.11.2005, DJ de 03.02.2006).

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Portanto, cumpre afirmar que ante a possibilidade de o Poder Judiciário intervir na atuação dos demais poderes, de modo a preservar e a promover o núcleo substancial da Constituição, o magistrado deve superar os tradicionais métodos hermenêuticos, uma vez que a jurisdição constitucional do Estado Democrático, não raras vezes, deve socorrer-se a outros métodos mais próprios à interpretação dos direitos e princípios fundamentais. Deste modo, a discussão em torno das teses procedimentalista e substancialista implica diretamente no modo de aplicar o Direito. Como se deduz, a tese procedimentalista propõe um Judiciário mais inerte, isto é, não criativo no que concerne à efetivação dos direitos sociais. De outro modo, a perspectiva substancialista impõe, conforme se anotou, uma atuação judicial interventiva, visando à concretização do núcleo substancial/material da Constituição. O posicionamento por uma atuação criativa na compreensão e aplicação da norma se harmoniza às mudanças da pós-modernidade e impõe ao intérprete o domínio de novos métodos de interpretação constitucional, superando, mas não suprimindo, os tradicionais. Nesse contexto, Barroso (2009, p. 309-311) traz a lume algumas “categorias jurídicas” utilizadas pela nova interpretação constitucional, cuja falta de compreensão comprometerá, inevitavelmente, a razoabilidade da decisão judicial114. São elas: (i) os denominados conceitos jurídicos indeterminados; (ii) o reconhecimento de normatividade aos princípios e sua distinção qualitativa em relação às regras; (iii) a existência de colisões de normas constitucionais, tanto as de princípios como as de direitos fundamentais; (iv) o desenvolvimento da técnica ponderativa para a solução das colisões; e, por fim, (v) a necessidade da razão prática (argumentação) como substrato de uma fundamentação qualificada das decisões. Compreender essas categorias se torna uma necessidade inexorável na aplicação dos direitos sociais, uma vez que, conforme Krell (1999, p. 249),

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Importar salientar que tais proposições, como de rigor, não está imune a críticas. Embora Luís Roberto Barroso seja também um autor que adote expressamente a compreensão substancialista, muitas das suas teses são, (in)diretamente, contestadas veemente por autores brasileiros (também substancialistas), como o próprio Lenio Luiz Streck, que, em uma de suas últimas obras (Verdade e Consenso), alerta que a técnica da ponderação (adotada por Barroso), nada mais faz do que repristinar a discricionariedade positivista nos “casos difíceis”, dizendo que a proporcionalidade deve ser compreendida como coerência e integridade e não como juízo de equidade ou de ponderação. Para tanto, conferir: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009.

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normas constitucionais sobre direitos fundamentais contêm, por natureza, conceitos vagos, abstratos, de textura aberta, que constituem fórmulas valorativas, as quais não podem ser interpretadas adequadamente mediante os métodos tradicionais da hermenêutica jurídica.

Para a melhor elucidação dessas afirmações, cumpre trazer um exemplo. No Recurso Especial n. 249.026-PR, o Superior Tribunal de Justiça possibilitou o levantamento do FGTS para tratamento de familiar portador de vírus HIV, ainda que tal moléstia não se encontre elencada no art. 20, XI, da Lei n. 8.036/90. Alegou a Caixa Econômica Federal, em suas razões, a impossibilidade do levantamento do referido Fundo ao argumento que tal hipótese não encontra previsão legal. Alertou o Min. Relator José Delgado que o argumento utilizado pela recorrente (CEF) “empresta uma interpretação muito amesquinhada e estreita ao texto legal em comento”. A ementa lavrada possui o seguinte teor:

FGTS. LEVANTAMENTO TRATAMENTO DE FAMILIAR PORTADOR DO VÍRUS HIV. POSSIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. É possível o levantamento do FGTS para fins de tratamento de portador do vírus HIV, ainda que tal moléstia não se encontre elencada no artigo 20, XI, da Lei 8036/90, pois não se pode apegar, de forma rígida, á letra fria da lei, e sim considerá-la com temperamentos, tendo-se em vista a intenção do legislador, mormente o preceito maior insculpido na Constituição Federal garantidor do direito à saúde, à vida e à dignidade humana e, levando-se em conta o caráter social do Fundo que é, justamente, assegurar ao trabalhador o atendimento de suas necessidades básicas e de seus familiares. 2. Recurso Especial desprovido. (STJ, DJU, 26 jun. 2000, REsp. 249026-PR, rel. Min. José Delgado).

Eis no julgado acima transcrito um exemplo de superação da hermenêutica jurídica convencional, priorizando o argumento favorável à garantia dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, núcleo substancial da Constituição Federal e do ordenamento jurídico. Em estreita sintonia ao critério interpretativo acima utilizado estão as lições de Azevedo (1989, p. 70), quando afirma que

não pode o juiz ignorar ou descurar os preceitos do ordenamento jurídico ao dirimir os litígios que lhe são submetidos. Pode, todavia, ocorrer que, valorizando os dados peculiares a cada um destes, conclua, por vezes, que a regra de direito positivo que lhe seria aplicável por mera subsunção, ocasionaria efeitos indesejáveis ou

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inaceitáveis. Nestas situações, por obediência ao direito, deve afastar essa regra ou descobrir-lhe novo sentido, buscando dar ao caso tratamento consentâneo com as exigências da justiça.

O que ocorre, nos casos de decisões desta estirpe, não é a aplicação de critérios meramente subjetivos e desprovidos de qualquer respaldo normativo, mas, sim, a superação do método exclusivamente subsuntivo/dedutivo na aplicação das normas. O equívoco no qual muitas vezes se incorre é o de acreditar que referido modelo de decisão viola direitos e procedimentos próprios para se atingir determinados fins, razão pela qual se compreende negativamente a judicialização, ou a própria (e inevitável) aproximação entre Constituição e Democracia, ou, ainda, entre Direito e Política. Todavia, uma análise atenta e atual demonstra que, em determinados casos, em virtude da natureza dos direitos em conflito, o magistrado simplesmente deixa de aplicar determinada norma em prol de outra que, em virtude de seu caráter muitas vezes fluído e otimizador, pode parecer inaplicável aos olhos de uma hermenêutica tradicional e positivista. Deste modo, a razoável aplicação de princípios fundamentais, como o da dignidade da pessoa humana, configura-se como uma opção hermenêutica orientada pelos avanços advindos do neoconstitucionalismo. Por fim, cumpre dizer que na atualidade, o Poder Judiciário não pode quedar-se silente frente à violação aos direitos fundamentais ou até mesmo às regras que asseguram o jogo democrático. A inafastabilidade da jurisdição cumulada ao acesso à justiça sustentam a possibilidade de o Judiciário intervir em determinadas relações sociais. Assim, quando o objeto da demanda versar sobre políticas públicas ou confrontar a constitucionalidade de determinado ato jurídico, o Poder Judiciário pode – e em determinados casos deve – fazer valer a vontade constitucional. O que deve ser evitado, todavia, é a total anulação da vontade política pela determinação judicial. Conforme bem assinalado por Barcellos (2005, p. 92), “não se trata da absorção do político pelo jurídico, mas apenas da limitação do primeiro pelo segundo”.

4.4 Da concretização do direito à saúde pelo poder judiciário – limites e possibilidades

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Foram traçadas anteriormente algumas noções acerca da natureza jurídica do direito à saúde, sua forma de positivação e sua relação com alguns princípios. Logo acima, viu-se, a possibilidade (ou necessidade) da intervenção do Poder Judiciário em demandas versando sobre a prestação de direitos fundamentais sociais, consubstanciando tal prática como instrumento eficaz da redução das desigualdades sociais. Resta dizer, no entanto, que a assunção de uma postura substancialista frente à jurisdição constitucional não dá ao magistrado a possibilidade de dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa (STRECK, 2009b). Talvez, em razão da adoção de tal tese, é que a atuação do magistrado deve ser mais atenta e, sobretudo, mais detida e cuidadosa115, tanto à realidade quanto ao modus aplicandi, sob pena de habitar no entendimento eventuais decisionismos que, por vezes, levam a arbitrariedades. Ademais, vale pontuar que essa (necessária e inexorável) intervenção judicial, de nenhum modo, coloca em risco a democracia. Aliás, é comum autores referirem-se que a regra contramajoritária, isto é, a jurisdição constitucional, afeta a democracia. No entanto, é possível dizer que, nesse aspecto, a jurisdição constitucional reforça o jogo democrático, exatamente por funcionar como freio à maiorias eventuais. Na atenta lição de Streck (2004, p. 81), a Constituição, Além de ser o elo conteudístico que une “política e direito” em um determinado Estado, é também um (eficiente) remédio contra maiorias. E ao se constituir em remédio contra maiorias (eventuais ou não), tem-se que a Constituição traz ínsito um núcleo político que somente pode ser extirpado/solapado a partir de uma ruptura institucional.

Esta é a regra do jogo democrático e o custo que representa viver sob a égide do Estado Democrático de Direito. E é dessa intrincada engenharia política que exsurge um novo papel para o Direito e, por consequência, para a Constituição.

