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FUPAC - MARIANA
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iii
FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS (COORDENADORA)
DIREITO: ATUALIDADES E ENSINO 1ª Edição
MARIANA,
FUPAC-MARIANA 2016
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Ficha catalográfica
DIREITO: ATUALIDADES E ENSINO
Fundação Presidente Antônio Carlos (coordenadora). Direito: atualidades e ensino. 1 edição. Mariana: FUPAC-MARIANA, 2016. 432 p.
ISBN: 978-85-98974-19-4
Coletânea de textos do 3º Concurso de Ensaios Acadêmicos da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana e de artigos científicos dos professores da instituição. Capa e diagramação: Magna Campos
1. Direito. 2. Atualidades Jurídicas. contemporaneidade e ensino.
2. Ensino Jurídico. 4. Direito:
* A revisão textual é de responsabilidade dos autores de cada ensaio ou artigo do livro.
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Autores Adrielly Coelho Alessandra Sayonária Amanda Fonseca Ana Cláudia Macedo André Luis Pereira Aparecido José dos Santos Ferreira Camilla Coelho Quirino Carlos Randel Crepalde Mafra Daiane Estevam Déborah Cristina de Fátima Moutinho Emanuelle Cerceaux Fabiano César Rebuzzi Guzzo Flávia Regina Gonçalves Viana Israel Quirino Joana DArc Aparecida de Oliveira José Carlos Henriques Magna Campos Michele Aparecida Gomes Guimarães Nilson Gonçalves do Nascimento Nordeci Gomes da Silva Patrícia Margarida da Mapa Raphael Furtado Carminate René Dentz Ricardo José de Carvalho Rodrigo Ferreira Shirlene de Oliveira Sales Waldir Araújo Carvalho Yasser Jamil
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Prefácio
Presenciei desde a criação, toda história de nossa instituição de ensino superior, degrau por degrau, por meio da construção coletiva de um projeto de futuro, por isso, honra-me profundamente, como diretora e acadêmica, prefaciar a 3ª edição da coletânea de artigos e ensaios acadêmicos de nossos alunos-colegas e professores. Ao ler cada texto, tive várias sensações e impressões, porém, o que mais me marcou foi a certeza de que a cada edição todos os envolvidos estão produzindo melhor e com mais qualidade. Esse é fruto da evolução e do compromisso com a educação de qualidade e excelência, que é meta primordial de nossa instituição. Esta edição trata de vários temas atuais que perpassam pela tragédia de Mariana, a pílula da cura do câncer, o novo código de processo civil, a deserdação, os direitos fundamentais, a omissão do Estado no caso da dengue no Brasil, dentre outros que estão e fazem parte do cotidiano dos cidadãos, fazendo com que cada um tenha uma função social, cívica e educativa. Ao formarmos cidadãos, temos de procurar fazer com que cada um possa, ao longo de sua vida acadêmica, ter oportunidades múltiplas para alcançarem seus ideais, abrindo assim os horizontes, para um futuro melhor e mais promissor. Esperamos que nesta edição possamos ampliar os conhecimentos, os conceitos, os conteúdos e discutir questões de ensino, abrindo o horizonte intelectual de cada um de nossos alunos.
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Cumprimento a todos que ajudaram a confeccionar esta edição, com votos de continuidade do fazer científico, para alçar novas conquistas no ensino e aprendizagem do conhecimento jurídico. Crovymara Elias Batalha Diretora da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana
viii
da palavra / fonema ou morfema // cesura Ou censura /// dialogar : toda palavra sabe a liberdade que sente no peito que a expressa e o venenoso silêncio na boca que a esconde : deixem-na bradar ! (Gabriel Bicalho In: Ad referendum)
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TRAGÉDIA DE MARIANA: PARA ALÉM DAS PERDAS VISÍVEIS
15
Israel Quirino Introdução 2. A burocracia de um Estado ausente 3. Homens de Ferro (ou nem tanto) 4. Qualquer visão de futuro 5. Das perdas imateriais 6. Órfãos de si mesmos 7. Sem voz e sem vez Considerações Finais Referências:
15 20 27 29 33 40 48 54 56
FOSFOETANOLAMINA: A MILAGROSA PÍLULA DO CÂNCER (ILUSÃO DA CURA E O CASUÍSMO DA LEI FEDERAL 13.269 DE 13 DE ABRIL DE 2016) 60 Israel Quirino e Camilla Coelho Quirino Introdução: 2. Enquanto há vida há esperança 3. Um mercado promissor 4. O milagroso caso da fosfoetanolamina 5. Pacientes terminais e cobaias humanas 6. A pesquisa em seres humanos 7. O casuísmo da Lei Federal 13.269 de 13 de abril de 2016 8. A Lei 13.269 e seu alcance prático: Considerações Finais: Referências:
60 62 63 65 69 72 76 80 83 84
A INTRODUÇÃO DO GÊNERO TEXTUAL ENSAIO ACADÊMICO COMO ATIVIDADE DE ESCRITA NA FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA: ESTUDO DE CASO 86 Magna Campos Introdução: 86 2. As fronteiras do gênero textual ensaio acadêmico: fronteiras 90 2.1 Ensaio acadêmico versus ensaio científico 91 2.2 Ensaio filosófico e literário versus ensaio acadêmico 96 2.4 Características da linguagem do ensaio acadêmico 110 2.5 A estrutura do gênero ensaio acadêmico 112 3. O trabalho com o gênero ensaio acadêmico na FUPAC-Mariana 116
x
3.1 O surgimento e justificativa da proposta 3.2 O trabalho da monitoria de Língua Portuguesa e a seleção entrevistados 3.3 A experiência de escrita dos graduandos: entrevista com grupo de “alunos-ensaístas” 3.3.1 Contexto: 3.3.2 O que as entrevistas revelam: Considerações finais: Referências bibliográficas: PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ASPECTOS DA LEI 11.101/2005
INFRACONSTITUCIONAIS
116 dos 122 um 124 124 125 145 147 E 154
Michele Aparecida Gomes Guimarães e Nilson Gonçalves do Nascimento Introdução 2. Princípios constitucionais e infraconstitucionais e a empresa 2.1-Alguns aspectos da Lei 11.101/2005 Conclusão Referência
154 155 161 171 174
A TUTELA DO HIPOSSUFICIENTE NA NOVA AXIOLOGIA PROCESSUAL DA LEI Nº 13.105/2015 (“NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”) 176 Carlos Randel Crepalde Mafra; Fabiano César Rebuzzi Guzzo e Waldir Araújo Carvalho Introdução 176 2. Prioridade de tramitação 179 3. Jurisprudência defensiva, “litigantes débeis” e instrumentos de paridade 181 4. O aperfeiçoamento da gratuidade judiciária 192 5. As “defesas públicas” e os atos processuais 195 6. Alimentos e interdição 201 Conclusões 211 Bibliografia 212 BREVES APONTAMENTOS SOBRE A DESERDAÇÃO
214
Raphael Furtado Carminate Considerações gerais 2. Causas de deserdação
214 222
xi
2.1. Causas de deserdação dos descendentes pelos ascendentes 222 a. Causas de indignidade 224 b. Ofensa física 230 c. Injúria grave 230 d. Relações ilícitas com a madrasta ou padrasto 231 e. Desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade 232 2.2. Causas de deserdação dos ascendentes pelos descendentes 234 a. Relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta 235 b. Desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade 236 2.3. Deserdação do cônjuge e do companheiro 237 3. Notas conclusivas 239 Referências 240 O RESULTADO DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E SUA INTERAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS TRABALHISTAS FUNDAMENTAIS 243 Michele Aparecida Gomes Guimarães e Shirlene de Oliveira Sales Introdução 2. Evolução histórica do trabalho 2.1 Escravidão 2.2 Servidão 2.2 Corporações de Ofício 2.3 Revolução Industrial 3. Princípios fundamentais do direito do trabalho 3.1 Princípio da Proteção 3.2 Princípio da Irrenunciabilidade de Direitos 3.3 Princípio da Primazia da Realidade 3.4 Princípio da Continuidade da Relação de Emprego 3.5 Princípio da Inalterabilidade Contratual Lesiva 3.6 Princípio da Intangibilidade salarial Conclusão Referências A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE AO DIREITO PENAL
243 245 245 246 247 249 256 258 260 260 261 263 264 266 267 269
René Dentz e Flávia Regina Gonçalves Viana Introdução 2. Direito e Personalidade
269 272
xii
3. O Dito e o Não-Dito 4. Violência e Alteridade Conclusão Referências:
276 279 283 284
REUNIÃO DE PROCESSOS E PRERROGATIVA DE FORO: ACERCA DE UMA CONTROVÉRSIA NO PROCESSO PENAL 287 Rodrigo Ferreira e José Carlos Henriques Ponto de partida para a compreensão do problema 287 2. Jurisdição: o direito, concretamente, dito pelo Estado 290 3. Competência: repartição funcional do exercício da jurisdição 295 4. Definição do Juízo Competente, em matéria penal 297 5. Concurso de Pessoas e Foro Privativo 303 5.1 Apresentando a controvérsia 303 5.2 Duas autoridades com foro privativo definido na Constituição da República 306 6. Incompetência Absoluta e Princípio do Juiz Natural 309 7. Supremacia Constitucional 313 Referências 318 A EVOLUÇÃO DA PENA E MOMENTOS FILOSÓFICOS
321
René Dentz e Alessandra Sayonária Introdução 2. A visão utilitarista da pena 3. Vigiar e Punir – Michael Foucault 4. A Pena e a Psicanálise Conclusão Referências
321 322 324 333 338 339
ESCRITA ACADÊMICA: DE DOM A HABILIDADE CONSTRUÍDA 345 Magna Campos Introdução: 2. De dom à habilidade construída Considerações finais:
345 348 358
xiii
DIREITOS FUNDAMENTAIS PERANTE A SOCIEDADE CIVIL
360
Déborah Cristina de Fátima Moutinho, Patrícia Margarida da Mapa e Aparecido José dos Santos Ferreira Introdução 2. (In)Constitucionalidade do "rolezinho" 3- Direitos fundamentais 4- Direitos humanos 5. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas 6. Racismo e discriminação 7. Crime Conclusão Referências Bibliográficas RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR RAZÃO DOS CASOS DE DENGUE NO BRASIL
360 362 365 367 370 371 373 374 376
OMISSÃO EM 378
Joana DArc Aparecida de Oliveira e Michele Aparecida Gomes Guimarães Introdução 378 2. Dengue: sintomas e epidemia 380 3. Cenário e análise da situação epidemiológica da dengue no Brasil 384 3 -Omissão e responsabilidade civil do poder público diante da epidemia de dengue 390 Conclusão 392 Referências bibliográficas 394 IMPLICAÇÕES ACERCA DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA 396 Nordeci Gomes da Silva, Ricardo José de Carvalho e Aparecido José Introdução 2. O habeas corpus 3. O Duplo Grau de Jurisdição 4. Duração Razoável do Processo 5. Princípio da Segurança Jurídica 6. Divergências à decisão do HC 126.293 7. O HC de 2009 e os pontos controvertidos à decisão de 2016 8. Princípio da presunção da inocência versus princípio culpabilidade Considerações finais Referências Bibliográficas:
396 398 400 401 402 402 406 da 407 410 411
xiv
EM DIA COM A DEMOCRACIA: O DIREITO E A RACIONALIDADE DISCURSIVA EM JURGEN HABERMAS 414 Adrielly Coelho, Amanda Fonseca, Ana Cláudia Macedo, André Luis Pereira, Daiane Estevam, Emanuelle Cerceaux, Yasser Jamil e René Dentz Introdução 2. Democracia e Argumentação 3. Mundo da Vida e Agir Comunicativo 4. Sistema Jurídico, Político e Democracia 5. Direito e Política Considerações finais Referências
414 415 422 424 426 429 430
ARTIGOS
TRAGÉDIA DE MARIANA: PARA ALÉM DAS PERDAS VISÍVEIS Israel Quirino1 Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? (Carlos Drummond de Andrade) Meninos, eu vi. (Gonçalves Dias) Resumo: Discute-se nesta incursão as consequências imateriais do rompimento da Barragem de Fundão em Mariana – MG., ocorrida em novembro de 2015. Circundando as responsabilidades empresariais e governamentais acerca do sinistro, é possível ponderar que, além as perdas visíveis, que têm chamado a atenção da mídia e das autoridades e dos danos ambientais imensuráveis, o acidente produz impacto relevante na economia local e regional e ao promover o desterro de centenas de famílias fragmenta histórias de vida entrelaçadas na convivência do lugar, na sucessão do pertencimento à terra, à cultura, ao modo de vida. São danos irreparáveis, para além das perdas visíveis.
