DIREITO AO CORPO E SEXUALIDADE: O LUGAR DA PROSTITUTA

May 29, 2017 | Autor: J. Cunha Moura | Categoria: Direito, Gênero, Prostituição
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DIREITO AO CORPO E SEXUALIDADE o lugar da prostituta

João Carlos da Cunha Moura

DIREITO AO CORPO E SEXUALIDADE o lugar da prostituta

São Luís, 2013

Copyright © 2013 by João Carlos da Cunha Moura. Editoração: Café & Lápis Editores: Claunísio Amorim Carvalho & Germana Costa Queiroz Carvalho Revisão: Claunísio Amorim Carvalho Diagramação: Germana Costa Queiroz Carvalho Capa: Marisio Amorim Carvalho Impressão: Halley S. A. Gráfica e Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ________________________________________________________ Moura, João Carlos da Cunha M929d Direito ao corpo e sexualidade: o lugar da prostituta / João Carlos da Cunha Moura – São Luís: Café & Lápis, 2013. 130 p. ISBN 978-85-62485-45-9 1. Sociedade moderna – Sexualidade. 2. Prostituição – Direito – Formação do Sujeito. 3. Teoria - Marx e Foucault. I. Título CDU 396 CDD 341.591 4 ________________________________________________________ Catalogação na publicação: Marcelo Neves Diniz – CRB 489/13

Publicação de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa.

2013 Direitos em língua portuguesa reservados ao autor (Lei n.º 9.610/98). CASA EDITORIAL QUEIROZ CARVALHO LTDA. CNPJ 10630734/0001-08 - Inscrição Estadual n.º 12311705-4 [email protected] Telefone: (98) 3082-8871

Dedicado às mulheres, que precisam pedir desculpas pela sua força.

Perante a sociedade ela é marginalizada existe umas mais calmas e outras mais depravadas e quem tem mais ódio delas é a própria mulher casada. Ela vive aqui na terra enfrentando um sacrifício se vende para os homens muitas se entrega no vício e nova se estraga e faz da miséria ofício (J. Borges)

AGRADECIMENTOS

Aos meus queridos avós maternos João de Deus e Rosa Mourão, que sempre lutaram por me dar uma boa educação. Aos meus avós paternos Pedro Moura (in memoriam) – que certamente adoraria o tema em questão – e Maria Moura, que compreendeu a proposta. Aos meus pais, Déa e Carlos César, pelo incentivo em literatura, estudos e ações que nortearam o meu jeito de ser, também, pelo apoio ao tema escolhido. Aos meus irmãos Pedro e Vinícius, o laço sanguíneo é só um detalhe nessa relação fraterna. À minha querida noiva Juliana, que entendeu o projeto e que sempre deu grande apoio na luta por um trabalho de qualidade e que estava comigo nos momentos difíceis, em que eu me encontrava de “mãos atadas”. Por estar sempre junto de mim em qualquer causa, motivo, razão ou circunstância, sempre apoiando e dando suporte às ideias lançadas pelo trabalho. À professora Érika Dmitruk, pelas considerações, orientações, conversas, lutas e por adotar este tema tão complexo, tão apaixonante e tão esclarecedor, motivo pelo qual foram grandes as conversas sobre as hipocrisias e paradoxos desse mundo moderno. Às Professoras Mônica Teresa de Costa Sousa, Thaís Viegas, Ana Paula Antunes Martis e Adriana Biller Aparício, pelos grandes incentivos na carreira acadêmica.

SUMÁRIO

PREFÁCIO .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... INTRODUÇÃO .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... 1 A FORMAÇÃO DO SUJEITO NA MODERNIDADE ... 1.1 Quem é sujeito: a análise de Marx .. ... .. ... .. ... .. ...

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1.2 Quem é sujeito: a análise de Foucault ... .. ... .. ... .. ... 27 1.3 O sujeito de direito e o sujeito ao Direito .. ... .. ... .. ... 33 2 O EXERCÍCIO DO DIREITO SOBRE O PRÓPRIO CORPO .. ... .. ... .. .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... 40 2.1 O que é o corpo .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... 41 2.2 O exercício de poder sobre o corpo .. ... .. ... .. ... .. ... 47 2.3 A sexualidade controlada .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... 53 3 A PROSTITUIÇÃO E O EXERCÍCIO DE DIREITO SOBRE O CORPO .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... 61 3.1 O que é prostituição: aspectos histórico-jurídicos ... .. ... 63 3.2 A constituição das prostitutas como sujeito de direito .. ... 78 3.3 A prostituição e os dilemas de um direito sobre o corpo ... 95 CONSIDERAÇÕES FINAIS .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... 105 REFERÊNCIAS ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... 109 ANEXOS ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... .. ... 117

PREFÁCIO

Saltei num instante para cima da laje que pesava sobre meu corpo, meus olhos de início foram de espanto, redondos e parados, olhos de lagarto que abandonando a água imensa tivesse deslizado a barriga numa rocha firme; fechei minhas pálpebras de couro para proteger-me da luz que me queimava, e meu verbo foi um princípio de mundo (...) (Raduan Nassar, Lavoura Arcaica) O ano, 2011. A cidade, São Luís do Maranhão. João Carlos quer escrever sobre prostituição. Por onde começar? Como abordar um assunto que ainda continua sendo um tabu, em uma sociedade, como a brasileira, onde as normas jurídicas encontram-se impregnadas de moralidade religiosa cristã? Para responder essas questões a Ciência Jurídica não é suficiente. Por isso a busca de categorias filosóficas para entender o tema. A escolha dos marcos teóricos foi sólida – Marx e Foucault – a fim de analisar de que maneira as relações de poder investem os corpos e forjam o sujeito moderno. Foi preciso fôlego para empreender esse estudo, e isso o autor apresentou de sobra! Destes autores, João Carlos trouxe a construção das categorias de sujeito e corpo na modernidade, fundamentais para entender o que diferencia a prostituição de outras atividades profissionais que também se utilizam do corpo, que o exaurem e transformam. A ausência de uma opinião valorativa, que coloca a prostituta como vítima das circunstâncias, marca o trabalho de João. Este analisa a prostituição como uma profissão que pode ser escolhida por livre vontade – partindo da ideia de exercício de liberdade e poder sobre o próprio corpo. Sem o peso dos preconceitos, é o lagarto! E é sobre isso este livro – sobre a liberdade e sobre o corpo, sobre sexualidade e prostituição, e sobre como o Direito lida com estas questões. É sobre queimar os olhos. •

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Com alegria recebi o convite de João Carlos da Cunha Moura para prefaciar seu primeiro livro. Sem medo escrevo primeiro, pois tenho certeza que uma brilhante carreira apresenta-se para a comunidade acadêmica. Não pretendo segurar o leitor por mais tempo, desejo que comece a ler logo este trabalho e que se depare com a reflexão cuidadosa e atual feita pelo autor. E que o verbo também se faça princípio de mundo. Erika Juliana Dmitruk Londrina, julho/2013.

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INTRODUÇÃO

O texto que aqui se apresenta tem por objetivo investigar a formação do sujeito moderno, sua relação com o próprio corpo e de que forma este corpo é delimitado pelas relações de poder, analisando mais concretamente a prostituição e expondo as evidências que fazem este autor chegar até uma conclusão científica. Para isso, traz-se um diálogo entre autores e fontes teóricas que se cunham em honestidade intelectual. Interpelam-se os fatos não para retomar na conclusão a hipótese adiantada, já que isso é feito no decorrer da exposição à luz de grandes questões teóricas, buscando dosar profundidade e objetividade. O tema da prostituição chama a atenção para um setor da sociedade que é marginalizado e que sofre com problemas de segregação social, baseado nas ideologias de manutenção da moral e bons costumes, com fulcro em aspirações religiosas ou mesmo de controle social. O presente trabalho é dividido no que se pode chamar de fases, fundadas em uma metodologia de trabalho dedutivo. Uma primeira que trata da formação do sujeito; a segunda que trata da análise do corpo e da sexualidade neste impregnada; e a terceira fase que pondera acerca da atividade de prostituição baseada nas análises estabelecidas de sujeito e corpo. Primeiramente, começa uma discussão a respeito do exercício de direito sobre o próprio corpo. Desta forma, será feita uma análise dentro do arbitrário cultural, no qual se impõem, por meio de relações de poder, delimitando o que se entende por sujeito, nas análises primeiramente de Marx e após nos estudos de Foucault – não se limitando a estes, porém. Têm-se ambos os autores como marcos temporais e teóricos de estudo, visto que o primeiro trata das relações sociais cunhadas no trabalho e nas críticas ao processo de formação social burguês, e o segundo aprofunda os estudos para tratar das relações de poder e de como este se exerce dentro da sociedade moderna, aplacando a cada sujeito uma forma de ser “si mesmo”. Direito ao corpo e sexualidade •

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Esta primeira fase termina com a junção das análises para se obter uma concepção de sujeito de direito dentro do estado burguês moderno, que atrai para si toda uma gama de teorias e conhecimentos para o maior controle do ser. O trabalho busca conceituar a formação de um sujeito de direito na sociedade, com amparo em textos de Marx e Foucault, demonstrando a importância desse conceito na consolidação do Estado moderno. Recorre aos autores de modo a problematizar a ideia de sujeito de direito, atrelada a um contexto articulado entre o poder e a resistência a este poder, tomada em termos éticos. A segunda fase discorre sobre a formação de um corpo a partir dessa concepção de sujeito, suas escalas e projeções na sociedade. Não se trata de estudar o corpo, como massa uniforme, grosso modo, como se fosse uma unidade indissociável, mas de trabalhá-lo detalhadamente: os exercícios de coerção sem folga com o intuito de mantê-lo ao nível da mecânica social imposta. Na última fase, trabalha-se um conceito fechado de prostituição, para que não se confunda, ou melhor, que não deixe brechas para uma exploração sexual legitimada. Utilizando um método histórico define-se a prostituição; e esta será analisada de acordo com o seu caminho ao longo dos anos, antes de discutido dentro dos marcos teóricos. De acordo com suas implicações ao longo do curso das sociedades, além disso, o objeto da pesquisa também será analisado do ponto de vista de um método funcionalista, uma vez que a prostituição nesta parte do texto terá seu ponto basilar instituído em uma imputação burguesa de sua condição como “mal necessário”, ou seja, como se esta fosse a função necessária da prostituição. Dentro da concepção estudada ao longo do texto, investigar-se-á a possibilidade de exercício do direito sobre o próprio corpo, de como a lei pode assegurar (e não restringir) um direito efetivo sobre si próprio (subjetividade, identidade e corpo), através de uma noção de causa que se passa do Direito à ciência (esta na condição de instância de definição da lei da relação social com a pessoa e seu corpo). A conclusão a que se chega não se delimita apenas à questão da sexualidade, mas envolve-a sob uma ótica do direito ao uso do próprio corpo, que pode ser observado em outras políticas do saber, como medicina, segurança, lazer, entre outras.

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A FORMAÇÃO DO SUJEITO NA MODERNIDADE

Ao se perguntar sobre como surge uma determinada época, os sujeitos do conhecimento se veem diante de uma série de questionamentos que envolvem práticas de saber e de poder. Além disso, para um determinado conhecimento normativo e histórico, é necessário também analisar não apenas como surge uma época (ou uma era), mas como se surge um sujeito em dada época: como ele é formado e como se comporta. Teorias apontam que o sujeito é constituído a partir de uma série de dispositivos que devem ser observados de acordo com o momento no qual está inserido. É necessário, então, para que se entendam as formações subjetivas, perceber como as instituições que fazem parte desse especial controle constroem o sujeito. Logo, para entender quem é o sujeito “eu” que se forma, é preciso observar como funcionam os sistemas de empoderamento e de relações de poder. Foucault (1999, p. 33) assinala que o sujeito é fruto de relações de poder e não fruto de imposição de poderes. O poder é um sistema circular, não um fim ou um algo do qual se apropria, mas que se exercita, é o intermediário das relações. O sujeito nada mais é do que o efeito do poder e ao mesmo tempo está inserido no indivíduo que se constituiu. Nessa mesma perspectiva, Marx (2004, p. 106) envolve a gama de relações que se inserem sobre a realidade de uma sociedade. Segundo o autor alemão, “a minha própria existência é atividade social”. Significa dizer que não é possível existir sem que antes se passe por um processo de socialização, ou melhor, de vivência que relacione sujeitos e objetos, estes últimos também modificados e moldados por outros sujeitos. Assim, a sociedade é um conjunto de sujeitos, formada a partir de relações em micro e macroespaços de relações, atuando ciclicamente. Marx e Foucault entram nesse estudo como marcos tanto temporais como teóricos, isto é, são referências nas práticas que percorrem a história da formação humana, bem como a formação da história humana: exercício circular de poder e de controle, ressaltados, por óbvio, as suas características próprias em seus estudos. Direito ao corpo e sexualidade •

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Trazer Karl Marx a um estudo, primeiramente de análise da construção ontológica do ser e depois de suas relações, é observar a importância dos estudos sociológicos desse filósofo da sociedade nos dias de hoje. É observar, em consonância com o pensamento de Hobsbawn (2011), como a influência dos seus pensamentos pode ser vista ainda hoje, mesmo após anos de ressignificação das relações sociais. É também se dedicar a uma espécie de fuga do horizonte formal rígido que a própria ideia de Marxismo dogmático fez prevalecer. De acordo com Foucault (1988, p. 21), essa fuga dar-se-á pela instituição de uma leitura atualizada de Marx, mesmo pelos nãomarxistas, que utiliza o seu pensamento como direcionamento ou método de pesquisa e não como um horizonte imposto. Foucault (1988, p. 22) mesmo afirma: “nunca fui um marxista”. Isso significa que a abertura de sua teoria para campos específicos de análise como as instâncias que formam a sociedade (família, hospitais, escolas, prisões) não se limita ao âmbito meramente econômico das relações de trabalho, mas às relações de poder que envolvem estas instâncias. Há um caráter que une o pensamento de Marx e Foucault, e este caráter é articulado dentro da dialética de formação dos sujeitos em Marx (2004, p. 109), no qual ele explica que as relações entre os sujeitos acontecem a partir das apropriações dos comportamentos uns dos outros. Em forma de sociedade, os seres não precisam exatamente ser, mas pelo menos aparentar ser. O “eu” não é o definidor das condutas, mas o “outro”. O “eu” é apenas o “outro” do “outro”. O “eu” é a apropriação dos discursos que são lançados pelo “outro”. Os discursos são lançados e também se lançam sobre esse “outro”, uma vez que os estatutos e relações de poder circulam pelos polos. Em suma, o “eu” pretende viver em relação, mas qual um “outro” (espaço subjetivo). Enfim, existem instrumentos de mediação dessas relações e é onde as normas, disciplinas e controles atuam sobre os sujeitos. O Direito surge nessa prática como linguagem e ferramenta do controle das relações. Sendo assim, a prática jurídica antes de formar a relação já fixa os sujeitos em determinadas posições prévias, locus jurídicopolíticos que determinam para onde e para quem o Direito descobrirá sua venda no momento decisivo.

1.1 Quem é sujeito: a análise de Marx Ocupando-se em analisar a formação do sujeito dentro do modelo capitalista que se estabelecia, Marx foi um dos principais críticos desta nova formação do homem, do sujeito. Em Marx, o sujeito está relacionado ao processo do trabalho mediante pagamento 20

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e da produção material do capital, ou seja, aparece a ideia de coisificação do trabalho assalariado, que deforma o próprio trabalho, implicando uma dupla redução da produção do sujeito. Nesse sentido, o homem fica única e exclusivamente limitado ao trabalho como reprodução do capital, deixando de lado o trabalho como sua reprodução como sujeito autônomo (FLINKINGER, 1984, p. 7). No momento em que essa reprodução autônoma é esquecida, o indivíduo transforma-se em mero objeto do processo de reprodução material, alienando o seu próprio produto, e esta alienação do trabalho é extremamente importante no que diz respeito ao uso do próprio corpo em relações laborais. Ora, dado que os indivíduos têm formas de percepção já institucionalizadas e que estas formas são deformações funcionais dos sujeitos para a reprodução da sociedade burguesa, temos que o indivíduo pode ser considerado um objeto que deve ser submetido às condições do domínio das instituições para não ver ameaçada sua integração na sociedade, visto que para Marx (2004, p. 106) “a sociedade produz o homem enquanto homem, assim ela é produzida por meio dele”. A interpretação de Marx sobre o sujeito e a sua relação com o trabalho não é a história das relações de produção, Marx interpreta uma interpretação porque já é dada a relação social como natural, ou seja, interpretada como algo estável e duradouro. Entende que a sociedade é uma construção dentro de um sistema e não se faz a si mesma, a sociedade é o que fazem dela e com ela (FOUCAULT, 1997, p. 23). É importante observar que Marx (1996a, p. 297-98) define pressupostos para que a atividade laboral seja considerada trabalho; por conseguinte, para ele o trabalho pressupõe: i) a atividade adequada a um fim, isto é o próprio trabalho; ii) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; iii) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho. Portanto, é difícil, em Marx, dissociar o sujeito da ideia de trabalho, já que o mesmo autor insiste que as relações de liberdades subjetivas não existem como algo real, mas apenas formais e ilusórias, uma vez que são as transformações no âmbito laboral que moldam o ser. [...] a realidade do trabalho e suas conseqüências dão lugar, no ser social, a uma estrutura inteiramente peculiar. De fato, embora todos os produtos do pôr teleológico surjam de modo causal e operem de modo causal, com o que sua gênese ideológica parece desaparecer no ato de sua efetivação, eles têm, porém, a peculiaridade puramente social de se apresentarem com o caráter de alternativa; e não só isso, mas também os seus efeitos, quando se referem a homens, têm — por sua própria natureza — a Direito ao corpo e sexualidade •

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característica de abrirem alternativas. Tais alternativas, mesmo quando são cotidianas e superficiais, mesmo quando de imediato têm conseqüências pouco relevantes, são, todavia autênticas alternativas, já que contêm sempre em si a possibilidade de retroagirem sobre o seu sujeito para transformá-lo (LUKÁCS, 1979, p. 81).

Consequentemente, o sujeito é moldado pelas instâncias de poder, sendo integrado ao sistema de forma a atender as demandas do capital, não exercendo sua liberdade em relação ao corpo. É nesse contexto que podemos colocar algumas empreitadas do sujeito como força de trabalho, como meio de sustento da vida do indivíduo. Pois, qualquer um “tem de ser livre para vender a sua força de trabalho no mercado, por meio de um contrato” (NAVES, 2005, p. 103). Sob um duplo parâmetro, então, o trabalhador se transforma em escravo do seu próprio objeto em um primeiro momento, por receber uma elementar de trabalho, resumidamente, receber trabalho (MARX, 2004), e num segundo momento por receber meios para sua subsistência. Desta maneira, o objeto o capacita a existir, primeiro como trabalhador e em segundo como sujeito físico. Logo, “o ápice dessa escravização é ele só poder se manter como sujeito físico na medida em que é um trabalhador, e de ele só como sujeito físico poder ser um trabalhador” (MARX, 2004). Interessante é notar também que o processo de formação desse sujeito alienado por seu trabalho não se dá somente nesta perspectiva de finalidade da produção, mas sim (e principalmente) em uma perspectiva de processo dela, para se tornar a própria extensão do seu trabalho. Destarte, não se pode apenas abarcar as várias ideias de sujeito na teoria de Marx, uma vez que, em sua essência, esta formação do sujeito atinge um plano ontológico mais amplo. As maneiras de objetividade do sujeito se desenvolvem à medida que aparece e se explicita a práxis da sociedade, práxis esta que Marx aloca como guia, acertadamente, segundo diz Lukács (1979, p. 52) na sua concepção de formação da consciência do sujeito. A práxis, que é elemento do sistema capitalista, não pode ser confundida com a mera atividade cotidiana do homem, assim como também não pode ser confundida a subjetividade com o subjetivismo e negar a importância da primeira no processo de formação da sociedade na história. Em Marx, como em nenhum pensador crítico, realista, jamais se encontrará esta dicotomia. O que Marx criticou e, cientificamente destruiu, não foi a subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo. A realidade social, objetiva,

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que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são produtores desta realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens (FREIRE, 1987, p. 20).

De fato, a alienação a que se sujeita o indivíduo é muito mais total onde há possibilidade de se apropriar do trabalho do outro. Então, a subjetividade é apropriada e quem detém os meios de produção transforma o potencial do sujeito em mercadoria, e o sujeito é “reduzido a um estado de petrificação” (DE LISSOVOY, 2009, p. 184). O problema da mercadoria é o problema nuclear e estrutural da sociedade capitalista e é somente analisando esta relação reificada que se tem como chegar à formação de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de formação do sujeito. A essência da estrutura da mercadoria é que transforma a relação entre as pessoas em uma coisa (LUKÁCS, 2003, p. 194). Retornando à noção inicial de Marx sobre a formação do sujeito (essência criativa da humanidade que é alienada), temos que o indivíduo se perde, ou melhor, é levado a se perder em sua subjetividade, deixando de lado a própria materialidade daquilo para o qual o sujeito se esforça para ter para si, mas que acaba sendo alienado, como, por exemplo, atividades de criação, imaginação e de autoconhecimento. E isso ocorre porque o trabalhador coloca a sua vida na produção (material e imaterial), logo, essa vida (tempo, força, etc.) não lhe pertence, porém, pertence ao objeto. Dessa maneira, quanto mais intensa for sua atividade, tanto menos ele possuirá subjetividade. O que fica incorporado ao fruto do trabalho não mais é dele mesmo. A alienação do trabalhador (que é o sujeito alienado) “em seu produto não significa apenas que o trabalho dele se converte em objeto, assumindo uma existência externa, mas ainda que existe independentemente, fora dele mesmo, e a ele estranho, e que com ele se defronta como uma força autônoma. A vida que ele deu ao objeto volta-se contra ele como uma força estranha e hostil” (MARX, 2004, p. 81). Ou seja, o capital, que aliena a formação do sujeito, se realiza pela coisificação das relações sociais (MACHADO, 2007, p. 76). É importante abordar este aspecto de formação do sujeito em Marx, porquanto seu método histórico empilha uma série de hipóteses que se sobressaem na análise de outros autores (inclusive de Foucault, como veremos adiante). Neste materialismo histórico, Marx vem a nos mostrar que é preciso sair da mera análise da economia das coisas e partir para um novo paradigma de análise das relações sociais, já que Direito ao corpo e sexualidade •

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é o homem, o humano, que forma a realidade histórica e não existe uma história para a humanidade, mas uma história de homens feita por homens e que também os forma como sujeitos. Entretanto, é justamente neste ponto em que alguns são deixados de lado na formação histórica da sociedade, tendo sua subjetividade alienada e dominada (FREIRE, 1987, p. 73). O sujeito será tão mais específico quanto for a divisão do trabalho na sociedade capitalista. É necessário, para o desenvolvimento da economia burguesa, um rompimento com o modo universalizante do modelo de processo de produção. [...] em primeiro lugar, para poder calcular o processo de trabalho, é preciso romper com a unidade orgânica irracional, sempre qualitativamente condicionada, do próprio produto. [...] a racionalização é impensável sem a especialização. [...] Em segundo lugar, essa fragmentação do objeto da produção implica necessariamente a fragmentação do seu sujeito. Como consequência do processo de racionalização do trabalho, as propriedades e particularidades humanas do trabalhador aparecem cada vez mais como simples fontes do erro quando comparadas como funcionamento dessas leis parciais abstratas, calculado previamente (LUKÁCS, 2003, p. 202-203).

O sujeito é limitado e formado dentro de uma funcionalidade econômica do poder do Estado liberal, ou seja, o seu papel essencial é o de manter relações de troca (transferência e/ou alienação por um ato jurídico) aplacadas por um mecanismo de poder: o Direito. Foucault (1999, p. 20) ensina que o poder nessa concepção marxista clássica se manifesta como a propriedade ou capacidade de agregar poder e que se pode dispor para a constituição de um poder soberano, um poder político. É que Marx analisa o poder como a tomada de uma propriedade que é jogada dentro da lógica do mercado, por meio de operações jurídicas. É bem isso que Marx (1996a, p. 96) simplesmente afirma quando diz que “operário vende não é diretamente o seu trabalho, mas a sua força de trabalho, cedendo temporariamente ao capitalista o direito de dispor dela”, ou seja, existe um poder vender sua força de trabalho para o detentor dos meios de produção. Como então o sujeito deixa-se alienar? De que forma o sujeito é colocado à parte do processo de subjetividade, esquecendo-se de si próprio e colocando a sua força de trabalho, a sua vida, à disposição do modo de produção capitalista? Marx (1996a, passim) explica que o indivíduo, enquanto não possuidor dos meios de produção, tende a buscar algo em si para 24

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servir de troca dentro do processo. Só lhe resta a sua força de trabalho, contida no seu corpo vivo. No entanto, tal venda não é permanente, mas temporária, isto é, ele vende sua força de trabalho pelo tempo no qual precisa ser desenvolvido o objeto (a mercadoria do detentor dos meios de produção), dentro do processo de produção. Ocorre que o indivíduo necessita de uma quantidade mínima de meios para sua subsistência e isto faz que o sujeito aliene sua força de trabalho por um tempo maior do que o necessário para a produção do objeto. Segundo, quanto ao que serve de base à determinação da grandeza de valor, a duração daquele dispêndio ou a quantidade do trabalho, a quantidade é distinguível até pelos sentidos da qualidade do trabalho. Sob todas as condições, o tempo de trabalho, que custa a produção dos meios de subsistência, havia de interessar ao homem, embora não igualmente nos diferentes estágios de desenvolvimento. Finalmente, tão logo os homens trabalham uns para os outros de alguma maneira, seu trabalho adquire também uma forma social (MARX, 1996a, p. 20). O sujeito se torna parte da mecanicidade racionalizada da produção, sendo um apêndice da máquina. Este processo racionalizado e específico reduz o espaço e o tempo a um mesmo denominador, aumentando ainda mais a submissão do homem à máquina. O tempo se perfaz dentro da lógica do capital, transformando o lugar do sujeito em um lugar vazio. Na sociedade moderna, o tempo decide qual a forma de atuar do sujeito, o tempo é mensurável e transformado em um espaço físico, calculável (LUKÁCS, 2003, p. 205). Algumas vendas de força de trabalho, entretanto, não são legitimadas visto que, dentro deste perfil capitalista, há necessidade de se fragmentar o sujeito dentro da relação de produção para comprar a mercadoria (a do sujeito é a força de trabalho). É que no caso de trabalhos que se vendem sem que haja dispêndio na compra da força de trabalho (autônomos) o modo de produção encontra-se fragilizado, pois falta a condição de “existir valor, em busca de mais-valor” (MACHADO, 2007, p. 71), justamente porque neste caso não existe um valor anterior que busque o mais-valor, pois o próprio corpo do sujeito transcende qualquer aplicação de valores anteriores que se destinam à consecução de lucros. Logo, o próprio sujeito que se colocar frente às formas institucionalizadas, deformadoras da percepção do sujeito, são marginalizados em grupos de categorização, pois só o trabalho assalariado é que serve para a reprodução das sociedades capitalistas (FLINKINGER, 1984, p. 7). Direito ao corpo e sexualidade •

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Aquilo que habitualmente é classificado como destino (sorte, fortuna, etc.), as circunstâncias externas que não se podem prever ou controlar, criam determinadas opções, as quais se chamam escolhas. Todavia, é o caráter humano que guia essa escolha, ou seja, os homens constroem suas histórias de acordo com suas condições e não com suas escolhas. O que viemos a chamar de relações materiais, ou práxis, manipula as possibilidades das escolhas humanas. A práxis torna algumas decisões mais custosas e arriscadas para quem as toma do que suas alternativas, contudo não determinam as escolhas, “elas não as tornam inevitáveis e inescapáveis. Podem limitar de forma severa a probabilidade de algumas opções, mas não podem suprimi-las. Nem nos campos de concentração, os regimes totalitários conseguiram fazer isso” (BAUMAN, 2010, p. 88). O processo pelo qual a sociedade capitalista produz o sujeito converte o indivíduo, material humano do processo de produção. É um processo de naturalização das normas de comportamento, ligadas a este modo capitalista até que o sujeito tenha no seu imaginário que ele se constrói a si próprio. Marx mostra que a aparente racionalidade da modernidade capitalista de certo modo só representa a racionalidade interior de um sistema absurdo objetivado: uma espécie de crença secularizada em coisas, a qual se manifesta nas abstrações tornadas palpáveis do sistema de produção de mercadorias, de suas crises, absurdezas e resultados destrutivos para o ser humano e para a natureza. Na autonomização da chamada economia, na fetichização de trabalho, valor e dinheiro, opõe-se, aos seres humanos, a sua própria sociabilidade, enquanto poder alheio e externo (KURZ, 2001, p. 12).

A relação social que se determina pela própria sociedade transforma-se em uma relação entre coisas. Dessa forma, afirmar que o sujeito, nos dias atuais, encontra-se cada vez mais alienado e estranhado ao seu próprio trabalho significa dizer que o trabalho concreto está em crise, sendo cada vez mais substituído e preenchido pelo trabalho abstrato, o que é algo perigoso e leva o homem a perder a referência do seu caráter de ser social. É importante ressaltar que grande parte desse estranhamento é consequência do capitalismo, no qual a mercadoria tende a exercer cada vez mais fascínio sobre o ser humano. E para aumentar este fascínio, avançam a ciência e a técnica (ANTUNES, 2009, p. 131). 26

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Na era moderna há uma alienação em relação ao mundo, uma expropriação, já que certos grupos são despojados de seu lugar no mundo. Se no primeiro estágio de alienação houve caracterização da pobreza e miséria, nesta fase moderna a alienação em relação ao mundo se dá quando se extirpa o conceito de sujeito de si próprio e este sujeito deve pertencer a alguma classe social (ARENDT, 2009, p. 268). A universalização da forma de vender como mercadoria a força de trabalho, porém, tende a bloquear não só a afirmação do humano como sujeito, mas a própria cogitação acerca dos enigmas inscritos no núcleo da sociedade capitalista, uma vez que a coisificação, antes empregada apenas no mundo do trabalho, estende-se, agora, para todos os domínios da sociedade. Este sujeito moderno, que é moldado dentro das relações sociais de trabalho é posto para trabalhar para enriquecer a sociedade burguesa, ou seja, para que o indivíduo possa ser alocado como componente subjetivo da riqueza ele precisa estar inserido no que se convencionou chamar mercado de trabalho.1 Mas esta liberdade não existe de fato, o sujeito é formado, e não se figura em si mesmo, é dominado e construído pelas relações de poder, conforme se observa a seguir com a análise do sujeito em Foucault.