Fixados estes apontamentos, o presente tópico tratará de abordar alguns limites postos à efetivação de tais direitos pelo Poder Judiciário. Evidentemente, tais questões poderiam seguramente ser objeto de um trabalho mais aprofundado, analisando não só estes, 115

Ainda ecoa atualíssima as lições de Rui Barbosa, quando, no início do século passado, ensinava e orientava: “Magistrados futuros, não vos deixeis contagiar de contágio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, à Administração, à União, os seus direitos. São tão invioláveis, como de quaisquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso, não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta, e redobrar de escrúpulo; porque são os mais maldefendidos, os que suscitam menos interesse, e os contra cujo direito conspiram inferioridade na condição com a míngua nos recursos” (2007, p. 54, grifos acrescentados).

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mais diversos outros limites postos à atuação judicial. Porém, julgamos por bem trazer um breve e perfunctório estudo acerca de tais problemas enfrentados na cotidianidade brasileira, trazendo, ainda, algumas obras e eventuais trabalhos relacionados ao tema, de consulta necessária.

4.4.1 Dos limites aparentes da atuação judicial na concretização do direito à saúde

Frise-se, primeiramente, que os limites aqui estudados não são aqueles capazes de impedir de forma incontestável a atuação judicial, de modo que o magistrado encontre barreiras reais à sua atuação. Na verdade, não há limites absolutos à atuação judicial quando se encontra em discussão a efetividade dos direitos e princípios fundamentais. Como mencionado, os limites ora estudados se configuram “aparentes”, ou seja, somente à primeira vista, mediante uma análise pouco esclarecida, podem ser interpretados como reais. Contudo, não resistem a um estudo mais aprofundado e compromissado com a efetivação das normas constitucionais. Segundo Lima (2003, p. 25 e ss.), podem ser configurados como “pseudo-limites” da concretização judicial do direito à saúde os seguintes: a vagueza do conteúdo da norma, o dogma da vedação da atuação do juiz como legislador positivo, a necessidade de previsão orçamentária para a realização de despesas públicas, a discricionariedade da Administração, a natureza meramente programática dos direitos sociais e a impossibilidade do controle judicial das questões políticas116. A questão da vagueza do conteúdo da norma pode ser estudada conjuntamente ao “pseudo-limite” atinente à programaticidade dos direitos sociais, utilizando para ambos os mesmos argumentos tendentes a rechaçar qualquer entendimento que vise a destituir as normas definidoras de direitos sociais de eficácia e aplicabilidade. Ainda que a norma definidora do direito à saúde seja de pouca densidade, a força normativa atribuída às normas constitucionais, aos princípios, inclusive, dota-os de plena e imediata aplicabilidade (art. 5º, §1º, da CF/88). Com relação à vagueza do conteúdo da norma, esse aparente obstáculo não é capaz de, por si só, impedir sua concretização. Caso fosse este o entendimento, as cláusulas gerais

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Note-se que algumas das questões colocadas já foram, direta ou indiretamente, tratadas anteriormente.

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(conceitos jurídicos indeterminados e princípios) seriam normas destituídas de aplicabilidade. De outro modo, cumpre dizer que quanto mais vago for o conteúdo da norma, maior deverá ser a atuação de seu intérprete no sentido de densificá-lo, uma vez que o juiz do Estado Democrático de Direito não deve deixar ao alvedrio do legislador a tarefa de integrar os preceitos constitucionais, podendo tal situação dar azo à inconstitucionalidade por omissão. Vale alertar, por oportuno, que ao dizer que mesmo ante à vagueza do conteúdo da norma cabe uma atuação judicial mais criativa, tal afirmação não justifica possíveis decisionismos, no sentido de possibilitar que o juiz diga, então, ao seu arbítrio, qual conteúdo deve ser dado ao texto. Em Hart, assim como em Kelsen, o preenchimento da textura aberta ou vaga darse-ia discricionariamente. Nas palavras do segundo positivista, por um “ato de vontade” (KELSEN, 1998, p. 394). Trazendo o pensamento de Herbert Hart, Moro (2004) salienta que naqueles casos denominados difíceis (hard cases), os quais resultariam propriamente da “textura aberta” da linguagem humana, o fato estaria na área de “penumbra” do conceito, dando azo à discricionariedade. Segundo o autor, em posição semelhante está Kelsen, quando equipara a norma jurídica geral a uma simples “moldura” dentro da qual há de ser produzida a norma jurídica individual, possibilitando, assim, a existência de várias possibilidades de aplicação117. Discordando de tais ideias, Dworkin formula sua tese da única resposta correta, que segundo Moro, não depende da resolução de uma questão meramente “semântica”. A questão jurídica deve ser resolvida por meio de uma concepção do Direito como integridade, que demanda uma resposta convergente com a “melhor interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica da comunidade”, o que remete a questões substantivas de moralidade política e de justiça (2004, p. 174)118.

Seguindo as lições de Streck, que baseia suas teses em um mix de quantro grandes (jus)filósofos (Heidegger, Gadamer, Dworkin, em, em algum ponto, Habermas), poder-se-ia dizer que a resposta correta só de dá no caso, a partir dos fatos (frise-se que, conforme o autor,

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Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 390-391. 118 Streck, por sua vez, formula em Verdade e Consenso a teoria da resposta correta (adequada à Constituição) para cada caso. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2009, p. 398 e ss.

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fato e direito não são cindíveis, assim como texto e norma, interpretar e aplicar etc.) levados ao conhecimento do intérprete, o que é possibilitado pelos princípios (vistos como o modo de inserção do mundo prático no Direito), levando-se ainda em consideração o caráter compromissórios e dirigente da Constituição, que no atual paradigma, ao inserir o “ideal de vida boa” em seu texto, de sociedade solidária, marca a co-originariedade entre o Direito e a Moral. O argumento da programaticidade do direito à saúde como óbice à atuação judicial se extrai principalmente da dicção constitucional do art. 196. Segundo esse dispositivo, o direito à saúde deve ser garantido “mediante políticas sociais e econômicas”, e não por meio de decisões judiciais. As políticas públicas devem ser elaboradas, a priori, pelo Poder Executivo, ao qual cabe exercer o juízo de conveniência e oportunidade, sobretudo porque, em tese, dispõe do conhecimento técnico e global para tanto, com vista à realização da macro-justiça, em contrapartida à micro-justiça realizada pelas decisões judiciais nos casos concretos. Ainda acerca deste limite, Barroso (2007, p. 23) vislumbra também uma implicação de cunho institucional, veja-se:

uma outra vertente crítica enfatiza a impropriedade de se conceber o problema como de mera interpretação de preceitos da Constituição. Atribuir-se ou não ao Judiciário a prerrogativa de aplicar de maneira direta e imediata o preceito que positiva o direito à saúde seria, antes, um problema de desenho institucional.

Assim, sustenta-se que o constituinte originário, em decorrência da dicção do art. 196 da CF/88, atribuiu ao Poder Executivo a tarefa de elaborar políticas públicas, uma vez que somente ele possui “a visão global tanto dos recursos disponíveis quanto das necessidades a serem supridas”. Neste quadro, “as decisões judiciais que determinam a entrega gratuita de medicamentos pelo Poder Público levariam, portanto, à alteração do arranjo institucional concebido pela Constituição de 1988” (BARROSO, 2007, p. 23). Os argumentos não são de todo falhos, porquanto tratam da situação de forma razoável e realista; no entanto, não devem prevalecer, e para sustentar este entendimento há que se socorrer do princípio da máxima efetividade, há pouco estudado. Nesse sentido, conforme salienta Gouvêa (2003),

uma interpretação fulcrada no imperativo de máxima efetividade, entretanto, deve reconhecer que, embora não se possa pleitear uma determinada prestação estatal,

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pode-se sem dúvida exigir que o Estado articule alguma política de redução do risco da doença e de acesso universal e igualitário à promoção, proteção e recuperação da saúde119.

De todo modo, é importante que se assente que a programaticidade e a vagueza dos direitos sociais não são teses coerentes ao pensamento jurídico subjacente ao Estado Democrático do Direito, pois as normas constitucionais, ainda que não estejam completamente delimitadas no texto constitucional, possibilitam ao intérprete delas extrair um núcleo mandamental, o qual deve ser observado pelos três poderes. Sendo a Constituição brasileira nitidamente compromissória e dirigente, o princípio da máxima efetividade é matriz norteadora de toda e qualquer interpretação/aplicação, de modo que, como já afirmado, as normas constitucionais não são meras aspirações políticas ou orientações carentes de normatividade. Assim se manifestou o Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática, no julgamento do RE n. 271.286 AgR, especificamente no tocante à necessidade de se concretizar o comando do art. 196 da CF/88:

O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por omissão, em censurável comportamento inconstitucional. O direito público subjetivo à saúde traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público (federal, estadual ou municipal), a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas que visem a garantir a plena consecução dos objetivos proclamados no art. 196 da Constituição da República [...].