Palavras-chave: Barragem de Fundão. Identidade. Danos Imateriais. Samarco. Mariana. Introdução
Tendo, ou não tendo, havido um toque de sirene alertando a população da ocorrência do sinistro, o que se 1
Advogado, Professor de Direito Constitucional da FUPAC – Mariana.
observa e que o desastre do rompimento da barragem de Fundão em Mariana – MG., ocorrido em cinco de novembro de 2015, despertou o Brasil e o mundo para uma realidade que até então pertencia à Bento Rodrigues e às outras dezenas de comunidades que, em situação semelhante, convivem com as grandes barragens de rejeito da mineração. Colhendo a experiência vivida junto ao comando de operações de socorro às vitimas da barragem em Mariana, nos primeiros dias do mês de novembro, colecionamos anotações e sentimentos que retratam, para além do sensacionalismo
da
imprensa
e
do
frio
agir
das
autoridades, o sofrimento de uma gente que se fez pela mineração, numa relação, não de dependência, mas uma simbiose
de
histórias
abruptamente
rompidas
(ou
interrompidas) e que tentam se reconstruir, por ora, sem aparente expectativa de êxito. Pode
soar
incompreensível,
talvez,
a
ouvidos
estranhos, a fala de um morador que após perder tudo, literalmente tudo, exclama indignado: Não. Fechar a Samarco não pode não (morador de Bento Rodrigues, na manhã de seis de novembro de 2015).
Como
entender
alguém
que,
na
condição
de
flagelado, despojado de bens materiais e da sua dignidade,
insiste em defender a empresa que, supostamente, teria sido a causadora da sua plena ruína? Mas essa cena, e outras semelhantes, se repetiram em um cenário onde a consternação era maior que a revolta e lições de força e superação vinham de corpos aparentemente frágeis, numa lógica imprópria que parece contrariar a razão, o direito ou as convenções sociais. Não se tem por norte discutir aqui culpas ou responsabilidades. Por preceitos legais, há a dimensão segura da responsabilidade objetiva do agente, ao mesmo tempo em que há instrumentos legais possíveis de se mensurar
a
culpabilidade
dos
envolvidos,
desde
a
concessão das licenças, a fiscalização e a intervenção na área do sinistro, as responsabilidades civis, ambientais e criminais. Não se pode, todavia, deixar passar ao longe a ausência do Estado a mediar as relações sociais que se travaram ao longo de mais de trinta anos de convivência morador-empresa, diante de uma situação de risco crescente que se formou entre a atividade mineradora e o povoado do entorno desde o final da década de 1970. Abruptamente desperto o Estado, em todos os seus poderes,
após
a
fatídica
ocorrência,
ergue-se
como
defensor de direitos, mas movimenta-se por labirintos jurídicos
sobrepostos
(Justiça
Federal,
Estadual,
Promotorias das mais diversas, Ministérios, Secretarias) e dezenas de agentes sem o traquejo adequado a lidar com pessoas e emoções. Na sua missão fiscalizadora, pelas autoridades envolvidas no episódio, o Estado atém-se nas sanções – administrativas e reparadoras – a dimensão de que se faz justiça com mão de ferro (sem perder o trocadilho), quando se sabe que nenhuma reparação civil ou punição de
qualquer
natureza,
serão
suficientemente
compensatórias ao que houve naquele entardecer de cinco de novembro de 2015 para a história pessoal dessa gente, para este grupo social que perdeu (e vem perdendo) muito mais do que bens materiais. Nesse artigo se analisa, em primeiro plano, a relação histórica da região central de Minas Gerais com a mineração e sua dependência econômica a esse segmento industrial. Ainda neste ângulo, pretende-se discutir a omissão dos organismos de Estado com relação ao risco da barragem, o que demonstra certa leniência dos governos para com o segmento, em detrimento das pessoas que possam ser afetadas. Por fim, analisa as eventuais perdas imateriais a serem suportadas por essa gente, que escreve parte da história de Minas Gerais com suas histórias pessoais que ora se perdem na lama e no tempo, e tentam se
reconstruir física e emocionalmente dos laços rompidos, diante de um cenário de fluidez de relações que se entrelaçam em novos cenários, em uma presente sensação de “nunca mais”. O presente desses refugiados dentro da própria cidade, modificado, constrói um futuro incerto sobre outras premissas e que insiste em apagar o passado vivido na vila bucólica, soterrada pela lama. Por se tratar de uma análise de fatos que tem como técnica de coleta de dados a observação e a oitiva de depoimentos colhidos no cenário da ocorrência, tomamos o cuidado de sermos o mais técnico possível, embora se saiba das dificuldades em se manter incólume às emoções tão afloradas que, querendo ou não, acabam por afetar nosso estudo. Valemo-nos, ainda, de um suporte bibliográfico, especificamente no que se refere à literatura sociológica acerca das identidades em Zygmunt Bauman e da formação de grupos sociais em Max Weber e Boaventura de Souza Santos, com propósito de fundamentar a discussão e o alcance das perdas imateriais a que ficou sujeita a população exposta, após a devastação de seu local de convivência. Não temos a pretensão de esgotar a discussão em torno do tema, pelo fato de ser uma realidade que se amolda dia após dia, demonstrando outros ângulos de
análise e pontos de estudo e discussão diversificados e abrangentes. 2. A burocracia de um Estado ausente Dois meses após o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, e o mundo todo já tendo tomado conhecimento das dimensões da tragédia, a página oficial do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM) que contém o Programa Nacional de Segurança de Barragens (PNSB) ainda situa como “normal” a situação das barragens da Samarco em Mariana (DNPM, 2014). Isso se dá pelo fato de que os dados ali constantes têm data-base de abril de 2014 (!), portanto, são informações não confiáveis, embora oficiais e retratam, a nosso sentir, certo descaso do organismo responsável pela fiscalização das barragens de mineração em todo o país em informar ao publico interessado a real condição desses arranjos. Os eletrônico
dados do
que
DNPM
estão não
disponíveis refletem
a
no
endereço
realidade
da
informação a que o órgão fiscalizador deveria dispor ao povo brasileiro. E se estamos falando de um segmento crucial para as divisas nacionais e principal carro-chefe da economia de Minas Gerais, a terceira economia do país, qual a confiabilidade desta gestão fiscalizadora?
A extração de minério de ferro na região central de Minas Gerais remonta aos estudos de Eschwege, já na primeira década do século XVIII, como opção ao declínio da mineração aurífera (QUIRINO, 1986). Não obstante, o ciclo do ferro nas cidades do centro mineiro adquiriu intenso vigor e
provocou explosão de crescimento
econômico no quarto final do século XX, quando se instalaram na região de Mariana e Ouro Preto as grandes mineradoras Vale e Samarco, atualmente responsáveis pela maior parte da produção mineral da região, grandes geradoras de empregos e propulsoras da economia regional. Ainda que se possa ter, como pano de fundo das facilidades das concessões de exploração mineral no Brasil, o privilégio que se dá ao capital em detrimento das pessoas, das culturas e do patrimônio ambiental, não se pode negar a influência da mineração na composição do PIB local e regional e do seu expressivo peso na balança comercial do estado e do país. Disso, pode-se dizer também que os municípios da região, sem muitas opções de desenvolvimento econômico e por comodidade na administração fiscal de outras fontes de renda, vivem quase que como comensais da mineração, numa relação de dependência que se traduz em tolerância
ou leniência com seus desvios (CARVALHO; SILVA; CURI; FLORES, 2012). Embora a Constituição Federal de 1988 tenha definido como de competência comum aos três entes de estado a fiscalização da exploração dos recursos hídricos e minerais em seu território, o cumprimento do disposto no artigo 23, XI da Carta Constitucional, no âmbito das administrações
municipais
tornou-se
um
daqueles
dispositivos que soam mais preceituais que efetivos. Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: [...] XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios (BRASIL, 1988);
Sem um quadro técnico especifico (ou qualificado para tal) e sem uma legislação local adequada, os municípios mineradores cuidam, não raro, de expedir Declarações de Conformidade, sem muito conhecimento dos empreendimentos que certifica ou, ávidos por uma parcela a mais de recursos nos cofres minguados, acabam por delegar ao Estado-membro ou a União o dever de fiscalização das mineradoras, lavras, pilhas de rejeitos e barragens.
Por
outro
lado,
a
concentração
tributária
no
Governo Federal impede que os municípios invistam em estruturas ficais eficientes, caminhando as administrações municipais a reboque da ação fiscalizadora federal e, por vezes, desconhecendo os meandros jurídico-legais da atividade que abrigam em seu território. Sobre barragens, desde 2010 a União Federal avocou para si a responsabilidade da fiscalização, não sem antes de ter contado, apenas neste milênio, e só em Minas Gerais,
três
grandes
episódios
danosos
envolvendo
depósitos de rejeitos de mineração: Macacos em 2001; Cataguases em 2003 e Miraí em 2007, todos com danos sócio-ambientais incalculáveis. Ao editar a Lei Federal 12.334 de 20 de setembro de 2010 e instituir a Política Nacional de Segurança de Barragens, o legislador outorgou o dever de fiscalização a uma plêiade de órgãos federais de ação governamental: Art. 5o A fiscalização da segurança de barragens caberá, sem prejuízo das ações fiscalizatórias dos órgãos ambientais integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama): I - à entidade que outorgou o direito de uso recursos hídricos, observado o domínio corpo hídrico, quando o objeto for acumulação de água, exceto para fins aproveitamento hidrelétrico;
dos do de de
II - à entidade que concedeu ou autorizou o uso do potencial hidráulico, quando se tratar
de uso preponderante para fins de geração hidrelétrica; III - à entidade outorgante de direitos minerários para fins de disposição final ou temporária de rejeitos; IV - à entidade que forneceu a licença ambiental de instalação e operação para fins de disposição de resíduos industriais (BRASIL, 2010).