1.2 Quem é sujeito: a análise de Foucault É o próprio Foucault (1995, p. 231-232) quem afirma que sua preocupação é, antes de tudo, criar uma história dos diferentes modelos pelos quais o humano passou para se constituir em sujeito. Para isso, o autor lida com três modos de objetivação que transformam os seres humanos em sujeito. Em um primeiro momento, utiliza o modo da investigação, para tentar atingir uma finalidade da própria filosofia marxiana, qual seja, a objetivação do sujeito como ser dentro da história. A sua segunda parte aborda a objetivação na divisão maniqueísta da sociedade (normais versus anormais) e, por último, o modo pelo qual o humano se torna um sujeito. Para isso, Foucault teve de recorrer a uma categoria que por vezes deixava seu trabalho mais complexo, uma vez que para analisar o sujeito foi obrigado a relacioná-lo com os mecanismos de poder da sociedade. É nas palavras dele próprio que tiramos essa conclusão: Eu gostaria de dizer, antes de mais nada, qual foi o objetivo do meu trabalho nos últimos vinte anos. Não foi analisar Perceba-se o termo “mercado de trabalho”, um termo no qual demonstra pela própria expressão que este é o espaço destinado à venda de força de trabalho, ou simplesmente, trabalho. 1

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o fenômeno do poder nem elaborar os fundamentos de tal análise. Meu objetivo, ao contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos (FOUCAULT, 1995, p. 231).

Foucault assume a postura de se colocar estudioso do sujeito tendo como base crítica aquilo que se transforma em “ciências humanas”. O homem (humano) é então colocado como figura de conhecimento e é dissolvido pela sua aparição objetivada (ARAÚJO, 2001, p. 89). O sujeito é uma situação, isto é, situado e dependente, jamais titular da ação. O sujeito, nas palavras do próprio Foucault (2008a, p.126), “é tomado como referência por um certo número de signos, mesmo se não está presente em si mesmo”. Nessa percepção de que se exerce um poder sobre o sujeito, “sujeito” em Foucault, pode ser entendido sujeito a algo (pelo controle e exercício do poder) e preso à sua própria identidade. Nesse caso, existe uma forma de dominação, ou seja, o sujeito sempre estará sujeitado. É aí que corroboramos a ideia individualizadora e totalizante que se exerce sobre o sujeito. Contudo, até o exercício desse poder tem que se dar do indivíduo para o próprio indivíduo, uma forma de se colocar frente a si mesmo. Foucault quer descrever as técnicas de adequação da relação de si para consigo: “história que leva em conta os exercícios pelos quais eu me constituo como sujeito, a história das técnicas de subjetivação, história do olhar a partir do qual eu me constituo para mim mesmo como sujeito” (GROS, 2006, p. 128). Dessa maneira, só é possível conhecer aquele que é colocado como sujeito por meio do seu ser, da sua produção e do seu discurso; toda a sua formação é vinculada ao seu processo histórico de pertencimento. O sujeito não possui um lugar, seu lugar é inócuo e será “sujeito” apenas quem preenche determinadas normalizações e condições (normas jurídicas, por exemplo). As condições de pertença é que decidem quem é “sujeito”. As formas condicionadas nas quais aparece o sujeito são as mesmas que se reproduzem como tendo uma história. Deste modo, a história não liberta o homem, a história revela tudo o que condiciona este homem (ARAÚJO, 2001, p. 106). A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica –, se apropriar,

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novamente, de todas essas coisas mantidas a distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência (FOUCAULT, 2008b, p. 14).

O sujeito é uma forma e não um ente abstrato, uma substância, o que não se refere a um sujeito de natureza humana. Para Duarte (2002, passim), é Heidegger que vem a nos auxiliar nessa interpretação do sujeito-forma foucaultiano, pois é ele que nos mostra a subjetividade como não fazendo parte do sujeito, uma característica não dada, mas que pode ser pensada apenas como modo de ser moldado. Tanto Foucault quanto Heidegger chamam a atenção para o fato de que há uma exigência de uma apropriação dos modos de agir, desconstruindo a ideia substancial do ser. É que os dois autores concordam em que já existe uma pré interpretação das possibilidades do ser, as percepções a respeito de nós já estão de “antemão reguladas, controladas e disponibilizadas. [...] Por isso nem sequer o percebamos, já que estamos sempre entregues [...] ao ‘poder’” (DUARTE, 2002, p. 56-57). A sociedade estipula as normas e os mecanismos fixadores, produzindo uma série de técnicas que ligam o sujeito ao trabalho, para tornar o indivíduo força realmente produtiva (em vez de força produtora) e é por meio da disciplina que se chega a esta normalização, que é especialmente delegada pela ótica da vigilância. Existe uma subjugação disciplinar que se vale de estratégias e processos que instalam relações imediatas de controle, fazendo nascer um sujeito não pela sua proatividade na sociedade, mas pela inserção e intervenção direta na vida do sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 249). Na modernidade, esta intervenção se dá pelo modelo de exclusão por meio dos institutos de aprisionamento/internamento, unido ao trabalho. Se em Marx, o trabalho é a alienação da força de trabalho do sujeito transformado em mercadoria, sempre em um modelo produtivo, em Foucault, o trabalho tem uma motivação diferente e funciona como uma forma de remediar todas as situações que incorram em probabilidade de desvinculação com o pensamento predominante, mesmo que não seja produtivo: o produto pouco importa quando se trata de manutenção da ética na sociedade burguesa. O que Foucault analisa é uma nova forma de utilização do trabalho, que a partir das tensões que surgem e comprometem o modelo capitalista toma moldes Direito ao corpo e sexualidade •

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de valor ético. O pobre e a miserabilidade, o louco e a não-razão, são indivíduos e condições ociosos e irracionais, não aderentes a uma disciplina que impede o progresso social, devendo então ser ocupados ou internados para regular uma economia que ciclicamente entra em crise. Nesse primeiro impulso do mundo industrial, o trabalho não parece ligado a problemas que ele mesmo suscitaria; é percebido, pelo contrário, como solução geral, panacéia infalível, remédio para todas as formas da miséria. Trabalho e pobreza situam-se numa oposição simples; suas amplitudes estão na razão inversa uma da outra. Quanto a este poder, que de fato lhe pertence, de fazer desaparecer a miséria, o trabalho (para o pensamento clássico) não o retira tanto de seu poder produtor quanto de uma certa força de encantamento moral. A eficácia do trabalho é reconhecida porque é baseada em sua transcendência ética. Após a queda do homem, o trabalho-punição recebeu um valor de penitência e resgate. Não é uma lei da natureza que força o homem a trabalhar, mas sim o efeito de uma maldição. A terra é inocente dessa esterilidade onde acabaria por adormecer se o homem permanecesse ocioso (FOUCAULT, 1972, p. 81).

É por meio dessa aquisição da figura do sujeito que as normas moldam o corpo, moldam a formação do indivíduo e é só a partir de ser ciente deste fato que se pode começar a tecer as bases para o estudo das relações de poder que moldam o sujeito. É o Estado que corrobora tais normas moldadoras por meio da sua legítima “governança”, ou melhor, pela governamentalidade, o método estratégico de se utilizar as regras para atingir-se uma finalidade que, nesta sociedade capitalista, de longe é o bemcomum. O governo é definido como uma maneira correta de dispor as coisas para conduzi-las não ao bem comum, [...] mas a um objetivo adequado a cada uma das coisas a governar. O que implica, em primeiro lugar, uma pluralidade de fins específicos, como por exemplo, fazer com que se produza a maior riqueza possível. [...] No caso da teoria do governo não se trata de impor uma lei aos homens, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar o máximo leis como táticas (FOUCAULT, 2008a, p. 284).

Se, para Marx, o Estado era uma abstração, não passando do imaginário de organização social, para Foucault, o Estado toma pro30

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porções diferentes, o que não quer dizer que este não concordasse com o autor alemão. É que o Estado é um dos principais moldadores dessa concepção de sujeito moderno que hoje se apresenta. Portanto, os mecanismos de sujeição não podem ser estudados sem estar ligados com os mecanismos de exploração e dominação, isto é, o Estado é considerado um tipo de poder político que ignora a individualidade e se liga a interesses de uma classe de cidadãos (que são considerados a totalidade). O poder do Estado é uma força, um poder que individualiza e universaliza, por isso é importante estudá-lo (FOUCAULT, 1995, p. 236). O que Foucault quer dizer, com tal assertiva de dizer que o Estado exerce o poder de forma individualizadora e totalizante, é que uma relação de poder se exerce sempre com uma reação, isto é, é preciso que o sujeitado seja reconhecido como sujeito e que se abra diante da relação de poder, “todo um campo de resposta, reações, efeitos, invenções possíveis”, o que não se confunde com uma relação de violência, na qual o outro polo é apenas passivo (FOUCAULT, 1995, p. 243). É com base no evento do que Foucault chama de “Grande Internamento” na Idade Clássica que começam a surgir as bases para a instalação das ciências médicas e sociais, que no decorrer da História farão seu processo de produção do saber e da formação do sujeito de forma a proceder na classificação e no controle do ser humano, do que propriamente em uma busca por uma verdade das relações sociais (DREYFUS; RABINOW, 1995, p.5). É com respaldo nas ciências humanas que a governamentalidade se firma, visto que estas ciências humanas vêm buscando a criação de normas e regras com o intuito de estruturar o homem, criando métodos que positivam suas condutas. No entanto, é difícil ter como ciências esta série de apelos à representação humana, que tem como objeto de análise não o homem, mas sim os comportamentos humanos de vivência, trabalho e fala, tentando de alguma forma estruturar em regras e normas estas possibilidades humanas. É com base nestas formas normalizadoras que o sujeito se encontra preso entre sua identidade e as estruturas definidas pela sociedade, ou seja, está situado em uma tenra linha entre a sua constituição própria e em ser constituído pelos elementos objetivadores do seu subjetivismo (ARAÚJO, 2001, p. 109110). Isto posto, a ideia que se forma sobre o homem tem seu momento histórico, visto que seu aparecimento ocorre em um dado momento. Além disso, o sujeito se torna alvo não de um poder, mas de um exercício de poder, com base nos mecanismos de poder produzidos pela sociedade burguesa, seja em forma de ciência ou em forma outras de alocação Direito ao corpo e sexualidade •

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do sujeito em seu devido locus. Em sua genealogia, Foucault não aceita o antropocentrismo, justamente por entender que o sujeito não é fruto do que ele pensa, diz ou produz. Na verdade é o contrário, é o discurso que determina o que o sujeito deve pensar, falar ou produzir, melhor dizendo, é o discurso que constrói o sujeito determinando quando, como e onde falar, pensar ou produzir (NAVARRO-BARBOSA, 2004, p. 113). Todo o pensamento, toda a prática, toda a fala de uma dada época histórica são coordenados por um conjunto pequeno e restrito de ideias fundamentais, que são os “enunciados”, as matrizes inominadas de toda a formação de saber da tal época. Estas matrizes sofrem constantes transformações no percurso histórico, e modificam a forma do saber e de saber, fazendo que vários discursos se apresentem, favorecendo o método arqueológico de saber o saber. O homem, contudo, não é um ser histórico, posto que o tempo lhe seja exterior. Ele não se constitui como sujeito “da História senão pela superposição da história dos seres, da história das coisas, da história das palavras”, passa o homem a ser sujeito na História, ou antes, um sujeitado à História (FOUCAULT, 1996, p. 395). Consignou-se, então, que é através destas ciências humanas que se consegue uma efetiva interpretação do sujeito, como estas fizessem a verdadeira interpretação da psique humana, tornando-se os sabedores da cultura e da sociedade como um todo. É por estas explicações que se denotam as ciências humanas como aparatos críticos do sujeito, sendo os intérpretes aqueles legitimados a ter sua compreensão. Contudo, estas ciências apenas colocam o sujeito como objeto de estudo, suspendendo os acontecimentos do mundo real, apesar de uma visão crítica da sociedade (quando estas ciências se pretendem fundadoras de uma verdade que escape às relações de poder), elas só confirmam estas relações, uma vez que tentam ultrapassar seus limites, tentando criar uma espécie de normalidade das relações sociais. A complexidade em se estruturar ciências ricas em análises críticas é que o próprio uso destas acaba por desenvolver uma série de atrativos para a instalação de instituições e alternativas de promessa de resolução das anomalias. Destarte, as dominações só se confirmam, tendo em vista que o fracasso destas alternativas legitima sua expansão, utilizando-se o argumento de uma dilatação para o efetivo cumprimento das promessas (DREYFUS; RABINOW, 1995, p.199-201). Apesar de muito o utilizar, mesmo sem o referenciar, Foucault rebate a ideia marxista do poder delegado e conquistado por uma classe que é a detentora dos meios de produção. O que acontece, na verdade, é que o poder não é objeto de propriedade, o poder é o reflexo das posições estratégicas dessa classe dominante na sociedade, e o próprio 32

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Estado é o efeito desta conjuntura multifacetada de poder. Explica Deleuze (1988, p.35) que “não somente os sistemas privados, mas as peças explícitas do aparelho de Estado tem ao mesmo tempo uma origem, procedimentos e exercícios que o Estado aprova, controla ou se limita a preservar em vez de instituir”. Para um melhor desenvolvimento da metodologia do texto, até este momento, isto é o oportuno a dizer. As dominações sobre o sujeito e sobre corpo pela esfera jurídica e pela sexualidade serão colocadas adiante, para se chegar à delimitação do tema já com as premissas prontas para a aplicação dos marcos teóricos aqui estudados.

1.3 O sujeito de direito e o sujeito ao Direito Quando vem à tona a questão do Direito inserido na sociedade moderna, remete-se a Marx para que se analise uma quebra no paradigma do Direito como algo universal e universalizante. Os deveres individuais, com a ascensão do modelo capitalista, não são integrados aos interesses gerais que supostamente teriam vez nas representações do Estado, antes disso, os interesses são subordinados ao próprio Estado. Assim, é possível perceber que o Estado não se aparenta como o todo integrado, absorve interesses e se coloca não como o ente agregador, representante dos interesses gerais, mas como mais um na engrenagem que move a sociedade moderna, impondo leis das quais dependerão a sociedade numa relação exterior, de fora para dentro (MARX; ENGELS; 1998, passim). O desenvolvimento do capitalismo criou um sistema de leis que atendesse a suas necessidades e se adaptasse à sua estrutura, um Estado correspondente. Surge, dessa forma, uma sistematização racional de todas as regulamentações jurídicas da vida, que vem a representar um sistema fechado que pode se relacionar com todos os casos possíveis dentro das relações sociais. A sistematização fechada acaba por delimitar o comportamento humano conforme os limites da lei. O direito é reduzido aos esquemas de leis, o que implica inclusive a tomada de consciência quanto à sua posição dentro da sociedade (LUKÁCS, 2003, p. 218). É bem estreita a relação entre crítica do Estado e crítica do Direito em Marx, pois é do nascimento do Estado inserido nas lutas de classes que se desdobra a tomada das posições pela classe economicamente dominante, detentora dos meios de produção. Para Marx, é por meio do Estado que esta classe adquire e adequa as ferramentas de poder aos seus interesses, controlando a classe subalterna. O poder, na sociedade capitalista, assenta-se em um aparelho Direito ao corpo e sexualidade •

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de coerção montado pela própria classe dominante, naturalizando normas e sancionando mecanismos democráticos que legitimam uma democracia, sempre baseada em um modelo burguês (BOTTOMORE, 1988, p.98). É somente quando o Estado, baseado nas relações burguesas, se desenvolve que o direito se reveste desta capa de abstração e cada um se converte em seu genérico. O trabalho é somente o trabalho útil, e o sujeito é somente o sujeito de direito em abstrato, montado dentro de uma norma, que nada mais é do que a forma acabada de uma lei geral e abstrata. O sujeito de direito marxista é um proprietário de mercadorias e sua vontade, em sentido jurídico, tem seu fundamento no desejo de alienar adquirindo e de adquirir alienando, um desejo cíclico de trocas entre compradores e vendedores de força de trabalho, instrumentalizado por um contrato. No plano jurídico só tem valor os conceitos de sujeito e vontade se estiverem ambos em sua forma mais simples, reduzidas em termo a um contrato, confundindo relação jurídica e relação econômica (PACHUKANIS, 1977, p. 149-150). Este modelo capitalista de legitimação da sua ordem democrática, apesar disso, é sempre questionado e posto a provas e questionamentos. FOUCAULT (1999, p. 29) admite que este mecanismo de constante ação/reação de poderes é que legitima o exercício de poder. Mas, ainda assim, o Direito é produzido pela ampliação de forças produtivas e, portanto, o papel do Direito e do Estado é sempre um reflexo das necessidades e interesses da classe burguesa (MARX; ENGELS, 1998, p. 73). Marx aponta que a lei da liberdade é a lei da propriedade privada. O Estado Moderno, ao tutelar os direitos do homem, funcionaliza-se à atividade econômica capitalista. Os direitos subjetivos, portanto, também reproduzem a antinomia da funcionalização da Política (o público) à atividade econômica (o privado) (CAVICHIOLI, 2006, p. 58).

Na modernidade, a figura do sujeito de direito resta institucionalizada, mais um instrumento de limitação da liberdade do que mesmo propriamente de uma formação de uma figura de direito. É esta nova “forma” de um sujeito desprovido de subjetividade, que molda as relações dentro do Estado moderno. O que se diz da emancipação política não é nada além de uma série de contradições que coloca o sujeito sendo formado frente a um modelo econômico. O caráter jurídico da regulamentação das relações sociais modernas é somente a forma de que se revestem historicamente as diferentes relações na sociedade de produção capitalista. É uma relação entre os sujeitos modelada por uma economia atomizada, ou seja, os vínculos jurídicos são mantidos 34

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pelos contratos concluídos entre as unidades privadas, isoladamente. A relação entre os sujeitos de direito é apenas a transformação de uma relação entre mercadorias, uma vez que os próprios sujeitos são eles mesmos as mercadorias. No desenvolvimento das categorias jurídicas, a capacidade de realizar atos de troca é apenas uma das diversas manifestações concretas da característica geral da capacidade jurídica e da capacidade de agir. Todavia, historicamente, o ato de troca fez justamente amadurecer a ideia de sujeito, como portador de todas as possíveis pretensões jurídicas. É somente na economia mercantil que nasce a forma jurídica abstrata, por outras palavras, que a capacidade geral de ser titular de direitos se separa das pretensões jurídicas concretas. Só a contínua mutação dos direitos que ocorre no mercado cria a ideia de um portador imutável destes direitos (PACHUKANIS, 1977, p. 144).

O Direito, não importa de onde se erga, é sempre uma superestrutura que reflete uma infraestrutura econômico-social. O caráter burguês imposto ao corpus jurídico fez alavancar uma ideologia de individualismo, ligada às estruturas obscuras das classes da sociedade burguesa e que se limita a um jogo de necessidades e dos meios de produção. A ilusão do Direito como forma igualitária de regulamentação das normas, destarte, matiza-se em duas facetas: a primeira de um legislativo que cria leis e a segunda de que estas leis se materializam na sociedade. No primeiro caso, há uma descoberta e limitação de expressão da lei e não uma criação. É que o poder legislativo burguês, ao legislar, está apenas cumprindo um papel de mantenedor de interesses. No segundo caso, por via de consequência, a proclamação formal de uma lei não modifica a realidade na qual ela se impõe. O Direito, portanto, nada mais é do que um instrumento de dominação que cria no imaginário, uma ilusão de legalidade, justiça e igualdade (GOYARD-FABRE, 2002, p. 171). Se Marx procura entender quem tem o poder, Foucault vai além e procura discutir como se constroem as relações de poder. Ao se utilizar de uma concepção de poder como algo abstrato, Marx procura descobrir quem detém o poder e o que este procura, tenta descobrir qual é a finalidade do poder. Dominação, dirão alguns dos teóricos e estudiosos. Contudo, mesmo com essa crítica à ideia marxista do poder como fim, concorda-se com a afirmativa de que existe um exercício de poder sobre o sujeito, uma vez que este é o intermediário da relação, o sujeito é o efeito do poder. O Direito entra nesta formação do sujeito tendo Direito ao corpo e sexualidade •

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como finalidade tomar de conta das normas sociais, criando uma técnica que tem como objetivo principal a colocação do Direito como veículo das relações de dominação (FOUCAULT, 1999, p. 31-33). Esta dominação é simplesmente conquistada, ou melhor, reproduzida como um esquema, uma série de pressupostos que se coloca nessa nova lógica de formação de um sujeito de direito, que é, antes de qualquer coisa, uma nova forma legitimada para a transformação do sujeito em sua própria mercadoria. O direito de propriedade é requerido para que se consiga a condição de sujeito de direito. A transformação original do dinheiro em capital realizase na mais perfeita harmonia com as leis econômicas da produção de mercadorias e com o direito de propriedade delas derivado. Não obstante, ela tem por resultado: 1. que o produto pertence ao capitalista e não ao trabalhador; 2. que o valor desse produto, além do valor do capital adiantado, inclui uma mais-valia, a qual custou trabalho ao trabalhador, mas nada ao capitalista, e que todavia torna-se propriedade legítima deste; 3. que o trabalhador continuou a manter sua força de trabalho e pode vendê-la de novo, caso encontre comprador (MARX, 1996b, p. 218).

E é com base nesse modo de reprodução que se tem a constituição do contrato como base primordial do Direito, isto é, a apropriação é transformada em relação jurídica. Com a consolidação desse modelo liberal de economia e de formação de um sistema jurídico, os conceitos de um sujeito de direito (assim como os direitos subjetivos), passam a funcionar visando a garantir segurança jurídica, através de um empreendimento codificante, ao modo de produção capitalista. O âmbito jurídico se apequena diante do legal e ambos tendem a confundir-se, criando um sopor de mobilização social, no sentido de tornar os sujeitos de direito impelidos a confirmar e amparar-se em uma segurança jurídica, pois com a codificação as condutas são normalizadas, expressas em leis (MARX, 1996b, p. 218). Foucault recorre a uma análise de uma História anterior ao que se denomina, em Marx, de sociedade capitalista, para tratar do poder soberano e como este se transforma em um poder jurídico, ou melhor, um poder disciplinar de normação. O que antes era um poder judiciário ligado a um poder soberano, limitando-o ou abrindo espaço para determinadas atitudes, começa a ser posto em xeque na sociedade moderna, no momento em que é possível funcionalizar a punição e a correção dos vícios. Se antes “o direito de soberania” era “fazer morrer ou deixar viver”, na sociedade moderna o que se tem é um “direito de fazer viver e de deixar morrer” (FOUCAULT, 1999, p. 287). 36

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Marx e Foucault se identificam justamente quando tratam de ideologia e discurso, respectivamente. É que ideologia e discurso aparecem dispostas a constatar e corroborar a dominação da classe dominante. Se Marx (1998, p. 48) nos chama a atenção para demonstrar que “os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes”, Foucault (1999, p. 35) convida a tratar do discurso de forma a entender que “não nos encontramos no verdadeiro senão obedecendo às regras de uma ‘polícia’ discursiva que devemos reativar em cada um de nossos discursos”. Neste ponto de convergência que os lança para novas divergências, Marx e Foucault se colocam diante da questão da dominação empenhando-se em explicar como ideologia e discurso acabam por fazer o sujeito absorver e transformar em naturalidade os aspectos da vida que vive. O Direito é transformado então nesse conjunto de práticas que por dever “tem de corresponder não apenas à situação econômica geral, ser a sua expressão, senão ainda constituir uma expressão em si mesmo coerente, que não golpeie a si mesmo na face, devido a contradições internas. E, para que isso se realize, resulta, mais ou menos, despedaçada a fidelidade do reflexo das relações econômicas” (ENGELS, 2007, p. 7). Na sociedade moderna, sob a égide de uma forma política de Estado chamado de Direito, o sujeito é colocado em um modelo de submissão a determinados direitos, pelos quais deve estar apto a lutar. Contraditoriamente, impõem-se os direitos (denominados “naturais”) e faz-se que o sujeito almeje alcançar estas formas pré-concebidas em normas e códigos. Não existe um eu que se seja independente destes direitos, somente existe um eu à medida que existam regras positivas necessárias para o sujeito se formar como tal. O que na realidade se chamam direitos, depende do Direito. O sujeito apenas tem direitos mediante o Direito, ou seja, na proporção que este seja uma “pessoa jurídica” (GOYARD-FABRE, 1999, p. 347). Por isso, o que se chama Direito na verdade é apenas uma atividade de práticas judiciais, que se apronta em normas legais as quais são apoiadas em juristas que se ilustram nas normas codificadas para corroborar as práticas de atomização do homem, ou seja, o indivíduo moderno é levado a sentir e naturalizar a desnecessidade de se organizar solidariamente, criando um espaço de significação do sujeito de direito, o qual distancia o Estado liberal e as classes mais periféricas, visto que tal concepção autorreferente e neutra de Direito será sempre julgada de forma íntegra e imparcial. O sujeito não é mais um sujeito de direito, mas, antes, é sujeito ao Direito, pois é colocado dentro de um sistema de leis que gere os ilegalismos por este sistema criado. Como explica Deleuze (1988, p. 39), é uma forma de garantir Direito ao corpo e sexualidade •

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privilégios às classes dominantes, na medida em que a lei não passa de uma forma de gerenciamento dos ilegalismos, criando e reproduzindo alguns, inclusive, cedendo e tolerando outros junto às classes dominadas, como forma de fazê-los servir. [...] as infrações tendem a mudar de natureza, aplicandose cada vez mais à propriedade e não às pessoas, mas porque os poderes disciplinares recortam e formalizam de outra maneira essas infrações, definindo uma forma original chamada “delinquência”, que permite uma nova diferenciação, um novo controle dos ilegalismos (DELEUZE, 1998, p. 39).

É justamente a delinquência que Foucault (2004, p. 230) utiliza para exemplificar a forma de sujeição ao direito. A prisão institucionaliza e é colocada dentro do sistema para que seu objetivo seja alcançado, que é justamente o de segregar e organizar um meio em que se estabelecem ilegalidadades, mas não as totaliza, deixa espaço aberto para que existam aquelas toleráveis (como forma de garantir à classe dominante a liberdade de agir). A delinquência, nesse caso, não é a causa da punição, é um efeito da penalidade, uma das suas formas. Foucault (2004, p. 230) resume a sua colocação afirmando que “se a oposição jurídica ocorre entre a legalidade e a prática ilegal, a oposição estratégica ocorre entre as ilegalidades e a delinqüência” . O Direito é uma forma de diminuição da vontade humana. O sujeito de direito se forma segundo uma normalização dominadora. Toda lei atua como forma de repressão e pela repressão aumentam a cristalização do Direito em um aparelho que se denomina Constituição ou Código, como se conseguisse com esta transcrição de textos uma vontade de eternizar um equilíbrio de poder que só existe no discurso (GOYARD-FABRE, 2002, p. 191). Ao ser objetivamente responsabilizado por seus atos, o sujeito tem aplicado sobre si um modelo punitivo e terapêutico, que tem por objetivo provocar que o sujeito se obrigue a ter a consciência de que os atos por ele praticados são de sua exclusiva culpa, algo que o faz agir de forma vigilante e punição de si para consigo mesmo (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 9). Na sociedade moderna, esta vigilância de si mesmo é baseada em uma condição de existência estipulada pelas classes que dominam as condições de saber e de poder. Ao tratar destas classes dominantes, Foucault se distancia (sem, porém, a contrariar) da concepção clássica marxista da dominação da classe burguesa. É que esta dominação não se dá de maneira forçosa ou de maneira fenomênica, como dizia 38

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Marx, mas tal dominação é uma espécie da mecânica do poder, ou seja, não é a classe burguesa dominante que implanta as concepções ilegais, antes, é a própria classe dominada que se sujeita, agregando os valores disciplinares impostos e formados pela classe dominante. Deve-se ter por conta uma inversão na análise histórica da dominação e buscar analisar as classes dominadas e não o poder pelo poder da classe dominante. [...] em vez de orientar a pesquisa sobre o poder para o âmbito do edifício jurídico da soberania, para o âmbito dos aparelhos de Estado, para o âmbito das ideologias que o acompanham, creio que se deve orientar a análise do poder para o âmbito da dominação (e não da soberania), para o âmbito dos operadores materiais, para o âmbito das formas de sujeição, para o âmbito das conexões e utilizações dos sistemas locais dessa sujeição e para o âmbito, enfim, dos discursos positivos do saber (FOUCAULT, 1999, p. 40).

