DIREITO AO CORPO, FAMÍLIA E FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO: BREVE ANÁLISE DO ESTATUTO DA FAMÍLIA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

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DIREITO AO CORPO, FAMÍLIA E FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO: BREVE ANÁLISE DO ESTATUTO DA FAMÍLIA À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS Daniel Albuquerque de Abreu Mestrando em Direitos Humanos Universidade Federal de Goiás - UFG Bolsista CAPES RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de analisar a forma única de família reconhecida tanto na redação como no primeiro parecer do Estatuto da Família, Projeto de Lei nº 6.583/2013, defendido pela bancada evangélica da Câmara dos Deputados. De acordo com o PL, família é a união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Pretende discutir as premissas utilizadas pelo Deputado Relator para a caracterização da família: sob a proteção de Deus, cuida-se de uma entidade voltada à heteronormatividade,

ao

patriarcalismo,

às

obrigações

quanto

à

consanguinidade, propriedade e imprescindibilidade da reprodução. O artigo tenciona investigar a existência de relações entre o conceito de família proposto pelo PL, o fundamentalismo religioso cristão no Estado “laico” brasileiro e a liberdade que possuem as mulheres em relação ao seu próprio corpo – à integridade corporal, procriação, livre exercício de sua sexualidade, autonomia e igualdade de direitos em contraposição à maternidade compulsória – sob a luz dos princípios e declarações de direitos humanos. PALAVRAS-CHAVE: Fundamentalismo; família; exclusão; direitos humanos.

INTRODUÇÃO O Brasil encontra-se em momento peculiar quando se fala em direitos humanos. Por um lado, especialistas1 apontam que a composição do

1

Notícias veiculadas em numerosos meios de comunicação, a exemplo do sítio eletrônico da Câmara dos Deputados (disponível em: ; acesso em: 14 maio 2015) e do Deutsche Welle (disponível em: ; acesso em: 14 maio 2015).

Congresso Nacional em 2015 é uma das mais conservadoras desde a pósdemocratização. As bancadas evangélica, ruralista e policial se destacaram nas Eleições de 2014, o que, em certa medida, causou desânimo aos líderes dos movimentos liberais. Por outro lado, o Judiciário vem tomando a frente e, em tantos casos, fazendo frente ao conservadorismo. No ano de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestou favorável à adoção conjunta de uma criança ao casal homoafetivo Toni Reis e David Harrad. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2013, manteve decisão que garantiu, dentro de uma união estável homoafetiva, a adoção unilateral de filha concebida por uma delas por meio de inseminação artificial, para que ambas as companheiras passem a compartilhar a condição de mãe da adotanda. O conceito de família, como se vê, não escapa a esse turbilhão levantado por conservadores e liberais. Um dos grandes exemplos da atualidade, e um dos reflexos da atuação da bancada evangélica no Poder Legislativo, é o Projeto de Lei (PL) nº 6.583/2013 – conhecido como Estatuto da Família –, proposto pelo Deputado Anderson Ferreira (PR-PE), em trâmite na Câmara dos Deputados. Segundo a redação do PL, família deve ser entendida como a união entre homem e mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. A própria definição do conceito exclui (intencionalmente, como veremos) outras configurações familiares, a exemplo das homoafetivas, anaparentais, em mosaico ou endemonistas2. O primeiro parecer desse Projeto de Lei mostra-se ainda mais antiliberal. O documento foi subscrito pelo Deputado Ronaldo Fonseca (PROSDF), que, assim como Anderson Ferreira, é pastor evangélico. Sustenta, em sua redação, que o constituinte delineou apenas três formatos de entidade familiar, inscritos no artigo 226 e parágrafos da Constituição Federal de 19883, 2

Dias (2009) conceitua as uniões homoafetivas são aquelas entre pessoas do mesmo sexo. As famílias anaparentais são caracterizadas pela convivência entre pessoas, não necessariamente parentes, dentro de uma estrutura com propósitos semelhantes entre elas. As famílias mosaico, ainda de acordo com Dias (2009), são formadas por uma pluralidade de vínculos reconstituídos por casais dente os quais um ou ambos são egressos de uniões anteriores, trazendo seus filhos para a nova família, e gerando filhos em comum. As uniões eudemonistas, por fim, têm como característica a busca pela felicidade e realização plena de seus membros, seja por meio da comunhão de afeto recíproco, ou da consideração e respeito mútuos entre os seus componentes, independente do vínculo biológico. É de se notar que nenhuma delas tem por base o casamento ou a união exclusiva entre homem e mulher. 3 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...]