Assim, por força de lei, o DNPM, responsável pela outorga dos direitos minerários, é a responsável pela fiscalização das instalações dos rejeitos da mineração e, por evidente a ação fiscalizadora não pode se resumir a um ato posterior ao sinistro de alçada punitiva, quando se sabe que a tutela preventiva é muito mais eficiente e desejada. Diante da aplicação de multas vultosas (ou nem tanto) pelos organismos de fiscalização e controle, tem-se a falsa sensação de que a justiça foi feita ou os danos reparados. Danos ambientais exigem ações reparadoras sim, e isso se torna visível quando se visita o cenário da catástrofe na região de Bento Rodrigues, mas não apenas isso. O sistema de autorização-fiscalização deve privilegiar a prevenção, já que o recolhimento das multas não restabelece, per si, o status quo ante da natureza afetada, as vidas ou as identidades perdidas em caso de sinistros. Ainda que se admita o caráter pedagógico da sanção pecuniária, bem o sabemos que os resultados deste
aprendizado não são os desejados. A indústria de multas, que não raro tem servido mais para fomentar a corrupção, é falha enquanto instrumento de prevenção e educação. A ação fiscalizadora presente, esta pode, efetivamente, contribuir
na
construção
de
uma
consciência
ambientalmente sustentável. Não fugindo ao seu dever legal, o Departamento Nacional de Produção Mineral informa em sua página oficial na rede mundial de computadores a sua gigantesca missão
institucional,
que,
fatalmente,
aparenta
ser
incompatível com a estrutura do órgão: Compete ao Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, no âmbito de suas atribuições, fiscalizar a pesquisa e a lavra para o aproveitamento mineral, bem como as estruturas decorrentes destas atividades, nos Títulos Minerários, concedidos por ela e pelo Ministério de Minas e Energia (MME). Todavia com a promulgação da Lei Nº 12.334, de 20 de setembro de 2010, que estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens destinadas à acumulação de água para quaisquer usos, à disposição final ou temporária de rejeitos e à acumulação de resíduos industriais e cria o Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens, esta Autarquia assume também a atribuição de fiscalizar a implementação dos Planos de Segurança das barragens de mineração a serem elaborados pelos empreendedores, conforme previsto na referida Lei (DNPM, 2015. s.p., on line). Grifamos.
Se assim o é, diante do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana – MG., ainda que se tenha por definição legal a responsabilidade objetiva da empresa que operava a instalação, não se pode deixar de debitar importante parcela de responsabilidade solidária aos governos, nos seus três níveis e, mais especificamente ao DNPM por culpa in vigilando (ou corresponsabilidade), já que não apenas outorgou a concessão da lavra minerária mas tem, por definição legal, a missão de exercer a fiscalização de maneira a garantir a segurança da barragem
de
rejeitos.
Portanto,
há
responsáveis
e
culpados a serem nominados. O relatório publicado pelo DNPM em sua página oficial, tendo por base o mês de abril de 2014, indica que a barragem de Fundão (a que rompeu e provocou o maior dano ambiental da história do Brasil), apresenta baixo risco, embora se considere de potencial elevado para os danos associados em caso de rompimento (DNPM, 2014). No mesmo teor a informação se refere também às outras duas barragens na região do sinistro: Santarém e Germano, ambas autorizadas e fiscalizadas (?) pelo DNPM. A quem essas (des) informações são dirigidas? Não é crível que o Estado Brasileiro se finja de “bom moço” ao se mostrar enérgico com ações punitivas, enquanto
negligencia,
não
somente
a
atividade
economicamente viável que põe o Brasil na seleta lista dos países exportadores de minério, mas olvida o destino de parcela do seu povo que vive sob o risco da mineração. Visivelmente desaparelhado, o Estado brasileiro, mesmo que promova adequações legislativas relevantes, sem o exercício eficiente do poder fiscalizador não haverá expectativas de melhora.
3. Homens de Ferro (ou nem tanto) O estudo que aqui se apresenta tenta entender o cenário social-empresarial existente na comunidade de Bento Rodrigues para discutir a responsabilidade do Estado para com essa gente e, por fim, relatar as perdas invisíveis que, certamente, passarão ao largo das pericias ambientais e de engenharia que acaso venham a ser realizadas no local. Com gente é
diferente, como diz a
poesia de Geraldo Vandré. O poeta Carlos Drummond de Andrade, nascido em Itabira – MG., pólo minerador e berço da Companhia Vale do Rio Doce, escreveu um dia que a mineração dá ao sua torrão-nataI noventa por cento de ferro nas calçadas e ao homem que ali vive oitenta por cento de ferro nas almas (ANDRADE, 2003).
Essa íntima relação da mineração com o povo que vive dela e em torno dela, criou uma convivência que extrapola os sentidos econômicos do ciclo minerário. Inintelígivel para quem vem das planícies agrárias, dos pampas ou das grandes pastagens, essa atividade de tirar da terra o que não se plantou, é característica dessa gente, do homem de ferro, do povo da mineração que com ela se identifica. Com suas vidas dilaceradas pelo sinistro, moradores de Bento Rodrigues expressavam reações diferentes dos demais atingidos. Paracatu de Baixo, Pedras, Borba e outras pequenas localidades afetadas, povoados agrícolas, à jusante do Rio Gualaxo do Norte por onde escoou o fluxo de lama, distantes a cerca de 40 quilômetros da planta minerária, sofrendo a mesma diáspora interpretam e reagem de maneira diversa ao fenômeno migratório. Igualmente desabrigados pela mesma torrente de lama que extrapolou a calha do Rio Gualaxo do Norte provocando a perda de propriedades inteiras, animais de criação e outros bens materiais, os moradores das comunidades
rurais
distantes
da
mineradora
não
mantinham com ela relações de, como dizer, afetividade, a ponto de sentir duplo sofrimento pela ocorrência. Vidas
humanas
só
se
perderam
em
Bento
Rodrigues, primeiro povoado atingido e onde o sentimento
de desolação talvez seja mais evidente. É quase que uma relação de orfandade de moradores que mantinham com a mineradora uma convivência muito próxima. Nas demais comunidades afetadas se lamentam as perdas materiais, ambientais
e
imateriais
de
maneira
menos
“emocionalizada”. No calor da ocorrência, circulando entre dezenas de flagelados pelo evento sinistro que solapou, em questão de minutos, o centenário distrito de Bento Rodrigues, é possível encontrar, no olhar desolado das pessoas, um sentimento de tristeza, mas também algo que só se sente quando se vive neste meio. Há uma evidente ruptura de vínculos entre pessoas e suas vidas cotidianas, algo que se percebe, se sente, muito mais do que se documenta. Enquanto as lentes das câmeras de televisão de dispuseram a gravar a onda de lama levando casas, arrasando pastagens, destruindo lavouras e matando animais e rios, dezenas de moradores daquela paisagem devastada nos dedicavam olhares vazios, transtornados, quiçá curiosos, mas todos com a mesma névoa de tristeza. Uma inominável sensação de impotência que nos acudiu a todos em diferentes graus de intensidade.
4. Qualquer visão de futuro
Pode ser que o desastre ambiental ocorrido na barragem de Fundão, da mineradora Samarco, tenha por consequência o encerramento de uma etapa do ciclo econômico minerador do município de Mariana, em Minas Gerais. O fim da mineração nesse canto do país serviu de palavra
de
ordem
a
alguns
dos
movimentos
que
manifestaram sua indignação diante do mar de lama que sufocou o vale do Rio Doce. De outro lado, o morador, mais sensato, olhando o entorno edificado em trezentos e vinte anos de atividade mineradora, pensou em reconstruir, de outro modo, por outros caminhos, a convivência com a mineração. Duas manifestações de rua na cidade de Mariana – MG., em curto intervalo de tempo após o sinistro, apresentaram visões opostas sobre o mesmo tema. É admissível que algumas opiniões, colhidas no calor da ocorrência, possam traduzir sentimentos que, em um
segundo
momento,
sopesando
fatores
sociais,
econômicos e de sobrevivência da própria atividade minerária na região, não se sustentariam. Por outro lado, é salutar a afirmativa de que o desastre de Bento Rodrigues possa sim, significar o encerramento
de
um
ciclo
econômico
predatório,
inescrupuloso e inseguro, que exibiu todo o seu potencial
destrutivo naquela tarde de cinco de novembro de 2015, fazendo surgir, do seu rastro de destruição, um novo olhar sobre esta atividade, que empresta seu nome ao Estado de Minas Gerais e é a locomotiva do desenvolvimento econômico das cidades do quadrilátero ferrífero. Uma nova forma de relacionamento entre governos, segmentos econômicos, população e natureza, de maneira mais solidária, comprometida e responsável. Em uma visão otimista, pode-se acreditar que da hecatombe que tragou Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo em Mariana – MG., floresçam técnicas de operação de lavra e beneficiamento mineral que assegurem para Minas Gerais e para o pais, um novo paradigma de mineração sustentável, desenvolvendo formas adequadas de
deposição
de
rejeitos
que
propiciem
aproveitamento do minério processado, descarte dos estéreis, redução
melhor
segurança no
do volume de rejeitos e,
quem sabe, utilização econômica dos restos inertes
em
outras atividades, minimizando os impactos negativos da extração mineral para a humanidade. Não é mais uma quimera, mas, talvez, uma realidade
incômoda,
que
permanece
desenhada
nas
margens engolidas do Rio Gualaxo do Norte, sangrando pelas veias do Rio do Carmo, escorrendo pelo vale do Rio Doce até derramar no oceano como uma hemorragia de
lama que chamou a atenção do mundo para esse tipo de negócio. As grandes catástrofes conduzem a discussões proveitosas quanto ao futuro do segmento afetado, de maneira que, espera-se, possa a tragédia de Mariana servir de pauta aos estudos futuros de segurança de barragens e deposição de rejeitos da mineração. A menos que a mineradora Samarco e suas proprietárias, as gigantes Vale e BHP Billiton, queiram conviver ad aeternum com o fantasma da cidade morta que aflora do bucólico povoado de Bento Rodrigues, como uma nova Pompéia. As ruínas da vila se perpetuam na lama, são como vísceras abertas do descuido reiterado do agente causador do dano e da culpa omissiva de quem deveria fiscalizá-lo e não o fez como devia. Não obstante, há esperança de dias melhores a emergir da catástrofe, pois, conforme nos ensina Jacobi (2003, s.p.) Os grandes acidentes envolvendo usinas nucleares e contaminações tóxicas de grandes proporções, como os casos de Three-Mile Island, nos EUA, em 1979, Love Canal no Alasca, Bhopal, na Índia, em 1984 e Chernobyl, na época, União Soviética, em 1986, estimularam o debate público e científico sobre a questão dos riscos nas sociedades contemporâneas. Inicia-se uma mudança de escala na análise dos problemas ambientais, tornados mais freqüentes, os quais pela sua própria natureza tornam-se mais difíceis de
serem previstos e assimilados como parte da realidade global.