As disciplinas, mecanismos utilizados pelas técnicas de dominação e criação de verdade, têm seu discurso próprio e criam saberes. O discurso da disciplina não é o discurso da lei e não é a vontade soberana aplicada à sociedade. As disciplinas trazem o discurso da regra, um discurso que generaliza e naturaliza a regra, pois a regra aqui não é a norma legal, é a regra natural, a norma. Em outras palavras, as disciplinas criam uma nova codificação, a codificação da normalização (da normalidade) que não é do Direito, mas com ele acaba se confundindo, exercendo poder tanto pelo edifício jurídico quanto pelas técnicas de disciplina. Os discursos da disciplina se colocam dentro do discurso do Direito, e os procedimentos de normalização agregamse aos procedimentos legislativos e regras materiais em um sentido de universalização do normal, ao que Foucault (1999, p. 46-47) chama esse funcionamento universal de “sociedade de normalização”. Entramos em um contexto, então, de uma sociedade disciplinar, em contraponto àquela sociedade da mera punição. A modernidade traz para o espaço público o panoptismo das prisões e internatos, moldando a sociedade a uma idade do controle social, do olhar vigilante controlando indivíduos, corpos e população (FOUCAULT, 1999, p. 86). Das vigílias ao controle total, é o corpo o objeto sobre o qual todas as influências externas se incutem. O sujeito está para além de si mesmo, aquilo em que seu corpo se transforma significa-o dentro da sociedade moderna. É o corpo a expressão e a externalidade do sujeito, sendo administrado, controlado e visto através deste. Direito ao corpo e sexualidade •

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O EXERCÍCIO DE DIREITO SOBRE O PRÓPRIO CORPO

Pela especialização do trabalho advinda com a especialização da cultura capitalista e por conseguinte das relações sociais estabelecidas dentro desse sistema, o corpo se tornou fonte inesgotável de absorção de poder e de saber. Se o sujeito se forma é a partir do encerramento em seu corpo das normalizações instituídas pelas instâncias de poder. Segundo Judith Butler, é o corpo que desaparece em nome do sujeito, sendo não o local de construção mas de desconstrução da raiz da qual se forma o sujeito: “a formação deste [do sujeito] é simultaneamente o enquadramento, a subordinação e a regulação do corpo, assim como a modalidade sob a qual a desconstrução é preservada (sob a perspectiva de suportada e embalsamada) na normalização” (BUTLER, 2001, p. 105). Foucault assevera, dessa maneira, que o surgimento do homem é inscrito sob as grandes narrativas históricas das formações institucionais. O corpo não precisa ser destruído, em sentido simbólico, mas antes precisa ser tornado útil. Essa utilidade é conseguida a partir da categoria que o autor francês chama de “docilização”. O corpo dócil é um “corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2004, p. 118). Infere-se disso que o exercício de poder é insculpido sobre o corpo, é o corpo preso no interior de infinitos poderes bastante estreitos, que podem permitir ou proibir determinadas práticas. A vigilância exercida por todos sobre todos é um operador tácito da economia dos corpos. Ela é ao mesmo tempo meio e fim da relação corporal. Marx (1996a) analisou essa parte vigilante nas relações de trabalho de maneira que o proprietário via-se obrigado a circundar toda a relação com o trabalhador para que este estivesse sempre em tempos controlados, uma vez que a compra é dada de maneira temporal e material, isto é, além tem início e fim a relação, ela pressupõe o uso e a produção de determinados bens. Outra condição é o caráter normal da própria força de trabalho. No ramo que se aplica deve possuir o grau médio

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de habilidade, destreza e rapidez. Mas nosso capitalista comprou no mercado força de trabalho de qualidade normal. Essa força tem de ser despendida no grau médio habitual de esforço, com o grau de intensidade socialmente usual. Sobre isso o capitalista exerce vigilância com o mesmo temor que manifesta de que nenhum tempo seja desperdiçado, sem trabalho. Comprou a força de trabalho por prazo determinado. Insiste em ter o que é seu (MARX 1996a, p. 313).

Assim, desenvolve-se um pequeno saber jurídico dessa relação, uma espécie de código penal próprio que impõe multas ao trabalhador que descumpre a ordem estabelecida nesse contrato (cf. FOUCAULT, 2004; MARX, 1996a) A crítica feita por Foucault, dentro da análise de sua microfísica dos poderes dirigida ao conhecimento marxista, detalha que o corpo em Marx não é observado para além das relações trabalhistas entre o proprietário e o trabalhador; seja em nome daquela ideologia acima mencionada de um marxismo dogmático ou em observações acríticas sobre o processo de um poder que reprime e que é entendido como meramente apropriado e exclui a possibilidade de emancipação e conhecimento em uma sociedade de classes. Explica Foucault (2008a, p. 148), que “o poder, longe de impedir o saber, o produz”. De fato, a análise de Marx sobre a sexualidade se pauta na concepção capitalista de divisão laboral de homens e mulheres nas famílias que levam a sua reprodução nas fábricas; uso dos corpos para reprodução capitalista, mas que serve também, como observa Gayle Rubin (1993, p. 2), para a análise da expropriação que o capital faz do corpo feminino, transformando-o apenas em uma série de discursos que identificam a mulher não apenas como um sujeito, mas antes um corpo sexual que deve ser controlado. Do mesmo jeito, os indivíduos serão colocados dentro de determinadas formas e práticas que deverão ser exercitadas sempre sobre o corpo, de uma maneira tal que o discurso sexual seja envolvido em uma gama de intervenções políticas de controle. Os discursos sobre o sexo são acompanhados por uma série de aprendizados e emissões de mensagens sobre si e sobre a atuação alheia no que diz respeito ao uso do corpo por si e para si.

2.1 O que é o corpo Na sociedade moderna capitalista, o que ocorre é uma separação da força do trabalho e da personalidade do sujeito, uma espécie de Direito ao corpo e sexualidade •

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metamorfose de si em uma coisa, um objeto que o sujeito, no trabalho, coloca na lógica de mercado. O sujeito sai de cena e apenas o seu corpo é considerado. O corpo então é utilizado para dar voz ao poder de trabalho de cada sujeito. É nesse aspecto que o corpo se torna a expressão da ética e honra, o corpo saudável é determinante na formação do sujeito que possui senso de responsabilidade (LUKÁCS, 2003, p. 220). O corpo, nesta concepção materialista histórica, renasce com uma discussão acerca do seu papel sendo colocado como anteparo para o mundo do trabalho, afinal é o corpo o objeto alienado dentro da relação de compra e venda de força de trabalho. Depreende-se desse ponto de vista que o corpo é produzido e reproduzido em um duplo efeito: ao mesmo tempo em que este se torna o principal objeto de consumo, é o grande causador de consumo. No primeiro caso, o corpo se perfaz dentro da lógica da venda do sujeito como um corpo concreto e capaz de produzir, é o objeto do consumo do detentor do meio de produção. Já no segundo caso, este corpo necessita da imagem imaculada para ser considerado apto ao trabalho, o que torna o seu sujeito possuidor um eterno caça-dor dessa forma, consumindo para o seu corpo (HEROLD JÚNIOR, 2008, p. 104). Nesse rumo, os corpos serão divisíveis/divididos, sendo separados de acordo com o que melhor deles advier. Processos manuais ou intelectuais de trabalho terão necessariamente dependência do corpo. Tomado desta maneira, o corpo não é apenas o corpo em si, mas os membros que o compõem é que o tornam total. A consciência do sujeito referente a seu corpo, então, dar-se-á de acordo com o processo com o qual este é aplicado. Neste modelo econômico de centralização do capital, baseado na mera especialidade do corpo, “os seres humanos em si mesmos são convertidos em mercadorias” (EAGLETON, 1999, p. 40). MARX (1996b, p. 190) estrutura essa dicotomia entre corpo e pensamento baseada justamente na divisão social do trabalho que toma o corpo como aquilo que é objeto de capacidades laborais, pois é este o objeto a ser alienado. O processo do trabalho é puramente individual, mas a ação e a vida humana ficarão sob o controle de um outro, uma vez que o homem não pode atuar sozinho na natureza. Por isso mesmo é que as mãos e o cérebro fazem parte do mesmo todo, um sistema interligado, o processo de trabalho interliga mãos e cérebro. É a percepção de uma confusão entre o corpo e o processo de trabalho. Com a ascensão das ciências naturais e na descoberta dos processos biológicos (em grande parte desenvolvidos junto com a 42

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Teoria da Evolução das Espécies, de Darwin) e da era moderna que criava novos conceitos filosóficos, o processo biológico que percebia o corpo tomava novos parâmetros, sendo colocado dentro de uma nova essência da propriedade privada, o único bem que o indivíduo não poderá compartilhar tendo em vista ainda a pequena atividade do labor como atividade comum, isto é, social. A partir do momento em que esta noção começa a confundir privado e público e o trabalho começa a surgir como algo essencial dentro da sociedade capitalista moderna, o corpo começa a funcionar e receber o que lhe é oferecido, vira a mercadoria do indivíduo (ARENDT, 2009, p. 124). Marx consubstancia, apesar de não tratar diretamente da concepção de corpo, que este é o mundo, é o espaço onde o projeto do homem se acabará em si mesmo. O corpo projetado é o mundo como o conhecemos, é o local de idas e vindas das relações sociais e é onde se dará toda e qualquer modificação humana (HEROLD JÚNIOR, 2008, p.101) É nessa esteira que se coloca o corpo como adjunto do trabalho, visto que é não apenas corpo de trabalho, mas o próprio resultado deste. O que começa com o mero manuseio de instrumentos passa a se manifestar em toda a totalidade do sistema que integra. Em outras palavras, não é apenas um órgão que se produz e é produzido, é a totalidade do que vem a se chamar corpo. Vemos, pois, que a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também produto dele. Unicamente pelo trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirido pelos músculos e ligamentos e, num período mais amplo, também pelos ossos; [...] Mas a mão não era algo com existência própria e independente. Era unicamente um membro de um organismo íntegro e sumamente complexo. E o que beneficiava à mão beneficiava também a todo o corpo servido por ela (ENGELS, 2006, p. 2).

O homem deve então agir em conformidade com a natureza, visto que fazendo parte desta, ocorre uma interconexão da natureza com ela mesma. Todavia, com o advento da sociedade capitalista, o homem possui o seu corpo, é seu proprietário (convertido em força de trabalho). É e ao mesmo tempo possui um corpo, utilizado para entrar em contato com a natureza das coisas, mas que também é ele próprio, uma coisa. Na economia do capital, o corpo cingido do sujeito o transforma em um ente sem subjetividade pela degeneração de sua humanidade, melhor dizendo, é um humano desumanizado. O corpo Direito ao corpo e sexualidade •

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se afasta do processo de humanização e entra em um processo de labor e é alienado em si mesmo. Corpo como expressão em si mesmo não é mais a conjuntura dos órgãos que formam o humano, mas o organismo apto ao desenvolvimento de um processo de trabalho. O corpo é apenas trabalho (MARX, 2004, p. 82-84). A característica comum ao processo biológico do homem e ao processo de crescimento e declínio do mundo é que ambos fazem parte do movimento cíclico da natureza; sendo cíclico, esse movimento é infinitamente repetitivo; todas as atividades humanas provocadas pela necessidade de fazer face a esses processos estão vinculadas aos ciclos recorrentes da natureza, e não tem, em si, qualquer começo ou fim propriamente dito. Ao contrário do processo de trabalhar, que termina quando o objeto está acabado, pronto para ser acrescentado ao mundo comum das coisas, o processo do labor move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim das fadigas e penas só advem com a morte do organismo (ARENDT, 2009, p. 109).

É o corpo a exterioridade do sujeito, é este ente material que se encerra dentro do arcabouço das relações da sociedade. Se o sujeito trabalha, vive e fala, é por meio do corpo que exprime suas motivações. Por mais que o trabalho não pertença ao sujeito, é o corpo que trabalha. Por mais que o seu discurso não lhe seja próprio, é o corpo que se expressa. Por mais que o sujeito viva conforme regras socioculturais impostas, é por meio do corpo que vive, até a sua morte (ARAÚJO, 2001, p. 103). O capitalismo, como estratégia para a massa de manobra, expande seus limites até o infinito, no qual o limite é o próprio capital. No mundo capitalista, só uma coisa é universal, a saber, o mercado. Não existe um Estado universal, justamente porque existe um mercado universal, no qual o Estado passa apenas a ser uma sede para as relações de mercado. Os corpos se reduzem a meras representações, nas quais não há uma imagem própria, mas a criação de uma imagem pelas relações de mercado. Relações estas que têm como principal meio de transmissão, o corpo humano. É justamente neste ponto que Deleuze (1992, p. 213-215) faz uma ponte entre os pensamentos de Marx e Foucault. O corpo, como massa de ser biológico não pode ser entendido meramente como uma única forma de expressão no mundo, mas também como expressão do mundo. É nesse sentido que o corpo pode ser apreendido como a superfície na qual são mantidas as relações 44

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sociais ao longo da história. O corpo é o instrumento ou intermediário das relações entre os indivíduos, é o locus de percepção do ser. É o terreno no qual o sujeito se forma e a ele é externo, mas é justamente o plano atingido na formação do sujeito (FOUCAULT, 2004, p. 14). Isto posto, fica premente que o sujeito não é um a priori, mas uma invenção aplicada dentro do que lhe resta, o seu corpo, que se separa do sujeito para se tomar como atributo. Na sociedade moderna, o corpo não mais pertence à pessoa: “a pessoa não é um corpo, ela tem um corpo” (CHAUVENETT, 2005, p. 39). Na Antiguidade, uma forma de se reconhecer o poder de um soberano era o seu corpo físico, o responsável pelo reconhecimento de uma realidade política; na sociedade moderna o corpo toma formas mais metafóricas, pois um corpo público se forma: o corpo social – um de muitos. O corpo é a fonte da vida social (EAGLETON, 1999, p. 22). Este corpo abstrato é o responsável pela nova concepção de corpo individual que vem a ser tomado, assim sociedade saudável é a sociedade na qual os corpos são saudáveis. O corpo é, desse modo, a coisa visada dentro do processo de formação do sujeito. É esta superfície que se torna o objetivo do jogo em uma luta dentro da sociedade, luta pelo controle e disciplina destes sujeitos. Numa sociedade como a do século XVIII, o corpo do rei não era uma metáfora, mas uma realidade política: sua presença física era necessária ao funcionamento da monarquia. [...] Em compensação, é o corpo da sociedade que se torna, no decorrer do século XIX, o novo princípio. É este corpo que será preciso proteger, de um modo quase médico: em lugar dos rituais através dos quais se restaurava a integridade do corpo do monarca, serão aplicadas receitas, terapêuticas como a eliminação dos doentes, o controle dos contágios e a exclusão dos delinqüentes (FOUCAULT, 2008a, p. 145).

Essa mudança de paradigma, do corpo-rei para o corpo da sociedade, transforma também a conveniência e os rumos da disciplina do próprio corpo. O sujeito terá de desenvolver, ele próprio, uma concepção de corpo, do seu corpo. Neste ponto, Foucault (2008a, p.148) alerta para o novo entendimento do corpo de si próprio: se em Marx havia a preocupação de reivindicar atenção para o assalariado, o corpo agora se reivindica por si só. Reivindicando por si só, na sua própria existência, o corpo tratado como dividido e divisor do indivíduo, é o formador da subjetividade humana. Uma parte do corpo pode engendrar uma série de discursos Direito ao corpo e sexualidade •

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sobre o sujeito, sempre motivados pela explicação da ciência. É difícil entender algo material dentro de percepções imateriais, isto é, é necessário sempre que haja algo existente para que se explique algo que existe apenas no plano abstrato. Pode ser toda a vida caracterizada por “um Dentro e um Fora” em um contínuo movimento que tem como limite apenas uma parte do corpo, que deve ser esclarecido de acordo com o fato de que será sujeito aquele que usa o corpo de tal e qual maneira (DELEUZE, 1992, p. 218). [...] até o século XVII inclusive, o corpo dos indivíduos é essencialmente a superfície de inscrição de suplícios e penas; o corpo era feito para ser suplicado e castigado. Já nas instâncias de controle que surgem a partir do século XIX, o corpo adquire uma significação totalmente diferente; ele não é mais o que deve ser suplicado, mas o que deve ser formado, reformado, corrigido, o que deve adquirir aptidões, requer um certo número de qualidade, qualificar-se como corpo capaz de trabalhar (FOUCAULT, 2002, p. 119).

Desta forma, o corpo na sociedade moderna deve ser entendido como um lugar privilegiado da formação da subjetividade, tirando este posto da antiga concepção de que a alma era este local. Logo, a preocupação e a constante busca pelo controle do corpo é uma forma de colocá-lo junto aos processos disciplinares impostos. Este novo lugar privilegiado do corpo adentra uma nova forma de pensá-lo, inclusive no que diz respeito aos novos rumos das ciências. Este novo corpo deve ser sempre dotado de disponibilidade para ser mudado e moldado. É aí que se vincula à ideia de postergação da validade do corpo, pois quanto maior seu tempo útil maior será a produção por ele alcançada (SANT’ANNA, 2002, p. 102). Significa, então, que o corpo do homem moderno é o objeto no qual é legítima qualquer ação para que este continue a ser ativo, é nessa superfície que se estabelece tempo e espaço pré-definidos. É este espaço que precisa produzir, em determinado tempo de validade. O corpo necessita de produção, em uma sociedade que se autodenomina produtiva e produtora. Por isso, toda e qualquer forma de esgotamento precisa ser combatida (MILANEZ, 2004, p. 196). Esta concepção moderna sobre o corpo, como lugar da capacidade de desenvolver o sujeito, é o que legitima a ação de formas e forças de poder que interceptam a vida do indivíduo, formando-o de acordo com os moldes que a classe dominante o quer. É o momento em que se disciplina e se controla o corpo. Nas representações que 46

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o corpo toma atualmente, este ocupa um lugar peculiar, é o terreno de aplicação privilegiado das leis e das relações sociais, é onde se faz exterior o interior do indivíduo. É o particular inserido no coletivo (CHAUVENETT, 2005, p. 54). Ocorre que, para que a interioridade seja observada, é necessário um ente externo que lhe dê vida e é este o papel do corpo: ser a exterioridade da subjetividade humana, em um trocadilho, é o que lhe dá corpo. Havendo então uma relação dupla entre subjetividade e corpo. É que o corpo é visto como o instrumento para se conseguir atingir modelos ideais de subjetividade, impostos pelos diversos mecanismos de poder.

2.2 O exercício de poder sobre o corpo Se o corpo é o espaço físico no qual o sujeito é formado, é por meio de instrumentos e técnicas que desempenham um papel fundamental na formação de uma moldagem determinada, antes pela tecnologia que pela própria ação humana. Logo este corpo que não pertence mais ao sujeito, mas à sociedade, deve ser posto em lugar de ser produtivo de acordo com as normas estabelecidas dentro das relações de poder. É necessário lembrar que antes de adentrar na sociedade da maquinaria e das ferramentas, era o homem quem controlava estes instrumentos. Quando ainda o trabalho manufaturado era a lógica, mesmo sob a égide do sistema capitalista, o trabalhador ainda possuía um certo controle sobre o processo produtivo, ou seja, era ele quem ainda dominava o instrumento do trabalho e era o seu condicionador, tendo as ferramentas apenas como uma espécie de extensão do seu corpo. Já com o advento da indústria, o sujeito passa por uma inversão na lógica do processo trabalhista, transforma-se o corpo em coadjuvante, como extensão da máquina e por ela condicionada. O que na manufatura era uma submissão simbólica, uma vez que o controle do processo era do trabalhador, nos tempos da maquinaria há uma submissão real. Com a ferramenta de trabalho, transfere-se também a virtuosidade, em seu manejo, do trabalhador para a máquina. A eficácia da ferramenta é emancipada das limitações pessoais da força de trabalho humano. Com isso, supera-se o fundamento técnico sobre o qual repousa a divisão de trabalho na manufatura. No lugar da hierarquia de operários especializados que caracteriza a manufatura, surge, por isso, na fábrica automática, a tendência à igualação ou nivelação dos trabalhos, que os auxiliares da maquinaria precisam executar (MARX, 1996b, p. 52). Direito ao corpo e sexualidade •

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No processo de desenvolvimento do sujeito junto à sociedade do capital, Lukács (2003, p. 211) analisa que o sujeito deve se mostrar para fora sempre em acordo com o desenvolvimento do sistema capitalista, ou seja, produzindo e reproduzindo a si mesmo economicamente, sempre alimentando a estrutura da coisificação das relações sociais e com seu corpo. Essa penetração da consciência humana é cada vez mais profunda e fatal, a ponto de isto frear qualquer manifestação contrária ao que é estabelecido. O controle dos corpos começa, na idade da indústria, por meio do trabalho na máquina, este que exige aprendizado precoce do trabalhador para que ele comece a se adaptar ao movimento constante e contínuo de um ente que é “morto”. Como o processo é corrente, por meio de várias máquinas, todas atuando ao mesmo tempo e de modo serial, torna-se necessário que haja uma cooperação entre os diferentes trabalhadores em atuação com as diferentes máquinas. Entretanto, diferente da manufatura, em que cada um era especializado em determinada coisa, a produção mecanizada foge desta espécie de fixação das regras de trabalho, preparando qualquer um a atuar em qualquer ponto da máquina. A máquina é que deve ser especializada, o trabalhador não é o seu controlador, mas por ela é controlado, uma vez que não cessa o seu movimento (MARX, 1996a, p. 54). É pelo controle do tempo que se dá a melhor maneira de acoplar produção e dominação das técnicas e força de trabalho. O tempo controlado pelas instituições é elemento fundamental nessa nova formação social. O espaço geográfico torna-se insignificante, porquanto é necessário um controle mais abstrato do que físico, algo que se infiltre dentro do imaginário do sujeito. Um sistema de controle deve se propor a tomar o máximo de tempo possível dos homens, para que este tempo seja convertido em produção, em favor da produção capitalista: por meio do corpo o tempo é comprado. Tempo que é transformado em tempo de trabalho e força de trabalho. Neste sentido, o que as instituições buscam é extrair o máximo de tempo possível do sujeito (FOUCAULT, 2002, p. 116). A sociedade capitalista naturaliza o fato de existir uma essência humana que, por sua vez, tem por escopo a objetificação da própria natureza, distanciando-se de si mesmo. Os corpos das pessoas são apropriados por quem controla os meios de produção, e os indivíduos não se reconhecem na sociedade que eles próprios criam. A realização, o trabalho como posto e imposto não é um fim em si mesmo, mas é parte do aparelho de formação e desenvolvimento do outro, um alienígena que toma de conta do corpo do indivíduo e o transforma em força de trabalho (EAGLETON, 1999, p. 30). 48

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O corpo é disciplinado, dentro de uma concepção capitalista que lança o discurso da emancipação e libertação pelo trabalho, mas que na verdade institui uma nova relação psíquica e corporal, pois consoante um corpo seja disciplinado nas formas da economia é que ele se torna útil e produtivo, o que faz persistir sua última função esquecida: o corpo é submisso (HEROLD JÚNIOR, 2008, p.105). Submisso a um padrão de processos produtivos nos quais as “máquinas deixam de ser servas das mãos, as máquinas exigem que o operário as sirva, que ajuste o ritmo natural do seu corpo ao movimento mecânico que lhes é próprio” (ARENDT, 2009, p. 160). A máquina, ou melhor, o processo de trabalho mecânico tende a separar o sujeito de sua corporeidade. Os utensílios, as máquinas, enfim, todo o arcabouço moldado dentro do processo de trabalho, fazem que o ritmo incessante levem o sujeito a fazer seu corpo aderir ao movimento destes entes inanimados. O que nos chama a atenção é o verdadeiro abismo que separa todas as sensações corporais, prazer ou dor, desejos e satisfações – sensações tão privadas que não podem ser adequadamente expressas, e portanto absolutamente impossíveis de reificação – das imagens mentais, tão fácil e naturalmente reificáveis que não podemos conceber uma cama sem, antes, ter alguma imagem, alguma ideia da cama ante os olhos de nossa mente, nem podemos imaginar uma cama sem recorrer a alguma experiência visual de coisas reais (ARENDT, 2009, p. 154).

Conforme dito anteriormente, o sujeito vendedor da força de trabalho só pode se apresentar como proprietário desta força de trabalho, mas, sua posição no mundo é moldada dentro de uma série de eixos fixados pelo modelo econômico vigente. Por via de consequência, a economia capitalista mantém um imediatismo que ela própria cria e naturaliza chegando a consequências desastrosas para o indivíduo. É que, como consequência desse processo de mecanização do trabalho e das relações, as propriedades e particularidades de cada um surgem como erro de parâmetro na formação do sujeito (LUKÁCS, 2003, p. 203). Nesta formação disciplinar e controladora do corpo do sujeito instalam-se novas formas de dominação. Nas sociedades pré-capitalistas não havia uma forma de controle determinada por institutos e trabalhos que eram demarcados dentro de um espaço, o local no qual estavam insertos. Na sociedade moderna burguesa, começa-se a trabalhar com a ideia de instituições que moldam o corpo humano, de acordo com técnicas, funções e estratégias. Com o objetivo de vigiar, Direito ao corpo e sexualidade •

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punir e também de recompensar os sujeitos por meio de seus corpos (FOUCAULT, 2002, p. 111). Do que o corpo deve se servir, então, deve ser de toda a forma que a sociedade oferece no seu interior para a sua efetiva evolução, como uma espécie de terminar todos de maneira uniforme e constante. Foucault percebe que as relações sociais moldam o corpo de maneira a este ser a representação do seu sujeito, seu principal e essencial componente (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 125). É em Vigiar e Punir que Foucault, apresenta a forma de controle por meio da punição. A criação do panóptico (por Bentham) está para além da mera vigilância do indivíduo que faz parte de um grupo, mas por ser simplesmente um indivíduo é que ele deve ser vigiado e é assim por ele descrito: O Panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles. O Panóptico pode até constituir-se em aparelho de controle sobre seus próprios mecanismos. Em sua torre de controle, o diretor pode espionar todos os empregados que tem a seu serviço: enfermeiros, médicos, contramestres, professores, guardas; poderá julgá-los continuamente, modificar seu comportamento, impor-lhes métodos que considerar melhores; e ele mesmo, por sua vez, poderá ser facilmente observado. Um inspetor que surja sem avisar no centro do Panóptico julgará com uma única olhadela, e sem que se possa esconder nada dele, como funciona todo o estabelecimento (FOUCAULT, 2004, p. 169).

Ou seja, a sociedade capitalista entra em um plano de disciplina na qual todas as pessoas vigiam, controlam e disciplinam entre si, inclusive a si mesmas. É o confinamento que define a sociedade disciplinar. Contudo, devemos ter em mente que confinamento não designa exclusivamente o modelo prisional, mas um modelo no qual os corpos são encerrados em processos de isolamento, encerrando o indivíduo em um ambiente isolado. É como se não cessasse a estadia em ambientes fechados e calcados um a um em modelos próprios e determinados: “primeiro a família, [...] depois a escola, [...] depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a prisão, que é o meio de confinamento por excelência” (DELEUZE, 1992, p. 219). O que chama a atenção é o fato de justamente o próprio indivíduo se colocar dentro dessa situação de forma natural, como se as regras estabelecidas fossem um sistema de leis que são formadas a priori. A 50

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cultura capitalista cria dispositivos para uma espécie de normalização que é empregada pela correção e transformação do corpo, promove a mudança de hábitos e estilos de vida para os parâmetros prédeterminados como normais e saudáveis, e se promove nos instrumentos e nos desempenhos corporais construindo subjetividades reguladas. Logo, o outro lado, aqueles que experimentam a corporalidade fora destas medidas impostas pelo poder disciplinar são reclusos em ambientes de disciplina para que se moldem às condições de viver em sociedade (DELEUZE, 1992, p. 219). Foucault (2002, p. 114) informa que nesta época atual o papel destas instituições com esta reclusão não tem o fim de excluir o membro, mas sim de “fixar os indivíduos”. Desta maneira, é fácil observar que o trabalhador na fábrica está lá para ser ligado a um aparelho de produção, por exemplo. Igualmente, as crianças não são excluídas pela escola, mas são antes fixadas a um aparelho de produção do saber. É esta “fixação” e modelagem dos corpos o escopo fundamental de cada instituição de disciplina. Por mais que o objetivo seja a exclusão, o papel número um de cada instituição é a fixação dos indivíduos, por mais que um dos efeitos seja a exclusão destes. O que se passa então como uma espécie de nova função, pungente em alguns casos, é o controle do corpo como tomado de sequestro de dentro das relações mais particulares. Os confinamentos em cada instituição tendem para uma espécie de limpeza social que está para além da purificação da raça, mas para uma purificação biológica completa do corpo. Portanto, o que o corpo necessita é de uma verdadeira autovigilância, um autocontrole que possa viger dentro de si próprio para que não se caia em terrenos obscuros. É a passagem da sociedade da disciplina para a sociedade do controle. É uma sociedade em que o sujeito desprende do próprio corpo os patrimônios genéticos que são seu limite (SANT’ANNA, 2002, p. 105). Tomando a lição de Foucault, Dreyfus e Rabinow (1995, p. 173) analisam o aporte do exame como a maneira pela qual será estipulada toda a conectividade do corpo individual com o corpo social. As pequenas regras que se incutem na sociedade serão tomadas e alavancadas a verdadeiras formas de conduta. O exame ajusta técnicas hierárquicas que visam a vigilância e as técnicas sancionadoras, que visam a normalização das condutas humanas. É uma influência normalizadora, uma prevenção que fecha os olhos para as diferenças, e tende a qualificar, classificar e punir condutas. O rumo que se toma com essas formas de dominação passa da visibilidade do poder soberano para a invisibilidade do poder disciplinar e quem se torna visível é o agente, o indivíduo sobre o qual o poder irá se exercer. Direito ao corpo e sexualidade •

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É pelo exame que se estabelece sobre as pessoas uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. No coração dos processos de disciplina, ele manifesta a sujeição dos que são percebidos como objetos e a objetivação dos que se sujeitam (FOUCAULT, 2004, p. 155).

