Direito ao nome africano, preconceito e afirmação de identidade cultural no Brasil

May 24, 2017 | Autor: Roxana Borges | Categoria: Personality Rights, Naming Rights, direito ao nome, registro de nome africano
Share Embed


Descrição do Produto

Direito ao nome africano, preconceito e afirmação da identidade cultural no

Brasil

Roxana Cardoso Brasileiro Borges

Doutora em Direito Civil pela Pontificia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bacharela em Direito pela UniversidadeCatólica do Salvador. Professora Associada de Direito Civil da Universidade Federal da Bahia. Professora Adjuntada Universidade do Estado da Bahia e do Centro Universitário Estácio de Sá. E-mail: .

Resumo: Este trabalho tem como objeto o direito ao nome, numa perspectiva de direito de personalidade, e sua tutela como modo de afirmação étnica e/ou cultural de brasileiros. Dentreos brasileiros, os des-

cendentes dos africanos trazidos escravizados para o nosso País não revelam,atualmente,em seus

nomes, sua origem étnica. Em decorrência de seu tratamento como mercadoria, da imposição da cultura portuguesa e da inexatidão dos registros de seu comércio, os vínculos étnicos se perderam.Mas há um

momentoatual de afirmaçãode suas identidadese de sua presençana coletividadenacionale, neste

contexto, brasileiros, afrodescendentes ou não, tem buscado incorporar,em seus registros de nascimento atuais, nomes de origem africana. No entanto, inúmeras são as denúncias de recusa por parte dos registradores. A partir de uma análise do ordenamentojurídico brasileiro, em especial do Código Civil e da Lei de Registros Públicos, demonstra-se que a recusa ao registro de nomes africanos é ilícita, reveladora de preconceito e geradora de dano moral. Defende-se a possibilidade jurídica de atribuição de nome de

origem africana à criança afrodescendentea ser registrada; assim como a adoção de nomes africanos por afrodescendentes já registrados com nomes portugueses que desejem que sua identificação civil expresse sua identidade étnica, ainda que longínqua; resguardando-seessa possibilidade também a quem não seja afrodescendente e deseje adotar um nome que homenageie um dos povos formadores de nossa identidade nacional. Palavras-chave: Direito ao nome. Direito à identidade. Nome étnico. Sumário: Introdução —I Escravidão, etnias e identidade dos africanos no Brasil —2 A população brasileira,

os afrodescendentes brasileiros e a ausência de nomes africanos nos registros públicos no Brasil 3 Direito ao nome como direito de personalidade —Ressignificando o direito ao nome para além do direito

registral —4 0 registro do nascimento e o direito a um nome de origem africana Direito de todos, não só dos afrodescendentes —5 0 direito de alteração posterior do nome civil para adoção de nome africano — Considerações finais —Referências

Introdução Brasileiros podem adotar nomes africanos? A recusa ao registro do nome africano, pelo registrador, é lícita? Ou viola direitos de personalidade, gerando dano moral? Estas são as questões que devem ser investigadas neste trabalho.

R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

35

ROXANA CARDOSO BRASILEIRO

BORGES

identificação do ser O nome da pessoa natural é um dos maiores fatores de

dos direitos de per_ humano na coletividade, ao lado da imagem. No âmbito da teoria e registral sonalidade, o direito ao nome se afasta de um tratamento patrimonialista para tutelar a dignidade da pessoa humana no aspecto da identidade. Esta perspectiva do direito ao nome enquanto tutela da identidade é percebida, atualmente, na busca que vários sujeitos empreendempela alteração de seus nomes

a fim de os adequaremaos seus modosde ser e às suas histórias de vida. Assim

ocorre, por exemplo, em decorrência de laços familiares socioafetivos e em relação prática às pessoas transgêneros, embora com muita resistência na teoria jurídica, na dos tribunais e na atuação dos cartóriosde registroscivis no Brasil. Mas, além desses e de outroscasos, duas situações destacam-se neste tema da proteção do nome como direitoà identidadeno Brasil: as questões dos indígenas e dos afrodescendentes.Quantoaos indígenas,é notóriae injustificávela resistência dos cartórios civis em registrarseus nascimentoscom os nomes da escolha de seus pais, quando refletem sua origem étnica. Quantoaos afrodescendentes, suas origens étnicas, nações, línguas e tradições tanto se diluíramao serem trazidos, séculos atrás, como escravos para o Brasil que, atualmente, quase não se encontram nomes de origem africana em seus registros, tendo, praticamentetodos, nomes e sobreno-

mes portugueses.

Ocorre que tanto os indígenas quanto os afrodescendentes elaboram movimen-

tos de afirmação atuai na coletividadebrasileirae, sem deixar de ser brasileiros,

buscam na incorporação de nomes étnicos a manifestação de outras facetas de sua identidade. Por outro lado, os cartórios de registros civis obstaculizam estes projetos identitários com argumentoscomo a regrada imutabilidadedo nome e a obrigatorie-

dade de os registros serem feitos em português.

Além disso, independentemente de autorreconhecimentoenquanto indígenas ou afrodescendentes, brasileiros de qualquer origem devem poder atribuir a seus filhos nomes de origem africana (ou indígena), assim como podem incorporar nomes usuais que homenageiem os povos que formaram nossa identidade nacional. Por isso, objetiva-se analisar, neste trabalho, como o direito ao nome, a partir da teoria dos direitos de personalidade, pode representaruma tutela ao resgate e à afirmação da identidade étnica dos povos que formaram a coletividade brasileira

Neste artigo, contudo, será analisada apenas a questão do nome africano,ficando para outro trabalho a questão do nome indígena, uma vez que esta envolve fatores históricos e sociais diferentes e exigem uma construção teórica do mesmo modo diversa.

36

R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, P. 35-51, set./dez. 2014

DIREITO AO NOME AFRICANO,

1

PRECONCEITO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL

Escravidão, etnias e identidadedos africanos no Brasil

A formação da população brasileira e a construção do Brasil, principalmentena fase colonial da sua história, deram-se a partir de três grandes grupos: indígenas, portugueses e africanos. Embora referidos como "africanos", os escravos trazidos da África se originavam de comunidades, aldeias, reinos e territóriosvariados, representandodiversas etnias. Assim, afirmam os antropólogos e historiadores que não havia (e não há) uma

unidade africana.