Todavia, há que se sopesar a necessidade de investimentos para retomada da atividade minerária naquele local, ao mesmo tempo em que se requer pesadas somas de gastos para recuperação dos danos causados, individuais, coletivos e difusos. Embora seja lastimável, do ponto de vista ambiental e social, sem mascarar a realidade, todos sabemos que o desfecho da situação, qualquer
que
seja
o
cenário
futuro,
tem
que
ser
equacionado do ponto de vista econômico.
5. Das perdas imateriais O Circuito Turístico da Estrada Real que passa pela região central de Minas Gerais, especificamente no trecho de estrada tropeira que liga a sede do Município de Mariana ao distrito de Santa Rita Durão (antiga Cata Preta do Inficionado, no mesmo município), tinha em Bento Rodrigues um marco diferenciado. Com
duas
capelas
com
traços
arquitetônicos
coloniais, a de São Bento, totalmente destruída pela onda de lama e a de Nossa Senhora das Mercês, edificada na parte alta do povoado, Bento Rodrigues se situava entre o
histórico povoado de Camargos e o distrito de Santa Rita Durão, no sopé da serra do Caraça. Com edificações do período rural do Ciclo do Ouro Mineiro, logo na entrada do povoado se destacava uma cerca feita de lajões de pedra, marcando a presença do homem minerador naquelas paragens, já nos primórdios do
Século
XVIII.
A
rústica
edificação
continuava
contornando os terrenos próximos da Igreja de São Bento, templo do qual restam apenas os alicerces e uma lápide, em mármore, de alguém que, por ironia, fora sepultado duas vezes. Em Camargos, antigo sítio minerador ao logo do Rio Gualaxo do Norte, a cerca de dez quilômetros da área da barragem, está a igreja de Nossa Senhora da Conceição, obra inserida no PAC das Cidades Históricas, pela sua importância na arte e arquitetura coloniais. Juntos do distrito de Santa Rita Durão, que também abriga importante acervo arquitetônico barroco e rica paisagem
natural,
Bento
Rodrigues
e
Camargos
completam o circuito do pólo minerador de Mariana, identificado pela Prefeitura local como integrantes do Projeto Estrada-Parque Caminhos da Mineração. A moldura de montanhas e vales e a vista da Serra do Caraça ao fundo, delimitam o cenário minerador de
trezentos anos, onde o ouro deu lugar à bauxita e por último ao ferro. Apropriando-se dessa paisagem natural e valendo dos fazeres e saberes da cultura local, a Prefeitura de Mariana pretendia oferecer à visitação turística
um
circuito histórico-cultural no eixo minerador, em um projeto
denominado
Estrada-Parque
Caminhos
da
Mineração, explorando como produto cultural o cenário e a arte mineradora de três séculos que ali se desenvolvem. O projeto foi apresentado no ano de 2014 ao SEBRAE, dentro do programa Prefeito Empreendedor, sendo um dos finalistas nacionais, pelo potencial que apresentava de novidade, gestão social e desenvolvimento local em alternativa a mineração industrial (SEBRAE, 2014). O projeto Caminhos da Mineração inicialmente terá impacto em três comunidades (Santa Rita Durão; Bento Rodrigues e Camargos) a um contingente de aproximadamente três mil pessoas. Não obstante, o público-alvo do projeto são os jovens que terão oportunidade de se profissionalizarem nas oficinas de restauro (cantaria, carpintaria e marcenaria) que serão implantadas no local. Os três lugarejos passarão por intervenções construtivas de restauro de seus antigos sobrados e será convertido em uma oficina ao ar livre para aprendizado supervisionado. O propósito é recriar uma profissão que não mais existe, a de oficial restaurador. Em momento concomitante teremos a escola de formação de mão de obra para o turismo, esse propósito
poderá alcançar toda a comunidade que poderá transformar sua casa, seu pequeno negócio ou sua habilidade e talento em um produto a ser comercializado. Será uma forma de geração de renda, sem necessariamente criar emprego. O morador poderá ser um microempreendedor voltado para atender as demandas locais e dos visitantes. Oportunamente as escolas de formação de mão de obra do turismo poderão receber interessados das comunidades vizinhas e até de outras cidades. A expectativa é que Santa Rita Durão, Bento Rodrigues e Camargos possa se valer da sua paisagem natural, sua cultura e história como produto a ser explorado economicamente e de maneira sustentável (SEBRAE, 2014 p. 14).
A primeira perda imaterial da população atingida, talvez seja a expectativa de futuro, já que ações para implantação do projeto da Estrada-Parque vinham se desenvolvendo a contento, despertando nas comunidades o sentimento de pertencimento e de valorização da cultura local enquanto instrumento de preservação da identidade local e de geração de renda. No entanto, é necessário dar uma oportunidade ao homem de aprender com seu próprio erro. Assim, qualquer que seja o futuro da mineração na cidade de Mariana haverá, sempre, uma ferida não cicatrizada no local onde fora, um dia a comunidade de Bento Rodrigues, primeira povoação a ser afetada pela avalanche de lama. Ao contrário do ciclo do ouro, que edificou cidade e vilas
pelo interior das Minas Gerais, a mineração de ferro varreu do mapa uma dessas comunidades. Por ora, não se ressente apenas as vidas ali perdidas, algumas sepultadas para sempre no manto do desaparecimento, tendo por túmulo a incerteza e a vastidão do vale do Rio Doce, mas também as outras vidas, que continuaram sua história alhures e arrastam consigo a ruptura abrupta de seus vínculos. Ontem teve uma missa ai. Mas eu só cantei. Eu acostumava a acompanhar o coral lá na igreja com meu violão. Mas ele perdeu lá no barro. Aí eu não pude tocar na missa. (morador de Bento Rodrigues, abrigado no Hotel Providência em Mariana. Em 10 de novembro de 2015).
Ainda que seja possível recuperar todos os danos ambientais visíveis, promova-se o repovoamento dos rios e cursos d’água atingidos, se indenize a população afetada e se cumpra todas as sanções impostas pelos órgãos de Estado encarregados da fiscalização da indústria extrativa mineral,
haverá,
para
sempre,
a
fragmentação
de
entrelaços familiares, afetivos e culturais impossíveis de serem restabelecidos. Meu filho tava dentro de uma máquina, dessas que tem vidro e fecha. Será que tem um tipo assim de eletroímã que pode passar em cima do barro e ver onde ele está? A máquina é grande. Ele pode estar vivo dentro da máquina, não pode? (Pai de trabalhador desaparecido.
Em 10 de novembro de 2015, cinco dias depois do acidente).
Ocorreu ali a perda da identidade espaço-cultural daquela população, uma descontinuidade no processo histórico de construção do individuo integrante de um grupo social, provocando uma diáspora, uma migração forçada, não planejada e sem retorno possível, o que fatalmente haverá de impactar a vida futura dessas pessoas. A minha galinha havia chocado seis pintinhos, moço. Tinha dois do pescoço-pelado (moradora de Bento Rodrigues, em 06 de novembro de 2015). Tô com saudade de aguar minha horta (moradora de Bento Rodrigues, em 09 de novembro de 2015).
O direito à identidade sócio-cultural e à convivência no seu meio ambiente natural ou artificial são matizes que compõem um grupo social, na gama dos direitos coletivos, mas que também afeta a individualidade de cada cidadão exposto, o que os torna direitos individuais homogêneos, e que não são incluídos naqueles levantamentos de perdas materiais ou ambientais. Quando muito serão tratados no grupo dos danos morais, dada a impossibilidade de serem restaurados. Tais direitos, enquanto componentes da esfera individual, não são expressos no elenco dos direitos
fundamentais enumerados na Constituição Federal de 1988, mas permeiam toda a garantia jurídica da dignidade da pessoa humana (art. 1º. III), do direito ao meio ambiente equilibrado (art. 225) ou da proteção do Estado ao patrimônio imaterial (art. 216), sendo, portanto, objeto da tutela legal (BRASIL, 1988). O que se percebe é que, tecnicamente, há certa dificuldade em quantificar danos ambientais e neles inserir as perdas do ambiente humano. Aquele espaço da natureza que fora modificado para oferecer meios seguros à sobrevivência do homem, a relação homem-espaço essencial ao desenvolvimento da vida digna. Visto por esse ângulo, podemos afirmar que as perdas imateriais são maiores que a perda da ambiência urbana edificada, ruas ou casas. Perdeu-se a essência da vida que fazia a vila, o povoado. A
atividade
embrionariamente
mineradora, o
estado
de
que Minas
nominou Gerais,
é
desenvolvida na região desde os dias finais do Século XVII, sendo responsável pela pujança arquitetônica e cultural das cidades históricas de Minas. Não é difícil imaginar que exista, em torno das cidades mineradoras, uma sociologia típica, edificando nuances de identidade própria, cultura singular e laços sociais regionalizados constituídos em torno da atividade econômica (FREYRE, 2004).
[...] mesmo estando quase ilhados em Águas Claras, sem condições para que os funcionários "de fora" conseguissem chegar até aqui, a Escola Municipal de Águas Claras esteve funcionando rotineiramente a partir do dia 19 de novembro com os funcionários locais (morador do Distrito de Águas Claras, margem esquerda do Rio Gualaxo. Trinta dias depois da tragédia).
Sem dúvida o acidente em Mariana põe em xeque uma atividade que sustenta a economia de uma vasta região do Estado de Minas Gerais, sendo preponderante no quadrilátero ferrífero e que vai se estendo a regiões da Serra do Espinhaço, na proporção centro-norte do estado. Sendo uma atividade de relevância para as finanças nacionais, torna-se, pois, necessário que se discuta, em profundidade,
soluções
para
seus
impactos
socioambientais.
6. Órfãos de si mesmos A questão de identidade não se resume apenas a um nome ou filiação. Embora se tenha preocupação imediata com a perda de documentos de identificação civil, percebese no diálogo com atingidos que há, como pano de fundo da individualidade de cada um, uma referência ao outro, o que torna a pessoa não uma singularidade, mas uma peça de um mosaico que se desfez.
Isso para dizer que a pessoa é um ser em si, mas também um ser que se reconhece em relação a outro ser. Um animal social que constrói a sua identidade na convivência com outros da mesma espécie. [...] toda identidade humana implica não apenas uma certa permanência através do tempo (o que Paul Ricoeur chama de mesmice), mas também um aspecto auto-referencial; a identidade deve se enunciar, se reiterar, para ser ("Eu sou eu mesmo"). Essa reiteração, nós a chamamos — também utilizando Ricoeur — de ipseidade. Finalmente temos um terceiro patamar, no qual a identidade interpreta a si própria, se discute, quer se modificar, se projeta de tal ou qual maneira rumo ao futuro. Esse patamar é o da auto-reflexividade, que constitui um redobramento da autoreferencialidade (DEBRUN, 1990 s.p.).