Ao estudar a genealogia dessa sociedade disciplinar, Foucault analisa que este é o momento e o tipo de sociedade que está sendo deixado para trás, para poder entrar nesta sociedade de controle, na qual não mais existe um confinamento físico, mas um controle contínuo e permanente, por meio de uma comunicação instantânea. As instituições (prisão, escola, hospital, etc.) em seu molde individual estão em crise, devendo agir de forma que comecem a desvanecer para dar lugar a formações mais amplas, que se abarquem entre si. A sociedade disciplinar constituía a sociedade de controle do corpos que ia passo a passo moldando o indivíduo em movimento finito (casa – escola – fábrica), ao passo que na sociedade do controle esse sistema é circular e infinito. Se a fábrica era o espaço do trabalho, que encerrava o corpo em um molde pronto e finalizado, a empresa da sociedade do controle é a motivação para o indivíduo dividir-se em si mesmo, de forma a contrapor seu próximo, estimulando a rivalidade. Na sociedade disciplinar a escola encerrava um processo de formação, já na sociedade do controle há que se ter formação permanente para uma devida ascensão no mercado de trabalho, garantindo uma comunicação entre escola e empresa (DELEUZE, 1992, p. 221). O controle sobre o corpo é legitimado dentro das relações jurídicas de forma sempre a se ter o Direito como formador do caráter humano, mediante domínio dos corpos. É que, na sociedade moderna, a aplicação de leis conforme o que dita a verdade dos fatos é sempre o mote para a expatriação de si mesmo, mediante as regras normalizadoras, que agora são regras jurídicas passíveis de sanções. Seguindo o padrão, o Direito se coloca como o agente punitivo abstrato da sociedade, que busca a normalização por meio de legitimação de confinamento em instituições normalizadoras. A punição normalizante, todavia, não se dará no sujeito ou no corpo, mas é imposta ao sujeito pelo seu corpo, em uma espécie de instrumento de comunicação entre o ser e sua humanidade.

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A punição teria sido bem sucedida quando produzisse “corpos dóceis”. A aplicação da punição era, mais uma vez, inscrita no corpo, mas seu alvo não era mais estraçalhar, desmembrar ou vencê-lo. Ao contrário, o corpo deveria ser tratado, exercitado e supervisionado. Deveria ser um aparelho de vigilância total, contínua e eficiente (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 168).

Ao expor suas críticas ao modo de controle do capital sobre as mentes humanas, através dos seus corpos e do trabalho, Marx (2004, p. 54) tende a rever as condições para uma libertação do sujeito, em conjunto com a matéria, pois, uma vez colocado dentro do sistema, ele próprio como mercadoria, o sujeito se escraviza. Foucault (2002, p. 115) concorda com tal aspecto, uma vez que a mudança de política ou de processos produtivos não pode significar libertação quando delas exsurge uma forma imposta de existir. Se assim for, não importa quem controle, sempre haverá controle. O corpo terá de forma acentuada todo e qualquer complexo de estratégias para o seu controle, da família ao grupo social. Importa neste momento saber qual é a forma de impor um controle na formação sexual do sujeito.

2.3 A sexualidade controlada É importante ter em mente que sexualidade não se limita apenas às práticas sexuais, mas antes a uma série de discursos e práticas sociais que definem além do termo, os elementos, as classificações, os jogos, enfim, toda a estrutura que envolve de alguma forma o sexo, da infância à idade adulta, seus controles e suas maneiras de falar sobre. É posto dentro da ordem do discurso e por isso mesmo não pode ser taxado como algo fixo, mas fixado (FOUCAULT, 2008b). Tomemos, então, como formação desta sexualidade controlada os vários institutos que tomam de conta deste dispositivo. Pela lição de Marx, podemos tratar a sexualidade, na sociedade moderna capitalista, como uma divisão do trabalho de forma diferenciada daquela geral do mercado. Portanto, haverá uma classe que dominará o campo e outra que estará em uma situação de opressão; afinal de contas, deve haver sempre a mais-valia em qualquer situação que se oponham dois indivíduos. Não se quer dizer com isso que a opressão feminina, por exemplo, pela masculinidade do modelo capitalista, tenha aí sua gênese, mas é interessante notar que o capitalismo apenas se apropria das formas de opressão para fomentar o sistema (RUBIN, 1993, p. 4). Direito ao corpo e sexualidade •

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Dentro do modelo econômico moderno ocidental é nesse ponto que se desenvolve, então, uma nova forma de dualizar as condutas, mais uma forma de maniqueísmo que agora tende a prever duas situações opostas para a reprodução da força de trabalho necessária para o desenvolvimento desse modelo. A reprodução da força de trabalho é extremamente importante nesse caso, para que se continue o controle da mão-de-obra é necessário que esta esteja sempre em constante renovação (MARX, 1996a, p. 276). Rubin (1993, p.3) afirma que é nesse momento que se coloca a questão pontual (e pouco analisada) do sexo e da sexualidade em Marx. É que este apenas busca fazer suas anotações no que diz respeito às divisões do trabalho de acordo com o fator biológico que se opera no corpo. Não obstante, é grande sua colaboração na discussão acerca das formas de opressão e controle das sexualidades na sociedade moderna. Desse modo, surge a apresentação da forma dualista e universal da divisão dos sexos. O processo matrimonial, então, não pode ser entendido como uma união entre homem e mulher, mas como uma forma de divisão do trabalho, uma forma de tratar a procriação da espécie, cada um em seu lugar (homem de semeador e a mulher como receptáculo do sêmen masculino). Não por outra razão Engels (1984, p. 70) utiliza a ideia de Marx para asseverar que “a primeira divisão do trabalho é a que se faz entre o homem e a mulher para a procriação de filhos”, nessa esteira é que a monogamia não será tão diferente da escravidão. A família é o núcleo da sociedade moderna como espaço de escravidão e servidão. É onde serão tomadas primeiramente todas as formas de opressão que mais tarde serão observadas na sociedade exterior. Este controle por meio da divisão sexual tende a oprimir uma das classes com o propósito de legitimar uma instituição que, na verdade, se analisada dentro das formas de divisão do trabalho, é apenas uma forma de dominação de uma classe sobre outra. É o trabalho que faz a mediação entre as relações de opressão. É por isso que Engels (1984, p. 70) afirma: “o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino”. É da família que emergem as primeiras divisões sociais e é da família que se desenvolve a ideia da naturalização das relações entre os sexos. Daí é que se tira a relação homem/mulher como uma relação pura, da biologia para a vida social, uma espécie de economia que é colocada ao sistema pressupondos suprir as suas necessidades. É pelas 54

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gerações, pela procriação que se atualiza o sistema. Sem embargo, não se pode entender tal reprodução sexual apenas em seu aspecto biológico de procriação, mas em seu aspecto social, tem por escopo a reprodução das condições de manter o sistema (RUBIN, 1993). O proprietário da força de trabalho é mortal. Se, portanto, sua aparição no mercado é para ser contínua, como pressupõe a contínua transformação de dinheiro em capital, então o vendedor da força de trabalho precisa perpetuar-se como todo indivíduo se perpetua pela procriação. As forças de trabalho subtraídas do mercado pelo desgaste e morte precisam ser continuamente substituídas ao menos por um número igual de novas forças de trabalho (MARX, 1996a).

A divisão do trabalho primeiramente surge como algo natural, setorizado assentando homens e mulheres em situações de acordo com o seu perfil biológico. Mas, conforme o maquinário toma conta das relações de trabalho e vai dispensando a divisão sexual do trabalho (pois não requer mais tanto o trabalho muscular tipicamente masculino), mulheres e crianças também são cooptadas pelo modelo, para também se inserirem no mercado. Na lógica do capital, não só o valor do trabalho pelo tempo trabalhado é considerado, mas também o valor que conseguirá manter a família, travestido na forma de um benefício, mas que na realidade era apenas uma maneira de garantir o sustento do “exército de reserva” da indústria (ALMEIDA, 2003, p. 58). Por isso, o trabalho de mulheres e de crianças foi a primeira palavra-de-ordem da aplicação capitalista da maquinaria! Com isso, esse poderoso meio de substituir trabalho e trabalhadores transformou-se rapidamente num meio de aumentar o número de assalariados, colocando todos os membros da família dos trabalhadores, sem distinção de sexo nem idade, sob o comando imediato do capital. [...] O valor da força de trabalho era determinado pelo tempo de trabalho não só necessário para a manutenção do trabalhador individual adulto, mas para a manutenção da família do trabalhador (MARX, 1996b, p. 28).

É pela divisão do trabalho que se implica que existem dois aspectos humanos, o masculino e o feminino, constantemente reproduzindo a mesma formação sexual dentro do processo de procriação. É nessa resolução de discursos dualistas que nasce a naturalização da heterossexualidade como digna do agir sexual, na sociedade moderna. É essa heterossexualidade que cria a oposição perfeita entre homens e mulheres e que também busca legitimar-se nas diferenças biológicas. Direito ao corpo e sexualidade •

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Esta divisão laboral pelo sexo garante a exclusividade de ambos os sexos (significando uma exclusão mútua), “um tabu contra os arranjos sexuais diferentes daqueles que envolvem pelo menos um homem e uma mulher, impondo assim um casamento heterossexual” (RUBIN, 1993, p. 11-12). Rubin (1993, p. 26) ainda analisa que a divisão do trabalho pelo sexo se dará em formas públicas e privadas. Para os homens, o trabalho na indústria, fora de casa e produtivo; para as mulheres o trabalho doméstico, não produtivo. No entanto, esta não produtividade do trabalho doméstico era um processo vital de melhoramentos do capital, uma vez que era dentro da casa que se mantinham as condições para que o operário pudesse produzir e reproduzir suas gerações de novos operários. Apesar disso, a configuração biológica de apreciar as condições sociais tira do padrão a formação de sexualidades dentro dos seios mais íntimos de outras instituições. Não é só a família que promove a reiteração e a fixação do biológico e do social, há outros institutos que estão sempre em constante contato com a família para que a fixação sexual seja coordenada de acordo com o processo de dominação e controle dos corpos (FOUCAULT, 1988, p. 10). O discurso sobre o sexo é um dos modelos de controle e disciplina do sexo e estes podem ser observados recriando os modelos de repressão da sexualidade de épocas antigas, nas quais se impunha que desde a mais tenra idade o sujeito passasse por instituições nas quais tem sua conduta formada dentro de sua sexualidade. Por isso mesmo é que o sexo tem uma disposição toda especial de ser tratado, uma maneira toda própria de ser inserido no discurso. Foucault (1988, p.14) vem criticar essa espécie de mania de perseguição em relação ao sexo: os modelos tidos como de repressão, em verdade, tratavam mais da exposição de discurso, uma arquitetura de mais falar para mais reprimir. É que quanto mais se fala, mais se fixam condutas, mais as classes dominantes têm condições de interferir nas condutas “liberadas” do resto da sociedade. Esse discurso é providenciado pelas redes de poder e saber que existem na sociedade sob a arquitetura de instituições que são implantadas como essenciais na vida do sujeito. Pela só possibilidade de ingresso na vida pública por meio destas instituições é que o indivíduo separa o seu corpo de si e o deixa ser manipulado dentro de uma necessária normalização para alcançar um valor ético, ensinado como sendo de si próprio. Foi pela sexualidade e pelo novo discurso do sexo que a burguesia se livrou de todos os códigos de nobreza e se fixou fora dos padrões da classe do trabalho, sendo considerada independente, 56

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livre de uma fixação, mas dentro de outra fixação, ficou fácil exercer suas formas de vida (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 185). Uma das formas de dominação pela ideologia sexual é a religião. No Ocidente, principalmente em sua faceta cristã. O poder pastoral de vigilância promovido pela Igreja buscava de todas as formas que o indivíduo mais ficasse compelido a falar em público sobre sexo, para que não tivesse de confessar os seus pecados carnais (por mais que apenas no mundo das ideias estes fossem praticados). O discurso da carne é o processo pelo qual a Igreja instalava os modos e práticas de condicionamento sexual intentando legitimar outros discursos, todos insertos em uma rede de jogos que culminava em autoflagelação psíquica e até física do sujeito. Formas estas que o colocavam sob um discurso de verdade, que existia uma verdade e que esta verdade era o modo ético de vida humana. No final, o estigma do pecador recaía sobre o corpo do sujeito (ARAÚJO, 2001, p. 147). A medicina é outra instituição que tenta sempre buscar uma conduta ideal das posturas sexuais. Não por outra razão esta está dividida em medicina do corpo e medicina do sexo, como se sexo e corpo estivessem em planos de diferentes e que o primeiro não se finalizasse no segundo. Formava-se um saber específico do sexo e da sexualidade o que provocou uma ruptura científica e “a sexualidade foi ligada a uma forma poderosa de saber e se estabeleceu uma conexão entre o indivíduo, o grupo, o sentido e o controle” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 187). Aqui, há de se fazer um paralelo entre estas duas instâncias do poder. Se a confissão era o campo legitimado a se tratar de e do sexo, apenas no consultório médico é que tal assunto vem à tona. Como existem campos delimitados a tratar sobre determinado assunto, são criados o constrangimento e a limitação, mas incita-se a falar mais, para que o sujeito tenha o que falar, para que o indivíduo se veja compelido a tratar disso nas instituições do poder, justamente para que se possa de uma melhor forma fixar todas as condutas possíveis. Sobre o sexo, os discursos [...] não cessaram de proliferar. [...] Mas o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais; obstinação das instâncias do poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acumulado (FOUCAULT, 1988, p. 22).

Falar, sempre falar. Falar o mais possível e o melhor possível sobre si. A censura sobre o sexo não existe, o que existe é uma forma Direito ao corpo e sexualidade •

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de dominação por meio de mecanismos lançadores de discurso, que tem toda a qualificação para funcionar como modeladores. Por isso é dever de libertação esquecer regras e normas que limitem os dizeres do sujeito sobre o sexo e, dessa forma, o seu controle será cada vez maior e maior. O sexo deixa de assunto de polícia (como o era no séc. XVIII) e torna-se assunto de política. Essa mudança da concepção mostra que o sexo é administrado, e não julgado. Há uma necessidade de “regular o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma proibição” (FOUCAULT, 1988, p. 27). É dentro dessa lógica que a escola toma conta dos corpos infantis na sua modelagem. Foucault (1988, p. 30) faz uma reconstrução da arquite-tura escolar no século XVIII, para demonstrar que todos os seus aspectos falam do sexo. Desde a disposição das carteiras até a forma como as paredes eram montadas explicitamente. Adotando os discur-sos pastorais e médicos, a escola lança suas formas para as crianças e não só para elas, mas às suas famílias. Como a criança nasce “sem sexo”, é necessário uma modelagem da sexualidade para os dois sexos (sim, pois há apenas duas formas de se exercer sua sexualidade e esta será ligada ao corpo biológico). Percorrendo o rumo cíclico das relações de poder, é praticamente inevitável que se retorne ao núcleo familiar. É porque a criança nessa iniciação de vida sexual (não de atos sexuais, mas de discursos sobre ela impostos) necessita de toda essa rede imbricada de modelagem. O parentesco familiar é necessário na formação de humanidades dualistas e que formam a coerção da e pela sexualidade. Isto é explicado pelo fato da necessidade de haver sempre dois entes em oposição, para a procriação. Em que pese este fato, ainda há o tabu do incesto, sob o qual se determina haver necessidade do sujeito ser inserto em um grupo diferente, o tabu do incesto “impõe a finalidade social da exogamia e da aliança sobre os eventos biológicos do sexo e da procriação” (RUBIN, 1993, p. 9). Por esta razão é inevitável se coloque a sexualidade em um plano político de atuação do poder. É a sexualidade que denota o local do sujeito e do seu corpo na sociedade. Assim, os direitos os quais se quer perceber para si são modelos de atos e fatos jurídicos relacionados e determinados pela sua posição sexual na vida política. Nas democracias de modelo burguês há preterimento do público pelo privado e toda liberdade ou liberalidade é sempre politicamente decidida. À vista disso, o corpo como sujeito da política é definido pela sexualidade. Logo, dentro de uma lógica de não percepção de si mesmo, determinada pela ilusão da liberdade pelo sexo, a modernidade dá as mãos a uma nova economia dos corpos, um novo horizonte de análise do corpo político que, ao final, não deixa de ser um corpo (AGAMBEN, 2002, p. 192-193). 58

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É justamente aí que reside a proliferação de uma sexualidade que seja definidamente dualizada; as moléstias, os absurdos, os “erros” de conduta podem se caracterizar na derrocada de um Estado que precisa de condutas fixas e previsíveis. A família, como celula mater da sociedade, é a localização do poder do Estado no âmbito particular, o casal é a primeira instância de representação do corpo político na sociedade moderna, motivando que todo o resto seja a ele referenciado. Por isso, é a formação da família, estruturada e concisa, que remete a uma boa vida da sociedade, do Estado. Nesta estratégia, foram dadas ao casal responsabilidades médicas e sociais. O casal, aos olhos do Estado, é, então, responsável pelo corpo político; ele deve protegê-lo das influências patogênicas que uma sexualidade descuidada poderia aumentar ou limitar (ou revigorar) na população, através de um cuidado na regulação da procriação. As doenças ou falhas na vigilância sexual do casal poderiam levar, facilmente – e isto era sustentado – à produção de perversões sexuais e mutações genéticas. O fracasso no cuidado com a sexualidade poderia levar a um perigoso declínio da saúde da celular familiar e de todo o corpo social (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 189).

É a sexualidade a nova forma de controle e disciplina do saber, do corpo e da alma. Não por outra razão o discurso sobre o sexo na sociedade ocidental difere daquele que é proposto na cultura oriental. Bem se extrai tal situação pelo fato de se controlar esse tratamento com o prazer, desde o controle sobre a sexualidade das crianças. A imensa luta contra a masturbação infantil não tem outra função a não ser aquela de produzir um discurso para o maior exercício de um biopoder que nada mais é que o controle sobre os corpos, dentro de determinadas imposições de discursos de verdade. Logo, o que se prepara não é uma erradicação da masturbação infantil, mas a efetivação e a expansão de um discurso de poder que tem por escopo o melhor controle sobre os corpos (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 189). Na sociedade moderna capitalista, pela necessidade de uma espécie de prudência sexual desvirtuada, os discursos tendem-se a se criar no sentido de impor verdades sobre o sexo, de tornar pudicos os mais intensos pensamentos e por isso mesmo não se ensina a extrair ou intensificar o prazer do sujeito, a não ser por meios obscuros, clandestinos e/ou reprováveis (FOUCAULT, 2003, p. 61). Nesta perspectiva de controle do corpo pelo sexo, a prostituição ganha um ponto de destaque, visto que sofre uma dupla disciplina: Direito ao corpo e sexualidade •

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uma ligada ao corpo, que controla as atividades e desempenho social de cada sujeito, e a outra que controla o exercício de uma sexualidade como aprouver ao sujeito.

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A PROSTITUIÇÃO E O EXERCÍCIO DE DIREITO SOBRE O CORPO

Dada de maneira relacional a construção das subjetividades, ao atingir totalmente a sua superfície de ação (o corpo), os fenômenos que surgem não podem ser vistos de maneira pura ou isolada. Os indivíduos em relação a sua comunidade devem ser observados de acordo com o que cada um contribui, ou melhor, institui como formas práticas. Importa ressaltar, assim, que os vínculos que se formam nas sociedades são antes formados em quadros de sujeitos que se movem juntos desde o princípio e não em práticas isoladas. A natureza ética alcança-se como um processo, mediante o qual a sociedade é permanentemente liberada das unilateralizações e particularizações ainda existentes. Essa premissa marca a exitência das diferenças que precisam ser reconhecidas dentro de uma dada sociedade (cf. HONNETH, 2003). Marx atentava para isso nos seus Manuscritos econômico-filosóficos, ao afirmar que a sociedade é uma unidade fundamental completada. Tal premissa busca apoio na ideia de que a sociedade é sempre um processo de relações que se modificam de acordo com os indivíduos envolvidos. Capta-se, então, que os fenômenos que existem, não existem por si sós, mas antes a partir de relações. No caso da prostituição, objeto deste estudo, esta não é uma “relação na qual entra o prostituído, mas também o prostituidor” (MARX, 2004, p. 107). Em palavras mais atuais, não entram apenas as prostitutas, mas também os seus clientes (além de outros indivíduos que se aproveitam de ambos), estes inseridos sob discursos sexuais do gozo, do prazer; e também das relações de troca das sociedades contemporâneas. A lógica capitalista encontra-se, segundo Foucault, na reconstrução do homo economicus, produtor de riqueza e de um corpo útil. Utilizando os estudos sobre os prisioneiros nos séculos anteriores, o autor pretende fornecer uma série de práticas utilizadas no desenvolvimento de uma pedagogia que transforma o delinquente (entendido como um sujeito ocioso sem gosto pelo trabalho) em um potencial trabalhador. A sociedade posta de forma reduzida pelas instâncias de poder, vigiDireito ao corpo e sexualidade •

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lantes e simplificadas em polos duais segue a máxima do “quem quer viver tem que trabalhar” (FOUCAULT, 2004, p. 100), que pretende fixar corpos a um suposto controle do destino da própria vida. A prática feminina, como modelo institucionalizado por moldes masculino e o seu espelho negativo, é, de acordo com Simone de Beauvoir (1970b, p. 102), uma perspectiva da alteridade que se vincula à margem da norma. Até um momento histórico não muito distante, o homem era a própria encarnação do ser humano, sendo a mulher apenas um de seus aspectos (a fêmea). Ao agir em dadas relações que são asseguradas para o conceito masculino, é acusada de imitá-lo ou de “tomar posições masculinas”. É por tal aspecto que a mulher não é identificada como uma representação própria, justamente porque a “humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mas relativamente a ele; ela não é considerada um ser autônomo” (BEAUVOIR, 1970a, p. 10). Entretanto, como podem algumas atividades se inserirem tão adequadamente a essa lógica laboral e outras não? Principalmente pela fronteira normativa entre o que se pode representar e o que tem lugar nas demarcações modernas é que as representações subjetivas ocupam espaços de proibição ou invalidação. Craig Owens (2008, p. 96) afirma que “entre as proibidas da representação ocidental, a cujas representações se lhes nega toda legitimidade, estão as mulheres”. A mulher é sempre representada e sempre se falou por ela. A crítica ao marxismo, empregada por essa linha de raciocínio, é a de que a mulher é foi esquecida por conta de um descuido, na acepção de Owens (2008, p. 102). Segundo o autor, a forma caracteristicamente masculina que Marx empreendeu à produção como atividade decisivamente humana parece ter relegado as mulheres às tarefas de cunho não produtivo. Marx, de fato, faz uma concepção analítica acerca da tomada do poder por parte da burguesia, como um “fim a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas” (MARX, 2003, p. 28). Nada obstante, o próprio autor comenta que essa tomada de poder destituiu laços de relacionamento entre os sujeitos de pessoa a pessoa, culminando com a transformação da família “a meras relações monetárias” (MARX, 2003, p. 29). A repressão feminina, de acordo com essa nova arrancada dos valores burgueses, faz prevalecer as relações e análises econômicas, subtraindo dessa análise várias outras searas que influenciam no contexto feminino de representação e tomada de posições. Por certo, análises baseadas exclusivamente no modelo marxista deixaram de lado importantes lacunas nas políticas para um movimento feminista, por exemplo, mas há dentro da perspectiva marxista, também serve de apoio na conjetura do lugar feminino. 62

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A situação das mulheres é diferente da de outros grupos sociais oprimidos: elas são a metade da humanidade […] à mulher é oferecido um mundo próprio: a família. Exploradas no trabalho, relegadas à casa: estas duas posições compõem sua opressão. Fala-se da mulher, da família como se fossem sempre as mesmas [...]. Assim, a análise da feminilidade e da família devem se um todo monolítico: mãe e filho, lugar de mulher [...] seu destino natural (MITCHELL, 1971, p. 99-100).

Prostituição e prostituta tomam um lugar na lógica de uma sociedade em que o comércio e os contratos de compra e venda se inserem como se fossem inerentes à própria sociedade. Porém, a prática da prostituição não é vista, ou melhor, é tornada invisível dentro de uma série de discursos que emanam das mais diversas searas (saúde, direito, segurança, moral, por exemplo). Essa espécie de contralógica, que o próprio sistema capitalista se impõe, demarca posições, normaliza e sanciona.

3.1 O que é prostituição: aspectos histórico-jurídicos É importante esclarecer, antes de apresentar qualquer aspecto característico sobre o tema, que não se podem confundir as hospitalidades ou cultos religiosos que envolviam sexo e promiscuidade nas sociedades antigas (como Egito e Mesopotâmia) com prostituição. É porque neste caso, o favor sexual, que pode ser mais bem compreendido como uma contribuição com o culto ou com a regra tradicional da sociedade, não deve ser ligado ao termo. As mulheres e homens que assim cediam a estas normas eram sujeitos sociais envolvidos em normas sociais que lhes impunham esta espécie de cerimônias sexuais. Não eram considerados como prostituição por não ter uma finalidade mercantilista, a qual é essência primordial nesse tipo de atividade. Além disso, é também necessário que o corpo social no qual está inserida a prostituição considere o fato de vender um afeto como tal. A prostituição, então, está ligada diretamente à forma comercial de aluguel do corpo, mas não do corpo próprio e puro, e sim de uma atividade que é desempenhada diretamente pelo corpo. Dessa forma, pode-se traçar um perfil histórico que demonstra esta característica intrínseca da prostituição. Como a tradição das sociedades antigas não impunha nenhum tipo de tabu nas relações sexuais entre homens e mulheres, as relações mercantilistas apenas se apropriaram disto..2 Fala-se aqui em mercantilismo e não ainda em capitalismo, pelo fato de a prostituição, como relação de compra e venda, já existir em sociedades 2

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Um vestígio dessa tradição existe ainda hoje nas chamadas “festas de caridade”, em que damas da alta roda ou atrizes em evidência, põem em leilão um beijo a favor de obras beneficentes. Esse costume: a retribuição monetária de um prazer embora com objetivos altruístas – não é por ninguém considerado um ato de prostituição, nem prostitutas, apenas por isso, aquelas que o praticam (BRASIL, 1932, p. 1).

Apesar de levar consigo o termo prostituição, estes relatos de crônicas antigas delineiam uma imagem que parece paradoxal aos nossos olhos modernos: a prostituta sagrada. Como eram consideradas encarnações das deusas e responsáveis pela felicidade sexual, a sua posição não estivera em ser objeto de satisfação dos desejos carnais, mas antes na de desenvolver os primitivos instintos em arte, na arte de fazer amor. Relata Qualls-Corbett (1990, p. 44) que as mulheres antes de casar se dirigiam aos templos para se personalizar a deusa representante do amor e dos prazeres, e o pagamento que alguns homens faziam não era direcionado para a mulher que ali se encontrava, era um pagamento para a deusa por lhe garantir acesso ao ritual sagrado. Em geral, quanto mais alta a estirpe da mulher, mais sagrado seu corpo era considerado e, portanto, mais capaz de trabalhar a arte do desenvolvimento sexual. Na Grécia, por exemplo, o imperador Sólon legitimou lupanares com várias mulheres dispostas a vender o sexo para os homens que lá chegavam. Esta atividade era estatizada, logo os preços eram tabelados externamente e fixados pelo Estado; não havendo qualquer tipo de discussão sobre moralidade e pudor, não havia a ideia de pecado do sexo. A atividade, como forma estatal de desempenho, era fiscalizada por agentes denominados astynomi, para garantir o estrito cumprimento das taxas e serviços prestados pelas casas. Eram também os responsáveis pelo recolhimento do pornikon, o imposto devido pelas casas solonianas (SALLES, 2010, p. 30). Se no Egito e na Mesopotâmia as atividades sexuais não eram prostituição, na Grécia era atividade exercida pelo estado. Em Atenas existia uma espécie de hierarquia; não uma hierarquia de submissão entre as classes de prostitutas, mas sim na aptidão para exercer determinados direitos. As pornai eram as mulheres que se colocavam à venda nos prostíbulos e eram vendidas como escravas, pois não possuíam uma identidade real e eram usadas apenas para o sexo nos bordéis atenienses. Acima estavam as acompanhantes que tinham algum talento artístico que não tinham uma forma capitalista de produção.

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para animar banquetes, o que não queria dizer que o sexo era necessário quando da sua contratação. As independentes, que exerciam a atividade por conta própria eram as hetairas ou heteras, mulheres que passavam a vida de cidade em cidade para proporcionar o prazer do corpo, um cuidado diário que era constante preocupação do cidadão grego. Não podiam manter matrimônio com um cidadão grego, uma vez que tais mulheres não eram vistas e nem quistas para tal (mesmo nascidas na cidade, juridicamente eram consideradas estrangeiras). As prostitutas atenienses usavam roupas que as diferenciavam das mulheres aptas a exercer vida conjunta com o cidadão (APOLODORO, 2011, p. 128). Ainda assim, na própria Grécia, havia também mulheres que prestavam atividades sexuais, mas não eram conhecidas como prostitutas. Era o caso das sacerdotisas de Afrodite, as hierodule, que só expunham-se a este tipo de atividade em determinadas ocasiões especiais vinculadas às festas divinas. Também eram tidas e vistas, apesar de sua imagem ser vinculada ao amor e à fertilidade, como escravas, porém, com mais regalias que as hetairas e pornai. No que tange ao casamento, por exemplo, as mulheres em matrimônio eram destacadas apenas para o serviço doméstico e particular, enquanto as prostitutas tinham acesso às artes e a outras áreas do conhecimento (CECCARELLI, 2008, p. 2). Não há como negar a necessidade social da existência da prostituição. É que por vezes, no decorrer do percurso histórico da humanidade, o cuidado com o prazer do corpo prescindiu a aparição deste serviço prestado e regulado pelo próprio Estado. O sujeito de poucas rendas não conseguiria manter uma mulher em matrimônio, já o abastado ou enriquecido pelo comércio desejaria dispor de várias mulheres, mas sem que constituísse para si um harém. Dessa conjuntura, surge uma instituição que é denominada “mulher comum”, ou seja, aquela que podia ser mantida com valores bem menores do que aquela mulher com quem mantivesse matrimônio e relação permanente. Para tanto, essas mulheres comuns tinham o direito de também dispor de quantos homens quisessem (BRASIL, 1932, p. 1). Em Roma, havia registros de cada uma das prostitutas de cada bairro e extremada luta contra aquelas que tentavam trilhar pelo caminho da clandestinidade. Tudo isso, porque a saúde do cidadão romano era extremamente vigiada. Logo, no caso da prostituição, precisava-se de alguma forma de controle sobre as doenças venéreas. Por tal fato, os “caçadores” de mulheres eram acionados para trazer às tabernas as mais saudáveis e belas. A insalubridade, no entanto, se reservava às casas as quais eram frequentadas por andantes e pessoas de camadas sociais mais baixas, já que as classes mais elitistas frequentavam casas mais luxuoDireito ao corpo e sexualidade •

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sas e sem a precariedade das tabernas. As lobas, termo popular das prostitutas romanas, eram também as iniciadoras sexuais dos adolescentes de famílias ricas de Roma. Sempre escravas de um leno ou uma lena (termos romanos para o que hoje se denomina cafetão e cafetina), as lobas eram mulheres vindas do Oriente ou da própria Grécia, traficadas pelos caçadores para trabalhar desde criança nas tabernas e não tinham qualquer garantia jurídica (SALLES, 2010, p. 34-35). Tal como na Grécia, em Roma, é imperativo destacar que algumas atividades que não obstante envolvessem sexo pago, não constituíam atividade de prostituição. À época, havia uma forma de economia dentro de um modelo de produção que não se coadunava completamente com o capitalismo moderno, apesar de ser dinâmico e duro como o modelo atualmente vigente. A leiloaria e os esforços físicos eram formas de se tirar soldos para a sobrevivência. Todo esforço merecia uma contraprestação, mesmo que tal atividade fosse feita com prazer. Mesmo o sexo, inserido em um contexto de adultério ou de mera relação era pago, contudo, sem constituir prostituição. A prostituição na Roma e Grécia antigas não representava uma falta de moral ou uma libertinagem sem fim (esta última devia obedecer, ou melhor, quebrar determinadas regras), era uma forma de moralidade que não reprimia a poliandria ou poligamia, ou seja, as relações de uma mulher com vários homens e de um homem com várias mulheres. Um traço pitoresco dos costumes galantes era o seguinte: na mais alta sociedade toda ligação amorosa acarretava um pagamento da amada pelo amante; a matrona que enganava o marido recebia do amante uma grande soma, quando o galã não lhe concedia uma renda anual. Havia uns grosseirões que retiravam a doação em caso de rompimento, e os juristas se viam obrigados a intervir. Não se tratava de prostituição, mas de salário: a matrona não se dava porque lhe pagavam, mas recebia porque se dera, e a mais amorosa era a mais bem recompensada. Assim as mulheres perseguiam o salário do adultério, enquanto os homens corriam atrás dos dotes (VEYNE, 2009, p. 135).