Desembarcaram no Brasil, trazidos como mercadorias, violentamente escraviza-

das, pessoas das mais diversas regiões do continenteafricano,mas, especialmente, dos territórios subsaarianos e das terras onde atualmentetem-se Gana, Benin, Nigéria, Camarões, Guiné Equatorial, Congo, Angola, Senegal, Gambia, Moçambique e Tanzânia (VERGER, 1987). Vianna Filho (1946) estima em 4.300.000 (quatromilhões e trezentos mil) o número de africanos escravizados que foram trazidos para o Brasil. Cita, no entanto, estimativas em torno de 4.800.000 e 6 milhões, calculadas por Renato Mendonçae Pedro Calmon, respectivamente. São estimativas, generalizações, pois, como explica Vianna (1946):

O problemaé dos mais complexose joga com múltiplosfatores. O primeirodeles é a diversidadedos pontos de importaçãoe exportação.Da África vinham escravos da Costa da Mina, de Angola e de Moçambique. Poucos de Cabo Verde. No Brasil entravamno Pará, no Maranhão,em Pernambuco,na Bahia, no Rio e em Santos. A multiplicidadedesses focos de emigração e imigração ainda mais dificultouo problema,pois se poderia dizer que de nenhum períodode nossa história se conhece a cifra de saída da África ou de entrada no Brasil, em todos esses centros do comércio negro.

Entre os principais grupos trazidos para o Brasil, muitos textos, genericamente, mencionam dois: bantos e sudaneses. Mas trata-se de uma generalização, até exagerada, pois dentre os bantos não havia unidade étnica, sendo apenas uma denominação que abarcava todos os escravos provenientesdos territóriosmais setentrionais (embora sob o Saara); sendo os sudaneses a denominaçãopara os escravos originários de territóriosmais ao sul (PRANDI, 2000). Ao desembarcarem no Brasil, os escravos, muitos dos quais muçulmanos, eram batizados conforme as normas católicas e recebiam nomes portugueses. Também recebiam nomes de santos católicos. Havia a prática de lhes atribuir os nomes de seus donos, principalmente quando estes eram seus padrinhos de batismo (ROWLAND, 2008). Ferreto (2000) informa que não há registros de atribuição de nomes de família aos escravos aqui batizados (ROWLAND,2008), ou seja, apenas recebiam um prenomee, às vezes, eram relacionadosao nome do portode origem R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo Horizonte,ano 3 , n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

37

ROXANACARDOSO

BRASILEIA

v

com a alforria ou a compra da tarde, mais Apenas em geral o da família à qual (p.ex., "Liberato nação nagô"). sobrenomes, usar a da nação ussá", sendo liberdade,os escravos passaram Barros, alforriado de Nunes pertenciam (p.ex., "Luis Raimundo (FERRETO, 2000). senhor) do seu que todo aquele nome era o nome batizados com nomes POrtugueses e africanos Despojados de SelJS nomes portos, na África, em que embarcaram pelos escravos a prática era identificaros portos foram os de Guiné, Costa da principais Os para serem trazidos ao Brasil. um escravo teria se chamado Antônio p.ex., Assim, Mina, Angola, Congo, Cabinda. Isso dificultou a identificação das Cabinda. Francisco de Angola, um outro teria sido escravos, pois

diversaset_ origemdos etnias e dos territórios,aldeias e reinos de restava era apenas o registrodos que o e portos mesmos nias embarcavamnos refletia a diversidade étnica

que não embarques (quando o tráfico não era ilegal), o etnias que vieram para o Brasil: embarcada nos navios negreiros.São exemplos de ambundos, imbangalas, oxogbo, lun_ nagôs, ijexá, ifé, jejes, fantis, axântis, dembos,

egbas, fons, entre várias das, minas, malês, hauçás, mandingas, bantus, ketus, centenas, ora milhares outras, pois os etnólogos e os antropólogosora mencionam escravos. de etnias nos territóriosafricanosafetados pelo tráfico de de e para diversos luDo mesmo modo, os escravos eram trazidos e levados gares, conformefosse o comércioda época ou as feiras, ou as distâncias entreos portos, de acordo com as necessidadese oportunidadesda ocasião, ou conforme acordos internacionais entre os países colonizadores. "Os escravos provinhamde onde fosse mais fácil capturá-lose mais rendosoembarcá-los" (PRANDI, 2000). Isso contribuiu para a perda da identificaçãodos escravos com suas etnias de origem. Uma vez no Brasil, as pessoas das diversas etnias eram colocadas nos mesmos ambientes e esse convíviocontribuiuainda mais para a "aculturação" dos escravos. Pois cada etnia tinha seus processos e rituais próprios, inclusive religiosos, e todas essas manifestações eram obstaculizadas pelos portugueses no Brasil, levandoa uma intensa diluição de suas culturas originais. Tratados como mercadoria, importados, desidentificados e oprimidos, praticamente não houve como cultivarou mantersuas tradições. As poucas que permaneceram foram as que se transformarampara se adaptar às práticas portuguesas ou as que foram aceitas pelos colonizadores. Essa perda de identidadequanto à origem africana se intensificou ao longo dos séculos. Rapidamente,foi (e é) mais forte a identificaçãocomo brasileirosdo que como afrodescendentes ou descendentes de africanos. Nesse sentido, Prandi (2000): Com o fim da escravidão, parece que a população negra, na tentativade se integrar na sociedade brasileira, não como africanos, mas como brasileiros, teria se desinteressado de suas próprias origens, deixando-as

38

R. Fórumde Dir. Civ. RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

DIREITO AO NOME AFRICANO,

PRECONCEITO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL

definitivamentepara trás, esquecidas, como mais adiante aconteceria, depois de algumas gerações, com o imigranteeuropeu também desejoso de se tornar brasileiro, como se o passado fosse um entravea uma nova vida, uma memória ruim, lembrança desnecessária.