A identidade dos moradores de uma determinada comunidade, embora se preserve e se evidencie nos valores individuais, é um processo de formação humana coletiva, estabelecida ao longo da vida, por laços se formam em relações de vizinhança e convivência, não apenas entre pessoas, mas com lugares e rotinas, de maneira a constituir uma espécie de habitat que agrega ambientes físicos e emocionais (WEBER,1973). Uma integração a que chamamos pertencimento. A ruptura brusca dos laços que nos ligam aos ambientes de convivência não só expõe a uma diáspora forçando a locomoção para alhures, como também destrói
relações de pertencimento, vinculação do homem a um tempo e espaço físico e emocional e a outras pessoas do seu grupo de convívio, elementos que compõem a sua identidade natural até então despercebida. Pertencimento é o sentimento de vinculação a um grupo, um liame afetivo-social que nos identifica em nosso ambiente de convivência e nos diferencia de outros agrupamentos de indivíduos. Embora
únicos
em
sua
individualidade
cada
membro do grupo é reconhecido pelas práticas da sua comunidade, pelos valores que prezam entre si, pelos laços de relacionamento que perpetuam a ponto de construírem
fronteiras
imaginárias
a
outros
grupos
inseridos num mesmo território geopolítico (SANTOS, 1994). Enfim, somos únicos quando somos agrupados e precisamos
do
agrupamento
para
evidenciar
nossa
individualidade, o que torna a identidade algo relativizado, a identificação existe em relação ao outro. E todos nos sentimos pertencentes a um grupo, pois parte de nossos predicativos evidencia a integração com o ambiente social onde vivemos. A pertença ao grupo se faz não somente desenhada por vínculos de parentesco, mas por orientações coletivas de sobrevivência, proteção, medos e aspirações e até
mesmo a partilha de um destino comum, numa espécie de solidariedade inata, uma pacto de adesão. O sentimento de comunidade se estabelece na convivência e na partilha (ou compartilhamento) de experiências, se fortalece nas práticas sociais que se transformam em costumes e asseguram ao grupo certa perenidade, segurança e confiança, independente dos laços sanguíneos e, acabam por construir valores coletivos que se individualizam, edificando uma memória comum do grupo que se reproduz em cada indivíduo (WEBER, 1973). Essa
identidade
de
grupo,
ou
pertencimento,
evidencia uma cota de participação do indivíduo no seu meio, como parte identificada do grupo e capaz de dar a sua contribuição. Inserido noutro ambiente social o indivíduo se descontextualiza, tem fragilizado os seus vínculos de pertencimento e forçosamente estabelece novos relacionamentos de maneira a proporcionar a sua inserção, criando uma identidade adaptada (ou adaptável) à nova situação viabilizando a sobrevivência no novo ambiente (SANTOS, 1994). A identidade-coletiva então só é sentida quando da sua perda e a exposição do indivíduo a outro ambiente que, embora possa aparentar (ou tentar) ser acolhedor, não reflete a sua real convivência, provocando uma
situação
de
estranheza,
exclusão,
deslocamento
e
ausência de identificação com outros lugares e situações (BAUMAN, 2005). A casa é boa, mas não é como a casa da gente né? Os vizinhos são outros, não tem a horta (moradora de Bento Rodrigues abrigada em uma casa na cidade de Mariana, às vésperas do Natal de 2015).
A adaptação a outros formatos de relações humanas e sociais torna-se um processo penoso de intenso sofrimento dada a irreversibilidade do cenário que se desenha para futuro. Embora todos os moradores tenham, no distrito-sede de Mariana, a referência por serviços e atendimento de suas demandas pessoais, não sendo, portanto,
um
ambiente
totalmente
estranho,
a
possibilidade de passar a viver, em caráter permanente, na cidade, expõe os atingidos a uma novidade indesejada pela ausência de possibilidade de retorno à suas origens. Lá no hotel eles me tratam muito bem. Cama limpinha e banheiro no quarto. Tudo muito bom. A comida e boa. Mas eu queria mesmo era comer num prato. Que fosse angu com feijão, mas num prato (moradora de Paracatu queixosa de receber a refeição em um recipiente descartável. Em 14 de novembro de 2015).
A convivência nos novos ambientes urbanos para onde foram deslocadas as famílias atingidas torna-se essencialmente
traumática,
não
apenas
pelos
novos
medos da vida na cidade, outros riscos e exigências a que estão expostas, acentuados pela ideia de insegurança e precariedade da situação do abrigo nas moradias locadas pela mineradora. Não que as casas sejam inseguras ou precárias, mas a situação de flagelado que se arrasta indefinidamente é acentuadamente incômoda. Soma-se a isso a fragilidade e vulnerabilidade sem precedentes do indivíduo, que passa a viver, a partir de agora, em um ambiente diverso, desprovido da proteção que os antigos vínculos lhe garantiam na comunidade que não mais existe (BAUMAN, 2009) e para onde não há meios de voltar. A sensação do rompimento dos liames sócioafetivos-ambientais
causada
pelo
perecimento
da
localidade de Bento Rodrigues, em especial, expõe seus antigos moradores a uma situação de refugiado dentro da cidade onde moram, que se transformou em uma espécie de abrigo temporário ou um deslocamento forçado, embora se saiba que a situação é irreversível. Tal perda de referência afetivo-emocional se traduz em uma angústia de ausência de futuro (e de passado), pela falta de localização geográfica e de pertencimento a uma sociedade formada por relações sociais e ambientais que se formaram entre pessoas e lugares. O sofrimento dos adultos é marcante e expresso em suas queixas.
No trato com as crianças em idade escolar, houve, por parte da Secretaria de Educação de Mariana, a determinação de que as crianças permaneceriam nas mesmas turmas e com os mesmos professores, embora abrigados em outro espaço educacional. Não obstante a preocupação dos pedagogos na manutenção dos grupos sociais e preservação das relações de afetividade talhadas na convivência escolar entre as pessoas, o mesmo não se deu com referência ao ambiente da escola para onde foram deslocados. Os meninos mudaram muito. O comportamento. Até mesmo o respeito com a gente. As salas são muito grandes, tudo é muito longe dentro da escola e eles ficam muito dispersos correndo pelos corredores. Não obedecem mais a gente não (servidora da escola de Bento Rodrigues, em referência à adaptação dos alunos às novas instalações da escola).
As crianças não se adaptaram às novas instalações (maiores e mais confortáveis) e não se identificaram com os
novos
espaços
de
ambientação,
aprendizado
e
convivência, embora mantidas as mesmas turmas e professores. Em um ambiente estranho tentam estabelecer novos padrões de comportamento para os novos espaços. É consenso
entre
os
educadores
que
não
fosse
a
proximidade do término do semestre letivo, o prejuízo ao processo pedagógico seria considerável. A solução parece estar, não na inclusão do atingido ao cenário social da cidade, mas na sua proteção aos novos ambientes, em um processo clássico de exclusão para preservação. Temos que arranjar um lugar, um espaço menor para esses meninos possam continuar estudando. A Escola Dom Luciano é grande demais para eles (professora da escola de Bento Rodrigues, em novembro de 2015. O novo ambiente escolar ameaça a preservação da integridade do grupo social).
Conforme Santos, (1994 p.31), “sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos
de
identificação”.
Nesse
cenário
de
descontextualização das origens, há um receio subjacente entre os educadores, que militam nas escolas de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, de que as crianças, expostas
a
personalidades sedimentadas
um
novo
outras, sobre
novos
ambiente,
desenvolvam
identidades
alternativas
valores
da
cidade,
em
detrimento daquela forma e convivência que desfrutavam no povoado de onde vieram. Por outro lado há a dicotomia de que seria emancipador possibilitar a essas crianças (e às suas
famílias) desenvolver outro ambiente sócio-cultural, sem se tornar refugiado dentro da própria cidade, no processo próprio
de
ambientação
à
nova
realidade.
Isso
a
contrassenso da expectativa semeada pelas autoridades locais de que novas vilas serão construídas, garantindo o retorno futuro dessas crianças às comunidades bucólicas originárias.
7. Sem voz e sem vez No universo das relações sociais a perda das origens trouxe como resultado a afonia da população afetada. O realce à perda da identidade é reforçado nas diversas reuniões que se convocam moradores para discussão da situação dos atingidos, onde o debate é direcionado ou intermediado por autoridades, grupos moderadores da mineradora ou segmentos sociais organizados, em que pouco se dá voz ao indivíduo. Inicialmente habituados a traçarem seus destinos e resolverem suas questões, os atingidos sumariamente são confinados
em
fragilidade
e
grupos
de
iguais,
homogeneidade
conduzidas
pelas
coordenação
fático-jurídica
incômoda,
autoridades da
em
que
situação com
pautas
assumiram
catástrofe
o
de a
homem-
cidadão desaparece no universo de discussões e debates que não faz parte do seu cotidiano. Os
interesses
do
indivíduo-cidadão
e
suas
intimidades familiares passaram a ser discutidos pelos grupos de mobilização, entidades públicas, advogados, autoridades e organizações sociais, alguns com alto grau de politização e objetivos além daqueles que compõem o foco da discussão. Ao se buscar consensos de decisões coletivas, pulveriza
a
ideia
da
singularidade
das
demandas,
subtraindo do atingido o domínio e controle da própria vida. Estão falando de tudo aí. Mas o barro que ficou lá tornou meu terreno infértil. Não dá para plantar nada. Não tenho pasto pro gado que continua bebendo água barrenta, estou sem luz, perdendo a produção de queijo e o povo fica aí discutindo bobeira (morador do subdistrito de Pedras, ao abandonar a reunião convocada com os moradores em 12 de janeiro de 2016, mais de dois meses depois da tragédia).
É natural que o cenário da catástrofe, que alcança dezenas de municípios e atinge direitos difusos dos mais diversos, atraia olhares de organizações sociais que militam nessas áreas e evocam debates calorosos em torno de questões que, não necessariamente, fazem parte da rotina dos moradores afetados.
Discussões intermináveis em ambientes de debates alheios
aos
interesses
individuais
dispersam
a
participação. Posições radicalizadas ou propostas mais abstratas fogem da compreensão do morador afetado e o afasta da discussão. Dando dimensão difusa à ocorrência passa-se a se discutir em outras searas do direito, não necessariamente privilegiando a situação particular do afetado e sua rotina de vida duramente afetada. A condição de afônico incomoda e tem causado desentendimentos dentro dos próprios grupos de atingidos e suas pretensas lideranças. Inicialmente
houve,
pela
comoção
social,
uma
superproteção dos afetados, com excesso de medidas compensatórias e caritativas, donativos e monitoramento da mídia, com ampla exposição de pessoas simples, acostumadas ao convívio em grupos reduzidos, que de uma hora para outra foram alçadas à condição de personagens de telejornais e entrevistados pela imprensa. O assédio aos estudantes, por exemplo, chegou a ser questionado pelos profissionais da educação que não viam meios de cumprir a jornada escolar das crianças que eram abordadas
frequentemente
pela
imprensa
ou
por
voluntários de serviços sociais ofertados aos atingidos, numa perniciosa quebra de rotina.
A tutela da mineradora para com as famílias envolveu não somente o abrigo temporário em hotéis (posteriormente em moradias permanentes), mas também a guarnição das casas locadas, mobiliário, fornecimento de
alimentos
Abrigados
e
em
acompanhamento
moradias
alugadas
sócio-psicológico. pela
mineradora
passaram a receber auxílio financeiro (pactuado em juízo em uma ação judicial no final de dezembro de 2015) além do fornecimento de uma cesta de alimentos por família, envolvendo legumes e verduras. A vida aqui [na cidade de Mariana] é muito cara. Um molho de couve de quatro folhas custa dois reais. Lá no Bento a gente plantava e não tinha essa despesa (morador de Bento Rodrigues, nos primeiros dias de dezembro de 2015).