Desde os primeiros anos de formação civilizatória, as regras de direito para a mulher sempre tiveram sua formação dada por homens, sem que as mulheres participassem do processo legislativo/normativo. Frise-se que, apesar de ter uma atividade regulada pelo Estado nesta época, as mulheres gregas e romanas eram tidas ou como escravas ou meros objetos de relação entre famílias. Exceto pelas regulações em relação à prostituição (muito mais pela higiene da ordem social do que 66

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um direito da mulher, pois as prostitutas eram tidas no mesmo patamar de assassinos, ladrões, etc.), as características das leis direcionadas ao público feminino eram mais direcionadas às regras matrimoniais e condutas femininas aceitas. Único direito (ou melhor, privilégio) era o bem-estar no casamento. O adultério feminino, por exemplo, era punido com a privação da liberdade de andar em locais públicos e, caso a mulher fosse vista, poderia ser punida por qualquer um do povo (com exceção de pena de morte), ao passo que para o homem adúltero, nenhuma pena era cominada e era a mulher comparsa do adultério impedida de entrar em convívio com outro homem (APOLODORO, 2011, p. 114). Leis masculinizadas formaram a mulher apenas em legislações que envolviam o sexo e limitavam sua vida pública. Dessa forma, em alguns códigos normativos, mulheres tidas como puras e livres que eram vítimas de estupro ou alguma forma forçada de sexo viam seu algoz ser condenado à morte, enquanto às escravas restava que o estuprador pagasse ao Estado a soma do seu valor de negociação. Ao fim, contudo, não importava qual a posição social da mulher agredida, esta seria vista como “corrompida”, não teria direito aos seus bens, nem direito ao um novo casamento, ao que, para a maioria, a prostituição se tornaria uma grande alternativa (ROUCHE, 2009, p. 459). Foi com a ascensão da Igreja Católica ao patamar de entidade política que a prostituição começou a ser reprimida como pecado. As novas formas de políticas públicas dos reinados absolutistas também desenharam uma forma médica aos procedimentos sexuais. Logo, o sexo fora do matrimônio era algo visto como uma afronta a toda moral cristã e uma forma desnecessária de se manter em perigo. Apesar de ser visto como prazer, o sexo era visto também como pecado, pois prazeres são perigosos. O discurso da saúde permeava os primeiros séculos da Idade Média, promovendo uma espécie de caça às bruxas prostitutas, sob o discurso da manutenção da ordem e higiene populacional (BRASIL, 1932, p. 5). Com a reforma religiosa que tomou conta da Europa, a Igreja Católica armou todo um arsenal de discursos sobre o sexo; com isso a prostituição passou de regulada a proibida, caindo em clandestinidade, sem, todavia, ser exterminada. A pobreza extrema que tomava conta do continente europeu, aumentava o ato de prostituir-se nos bolsões de miséria. Era corriqueiro que mulheres de “uso comum” circulassem pelas cidades, aplacando o desejo sexual dos homens, fosse na alta corte ou nos sujos mercados dos reinos. O aumento da atividade sexual pelas mulheres fez novas regras serem estabelecidas, como o uso de roupas ou símbolos próprios que as identificassem. No contexto que aqui se Direito ao corpo e sexualidade •

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explicita eram comuns os estupros e as desonras familiares e, apesar de toda a repressão religiosa, viam-se os monarcas obrigados a proteger a honra das mulheres das castas mais respeitadas e para isso a prostituição era uma forma de exercer esta proteção. A criação de bordéis, com regulamentação específica (que impunham regras sobre horários, locais e vestimentas das prostitutas) foi uma forma de controlar a atividade e os crimes contra a honra. Por isso, era difícil encontrar uma cidade europeia na Idade Média que não contasse com um bordel regido pelas autoridades do Estado (ROBERTS, 1998, p. 104-105). Em todas as grandes cidades, além do bordel público, existem várias casas de tolerância: os banhos públicos. Sempre que pudemos decifrar o seu funcionamento, verificamos que os banhos públicos são prostíbulos ou servem para dois fins: um honesto e outro desonesto. Isso apesar dos inúmeros regulamentos proibindo a presença de prostitutas e estabelecendo as horas e dias reservados para homem e mulher. Todos os banhos possuem um grande número de camareiras, e, embora na sua maioria sejam equipados com sala de máquinas e cubas, os quartos são numerosos e as camas, imponentes (ROSSIAUD, 1991, p. 21).

Desta maneira, a prostituição na Idade Média volta a tomar ares de atitude moralmente não aceita, vista como um “mal necessário”, indispensável para aplacar toda a luxúria inevitável caso a atividade fosse cerceada por completo. As prostitutas, não obstante, se viam dentro de uma classificação que lhe garantia direitos, a depender de qual camada estivessem. Até os termos utilizados para designá-las eram diferentes: a mulher dos prostibulum publicum (banhos públicos) era a mulher pública e era a antítese da mulher secreta dos prostíbulos, que por sua vez fazia contraponto às mulheres de rua (levianas ou vagabundas). Apesar disso, com todo o rigor sacro da Idade Média, a prostituição continuava a romper com os mais puros preceitos morais. Em uma época de casamentos arranjados e uma ideia de amor implantada como formas de troca de riquezas, não eram levados em conta os sentimentos dos envolvidos nestas relações, e assim a prostituição tomava força, inclusive com leis que lhes garantiam determinado poder frente às estratégias monárquicas. (ROSSIAUD, 1991, p. 22). Foucault (1985, p. 167) analisa que a ideia do monopólio sexual exercido pelas relações matrimoniais formou o berço da cultura ocidental cristã. Aquela discrição grega opõe-se a esta pastoral cristã que tudo administrará em relação ao sexo. Frequência e até posições sexuais tornaram-se controladas, ou seja, o sexo neste ponto quedou68

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se “conjugalizado”. Para a mulher mais um problema de ordem machista, uma vez que esta deveria se manter pura para o marido, sendo responsável por prover frutos (prole) saudáveis e aptos para a vida social. Sexo apenas no casamento era a ordem, tanto que se criou a obrigação conjugal, que nada mais é que a obrigação (muito mais feminina) de manter relações sexuais. O passar dos anos não tirou o estigma das prostitutas. Andando pari passu com uma moral sexual fomentada por uma moral religiosa que impunha deveres de castidade e enfrentava o sexo como pecado mortal, a prostituição continuou a se desenvolver e até as classes mais altas nos séculos das transformações (principalmente séc. XVI a XVIII) frequentavam prostitutas. Os bordéis funcionavam a pleno vapor, satisfazendo os desejos mais íntimos das classes abastadas e também dos viajantes, militares e qualquer tipo de pessoa que dispusesse das somas exigidas pelas mulheres. Importante ressaltar que havia um controle destas casas, geralmente exercido por mulheres, uma característica própria desta época e, além do mais, as próprias prostitutas detinham certo controle de sua atividade. Existiam aquelas que exerciam o ofício e deveriam pagar às donas das casas, mas também havia aquelas que trabalhavam independentemente (dentro de quartos ou apartamentos) e todo o dinheiro arrecadado era de seu uso. Roberts (1998, p. 281) lembra que esta natureza “feminista” quebrava algumas barreiras da sociedade patriarcal e não era ligada à nova moralidade burguesa imposta e “ao mesmo tempo, estava firmemente incorporado na cultura da classe trabalhadora urbana – não distinto dela”. A França foi o berço do controle da prostituição por pessoas privadas. Nasceu a cafetinagem, forma privada de controle da prostituição principalmente exercida por mulheres à época, em um contexto de questionamento ao Antigo Regime, em que o sexo e a libertinagem eram formas de libertação do corpo. A mobilidade das prostitutas era tão grande que havia catálogos de prostitutas com preços e até endereços de bordéis especializados em determinados serviços como voyeur, pornografia, entre outras atividades sexuais (MURPHY, 1994, p. 21-22). As formas jurídicas ou legislativas, apesar da intensa atividade de prostituição, não eram trabalhadas para ser algo concreto no sentido de proteger as mulheres, mas apenas de evitar qualquer profusão de malefícios para as classes ricas emergentes e também para satisfazer o clero e suas disposições puristas em relação ao problema. Fruto das precárias atividades legais e jurídicas, a cafetinagem começava a tomar corpo e os homens começavam a explorar os serviços das prostitutas. Essa forma de aquisição de riquezas, desencadeada pelo novo modelo de produção Direito ao corpo e sexualidade •

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que surgia, apresentava-se como uma alternativa para os homens de linhagem pobre, de castas baixas que almejavam espaço nas altas rodas da sociedade. Algumas prostitutas aceitavam esta exploração, já que também fosse uma forma destas mulheres manterem um relacionamento afetuoso, mesmo que em troca de serviços. A cafetinagem era uma das poucas maneiras em que um homem de origem pobre conseguia uma mobilidade ascendente, ou pelo menos um padrão de vida mais elevado. Isto, do ponto de vista da prostituta, tornava o envolvimento em um relacionamento com um homem potencialmente perigoso, pois sempre havia a possibilidade de ela ser usada dessa maneira. [...] na falta de outra coisa, a vida no negócio do sexo ensinava que todas as formas de amor em dinheiro, podiam destruir a afeição até não restar mais nada; e os cafetões eram em geral negligentes, exploradores e violentos. Uma prostituta podia pagar emocional e fisicamente e também financeiramente pelo relacionamento (ROBERTS, 1998, p.284)

Murphy (1994, p. 243) assinala que o século XIX, assim se torna a ponte para a prostituição moderna, com toda uma estrutura que se desenvolve junto com as formas higienizadoras da sociedade que adentram o século XX e que se mostravam verdadeiras maneiras de supressão de direitos das prostitutas. O que antes se tinha em conta de atividade laboral regulamentada (apesar das restrições jurídicas), passa a ser vista como algo de perversão e forma de manipulação do corpo feminino. Outra não é a sensação que passa, quando de uma hora para outra em plena I Guerra Mundial, começam a pulular na França, Alemanha e outros países envolvidos no confronto, bordéis legitimamente regulados, para satisfazer as tropas (apesar de em alguns desses países a prostituição em si ser totalmente proibida e até criminalizada em seus Códigos Penais). Como essa atividade de lupanares regulamentados não perdurasse, no período entreguerras começaram a surgir bordéis escondidos sob fachadas de tabacarias e pequenas lanchonetes, nas quais as garçonetes não estavam para servir apenas café. Nos Estados Unidos, a década de 1950 fez surgir uma nova legislação que proibia de qualquer maneira o exercício da prostituição, com ordem expressa de utilizar o poder de polícia para ostensiva repressão contra as mulheres que fossem capturadas nesta atividade. Conquanto, a corrupção que tomava conta das redes de polícia, fazia que os agentes atuassem apenas superficialmente, pois alguns dos grandes 70

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envolvidos com a cafetinagem estavam dentro destas corporações. No final da década de 1960, as ordens e legislações começavam a relativizar a atividade da prostituição e os bordéis legitimados pelo próprio Estado americano passavam a desenvolver suas atividades em grandes edifícios de concreto com lojas e outras formas de comercialização do sexo (ROBERTS, 1998, p. 334). Tudo administrado pelo próprio Estado, o qual não passava de grande cafetão em abstrato. Isso se deve ao fato de que o Direito dos aparelhos de Estado, determinados por um modelo de economia e gerência de ilegalidades, faz surgir uma sequência de outras ilegalidades, transformadas por fim em delinquência. Um exemplo pode ser observado na ilegalidade dos aparelhos policiais dos Estados, quando atuam ilegalmente, mas sob um véu de legitimidade, na repressão a grupos, ações ou movimentos caracterizados como marginais ou delinquentes. É nessa esteira da instituição repressiva dos aparelhos de Estados que se percebe, inclusive, a criação de uma rede lupanar de tráfico sexual feminino. A implantação das redes de prostituição no século XIX é característica a respeito: os controles de polícia e de saúde sobre as prostitutas, sua passagem regular pela prisão, a organização em grande escala dos lupanares, a hierarquia cuidadosa que era mantida no meio da prostituição, seu enquadramento por delinquentes-indicadores, tudo isso permitia canalizar e recuperar, através de uma série de intermediários, os enormes lucros sobre um prazer sexual que uma moralização cotidiana cada vez mais insistente votava a uma semi-clandestinidade e tornava naturalmente dispendioso; na computação do preço do prazer, na constituição de lucro da sexualidade reprimida e na recuperação desse lucro, o meio delinquente era cúmplice de um puritanismo interessado: um agente fiscal ilícito sobre práticas ilegais (FOCAULT, 2004, p. 232).

Vainfas (1997, p. 230) insinua que, no Brasil, a prostituição também se faz presente, mas não como retrata o senso comum de que à época da conquista portuguesa e da escravidão em seu auge as mulheres que mantinham relações sexuais com militares, senhores e colonizadores, eram prostitutas. Como dito acima, a prostituição pressupõe o pagamento pelo serviço sexual ou afetuoso, logo exemplos clássicos como o de Caramuru ou João Ramalho não se tratavam de deleite pela prostituição, mas antes, de uma espécie de ressignificação (chamada aculturação) dos valores da Coroa Portuguesa em relação Direito ao corpo e sexualidade •

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às atividades sexuais. Índios andando sem as vergonhas tapadas e o “frenesi sexual” que se mostrava, despertou nos colonizadores a percepção de uma nova vida sexual que se lhes mostrava. Desta forma, o sexo no Brasil era tomado em conta de culpa dos índios, seres sem alma e sem os preceitos morais de uma vida cristã e sadia. A chegada do negro escravo ainda não coincide com o padrão de prostituição que conhecemos. É que a visão de um escravo como um bem pessoal pelo senhorio da época acabava por dar direito também sobre o sexo. Logo, não era estranho o concubinato entre senhores e escravas à época. Estas formas de prazer sexual eram violentas simbólica e fisicamente. Como muitas mulheres não quisessem manter intercurso sexual, elas eram coagidas pela sua condição de propriedade e bem de uso comercial, bem como por meio de violência física. Importante notar-se isso, para que não se tenha em cálculo de que apenas na prostituição pode haver violência, ou seja, havia (e ainda há) relações comerciais de sexo sem violência, assim como existia (e ainda existe) o sexo mediante violência, sem que haja prostituição. A prostituição propriamente dita (esta das relações comerciais), no Brasil, começa a se acentuar, com construção de lupanares e com a efetiva chegada de D. João VI (e toda sua Corte) ao Brasil, época na qual eram promovidos grandes bailes populares. As prostitutas, em sua maioria, eram ex-escravas, imigrantes e mulheres pobres, que participavam de pequenos bordéis e lá recebiam os clientes (inclusive altos agentes do Império). Atuando livremente, buscando seus clientes na rua e tendo esta clientela como consumidores fiéis dos serviços, os bordéis eram frequentados a qualquer hora do dia (VAINFAS, 1997, p. 231-232). As prostitutas no pensamento brasileiro do fim do século XIX e início do século XX, principalmente manifestado por médicos, eram vistas como expressão da miséria social e humana. A mulher, por ter um cérebro “muito menos plástico que o do homem” (SANTOS GODINHO, 1909, p. 10), era mais suscetível a cair em desgraça, a desgraça do sexo por prazer. Berço de todas as desgraças da sociedade, o discurso antiprostituição era condicionado pela moléstia da sífilis (considerado o pior inimigo que a prostituição trazia consigo). Além disso, a prostituição também levava à prática de um crime tipificado no Código Penal à época: o adultério. Logo, a prática da prostituição, legalizada ou regulamentada, seria por em risco a integridade que o Código Penal buscava, uma vez que facilitaria a prática de um ato ilícito (SANTOS GODINHO, 1909, p. 25). Mais impura e devassa, a prostituição torna o homem estéril. Pensava-se que a quantidade de relações sexuais diminuía a produção 72

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de espermatozoides. Curioso, no entanto, observar que a criminalidade adulterina não se vincula ao homem que tem relação com uma prostituta e torna-se estéril, mas que este tipo de fato cria uma espécie de nexo causal a fortiori. A mulher, portanto, que tem a infelicidade de consorciarse com um homem, a quem a prostituição tornou estéril, desejando procrear e reconhecendo que o seu marido é um inutilisado – procura um amante exclusivamente para a satisfação d’essa necessidade natural. É caso observado: há mulheres adulteras regeneradas após o nascimento do primeiro filho (SANTOS GODINHO, 1909, p. 26).

Os séculos passaram e a urbanização tomou conta da vida das cidades brasileiras cujos trabalhos rurais eram relegados às populações pobres, os ricos prestavam compromisso com o crescimento das cidades, principalmente Rio de Janeiro e São Paulo. Esse crescimento descontrolado facilitou a implantação de casas de tolerância em bairros frequentados pelas altas classes paulistanas e fluminenses, classes estas as que mais tinham contato com a prostituição. Confeitarias, Jockey Club, Teatro Municipal, entre outros lugares públicos, eram espaços nos quais “moças direitas” e prostitutas (cocottes) conviviam, claro que cada uma “em seu devido lugar”. Até os sinais e roupas (como à época da Grécia e Roma antigas) diferenciavam a classe de cada uma das mulheres (RAGO, 1991, passim). Neste ponto, é importante ressaltar os termos nos quais a prostituição tem sido tratada ao longo da história humana. Podem-se identificar três formas precisas de controle: uma estatal, uma privada e uma de criminalização. Em um primeiro momento, aquele das sociedades antigas, a atividade era estatal e controlada pelos agentes do poder público que faziam as vezes de fiscalizadores e exerciam seu poder de polícia. Em um segundo momento, o meretrício passa a ser controlado por pessoas privadas, as quais tinham controle sobre a atividade das messalinas. A terceira forma é a da criminalização da atividade, tanto das prostitutas, quanto daqueles que exploram a atividade. Porém, as três formas não existiram isoladamente, mas se misturavam em todas as épocas, umas com maior expressão, enquanto outras se maquiavam sob os discursos aplicados. Deste modo, a atividade sempre foi conduzida por particulares, mas com um maior controle estatal no que tange à aplicação de impostos e regras de funcionamento ou caça às pessoas que exerciam a prostituição e sua exploração. Foi incessantemente criminalizada, seja por meio de Direito ao corpo e sexualidade •

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controle do próprio Estado (como no caso dos Estados Unidos, por exemplo), seja por formas veladas de controle social. Nas sociedades atuais, esta criminalização teve seu recrudescimento. O passar dos anos apenas converte algumas condutas relacionadas à exploração da prostituição em tipos penais, contudo, os sujeitos (mulheres e homens) que praticam prostituição são criminalizados socialmente pelos discursos de moralidade. Nos dias atuais, observa-se uma nova constituição para a prostituição, em razão de que esta atividade não está mais restrita a casas ou locais reservadas exclusivamente para tal destinação. Nas ruas é comum, a qualquer hora do dia, perceber mulheres em situação de meretrício. O comércio sexual (expressão que agora começa se desenvolver no âmbito da prostituição), nos últimos anos, torna-se uma indústria com várias formas de produção, que movimenta bilhões e está vinculada a outras redes da economia global (hotéis, telefonia, entre outras, tem relações com o comércio sexual). O sexo como recreação, passa a fazer parte do cotidiano, sempre desenvolvendo formas diferentes de satisfação para o cliente. Mais do que nunca, hoje o intercâmbio sexual está amplamente disponível para todas as classes. Aquela libertinagem francesa em muito se assemelha a esta nova condição do “sexo recreação”, saindo do paradigma do sexo relacional. Uma nova configuração da vida erótica é instalada, na qual a busca de intimidades sexuais deixa de ser dificultada por padrões estéticos, sociais, etc., e passa a ser facilitada pelo seu locus no mercado. Durante os últimos 30 anos a demanda pelos serviços sexuais disponíveis não só explodiu como se tornou cada vez mais especializada, diversificando-se em linhas tecnológicas, espaciais e sociais. Assim, o âmbito do comércio sexual cresceu, abrangendo shows de sexo ao vivo; toda variedade de textos, vídeos e imagens pornográficas, impressas e on line; clubes fetichistas; “empórios” sexuais exibindo lap-dancing e wall-dancing; agências de acompanhantes; contatos telefônicos e de sexo virtual; vias de strip-tease drive through; e turismo sexual organizado em países do mundo em desenvolvimento (BERNSTEIN, 2008, p. 322).

Nestas novas formas de significação do sexo e da prostituição, os afetos que porventura cheguem a existir não descaracterizam o comércio sexual da prostituição. Muitos sujeitos da prostituição chegam a ter relacionamentos com seus clientes, mesmo mediante o pagamento do programa. O “programa”, termo utilizado para designar 74

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o período que prostituta e clientes passam juntos mediante o pagamento do valor estipulado, não significa necessariamente a atuação sexual propriamente dita. Clientes acabam contratando serviços para falar de problemas particulares, ter strip-tease particular, tirar fotos, enfim, ter outro tipo de relação, não necessariamente um intercurso sexual padrão (com coito vaginal). Outras formas de satisfação sexual (sexo oral, anal, masturbação, etc.) ou a simples busca por uma conversa, também constituem práticas na prostituição atual, que não estão totalmente vinculadas às relações sexuais. O termo “sexo” denominado pelo sujeito da prostituição é apenas incluído com o parceiro afetuoso com quem mantém uma relação constante (namorado, por exemplo). Fora deste contexto, não se faz “sexo”, apenas “programa” (OLIVAR, 2011, p. 91-92). Assim sendo, temos por prostituição a venda de serviços sexuais de um sujeito (de qualquer gênero) para outro, realizada por indivíduos civilmente capazes, com autonomia da administração do horário e das condições do serviço por parte do sujeito prestador do serviço, sem que haja violência física, simbólica ou psicológica praticada pelo cliente. A venda dos serviços sexuais é denominada programa, e é onde se dá a negociação das rotinas, como tempo, preço e quais as práticas serão tomadas durante o encontro (GUIMARÃES; MERCHÁN-HAMANN, 2005, p. 533). Deve-se ter em mente que quando se trata do termo “gênero”, não se quer articular apenas o universo feminino, “o uso do ‘gênero’ coloca a ênfase sobre todo o sistema de relações que pode incluir o sexo, mas que não é diretamente determinado pelo sexo nem determina diretamente a sexualidade” (SCOTT, 1995, p. 4). Importante lembrar que só com o começo do capitalismo é que o comércio sexual de prostituição vê suas trocas mediadas pelo dinheiro. As formas de pagamento de outrora eram mediadas não apenas pelo metal ou papel que representava poder de conquista de bens materiais, mas também para ter prestígio, presentes (joias, roupas, etc.), entrar em locais privilegiados e legitimados para as altas cortes, enfim, uma gama de outros valores que mediavam a comercialização do sexo. Ainda que atue como valor simbólico, nos dias atuais o dinheiro é a única forma de consecução do programa. Presentes e outros objetos em alguns casos são até aceitos por prostitutas, mas não substituem o pagamento em dinheiro pelo programa feito. O intercâmbio entre capital e trabalho apresenta-se de início à percepção exatamente do mesmo modo como a compra e a venda das demais mercadorias. O comprador dá Direito ao corpo e sexualidade •

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determinada soma de dinheiro, o vendedor um artigo diferente do dinheiro. A consciência jurídica reconhece aí no máximo uma diferença material, que se expressa nas fórmulas juridicamente equivalentes (MARX, 1996b, p. 170).

Se é grande o acervo histórico sobre a prostituição feminina, o mesmo não se pode dizer sobre textos que analisem, ou mesmo que citem a prostituição masculina. Isto porque a relação que um homem tinha com uma mulher, mesmo que esta pagasse pelo serviço, não era considerada uma relação de prostituição, pois esta estava diretamente ligada ao saciar do desejo sexual masculino. No caso de uma relação entre dois homens, as próprias instituições gregas chegavam a apoiar a pederastia entre os mestres e seus alunos, como forma de desenvolver a alma para uma boa erudição. Logo, uma re-lação entre homens não era algo anormal ou infame, havia uma valorização desta relação como mais livre que o aprisionamento que o casamento proporcionava, já que só assim uma relação com uma mulher era concretizada (FOUCAULT, 1984, p. 197). O advento da moral cristã asseverada em termos bíblicos pela proibição de que um homem atue conforme uma mulher (trajes, comportamento, etc.), fez que as relações amorosas e sexuais entre homens fossem perseguidas e passassem a ser consideradas crimes. Na Idade Média, apesar desta moral cristã estar devidamente aflorada, a exceção se dava no teatro: uma vez proibidas as mulheres de participar de peças, os homens eram obrigados a se vestir de mulher para suprir os papéis. Dessa prática, surge uma espécie de travestismo, no qual apenas na arte se desenvolvia uma prática contra a moral (DURIGAN; MINA, 2007, p. 66). No Brasil, no século XIX, travestis eram presos e esta prática chegou a ser objeto de tipificação em códigos penais. O homem dito normal não praticava a prostituição. Homens que mantinham relações sexuais com mulheres e que recebiam valores por isso não estavam em condição de prostituição, eram, antes, exploradores de mulheres. Desta forma, o “gigolô” recebia presentes e pequenas somas em dinheiro, mas eram considerados proxenetas (exploradores sexuais dessas mulheres que pagavam). A violência era presença constante na vida das mulheres que se recusavam ao pagamento destas quantias (MAZZIEIRO, 1998, p. 8). Assim, surge um discurso de que a prostituição masculina está, em geral, diretamente ligada ao homossexualismo, que todo travesti é homossexual e por tal fato é que se dediquem a usar adereços femininos e a se comportar como mulher. Tanto é que para homens que se vestem de mulher, mas que não se identifiquem como homossexuais, 76

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um novo termo foi cunhado: crossdresser.3 Isso não implica afirmar que homens em situação de prostituição pratiquem suas atividades apenas com homens (assim como mulheres também não praticam suas atividades de prostituição apenas com homens). Foucault (1996, p. 8) explica que esta materialização e fixação de conceitos e termos se dá pela necessidade de se estabelecer critérios objetivos para administrar procedimentos que têm o objetivo de subjugar qualquer anormalidade. A escolha de uma sexualidade que não fosse a reverenciada como normal, além de ser julgada crime, era considerada causa de outros crimes. Esses “invertidos” foram vistos como extremamente perigosos, principalmente os prostitutos, “ralé” dessa” escória”. A prostituição masculina, entendida como muito pior do que a feminina, devia, portanto, ser reprimida de forma ainda mais eficaz. Não se via nessa prostituição uma forma de trabalho e procura de satisfação sexual e sim um crime. O homossexualismo masculino foi a forma de sexualidade em relação à qual a visão dos criminólogos esteve mais enraizada na visão da Psiquiatria, onde buscaram as origens da criminalidade (MAZZIEIRO, 1998, p. 11).

Esta sexualidade não se limita às escolhas do sujeito e as implicações sociopolíticas que elas envolvem, mas também uma sexualidade que se expande para além do corpo e se mostra nos atos e práticas que o sujeito desenvolve em sua vida. O que se discute atualmente é uma nova visão sobre a prostituição, que ao longo da história passa de aclamada a clandestina e tida como perversidade dos gêneros que compõem o corpo social moderno. A constituição das prostitutas como sujeito de direito perpassa por todo um discurso formado sobre as atuações de cada um dos gêneros dentro da sociedade.