e reproduzidos no artigo 2º do PL, conforme mencionado. E mais: para a configuração de família, e para que ela goze de especial proteção do Estado, é indispensável que a entidade seja formada por indivíduos heteroafetivos que viabilizem a geração conjunta de novos sujeitos. Não são reconhecidas como famílias as uniões homoafetivas, nem mesmo aquelas que não atendam às obrigações e direitos advindos da consanguinidade e parentesco. No mesmo sentido restritivo, a fundamentação do parecer invoca a proteção de Deus. Esse fato deixa claro que, embora Ronaldo Fonseca diga ser laico o Estado brasileiro, estrutura toda a sua argumentação a partir do raciocínio de que a Constituição da República foi fundada sob o manto do divino. Mas resta perceptível que não se trata de qualquer divino: apenas o Deus venerado pelo cristão ocidental4, e cujos valores construíram a sociedade brasileira. O discurso dos parlamentares Anderson Ferreira e Ronaldo Fonseca apresenta traços essencialmente fundamentalistas, na medida em que aproximam a visão estreita de família a valores morais cristãos conservadores. O Estatuto da Família, tal como proposto, legitima uma única percepção de verdade, inimiga do moderno e do respeito às diferenças (VASCONCELLOS, 2008). No presente trabalho, pretendemos analisar a forma única de família reconhecida na redação do primeiro parecer do Estatuto da Família. Ademais, temos como objetivo investigar como a cosmovisão fundamentalista religiosa cristã expressa no PL e em seu primeiro parecer impacta a liberdade que § 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (BRASIL, 1988). 4 Na mesma oportunidade em que afirma que a Constituição Federal de 1988 foi promulgada “sob a proteção de Deus”, o Deputado pede respeito aos valores “da maioria absoluta de religiosos e não religiosos e que construiu nossa sociedade brasileira, bem como todo o ocidente” (BRASIL, 2014a). Em vista dessa afirmação, não há outra interpretação senão a de que quem protege o Estado brasileiro e que o construiu é o Deus cristão, sem que haja espaço para o mesmo respeito e reconhecimento em relação às outras formas de expressão religiosa. Infelizmente tal raciocínio é comungado por membros também do Judiciário. Não podemos nos esquecer do juiz federal da 17ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, Eugenio Rosa de Araújo, quando se manifestou em Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal. Alguns dos argumentos lançados pelo magistrado foram que “cultos afro-brasileiros não constituem religião”; e que as manifestações da umbanda e ao candomblé não contêm traços necessários de uma religião, como um texto base (a exemplo do Corão ou da Bíblia), estrutura hierárquica e um Deus a ser venerado (BRASIL, 2014b). A decisão foi posteriormente reformada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região.

possuem as mulheres em relação ao seu próprio corpo, especialmente quando se pretende condicionar-lhes o direito de constituir família à obrigação da procriação. 1. BREVES DIGRESSÕES SOBRE OS VALORES E SOBRE AS MULHERES NO DECORRER DOS TEMPOS A psicanalista e escritora Regina Navarro Lins realizou um extenso estudo acerca das mudanças culturais e sociais através dos tempos, e deu especial atenção à forma como a mulher foi (des)valorizada desde a préhistória até o mundo contemporâneo. A obra, dividida em dois volumes, trata também das relações e dos papéis que assumiram as mulheres no que tange às suas liberdades. Na pré-história (3000 a.C.), não se tinha conhecimento de qualquer vínculo entre sexo e procriação, nem mesmo do papel exercido pelo homem na geração de uma criança. À mulher pertenciam os poderes que governavam ambas vida e morte por meio de seu corpo. Naquela época, ignorava-se a ideia de submissão da mulher ao homem, assim como a monogamia e o patriarcalismo. Pelo contrário: Lins (2013a) assevera que a única linhagem existente era a materna. Apenas na era do Neolítico foram descobertas as causas da reprodução e a consequente instalação do patriarcado. A mulher, aponta Lins (2013a), teve seu status rebaixado ao de mercadoria, e passível de compra, troca ou venda. Dois papéis foram bem determinados, e um subordinado ao outro. Durante aquele período, a cultura autoritária e violenta do homem acabou por ser vista como normal e adequada. Essa passagem pela história mostra-se importante na medida em que marca o início de duas práticas ainda exercidas no século XXI: o controle da fecundidade da mulher e a divisão sexual das tarefas. O papel feminino, continua Lins (2013a), passou por variações ao longo dos séculos. Há evidências de que no período homérico (séculos XXII a VIII a.C.) o casamento oferecia maior igualdade entre o homem e a mulher, e que estas desfrutavam de respeito e liberdade que às gregas do período clássico (séculos V e IV a.C.) não foram proporcionados. As mulheres atenienses passavam a maior parte de seu tempo em aposentos a elas destinados, e eram impedidas de se juntarem aos maridos à mesa durante as refeições. Lins