Atualmente, até mesmo as ideias sobre a África são muito mais um imaginário estereotipado do que um reconhecimentosobre as mais diversas realidades do

complexo continente africano. Uma pesquisa realizada no Recôncavo Baiano (área do Estado da Bahia comumente ligada à cultura afrodescendente, "região de indiscutível ascendência populacional africana"), por Oliva (2009), revela que o imaginário que jovens estudantes têm da África é formado por estereótipos que povoam a mente de

milhões de brasileiros todos os dias. São exemplos de estereótipos:o pensamento de que a África é totalmente negra; o desconhecimentoda história africana anterior ao tráfico de escravos; a relação com guerras, doenças (especialmente AIDS), fome e miséria; um meio ambiente formado ora por desertos, ora por savanas onde são encontrados animais para safaris; a ideia de um continentequente e ensolarado. Enfim, a pesquisa revelou um profundodesconhecimento sobre a África entre jovens do Recôncavo Baiano (OLIVA,2009), o que nos permiteinduzirque este deve ser o imaginário dos brasileiros em geral sobre o território e a cultura de onde vem um dos povos formadores da nossa Nação. Diante deste contexto, a identificação da origem étnica dos afrodescendentes no Brasil não é fácil de ser determinada. Ainda assim, há um movimento de afirmação e inclusão dos afrodescendentes,o que pode levar a uma vontade de maior conhecimento sobre a história do continenteafricano (inclusive sobre o período anterior ao tráfico de escravos para o Brasil). E, a partir daí, a valorização da identidadee da história pode oportunizarinvestigações sobre suas origens étnicas e sua ancestralidade, o que, por sua vez, pode abrir espaço para o resgate de símbolos e o desejo de incorporar nomes que os vinculem às suas origens étnicas.

2 A população brasileira, os afrodescendentes brasileiros e a ausência de nomes africanos nos registros públicos no Brasil Em 2010, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou o cen-

so demográfico em 67,6 milhões de domicílios, abrangendo5.565 municípios brasileiros (IBGE, 2011). Constatou-seque, numericamente,a populaçãonegra (pretos e pardos, segundo o IBGE) é maior do que a de brancos e amarelos no País. Os autodeclarados pretos representam 7,6% da população, os autodeclarados pardos re-

presentam 43,1% e os autodeclaradosbrancos representam47,7% (BRASIL, 2014). Salvador (Bahia) é a cidade brasileira com o maior número de afrodescendentes (IBGE, 2011), e, entre eles, muitos praticam o Candomblé como religião. Atualmente,

R. Fórumde Dir. Civ. e- RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, P. 35-51, set./dez. 2014

39

ROXANACARDOSO BRASILEIRO BORGES

o Candomblé, desenvolvido no Brasil, é considerado religião universal (PRANDI 2000), ou seja, incorporaadeptos tambémentre os que não são afrodescendentes em todos os Estados do País. Nos rituais de iniciação do Candomblé, além de outras atividades, o iniciadore_

cebe um novo nome, revelado por seu Orixá, representando uma nova fase na vida da pessoa, um renascimento. A atribuição de um novo nome ao iniciado está presente

nos ritos de transição de todas as nações do Candomblé. Este novo nome, que, em Salvador, costuma ser iorubano(do iorubá),é o nome usado na comunidade sa. Além disso, cada vez mais as pessoas os usam, também,socialmente,mesmo fora dos círculos do Candomblé,identificando-seem suas relações sociais comseu nome registral e seu nome iorubano,o nome "dado pelo santo". Nesse Sentido,por exemplo, há décadas, o conhecidofotógrafoe etnólogofrancês Pierre Verger,que viveu muitos anos em Salvador, passou a se chamar Pierre FatumbiVerger,adotando seu nome religioso iorubano. Além dos praticantes do Candomblé, há as pessoas que integram comunidades remanescentes de quilombos, tambémchamadas de remanescentes de comunidades quilombolas. Os grupos étnicos de remanescentes de quilombos têm presunção

de ancestralidade africana e decorremda resistência ao regime escravocratae à opressão dos escravos no Brasil. Atualmente, a maior demanda dos remanescentes dos quilombos é a proteção de seu território, com a atribuição do direito de proprieda-

de, após a demarcação e titulaçãodas terras que ocupam.Mas, na proteçãodessa ancestralidade, há também o intuito de adotar nomes que revelem sua origem étnica

ou sua ligação a seus territórios,comoafirmaçãode sua identidade. Ao lado dos praticantes do Candomblée dos remanescentes de quilombolas, encontram-se afrodescendentes que, sem passar pelo rito de iniciação ou mesmo sem ter o Candomblé como religião, desejam adotar nomes que revelem sua origem africana, como símbolo de identidadeétnica ou culturalem nossa sociedade. Assim, o uso de um nome étnico ou de um nome que remeta à sua origem africanaé um modo de afirmação de sua identidade,ainda que sem o desejo de perder a nacion& lidade brasileira ou de negar o Brasil como nação. Esta afirmação da identidade faz parte do contexto atual de políticas públicas de inclusão dos afrodescendentes, de ações afirmativas e de combate ao preconceito em racial. Assim, sem deixar de serem brasileiras, há pessoas que querem ostentar seu nome um pedaço da história de seus ancestrais que violentamentelhes foi negado, uma vez que os escravos, em geral, ao chegar a terras brasileiras, eram batizad0S

e recebiam nomes portugueses.

analiPara um breve levantamentoda ocorrênciade nomes africanos, foram

sadas a lista telefônicade Salvador(BA) (EDITEL,2011) e a lista de convocados

(USA) para matrícula nos cursos de nível superior da UniversidadeFederal da Bahia

40

R. Fórumde Dir. Civ. - RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, P. 35-51, set./dez.

2014

DIREITO AO NOME AFRICANO, PRECONCEITO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL

no primeirosemestre de 2014. os nomes aí encontradosSão predominantemente portugueses. Depois dos nomes de origem portuguesa, há mais incidência de nomes (prenome e/ou sobrenome) europeus (italianos, franceses, espanhóis, alemães, russos e outros), japoneses e árabes do que nomes de origem indígenaou de nações africanas de onde foram trazidos escravos para o Brasil. Os nomes indígenas são de rara ocorrência e predominam os já tradicionais, são representados apenas em prenomes, sendo os sobrenomes portugueses. Não foram identificados nomes africanos.1