O crossdressing é o termo utilizado para designar a prática daqueles indivíduos de determinado gênero os quais utilizam de elementos (roupas, acessórios, etc.) caracterizados como pertencentes a universos do gênero que se lhe opõe. É crosdresser, por exemplo, o homem que se veste como mulher, mas que não se identifica como homossexual. Em outras palavras, é uma “pessoa que frequentemente se veste, usa acessórios e/ou se maquia diferentemente do que é socialmente estabelecido para o seu gênero, sem se identificar como travesti ou transexual. Geralmente são homens heterossexuais, casados, que podem ou não ter o apoio de suas companheiras” (cf. JESUS, 2012). 3

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3.2 A constituição das prostitutas como sujeito de direito A constituição da prostituta (ou do homem em situação de prostituição) como sujeito de direito é discutida em demasia por mo-vimentos socais e jurídicos sempre em torno de uma agonia provocada pelas questões sexuais e não pelas pessoas atingidas em si. Foucault (2001, p. 379-380) explica que estes sujeitos são analisados como su-jeitos de anormalidade, seus corpos são considerados como amorfos e sem sentido. Uma vez que a prostituição é cunhada dentro de um sentido que só é exercido por uma pessoa sem considerações morais prementes dentro de si, isto é, que a prostituição é uma consequência nefasta das aberrações de conduta impostas ao sujeito pelo que o saber-poder considera normal e anormal é que a prostituição precisa ser controlada. Foucault distingue – não sem certa estranheza, pois evidentemente eles não pertencem ao mesmo registro – dois modelos de “poder”: um, diz ele, corresponde à representação jurídico-política tradicional, definida pelas teorias contratualistas em que regras determinam o obrigatório, o permitido e o proibido; o outro, que se baseia, de maneira conjuntural, em impulsos da sexualidade, irrompe em técnicas de comportamento instáveis e polimorfas. Mas, seja qual for o aspecto que adote, a particularidade de todo poder é enfrentar outro poder, portanto rivalizar com ele (GOYARD-FABRE, 2002, p. 190).

As preocupações com os temas de prostituição e comércio sexual se refletem apenas no âmbito acadêmico e literário (mesmo que dentro do contexto de movimentos sociais), não levando em consideração o aspecto volitivo e as relações entre os sujeitos. Uma das razões mais candentes para essa situação é a prevalência – entre alguns cientistas sociais – de uma orientação metodológica-moral que se concentra em desvendar grandes abstrações – imperialismo, globalização, racismo, direitos humanos – sem levar em consideração como esses temas são traduzidos para a vida cotidiana. O resultado dessa tendência é uma visão do indivíduo como um peão no grande jogo sociológico, movido por forças e referências que só o sociólogo pode vislumbrar com clareza. [...] Os motivos que levam um indivíduo a se prostituir, imigrar ou tentar combinar ambas as atividades são complexos e multifacetados e não

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podem ser resumidos em conceitos – caros à ciência social, mas quase nunca encontrados de forma pura e isolada na vida real – como “globalização”, “imperialismo”, ou “machismo” (GRUPO DAVIDA, 2005, p. 184).

Este paternalismo (machista, diga-se) é o que imprime estas moralidade e imoralidade às condutas dos sujeitos da prostituição e do comércio sexual. Principalmente no quesito de relevância feminina, as condutas inseridas em contextos de depravações (prostituição, sedução, etc.), são inseridas em desordem das condutas sociais e potenciais motivos de abalos na instituição mais sagrada da sociedade: a família. Por tal perigo moral, as práticas sexuais dentro da família deveriam ser reprimidas, pois a família desestruturada lançaria a mulher à prostituição. Para a avaliação da afetação à moral social, a classe na qual a mulher é posicionada não importa, importa é se ela está de alguma maneira ligada à prostituição. É por isso que nestes casos a criminalização feminina é sempre ligada a aspectos sexuais que a coloquem em estado de honesta ou depravada (ZAFFARONI, 2005, p. 145). O que se convencionou denominar um “sistema de direitos”, na verdade privilegia maneiras de arquitetar juridicamente um arcabouço de limitações de escolhas e vontades que acabam por tolher a liberdade criativa do sujeito. A cristalização das regras em códigos de normas estanca também as forças de vida, sendo observada de perto pelas instituições de poder em toda e qualquer relação existente. Sob um discurso de proteção do perigo, o discurso paternalista jurídico resta periclitante para o próprio exercício da liberdade do sujeito (GOYARD-FABRE, 2002, p. 194). Curioso, então, é perceber que o movimento antiprostituição ou antissexo é sempre ligado à proteção da feminilidade, como se esta atividade fosse sempre designada para promover perversões de cunho masculino. Como Foucault (1988, p. 28) quer demonstrar, o sexo está no núcleo de análise dos outros problemas da sociedade: o interior do problema econômico e político da população está inserido no sexo, amparado no discurso sobre o sexo. Desta maneira, é necessário analisar cada ponto que se liga aos aspectos demográficos e de família (taxas de natalidade e nascimentos de relações legítimas dentro de matrimônios); estas características, então, seriam mais bem administradas se a mulher estivesse sob o pronto policiamento das instituições, pois são elas as geradoras das sementes e devem se manter longe de qualquer forma de perversão sexual, para não correr riscos. Dentro desta concepção masculinizada antes de se formar um “sujeito prostituta”, deve-se ter a formação de um “sujeito mulher”. Esta Direito ao corpo e sexualidade •

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última casta e pura em contradição com a perversidade e impudicícia da outra. A construção do rígido estereótipo da prostituta, símbolo do mal, dos pecados e vícios, associada à imagem de Eva, mulher sedutora responsável pela queda do homem, cujas práticas devem ser rigorosamente controladas a partir da própria domesticação das sexualidades insubmissas, inscreve-se num conjunto de dispositivos estratégicos de moralização da sociedade brasileira, entre final do século XIX e início do XX. O contraponto desta figura maculada, por sua vez, reforça a possibilidade de valorização, de promoção e de imposição de um novo modelo de feminilidade: a mulher esposa-dona-de-casa-mãe-de-família, vigilante, ordeira, higiênica, responsável pelos membros da família, porém dessexualizada: a “rainha do lar” (RAGO, 1985, p. 222).

Bem neste ponto fica uma estrita responsabilidade da mulher pela prostituição. Por isto é que o homem não entra, em geral, nas estatísticas e conhecimentos sobre a prostituição. Por ser considerada eminentemente feminina, a prostituição masculina é ligada, em certa medida, à homossexualidade. Visto que a conjugalidade feminina é aspecto legí-timo para o ato sexual (característica esta não levada em consideração ao homem), são privadas as mulheres daquilo que as torna “um sujeito de direito”, fora deste âmbito conjugal (FOUCAULT, 1985, p. 169). Assim, mulher é prostituta (puta) quando, em matrimônio, trai, mesmo não percebendo qualquer valor pelo ato, mas este ato é identificado como comércio sexual; e o homem não é considerado em condição de prostituição a não ser para a satisfação de outro homem, pois quando trai sua esposa é ou o explorador da fragilidade da mulher ou o aproveitador adorado pelos outros machos por cumprir seu papel de homem conquistador (ainda mais se receber dinheiro por isto). Neste aspecto de formação alienada do sujeito, que não se forma em si, mas é formado por uma infindável rede de vigilância, controle e incitação contínua de sua culpa pelo mal que causa à sociedade (e não do que lhe é causado), é que se arquiteta um edifício de normas legais e morais, as quais são as maneiras que as instituições têm para a produção de administrações e regulamentações sobre as diversas atividades dos sujeitos. Ocorre que alguns movimentos feministas, caindo nos discursos assimilados de dominação dualista (homem versus mulher), consideram o crescimento do comércio sexual como uma forma de dominação masculina, que usa o dinheiro como bem simbólico para dominar a 80

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mulher, já que parecem ligar o sexo à dominação. Algumas correntes “pop-psicologizantes” acabam por inserir homens em condições patológicas de “medo de intimidade” ou outros novos padrões de vida que sejam ligados às patologias psíquicas dos clientes (BERNSTEIN, 2008, p. 332). Entretanto, afirma Foucault (2001, p. 381) que: Não há doença intrínseca ao instinto, há antes uma espécie de desequilíbrio funcional do conjunto, uma espécie de dispositivo ruim nas estruturas, que faz que o instinto, ou certo número de instintos se ponha a funcionar “normalmente”, de acordo com o seu regime próprio, mas “anormalmente” no sentido de que esse regime próprio não é controlado por instâncias que deveriam precisamente assumi-los, situa-los e delimitar sua ação.

Os anormais, os sujeitos que não se adequam às condições impostas, são marginalizados e deitados em camas de hospícios ou simplesmente regulamentos sob a forma de doentes que precisam ser “ressocializados” (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. 201). Aqui, então, não existirá uma prostituta ou prostituto que se ligue à formação de sujeito de direito, antes, estes estão conforme a uma sujeição ao Direito, pelo que, segundo Bourdieu (2002, p. 31), já se fixaram formas e normas de condutas sexuais dentro de determinadas instituições e estas formas morais do uso do sexo não abrangem os sujeitos em situação de prostituição. O sujeito moderno passa a ser um sujeito jurisdicionado e juridicizado. Jurisdicionado, porque passa por um modelo que lhe diz em que condições deve-se agir, contratar, enfim situações e circunstâncias que lhe garantem uma vida dentro dos contextos jurídicos e consequentemente dentro do Direito. Juridicizado, porque para ser íntegro em sua individualidade, só o será caso esteja inserto no que se impõem como condições mínimas para o exercício de seus direitos. A qualidade de sujeito de direito é definida pelo que se lhe reconhece e atribui nas normas codificadas. Porém, não pode ser uma juridicização objetiva, pois deve ser vinculada à vontade prática da razão do indivíduo (GOYARD-FABRE, 1999, p. 348). A concepção kantiana utilizada para deslegitimar a atividade de prostituição argumenta que o sujeito seria utilizado como meio para a consecução de um fim (e não um fim em si mesmo), um objeto do prazer sexual de outro. Errônea, todavia, na medida em que todo e qualquer sujeito é ferramenta de utilização do outro para consecução de um fim deste outro. A alienação de mão-de-obra e serviços não Direito ao corpo e sexualidade •

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é outra coisa senão a grande utilização do outro como meio para as finalidades do mundo capitalista (MARX, 1996a, p. 296). A liberdade das atividades é o fim a ser perseguido pelos indivíduos. Isto não importa uma objetivação do seu ser, mas antes ser ele próprio um fim em si mesmo. Compreende-se assim que o sujeito de direito se defina, no plano do universal, como um fim e que, portador de valor, não possa ser tratado como meio. Sua humanidade dá a medida da normatividade ideal sem a qual a própria ideia de seus direitos não teria sentido. Equivale a dizer que o homem como fim tem a liberdade como tarefa. Nessas condições, formalismo jurídico e humanismo vão de par na exata medida em que a exigência humanista que culmina na autonomia é inerente ao próprio conceito de direito (GOYARD-FABRE, 1999, p. 348).

A constituição de um sujeito moderno não passa pela identidade que o próprio indivíduo tem de si mesmo, mas pelo que ele é levado a identificar como seu. É necessário que este sujeito saia da obscuridade que lhe é lançada para fazer parte de um locus legítimo, que o sujeito saia de sua exterioridade para centrar-se para dentro de si: normas e normalidades estabelecidas necessitam encontrar-se permanentemente presentes em sua constituição (BIRMAN, 1999, p. 156). Não por outra razão, mu-lheres prostitutas devem se reerguer das trevas para adentrar a luz das santidades de mãe e de pudica. É porque a vagina continua a ser alicerçada em grau sacro que a prostituição continua estigmatizada às mulheres e assim “tanto na consciência comum quanto no Direito, que literalmente exclui que as mulheres possam escolher dedicar-se à prostituição como trabalho” (BOURDIEU, 2002, p. 20). A mulher, ao longo dos anos, passou por diversas formas de repressão e só há pouco tempo conseguiu ter seus direitos constituídos. No entanto, alguns destes direitos não são respeitados pois são limitadas certas atividades, colocados empecilhos de ordem moral e vigiadas as condutas. As sociedades ocidentais exaltam como vitórias os direitos conquistados pelas mulheres (diretos ao voto, à saúde, à liberdade de associação, participação política, a construir sua relação conjugal e família, entre outros), como forma de emancipação, não obstante, se firmam sempre em um discurso de prestação desses direitos, mas não de exercício pelas próprias mulheres. O discurso de que direitos às mulheres devem ser prestados pelas instituições é mascarado pelo discurso de que estes são por elas 82

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mesmas exercidos é, aliás, uma forma de ligar determinadas atividades ao protecionismo e paternalismo exercidos na sociedade. Assim a prostituição feminina é ligada às classes mais baixas e mais necessitadas, dado que aparece um discurso de que mulheres bem instruídas, bem criadas e “de família” não adentrariam nesta atividade. Discurso utilizado para que a própria classe dominante possa determinar condutas e formas de agir frente aos dominados. No caso feminino, a prostituta é mulher até o momento em que se lhe descobrem prostituta. No caso masculino, o homem é homem até o momento em que se lhe descobrem prostituto e lhe impõem um homossexualismo. Até certo ponto, é-se um sujeito de direito (à medida que sua identidade reconhecida pelos outros é homem ou mulher), após a descoberta da anormalidade, passa-se a sujeito ao Direito. Tudo isto porque homens devem estar presentes dentro de um contexto que os liguem a dominação, ao seu exercício de homem na sociedade. Homem de bem, que sustenta sua família, força de trabalho no âmbito público (fora de casa), não dependente de qualquer outra forma de ganhos econômicos a não ser do seu próprio empenho laboral. Ao sair desta moldura social que lhe inflige os padrões do seu comportamento, o sujeito não é mais de direito, passando a ser reconhecido dentro de identidades socialmente depreciadas (vagabundo, vadio, preguiçoso, etc.) e que sofrem sanções morais. Isto porque é homem, seu sexo dita sua vida. Sobre tal pano de fundo, pode-se compreender a importância assumida pelo sexo como foco de disputa política. É que ele se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida. De um lado, faz parte das disciplinas do corpo: adestramento, intensificação e distribuição das forças, ajustamento e economia das energias. Do outro, o sexo pertence-se à regulação das populações, por todos os efeitos globais que induz. [...] O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie. Servimo-nos dele como matriz das disciplinas e como princípio das regulações (FOUCAULT, 1988, p. 136-137).

Por representar o novo e, assim, livrar os sujeitos (prostitua e cliente) dos grilhões das instâncias de poder, a possibilidade de viver sua sexualidade plenamente, a prostituta representa o lúdico, o prazer ou qualquer outro personagem no imaginário do cliente. Não é necessariamente o sexo que está em jogo neste ponto, mas os locais, em geral, a que a prostituição encontra seu locus. Festas, folias, danças, enfim, todo o aspecto de diversão ao qual a prostituição se encontra Direito ao corpo e sexualidade •

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ligada impõe aos agentes que praticam a atividade características que não se coadunam com a forma de viver na socie-dade capitalista. Como diz Marx (1996b, p. 161), uma sociedade que exige do seu vivente o máximo de trabalho e de produção para outro que não si mesmo, e que não tem valor quando sai de si. As relações que envolvem a prostituição tratam-se de uma busca específica, por algo que é controlado e regulamentado por instâncias de poder, ou seja, a prostituta (aqui homem ou mulher) é um sujeito específico, com características específicas, que exerce um ofício específico. Não é um ofício que qualquer um possa exercer, é um serviço como outro qualquer, mas não é um serviço qualquer e tem peculiaridades como qualquer outra relação em que se preste serviços. A prostituição se faz em si mesma, algo impensável em um mundo moderno capitalista de alienação de trabalho. Em busca da conceituação da atividade de prostituição para que se chegue a um resultado perfeito quando da aplicação em um caso concreto, os juristas tentam fechar conceitos objetivos em seus manuais para que isto facilite a absorção por parte da comunidade acadêmica. Com o intuito de deslegitimar a atividade (e este é um dos principais objetivos quando se fala em prostituição), os manualistas vão buscar formas de definir a prostituição, sempre ligando suas condições a degradação do ser humano, principalmente da mulher. Sob esse ponto de vista é que Mirabette (2001, p. 458), comentando a antiga redação do art. 228 do Código Penal Brasileiro, afirma que a prostituição se fabrica não necessariamente dentro de um fim lucrativo, entregando-se a prostituta por desregramentos sociais inerentes a si ou por pura ninfomania. Delmanto (1988, p. 411) coloca a prostituição como o mero comércio habitual do corpo (sem levar em conta suas complexidades), e cita que tanto homens quanto mulheres podem se incluir neste conceito. Damásio de Jesus (1993, p. 145) traz à tona as mesmas características sobre habitualidade e comércio sexual para indiscriminado número de pessoas, para caracterizar a prostituição. Magalhães Noronha (1998, p. 210-211) assinala que a prostituição não se sobrepõe às marcas de definição pontual e sim de uma forma de atividade que deveria ser vista pelo Estado e este deveria atuar sobre a prostituição conforme suas formas de agir. Destarte, haveria três formas de um Estado, a depender do seu ideal de “bem comum” para a sociedade, tratar a prostituição. A primeira forma é a de regulamentação, na qual o Estado busca regulamentar a atividade, aplicando locais, formas e normas específicas para o exercício. A segunda seria a do abolicionismo, ou seja, não haveria intervenção 84

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e, consequentemente, nem vedação, nem regulamentação especial. A última forma é a de vedação, como ocorre, por exemplo, em alguns Estados nacionais de orientação religiosa. Salienta ainda que a prostituição é algo baixo e vil, motivado por uma lascívia doentia da mulher e que a prostituição deve ser assimilada tanto a mulheres que usem o sexo para lascívia própria quanto para aquelas que usam o sexo como meio de sustento. Em caminho diverso, Greco (2009, p. 571) diverge do pensamento acima e afirma que a prostituição apenas se dará quando houver o concreto comércio do corpo, devendo haver uma relação de compra e venda, não importando prostituição àquela pessoa que se entrega sexualmente a título gratuito a qualquer pessoa (seja por transtorno psicológico ou por mera satisfação sexual). Não importará, neste caso, se há ou não o contato físico: o cliente deseja a satisfação de prazeres de natureza sexual, ainda que durante o serviço não haja qualquer contato físico, as características da prostituição estarão lá presentes. São poucos os autores de manuais jurídicos que se debruçam sobre os temas da prostituição. Analisam apenas os artigos referentes à atividade (cujos dispositivos sofreram recente alteração em suas redações) de forma objetiva, sem aprofundar as condutas subjetivas, dos sujeitos ativos e passivos, voltando ao velho positivismo de que premissas maiores e premissas menores resultariam na cominação de determinada pena. Na redação original do Código Penal Brasileiro, havia um capítulo que tratava da exploração de mulheres (neste termo) em relação à prostituição. Era o Capítulo V, que listava os crimes “do Lenocínio e do Tráfico de Mulheres”, fundado sob um aspecto de gênero na formulação dos dispositivos que se continham nesse capítulo. Por conta disso, vinculou-se por muito tempo a prostituição a uma prática puramente feminina, sendo obscurecida esta prática por homens. Buscando um discurso mais abrangente e que fosse mais igualitário de direitos, o termo “mulheres” foi retirado e inserido o termo “pessoas”, com o objetivo de incluir além das mulheres, homens e crianças (GRECO, 2009, p. 561). A prostituição não é crime no Brasil, mesmo isso observado, as condutas tipificadas no Código Penal Brasileiro que a ela se ligam (para exploração, favorecimento ou tráfico) são colocadas em dois níveis de fundamentação que dão suporte ao crime. O primeiro é um suporte moralista, que afirma que a prostituição é algo ruim e mau para a sociedade. O segundo alicerce é paternalista, e adentra na seara de um direito individual do próprio sujeito. Não obstante a proibição ser dirigida a quem explore a atividade, esta proteção é estabelecida de Direito ao corpo e sexualidade •

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forma a proteger (paradoxalmente) a prostituta de ter o que ela deseja, sob um argumento de que é o Estado que sabe o que é melhor para o sujeito, ou seja, o melhor é não ser prostituta (ESTELLITA, 2007, p. 337). Os artigos que se seguem nessa seara não se diferem muito das redações anteriores e apenas têm por finalidade aumentar a abrangência em relação às potenciais vítimas de exploração da prostituição. Inclusive alguns dos atos praticados coadunam-se àquelas novas formas de comércio sexual que hoje se observam na sociedade. Por exemplo, o artigo 228 do Código Penal Brasileiro, que antes estava sob a rubrica de “Favorecimento da prostituição”, hoje se inscreve sob o sinal “Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual”. Ou seja, o comércio sexual no Código Penal Brasileiro teve sua concepção alargada, conforme as tendências do comércio sexual atual. O artigo 229 do mesmo diploma legal, que se traduz na proibição de manter uma “casa de prostituição”, parte do raciocínio de que se ser prostituta já é ruim, os lugares frequentados e que prestam auxílio para o exercício da atividade não seriam diferentes. O mesmo ocorre com o crime de rufianismo, disposto no artigo 230 do Código Penal Brasileiro, ou seja, o fundamento paternalista acomete a norma já que impede a prostituta de ter um “gerente” ou alguma pessoa que ela mesma possa contratar para agenciar na escolha de clientes mais confiáveis. As ideias impostas não são declaradas, por óbvio, mas o intuito é demover o sujeito da ideia de participar da atividade sob o duplo argumento de que: i) a prostituição é ruim (moralismo) e; ii) proibir alguém de ter lucro com ela é uma forma de impedir que alguém se torne prostituta, para o seu próprio bem (paternalismo) (ESTELLITA, 2007, p. 338-339). O artigo 231 do mesmo diploma legal também sofreu uma espécie de alargamento e de um estreitamento, ao mesmo tempo. É porque o que antes era assinado como “Tráfico de mulheres”, passou a se chamar “Tráfico internacional de pessoas” e com a última redação, dada em 2009, estabeleceu-se como “Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual” (NUCCI, 2009, p. 160). No caso do artigo 231 do Código Penal Brasileiro, por exemplo, o conceito de tráfico fica determinado pelo mero movimento de pessoas para exploração sexual de qualquer natureza, ou seja, a vontade do agente passivo (ou melhor, daquele que é tido como sujeito passivo pelos estudiosos do crime e movimentos sociais) não é considerada e não pode se movimentar entre Estados nacionais, não podendo, desta maneira, exercer sua atividade no lugar que lhe aprouver. O que se pode destacar é que existem, então, dois discursos presentes neste aspecto: um declarado, que é a proteção do indivíduo e sua dignidade, 86

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e outro real, que é criar uma característica imoral da prostituição e não do tráfico em si (GRUPO DAVIDA, 2005, p. 165). Percebe-se que os artigos em comento não se vinculam a extirpar a prostituição ou o comércio sexual de qualquer natureza, mas antes tentam, sob um discurso de proteção da dignidade humana, se valer pela punição daqueles que incitam ou exploram estas atividades. O problema se dá, todavia, na formação da vitimização dos agentes passivos abarcados pelos artigos que hoje estão alicerçados dentro deste capítulo V do Código Penal Brasileiro, que hoje toma o nome de “Do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual”. É que por causa desta redação, muitas vezes as pessoas inseridas no contexto são desvinculadas de qualquer personalidade ou identidade jurídicas para que o artigo tenha uma espécie de força do “fazer valer”, da efetivação da norma. Carvalho (2010, p. 11) argumenta que não se deve restringir a tutela penal dos crimes contra a dignidade sexual à liberdade sexual e analisa que as possibilidades de proteção frente às explorações da prostituição são legitimadas afirmando que o fator que se protege, o bem jurídico tutelado é a integridade moral, este um bem indisponível, porquanto, no entender do autor, a exploração da prostituição acabe por reduzir o ser humano a coisas, mero objeto de satisfação sexual de outra pessoa que será usado em benefício daquele que explora. O discurso de proteção das pessoas perante um mundo perigoso abre uma espécie de preleção para todas as formas de repressão contra o que determinados seguimentos da sociedade consideram imoral e inaceitável. É este “pânico moral” que enseja maneiras de pensar e de se lutar contra o crime, no qual os direitos das pessoas que seriam protegidas pela norma, são reprimidos. Por tal característica, os crimes que se ligam à prostituição, por exemplo, não são aparelhos de proteção da prostituta, antes são instrumentos de repressão da própria prostituição. É que esta atividade, apesar das normas ampliadas conforme foi analisado acima, ainda é colocada em relação à sexualidade feminina. Usa-se um discurso epistemológico desvirtuado para adequar a um fim específico, no caso aqui analisado, a sexualidade feminina e a imoralidade presente na prostituição (GRUPO DAVIDA, 2005, p. 161). Desta maneira, o Código Penal Brasileiro aloca no mesmo espaço de sujeição indivíduos de diferentes identidades autorreconhecidas ou não. É que nesse sentido um menor de idade levado contra sua vontade para o exterior e uma mulher ou homem civilmente capazes que queiram sair do Brasil, por exemplo, para se exercer prostituição em outro país (por melhores condições financeiras, ou outro aspecto Direito ao corpo e sexualidade •

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que lhes seja importante) são ambos considerados traficados, criando uma confusão de sujeitos de direito. Não por outra razão a antiga assinatura do Título VI, do Código Penal Brasileiro, era a de Dos Crimes contra os Costumes, antes de se tornar Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, alcunha que ainda remete a determinadas formas controladas de prática de atos sexuais. A ideia antiga era a tradução de uma expressão que não direcionava os crimes para as vítimas, mas para uma ideia de moralidade imposta. No próprio Código Penal Brasileiro, antes das novéis reformas, retirou-se do texto legal a expressão “mulher honesta” em crimes que tratam sobre sexualidade, sendo adicionados os termos “pessoa” ou “alguém”. É o caso, por exemplo, do antigo artigo 215, do código citado, em que se tratava do crime de posse sexual mediante fraude e na qual o agente passivo era a somente a “mulher honesta”, com as mudanças (sob aqueles discursos de igualdade de direitos), o artigo passa a ser rubricado como “violência sexual mediante fraude”, e a expressão “mulher honesta” foi suprimida e deu lugar à expressão “alguém” (NUCCI, 2009, p. 89). Em que pese esse tipo de legislação abrangente, as formas de proteção sempre se ligam à feminilidade do sujeito, que passa a ser passivo tanto na condição de vítima jurídica quanto do ato sexual em si. Uma mudança no texto legal, apesar disso, não se transfere na mesma medida para a vida na sociedade. O poder simbólico, a força simbólica já existente, acaba por contaminar o habitus das relações sociais e define que estas relações não sofram mudanças. Sendo assim, não basta garantir um direito para que este seja exercido, uma vez que se assimilou um laço de inferioridade ou de estigmatização (BOURDIEU, 2002, p. 46). Logo, garantir direitos para os sujeitos em prostituição e dentro do comércio sexual, não é garantir o exercício destes direitos, uma vez que socialmente a atividade ainda será vista como impura e sob as amarras sociais que lhes foram impostas. O que leva, apesar de tudo, a cair por terra o argumento antiprostituição de que, uma vez legalizada ou regulamentada, esta atividade acabe por ser válvula de escape para todas as mulheres em situação de pobreza, causando um risco sem tamanho à moralidade social (intentada sob um discurso de desvalorização da mulher). Isto mostra que não é só dentro do Direito Penal que a prostituição se faz presente. A atividade implica relação estreita com outras áreas do Direito e pode, por força do discurso sobre o seu exercício, acarretar perda de direitos civis, inclusive. É corrente afirmar na doutrina que a prostituição é pretexto suficiente para o rompimento do 88

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laço conjugal e destituição do poder familiar. De acordo com o artigo 1.638, inciso III, do Código Civil, perde por ato judicial o pai ou mãe que praticar atos contrários à moral e os bons costumes e, como exemplo, dentro dos manuais, é comum destituir o poder familiar na situação em que os filhos que vivem “em companhia de mãe prostituta” (DINIZ, 2006, p. 542), sob o argumento de que os menores estariam sob más influências da atividade imoral da mãe. Ocorre que, no mesmo artigo, no inciso II, o abandono do menor também faz perder o poder familiar por parte de pais e mães. Ou seja, o próprio discurso inscrito sobre a prostituição acaba paradoxal, no momento em que uma mãe exerce prostituição justamente para não deixar seus filhos ao abandono. Para fazer um contraponto com o Direito do Trabalho e o dispositivo analisado acima, deve-se lembrar que a prostituição é ocupação legitimada inserta nas regulamentações administrativas sobre o trabalho (esta atividade é inscrita dentro da Classificação Brasileira de Ocupações). Chega a ter um tom jocoso o fato de uma ocupação legitimada impor fim a uma relação familiar, não pelo fato de ser ilegal ou ilícita, mas pelo mero fato de não ser aceita moral e socialmente. Isto é, impõe-se por força de discursos de verdade uma forma de sujeitar as condutas do indivíduo a um direito construído por práticas judiciárias que punem e responsabilizam não pela conduta praticada, mas pelo que se é identificado (o locus do sujeito) dentro do corpo social (FOUCAULT, 2002, p. 11). Apesar de estar alienando o corpo, não o faz a prostituta puramente para o outro, o cliente, e sim o faz como uma prestação de um serviço ao qual ambos decidem o que está em jogo. Homens ou mulheres em situação de prostituição abrem contratos verbais (e no Brasil as formas contratuais são atípicas, conforme os artigos 421 a 426 do Código Civil Brasileiro), ao que a função social deste contrato se dá na medida da proteção, liberdade e dignidade dos sujeitos inseridos na relação contratual, matérias de amparo dentro dos direitos sociais estipulados na Constituição Federal. Em todo aspecto, entretanto, a figura de direito fica relegada a segundo plano em nome de um interesse maior ditado por um ente abstrato, o Estado (não importando suas diretrizes ideológicas). No Estado de Direito eficaz, não basta que haja as meras inserções de direitos sociais, elogiados como formas de conquistas, mas também passa por estabelecimento de limites para este poder que o Estado exerce. Não basta ditar na Constituição que o indivíduo tenha seus direitos respeitados, mas que estes direitos também respeitem as particularidades de cada sujeito, admitindo suas diferenças sem as colocar em diferenças duais que acabam por impor uma espécie de Direito ao corpo e sexualidade •

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ordem constitucional do Bem versus o Mal – do que é para o bem do povo contra o que é mau para o povo. O princípio básico do Estado de direito é o da eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos com a consequente garantia de direitos dos indivíduos perante esses poderes. No entanto, antes da afirmação deste princípio básico coloca-se sempre a marca da fundação. A história da fundação das comunidades humanas organizadas é muitas vezes uma história trágica assente num código binário de contradições, antinomias e exclusões (CANOTILHO, 1999, p. 17).