[...] Na realidade, o cumprimento do dever político-constitucional consagrado no art. 196 da Lei Fundamental do Estado, consistente na obrigação de assegurar, a todos, a proteção à saúde, representa fator, que, associado a um imperativo de solidariedade Veja-se ainda o exemplo trazido por Gouvêa: “Imagine-se uma determinada região do país onde se verifique uma epidemia. Muito embora não se possa obrigar o Estado a realizar uma prestação precisa, específica, é possível exigir que ele possua alguma política de combate à epidemia, e que seja uma política dotada de algum grau de eficácia. Este grau mínimo de eficácia será definido através de um juízo de razoabilidade, em que a comunidade jurídica procurará incorporar os valores compartilhados pela média da sociedade. Tais valores, por sua vez, encontram-se condicionados pelo nível de condições materiais, participação política e avanço tecnológico da sociedade em questão.” 119

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social, impõe-se ao Poder Público, qualquer que seja a dimensão institucional em que este atue no plano de nossa organização federativa [...]. (STF, RE 271286/RS, Relator: Min. Celso de Mello, Decisão Monocrática, julgado em 12.09.2000, DJ de 24.11.2000).

Por sua vez, o dogma da vedação da atuação do juiz como legislador positivo também é argumento que não merece acolhida. Esse pseudo-limite possui estreita relação com os princípios da separação dos poderes e da reserva legal. Depreende-se dos mesmos que ao juiz não caberia qualquer função conformadora senão prestar obediência aos caminhos já delimitados pelo Poder Legislativo, sob pena de imiscuir-se na função deste120. Adotando esse limite como adequado à interpretação do direito à saúde, o magistrado, mesmo diante de uma situação de inconstitucionalidade por omissão, total ou parcial, em que eventual lei confira direito apenas a determinadas pessoas, excluindo outras em situação semelhante, estaria impedido de corrigir tal situação pela ampliação da abrangência da norma. Parece-nos que tal entendimento não mais se coaduna ao pensamento constitucional da atualidade. O Poder Judiciário, conforme se anotou, não mais possui função de mero espectador do processo de efetivação dos direitos sociais, o que, a rigor, ocorreu desde o advento do constitucionalismo social. A centralidade assumida pela Constituição no ordenamento possibilita ao magistrado realizar a leitura de qualquer caso à luz da Lei Fundamental, razão pela qual toda interpretação jurídica, direta ou indiretamente, será interpretação constitucional. Em razão disso, configurada afronta à Constituição, cabe ao Poder Judiciário, uma vez acionado, atuar de modo que as normas definidoras de direitos sejam, na máxima extensão possível, reproduzidas na realidade, viabilizando a sua efetividade. Quando o magistrado atua na efetivação das normas constitucionais não está funcionando como legislador positivo, uma vez que não cria lei de caráter abstrato e geral, mas se convence, de forma concreta e específica, da solução razoável ao caso sub judice. Ora, é inconcebível uma atuação judicial estanque e subordinada à aplicação de leis nem sempre consoantes à ordem constitucional vigente. Tem-se, assim, que o juiz não exerce, em nenhum momento, função legislativa senão as próprias e inerentes ao exercício jurisdicional que, à luz

Nas palavras de Moro, segundo tal mito, “no controle judicial de constitucionalidade, o juiz poderia apenas censurar ato incompatível com a Constituição, mas não substituir o legislador, extraindo da Constituição regra para o julgamento do caso concreto” (2004, p. 237). 120

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do constitucionalismo contemporâneo/democrático, deve atentar-se à realização dos direitos fundamentais e à transformação social. Advogando a tese de um papel judicial mais ativo, Castro (2004, p. 39) salienta que

a tendência pós-45 é para a superação do positivismo jurídico e do estadualismo que o acompanha, reconhecendo-se o direito judicial como um sistema de produção normativo, autônomo e coerente com o direito legal. Esta mutação qualitativa do papel e do estatuto do juiz-aplicador da lei, coloca na ordem do dia a questão da reavaliação da relação entre o direito escrito e o não-escrito, entre a lei e o direito.

Os Tribunais Constitucionais devem ser hábeis para manter viva e atuante a Constituição, revendo-a de forma criativa, sem cair na tentação de querer ser a instância das decisões políticas, mas podendo analisar a constitucionalidade destas, caso venham a atingir os princípios e valores constitucionalmente aclamados.

Outro limite aparente posto como obstáculo à concretização do direito à saúde pelo Poder Judiciário diz respeito à necessidade de previsão orçamentária pra a realização das despesas públicas121. Frise-se, ab initio, que este pseudo-limite não se confunde com o da reserva do possível, que, em alguns casos, configura-se como real obstáculo à efetivação do direito à saúde. Com relação a este, dedicaremos seção específica no presente trabalho. Em diversos dispositivos, a Constituição trata do planejamento das despesas a serem realizadas pelo Poder Público, mormente nos incisos constantes no art. 167 da CF/88. Todavia, o limite em questão, assim como os até então estudados, não deve impedir a realização de determinados direitos dotados de manifesta superioridade axiológica, como o direito à saúde. Como bem observado por Lima (2003. p. 30),

a necessidade de previsão orçamentária para a realização de despesas públicas é regra dirigida essencialmente ao administrador, não ao juiz, que pode deixar de observar o preceito para concretizar uma outra norma constitucional, através de uma simples ponderação de valores. Não fosse assim, o magistrado não poderia determinar, por exemplo, a concessão de um beneficio negado administrativamente a quem possuísse o direito, caso a despesa para a implementação do benefício não estivesse expressamente prevista no orçamento, nem poderia suspender a

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Sobre o tema, conferir: ANJOS, Pedro Germano dos. A filosofia hermenêutica de Hans-Georg Gadamer e as escolhas orçamentárias de políticas públicas. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização. Brasília, v. 6, n. 2, p. 265-303, jul./dez., 2009.

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exigibilidade de um tributo inconstitucional, pois a receita estaria prevista no orçamento.

Não é outro o entendimento do Min. Celso de Mello, quando assentou, no julgamento da Pet. n. 1.246 – SC, que

entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida. (STF Pet nº. 1.246 MC, Presidente Min. Sepúlveda Pertence, Decisão Proferida pelo Ministro Celso de Mello, julgado em 31.01.1997, DJ de 13.02.1997).

Depreende-se pelo exposto que, à primeira vista, o direito à vida e à saúde hão de prevalecer sobre interesses financeiros do Estado. Contudo, é necessário ter em mente que o magistrado, quando diante de uma situação dessa estirpe, não deve ser movido pela vontade absoluta de realizar a efetividade das normas constitucionais, sob pena de outros direitos - não do Estado, mas dos próprios cidadãos alheios ao processo – não serem assegurados em razão de uma decisão carente de proporcionalidade e razoabilidade. Desse modo, com vistas a estabelecer alguns parâmetros para a atuação judicial, adiante será tratada mais detalhadamente a questão da reserva do financeiramente possível em confronto com o mínimo existencial, figurando estes dois institutos como condição sine qua non para uma atuação judicial legítima e materialmente justa. Cabe comentar ainda a questão da impossibilidade do controle judicial das políticas públicas e dos atos discricionários da Administração122. Acerca do controle judicial

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Cf. DAVI, Kaline Ferreira. Parâmetros positivos ao controle da administração pública pós-moderna: uma questão de efetividade constitucional. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização. Brasília, v. 6, n. 2, p. 223-249, jul./dez., 2009; OLIVEIRA JÚIOR, Valdir Ferreira de. Repensando o estado constitucional: controle judicial de políticas públicas através da proibição de retrocesso, inexistência, extinção e deficiência. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP. Belo Horizonte: Fórum, ano. 1, n. 1, p. 125-138, abr./jun. 2003; BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 240, p. 83-103, abr./jun. 2005; LEAL, Rogério gesta. Os pressupostos epistemológicos e filosóficos da gestão de políticas públicas no Estado Democrático de Direito: uma perspectiva habermasiana. Revista de direito constitucional e internacional. São Paulo, n. 66, p. 258-292, jan./abr. 2008. DAVI, Kaline Ferreira. O direito administrativo, os atos de governo e os direitos sociais: uma análise a partir do neoconstitucionalismo. Revista de direito constitucional e internacional. São Paulo, n. 62, p. 201-215, jan./mar. 2008

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das políticas públicas remetemos o leitor ao capítulo referente à interpretação dos direitos sociais pelo Poder Judiciário, mais especificamente no tópico relacionado à judicialização das relações sociais e políticas, anteriormente estudado. Desse modo, será abordado neste ponto tão-somente o pseudo-limite da impossibilidade do controle judicial dos atos discricionários da Administração. Em razão da complexidade do tema, incompatível se faz maiores digressões a seu respeito, motivo pelo qual nos limitaremos a delinear, de forma simplificada, algumas questões atuais atinentes ao mesmo. A discricionariedade de um ato administrativo se refere à possibilidade de o agente valorar os fatores constitutivos do seu motivo e objeto, os quais se referem, respectivamente, ao juízo de conveniência (ocasião de praticá-lo) e oportunidade (utilidade) e ao seu conteúdo (GRAU, 2003, p. 191 e ss.). A discricionariedade do ato administrativo, segundo Grau, deve resultar de uma “expressa atribuição legal à autoridade administrativa, e não da circunstância de os termos da lei serem ambíguos, equívocos ou suscetíveis de receber especificações diversas” (Id., p. 192). Assim, somente a lei atribui à autoridade pública a formulação de juízos de oportunidade. No que tange à (im)possibilidade do controle judicial do mérito do ato administrativo, Carvalho Filho (2010, p. 138) sustenta a seguinte hipótese: “se ao juiz cabe a função jurisdicional, na qual se afere aspectos de legalidade, não se lhe pode permitir que proceda a um tipo de avaliação, peculiar à função administrativa e que, na verdade, decorre da própria lei”. Assim, uma vez obedecidos determinados princípios na valoração da conveniência e oportunidade de determinado ato, estando este ainda em conformidade à Constituição, não há que se falar em intervenção judicial. Segundo Eros Grau, a problemática situa-se na definição de quando a Administração estaria a exercer um juízo de oportunidade. Não se trata de abordar tão extenso tema neste trabalho, razão pela qual nos limitaremos a trazer algumas conclusões do referido autor. Diz ele que: o exercício, pela Administração, da autêntica discricionariedade – formulação de juízo de oportunidade, que apenas poderá exercitar quando norma válida a ela atribuir essa faculdade – não está sujeito ao controle do Poder Judiciário, salvo quando esse exercício consubstancie desvio ou abuso de poder ou de finalidade. (GRAU, 2003, p. 216)