3 Direito ao nome como direito de personalidade —

Ressignificando o direito ao nome para além do direito registral

A doutrina mais tradicional(DE CUPIS, 1961; FRANÇA,1999) considera o direito ao nome um dos mais importantesdireitos de personalidade,atribuindo-lhes, historicamente,os estudos mais amplos, se comparadoscom as demais espécies de direitos de personalidade. O capítulo sobre os direitos de personalidadedo Código Civil de 2002 contém quatro artigos sobre o direito ao nome. É um direito que abrange prenome, me e também o pseudônimo adotado para atividades lícitas. O nome de uma pessoa é o mais importanteelemento pelo qual ela é identificada na sociedade, individualizandoe identificandoo sujeito. "O nome, sem dúvida, é o sinal principal de identificaçãohumana" (LOTUFO,2003). É "o direitoque a pessoa tem de ser conhecida e chamada pelo seu nome civil, bem assim de impedir que outrem use desse nome indevidamente" (FRANÇA, 1999). O nome é formado pelo prenomee pelo sobrenome.O sobrenomeé o nome

de família, o nome que os pais passam para os filhos, muitas vezes chamado de patronímico,por ser uma tradição, em nosso país, que, nessa transmissão, sejam atribuídos aos descendentes os sobrenomes do pai. Também é chamado de apelido de família. O prenomeé o nome atribuídoao indivíduo,excluídos os que lhe foram passados por sua família, sendo o prenomeo que distingue os filhos entre si. O prenome pode ser simples ou duplo. É comum chamar o prenome de nome de batismo. Há ainda o que se chama de agnome. Trata-se de um nome acrescentado ao final do nome completo, com o objetivo de distinguir pessoas da mesma família que tenham mesmos prenome e sobrenome. São expressões como júnior, neto, filho, segundo.

1 Em rápida busca pela interneté possível encontrardiversos sites que oferecemlistas de nomes africanos, alguns até com significados. Há sites dedicados a informações sobre a gestação e o primeiroano de vida da criança; sites de entidades de religião de matriz africana; sites de promoçãode cultura e defesa de direitos de afrodescendentes. Todos os que lemos, porém, não mencionama fonte das informaçõessobre o nome, motivo pelo qual não citaremos nenhum deles em especial.

R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

41

ROXANACARDOSO

BRASILEIRO BORGES

é No Brasil, apelido é o nome pelo qual a pessoa popularmenteconhecida embora esse nome não tenha sido registrado,originalmente, quando de seu nas cimento. Os apelidos, se notórios,podemser acrescentados ao nome da pessoa conforme permissão do artigo 58 da Lei de Registros Públicos (Lei n2 6.015/73) alterado pela Lei ng 9.708/98. as pessoas o O artigo 16 do Código Civil de 2002 atribuia todas direitoao ou desprezo a a expô-lo para nome. O uso do nome de alguém Constrangimento 17 artigo O do Código Civil constitui violação a esse direitode personalidade. de

2002 prevê que o nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publv cações ou representações que a exponhamao desprezo pÚblico, ainda quandonão

haja intenção difamatória.Nessas hipóteses,a pessoa atingida em seu direitode

personalidade pode ingressar em juízo visando a proibir o emprego indevido de seu nome, podendo haver, inclusive, indenização por danos morais e materiais decorre N

tes desse empregoindevido.

O artigo 18 do Código Civil de 2002 prevê a possibilidade do uso comercialdo nome. O artigo 19 protege o pseudônimo. Na doutrina mais antiga, o nome era estudado como elemento do estado (status)

da pessoa natural e tinha tratamentopatrimonialista,similar à propriedade.Nesse sentido, por exemplo, a mulher,ao se divorciar,deveria "devolver" ao ex-maridoo sobrenome que deste incorporouao se casar, numaclara aplicação patrimonialista das regras dos direitos reais ao nomeda pessoa natural. Num viés do direito registral, o direito ao nome é valorado por questões de ordem pública, prevalecendocaracterísticas de direito público, como a imutabilidade e a obrigatoriedade, a fim de protegerterceiros e garantir segurança jurídica. Ocorre que, num contexto de constitucionalização, despatrimonialização e repersonalização do Direito Civil (FACHIN, 2012; PERLINGIERI, 1999; TEPEDINO, 1999),

o tratamento jurídico do nome das pessoas exige uma releitura. Inserido na teoria dos direitos de personalidade,o direitoao nome deixa de ser um mero elemento do estado da pessoa natural para se tornar o principal elemento de identificaçãodo indivíduo, revelando-se verdadeiro direito à identidade pessoal, necessário paraa concretização da dignidade da pessoa humana (BORGES, 2007). Por isso, numa sociedade de massas, na era da informação e numa coletividade formada por pluralidades, a identidadeda pessoa, não apenas em seu aspecto formal, mas também no aspecto material(cultural, histórico, étnico), é um elemento diretamente ligado à proteçãode sua dignidade. Leonardo Brandelli (2012, p. 62), com apoio em Rubens Limongi França, Observa que o direito ao nome "tem duplo aspecto, privado e público", configurandouma situação jurídica complexa, que "não contémem si apenas direitos". Para 0 autor' do ponto de vista privado, é um direitode personalidade; do ponto de vista público'

42

R. Fórum de Dir. Civ. —RFDC I Belo

set./dez. 2014 Horizonte, ano 3, n. 7, p. 35-51,

DIREITO AO NOME AFRICANO, PRECONCEITO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL

"tem-se a visão da coletividade[...] o interesse social em se distinguir seus membros a fim de imputarcorretamenteos ônus e bônusjurídicos, sociais e morais, permitindo assim a vida em sociedade". Logo, o tratamento jurídico do direito ao nome deve ter como objetivo principal a proteção da dignidade da pessoa, no aspecto identidade.Ao lado disso, mas em segundo plano, as regras jurídicas sobre o nome também servem para a estabilidade das relações jurídicas, para a garantia da segurança pública e administraçãoda justiça. O prenome é considerado definitivo (antes chamado de imutável). Embora a retificação seja possível, a regra é de que não há mudança de nome, mas apenas a correção de um erro. É o princípioda inalterabilidadeou imutabilidadedo nome. O nome da pessoa é o que foi registradoem cartório,quando do seu nascimento, salvo raras exceções que possibilitam sua alteração registral. Nesta lógica, Cunha Gonçalves (1955) afirmouque "o uso de um nome, além de ser velhíssimo direito, é hoje também obrigação das pessoas". O direito ao nome é um direito de personalidade, mas, por razão de ordem pública, há também o dever ao nome, como observa Pontes de Miranda(1955). Embora poucas, existem, no ordenamentojurídico brasileiro, permissões legais para que a pessoa altere seu nome, exercendo sua autonomia privada. O direito ao nome não pode ser alienado ou renunciado. A justificativa para essa rigidez, no entanto, não se encontrana proteçãoda própriapessoa, mas no interesse de terceiros, que, para alguns autores, acaba sobrepondo-seao interesse da pessoa que deseja ou necessita alterarseu nome. Messineo (1971) claramente atribui a regra da imutabilidade do nome a "razões de naturezajuspublicística", tendo em vista, em primeirolugar, a proteçãode terceiros. Barassi (1955), ao considerar o nome inseparável da pessoa, além de intransmissível e imprescritível,reconhece que qualquer modificação que se queira fazer passa por um procedimentoespecial, cheio de cautelas, uma vez que "em proteçãoà boa-féde terceiros, não podem ser alterados". Cunha Gonçalves (1955) também afirma que o direito ao nome se volta para "as transações, o crédito, a polícia, a administraçãoda justiça, a ordem pública". O autor relata que houve tempos em que não existia a regra da imutabilidade do nome, como no direito romano e para a Igreja Católica, o que mudou, primeirona França, para proteção dos nobres, pois, segundo relato de Cunha Gonçalves, plebeus endinheirados adquiriamfeudos e se apropriavam,ilegitimamente,dos nomes. A proibição da mudança de nome surgiu, pela primeiravez, em 1555, segundo o civilista. A alteração do nome, a partirde então, deveria ser precedidade cartas de dispensa e permissão.

R. Fórumde Dir. civ. - RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

43

ROXANA CARDOSO BRASILEIRO

BORGES

Ora, na maioria das vezes, os interessesde terceirosquanto à definitividade

(antiga imutabilidade) do nome das pessoas são de naturezaeconômica, disponível enquanto o interesse de uma pessoa na alteraçãode seu nome é, na maior parte das vezes em que isso chega ao PoderJudiciário,questão de conservação e exercício de seus atributos de personalidade,problemaexistencial, não patrimonial.Assim a ratio que fundamenta a regra da imutabilidadedo nome não está, historicamente ligada à proteção dos direitos de personalidade,mas à proteçãode interesses (legíti_ mos) de terceiros, o que, estranhamente,não se coaduna com os fundamentosnem com as finalidades dos direitosde personalidade. Embora ainda vigorem as concepções mais tradicionais a respeito do direitoao nome, admite-se, cada vez mais, que a pessoa tem a faculdade de, em CirCUnstâncias específicas, alterá-lo e, mesmo, negociar seu uso, inclusive em negócios jurídicos de conteúdo patrimonial, sobretudo devido à mudança de enfoque sobre sua ratio. Mais

do que ser um elemento que integrao estado da pessoa, o direito ao nome é umdi_ reito de personalidade, e, assim considerado,volta-semais aos interesses da própria pessoa titular do nome do que aos interesses de terceiros. Aí reside a possibilidade de exercício de certa autonomiajurídica sobre o direitoao nome (BORGES, 2007).

4

0 registro do nascimento e o direitoa um nome de origem africana —Direito de todos, não só dos afrodescendentes

Impressiona a quantidadequase insignificantede nomes africanos atribuídos a brasileiros. Mesmo em Salvador (Bahia), cidade brasileiracom a maior população de afrodescendentes no Brasil, o registrocivil de pessoas com nomes de origem africana só raramenteé levadoa efeito. Ainda há cartórios que se negam a registrarcrianças afrodescendentescom nomes iorubanos ou bantos. São vários os casos de que se tem conhecimentode pessoas que não puderam registrar seus filhos com nomes de origem africana, especialmente em Salvador (Bahia). Quandoas questões são resolvidas administrativamente, ainda que pelo Poder Judiciário,os casos acabam não integrandoos sítios de busca de jurisprudência, o que dificultaseu uso como fonte de pesquisa. Mesmo assim, na internet são encontradosrelatos e notícias de ações judiciais sobre0 tema. Assim, p.ex., noticia-se, em 2001, uma decisão inédita do Tribunal de Justiça de São Paulo que, julgando procedenteuma apelação, autorizou o registro de uma criança com nome de origem africana (PINHO,2001). E, em 2014, um tradicionaljornal diário da Bahia noticiou, em manchete:"Registrarnomes africanos é mais dificil"• Na matéria, relatam-se experiências de pessoas que enfrentaram dificuldades para de registrar seus filhos com nomes de origemafricana nos cartórios de Registro Civil

Pessoas Naturais da Bahia (MASCARENHAS,2014).

44

R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo

Horizonte, ano 3, n. 7, P. 35-51,

set./dez. 2014

DIREITO AO NOME AFRICANO, PRECONCEITO E AFIRMAÇÃODA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL

A incompreensão e resistência dos registradores buscam fundamentação no argumentoda obrigatoriedadede que os registros públicos e documentos oficiais sejam feitos em vernáculo (art. 215, 32 do Código Civil e art. 156 do Código de processo Civil). Alega-se, nas repartições,que "o nome não é português"e, por isso, não pode ser objeto de registro. Curiosamente, há décadas os cartórios de registro civil de pessoas naturais registram, abundantemente,crianças com nomes de origem norte-americana,ainda que com grafia aportuguesadaou com o uso de substitutos para as letras k, w e y, que até recentementeestavam excluídas do nosso alfabeto. Ocorreque o nome a ser registradonão se confundecom o uso do vernáculo — obrigatório— para a elaboração de escrituras públicas e atos processuais. Assim, por exemplo, o registrador, corretamente, não se nega a registrar prenomes e/ou so-