(2013a, p. 49) chega a afirmar que “A cidadã grega só possuía dois direitos: gerar descendentes legítimos e o de herança”. Nesses idos, o casamento tinha como finalidade apenas o recebimento do dote, a procriação e o cuidado do lar; o prazer era fornecido pelas hetairas, as cortesãs de alto nível. Importante mencionar também o papel que desenvolveu a mulher romana (146 a.C. a ao século III d.C.). Lins (2013a) ressalta que, se por um lado àquelas mulheres era permitido que saíssem de casa sem pedir permissão aos maridos, ou que levassem uma vida despida de preocupações; por outro, continuavam submissas aos maridos, podendo até mesmo ser chicoteadas ou castigadas. Também nesse contexto histórico, o casamento tinha o alvo principal a geração de novos homens para o exército romano. Em razão de o homem ser considerado superior à mulher, as práticas homossexuais masculinas eram toleradas em Roma, mas não as femininas. Quando falamos das transformações por que passaram a moral e as liberdades femininas pelos tempos, é de extrema importância analisar as influências que o cristianismo exerceu nesse processo. O apóstolo Paulo, um dos pais da Igreja, deixou impressões de que o sexo era “abominável, ‘uma experiência da serpente’, e o casamento ‘um sistema de vida repugnante e poluído’” (LINS, 2013a, p. 125). O caminho para a salvação, de acordo com os textos sagrados, encontra trilhos na abstinência e na repulsa aos prazeres do corpo. Em decorrência da transformação de valores, a moral romana da época sofreu intenso abalo. O alcance da vida eterna exigia, por exemplo, renúncia ao próprio corpo, valorização da virgindade, hostilidade ao aborto e punição à homossexualidade. No que atine às mulheres, o impacto do cristianismo trouxe graves consequências. Além de inferiores aos homens, elas eram vistas como tentadores do sexo oposto, possíveis portões do demônio. Esse ideário foi fortalecido na Idade Média (séculos V a XV), mantido em certa medida na Renascença (séculos XVI e XVIII), e, ainda hoje, na Contemporaneidade, grande ranço dele permanece. O pecado marca presença forte entre os medievais, seguido pela punição. A história registra massacres em nome da fé, a exemplo da Inquisição e da Caça às Bruxas. Mesmo a Reforma Protestante, no século XVI, manteve a submissão das mulheres aos homens, assim como a visão da relação entre ambos estrita ao casamento. “As obrigações dos cônjuges seguiam linhas especificamente

baseadas no sexo de cada um, exigindo-se do marido que desse ‘honra para a esposa, enquanto sexo fraco’, e da esposa que se submetesse ao marido ‘enquanto senhor’” (LINS, 2013a, p.305). No entanto, costumes e valores herdados da sociedade judaico-cristã – alguns deles alinhavados nas linhas pretéritas –, bem como preconceitos e tradições, foram contestados pelos jovens a partir dos anos 1960, através do movimento chamado de contracultura. Manifestações sociais e culturais como a revolução sexual e os movimentos hippie, feminista e gay contribuíram para a luta das mulheres contra a submissão histórica em relação ao homem. Também são conquistas da modernidade uma nova ideia de família, de casamento, de relações sexuais e da atitude da mulher para com o próprio corpo. Lins (2013b, p. 337) ressalta que O movimento feminista da década de 1970, amparado no advento da pílula anticoncepcional, contribuiu para pôr fim à discriminação sexual. As escolas passaram a ser mistas, todas as profissões tornaram-se acessíveis às mulheres [...]. Os papéis sexuais se transformaram profundamente, atenuando a distinção de gênero, trazendo como consequência o fim da guerra entre os sexos. Agora as mulheres podem escolher entre ser ou não mães. O controle da fecundidade da mulher pelo homem e a divisão de tarefas são coisas do passado.