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Em contrapartida, quando o ato fosse motivado por razões de interesse público, estaria sujeito ao exame e controle do Poder Judiciário. Nesse desiderato, de extrema importância se torna a teoria dos motivos determinantes, mormente quando incide sobre atos discricionários. A referida teoria, desenvolvida no direito francês, baseia-se “no princípio de que o motivo do ato administrativo deve sempre guardar compatibilidade com a situação de fato que gerou a manifestação da vontade” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 128-129). Desse modo, uma vez expressada a motivação do ato, porquanto há quem entenda a sua explicitação facultativa, deve o Judiciário, caso chamado a intervir, tomá-la como parâmetro para a aferição de sua correção ou não. A bem da verdade, a noção clássica de que os atos administrativos discricionários não são passíveis de controle judicial está, a cada dia, cedendo à necessidade de aferir-se acerca de sua razoabilidade e atendimento às necessidades sociais, portanto, ao interesse público. Nesse sentido, salienta Nunes Júnior (1995, p. 217) que:

a ampliação do controle judicial dos atos praticados no exercício do poder discricionário, além de constituir mecanismo eficaz para a defesa ao administrado em face da Administração e daqueles que fazem uso desatado do poder, propiciará a participação mais intensa dos administrados na gestão dos negócios públicos.

Tal fato se deve, em grande parte, ao advento do constitucionalismo contemporâneo e à noção por ele trazida de filtragem constitucional. Já se disse anteriormente que a constitucionalização do direito proporcionou uma leitura de todo o ordenamento infraconstitucional à luz da Constituição Federal. Além disso, a própria dogmática jurídica sofreu mutações, de modo que o estudo do Direito hoje não mais pode ser dissociado do estudo do direito constitucional. Esta proeminência da Lei Fundamental no ordenamento jurídico faz com que todas as normas gravitem em torno dos princípios constitucionais. Com o direito administrativo não ocorre de maneira diversa. A possibilidade hoje existente de controle judicial do mérito do ato administrativo se dá em razão da observância de determinados princípios gerais e setoriais atinentes à atividade da Administração Pública, como, por exemplo, os princípios da moralidade, eficiência e, sobretudo, razoabilidadeproporcionalidade (BARROSO, 2009, p. 376). Conforme assinalado por Lima (2003, p. 32),

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o posicionamento doutrinário e jurisprudencial mais recente, no entanto, como decorrência da ascensão do Judiciário como verdadeiro poder constituído, alarga ainda mais o campo de abrangência do controle judicial dos atos administrativos, inclusive os discricionários. Diz-se, com isso, que o administrador não tem apenas o dever jurídico da boa administração (agindo em observância da legalidade), mas o da melhor administração para atingir a finalidade pública (dentro do critério de moralidade e eficiência).

O critério de moralidade impõe ao administrador a vinculação de seus atos a um postulado ético, cuja violação pode acarretar sanções de grau elevado aos que não o observarem, como, por exemplo, a configuração de improbidade administrativa. Desse modo, pode-se afirmar, com arrimo em Coelho (2009, p. 883), que:

a reverência que o direito positivo presta ao princípio da moralidade decorre da necessidade de pôr em destaque que, em determinados setores da vida social, não basta que o agir seja juridicamente correto; deve, antes, ser também eticamente inatacável.

A moralidade vem suprir as insuficiências da legalidade, propondo uma análise não só formal do ato, requisito que pode estar satisfeito, mas, sobretudo, material, de modo que a legalidade não encoberte fins contrários à moralidade jurídica (SILVA, 1997, p. 616). O princípio da eficiência, por sua vez, introduzido no âmbito constitucional pela Emenda Constitucional nº. 19/98, vem consolidar o dever da boa administração, impondo ao administrador público a

persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção dos critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar-se desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidae social (MORAES, 2006, p. 302).

No que mais interessa ao escopo do presente trabalho, cumpre afirmar ainda, com base nas lições de Moraes (2006), que o principio da eficiência, enquanto norma constitucional, deve informar a interpretação de todas as leis, atos normativos e condutas positivas ou omissivas do Poder Público, servindo de fonte para a declaração de

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inconstitucionalidade de qualquer manifestação da Administração Pública contrária a sua plena e total aplicabilidade. Por fim, no que tange ao princípio da razoabilidade, cumpre, neste momento, apenas delinearmos alguns contornos iniciais, uma vez que será objeto de abordagem posterior. Para a melhor compreensão do princípio da razoabilidade, é imprescindível que se delimite seu conteúdo, a fim de evitar eventuais equívocos na sua aplicação. Em apertada síntese, Barroso (2009, p. 305) assim resume o indigitado princípio:

o princípio da razoabilidade permite ao Judiciário invalidar atos legislativos ou administrativos quando: a) não haja adequação entre o fim perseguido e o instrumento empregado (adequação); b) a medida não seja exigível ou necessária, havendo meio alternativo menos gravoso para chegar ao mesmo resultado (necessidade/vedação de retrocesso); c) os custos superem os benefícios, ou seja, o que e perde com a medida é de maior relevo do que aquilo que se ganha (proporcionalidade em sentido estrito)123.

Desse modo, com base nos parâmetros acima expostos, é possível aferir acerca da razoabilidade de determinado ato administrativo, no que concerne ao seu mérito, possibilitando, caso se faça necessário, a intervenção do Poder Judiciário para invalidá-lo ou, até mesmo, adequá-lo às circunstâncias contextuais. Baseando-se em Alexy, Grau (2003, p. 219) sustenta que a razoabilidade (por ele denominada proporcionalidade) deve ser encarada como um “postulado normativo aplicativo”, uma vez que, caso fosse entendida como princípio, haveria de ser ponderada em relação a algo diferente. Como tal não ocorre, os três critérios contidos na razoabilidade-proporcionalidade devem ser considerados como regras. Por todo o exposto neste tópico, nota-se que muitas das teses levantadas por aqueles que pretendem engessar a atividade judicial não levam em conta a mudança de paradigma ocorrida com a redemocratização do Brasil formalizada em 1988, fato que inevitavelmente se reflete no plano jurídico, influenciando toda a compreensão do fenômeno. A conquista de imperatividade das normas e princípios constitucionais impõe, no plano concreto, a sua efetivação, a real concretização do comando normativo extraído da Constituição. Diante de tal fato, o magistrado não deve ser um mero espectador do direito ou,

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Para um estudo mais detalhado, ver também, do mesmo autor: Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 7. ed – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 224-253.

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ainda, um ser desprovido de consciência crítica e indiferença com relação às normas que aplica. A atividade hermenêutica, à luz da dogmática atual, deve priorizar a máxima efetividade das normas, evitando que argumentos outrora compreensíveis se tornem um meio perenemente invocado para limitar a atuação crítico-criativa do juiz constitucional. A ascensão do Judiciário na clássica tripartição dos poderes é fato incontestável no atual paradigma e, por tal razão, deve ser mais bem estudada, seja para que se estabeleça limites adequados à sua atuação, seja para que se permita a busca da efetivação das normas constitucionais. Os atos dos demais Poderes, por diversas vezes, são levados a efeito em função das mais variadas intenções políticas, as quais nem sempre condizem com as necessidades sociais e prioridades dos cidadãos aos quais são dirigidas as políticas públicas. Assim, para que se evitem atos ou escolhas (ainda que minimamente vinculadas) acometidos por determinados vícios políticos, é necessário que exista um poder imparcial, com competência e legitimidade para reexaminar as atuações dos demais poderes, quando violem ou protejam insuficientemente os direitos fundamentais. Em um Estado Democrático e Social de Direito, esse controle cabe ao Poder Judiciário. Para que a respectiva atuação não se configure arbitrária, é imprescindível que a atividade do magistrado se paute em critérios bem definidos, a fim de que não ocorra a anulação de competências dos demais Poderes (Legislativo e Executivo), em prol de um ativismo judicial carente de razoabilidade. Com o objetivo de evitar este exercício arbitrário do poder, doutrina e jurisprudência têm se dedicado à elaboração de parâmetros para a atuação judicial, os quais, se optarmos por essa denominação, configuram-se como reais limites na concretização do direito à saúde. Vale frisar que a imposição de limites à atuação judicial não deve ser vista negativamente, uma vez que se está a proteger não um interesse do Estado, seja ele de cunho financeiro ou não, mas o interesse dos próprios jurisdicionados que, por não optarem pela via judicial (ou na terem ciência do acesso à justiça) para verem garantidos seus direitos, podem sofrer prejuízos irreversíveis. Neste mesmo raciocínio, Barroso (2007, p. 4) coloca a questão da seguinte forma: Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do

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possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, é o direito à vida e à saúde de uns versus o direito à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão.