É importante, então, que princípios, liberdades e aspectos de direitos individuais sejam cuidadosamente sopesados e sempre levando em consideração que esta é uma valoração estranha à Constituição, observado o fato de que esta não atribui valor objetivo às liberdades, sendo vista como algo subjetivo e que deve ser protegido para o cidadão e não protegido contra as ações deste. É o Estado que deve cobrir os direitos fundamentais e sociais garantidos em sua Constituição para os indivíduos, não o contrário (RIGOPOULOU, 2007, p. 349). Então, assimilando o fato de que existe sob um discurso, a prostituição no caso brasileiro, toma ares novos, com organizações que tentam colocar a discussão da atividade dentro de um campo de cidadania, para além de um discurso penal e/ou criminal, alcançando patamares de discussão no campo cível e trabalhista. Celebrada como conquista (apesar de todas as restrições) a inclusão, em 2002, no âmbito administrativo, da atividade na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), sob o número de código 5198-05, inserido dentro da família denominada “prestador de serviço”. Dentro desta categoria encontram-se outras denominações, são elas: “profissional do sexo”, “garota de programa”, “garoto de programa”, “meretriz”, “messalina”, “michê”, “mulher da vida”, “prostituta” e “trabalhador do sexo”. Também são descritas as condições de exercício e as formas de minimizar a vulnerabilidade no ofício.4 É um passo importante, porém muito aquém daquilo que as organizações de prostituição requerem para exercer o ofício. Uma reivindicação é a de que a categoria seja denominada primariamente de “prostituta” no lugar de “profissionais do sexo”. Entende-se, neste caso, Ocupação, segundo a conceituação da própria CBO, é a agregação de empregos ou situações de trabalho similares quanto às atividades realizadas. A CBO tem site especial que pode ser acessado no endereço: . 4

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que o termo tem como consequência o mascaramento da identidade de quem atua na prostituição, apesar de ser expressão mais genérica e abranger toda e qualquer pessoa na situação de prostituição. A ideia, no entanto, é confrontar diretamente o preconceito e a discriminação, pois o termo utilizado atua como se o trabalho profissional fosse algo aceito socialmente, coisa que não é verdade (TEIXEIRA RODRIGUES, 2009, p. 69). Não é apenas no direito material e administrativo que se analisa a prostituição. Também no âmbito legislativo há outra tentativa de tomar partido frente ao assunto da atividade. O Projeto de Lei n.º 98/2003, de autoria do Deputado Federal Fernando Gabeira (à época pertencente ao PT-RJ), no qual se observa uma forma livre de exercício da e sobre a prostituição. Logo em sua ementa, o PL n.º 98/2003 já se mostra totalmente alterador do Código Penal Brasileiro quanto aos artigos que tratam da exploração da prostituição. A matéria trata da “exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual e suprime os arts. 228, 229 e 231 do Código Penal”. Assimila-se, desta maneira, uma forma diferente do trato com a prostituição, não mais relegando ao paradoxal adjetivo de “mal necessário”, mas antes tenta apreciar uma nova rede de implicações para os sujeitos em prostituição (BRASIL, 2003a). O PL n.º 98/2003 está em tramitação por longos oito anos e já passou por mudanças de relatores e inclusive por completas reformulações no seu texto, culminando com um novo Projeto de Lei, o PL n.º 2.169/2003, de autoria do deputado federal Máximo Damasceno (PRONA-SP), que em um arroubo reacionário viria a tipificar o crime de contratação do serviço sexual, incluindo-o na mesma pena quem aceitasse a oferta de prestação de serviço de natureza sexual, sabendo que o serviço está sujeito a remuneração (BRASIL, 2003b). Não se tem ainda nenhuma notícia concreta da análise do PL n.º 98/2003 e a última ação legislativa que se tem ciência é a de que a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados arquivou o Projeto no dia 31 de janeiro de 2011, nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.5 No ano de 2012, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), na mesma esteira de uma regulamentação para a atividade propõe o Projeto de Lei n.º 4211/2012, alcunhada de Lei Gabriela Leite.6 Este A tramitação do procedimento de análise do Projeto de Lei n.º 98/2003 está disponível na internet e pode ser consultada em: , acesso em: 9 jul. 2013. 6 Gabriela Leite é ex-prostituta, fundadora da ONG Davida (a qual é referência em estudos de gênero, sexualidade e prostituição), a lei leva o nome em sua homenagem. 5

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projeto, a exemplo do citado anteriormente, também encontra enorme resistência por parte de setores mais conservadores dentro da própria Câmara dos Deputados. Estancando, ou mesmo rejeitando prima facie, o texto.7 Apesar dos esforços legislativos, ressalta-se que uma base legal de apoio à prostituição não é simplesmente colocar as novas regras para que sejam assimiladas e respeitadas dentro de uma ordem estabelecida. Legalidade e ilegalidade estão ligadas ao poder do Estado (no caso burguês contemporâneo) sobre os outros aspectos (inclusive do Direito). Uma lei de regulamentação em nada mudaria a situação da prostituição se não fizesse emancipar junto à ordem existente que a sociedade também mude o seu foco de pensamento. Sem recusar a base econômica e social de uma situação, é preciso acrescentar que a alteração de uma instituição autoritária só é possível quando a convicção, tanto de dominantes como de dominados, de que a ordem vigente é a única possível estiver abalada. Entretanto, esta transformação só se pode dar por sujeitos que se “emanciparam intelectual e emocionalmente do poder da ordem existente” (LUKÁCS, 2003, p. 467). Necessariamente, colocar abaixo os dispositivos que regem a exploração da prostituição é observá-la, como formada por sujeitos de direito, que se exigem e se instalam em uma nova infraestrutura, estabelecendo critérios mais objetivos e menos segregacionistas para o trato da atividade. Excluir a exploração é excluir a prostituição da sociedade como “mal necessário” (útil, porém imoral) e colocá-la dentro de situações legítimas, nas quais o sujeito não é mais colocado em situações de análises policialescas, mas nas relações de prestação de serviço cíveis e trabalhistas, fundamentado em trocas sociais e econômicas (TEIXEIRA RODRIGUES, 2009, p. 72). Para entender esta relação contratual dentro da prostituição, é necessário observar uma gama infindável de outras pequenas relações que irão se produzindo no estabelecimento do preço quanto decorrer do programa. A situação de mercado é aspecto importante na hora da negociação, isto é, a diversidade do preço está na medida da diferença de valor entre as mulheres. Fixam-se os preços consideradas as condições do cliente (aspectos financeiros), a da própria prostituta (aspectos estéticos e capacidade sexual) e as condições de mercado (concorrência no local). O valor pago ao final é sempre o estipulado e, às vezes, um valor a mais, indicando a satisfação do cliente com o A tramitação do procedimento de análise e do Projeto de Lei n.º 4211/2012 está disponível na internet e pode ser consultada em: . 7

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serviço sexual prestado (bem como a satisfação do cliente em conseguir um valor abaixo daquele esperado, por indicar seu poder de sedução). Até a violência pode estar agrupada na negociação anterior ao programa (claro que dentro de certos limites), neste caso violência que dá satisfação ao cliente, nos termos do pagamento à prostituta. O não pagamento após o serviço prestado é que se revela como uma forma de violência, uma vez que “não é o fato de manterem relações sexuais que as desvaloriza, mas o de não receberem pelo serviço” (RUSSO, 2007, p. 504). O que difere, então, a prostituição de outros atos jurídicos que existem na sociedade é que estes atos derivam-se de um contrato, o qual não foi firmado na sociedade quanto às relações sexuais. Segundo Pachukanis (1977, p. 149) os conceitos de sujeito e de vontade, em um contexto jurídico, tomaram rumos de abstrações mortas. É que toda relação acaba tomando um corpo jurídico, quer seja moralmente ou não aceita e são sempre mediadas por um aspecto material: o dinheiro. Prostituição, assim, é um fenômeno que cria uma dupla sujeição e transforma o seu agente tanto em um sujeito de direito quanto em um sujeito ao Direito. A prostituição se fixa em relações totalmente contraditórias, por um lado, é um serviço desejado pelo seu agente pela presença do dinheiro, e desvalorizado pela sociedade justamente porque impõe dinheiro em uma relação de algo sagrado, ou melhor, extremamente regulamentado e administrado (o sexo). O elemento econômico é o responsável pela relação entre os agentes, ou seja, o dinheiro é o único elemento capaz de garantir esta troca de uma relação que é jurídica de fato, mas não de direito. É que por meio do dinheiro constroem-se as identidades. O sujeito de direito forma-se, nesse caso, pela presença do dinheiro. Direitos e deveres são garantidos ou negados a partir da presença do dinheiro. Tanto é que presentes8 são pouco aceitos como pagamento pelas prostitutas, pelo fato de não constituírem o papel de criação de identidade: cliente é quem paga, ao “pagar”9 com um presente, o cliente assina uma construção de afeto, algo que não é bem-vindo entre as mulheres (RUSSO, 2007, p. 510). Para além do mercado, a identidade. Deve-se entender aqui o presente como um objeto fixo dado pelo cliente: uma bolsa, joias, enfim, qualquer coisa diferente do dinheiro. Seja para a própria prostituta ou para um filho ou outro dependente. 9 As aspas indicam que para os clientes é possível o pagamento com um objeto fixo, um presente, uma vez que isto valoriza o sujeito mulher que está por trás do sujeito prostituta, enquanto para elas o que demonstra respeito é o pagamento em dinheiro, que “dá mais liberdade” para o exercício de suas cidadanias (RUSSO, 2007, p. 510). 8

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Na constituição de um sujeito de direito “prostituta”, o dinheiro atua como bem simbólico maior. Importante lembrar que as relações de gênero são também relações negociadas, porque eivadas de trocas simbólicas entre os indivíduos (independentemente de orientação sexual). Contudo, com a intervenção monetária disposta na relação própria da prostituição, a hostilidade que se faz presente aos indivíduos inseridos nesse contexto, pois não adequados aos preceitos da burguesia (impregnados por preceitos cristãos), são deixadas de lado. O dinheiro é uma espécie de produto que se produz em si mesmo e passa de fim a mediador das relações (MARX, 2010, p. 60). Na prostituição, por exemplo, e assim como em qualquer atividade moralmente aceita, o que se busca é uma mediação pelo dinheiro. Não é a busca final pelo dinheiro – mas uma forma de ter o dinheiro (para sua utilização posterior) a partir de uma relação. No mundo que se vê envolto em tecnologias, a prostituição vê seu “errado” ainda na própria prostituta, contudo com um aspecto de culpabilidade da existência do sujeito prostituta pela existência do sujeito que compra o serviço da prostituta. No mercado que hoje vige na sociedade, um mercado controlado pelo consumo e não mais pela produção, conforme analisava Marx (1996b, p. 262) ao criticar o processo produtivo à prostituição do trabalhador, o cliente termina inserindo-se em um locus, que também é importante, uma vez que o mercado sexual se baseia nas suas ansiedades e demandas. Todavia, uma relação conjugal/matrimonial também pode configurar dominação masculina. Em uma economia de “bens simbólicos” orientada para uma acumulação de “capital simbólico” (a honra), esta economia transforma um elemento bruto (a mulher) em objetos simbólicos passíveis de trocas formais, ou seja, “em signos de comunicação que são, indissociavelmente, instrumentos de dominação” (BOURDIEU, 2002, p. 49). É que a mulher, nesse caso, passa a ser instrumento de troca com a sociedade, sendo para o homem acúmulo do seu “capital social e simbólico” frente aos outros (a sociedade como um todo). Assim, a sua mulher tem que ser casta, pura, renegada ao lar e subserviente, ou seja, o valor da mulher está relacionado a sua reputação e castidade (BOURDIEU, 2002, p. 50). Se o sujeito, segundo Marx (1996a, p. 276), tem sua “força de trabalho” determinada por um elemento histórico e moral, a esposa, mutatis mutandi, explica Rubin (1993, p. 5), “encontra-se entre as necessidades de um trabalhador, que destina as mulheres e não os homens a realizar tarefas domésticas e define o capitalismo como herdeiro de uma longa tradição na qual as mulheres não herdam, não lideram e não falam com deus”. Isto é, é acumulação para o esposo. 94

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A mediação por dinheiro, então, não se dá apenas em relações comerciais, mas também nas relações privadas. Do sexo pago ao divórcio, na própria manutenção do matrimônio ou de uma relação conjunta, o elemento econômico se faz presente e é aqui que reside o ponto crucial da determinação de uma relação comercial de sexo. É que as relações matrimoniais existem dentro de acumulações de capital simbólico (nas quais o dinheiro é um elemento), enquanto na prostituição o elemento dinheiro é fundamental. O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidade do dinheiro são minhas – [de] seu possuidor – qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro (MARX, 2004, p. 159).

Na sociedade capitalista moderna, é a mediação pelo dinheiro que cria toda e qualquer relação jurídica de trabalho a relações civis e privadas que se exerçam entre duas pessoas. É neste ponto que o uso do corpo, como expressão do comércio sexual para colocá-lo dentro do mercado de trabalho, toma seus contornos de dilema.

3.3 A prostituição e os dilemas de um direito sobre o corpo A economia dos corpos parte de princípios do que se pode chamar de princípios sexológicos, que recaem em ignorâncias da própria existência humana. As incertezas e tabus impostos pelo discurso sobre e do sexo acabam por alvitrar ainda mais as necessidades de controle sobre os corpos. É justamente porque sexo e corpo andam tão juntos e tão administrados que o indivíduo se torna ignorante (especialmente no que diz respeito a sexo) (LEACH, 1983, p. 123). Consequentemente, o sexo do corpo se coloca sempre em considerações apriorísticas: na sociedade moderna o corpo é naturalizado e não pode ser desconstruído, ou melhor, não pode ser discutido e criticado. Pois o que é dado, o que é imposto é pelo sujeito adotado, naturalizado e alicerçado em bases arbitrárias que não fazem o sujeito se olhar como formado e transformado, mas como natural. Mauss (2003, p. 408) corrobora tal premissa, afirmando que tudo em cada sujeito é imposto. Direito ao corpo e sexualidade •

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É, portanto, dentro deste discurso de formação de corpos e sujeito que, quando se fala em prostituição, relaciona-se com uma atividade puramente feminina e de vulnerabilidade das condições que levam uma mulher a praticar esta atividade. O mercado do sexo, contudo, não pode ser generalizado (ou especificado), pois cada atividade tem suas peculiaridades. Não é apenas o sexo que está em jogo, mas as sexualidades, as formas de sentir prazer, é o sexo como recreação que se faz presente neste mercado. Uma dançarina de strip-tease não vai, necessariamente, praticar sexo após sua performance com quem se preste a pagar pelo serviço, visto que sua especificidade no mercado sexual não é o ato sexual e sim um desempenho de uma atividade que se liga ao sexo. Do mesmo modo, se pode pensar que outras atividades as quais se utilizam do corpo, apesar de serem pensadas como unitárias, se revestem de peculiaridades. Um jogador de futebol, por exemplo, é comercializado a depender de sua função no esporte (a posição em que desempenha dentro do campo durante a partida) ou no papel que desempenhará no clube em atividades extra campo (marketing para as torcidas, sem precisar, necessariamente, entrar em campo para participar de uma partida). O mesmo acontece, segundo relato de Wacquant (2000, p. 129), na medida do uso do corpo e do sujeito do lutador de boxe. Do mesmo jeito que uma prostituta se oferece nas ruas, por dinheiro, para demonstrar suas capacidades de performances sexuais do seu corpo feminino, o lutador de boxe está vendendo a granel capacidade de seu corpo masculino de suportar as contendas dentro do ringue. As especificidades no boxe também se encontram presentes, pois há lutadores que recebem dinheiro para ser “pontes” para que outros lutadores cheguem a patamares mais altos. Caso exista a figura de um cafetão ou especulador do comércio sexual (o que é considerado crime), não muito este se difere do empresário ou agente do boxeador e do jogador de futebol. Da mesma forma que o cafetão não vai praticar o ato sexual, também o empresário não entra no ringue ou no campo de futebol (e retira o grosso dos ganhos percebidos pelos seus agenciados). A consciência que o boxeador tem da exploração é expressa através de três idiomas aparentados: o da prostituição, o da escravidão e o da criação animal. O primeiro aproxima a dupla lutador-empresário daquela formada pela prostituta e pelo cafetão; o segundo retrata o ringue como uma plantation e os empresários como senhores de escravos e feitores contemporâneos; o terceiro sugere que os boxea-

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dores são tratados como cachorros, porcos, garanhões e outros animais domésticos de valor comercial. Todos os três tropos, simultaneamente, enunciam e denunciam a comercialização imoral, ou antes desumana, de corpos vivos e ativos (WACQUANT, 2000, p. 129).

O tráfico também pode ser colocado como assunto neste aspecto. É que da mesma forma que uma prostituta é objeto de destaque por ser traficada ou mandada a outros lugares diferentes da sua origem, para um boxeador ou jogador de futebol há legitimidade para, mesmo contra sua vontade, ser negociado (termo legítimo para traficado). Ou seja, homens também são traficados – “mas como escravos, prostitutos, estrelas do atletismo, servos ou com qualquer outro estatuto social catastrófico” (RUBIN, 1993, p. 10), com ou sem o aspecto da vontade avaliado. No caso das mulheres, estas também são transacionadas como “escravas, servas, prostitutas, também simplesmente como mulheres” (RUBIN, 1993, p. 10). É esta superproteção do pudor feminino que designa as atividades desempenhadas por mulheres serem restritas ao âmbito doméstico, privado. Deste modo, por exemplo, o comércio sexual no qual as próprias mulheres exploram junto a estrangeiros dentro do território local encerram estes sujeitos em uma situação de tráfico sui generis, uma vez que não há o deslocamento da prostituta, mas do estrangeiro. Este turismo sexual, aliás, pode se inserir também na mera busca de parceiros sexuais da cidade ou local visitado, mesmo sem a intermediação do dinheiro (mas a compra pelo elemento econômico facilita a “conquista”) (GRUDO DAVIDA, 2005, p. 165). Estas conotações de tráfico sem especificá-las determinadamente, restringem um direito fundamental previsto na própria Constituição (o direito de ir e vir). Se o jogador de futebol, por exemplo, sonha com o mercado na Europa, pelas garantias de melhores e maiores ganhos, este aspecto na movimentação de uma prostituta não é assegurado. O direito ao próprio corpo é desrespeitado, tanto na medida do atleta que não tem a vontade de participar de determinado torneio ou clube alienígena, quanto na medida da prostituta que pretende ir vender suas performances sexuais em outros estados (brasileiros ou internacionais). Na dinâmica dos corpos e sujeitos, as mulheres tomam a medida de sua condição de ser mulher, diferente do homem que precisa estar inserido dentro de espécies de sub-classes (negro, pobre, etc.) (PISCITELLI, 2004, p. 46). O comércio do corpo em si não é uma atividade que nasce com o capitalismo, mas que existe anteriormente a este. A maior parte Direito ao corpo e sexualidade •

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das atividades consagradas nasce como venda do corpo e de suas habilidades para o desempenho de funções: de médicos e o cuidado com a saúde ou dos advogados e a defesa de interesses. A prostituição, como comércio do corpo, também é anterior ao capitalismo. Mas é justamente neste modo de produção que se torna um mercado econômico, assim como as outras atividades. O “homem transformou a si mesmo numa mercadoria” e usa sua própria vida e seu próprio corpo, na medida de suas capacidades e possibilidades “como um capital a ser investido com lucro” (FROMM, 1965, p. 82). Em uma concepção marxista Lukács (2003, p. 223) explica que aquilo tido como racionalização das relações não passa de uma objetivação destas relações e das propriedades físicas do homem. Isto imprime sua estrutura em toda a consciência do homem e tudo aparece como uma “coisa” a ser vendida ou possuída pelo homem, neste caso não importa se esta coisa é concreta (força física) ou abstrata (intelecto), o que importa é que estas “coisas” são vistas como objetos no mundo exterior. Ainda mais porque não existe nenhuma forma natural de relação humana, nem qualquer possibilidade de o sujeito estipular para si mesmo propriedades que se lhe aderem. É que no mundo capitalista, tudo tem um valor. O resultado disto é a estrutura da sociedade em contínua exploração do corpo do sujeito, gerando condições imediatas de exploração que se diferem apenas quanto à localização e tempo da exploração. A servidão econômica do sujeito o faz entrar no campo do jogo das relações induzindo-se a ter sempre sua força mediada por um elemento econômico (salário, pagamento, etc.) que mostra, antes de qualquer coisa, todos os sujeitos serem trabalhadores e que este, antes de pertencer àquele que compra o trabalho (como padrão ou como serviço prestado), pertence ao capital (MARX, 1996b, p. 201). A liberdade para o exercício de direitos sobre o próprio corpo só pode ser analisada sob uma perspectiva de total liberdade, ou seja, o sujeito precisa ser senhor de si e estar fora das amarras construídas pelas instituições que o molda. No caso da prostituição, é difícil enxergar o contexto de separação dos grilhões do poder, quando, à medida que ao sujeito em prostituição não é concedido a ter o direito sobre o próprio corpo, por entrar em contradição com normas morais impostas, este acaba sendo duplamente estigmatizado e é observado apenas como um grupo homogêneo, como se todo e qualquer sujeito que procure exercer a atividade seja vinculado à pobreza ou por ter necessidade de tal. Como se a busca por um trabalho fosse uma busca por puro gozo. O corpo é uma espécie de veículo (o único veículo, em verdade) que 98

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pode garantir a sobrevivência do sujeito e sempre há um preço a pagar por ele, seja daquele que o aliena, seja daquele que compra. Entretanto, não é verdade que apenas mulheres (sujeitos) em situação de pobreza usem o corpo no mercado sexual e estejam exercendo prostituição. De repente, abria-se diante de mim um mundo completamente desconhecido. Um mundo classista, elitista e corrupto, onde não existe nem respeito nem dignidade; onde um bando de escolhidos, poderosos por seu dinheiro e por conhecer a vida de outros poderosos, podem fazer, na vida real, perguntas que para o resto dos mortais são apenas uma fantasia onanista. [...] Seu testemunho acabou me convencendo de que tudo aquilo era verdade, porque os comentários de um empresário sevilhano ou de um narcotraficante galego, que não se conheciam, eram exatamente os mesmos ao avaliar a habilidade [...] ou o domínio do “anal” de uma conhecida apresentadora e atriz latino-americana residente na Espanha (SALAS, 2007, p. 144).

O que se deve apreender quando do estudo de um sujeito que usa o corpo em situação de prostituição não é uma unicidade de identidades, porém, uma heterogeneidade de experiências vividas. Antes de ser prostituta ou prostituto, o sujeito existe como sujeito que usa suas habilidades como outro sujeito que tem outras determinadas habilidades. Como dito alhures, o sujeito só é reconhecido em situação de prostituição quando tem seu corpo descoberto pelos estigmas sociais. Como, todavia, a prostituição está regulada dentro de cauções institucionais ou dentro de aval político, produzido dentro das instâncias e das relações de poder, ela se constrói com o corpo fora dos padrões disciplinares. Pode até ser que um sujeito consiga se construir fora destes padrões de subjetivação e corporificação, mas enfrentará os efeitos de discursos de verdade (ARAÚJO, 2001, p. 121). No capitalismo, estas fixações fazem nascer naturalizações que incorporam-se no discurso dos próprios sujeitos e formam uma teia complexa de argumentos que fazem das próprias características, motivo de vergonha. Por este vocabulário assimilado, exime-se toda e qualquer culpa do meio e coloca-se a culpa da vergonha em si mesmo, como se seu corpo fosse necessário para qualquer atividade, menos para aquela que exerce. Pois, caso a necessidade não fosse tão premente, não haveria um “porque” de assumir-se em uma condição tão degradante. Logo, se houvesse dinheiro, se houvessem condições próprias de sustento sem os alarmantes usos do corpo, mediante possibilidade de violência simbólica (e consequentemente física), se Direito ao corpo e sexualidade •

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houvesse possibilidade mais acessível de ganho de capital intelectual para exercício de outras atividades, certamente o sujeito não levaria seu corpo para um campo tão cheio de estigmas e possibilidades de exploração. É isto o que Wacquant (2000, p. 135) analisa para afirmar a entrada de homens de classe pobre da sociedade norteamericana no mundo do boxe.10 O corpo deve ser cuidado, pois é necessário o uso do próprio corpo para uma vida que seja útil e sem inconvenientes. Até certo ponto, longe de afirmações antirreligiosas sobre restrições à prostituição, a atividade é restrita e não querida pelo fato de isto trazer problemas de saúde para a população. A sífilis moderna, que agora atende pelo nome de AIDS, além de outras doenças sexualmente transmissíveis, são alvos de imenso discurso médico que impõe um “discurso prestimoso cedo aprendido, frequentemente repetido, e regularmente meditado. O logos médico é desses, ditando a cada instante o bom regime da vida” (FOUCAULT, 1985, p. 107). Como se o sujeito em prostituição fosse o causador das doenças e único portador das moléstias sexuais, seu corpo não é considerado, ou seja, o corpo não é visto, mas é percebido, fazendo que seja sempre o hospedeiro do mal. Como se não houvesse a possibilidade de infecção partindo do cliente. Os elementos do meio são percebidos como portadores de efeitos positivos ou negativos para a saúde; entre o indivíduo e o que o envolve, supõe-se toda uma trama de interferências que fazem que tal disposição, tal acontecimento, tal mudança nas coisas, irão induzir efeitos mórbidos no corpo; e que, inversamente, tal constituição frágil do corpo será favorecida ou desfavorecida por tal circunstância. Problematização constante e detalhada do meio; valorização diferencial desse circundante em relação ao corpo e fragilização do corpo em relação àquilo que o circunda (FOUCAULT, 1985, p. 107).

Os prazeres sexuais são, portanto, marcados pela diligência para com o corpo e sua saúde. Então, somente em determinados regimes é possível manter relações sexuais. O corpo é totalmente envolvido em uma relação sexual e não apenas o corpo, corporificado concreto, mas também o são as relações de sentimento engendradas durante o ato (prazer, gozo, etc.). Por isso, algumas pessoas só conseguem ancorar suas prestações sexuais com uma prostituta mediante uma espécie de código de conduta; é um corpo tentando se valer de outro corpo Contudo, poderia muito bem ser aplicado para domésticas, motoristas de ônibus, motoboys e prostitutas. 10

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na medida das relações de intercâmbio (e aqui não necessariamente precisa haver prestação de pagamento). É o próprio corpo, concreta e abstratamente, que ditará o seu perfil de reações a outros corpos. O corpo deve, então, estar apto em tempo e espaço para a prática do ato sexual, não conforme as instituições preparam para tal, mas antes e “de certa forma, é o corpo que faz a lei para o corpo” (FOUCAULT, 1985, p. 136). Entretanto, como visto acima, a patologização do corpo recai justamente na sua própria formação: é independente aos discursos de verdade, mas dependente dos discursos de verdade (FOUCAULT, 2001, p. 381) Logo, receber pagamento para algo extremamente regulado é, portanto, fugir de regras e colocar-se diante de perigos e riscos que devem ser sempre evitados. É o risco de contágio ou de doenças maléficas que elevam um discurso que não aceita a prostituição como prática na sociedade. De fato, há um risco de contá-gio de doenças, de ambas as partes envolvidas no negócio, mas também há riscos de padecer de moléstias aquele que se utiliza do álcool, do cigarro (inclusive para aqueles funcionários que fazem as “provas” em testes de qualidade) ou drogas ilícitas. Mesmo utilizando-se sozinho de outros prazeres, (como os citados álcool, cigarro e drogas ilícitas), o corpo está sendo prejudicado e o risco se dá pela mera utilização. No caso da prostituição, risco apenas há caso um dos sujeitos esteja contaminado (prostituta ou cliente). Se partirmos da concepção de que é o trabalho que cria o sujeito e é o trabalho que transforma o corpo do sujeito, é este corpo que se opõe à natureza e se faz dentro de determinadas características. Mediante infinitas e infindáveis sessões de maquiagem, idas à academia e produções estéticas, que “ele [o sujeito] desenvolve as potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu próprio domínio” (MARX, 1996a, p. 297). Ou seja, o trabalhador do mercado sexual transforma seu organismo e apropria-se de capacidades para produzir sua identidade dentro de um novo ser corporal a partir daquele antigo. É a ideia do self made man/woman aplicado aos trabalhadores do sexo. Como as relações e atos sexuais foram instaurados para se manter dentro do âmbito doméstico, a publicidade necessária do campo de negócios no capitalismo, marca a prostituição como um negócio de ameaça econômica à família, que se tornou uma espécie de união monopolizadora definida por um conjunto de bens (propriedades, nome, etc.) que a une e a divide ao mesmo tempo. Levando a oposição a seu limite, em benefício da clareza da demonstração, podemos assim opor a lógica das Direito ao corpo e sexualidade • 101

relações sexuais mercantis, que tem um preço de mercado explícito e são sancionadas pelas trocas monetárias. As mulheres domésticas, que não tem utilidade material nem preço (tabu do cálculo e do crédito), são excluídas da circulação mercantil (exclusividade) e objetos sujeitos de sentimento; por oposição, as mulheres ditas venais (as prostitutas) tem um preço de mercado explícito, fundado na moeda e no cálculo, não sendo nem objetos nem sujeitos de sentimento, vendem seu corpo como objeto (BOURDIEU, 1996, p. 175).