A proposta inicial de socorro e solidariedade foi suplantada
por
um
conjunto
de
exigências
das
autoridades e a ampla exposição midiática provocou uma avalanche
de
ajuda
humanitária
que
superou
as
necessidades e c criou uma forma de vida artificial, diversa daquela que se vivia antes da tragédia. Evidente que se trata de pessoas que proviam por seus meios o seu próprio sustento, que administravam seus interesses e de suas famílias com poderes de escolha e de iniciativa, dentro de possibilidades econômicas peculiares e que, a partir da ocorrência do rompimento da
barragem, perderam não apenas pertences materiais, mas horizontes e perspectivas, além do controle sobre o próprio destino. Tal situação estabeleceu um conflito que afeta a relação do indivíduo consigo mesmo e o expõe a uma posição
de
impotência,
já
que
vem
perdendo
o
protagonismo na condução da sua própria vida. Noutro lado
vem
criando
vínculos
de
dependência
antes
inexistentes para com a mineradora, os movimentos sociais, igrejas, lideranças e autoridades, afetando até mesmo os valores e a dignidade das famílias. Meu pai não trabalha, não. Ele recebe da Samarco e tem uma cesta básica (filho de morador de Bento Rodrigues, sobre a atividade profissional do provedor da família).
Sem atividade produtiva, o ócio de alguns assistidos confinados em ambientes inadequados aos seus hábitos e modos de vida, vem gerando uma nova situação de vida, incômoda,
em
prejuízo
aos
valores
apreendidos
e
cultuados na vida pacata das vilas atingidas. Os botecos têm sido o ponto de encontro dessas pessoas. Eles perderam tudo e agora estão perdendo a dignidade (morador de Mariana, referindo-se aos atingidos abrigados nos hotéis da cidade que sem ter o que fazer perambulam pelas ruas em pequenos grupos).
É
indubitável
que
a
tal
situação
sucumbem,
também, os indiretamente afetados, tais como empregados da mineradora, que tiveram sua atividade profissional suspensa, ou das empreiteiras que romperam seus contratos com o segmento minerário e contribuem para aumentar o contingente de desocupados, provocando outra leva de preocupações sociais. Assim, o rastro destrutivo da lama pode ser visto em imagens das mais diversas, do leito morto do Rio Gualaxo do Norte à calha do Rio Doce, estendendo-se até o oceano. O rastro de destruição moral da catástrofe, no entanto, só pode ser percebido de perto, quando se tem olhar para o sofrimento das famílias privadas do seu convívio e da proteção do local onde viviam, das nuances do território físico, geográfico e social de onde foram deslocadas. Ainda que se construa uma “nova Bento Rodrigues” a identidade do seu povo, como um cristal quebrado, foi duramente
afetada
e
dificilmente
será
resgatada
à
integridade anterior à tragédia. E quanto mais tempo perdurar a situação de indefinição quanto ao seu destino, pior será a reconstrução do tecido social destruído, já que a demora acaba por fortalecer vínculos de dependência e reforça
a
individual.
perda
da
autonomia
e
do
protagonismo
Considerações Finais A Tragédia de Mariana, como vem sendo tratado o rompimento da Barragem de Fundão, está longe de um desfecho conclusivo. Digladiam
autoridades
ambientais,
judiciárias,
movimentos sociais, mídia, advogados, e toda uma horda de espertalhões, oportunistas, lideranças e afetados na busca
de
culpados,
identificação
de
responsáveis,
indenizações, respostas. A esperança de uma solução rápida parece ter-se embrenhado na densa camada de lama. Prognósticos dos mais diversos vêm sendo feitos, em um exercício de futurologia, acerca do período de tempo necessário
para
que
a
natureza,
com
ou
sem
a
interferência humana, se recupere ao longo da calha do Rio Doce e dos seus contribuintes, o Rio do Carmo e o Rio Gualaxo do Norte. Dificilmente se pode estabelecer um prazo de expiação dos danos individuais, coletivos ou difusos. Ronda o episódio a tendência de judicialização de conflitos,
que
arrasta
à
morosidade
dos
tribunais
celeumas intermináveis, que se emaranham nos rituais das Cortes Processuais, com seus remédios e recursos infindáveis e soluções a perder de vista.
Uma grande parcela da população, que não foi diretamente atingida pela lama, corre o risco de se ver privada de serviços públicos essenciais, pela acentuada queda da arrecadação municipal e declínio visível da economia na cidade. Noutra
ponta
há
os
interesses
econômicos
e
tributários que se enfileiram. Acionistas, empregados, agentes públicos, consumidores, prestadores de serviço, todos agônicos, esperam por um termo. Há uma ansiedade crescente quanto à previsão de retorno à normalidade. A produção e circulação de riquezas na região foram atingidas e inquietam a prestação de serviços públicos, comprometem iniciativas periféricas, reduz oportunidades. Urge por uma solução! Entretanto, por mais otimista que se possa ser, é quase certo que a proposta, até então levada a efeito, da busca pelo entendimento, se exitosa não alcançará a todos os nuances da tragédia. A diversidade de direitos afetados, a
pluralidade
de
atores
envolvidos
e
os
inúmeros
interesses que se entrelaçam, para além dos direitos dos moradores atingidos, tornam cada vez mais distante a tabulação de um consenso que seja satisfatório a todos. A reparação dos danos, de maneira restaurativa ou compensatória, ou mesmo pela reconstrução das vilas afetadas,
em
nenhuma
hipótese
reconstruirá
ou
recuperará as identidades perdidas, as histórias de vida interrompidas ou que se sucumbiram na avalanche de rejeitos. Não a para onde voltar. Eis a certeza. A única, por enquanto. Todo o
resto são quimeras, conjecturas,
promessas. Haveremos de contar com a capacidade do homem em
adaptar-se
às
realidades
imutáveis,
buscando
encontrar no horizonte da lei o discurso do entendimento para a recomposição do cenário afetado, seja urbano, político, afetivo, social, econômico ou ambiental, sem extremismos ou exageros. À memória dos que se foram! À memória que se foi, daqueles que ficaram!
Referências: ANDRADE, Carlos Drummond de. José. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. ANDRADE, Carlos Drummond de. Confidências do Itabirano. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 2005
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Trad. Eliana Aguiar. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 2009 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil – 1988 – Disponível em: Acesso em 26 set. 2015. BRASIL, Lei Federal 12.334 de 20 de setembro de 2010. Disponível em Acesso em 13 Jan. 2016 BRASIL, Departamento Nacional de Produção Mineral, 2014. Acesso em 12 jan. 2016 BRASIL, Departamento Nacional de Produção Mineral, 2015. Disponível em Acesso em 13 Jan. 2016 CARVALHO, Celso Guimarães; SILVA, José Margarida da; CURI, Adilson; FLORES, José Cruz do Carmo. A dependência da arrecadação do município de Ouro Preto do setor mineral. Revista Escola de Minas. RBC editoração eletrônica. Ouro Preto, MG. 2012. DEBRUN, Michel. A identidade nacional brasileira. Estudos avançados. Volume 4 nº. 8 São Paulo Jan./Apr. 1990 disponível em Acesso em 16 jan. 2016
DIAS, Gonçalves. I Juca Pirama. Disponível em Acesso em 13 jan. 2016 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 49ª Ed. São Paulo: Global, 2004. JACOBI, Pedro Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade. Cadernos de Pesquisa nº.118 São Paulo Mar. 2003. Disponível em acesso em 12 dez. 2015 QUIRINO, Israel. Galerias. Editora Arte Quintal, Belo Horizonte – MG. 1986 SANTOS, Boaventura de Souza. Modernindade, identidade e cultura de fronteira. In: Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5(1-2): 31-52, 1993 (editado em nov. 1994), disponível em Acesso em 13 jan. 2016 SEBRAE. Como mudar a perspectiva de sua cidade: o desenvolvimento acontece com a força dos Pequenos Negócios. Vencedores do 8º Prêmio Sebrae Prefeito Empreendedor (2013-2014). Disponível em Acesso em 13 de janeiro de 2016
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FOSFOETANOLAMINA: A MILAGROSA PÍLULA DO CÂNCER (ILUSÃO DA CURA E O CASUÍSMO DA LEI FEDERAL 13.269 DE 13 DE ABRIL DE 2016)1 Israel Quirino2 Camilla Coelho Quirino3 Resumo: Em abril de 2016, em meio a um turbilhão de eventos políticoeconômicos e afundados em uma onda de surtos de dengue, zika, chikungunya e H1N1 o Governo Federal, em tramitação recorde discute, aprova nas duas casas legislativas e sanciona uma lei que permite o uso da substância fostoetanolamina, droga milagrosa que mereceu da mídia a alcunha de “pílula do câncer”. Dirigida a um público extremamente fragilizado pela perversidade de uma doença cuja possibilidade de cura é rarefeita, abre-se um mercado promissor para comércio de um fármaco que carece de estudos conclusivos de eficácia e mapeamento seguro de seus efeitos colaterais e ignora a função e competência da agência reguladora do setor, a ANVISA. Palavras-chave: Pílula do Câncer; Fosfoetanolamina; Lei 13.269/2016
Introdução:
O presente trabalho discute as incertezas que pairam
acerca
dos
efeitos
realmente
curativos
da
fosfoetanolamina na cura das neoplasias malignas, a ponto de ter merecido da mídia a alcunha de “pílula do câncer”.
Publicado originalmente na Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 21, n. 4682, 26 abr. 2016. Disponível em: 2 Advogado, Professor de Direito Constitucional da FUPAC – Mariana 3 Acadêmica do Curso de Jornalismo da FUMEC – Belo Horizonte. 1
Pretende-se
abordar
a
ausência
de
estudos
conclusivos acerca da eficácia da substância, que diante do apelo dramático do paciente que busca a cura de uma patologia que se sabe de cura difícil, e da enganosa propaganda que se constrói sobre seus efeitos curativos, acaba por expor o paciente aos efeitos desconhecidos da droga (benefícios e malefícios não mapeados) ou à insegurança dos médicos quanto ao ponto de se prescrevêla em grande escala. No mesmo diapasão discute-se a responsabilidade das Casas Legislativas Federais em fazer sobrepor a decisão política aos conhecimentos técnicos científicos da ANVISA e das entidades médicas e oncológicas que desacreditam (ou alimentam incerteza) quanto ao poder curativo da substância. A mídia, na ânsia de informar acaba por construir um universo de esperanças sobre um a pesquisa científica inconclusa fomenta um mercado gigantesco de medidas judiciais, que por sua vez acaba por oferecer à pesquisa dezenas de milhares de cobaias humanas que de bom grado se submeterão ao uso do fármaco diante da promessa (ou esperança) da cura. Por outro lado, a lei, recentemente aprovada sem o aprofundamento da discussão, por seu termo, contribui para abertura de um mercado extremamente promissor de
royalties
sobre
a
substância
patenteada,
embora
desconheçam seus reais efeitos clínicos e curativos.