Feitas estas considerações, passa-se à análise dos reais limites postos à efetivação do direito à saúde por via judicial, estabelecendo, consequentemente, alguns parâmetros para balizar a atuação do Poder Judiciário.

4.4.2 Dos limites (reais) e dos parâmetros para a concretização judicial do direito à saúde

Vale frisar, inicialmente, que nesta sucinta abordagem não se pretende esvaziar o tema referente aos limites e possibilidades da atuação judicial na concretização do direito social em questão, até mesmo porque tal pretensão se torna inconsumável quando se refere às possibilidades de concretização de determinado direito. O que se pretende é trazer à tona algumas questões que devem ser levadas em consideração pelo magistrado quando diante de uma situação concreta na qual se pleiteia determinada prestação concretizadora do direito à saúde. Desse modo, os limites e parâmetros abordados a seguir dizem respeito ao princípio da proporcionalidade, a reserva de consistência, a reserva de coerência e a cláusula da reserva do possível, esta relacionada à garantia do mínimo existencial.

4.4.2.1 Do princípio da razoabilidade

Não obstante alguns autores diferenciarem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, ambos podem ser vistos e compreendidos conjuntamente. Segundo Barroso (2009, p. 256), a razoabilidade, de origem norte-americana, pode ser perfeitamente identificada com o princípio da proporcionalidade, cujas origens se deram na Alemanha, funcionando como um limite à discricionariedade administrativa. Se, de um lado, conforme se observou há pouco, ao Judiciário cabe, em determinadas hipóteses, aferir a razoabilidade

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dos atos dos demais Poderes, de outro modo, suas decisões também devem estar em consonância com o referido princípio. Assim, as decisões judiciais devem observar os postulados da adequação, da necessidade (ou vedação de excesso) e da proporcionalidade em sentido estrito. Inadequada, à luz do princípio da razoabilidade, seria uma decisão que determinasse ao Poder Público o fornecimento de um medicamento comprovadamente ineficaz a um paciente, ou determinasse que o SUS arcasse com uma cirurgia imprópria ao tratamento de uma dada doença. Salienta, ainda, Lima (2003, p. 43) que a medida tomada pelo Judiciário deve ser adequada e pertinente a atingir os fins almejados. Com relação à necessidade, traduzida em vedação de excesso, pode-se citar o exemplo de uma decisão que determine a submissão do jurisdicionado a tratamento no exterior, posto que há o mesmo tratamento no Brasil. Nesse aspecto, o tratamento realizado no Brasil, além de ser adequado ao combate da doença, impediria que a Administração Pública se onerasse desnecessária e excessivamente. Ainda com relação à adequação, ou seja, a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins, vale citar o seguinte exemplo, trazido à tona por Barroso (2009b, p. 233): se, diante do crescimento estatístico da AIDS (motivo), o Poder Público proíbe o consumo de bebidas alcoólicas durante o carnaval (meio), para impedir a contaminação de cidadãos nacionais (fim), a medida será irrazoável. Isso porque estará rompida a conexão entre os motivos, os meios e os fins, já que inexiste qualquer relação direta entre o consumo de álcool e a contaminação.

No que toca à existência de ofensa ao princípio da razoabilidade, desta vez no âmbito da proporcionalidade em sentido estrito, Lima (2003, p. 43) traz o seguinte exemplo:

suponha-se que um paciente com problemas visuais pretenda se submeter a uma cirurgia de transplante de córneas. Como se sabe, existe uma ‘lista de espera’ que deve ser observada para evitar favorecimentos, pois a disponibilidade de córneas é bastante limitada. Uma medida que determinasse ao Poder Público que procedesse a imediata cirurgia de um dado paciente, sem observância da ordem estabelecida, seria, certamente, desproporcional, pois o benefício alcançado com a medida sacrificaria o direito de inúmeros outros pacientes, numa odiosa ofensa à proporcionalidade em sentido estrito e da igualdade, que se acha intimamente ligado à noção de proporcionalidade.

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Nota-se, assim, que a solução empreendida traria muito mais prejuízos do que benefícios, uma vez que se estaria a comprometer o direito à saúde de inúmeras pessoas em prol da efetivação do direito de uma única. Frise-se que, apesar de hipotético, o exemplo não é destituído de senso de realidade. Diversos casos há de decisões judiciais que suplantam direitos já adquiridos em prol de uma interpretação destituída de qualquer envolvimento com a realidade brasileira. Diante desses casos, notória é a prevalência não só do interesse público pelo individual, como do próprio direito adquirido de determinado jurisdicionado, com relação a outro que, em razão da informação e do acesso à justiça, teve deferida, judicialmente, sua pretensão. Portanto, aquele se afigura como um real limite a atuação judicial, servindo de parâmetro para a aferição da conformidade dos atos dos demais Poderes, bem como para a análise da razoabilidade dos próprios atos judiciais, sejam eles de caráter liminar ou definitivo.

4.4.2.2 Das reservas de consistência e coerência

Importante critério balizador das decisões judiciais trazido a lume por Marmelstein Lima (2003), baseado nas lições de Sérgio Fernando Moro124 e Peter Häberle, é a questão da reserva de consistência. Segundo este critério, além de ser fundamentada, a decisão judicial que determina a concretização do direito à saúde pelo Poder Executivo, ou interfere nos atos do Legislativo, deve possuir consistência. A reserva de consistência guarda relação, portanto, com a capacidade de argumentação do magistrado no sentido de demonstrar a inviabilidade ou o “desacerto” do ato que está sob seu exame. Segundo Lima (2003, p. 44),

não sendo atingida a carga de argumentação suficiente para demonstrar o acerto da escolha política, recomenda-se a autocontenção, ou seja, deve-se reconhecer que, por não ter sido demonstrada a presença do vício de inconstitucionalidade do ato controlado, com isso, as soluções adotadas pelos demais poderes constituídos e, consequentemente, a harmonia entre os poderes. 124

Cf. MORO, Sérgio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 221 e ss.

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Em decorrência da reserva de consistência, o magistrado deve buscar outros dados técnicos para decidir, além propriamente da base jurídica imprescindível. Desse modo, para determinar, por exemplo, a execução de uma complexa política pública ou a concessão do correto medicamento a determinada doença, deve a decisão judicial conter fundamentos idôneos e suficientes para tanto, não bastando ao julgador, tão-somente, em casos de grande complexidade, os argumentos jurídicos. Neste desiderato, figura de grande relevância passou a ser o amicus curiae, cuja função, segundo Moraes (2006, p. 684),

é juntar aos autos parecer ou informações com o intuito de trazer à colação considerações importantes sobre a matéria de direito a ser discutida pelo Tribunal, bem como acerca dos reflexos de eventual decisão sobre a inconstitucionalidade da espécie normativa impugnada.

Acerca da admissão do amicus curiae como um meio de oferecer alternativas e condições para permitir cada vez mais a interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões, o Min. Gilmar Mendes salienta que

essa nova realidade pressupõe, além de amplo acesso e participação de sujeitos interessados no sistema de controle de constitucionalidade de normas, a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional lançar mão de quaisquer das perspectivas disponíveis para a apreciação da legitimidade de um determinado ato questionado. A constatação de que, no processo de controle de constitucionalidade, se faz, necessária e inevitavelmente, a verificação de fatos e prognoses legislativos, sugere a necessidade de adoção de um modelo procedimental que outorgue ao Tribunal as condições necessárias para proceder a essa aferição. Esse modelo pressupõe não só a possibilidade de o Tribunal se valer de todos os elementos técnicos disponíveis para a apreciação da legitimidade do ato questionado, mas também um amplo direito de participação por parte de terceiros (des)interessados. (STF, ADI nº. 2.548, Relator: Min. Gilmar Mendes, julgado em 18.10.2005, DJ em 24.10.2005).

Com efeito, quanto mais envolvimento houver de sujeitos interessados na resolução do litígio, servindo-se dos meios próprios para tanto, mais legítima será a atuação judicial. A dialeticidade do processo presta-se, nesse sentido, a assegurar a consistência das

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decisões judiciais, de modo que quanto mais o magistrado se inteirar das circunstâncias existentes em determinada questão, mais razoável será sua decisão. Conforme Marmelstein (2008, p. 321), “quanto maior for o diálogo e a consistência da decisão, maior será a sua legitimidade e, consequentemente, menor será a chance de o Judiciário ser acusado de estar interferindo indevidamente no raio de ação do administrador público”. Dada a relevância do tema, o Supremo Tribunal Federal, visando à elucidação em determinadas questões atinentes ao direito à saúde, realizou nos dias 27, 28 e 29 de abril, e 4, 6 e 7 de maio de 2009, Audiência Pública125 destinada a ouvir advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do Sistema Único de Saúde. Foram ouvidos, ao todo, 50 especialistas que abordaram os mais diversos temas, como, por exemplo, o acesso às prestações de saúde no Brasil e os desafios ao Poder Judiciário, a responsabilidade dos entes da Federação, o financiamento e a gestão do SUS, dentre outras questões de extrema relevância para a compreensão do tema. Como uma decorrência da consistência das decisões judiciais, surge a reserva de coerência, critério segundo o qual a interpretação do direito à saúde deve guiar-se por um caminho comum, isto é, aos casos semelhantes devem também ser dadas as soluções semelhantes. Tal postulado visa à uniformização da interpretação e aplicação do direito à saúde, contribuindo para a diminuição de decisões tão díspares nos diversos tribunais e comarcas do país. Segundo Lima (2003, p. 48),

no âmbito do direito à saúde, é bastante comum presenciar situações de incoerência. Por exemplo, um mesmo tribunal entende que o direito à saúde é norma de obrigatória observância, gerando o direito ao fornecimento de remédios por parte do estado, mas, por outro lado, nega o direito ao tratamento de uma determinada enfermidade às custas do Poder Público, afirmando, incoerentemente, eu o direito à saúde não tem o condão de gerar obrigações ao Estado.