brenomes europeus para filhos, nascidos no Brasil, de estrangeiros aqui residentes ou em trânsito. Nem para descendentes de imigrantes europeus ou asiáticos ou de outros locais do continenteamericano.Não se diz, nessas ocasiões, que "o nome não é português". Mas, para os cartórios brasileiros, especialmente os de Salvador (Bahia), os filhos dos afrodescendentesnão podemser registradoscom nomes de origem africana, pois "o nome não é português".A solução, pontual e penosa, é buscar, no Judiciário, a tutela jurídica do direito ao nome ou à identidade pessoal. A lei de registros públicos (Lei nê 6.015/1973) não oferece nenhum obstáculo para o registro de nomes africanos. Assim como não há vedação para o uso de nomes indígenas, russos, alemães, japoneses, egípcios. Há, na lei, ampla liberdade para o registro dos nomes das pessoas naturais. A única vedação é o emprego de "prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores", conforme o parágrafo único do artigo 55. Fora isso, as demais regras para atribuição do nome das pessoas naturais no Brasil, quando do seu nascimento, são costumeiras e não afastam a liberdadeque a lei confereaos pais do registrandoou àquele a quem competira atribuição do nome. Até mesmo a norma do caput do artigo 55 é supletiva, apenas incidindo no silêncio dos pais: "Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenomeescolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe...". Comprando-se com o direito estrangeiro, Brandelli (2012, p. 136) informa a existência de uma lei argentinade 1969 que proíbe nomes estrangeiros, salvo se tiverem sido traduzidos ou adaptados para uma forma castelhana. Criticando a norma, Brandelli explica que "tal vedação afronta diretamentea dignidade humana, porquanto se trata de limitaçãoque tolhe o desenvolvimentocultural da pessoa e não encontrajustificativa no aspecto publicístico que contém o nome". No que se refere ao direito brasileiro, o autor afirma não haver proibição neste sentido, o que afrontaria o princípio da dignidade humana. Portanto, não há, no atual ordenamentojurídico brasileiro, norma que impeça o registro de nomes de origem africana a pessoas naturais aqui nascidas ou naturaliza-

das brasileiras. Os obstáculos criados pelos registradoressão abusivos, reveladores R. Fórumde Dir. Civ. RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

45

ROXANACARDOSO

BRASILEIRO BORGES

violam direitos de de preconceito, portanto, ilegais, são fatos geradores de dano moral.

personalidade do registando

e

Federal de 1988 Constituição na Como se não bastasse, também dos afrodescendentes ao nome étnico direito o se normas que podem fundamentar Estado protegerá as manifestações O "SIQ 215: encontradas em especial no artigo afro-brasileiras,e das de outros grupos partici_ das culturas populares,indígenase lei disporá sobre a fixação de datas A S2Q nacional. pantes do processo civilizatório diferentes segmentos étnicos nacionais. comemorativas de alta significação para os duração plurianual, S3Q A lei estabelecerá

de Cultura, de o Plano Nacional

visando

das ações do poder públicoque ao desenvolvimentoculturaldo País e à integração ng 48, de 2005) [...] V- valorização conduzem à: (Incluído pela Emenda Constitucional sentido, o artigo 216: "Art. 216. da diversidade étnica e regional". E, no mesmo natureza material e imaterial, Constituem patrimônioculturalbrasileiroos bens de

de referência à identidade,à tomados individualmente ou em conjunto, portadores brasileira, nos quais ação, à memória dos diferentesgrupos formadoresda sociedade fazer e viver Além se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar,

disso, convém acrescentaro artigo242: "SIQ O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuiçõesdas diferentesculturas e etnias para a formação do povo brasileiro". E vale a menção ao parágrafo52 do mesmo artigo 215 e do artigo 68 do ADCT, que protegem as comunidadesquilombolas. Assim, ou os registradoresmudamde atitude ou nascerá um novo veiode ações judiciais pleiteando indenizaçãopor danos morais decorrentes da recusa ilícita de registrar o nascimento de pessoas com nomes de origem africana, sem mencionar

a possibilidade de se considerara recusa como racismo, com suas repercussões penais. Para facilitare acelerar esse processo de mudança de mentalidade e de atitude dos registradores brasileiros,tutelando-seo direitoà identidade dos afrodescendentes, tramita, na Câmara dos Deputados,um projetode lei (PL nê 803/2011, de autoria dos Deputados Federais Nelson Pellegrino—PT/BA, Edson Santos —PT/RJ e Luiz Alberto — PT/BA) que tem por objetivo "permitirque os afrodescendentes

possam

optar pelo sobrenome de origem africana, seja familiar ou não". Para isso, o projeto prevê a inclusão do parágrafo único no artigo 56 da Lei rp 6.015/1973, que poderá ficar com a seguinte redação: "Art. 56. O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar0 nome, desde que não prejudiqueos apelidos de família, averbando-se a alteraçã0 que será publicada pela imprensa. Parágrafoúnico. Fica facultado aos afrodescendentes

modificar seu registro civil,optando por qualquersobrenome de origem africana miliar ou não".

46

R. Fórumde Dir. Civ.

—RFDC I Belo Horizonte, set./deZ. 2014 ano 3, n. 7, p. 35-51,

DIREITO AO NOME

AFRICANO, PRECONCEITO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL

Assim, se o projetovisa a permitira alteração do nome do afrodescendente,da mesma forma ficará expressamente autorizadaa adoção do nome de origem africana quando do registro do nascimento. A aprovação do projetode lei pode representarum reforçoà proteçãodos direitos dos afrodescendentes, mas, no ordenamentojurídico brasileiro, não há nenhum obstáculo para que, atualmente, os afrodescendentes tenham seus nomes de origem africana registrados. Embora o projeto mencione o direito para afrodescendentes, convém salientar que este trabalho não pretende excluir os brasileiros não afrodescendentes que desejem também adotar nomes de origem africana. Assim como os nomes portugueses podem ser adotados por brancos, negros e indígenas, também os nomes de origem africana podem ser registrados para designar qualquer brasileiro, não sendo exclusivos de afrodescendentes. Trata-se da adoção de um nome que se refere a um dos três grandes grupos formadores do povo brasileiro e tal homenagemdeve ser franqueada a todos, independentementede ascendência africana.