O corpo colocado à venda no mercado sexual não é diferente daqueles corpos que se põem à venda e projetam no seu produto o seu ser. Homens e mulheres são destituídos de sua própria corporeidade e de suas capacidades e colocados em um local em que as suas qualidades são misturadas e invertidas, na qual qualquer coisa pode ser magicamente transformada em qualquer coisa, mais especificamente, um objeto pode ser transformado em dinheiro e vice-versa. Pois o dinheiro é o bem supremo e consequentemente seu dono também o é (MARX, 2004, p. 159). O sexo é apenas mais uma das habilidades colocadas à disposição nesse vasto mundo de possibilidades na qual o corpo encarcera, como em uma jaula, as características do sujeito. É através desta jaula que o sujeito se faz ver, se faz falar, olhar e ser visto, é dentro deste cárcere marcado por vários discursos que o sujeito se faz em si mesmo, mas não a si mesmo. Em uma eterna atenção de si mesmo, o sujeito deve submeter-se às tais condições para que o seu corpo seja imaculado e resista às intempéries dos suplícios dos quais o corpo é superfície. Aplicado a isto, o trabalho deixa de ser essencial para ser apenas o controle do corpo do sujeito, e qualquer trabalho para além do controle das instâncias do poder não é legítimo. É preciso que o poder político de vigilância e controle se insira dentro da atividade para que a essência do sujeito e a essência de sua atividade possam aparecer como sendo uma essência de trabalho (FOUCAULT, 2002, p. 124). O discurso opera fazendo-se crer que a exploração no modo de produção vigente é algo natural; a crença nesta naturalidade e na competência de empresariamento do corpo e na probabilidade de casos individuais excepcionais (aqueles sujeitos que conseguem “vencer na vida”) criam um equívoco nas relações de exploração e empurram o próprio sujeito a consentir declaradamente com a sua exploração e comercialização (WACQUANT, 2000, p. 140). Apesar de não ser plenamente proibida, a prostituição é delimitada por estigmas sociais. Tendo em vista a formação do sujeito 102 • João Carlos da Cunha Moura

moderno associado aos controles pelo poder e às disciplinas, formas e normas, pode-se entender que em uma sociedade onde as regras morais não interferissem na constituição dos sujeitos de direito, a prostituição poderia ser considerada um exercício de direito sobre o próprio corpo, constituindo-se como uma atividade laboral que pode ser comparada com qualquer outra na qual o corpo é reconhecido como a ferramenta primordial no desempenho, tal qual nas atividades dos esportistas (lutadores de boxe e jogadores de futebol, por exemplo). A prostituição se insere neste mundo às avessas no qual o sexo é inalienável, e na qual a mulher que vende algo seu e inerente a si e perde sua essência como mulher, devendo alienar seu corpo apenas para exposição, alienação legítima; é como o artista que faz sua arte meramente para vendê-la e a perde, devendo alienar sua arte apenas para exposição. Os cafetões do mundo contemporâneo (editores de livros, diretores de galeria de arte, empresários de atletas, etc.), legitimam-se em discursos no qual o próprio dominado colabora, pela necessidade de estar no mercado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise aqui apresentada evidencia como os controles sobre a sexualidade tem por escopo moldar o sujeito, sendo esta a base principal de atuação na formação do sujeito pelo seu corpo. Aqui, encerra-se a análise das premissas maiores mostrando que corpo e sujeito não caminham dissociados. Ao longo do texto evidenciou-se de que forma as relações são mantidas e explicadas de acordo com obras e relações que naturalizam as formas de ser de cada um dos indivíduos inseridos nesta sociedade moderna. Os termos e técnicas utilizadas pelas instâncias de poder e regulamentação dissociam toda e qualquer subjetividade da identidade do indivíduo em qualquer relação que exija deste uma tomada de posição que possa significar, ou ressignificar, uma dada condição. Contra a prostituição é tão premente esta atitude mantenedora de um status quo que ao sujeito nesta condição só restam as alçadas de um Direito machista e paternalista, usurpador dos direitos do sujeito, na medida em que limita e interfere nas suas relações como se estas fossem algo ditado por uma condição certeira e objetiva, partindo de um pressuposto de que o Estado (utilizando o poder que o Direito lhe confere) sabe “o que é melhor”. O sujeito se forma de acordo com dinâmicas imputadas forçosamente em si, assimilando tais condutas e fazendo delas algo natural da vida, sem questionamentos; ao operar dessa maneira, sente que atingirá os melhores índices para sua qualidade de vida, esta estipulada em ganhos materiais. Ao arrepio desta normativa sistematicamente elaborada, a prostituição arregaça as relações instituídas pelo modelo burguês de subjetivismo e relações sociais, abrindo espaço para uma fileira de preocupações da sociedade sobre as formas como ela é exercida, por quem e em que lugares. É com esta maneira objetiva de pensar o mundo que a sociedade estipula normas de conduta baseadas no que se convencionou chamar “moral e bons costumes”, para fundamentar as condutas das pessoas, Direito ao corpo e sexualidade • 105

deixando de ser sujeitos (com e de direitos) e passando a sujeitados (ao próprio Direito). O Estado e suas instâncias tomam suas formas de mantenedores destas relações ao se envolverem de um paternalismo exacerbado para defender a prática desta tal moral e dos tais bons costumes, que estão ancorados no poder/dever da sociedade burguesa de promover o bemestar social mediante providências pré-estabelecidas. O corpo passa a ser desconsiderado como um todo, o sujeito tem seu corpo apenas para o trabalho, que deixou de ser aquela forma de consecução de benefícios para a sua melhor vivência e se torna questão de honra, atribuindo ao labor uma questão para além das formas de interferência na natureza dos objetos e passando a ser algo estritamente vendido para quem tenha condições de comprá-lo. O trabalho, transformado em questão de honra, acaba por se manter dentro destas relações objetivas que não aceitam questionamentos e devem ser exercidos sempre diretamente para outro que faça valer sobre o trabalhador o simbolismo econômico. Destarte, não se tem alternativa a não ser buscar “qualquer coisa” para se garantir dentro das relações sociais na sociedade burguesa e alcançar um futuro melhor para si e os seus. A mulher é colocada no alpendre das maledicências e é reconhecida como sendo a principal acusada de degenerescência da sociedade, causadora de todos os males que envolvam a sexualidade dos sujeitos, uma vez que a esta cabe o dever de se proteger de todos os males e tentações, subsistindo para si apenas o âmbito privado de relações: mãe, criada, enfim, apenas aquelas relações que se inserem em um contexto doméstico, do lar. A prostituição, entretanto, não se insere em nenhum dos contextos deste contrato social firmado pela sociedade moderna, mantendo-se distante da discussão sobre o tema, à medida que esta atividade é vista como sendo utilizada por pessoas que não têm condições mínimas de sobrevivência ou por pura preguiça de trabalhar (como se a prostituição trabalho não fosse). Ao Direito fica apenas uma proteção declarada dos direitos das prostitutas. Declarada porque o Direito (em todos os âmbitos doutrinários e didáticos) apenas descriminaliza a atividade, porém, sem dar garantias de um efetivo exercício a quem escolha atuar dentro do ramo sexual. Interferências, controles e intervenções em por “todos os ramos do Direito demarcam o exercício da prostituição, sob o argumento de tutelar os direitos da pessoa em situação de prostituição. Acontece que tal proteção é apenas uma forma velada e latente de isolamento da atividade. 106 • João Carlos da Cunha Moura

O Estado utiliza o Direito justamente para judicializar e jurisdicionar os sujeitos em situação de prostituição e criar seu discurso paternalista. Por meio do Direito Penal, limita quem pode atuar junto às prostitutas e em que lugares se podem exercer a prostituição, atua como uma espécie de interventor empresarial sui generis, blindando a atividade como se esta fosse uma alternativa a pessoas de pobreza extrema que não têm a quem ou a que recorrer durante a vida. Através do Direito Civil (em sua demanda familiar) inviabiliza-se a possibilidade de sustento dos filhos por meio de uma atividade lícita (visto que a prostituição não é crime no Brasil), uma vez que a atividade é motivo de destituição do poder familiar sobre os filhos. Pelo Direito do Trabalho, há apenas uma pequena inserção da atividade em classificações de mero cunho administrativo, as quais não garantem nenhum tipo de benefício e/ou direito efetivo (ajuizamento de ações, reclamações junto à justiça, recolhimento de impostos, etc.), algo que reflete inclusive no Direito Previdenciário: porquanto falta uma série de recursos dentro da atividade, não há que se pensar em uma aposentadoria ou outros benefícios de ordem de saúde, por exemplo. Vale ressaltar que a velha forma padronizada de compra e venda de sexo não mais se faz presente na prostituição, sendo esta alavancada ao patamar de comércio sexual, exploração de uma espécie de mão-de -obra sexual, mais vinculada à adoração masculina ao corpo feminino, visto principalmente nas formas de publicidade deste tipo de comércio. Entretanto, tal comércio não é consumido apenas por homens, mas também por mulheres. A prostituição agora passa a ser algo acessível a todas as classes sociais e aos gêneros, nas mais diversas zonas das cidades, publicizada em várias formas de mídia, principalmente na internet. Hoje em dia, passa a ser vinculada à libido do sujeito, enfrentamento que não é ponderado pela sociedade, apenas consumido, sem jamais ser reconhecido e sempre escondido de todos e por todos. A prostituição manifesta a forma mais primitiva do sujeito arrebatado pelas sensibilidades sexuais e, dessa forma, parece ser uma forma de libertação. Libertação esta que não é aceita na sociedade de caráter burguês e regida por dogmas que tendem a suprimir qualquer tipo de aspecto volitivo, tanto de quem consome o produto sexual, quanto daquele que vende tal produto. A discussão sobre um exercício de direito sobre o próprio corpo não se limita apenas aos aspectos sexuais aqui estudados, a discussão apresentada pode abrir espaço para o exercício deste direito ser utilizado para enfrentar outros temas que envolvem a participação própria do sujeito nas questões que dizem respeito à formação e utilização do Direito ao corpo e sexualidade • 107

seu “si mesmo”, a exemplo, dentre outros, da “barriga de aluguel”, eutanásia e aborto.

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ANEXOS (Inteiro teor dos Projetos de Lei mencionados no texto, de autoria dos deputados federais Fernando Gabeira, Elimar Máximo Damasceno e Jean Wyllys)

PROJETO DE LEI Nº 98, DE 2003 Apresentado em 19 de fevereiro de 2003 Dispõe sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual e suprime os arts. 228, 229 e 231 do Código Penal. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. É exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual. §1º. O pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual será devido igualmente pelo tempo em que a pessoa permanecer disponível para tais serviços, quer tenha sido solicitada a prestá-los ou não. §2º. O pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual somente poderá ser exigido pela pessoa que os tiver prestado ou que tiver permanecido disponível para os prestar. Art. 2º. Ficam revogados os artigos 228, 229 e 231 do Código Penal. Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data da sua publicação. JUSTIFICAÇÃO Já houve reiteradas tentativas de tornar legalmente lícita a prostituição. Todas estas iniciativas parlamentares compartilham com a presente a mesma inconformidade com a inaceitável hipocrisia com que se considera a questão. Com efeito, a prostituição é uma atividade contemporânea à própria civilização. Embora tenha sido, e continue sendo, reprimida inclusive com violência e estigmatizada, o fato é que a atividade subsiste porque a própria sociedade que a condena a mantém. Não haveria prostituição se não houvesse quem pagasse por ela. Houve, igualmente, várias estratégias para suprimi-la, e do fato de que nenhuma, por mais violenta que tenha sido, tenha logrado êxito, demonstra que o único caminho digno é o de admitir a realidade e lançar as bases para que se reduzam os malefícios resultantes da marginalização a que a atividade está relegada. Com efeito, não fosse a prostituição uma ocupação relegada à marginalidade – não obstante, sob o ponto de vista legal, não se tenha ousado tipificá-la como crime – seria possível uma série de providências, inclusive de ordem sanitária e de política urbana, que preveniriam os seus efeitos indesejáveis. Direito ao corpo e sexualidade • 119

O primeiro passo para isto é admitir que as pessoas que prestam serviços de natureza sexual fazem jus ao pagamento por tais serviços. Esta abordagem inspira-se diretamente no exemplo da Alemanha, que em fins de 2001 aprovou uma lei que torna exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual. Esta lei entrou em vigor em 1º de janeiro de 2002. Como consectário inevitável, a iniciativa germânica também suprimiu do Código Penal Alemão o crime de favorecimento da prostituição – pois se a atividade passa a ser lícita, não há porque penalizar quem a favorece. No caso brasileiro, torna-se também conseqüente suprimir do Código Penal os tipos de favorecimento da prostituição (art. 228), casa de prostituição (art. 229) e do tráfico de mulheres (art. 231), este último porque somente penaliza o tráfico se a finalidade é o de incorporar mulheres que venham a se dedicar à atividade. Fazemos profissão de fé que o Legislativo brasileiro possui maturidade suficiente para debater a matéria de forma isenta, livre de falsos moralismos que, aliás, são grandemente responsáveis pela degradação da vida das pessoas que se dedicam profissionalmente à satisfação das necessidades sexuais alheias. Deputado Fernando Gabeira (PT-RJ)

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PROJETO DE LEI Nº 2169-2003 Apresentação em 02 de outubro de 2003 (Do Sr. Elimar Máximo Damasceno) Acrescenta artigo ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal –, para dispor sobre o crime de contratação de serviços sexuais,e dá outras providências. O Congresso Nacional decreta: Art. 1º. O Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal –, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 231-A: “Contratação de serviço sexual” “Art. 231-A. Pagar ou oferecer pagamento a alguém pela prestação de serviço de natureza sexual:” “Pena – detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses.” “Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem aceita a oferta de prestação de serviço de natureza sexual, sabendo que o serviço está sujeito a remuneração.” Art. 2º. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. JUSTIFICATIVA A proposição que ora apresentamos tem por escopo criminalizar a conduta daquele que paga ou oferece pagamento pela prestação de serviços sexuais, ou seja, daquele que contrata a prostituição. Apesar das recentes discussões ocorridas nesta Casa acerca da legalização da prostituição como profissão, continuamos entendendo que a venda do corpo é algo não tolerado pela sociedade. A integridade sexual é bem indisponível da pessoa humana e, portanto, não pode ser objeto de contrato visando a remuneração. O quadro negativo da prostituição não envolve apenas o sacrifício da integridade pessoal. A atividade é tradicionalmente acompanhada de outras práticas prejudiciais à sociedade, como os crimes de lesões corporais e de tráfico de drogas. A criminalidade da contratação de serviços sexuais tem por fim, também, a proteção das pessoas e o combate à opressão sexual. Recentemente, a Suécia, considerado um dos países mais avançados do mundo, aprovou lei no mesmo sentido da proposição apresenDireito ao corpo e sexualidade • 121

tada. Lá, a proposta do governo surgiu em conjunto com um pacote para reprimir os abusos contra as mulheres, foi apoiada eminentemente por grupos feministas e obteve o beneplácito do Poder Legislativo, em que mais de quarenta por cento dos parlamentares são mulheres. Aspecto de relevo da presente iniciativa é a criminalidade unica da conduta daquele que efetiva ou oferece o pagamento pela prestação dos serviços sexuais, e não da própria prostituta ou prostituto. A nosso ver, não seria justo puni-los, uma vez que eles constituem a parte já oprimida da relação. A necessidade de exercer a prostituição como forma de subsistência é um encargo gerado pelas circunstâncias sociais. Além disso, se houver o desejo de se deixar a atividade, não será necessária a preocupação com as conseqüências de se assumir publicamente o fato de ter sido prostituta. O tipo penal foi construído com o cuidado especial de englobar, de forma ampla, a contratação de serviços sexuais. Assim, pela regra do caput do pretendido art. 231-A, cometerá crime aquele que efetivar ou oferecer o pagamento da realização do serviço. O parágrafo único, por sua vez, incrimina a conduta de quem, mesmo sem acertar qualquer tipo de contrapartida, aceita os serviços de uma prostituta, sabendo que deverá remunerá-los. São essas, em síntese, as razões pelas quais esta Casa deve analisar, com seriedade, a presente iniciativa e, ao final do processo legislativo, aprovar essa medida em defesa da sociedade. Deputado Elimar Máximo Damasceno PRONA-SP

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Projeto de lei 4211/2012 Apresentação em 12 de julho de 2012 Regulamenta a atividade dos profissionais do sexo. LEI GABRIELA LEITE O Congresso Nacional Decreta: Art. 1º - Considera-se profissional do sexo toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração. § 1º É juridicamente exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual a quem os contrata. § 2º A obrigação de prestação de serviço sexual é pessoal e intransferível. Art. 2º - É vedada a prática de exploração sexual. Parágrafo único: São espécies de exploração sexual, além de outras estipuladas em legislação específica : I- apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro; II- o não pagamento pelo serviço sexual contratado; III- forçar alguém a praticar prostituição mediante grave ameaça ou violência. Art. 3º - A/O profissional do sexo pode prestar serviços: I - como trabalhador/a autônomo/a; II - coletivamente em cooperativa. Parágrafo único. A casa de prostituição é permitida desde que nela não se exerce qualquer tipo de exploração sexual. Art. 4º - O Capítulo V da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, passa a vigorar com as seguintes alterações: “Favorecimento da prostituição ou da exploração sexual. Art. 228. Induzir ou atrair alguém à exploração sexual, ou impedir ou dificultar que alguém abandone a exploração sexual ou a prostituição: .........................................................................................” “Casa de exploração sexual Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: ........................................................................................” Direito ao corpo e sexualidade • 123

Rufianismo “Art. 230. Tirar proveito de exploração sexual, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça: .............................................................................................” “Art. 231. Promover a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a ser submetido à exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. ............................................................................................” “Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para ser submetido à exploração sexual: ......................................................................” Art. 5º. O Profissional do sexo terá direito a aposentadoria especial de 25 anos, nos termos do artigo 57 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991. Art. 6º. Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação. Jean Wyllys Deputado Federal PSOL/RJ JUSTIFICATIVA A prostituição é atividade cujo exercício remonta à antiguidade e que, apesar de sofrer exclusão normativa e ser condenada do ponto de vista moral ou dos “bons costumes”, ainda perdura. É de um moralismo superficial causador de injustiças a negação de direitos aos profissionais cuja existência nunca deixou de ser fomentada pela própria sociedade que a condena. Trata-se de contradição causadora de marginalização de segmento numeroso da sociedade. O projeto de lei ora apresentado dialoga com a Lei alemã que regulament as relações jurídicas das prostitutas (Gesetz zur Regelung der Rechtsverhältnisse der Prostituierten - Prostitutionsgesetz - ProstG); com o Projeto de Lei 98/2003 do ex-Deputado Federal Fernando Gabeira, que foi arquivado; com o PL 4244/2004, do ex-Deputado Eduardo Valverde, que saiu de tramitação a pedido do autor; e com reivindicações dos movimentos sociais que lutam por direitos dos profissionais do sexo. O escopo da presente propositura não é estimular o crescimento de profissionais do sexo. Muito pelo contrário, aqui se pretende a redução 124 • João Carlos da Cunha Moura

dos riscos danosos de tal atividade. A proposta caminha no sentido da efetivação da dignidade humana para acabar com uma hipocrisia que priva pessoas de direitos elementares, a exemplo das questões previdenciárias e do acesso à Justiça para garantir o recebimento do pagamento. Dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil figuram o da erradicação da marginalização (art. 3º inciso III da CRFB) e o da promoção do bem de todos (art. 3º, inciso IV). Além disso, são invioláveis, pelo artigo 5º da Carta Magna, a liberdade, a igualdade e a segurança. O atual estágio normativo – Que não reconhece os trabalhadores do sexo como profissionais – padece de inconstitucionalidade, pois gera exclusão social e marginalização de um setor da sociedade que sofre preconceito e é considerado culpado de qualquer violência contra si, além de não ser destinatário de políticas públicas da saúde. O objetivo principal do presente Projeto de Lei não é só desmarginalizar a profissão e, com isso, permitir, aos profissionais do sexo, o acesso à saúde, ao Direito do Trabalho, à segurança pública e, principalmente, à dignidade humana. Mais que isso, a regularização da profissão do sexo constitui instrumento eficaz ao combate à exploração sexual, pois possibilitará a fiscalização em casas de prostituição e o controle do Estado sobre o serviço. Impor a marginalização do segmento da sociedade que lida com o comércio do sexo é permitir que a exploração sexual aconteça, pois atualmente não há distinção entre a prostituição e a exploração sexual, sendo ambos marginalizados e não fiscalizados pelas autoridades competentes. Enfrentar esse mal significa regulamentar a prática de prostituição e tipificar a exploração sexual para que esta sim seja punida e prevenida. Importante frisar que a profissão do sexo difere da exploração sexual conforme texto legal ora apresentado. A exploração sexual se conceitua (1) pela apropriação total ou maior que 50% do rendimento da atividade sexual por terceiro(s); (2) pelo não pagamento do serviço sexual prestado voluntariamente; ou (3) por forçar alguém a se prostituir mediante grave ameaça ou violência. Neste sentido, a exploração sexual é crime e se tipifica independente da maioridade ou da capacidade civil da vítima. Evidente que tal crime será penalizado mais severamente no caso da vítima de exploração sexual ser menor de dezoito anos, absolutamente ou relativamente incapaz, ou ter relação de parentesco com o criminoso. Importante lembrar que o conceito de exploração sexual quando a vítima Direito ao corpo e sexualidade • 125

é menor de dezoito anos é tipificado como crime hediondo tanto pelo Código Penal, nos artigos 214 e 218, quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, dos artigos 240 ao 241-E. Em contrapartida, o exercício da atividade do profissional do sexo deve ser voluntário e diretamente remunerado, podendo ser exercido somente por absolutamente capazes, ou seja, maiores de idade com plenas capacidades mentais. O profissional do sexo é o único que pode se beneficiar dos rendimentos do seu trabalho. Consequentemente, o serviço sexual poderá ser prestado apenas de forma autônoma ou cooperada, ou seja, formas em que os próprios profissionais auferem o lucro da atividade. Como demonstrado, não existe prostituição de crianças e adolescentes. Muito pelo contrário, essa prática se configura como abuso ou exploração sexual de crianças e adolescentes e se tipifica como crime severamente punido pelo Código Penal. Atualmente os trabalhadores do sexo sujeitam-se a condições de trabalho aviltantes, sofrem com o envelhecimento precoce e com a falta de oportunidades da carreira, que cedo termina. Daí a necessidade do direito à Aposentadoria Especial, consoante o artigo 57 da Lei 8.213/1991, com redação dada pela Lei nº 9.032/1995. Para existir coerência com a presente proposição, é necessário que a redação atual do Código Penal, dada pela Lei nº 12.015/2009, seja modificada em alguns de seus artigos. Os artigos 228 e 231 do Código Penal utilizam a expressão “prostituição ou outra forma de exploração sexual” equiparando a prostituição a uma forma de exploração sexual. O projeto de lei em questão visa justamente distinguir esses dois institutos visto o caráter diferenciado entre ambos; o primeiro sendo atividade não criminosa e profissional, e o segundo sendo crime contra d i g n i d a d e sexual da pessoa. Por isso, nos institutos legais, propõe-se a alteração da expressão por “prostituição ou exploração sexual”. Redação atual: “Art. 228. Induzir ou atrair alguém à prostituição ou outra forma de exploração sexual, facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone:” “Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro :” 126 • João Carlos da Cunha Moura

Redação conforme a proposta: “Art. 228. Induzir ou atrair alguém à exploração sexual, ou impedir ou dificultar que alguém abandone a exploração sexual ou a prostituição:” “Art. 231. Promover a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a ser submetido à exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro:” O artigo 229 se refere a crime de “casa de prostituição”. No entanto, o tipo penal menciona a expressão “exploração sexual” e não prostituição. A alteração aqui proposta só alcança o título do artigo, visto que (1) prostituição não é exploração sexual; (2) o crime de “casa de exploração sexual” se tipifica pelo próprio caput atual do artigo 229; e (3) a casa de prostituição não é mais crime tipificado uma vez que a prostituição se torna profissão regulamentada e poderá ser exercida de forma autônoma ou cooperada. Redação atual: “Casa de prostituição Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente:” Redação conforme a proposta: “Casa de exploração sexual Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente:” Este Projeto de Lei é mais um instrumento de combate à exploração sexual tendo em vista o caráter punitivo da prática. As casas de prostituição, onde há prestação de serviço e condições de trabalhos dignas, não são mais punidas, ao contrário das casas de exploração sexual, onde pessoas são obrigadas a prestar serviços sexuais sem remuneração e são tidas não como prestadoras de serviço, logo, sujeitos de direitos, mas como objeto de comércio sexual; essas casas, sim, serão punidas. Além disso, a descriminalização das casas de prostituição (1) obriga a fiscalização, impedindo a corrupção de policiais, que cobram propina em troca de silêncio e de garantia do funcionamento da casa no vácuo da legalidade; e (2) promove melhores condições de trabalho, higiene e segurança. Direito ao corpo e sexualidade • 127

A vedação a casas de prostituição existente no texto legal atual facilita a exploração sexual, a corrupção de agentes da lei e, muitas vezes, faz com que essas casas não se caracterizem como locais de trabalho digno. As casas funcionam de forma clandestina a partir da omissão do Estado, impedindo assim uma rotina de fiscalização, recolhimento de impostos e vigilância sanitária. Por isso, somente deve ser criminalizada a conduta daquele que mantém local de exploração sexual de menores ou não e de pessoas que, por enfermidade ou deficiência, não tenham o necessário discernimento para a prática do ato. O termo “exploração sexual” foi colocado no lugar de “prostituição alheia” no artigo 230 porque o proveito do rendimento de serviços sexuais por terceiro é justamente a essência da exploração sexual. Ao contrário, a prostituição é sempre serviço remunerado diretamente ao prestador. Redação atual: “Art. 230. Tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:” Redação conforme a proposta: “Art. 230. Tirar proveito de exploração sexual, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça:” A “facilitação” da entrada no território nacional ou do deslocamento interno de alguém que nele venha a ser submetido à exploração sexual deve ser criminalizada conforme proposta dos artigos 231 e 231-A. Optou-se pela retirada da expressão “prostituição” porque a facilitação do deslocamento de profissionais do sexo, por si só, não pode ser crime. Muitas vezes a facilitação apresenta-se como auxílio de pessoa que está sujeita, por pressões econômicas e sociais, à prostituição. Nos contextos em que o deslocamento não serve à exploração sexual, a facilitação é ajuda, expressão de solidariedade; sem a qual, a vida de pessoas profissionais do sexo seria ainda pior. Não se pode criminalizar a solidariedade. Por outro lado, não se pode aceitar qualquer facilitação em casos de pessoas sujeitas à exploração sexual, principalmente se há vulnerabilidades especiais expostas nos incisos abaixo transcritos. Redação atual: “Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual:” 128 • João Carlos da Cunha Moura

Redação conforme a proposta: “Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para ser submetido à exploração sexual:” A regulamentação da profissão do sexo e as alterações do Código Penal aqui apresentadas refletem também a preocupação eminente com o tráfico de pessoas, a exploração sexual e o turismo sexual. O Brasil ocupa posição de crescimento econômico e vai sediar dois grandes eventos esportivos que atraem milhões de turistas. A regulamentação da profissão do sexo permitirá alto grau de fiscalização pelas autoridades competentes, além de possibilitar e até mesmo incentivar o Poder Executivo a direcionar políticas públicas para esse segmento da sociedade (como a distribuição de preservativos, mutirões de exames médicos, etc). Todas as modificações apresentadas na propositura em destaque tem os objetivos precisos de: (1) tirar os profissionais do sexo do submundo, trazendo-os para o campo da licitude e garantindo-lhes a dignidade inerente a todos os serem humanos; e (2) tipificar exploração sexual diferindo-a do instituto da prostituição, afim de combater o crime, principalmente contra crianças e adolescentes. O Programa Conjunto das Nações Unidas para o HIV/Aids (UNAIDS) foi convocado pelo PNUD no intuito de elaborar pesquisas sobre as causas da contaminação da AIDS. A Comissão Internacional sobre HIV e a Lei - composta por ex-líderes de Estado e por peritos em termos jurídicos, de direitos humanos e de HIV - baseou a pesquisa em relatos de mais de 1 000 pessoas, de 140 países. O relatório oficial, divulgado em julho de 2012, concluiu que as leis punitivas e as práticas discriminatórias de muitos países prejudicam o progresso contra o HIV. “Por exemplo, as leis e os costumes legalmente tolerados, que falham em proteger mulheres e meninas da violência, aprofundam as desigualdades entre gêneros e aumentam a sua vulnerabilidade ao HIV. Algumas leis de políticas de propriedade intelectual não são consistentes com a lei internacional dos direitos humanos e impedem o acesso a tratamento vital e à prevenção. As leis que criminalizam e desumanizam as populações com maior risco de contágio de HIV - incluindo homens que mantêm relações sexuais com outros homens, trabalhadores do sexo, transexuais e usuários de drogas injetáveis – empurram as pessoas para a clandestinidade, afastandoDireito ao corpo e sexualidade • 129

as de serviços de saúde essenciais, aumentando assim o risco de contágio pelo HIV. As leis que criminalizam a transmissão, a exposição e a não revelação do status de portador do HIV, desencorajam as pessoas a fazerem o teste e a serem tratadas. Mais especificamente: [...] mais de 100 países criminalizam algum aspeto do trabalho dos profissionais do sexo.O ambiente legal em muitos países expõe os trabalhadores do sexo à violência, o que leva à sua exclusão econômica e social. Isso também impede que os mesmos acessem serviços de saúde para o HIV.” A Comissão também recomenda a despenalização de atividades sexuais entre pessoas do mesmo gênero, trabalho sexual e consumo de drogas, permitindo assim que as populações vulneráveis tenham acesso a serviços de saúde e ações de prevenção contra o HIV. Por fim, a lei aqui proposta se intitula “Gabriela Leite” em homenagem a profissional do sexo de mesmo nome, que é militante de Direitos Humanos, mais especificamente dos direitos dos profissionais do sexo, desde o final dos anos 70. Gabriela Leite iniciou sua militância em 1979, quando se indignou com atitudes autoritárias, arbitrárias e violentas por parte do Estado que, através da Polícia de São Paulo, promovia perseguições a travestis e prostitutas. Gabriela Leite participou na criação de vínculo solidário entre os profissionais do sexo, na mobilização política dos mesmos e fundou a ONG “Davida”, que tem como missão o fomento de políticas públicas para o fortalecimento da cidadania das prostitutas; mobilização e a organização da categoria; e a promoção dos seus direitos. A “Davida” criou, por exemplo, a grife DASPU, um projeto autossustentável gerido por prostitutas e que tem por objetivo driblar a dificuldade de financiamento para iniciativas de trabalho alternativo por parte das profissionais do sexo. Jean Wyllys Deputado Federal PSOL/RJ

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