Nota-se, pelo exposto, uma grande preocupação em, por um lado, limitar e, por outro, legitimar a atuação judicial no tocante à efetivação de determinados direitos que envolvem questões multidisciplinares, como ocorre com o direito à saúde, em suas diversas possibilidades de concretização. Com o escopo de determinar as balizas dessa atuação

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Os debates da Audiência Pública foram compilados, podendo ser encontrados em BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Audiência Pública: Saúde. Brasília: Secretaria de Documentação, Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência, 2009.

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judicial, tanto doutrina quanto jurisprudência têm se dedicado à criação de critérios hábeis a orientar o Judiciário nos diversos casos postos em exame. Posto isso, passa-se ao estudo de um dos critérios mais recorrentes na efetivação do direito à saúde, relacionado às possibilidades financeiras do Estado cumprir as decisões judiciais cujo objeto se relacione ao referido direito prestacional.

4.4.2.3 O direito à saúde e a garantia do mínimo existencial relacionada à teoria da reserva do possível

O debate em torno do mínimo existencial e da reserva do possível tem se tornado cada vez mais frequente na doutrina e jurisprudência nacionais. O tema gera inúmeras controvérsias e sua compreensão é imprescindível para a razoável efetivação do direito à saúde, nas suas múltiplas possibilidades de concretização. O mínimo existencial pode ser estudado sob duas perspectivas: a garantista e a prestacional. Sob o prisma garantista, o Estado deve preservar um conjunto de direitos básicos garantidores de uma existência digna. Nesse sentido, o mínimo existencial funciona como um autêntico direito de defesa contra a ação violadora do Estado. Do ponto de vista prestacional, deve o Estado proporcionar aos cidadãos um conjunto de direitos fundamentais aptos a atingir um patamar satisfatório de dignidade. Desse modo, o mínimo existencial pode ser estudado como um direito positivo e subjetivo face ao Estado, investindo o jurisdicionado na posição de exigir, sobretudo judicialmente, a prestação capaz de lhe garantir um núcleo mínimo de direitos capazes de lhe proporcionar condições dignas de vida. Em ambas as vertentes acima expostas a delimitação do conteúdo do mínimo existencial se torna tarefa complexa e um tanto arriscada. Essa delimitação, evidentemente, não deve subordinar-se ao arbítrio do intérprete, mas, ao que parece, deve se basear em critérios subjetivos e objetivos capazes de aferir as necessidades básicas do cidadão, em cada caso concreto. Assim, as prestações concretizadoras do mínimo existencial não devem ser vistas no âmbito abstrato, pois somente as peculiaridades de cada indivíduo (ou grupos de indivíduos) podem determinar um grau maior ou menor de necessidades a serem satisfeitas pelo Estado. Todavia, em conformidade com o acima exposto, nos parece uníssono o

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entendimento de que a realização do mínimo existencial fique subordinada à garantia dos direitos fundamentais (incluídos tanto os de defesa quanto os prestacionais), mais especificamente, aqueles que concedam ao cidadão a capacidade de viver dignamente e se auto-determinar em busca da realização de suas vontades em uma sociedade cada vez mais plural, complexa e seletiva. No âmbito de proteção proporcionado pelo mínimo existencial, mormente no que toca à sua dimensão positiva (prestacional), não há que se falar em reserva do possível. Para que possamos entender a relação existente entre o mínimo existencial e a reserva do possível, é necessário que tenhamos uma compreensão da força vinculante exercida pelas normas constitucionais no que tange à efetivação das políticas públicas, as quais são o meio pelo qual se realizam os fins propostos pela Lei Fundamental. Da norma positivada no art. 5º, §1º, da CF/88, extrai-se, também, a eficácia vinculante dos direitos fundamentais. Ao contrário do que ocorre em outros países (Alemanha e Portugal, por exemplo), nossa Constituição não contemplou expressamente a vinculatividade dos Poderes da República aos direitos fundamentais. Apesar disso, a doutrina tem se assentado no sentido de extrair da norma que define a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais a sua eficácia vinculante. Com base nisso, constituem prioridades decorrentes da supremacia da Lei Fundamental brasileira a efetivação dos direitos fundamentais, bem como a concretização dos fins constitucionais, levando-se em conta os fundamentos da República Federativa brasileira, com especial atenção do princípio da dignidade da pessoa humana. Já se delineou sobre a íntima relação do direito à saúde com o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana, razão pela qual a realização de políticas públicas na área da saúde é dotada, a priori, de notória vinculação aos postulados extraídos da Lei Maior brasileira. Conjugando este entendimento ao preconizado por Barcellos, a seguir transcrito, temos que a realização do mínimo existencial situa-se nesta esfera de vinculação do Poder Público à realização dos direitos prestacionais, com vistas à garantia e promoção da dignidade da pessoa humana. De acordo com Barcellos (2002, p. 245-246),

a meta central das Constituições modernas, e da Carta de 1988 em particular, pode ser resumida, como já exposto, na promoção do bem-estar do homem, cujo ponto de partida está em assegurar as condições de sua própria dignidade, que inclui, além da proteção dos direitos individuais, condições materiais mínimas de existência. Ao

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apurar os elementos fundamentais dessa dignidade (o mínimo existencial), estar-seão estabelecendo exatamente os alvos prioritários dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverá investir. O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias,é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível.

Pela transcrição acima se depreende que, ao contrário do que muitos estudiosos entendem, o mínimo existencial pode conviver harmonicamente com a cláusula da reserva do possível. Em outras palavras: a discussão em torno do limitado orçamento de que dispõe o Poder Público será pertinente quando a prestação almejada não corresponder ao mínimo existencial. Nesse sentido, se a prestação tocar a esfera de garantia desse mínimo, ao que parece, a força normativa do direito fundamental em questão irá prevalecer, e o Estado será compelido a garantir os direitos e prestações pretendidos. No que tange ao tema, tornou-se recorrente a citação da paradigmática decisão do Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF n. 45 MC/DF, promovida contra veto, que, emanado do Presidente da República, incidiu sobre o § 2º do art. 55 (posteriormente renumerado para art. 59), de proposição legislativa que se converteu na Lei n. 10.707/2003 (LDO), destinada a fixar as diretrizes pertinentes à elaboração da lei orçamentária anual de 2004. O autor da referida ação constitucional sustentou que o veto presidencial importou em desrespeito a preceito fundamental decorrente da Emenda Constitucional n. 29/00, que foi promulgada para garantir recursos financeiros mínimos a serem aplicados nas ações e serviços públicos de saúde. No transcurso da ação constitucional veio a lume norma regulamentadora que dispôs sobre o objeto da demanda, restando aquela, por consequência, prejudicada. Todavia, mesmo diante da prejudicialidade ocorrida com a posterior edição da referida norma conformadora, o Ministro relator houve por bem tecer alguns apontamentos acerca da utilidade e adequação da ação aviada, a fim de se discutirem políticas públicas, afirmando, nesse contexto, a legitimidade democrática do Poder Judiciário126.

Veja-se, a exemplo, este trecho da referida decisão: “Não obstante a superveniência desse fato juridicamente relevante, capaz de fazer instaurar situação de prejudicialidade da presente argüição de descumprimento de preceito fundamental, não posso deixar de reconhecer que a ação constitucional em referência, considerado o contexto em exame, qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso (EC 29/2000), venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República.” 126

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De todo o exposto na fundamentação da decisão monocrática, merece nossa atenção o que diz respeito ao mínimo existencial, à reserva do possível e à possibilidade de o Poder Judiciário intervir na liberdade de conformação do Poder Legislativo e no juízo de conveniência e oportunidade do Executivo, quando ausente a razoabilidade em seus atos e/ou tornar-se evidente a criação de falso óbice à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais, em cujo conteúdo, conforme já observado, insere-se o direito à saúde. A referida decisão tem se tornado referência jurisprudencial, em razão da maneira como o tema foi tratado, ou seja, de forma razoável e compromissada com a efetivação dos fins constitucionais. Nesse aspecto, merece ser transcrito o seguinte trecho, atinente à inércia ou à atuação abusiva dos Poderes Legislativo e Executivo, violando, por conseguinte, as normas definidoras de direitos sociais:

Não obstante a formulação e a execução de políticas públicas dependam de opções políticas a cargo daqueles que, por delegação popular, receberam investidura em mandato eletivo, cumpre reconhecer que não se revela absoluta, nesse domínio, a liberdade de conformação do legislador, nem a de atuação do Poder Executivo. É que, se tais Poderes do Estado agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar, comprometendo-a, a eficácia dos direitos sociais, econômicos e culturais, afetando, como decorrência causal de uma injustificável inércia estatal ou de um abusivo comportamento governamental, aquele núcleo intangível consubstanciador de um conjunto irredutível de condições mínimas necessárias a uma existência digna e essenciais à própria sobrevivência do indivíduo, aí, então, justificar-se-á, como precedentemente já enfatizado - e até mesmo por razões fundadas em um imperativo ético-jurídico -, a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado. (STF, ADPF 45 MC/PR, Relator(a): Min. Celso de Mello, julgado em 29.04.2004, publicado em 04.05.2004).