5 O direito de alteração posterior do nome civil para adoção de nome africano

Conforme foi demonstrado acima, não há, no Brasil, a prática registral de resgatar sobrenomes de origem africana e atribuí-losaos afrodescendentesquando do nascimento. A grande maioria dos brasileiros portam nomes e sobrenomes de origem europeia. Diante disso, atualmente, num movimentode afirmação de sua identidade, várias pessoas, já adultas, desejam incorporarem seus nomes palavras de origem africana. De um ponto de vista tradicional, esta questão encontrao obstáculo da imutabilidade do nome, como regra. De fato, o artigo 58 da Lei de Registros Públicos: "Art. 58. O prenome2 será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos

públicos notórios". Assim, a via atual para a incorporaçãode nome de origemafricana, pela lei, depende de prova do uso social do nome e da notoriedadedesse reconhecimento. Essa opção pode ser mais fácil aos praticantes de Candomblé que usam socialmente o nome novo obtido, do Orixá, com a iniciação religiosa. Mas nem todos portam o nome além do ambiente religioso, ou seja, nos meios familiar, profissional ou social, o que impediriaa aplicação da exceção legal à imutabilidadedo nome. Por outro lado, ainda que desvinculados do Candomblé, os afrodescendentes que tenham apelidos públicos notórios vinculados à origem africana também podem

2 Embora a lei mencione a definitividadedo prenome, considera-se que a norma abrange todo o nome, envolvendo prenome e sobrenome.

R. Fórumde Dir. civ. - RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

47

ROXANACARDOSO

BRASILEIRO BORGES

provem os requisitos da notoriedadedo obter sua incorporação registral, desde que motivação religiosa. uso público do nome, independentementede

as razões acima expostas, ligadas ao Ocorre que, neste trabalho,por todas forma como os escravos foram direito ao nome enquantodireitoà identidadee à

nomes violentamente trazidos ao Brasil e aqui receberam

portugueses forçadamente

de nomes de origem africana defende-se também a possibilidade de incorporação nomes, uma parte dessa àqueles que tenham interesse de ostentar, em seus

prévia identificação social por um ria sobre sua origem, ainda que não provem uma portador de apelido africano apelido público notório. Ou seja, mesmo quem não for público notório deve poder adotar, em seu nome, uma referência aos povos africanos que ajudaram a formar o Brasil. de um nome africano Neste caso, a alteração do nome, com, p.ex., o acréscimo justifica-se como ação afirmativada culturae da identidadeda pessoa, sem violar princípio da imutabilidade ou da inalterabilidade do nome, servindo a alteração para a promoção da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o projetode lei acima mencionado (PL ng 803/2011) pode trazer importante contribuição aos que não se encaixariam no caput do artigo 58 da Lei n2 6.015/1073. Ao prever a faculdade aos afrodescendentes de modificar seu registro civil, optando por qualquer sobrenome de origem africana, familiar ou não, o projeto amplia a proteção ao direito ao nome dos afrodescendentes, na perspectiva de afir-

mação de sua identidade. Entendemos, contudo, que este direitodeve ser destinado a todos os brasileiros, independentemente de autorreconhecimentoenquanto afrodescendentes.

Considerações finais O Direito Civil brasileiro, nas últimas décadas, vem se afirmando a partir de um paradigma de constitucionalização, despatrimonialização e repersonalização. Neste

contexto, o direito ao nome,já tratadocomo mero elementodo estado da pessoa natural e como propriedade,passa a ser consideradocomo uma das expressões dos

direitos de personalidade. Dessa forma, o direito ao nome deve servir, primordialmente, à proteçãoda dignidade da pessoa humana e, secundariamente,à segurança das relações jurídicas ou à segurança pública. Como direito de personalidade, o direito ao nome assume feição de direito à identidade,tendo como objetivoprotegeros modos de ser e de

viver da pessoa humana.

O nome, em todas as culturas, tem alta carga simbólica e, atualmente, tem sido identificado como elemento de afirmação de grupos que contribuíram para a formação

da população brasileira, entre os quais os afrodescendentes.

48

R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo

2014 Horizonte, ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez.

DIREITO AO NOME AFRICANO, PRECONCEITO E AFIRMAÇÃODA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL

Observa-se que entre os brasileiros é expressivamente predominanteo uso de nomes e sobrenomes portugueses. Quase não se encontram nomes de origem africana adotados por brasileiros, sejam ou não afrodescendentes. Os escravos trazidos da África, assim que chegavam ao Brasil, eram batizados com prenomes portugueses, fossem os nomes de seus senhores, fossem nomes de santos, sendo que não lhes eram atribuídos sobrenomes. Seus nomes africanos foram perdidos muito rapidamente na história.

Juntamente com a perda dos nomes africanos, os brasileiros também não dispõem, com facilidade, de informações sobre suas origens étnicas, visto que os registros do comércio de escravos eram inexatos quanto à origem e à etnia dos que aqui chegaram. Diante disso, percebe-se, atualmente,um movimentode resgate dessa ancestralidade e de afirmação de sua origem através do registro civil de afrodescendentes e de brasileiros como um todo com nomes africanos. Esse projeto, contudo, tem encontrado obstáculo nos cartórios de registro civil, onde se alega não se tratarem de nomes portugueses, o que impediriao registro do nome de origem africana.

Ocorre que, no ordenamentojurídico brasileiro em vigor, não se encontra nenhum impedimento para o registro de nomes de origem africana, assim como de origem indígena, russa, árabe ou japonesa. No entanto, facilmente se encontram, em listas telefônicas e em listas de aprovados para cursos universitários, uma fartura de nomes de origem estrangeira, além dos nomes portugueses.