2. Enquanto há vida há esperança
Para os profissionais que trabalham com pacientes portadores
de
doenças
terminais,
são
facilmente
identificáveis e conhecidos os cinco estágios da doença, descritos pela psiquiatra suíça
Elizabeth Kübler-Ross
(1969). Segundo a pesquisadora, em seus estudos de tanatologia apresentados na obra “Sobre a Morte e o Morrer” (1969), a descoberta de uma doença incurável leva o paciente a cinco estágios emocionais: a negação; a raiva; a negociação; a depressão e, por fim, a aceitação. Tais estágios do epílogo da vida foram discutidos de maneira crítica pelo cinema na obra Antes de Partir (The Bucket List) do cineasta Rob Reiner (2007), onde os personagens centrais da trama Carter Chambers (Morgan Freeman) e Edward Cole (Jack Nicholson), compartilham os períodos finais de tratamento de doenças terminais. Apesar de sua seriedade, o tema é abordado de maneira bem humorada, com dois personagens em conflito: um pobre, negro e sábio (Freeman) e um rico,
branco e fútil (Nicholson) que convivem com a certeza da morte próxima e discutem valores da vida em sua fase final. Cientes que as incertezas do final da vida afeta a todos indistintamente, ambos elaboram uma “lista de desejos” e resolvem realizá-la antes da partida. Longe das ribaltas da arte, porém, a angústia que se abate sobre portadores de doenças denominadas terminais ou incuráveis vai além do Modelo de Küber-Ross, levando o paciente e sua família a enveredar por caminhos da esperança (ou do desespero) em busca da cura ou alívio ou mecanismo de enganar o espírito e antecipar o estágio de aceitação da morte iminente. Neste estágio, do dogmatismo ingênuo ou da última esperança, não descrito pela Doutora Kübler-Ross, o paciente acredita em qualquer coisa e tomará qualquer atitude para alivio dos sofrimentos e busca da cura que se sabe incerta. O prolongamento da vida ou a eliminação dos incômodos da doença expõe ao enfermo e à sua família
a
uma
situação
de
fragilidade
emocional,
susceptível a qualquer promessa de alívio. Diante da certeza da morte vale à pena investir em qualquer fagulha de esperança, uma vez que nada se tem a perder.
3. Um mercado promissor
Ao contrário do paciente, no entanto, que nada tem a perder, laboratórios que fabricam medicamentos muito tem a ganhar. E aí que reside a discussão ética que se propõe neste ensaio. Alimentando a esperança de dezena de milhares e pacientes cancerígenos o Brasil, por meio da Lei Federal 13.269/2016,
liberou
fosfoetanolamina,
o
consumo
supostamente
uma
da
substância
droga
sintética
capaz de curar o câncer. Concebida no calor de uma discussão ética-jurídicacientífica ainda não conclusa, a aprovação da norma resulta em um típico casuísmo emocional, no qual sucumbiu
o
Congresso
Nacional,
ao
arrepio
dos
instrumentos que orientam a liberação do comércio de drogas e medicamentos e, até mesmo, desautorizando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), cuja competência legal encontra-se expressa no artigo 8º da lei 9.782/1999: Art. 8º Incumbe à Agência, respeitada a legislação em vigor, regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e serviços que envolvam risco à saúde pública. § 1º Consideram-se bens e produtos submetidos ao controle e fiscalização sanitária pela Agência: I - medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos, processos e tecnologias;
Não é, no entanto, a primeira vez que o Congresso Nacional enfrenta a ANVISA e contraria suas decisões técnicas. Em setembro de 2014, por meio do Decreto Legislativo 273 foi liberada a fabricação, a prescrição e venda do inibidor de apetite sibutramina, considerado pela ANVISA uma substância nociva à saúde desde 2011 (Resolução RDC 52 da ANVISA). 4. O milagroso caso da fosfoetanolamina
A
fosfoetanolamina
é
um
composto
orgânico,
presente nos organismos de mamíferos e que participam da composição estrutural das células. Os primeiros estudos dessa substância foram iniciados em 1936 pelo cientista Edgar Laurence Outhouse, do Departamento de Pesquisas Médicas do Instituto Banting da Universidade de Toronto, Canadá. A versão sintética da substância começou a ser estudada nos anos 1970. No entanto o seu uso como droga de enfrentamento ao câncer vem sendo estudado no Brasil
pelos
Salvador
Professores
Claro
Neto,
Gilberto
Antônio
Orivaldo
José
Reimer,
Chierice, Sandra
Vasconcellos Al-Asfour, Renato Meneguelo e Marcos Vinicius
de
registraram
Almeida, e
que
testaram
estudaram, um
novo
sintetizaram, composto
de
fosfoetanolamina capaz de marcar células tumorais, permitindo ao organismo humano detectar e combater estes tumores. A partir de resultados preliminares considerados animadores linhagens
em
alguns
celulares
de
modelos câncer
experimentais e
em
animais,
em os
pesquisadores decidiram “testar” a substância em seres humanos, quanto teve início o uso em alguns pacientes portadores de neoplasias na região da cidade de São Carlos-SP. A fórmula dos cientistas brasileiros está protegida pela lei de patentes e, desde o final da década de 1980, por atuação do professor Orivaldo Chierice, vinha sendo fabricada e distribuída pelo Instituto de Química de São Carlos, unidade da USP a pacientes cancerosos, mesmo ante a ausência de laudos conclusivos sobre a eficácia do fármaco. Diante da ausência de autorização de produção e distribuição do medicamento e da falta de laudos conclusivos quanto à sua eficácia no tratamento do câncer, a USP suspendeu a fabricação e a distribuição do produto em seus laboratórios. A partir de então, cresceu exponencialmente o número de ações judiciais contra a USP e dezenas de liminares foram obtidas por pacientes portadores de
neoplasias que obtiveram tutela judicial para continuar a consumir a substância ou a ela ter acesso. O assunto mereceu grande destaque no mundo jurídico quando, em 08 de outubro de 2015, o Ministro Edson Fachin, do STF, deferiu medida liminar que garantiu a uma paciente o acesso ao produto e obrigou o fornecimento da substância à USP– São Carlos. Na decisão o Ministro Edson Fachin, suspendeu decisão anterior e contrária do Tribunal de Justiça de São Paulo que negava a distribuição da pílula contra o câncer fornecida pela Universidade de São Paulo (Campus de São Carlos) e, no entendimento do preceito constitucional de que a vida, a saúde e a dignidade da pessoa humana são bens indisponíveis, obrigou a Universidade a produzir e distribuir a substância. Na ação principal o TJSP havia entendido que a ausência de certificação do produto pela ANVISA não lhe garantia a eficácia desejada e poderia por em risco a saúde do paciente. Não obstante, no entendimento do ministro, proferido na Petição (PET) 5828, o tema relativo ao fornecimento de medicamentos sem registro na Agência Nacional
de
Vigilância
Sanitária
(ANVISA)
aguarda
pronunciamento da Corte em processo com repercussão geral reconhecida – Recurso Extraordinário (RE) 657718 e diante do fundamento invocado pelo TJSP que referia-se
apenas à ausência de registro na ANVISA da substância, entendeu que não havia lesão à ordem pública e determinou o fornecimento do suposto medicamento. Pesou na decisão do ministro o fato, mais emocional do que jurídico, de a paciente informar ser portadora de moléstia grave, em fase terminal, e ter-lhe sido indicada, por laudo médico o consumo da substância, ante a ineficácia
de
todos
os
procedimentos
médicos
recomendados. Medida extrema e derradeira, portanto, que não comportaria outras discussões científicas ou doutrinárias. Diante
da
repercussão
da
distribuição
de
fosfoetanolamina para fins terapêuticos no tratamento do câncer pelo Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP) e da grande cobertura midiática que mereceu o feito, a partir de então o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e o Ministério da Saúde, de forma articulada, vêm promovendo a realização de estudos para verificar a segurança e eficácia da substância, sem ter chegado, ainda, a uma conclusão definitiva sobre a sua eficácia em seres humanos (BRASIL, 2016). Nos documentos da Associação Médica Brasileira há notícia de que a fosfoetanolamina sintética teria sido testada
unicamente
em
camundongos,
com
reação
positiva no combate do melanoma (câncer de pele) neste animal. Devido à expectativa gerada pela substância, apresentada como capaz de “tratar todos os tipos de câncer”, milhares de ações judiciais foram apresentadas até a decisão do STF suspendendo sua distribuição. Em abril de 2016, atendendo a apelo da USP, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, reviu a decisão exarada pelo ministro Edson Fachin e determinou que a distribuição da fosfoetanolamina pela
Universidade
remanescer
o
deveria
estoque
do
se
dar
somente
composto
e
enquanto
promoveu
o
trancamento de todas as ações que objetivavam ter acesso ao produto. Depois disso, o fornecimento foi suspenso tendo como justificativa a ausência de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a falta de estudos publicados sobre os benefícios de sua utilização na cura do câncer, a falta de estudos que atestem sua segurança e o desvio de finalidade da instituição de ensino (BRASIL, 2016).
5. Pacientes terminais e cobaias humanas
O uso de medicamentos experimentais por pacientes cancerígenos não é novidade no biodireito brasileiro. É
conhecido o caso da substância rituximabe utilizado pela Presidente Dilma Rousseff para cura de um câncer no sistema
linfático
em
2009,
apesar
da
comunidade
cientifica divergir sobre sua eficácia. Na esteira do procedimento adotado para cura da então ministra Dilma Rousseff vários médicos sentiram-se à vontade para prescrever o produto e a justiça se viu em condições de determinar o seu fornecimento àqueles que demandavam pelo tratamento. Procedimento curativo experimental ou cobaias humanas? É uma indagação sem resposta. A administração em seres humanos de substâncias cuja eficácia curativa ainda não comprovada se, de início, pode nos convencer acerca de um tratamento curativo extremo, diante da ausência de resultados de todos os outros procedimentos médicos recomendados, por outro lado outro pode ser, perfeitamente uma estratégia cruel de utilização de cobaias humanas para testes e estudos, ao arrepio das normas éticas de pesquisa envolvendo seres humanos. Não
é
novidade
medicamentosas
(ou
que não)
o
comércio
constitui
um
de
drogas
segmento
econômico que movimenta cifras incalculáveis. No mesmo viés é de amplo conhecimento que a solução para doenças incuráveis ou rarefeitas, e o câncer é uma delas, poderá
resultar ao seu pesquisador não apenas status científico de alta linhagem (ou até indicação ao Prêmio Nobel), como também o registro de patentes altamente promissoras, cujo valor de mercado poderá enriquecer o denodado estudioso. E isso, à custa de experimentos que, à sombra da dor alheia, pode se comparar aos feitos dos médicos nazistas: o uso indiscriminado de cobaias humanas. A discussão sobre o uso de cobaias não humanas em pesquisa científica é tema recorrente. Um episódio que movimentou a comunidade acadêmica aconteceu em outubro de 2012 quando um grupo de militantes dos direitos dos animais invadiu a sede do Instituto Royal, em São Roque, no estado de São Paulo. Naquela empreitada fora denunciado o uso de cães da raça beagle que seriam cobaias para testes de medicamentos
e
cosméticos.