Toda essa digressão histórica se mostra importante na medida em que aponta as mudanças dos valores através dos tempos. A esse respeito, como bem observa Cotrim (2002), o homem age no mundo de acordo com valores hierarquizados, que criam códigos morais. Como as comunidades humanas diferem-se entre si, tanto no tempo como no espaço, os valores são frequentemente distintos de uma comunidade para outra, de sorte que, frequentemente, são originados códigos morais diferentes. Esse é exatamente um dos pontos principais de divergência entre as lutas de direitos humanos e o fundamentalismo religioso, conforme se verá adiante. 2. FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO CRISTÃO, DIREITOS HUMANOS E DIREITO ÀS FAMÍLIAS Discutimos rapidamente como os valores mudam ao longo dos séculos, e o modo que a mulher, de forma mais intensa ou menos intensa, sofreu interdições e limitações: proibiram-lhe o controle de seu corpo, de sua sexualidade e de seu afeto, assim como impuseram-lhe papéis sociais, em especial o da maternidade. O Estatuto da Família é mais uma das tentativas de

se eternizarem valores religiosos fundamentalistas, que vão de encontro com a laicidade do Estado brasileiro e colidem com os princípios de direitos humanos. É necessário, nesse momento, que façamos um estudo dos valores fundamentalistas

cristãos

contemporâneos,

e

pensemos

quais

as

possibilidades de diálogo entre essa espécie de conservadorismo e os princípios e diplomas de direitos humanos. Não se pretende nesse trabalho a realização de um estudo aprofundado das raízes do fundamentalismo religioso, mas apenas apontar algumas de suas principais características. O termo fundamentalismo nasceu nos Estados Unidos, no final do século XIX e início do século XX, momento em que protestantes conservadores insurgiram-se contra os liberais em nome da defesa dos fundamentos da fé e da identidade cristã pretensamente ameaçados. Seu objetivo principal era reconquistar a sociedade estadunidense e o mundo moderno do que entendiam como a invasão do liberalismo. Nos dias de hoje, o alcance do conceito de fundamentalismo foi ampliado e abarca posturas e movimentos os mais variados, em razão de que suas marcas são encontradas em outros contextos e tradições religiosas (VASCONCELLOS, 2008). Uma das características do fundamentalismo cristão é sua relação paradoxal com a modernidade: ao mesmo tempo em que é fruto da modernidade – na medida em que surgiu em ofensiva ao liberalismo moderno protestante –, luta contra a própria modernidade5. Outra marca é sua intensa militância política. Na visão fundamentalista cristã, não basta que o fiel tenha sua crença confiada ao âmbito subjetivo: é necessário que o fiel aja para recuperar a base religiosa da sociedade, por meio da imposição de seus valores morais (VASCONCELLOS, 2008). Ademais, outra particularidade dessa espécie de conservadorismo é a leitura acrítica das Escrituras e a rejeição da hermenêutica. A Bíblia (incluindo suas diversas traduções), de acordo com sua visão, é revelação direta de Deus, motivo pelo qual deve ser lida sem levar em conta a época em que foi escrita e os valores então vigentes. Resulta-se do que já foi dito, e repetidamente reafirmado por Vasconcellos (2008) e Armstrong (2009), que o ponto de vista fundamentalista é imposto por meio da intransigência, tanto no 5

A esse respeito, Vasconcellos (2008, p. 41) afirma que “o fundamentalismo é um filho indesejado e inesperado da Modernidade, que a contesta e por ela se vê rejeitado”.

interior da comunidade religiosa, como fora dela. O ponto de vista a que acabamos de nos referir é nada menos que a verdade única e absoluta a qual creem como balizadora de toda a humanidade. Em vista do exposto acima, podemos perceber que a verdade única que pregam os fundamentalistas cristãos se opõe, em várias medidas, à mudança dos valores e da moral no decorrer da história. Ora, o fundamentalismo se alicerça na crença de que os valores bíblicos devem ser mantidos e seguidos como eram na época em que foram revelados, sem que se leve em consideração a construção histórica por que passou a humanidade ou as ferramentas de que hoje dispomos para denunciar o atropelamento de direitos fundamentais.

Silva

(2007,

p.