Desse trecho depreende-se a possibilidade de o Poder Judiciário atuar criativamente na efetivação dos direitos sociais, sanando as violações da norma definidora de direitos operada pelos demais Poderes. Segundo o Ministro (MELLO, 2004), a ofensa à norma constitucional pode se dar tanto pela ação, quanto pela omissão do Poder Público. Quando há violação da norma mediante uma atuação positiva (facere), há a ocorrência da inconstitucionalidade por ação. Quando a violação da norma se dá pela sua não efetivação

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(non facere, non praestare) ocorre a inconstitucionalidade por omissão, aduzindo, com relação a esta modalidade que

qualifica-se como comportamento revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e princípios da Lei Fundamental. (MELLO, 2004)

No que tange à cláusula da reserva do possível, óbice geralmente levantado pelo Poder Executivo para justificar a não-observância do direito à saúde, o Min. Celso de Mello (2004) salienta que somente na ocorrência de “justo motivo objetivamente aferível” pode o Estado exonerar-se do cumprimento de seu múnus constitucional. Do contrário, não sendo vislumbrada, no caso concreto, a existência deste real limite fático, a efetivação do direito à saúde é solução que se impera. A discussão em torno da reserva do possível é recorrente quando se trata de efetivação de direitos sociais, mormente os de cunho prestacional. Em razão do alto custo destes direitos, nem todas as pretensões podem ser, de imediato, satisfeitas, razão pela qual devem os poderes democraticamente eleitos fazer escolhas tomando por base as prioridades e necessidades dos cidadãos. Evidentemente, por este motivo, alguma parcela dos cidadãos não terá seus direitos efetivados a contento, ou os terá de forma insatisfatória. Desse modo, quando instado a se manifestar em casos de efetivação de direitos sociais prestacionais, deve o Poder Judiciário levar em consideração a cláusula da reserva do possível. Posta a questão no STF, o Min. Celso de Mello se manifestou nestes termos:

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.(RE nº. 436.996/SP, rel. Min. Celso de Mello, julgado em 26.10.2005, publicado em DJ 07.11.2005).

A limitação orçamentária, quando objetivamente comprovada, torna-se um óbice à efetivação dos direitos sociais prestacionais, devendo o Poder Judiciário, nesse contexto,

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reconhecê-la. Todavia, a sua existência deve ser devidamente comprovada nos autos, não devendo este se tornar um mero recurso retórico utilizado pela Administração Pública para se esquivar do cumprimento do direito à saúde. Nesse sentido, Marmelstein (2008, p. 321) salienta que

apesar de a reserva do possível ser uma limitação lógica à possibilidade de efetivação judicial dos direitos socioeconômicos, o que se observa é uma banalização no seu discurso por parte do Poder Público quando se defende em juízo, sem apresentar elementos concretos a respeito da impossibilidade material de se cumprir a decisão judicial.

Quanto aos critérios solucionadores das pretensões postas em Juízo, pode-se afirmar que, quando a pretensão disser respeito, tão-somente, à garantia de um padrão mínimo de condições de vida, a atuação do intérprete deve se pautar na subsunção dos fatos à norma, não havendo que se falar em colisão de princípios ou direitos fundamentais. Conforme se observou, a garantia do mínimo situa-se dentre as prioridades do Poder Público, que se vincula à efetivação dos direitos fundamentais que o garantem. Nesse sentido, assiste razão a Torres (apud MACHADO JR., 2009) quando diz que, em razão do caráter absoluto do mínimo existencial, os direitos se apresentam sob a forma de regras jurídicas, motivo pelo qual se aplicam por subsunção, em virtude de representarem direitos definitivos e não se sujeitarem a ponderações. Em oposição a esse pensamento, há uma corrente que entende o mínimo existencial de forma relativa, isto é, levando em conta a situação orçamentária de países periféricos, como o Brasil, nem sempre será possível a garantia do mínimo existencial de todos os jurisdicionados. Nessa hipótese, deverá se falar em reserva do possível e o critério solucionador do embate não se pautará na subsunção, mas na ponderação. Evidentemente, quando a interpretação disser respeito a regras, estas serão aplicáveis “à maneira do tudo-ou-nada” (DWORKIN, 2002, p. 39). Ou seja, se os fatos na regra previstos ocorrerem, esta deve incidir, direta e automaticamente, produzindo seus efeitos (BARROSO, 2009b, p. 330). De outro modo, no presente contexto, quando o direito à saúde pretendido ultrapassar a esfera do mínimo existencial, a discussão deve considerar as possibilidades orçamentárias do Poder Executivo e a questão deverá ser solucionada pelo critério da ponderação. Ou seja, “à vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer

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escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis (...)” (BARROSO, 2009b, p. 331). Aí reside a aplicação da técnica da ponderação, como ocorre nas discussões envolvendo o princípio da dignidade da pessoa humana, como instrumento hábil a guiar a interpretação e aplicação do direito à saúde, e, de outro lado, os princípios orçamentários e da separação de poderes, ou o princípio da dignidade da pessoa humana de determinada pessoa em conflito com o de outra. Neste mesmo sentido, a lição de Alexy (1993, p. 497-498), quando afirma que

la propiedad de derecho vinculante prima facie significa que la cláusula restrictiva de este derecho, la reserva de lo posible en el sentido de aquello que el individuo puede razonablemente exigir de la sociedad, no tiene como consecuencia la ineficácia del derecho. Esta cláusula expresa simplesmente la necesidad de ponderación de este derecho.127

Segundo Barroso (2009b, p. 332), sumamente,

a denominada ponderação de valores ou ponderação de interesses é a técnica pela qual se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios contrapostos. Como não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um sobre o outro, deve-se, à vista do caso concreto, fazer concessões recíprocas, de modo a produzir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos princípios ou direitos fundamentais em oposição. (grifo no original)

Não há, conforme se depreende, uma solução única e abstrata para identificação do princípio de maior peso. Em outras palavras, os princípios em discussão podem ter maior ou menor peso, a depender da questão concreta na qual incidem. Isso dá ao intérprete maior liberdade de conformação, possibilitando-o, no exame do caso concreto, estabelecer, fundamentada e razoavelmente, as concessões entre princípios, de modo a se atingir uma decisão materialmente justa. Para que tal possibilidade se efetive, é necessário que o intérprete domine a técnica da ponderação. É preciso lembrar que esta técnica de decisão deve ser aplicada somente quando não for possível o uso da subsunção, tendo em vista que aquela deve se operar na solução dos “casos difíceis” (DWORKIN, 2002, p. 127 e ss.). Nesses, os direitos em conflito 127

a propriedade do direito vinculante prima facie significa que a cláusula restritiva deste direito, a reserva do possível no sentido daquele que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, não tem como consequência a ineficácia do direito. Esta cláusula expressa simplesmente a necessidade de ponderação deste direito.

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situam-se no mesmo patamar formal e, à primeira vista, o intérprete não é capaz de vislumbrar um único desfecho para o caso mediante o uso dos critérios tradicionais de hermenêutica. A doutrina identifica três etapas pelas quais deve percorrer a interpretação baseada na ponderação. A primeira etapa orienta a identificação das normas relevantes para a solução do caso e os eventuais conflitos entre elas (BARROSO, 2009, p. 334). Neste estágio inicial, detectam-se os conflitos, as normas possivelmente aplicáveis e as que com elas se relacionam em virtude de guiarem a um mesmo resultado. A segunda etapa deve examinar os fatos, as circunstâncias do caso e sua interação com os elementos normativos (BARROSO, 2009, p. 334). Trata-se de analisar a influência que as normas inicialmente identificadas terão nos fatos os quais deverão reger, bem como em que medida essa influência deverá ocorrer. É na terceira fase que com maior força atua a ponderação, porquanto relacionada à aplicação do princípio da razoabilidade-proporcionalidade. Determina-se, neste ponto, a dimensão de peso dos princípios em debate, de modo que se afira qual das normas deve prevalecer na solução dos fatos identificados. Não há, como se depreende, soluções abstratas e universais para a colisão de princípios, embora a legitimidade das decisões também dependa da sua aplicabilidade aos casos congêneres. Fato que se afigura imprescindível diz respeito à vinculação da solução obtida pelo critério da ponderação à ordem constitucional vigente. Apesar de essa técnica outorgar certo grau de discricionariedade ao intérprete, o iter percorrido deve guardar relação com Lei Fundamental, o que somente será possível aferir mediante clara e analítica fundamentação, acrescida do qualificativo da consistência. Nesse sentido, o ponto de vista julgado razoável deve ser explicitado com maiores detalhes, de modo que a técnica da ponderação não se configure como um critério legitimador do arbítrio e do voluntarismo, tão próximos do autoritarismo. Percorrido este estudo, mostram-se razoáveis, portanto, os pressupostos levantados pelo Min. Celso de Mello, em decisão já referida, no julgamento da ADPF n. 45 MC/DF, no que tange à possibilidade de se conceder a prestação concretizadora do direito à saúde, considerando ainda a reserva do possível. Adverte o Ministro que os condicionamentos impostos, pela cláusula da ‘reserva do possível’, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração - de implantação sempre onerosa -, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a

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existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas.