Portanto, é injustificável,tanto em termos jurídicos quanto no plano lógico, a recusa abusiva de registrar especificamente nomes de origem africana para brasileiros. A nítida ilicitude afronta direitos de personalidade dos registrandos e enseja dano moral, sem mencionar eventuais repercussões penais. Ademais, quanto aos afrodescendentesjá registrados com nomes portugueses, defende-se o direito de adotarem nomes de origem africana, sejam ou não apelidos

públicos notórios, como uma afirmação de sua identidade no meio da coletividade brasileira, ainda que sem recusar sua nacionalidade,com fundamento na concepção do direito ao nome enquanto direito à identidade,elemento essencial da dignidade da pessoa humana. Right to African Name, Prejudice and Moral Damage in Brazil Abstract: This work investigates how the naming rights may serve as an instrument of assertion of the afro-descendants in Brazil. The research is importantbecause today the decedents of the Africans brought as slaves to our country do not reveal their ethnical origins by their names alone. Their ethnical ties were completely lost because they were treated as merchandise, the Portuguese culture was imposed and there were no records of the commercialtransactions. In the current days, Brazilian afro-descendants have started an affirmative movement incorporatingin their records their African names. The problem is that the organizations responsible to maintain the names tend to create obstacles to incorporatethe names and, many times, the matter results in legal actions. Because of that, an analysis of the Brazilian

R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

49

BRASILEIRO ROXANACARDOSO

law and in particular Of the Civil Law and the public

BORGES

to demonstrate that the Records is performed

de Citizens that they civil to afro-descendant possibility of attributionOf names of African origins have already been registered or not with portuguese to they express their ethnical origins despite the fact that names. Key words: Naming rights. Ethnical name. Afro-descendants.

Referências personalidade e autonomia privada. 2. ed. São BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos de Paulo: Saraiva, 2007. Paulo: Saraiva, 2012. BRANDELLI, Leonardo. Nome civil da pessoa natural. São da população brasileira. Disponívelem: BRASIL. Portal Brasil. Censo 2010 mostra as características Acesso em: 12jun. 2014. Plano nacional de desenvolvimento BRASIL. Secretaria de Políticas de Promoçãoda Igualdade Racial. 20132015. Brasília, 2013. sustentável dos povos e comunidadestradicionaisde matriz africana Disponível em:

Acesso em: 12jun. 2014. dos-povos-e-comunidades-tradicionais-de-matriz-africana.pdf>.

CAPELO DE SOUSA, Rabindranath Valentino Aleixo. O direitogeral de personalidade. Coimbra: Coimbra

Ed., 1995. CARVALHO, Manuel Vilhena de. O nome das pessoas e o direito. Coimbra: Almedina, 1989. CENEVIVA, Walter. Lei dos registrospúblicoscomentada.15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. CUNHA GONÇALVES, Luiz da. Tratadode direitocivil. 2. ed. atual. e aum. 1. ed. brasileira. São Paulo: Max Limonad, 1955, v. l, t. I e 1958, v. III, t. l. ECKER, Kleber. Quem é quem? Um estudo antroponímicoa partir dos sobrenomes do municípiode Lajeado —RS. Domínios de lingu@gem,v. 7, n. 1, jan./jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 12jun. 2014.

EDITEL. Editei Salvadore Região2011/2011. Salvador,2011. FACHIN, Luiz Edson. Teoriacrítica do DireitoCivil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. FERRETO, Angela Jesuino. O nome de família no Brasil: que função? Um inconsciente pós-colonial,se é que ele existe. Porto Alegre: Association FreudienneInternationale/Artes e Ofícios, 2000. Disponível em: . Acesso em: 12jun. 2014. FREIRE, Luis Cleber Moraes. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra: agropecuária, escravidão e riqueza

em Feira de Santana, 1850 a 1888. Feirade Santana: UniversidadeEstadual de Feira de Santana, 2012. GUÉRIOS, R. F. M. Dicionárioetimológicode nomes e sobrenomes. São Paulo: Ave Maria, 1973 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIAE ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Disponívelem: .Acesso em: 12

jun. 2014.

LIMONGI FRANÇA, Rubens. Instituições de direito civil. 5. ed. rev. atuai. São Paulo: saraiva' 1999'

50

R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo

2014 Horizonte, ano 3, n. 7, P. 35-51, set./dez.

DIREITO AO NOME AFRICANO, PRECONCEITO E AFIRMAÇÃO DA IDENTIDADE CULTURAL NO BRASIL

LOTUFO, Renan. Código Civil comentado: parte geral (arts. 12 a 232). São Paulo: Saraiva, 2003. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. São Paulo: Método, 2010.

MASCARENHAS, Fabiana. Registrar nomes africanos é mais dificil. Jornal A Tarde, Salvador, 13 jul. 2014.

MESSINEO, Francesco. Manual de derecho civil y comercial.Tradução de Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América,1971. v. 1-3. Título original: Manuale di diritto civile e commerciale. OLIVA, Anderson Ribeiro. A África não está em nós: a história africana no imaginário de estudantes

do RecôncavoBaiano. Fronteiras,v. 11, n. 20, p. 7391, jul./dez. 2009.

OLIVEIRA, Maria Itzês Côrtes de. Quem eram os "negros da Gzjine"? A origem dos africanos na Bahia. Revista Afro-Asia, Salvador, 19/20, P. 37-77, 1997. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

PINHO, Débora. Batismo no Candomblé: pais vão à Justiça e conseguem registrar filha com nome africano. Consultor Jurídico, 09.01.2001. Disponível em: .Acesso em: 12jun. 2014. PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955. v. 7. PRANDI, Reginaldo. De africano a afrcybrasileiro:etnia, identidade, religião. Revista USP, São Paulo,

n. 46, p. 5205, jun./ago. 2000.

ROWLAND, Robert. Práticas de nomeação em Portugal durante a Época Moderna: ensaio de aproximação. Dossiê: Outros nomes, histórias cruzadas: os nomes de pessoa em português.v. 12 (1), p. 17-43, 2008. Disponívelem: . Acesso em: 12jun. 2014. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. VERGER, Pierre Fatumbi. Fluxo e refluxo de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos. São Paulo: Corrupio,1987.

VIANNA FILHO, Luiz. O negro na Bahia. Prefácio de Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: José Olympio

Editora,1946.

Informaçãobibliográficadeste texto, conformea NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT): BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito ao nome africano, preconceito e afirmação da identidade cultural no Brasil. Revista Fórum de Direito Civil RFDC, Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014.

R. Fórumde Dir. Civ. —RFDC I Belo Horizonte,ano 3, n. 7, p. 35-51, set./dez. 2014

51

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.