39)

assevera,

a

respeito

da

atitude

fundamentalista, que “Trata-se da busca de verdades simples, coerentes, unitárias, imutáveis, universalmente válidas e que excluem os pontos de vista discordantes”. A crença na verdade singular, e que se impõe excluindo outros pontos de vista, parece não se coadunar com o “processo de transformação de mentalidades” a que se refere Lins (2013b, p. 337). O conceito da mulher como subordinada ao homem e destinada à procriação, repassado como valor cristão, vem sendo reverberado pelos fundamentalistas contemporâneos. Tal atitude, a nosso ver, transpira desprezo pelas lutas femininas e pelo valor que possuem seus corpos e sua liberdade. Também deixa transparecer desrespeito à laicidade do Estado, por forçar que os valores de uma suposta maioria cristã sejam sobrepostos às liberdades individuais e de culto insculpidas na Constituição Federal e nos tratados de direitos humanos. Muito vem sendo construído e conquistado a respeito do direito da mulher ao seu corpo. Uma das maiores teóricas e pesquisadoras do feminismo é Judith Butler, cujas obras discutem centralmente a performatividade de gênero, a construção do sexo e a abjeção dos corpos (TIBURI). Cabe ressaltar, antes de mais nada, a crítica de Butler (Apud OLIVEIRA, 2008) à utilização do termo mulher como sujeito do feminismo. Para a filósofa, essa aplicação acarreta a “presunção de uma identidade, com modelos previamente estabelecidos e fixos”. Reafirma que o próprio gênero e suas características variam no curso dos tempos, e são passíveis de variações de acordo com a sociedade em tela (BUTLER Apud OLIVEIRA, 2008). Na mesma toada, Butler

(Apud OLIVEIRA, 2008), ao se referir ao corpo, o aborda como “uma página em branco, a ser preenchida pela história e pela cultura”. O corpo, portanto, é anterior aos significados que lhe são atribuídos. Se, de um lado, o Estatuto da Família venera o papel de procriadora da mulher, atrelado à união com um homem, por outro, Butler apresenta o papel da identidade. Como bem narra Oliveira (2008), a identidade consiste “nas repulsas que são provocadas a partir de criações hegemônicas sobre o sexo, a sexualidade, a raça, enfim, sobre os mais diversos agrupamentos forjados pelo poder, com o objetivo de excluir algumas categorias [...]”. Os gestos de um indivíduo são fruto, na verdade, de criação da cultura, e não oriundos de uma identidade prévia. De forma semelhante, Beauvoir (1988) afirma que ninguém nasce mulher, mas se torna mulher a partir de um processo. Podemos perceber, com base nesse raciocínio, que o entrelaçamento entre ser mulher, a heteroafetividade e a reprodução, como propõe o Estatuto da Família, não se sustenta. A história mostra que o perfil da mulher voltado para a família e cuidados com os filhos foi construído e naturalizado. Na visão de Butler (1999), o mesmo se aplica para o corpo da mulher em relação à maternidade: o corpo materno não é essência da mulher, como se pretende fazer crer. Antes, é uma das consequências da regulamentação da sexualidade feminina6. Aliás, Oliveira (2008) lembra que o discurso de que o corpo da mulher foi feito para a procriação “desconsidera completamente as mulheres que, por exemplo, não possuem o corpo talhado ‘naturalmente’ para a maternidade, como as que têm algum tipo de problema que as impossibilitem de engravidar”. Em vista dessa discussão, observamos que a proposta parlamentar conservadora de restringir o conceito de família à união entre homem e mulher com vistas à procriação, ou mesmo à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, limita o direito subjetivo da mulher de constituir família, na medida em que seu corpo se vê acorrentado ao dever de reproduzir. Nesse esteio, são perceptíveis as influências do fundamentalismo cristão no Estatuto da Família, no que diz respeito ao ideal patriarcalista de geração de 6

No mesmo sentido, Beauvoir, citada por Lins (2013b, p. 286) acredita que as mulheres foram se transformado em “objetos passivos feitos para a procriação e não criadoras ativas de seus próprios destinos”.