Diante do o exposto, chega-se à conclusão que, uma vez presentes esses dois requisitos (razoabilidade da pretensão e a disponibilidade financeira), a determinação da prestação requerida é solução imperativa, uma vez que o interesse financeiro do Estado se revela, neste aspecto, prejudicado em razão do direito fundamental pleiteado. Não olvidando dos limites reais estudados no presente trabalho, deve o intérprete ter em mente que é o Estado que existe em função dos cidadãos, e não o inverso. É saudável que o indivíduo busque, por todos os meios possíveis, a satisfação de suas necessidades; todavia, é imprescindível que o exercício da cidadania seja consciente, e não desmesurado, como se denota em algumas pretensões levadas ao exame judicial. Com efeito, o magistrado não deve ser indiferente aos problemas sociais que o cercam, devendo atuar, quando possível e razoável fazê-lo, no sentido de efetivar o direito à saúde, por vezes negligenciado pelo Poder Público. Nesse sentido, de forma pertinente, Azevedo (1989, p. 15) alerta que “toda e qualquer concepção do direito em geral, e da hermenêutica em particular, que não deite raízes nas necessidades sociais, revela-se inconsistente e insuficiente, por maior que seja o engenho, o rigor lógico ou o grau de abstração que alcance”. Desse modo, a decisão judicial, para se afigurar legítima, deve pautar-se na clareza, na consistência, na razoabilidade e, sobretudo, no compromisso do intérprete com a realidade que o cerca, não olvidando das consequências que sua decisão poderá trazer para os pólos conflitantes, de modo a não negligenciar o direito à vida, à saúde e à dignidade, bem como não onerar excessivamente os cofres públicos.

4.4.3 Das possibilidades de intervenção judicial

Uma vez fixados os limites da atuação judicial na concretização do direito à saúde, o estudo das possibilidades se perfaz quase de forma reflexa. Ou seja, partindo da pretensão deduzida no âmbito do Poder Judiciário, cabe ao magistrado analisar se a sua atuação na

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determinação da prestação almejada incidirá em alguma das proibições acima traçadas ou, até mesmo, em eventuais obstáculos decorrentes do caso concreto. Não havendo a incidência de nenhum limite, ou havendo a possibilidade do eventual limite ser ponderado, a concretização do direito à saúde pelo Poder Judiciário será legítima. Fazendo referências às possibilidades de atuação judicial, Lima (2003, p. 53 e ss.) traz algumas hipóteses em que será possível a intervenção do Judiciário visando a resguardar ou determinar que se concretize o direito à saúde. Para citar algumas dessas hipóteses, o referido autor menciona como fatos geradores da atuação judicial os seguintes: condutas lesivas à saúde, edição de normas que dificultam o exercício do direito à saúde ou o protejam insuficientemente e a inércia governamental no tocante às obrigações positivas (omissões quanto aos deveres de caráter prestacional - normativos e materiais – e quanto à construção de infraestrutura necessária à prestação dos serviços de saúde). A todas essas questões trazidas à lume, o referido autor correlaciona, de forma elucidativa, os julgados pertinentes. Não se empreenderá neste trabalho idêntico estudo. Como já afirmado, os limites trazidos bem identificam, em contrapartida, um âmbito de possibilidades de concretização do direito à saúde. Nesse âmbito, Barroso (2007, p. 20-21) afirma que é possível identificar um “espaço inequívoco de atuação judicial”, estabelecido da seguinte forma:

Em suma: onde não haja lei ou ação administrativa implementando a Constituição, deve o Judiciário agir. Havendo lei e atos administrativos, e não sendo devidamente cumpridos, devem os juízes e tribunais igualmente intervir. Porém, havendo lei e atos administrativos implementando a Constituição e sendo regularmente aplicados, eventual interferência judicial deve ter a marca da autocontenção.

Deste modo, conjugando esse entendimento aos limites acima traçados, é possível identificar, sem maiores problemas, um contexto onde a atuação judicial não será ilegítima, mas, a depender do caso, extremamente necessária.

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5 CONCLUSÃO

O estudo percorrido tratou de abordar, inicialmente, a evolução do Estado de Direito, dando maior ênfase ao Estado Social. Nesta etapa se deu o surgimento dos direitos sociais, inaugurando o constitucionalismo social, o qual acrescentou nos textos constitucionais os direitos de segunda dimensão, implicando tal positivação na rediscussão das funções estatais e na ampliação do conceito de direitos fundamentais. Com o advento do constitucionalismo social e a ampliação do catálogo jusfundamental, o Estado Social surge com o propósito de suprir a desigualdade provocada pelo liberal-individualismo, com vistas a viabilizar a igualização real dos indivíduos por meio da promoção de políticas públicas. Conforme demonstrado pela história, as primeiras cartas constitucionais que previam direitos sociais (Constituição Mexicana, de 1917; de Weimar, de 1919; brasileira, de 1934) tiveram curta duração e o advento dos regimes autoritários em meados do século XX, na Europa e na América Latina, contribuiu para o desprestígio do direito constitucional, em razão da suplantação de direitos e garantias fundamentais pelo Estado. Neste contexto, a efetividade dos direitos sociais fora relegada ao plano das promessas. A redemocratização ocorrida após a Segunda Grande Guerra e, no caso brasileiro, após o regime ditatorial, em 1988, traz ao direito uma nova hermenêutica, agora destinada à realização da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. No Estado

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Democrático de Direito a Constituição é dotada não só de superioridade e normatividade, como também de centralidade no sistema jurídico, servindo de filtro para toda exegese jurídica. Intimamente relacionado à normatividade, o princípio da máxima efetividade, inerente ao Estado Democrático de Direito, exige um Estado compromissado com a progressiva efetivação dos direitos fundamentais, sobretudo daqueles de cunho prestacional, a exemplo do direito à saúde. Neste contexto, as políticas públicas se constituem como instrumento de realização do bem estar social e de garantia e promoção da dignidade da pessoa humana. Todavia, caso as políticas públicas não se viabilizem, aprioristicamente, pelas vias democraticamente eleitas, mister se faz a atuação judicial, não pelo suprimento, mas pela coparticipação no processo de efetivação dos direitos sociais. O caminho pela conquista de legitimidade para este papel ativo do Poder Judiciário, não obstante o grande avanço advindo com o constitucionalismo contemporâneo, ainda encontra em curso, razão pela qual se fez necessário abordar quais os parâmetros para uma legítima atuação judicial. No intento de assegurar o exercício dos direitos sociais, o Poder Judiciário no Estado Democrático de Direito, fundado sobre o postulado ético da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), deve ter uma maior participação no cenário jurídico-democrático e perante a própria sociedade, pautando-se em parâmetros bem definidos, capazes de demonstrar claramente quais os limites e possibilidades do magistrado na concretização daqueles direitos e, consequentemente, do direito prestacional à saúde. Somente um Judiciário compromissado com a realidade brasileira possibilitará a promoção da isonomia material, atenuando, o quanto possível, as desigualdade reinantes neste país, as quais saltam aos olhos, não obstante muitos não as queiram ver. Assim, conforme se observou, a tese substancialista tem sido, na atualidade, a que melhor se coaduna ao caso brasileiro, ainda que para alguns ela se configure excessivamente interventiva. Mas é exatamente disso que se trata, de uma intervenção judicial, porém consistente, consciente, razoável e legítima, de modo que maiorias eventuais não pequem por considerar a Carta Constitucional como mero documento especulativo que, quando conveniente, merece ser cumprido e, quando não, suas normas se tornam meramente programáticas. Ainda que fuja ao cientificismo inerente ao trabalho, não nos escapa uma simples observação. É interessante observar a alegação da insuficiência financeira do Estado, traduzida na cláusula da reserva do possível, em se tratando de efetivação de direitos sociais

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prestacionais quando, de outro modo, se gastam valores vultuosos em campanhas eleitorais. Por estas e outras razões é que tal reserva deve ser objetivamente aferível no caso concreto, sob pena de um irrazoável juízo de conveniência e oportunidade ser acobertado por argumentos falaciosos que demonstrem o claro propósito do Estado se esquivar do cumprimento do munus constitucionalmente atribuído. Como se salientou, a atuação judicial deve buscar o máximo de consistência, uma vez que somente o magistrado devidamente instruído, guiado por uma hermenêutica concretizadora de direitos, pode proferir uma decisão materialmente justa e legítima. Por fim, é necessário que o juiz constitucional seja transformador, sem deixar de ser justo e consciente de seu papel democrático, e que como incentivo tenha sempre em mente as palavras do poeta, as quais, se espera, algum dia sejam tão-somente um retrato desbotado de um passado distante: “E somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia [...]” (MELO NETO, 2008, p. 74)

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