descendência. É traço marcante do fundamentalismo a inteligência das Escrituras de forma literal e atemporal, desatrelada do contexto histórico específico sob o qual foram concebidas. A esse respeito, são várias as passagens bíblicas que legitimam a submissão da mulher ao homem e enaltecem a necessidade de reprodução7. Resta indagar se as medidas pretendidas pelo Estatuto da Família vão de encontro ou ao encontro das lutas, princípios e declarações de direitos humanos. Nesse momento, é necessário que entendamos os direitos humanos como um processo histórico da afirmação do valor da dignidade da pessoa humana, nas esferas internacional e nacional, e não como um conceito novo. Um de seus pilares é a modernidade (LAFER, 2006). No mesmo sentido, Luhmann (Apud NEVES, 2005, p. 6) assevera que os direitos humanos relacionam-se com “a abertura da sociedade moderna para o futuro”. A respeito das relações entre fundamentalismo religioso, direitos humanos e liberdades individuais, a ACAT - Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura (2001, p. 7), assim se posiciona: A modernidade, que no final do século XVIII inaugura a era das grandes declarações dos direitos humanos, nascidas na esfera ocidental, mas estendidas para o mundo inteiro (a “Declaração” de 1984, na qual nos baseamos e que foi adotada pela ONU, é “universal”), faz parte do nosso patrimônio. Estamos perfeitamente ligados a ela. Com ela, defendemos a liberdade do homem que integrismos e fundamentalismos negam.

É de se perceber, em vista do exposto, que a visão fundamentalista cristã da verdade única e imutável constitui óbice às lutas e movimentos sociais que visam à transformação da sociedade. Ao longo dos séculos, verdades e valores foram questionados, principalmente em decorrência de lutas sociais, a 7

A Bíblia Sagrada, mais especificamente no livro de Levíticos, trata da purificação da mulher depois do parto (capítulo 12) e das imundícies do homem e da mulher (capítulo 15). Em síntese, afirma que se a mulher conceber uma menina, permanecerá mais tempo imunda do que se tivesse concebido um menino, e, como resultado, precisará de mais tempo para a sua purificação. Também o fluxo menstrual é imundo, de acordo com o mesmo livro bíblico, e tudo o que tocar será contaminado. Em Deuteronômio, capítulo 22, Moisés (a quem se reputa a autoria do livro) é enfático a respeito do valor da virgindade feminina, e da possibilidade de apedrejamento caso a moça não seja virgem ao casar-se. Muito conhecidos também são os textos das cartas de Paulo aos Efésios, capítulo 5, e aos Colossenses, capítulo 3, momento em que determina que as mulheres devem submeter-se aos seus maridos. No que diz repeito à reprodução e às relações sexuais, Deus ordenou no primeiro capítulo de Gênesis que homem e mulher frutificassem e povoassem a terra. Na epístola escrita aos Hebreus, capítulo 13, Paulo assevera que o matrimônio e o leito sem mácula devem ser honrados entre todos, e que Deus julgará os devassos e adúlteros. Esses são apenas alguns exemplos dos valores aplicados à época, e que, se considerados a risca os preceitos fundamentalistas cristãos, deveriam ser aplicados ainda nos dias de hoje.

exemplo da revolução sexual, do advento da pílula anticoncepcional e dos movimentos feminista, hippie e gay. Por esse motivo, é possível que se diga que a modernidade8 proporcionou uma mudança sociocultural. Nesse sentido, a historiadora e escritora feminista Marilyn Yalom, citada por Lins (2013b, p. 334), relaciona o êxito do feminismo às reivindicações9 de igualdade entre homem e mulher. No entender de Fonseca e Santana (2014), o feminismo tem íntimas relações com a “discussão política sobre o corpo assujeitado, objeto de prazer e de uso alheio, submetido às políticas morais ou demográficas de Estado, prisioneiro de uma sexualidade normativa e heterossexual”. Pois bem: aliados às lutas pró-mudança de estruturas segregadoras estão os direitos humanos. Seus princípios, voltados para a modernidade, convergem para o respeito aos direitos alheios e à liberdade, na mesma intensidade em que enaltecem a dignidade humana e a diversidade (PEQUENO, 2010). Nos mesmos termos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 da ONU reconhece a dignidade igual entre todos os membros da família humana; todos portadores de direitos fundados na liberdade, justiça, e paz. Veda todas as espécies de distinções, assim como quaisquer interferências na vida privada, na família, ou no lar do sujeito. O diploma internacional garante também, a cada sujeito, a liberdade de pensamento, consciência e religião. Nessa perspectiva, Douzinas (2009, p. 349) arremata: [...] os direitos humanos possuem a capacidade de produzir novos mundos, ao continuamente empurrar e expandir os limites da sociedade, da identidade e da lei. Eles continuam transferindo suas reivindicações para novos domínios, áreas de atividade e tipos de subjetividade (jurídica); eles constroem incessantemente novos significados e valores, além de conferir dignidade e proteção a novos sujeitos, situações e pessoas.

Ressaltamos, nesse esteio, que a visão das famílias merece outros horizontes. Se antes a entidade familiar era encarada como “um complexo de indivíduos hierarquicamente ordenados”, a partir da segunda metade do século XX houve uma mudança das perspectivas: instaurou-se “um tipo de relação familiar que privilegiava a satisfação afetiva conjunta dos cônjuges, pelas aspirações de intimidade e reciprocidade no seio familiar [...]” (RIOS, 2007, p. 8

De acordo com Lins (2013b, p. 286), “O século XX é o marco do início da participação efetiva das mulheres na sociedade”. 9 Dentre esses embates, destacam-se as reivindicações de identidade contrárias à ordem heteronormativa e à maternidade compulsória (FONSECA; SANTANA, 2014).

110-113). A família contemporânea não se presta mais para a realização de “determinado fins sociais e estatais, estabelecidos dentro de uma e determinada cosmovisão estatal” (RIOS, 2007, p. 113). Em vista dessa nova dinâmica e novos valores pulsantes, Rios (2007) evidencia que já foram superados os antigos dogmas que vinculam a obrigatoriedade de procriação à constituição de uma entidade familiar. No contrafluxo da contemporaneidade e dos direitos humanos encontram-se os fundamentalistas cristãos e suas ferramentas, que encontram expressão no Estatuto da Família. Conforme exposto, a dinâmica desse Projeto de Lei prevê que a entidade familiar deve ser formada necessariamente por homens e mulheres heteroafetivos, com o agravante de que devem se atentar à pretensa função social da união, qual seja a de formar descendentes. Dessa forma, às mulheres que não entenderem pela maternidade, ou às que são biologicamente impedidas de gerar filhos, ou mesmo às homoafetivas, para enumerar algumas, são absolutamente negados o direito de formação familiar e, por conseguinte, a especial proteção do Estado. O posicionamento acima retratado é tomado em razão de valores que obedecem a uma única verdade inerrante. Uma das manifestações de sua intransigência, discutida no presente trabalho, é o tolhimento do direito das mulheres ao próprio corpo e à sua sexualidade, em obediência a algumas passagens bíblicas e à moral que vigia entre o povo hebreu; outra é o estreitamente entre Estado e cosmovisão cristã, em ultraje ao princípio da laicidade estatal. O padrão de entidade familiar proposto pelo Estatuto da Família, e apoiado pela bancada evangélica do Congresso Nacional, desafia uma das bandeiras hasteadas pelos direitos humanos: “o princípio de libertação da opressão e da dominação” (DOUZINAS, 2007, p. 19). Observamos que os valores e preconceitos defendidos no Projeto de Lei – que consolidam um código moral próprio e perpetuam um sistema que conjuga opressão e exclusão – não dialogam com os ideais de liberdade e igualdade defendidos pelos direitos humanos. Os direitos ao corpo e à expressão da sexualidade feminina são caros à modernidade, e fazem parte do avanço cultural e social da luta das mulheres, sobretudo de sua valorização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Regina Navarro Lins (2013b, p. 338) pondera que “repetir o que entendemos como verdade absoluta não é a solução”. Realmente, parece-nos que as linhas do Estatuto da Família não são a saída para os conflitos que giram em torno dessa entidade social. A persecução e imposição da verdade absoluta, protegida por Deus, em nada redundam no âmbito público a não ser exclusão e aprisionamento. Um projeto de lei que objetive não apenas a manutenção do patriarcalismo, mas que condicione o reconhecimento da entidade familiar à maternidade compulsória coopera diretamente para a perpetuação da vigilância da identidade, sexualidade e do corpo femininos. Em sentido contrário, a afirmação dos direitos humanos é pautada na valorização e no respeito; é história de luta que muda de acordo com contextos e circunstâncias, e que “continua na ordem do dia para quem tem a crença no valor da dignidade humana” (LAFER, 2006, p. 14).

REFERÊNCIAS AÇÃO

DOS

CRISTÃOS

PELA

ABOLIÇÃO

DA

TORTURA

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