A
libertação
dos
animaizinhos vítimas da “perversidade humana” em nome da ciência foi comemorada pelas redes sociais e mereceu destaque nos principais revistas e jornais do país. A questão da fosfoetanolamina, no entanto, assim como a dos cãezinhos beagle, envolve nosso lado emotivo. O que vemos, na verdade, não são cobaias humanas submetidas a testes de produtos químicos, mas pessoas em fase terminal, cujas esperanças mínguam na medida
em que a doença progride e que buscam nessa experiência científica a última fagulha de esperança. Fogem à nossa compreensão imediata os efeitos colaterais da droga, a propaganda enganosa com a ilusão da cura que ainda não fora certificada ou, até mesmo, a potencialização de sofrimentos que poderão advir da administração da substância em conjunto com outras que fazem parte do tratamento do paciente. Do mesmo modo escapam da nossa percepção os valores econômicos envolvidos em eventual pesquisa científica que usa indiscriminadamente seres humanos para desenvolvimento de remédios que, patenteados, poderão
render
aos
seus
pesquisadores
cifras
imensuráveis. Sem duvida uma discussão mais ética que científica. 6. A pesquisa em seres humanos
O uso de seres humanos em pesquisa científica não é novidade
no estudo do biodireito, como não o é nas
relações da bioética, a ponto de merecer formulação de normativo
internacional
que
organize
esta
área
de
atuação. A declaração de Helsinque, documento promulgado pela Associação Médica Mundial (AMM ou WAM em inglês)
foi elaborada em 1964 e permanece sendo um dos principais documentos internacional de ética em pesquisa envolvendo seres humanos. Periodicamente revista, atualizada de acordo com os avanços científicos, o desenvolvimento de postulados éticos e jurídicos, a última revisão da Declaração de Helsinque se deu em 2013, na 64ª. Assembleia Geral da WAM ocorrida em Fortaleza – Brasil,
e propõe me seu
item 37 a seguinte recomendação: 37. No tratamento de um determinado paciente, onde intervenções comprovadas não existem ou outras intervenções conhecidas se mostraram inefetivas, o medido, depois de buscar conselho especializado, com consentimento informado do paciente ou de representante legalmente autorizado, pode usar uma intervenção não comprovada se em seu julgamento ela oferece a esperança de salvar a vida, restabelecer a saúde ou aliviar o sofrimento. Esta intervenção deve, em seguida, tornar-se objeto de pesquisa desenhada para avaliar sua segurança e eficácia, em todos os casos a nova informação deve ser registrada e, quando apropriado, tornada disponível publicamente.
Seria uma infantilidade acreditar que os avanços da ciência e da produção de fármacos pudessem se dar sem a pesquisa envolver, diretamente, seres humanos. Desde os estudos
de
Galeno
e
Paracelso
a
indústria
de
medicamentos se vale de experimentos em pessoas a fim de comprovar a sua eficácia. Isso pelo fato de que experimentos em animais (ratos, coelhos e primatas
menores) nem sempre correspondem às reações do corpo humano. Assim,
a
pesquisa
médica
envolvendo
seres
humanos, no que se reporta à produção de novas drogas e medicamentos, tem sido prática comum na evolução desta área da ciência. Por óbvio muitas vidas foram perdidas em forma de contribuição para melhorar a qualidade de vida de outros, aprimorar medicamentos ou definir-lhes as proporções seguras de consumo. As questões éticas, no entanto, que nos causam certo desconforto é quando se percebe a intenção científica de que determinadas substâncias possam ser usadas em seres humanos sem que se tenha dimensionado o alcance real de suas potencialidades curativas ou o paciente não tenha recebido a informação correta de que faz parte de um processo experimental, cujos efeitos não foram suficientemente esclarecidos e os resultados não podem ser dimensionados como milagrosos. A ilusão da cura talvez seja o mais grave problema ético da Fosfoetanolamina. Ainda restam evidentes em nosso meio os danos causados pelo uso da Talidomida, uma outra droga milagrosa difundida na segunda metade dos anos 1950, cujos efeitos colaterais não haviam sido totalmente
mapeados e se mostraram os mais nefastos e que casou sérios danos diante da desinformação e da falta de controle no fornecimento do medicamento. Torna-se claro que há necessidade evidente de se ter normas que disciplinem as pesquisas científicas e coíbam a prática abusiva de experimentações sem critérios ou a distribuição de medicamentos que se proponham, de maneira milagrosa, a curar determinadas enfermidades, sem alertar o paciente dos riscos potenciais, inclusive da ilusão da cura. Torna-se ainda mais grave tal procedimento quando se tem por objeto da pesquisa um grupo extremamente fragilizado da população que, indiferente dos postulados éticos, avança sobre o desconhecido como última tábua de salvação, susceptíveis que são à propaganda enganosa. Por certo, ao mesmo tempo em que a sociedade pode se tornar beneficiária dos resultados que advirem do experimento, torna-se temeroso e inseguro o uso em larga escala de um produto do qual ainda não se sabe a potencialidade nociva ou curativa. Tornar o ser humano cobaia de experimentos científicos, ainda que esteja em fase final da vida ou situação irreversível de doença, causa certo desconforto no homem médio, que criou padrões de ética que interfere na
clareza de discernir até onde se pode dispor da vida de outrem. 7. O casuísmo da Lei Federal 13.269 de 13 de abril de 2016
Apresentado na Câmara Federal em 08 de março de 2016 o projeto de Lei 4.639/2016 fora subscrito por vinte e seis deputados, de doze estados brasileiros e dezesseis partidos com representação do Parlamento, de maneira a merecer, praticamente a aprovação homologatória da Casa Legislativa. Em dois dias o projeto já se encontrava aprovado e remetido ao Senado Federal onde também tramitou em celeridade recorde, a ponto de vir a se tornar lei ordinária em pouco mais de um mês depois de sua apresentação em 13 de abril de 2016 (BRASIL, 2016). Como dizia um jargão televisivo, foi aprovado em um vapt-vupt. Dito desta forma, tem-se, à primeira vista, a preocupação dos senhores parlamentares com a saúde do brasileiro pela atenção singular que deram ao tema, a ponto de aprovar a norma em pouco mais de um mês, ou pelo fato de já haver na Casa outras proposições legislativas de conteúdo semelhante, em especial o PL 3.454/2015 de autoria do Deputado Mineiro Wellington
Prado (PT/MG) que tramitava desde outubro de 2015 (BRASIL, 2016) e com discussão já avançada. Por outro lado, percebe-se que o momento histórico da aprovação e sanção do tema se dá exatamente no centro de uma discussão nevrálgica de uma crise política sem precedentes, em sendo a matéria uma resposta à uma sociedade ávida por notícias menos beligerantes. Soma-se a isso os fantasmas da saúde pública negligenciada, assoladas por ondas de zika-virus, chikungunya, dengue e gripe H1N1 para as quais as respostas governamentais ainda são tímidas. Conjecturas e ilações à parte, temos que o assunto não fora debatido no Parlamento com a profundidade e transparência que requer, mormente pela complexidade que apresenta já que reúne em si não apenas o sim ou não
da
deliberação
governamental,
mas
comporta
discussão de natureza ética, jurídica e científica que não foram suficientemente resolvidas. No dia seguinte à sanção da norma, a página oficial da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na internet externava a preocupação do órgão acerca da fabricação e distribuição da substância, quase que como um
alerta
à
população
irresponsabilidade governamental:
quanto
à
suposta
A Anvisa reitera sua profunda preocupação em relação à Lei nº 13.269, que libera a produção e comercialização da substância Fosfoetanolamina, mesmo sem esse produto ter realizado os estudos clínicos capazes de comprovar sua eficácia e segurança e de não ter sido registrado na Agência, como todos os medicamentos em uso no País precisam ser. Essa exceção, concedida pela Lei nº 13.269, abre perigoso precedente porque afronta o sistema regulatório em vigor, que foi estabelecido pelo próprio Congresso Nacional, e pode trazer riscos sanitários importantes para nossa população (ANVISA, 2016).
Do alto de sua competência específica em assuntos que se refere a fabricação, produção e distribuição de medicamentos, a ANVISA emite alerta de graves riscos à população, apresentando questões que deveriam ter sido respondidas nos debates parlamentares e que não estão suficiente claras à comunidade científica, médica e sobretudo ao usuário. No mesmo endereço eletrônico, em 14 de abril de 2016 a Agência questiona: [...] quem assegurará ao consumidor que a substância que está adquirindo não é uma inescrupulosa falsificação? Quem garantirá que a quantidade da substância informada na embalagem é efetivamente a que existe no interior de cada cápsula? Como ter certeza que no interior de cada cápsula existe apenas a Fosfoetanolamina, e não outras substâncias que poderão ser ingeridas sem que o consumidor saiba de sua existência? Na embalagem haverá data de fabricação e de validade e as informações que permitem identificar o lote produzido, em caso de ocorrerem eventos adversos? Haverá bula e nela poderá ser indicado que o paciente não
deverá realizar o tratamento convencional contra o câncer? Na bula ou na embalagem poderá ser anunciado que a substância cura todos os tipos de câncer, mesmo sem haver qualquer comprovação científica para essa alegação? Se um paciente de câncer tomar a Fosfoetanolamina e não tiver seu câncer curado, a quem ele poderá responsabilizar?
Tais questionamentos, efetuados por quem tem a missão legal de regular o setor de produção e distribuição de medicamentos no país é dirigido às autoridades que, a nosso
sentir,
usurparam
funções
técnicas
e
num
casuísmo perigoso atenderam a um clamor popular, sem o devido cuidado no estudo da matéria. Como já observado neste estudo, o fato não é novidade na Casa Legislativa, desde que o Parlamento resolveu enfrentar a ANVISA e liberar os inibidores de apetite compostos de sibutramina, que a agência havia retirado de comercialização por razões técnicas. A gravidade do tema é tão evidente que mal a lei fora publicada no Diário Oficial da União, a Associação Médica Brasileira (AMB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5501), contra a Lei
13.269/2016,
motivada
pelo
fato
de
amplo
desconhecimento acerca da eficácia e dos efeitos colaterais da substância em seres humanos. Argumentou a entidade que a liberação do fármaco é incompatível com direitos constitucionais fundamentais
como o direito à saúde (artigos 6° e 196 da CF), o direito à segurança e à vida (artigo 5°, caput), e o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, inciso III). A
Ação
Direta
de
Inconstitucionalidade
foi
distribuída à relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello e ainda estava sem deliberação quando da elaboração desse estudo (BRASIL, 2016). 8. A Lei 13.269 e seu alcance prático:
Após decisão do STF que determinou a suspensão da distribuição da substância em abril de 2016 a USP, enquanto unidade de ensino, fechou o seu Instituto de química no Campus de São Carlos, onde fabricava a fosfoetanolamina sintética. Notadamente após ter sido, aquela unidade de prática educacional, transformada em um
centro
produtor
da
substância,
requisitada
às
mancheias por liminares judiciais perdera a função pedagógica. O advento da Lei 13.269/2016, no entanto, abre espaço para a produção em série da substância, que se diga, patenteada em nome dos seus pesquisadores brasileiros, com oportunidade de comércio em larga escala, ao largo dos olhos da ANVISA.
A Lei 13.269/2016 tem apenas cinco artigos, a carecer de farta regulamentação até a sua eficácia legislativa plena. Não obstante a maior gravidade, a nosso sentir, resume-se ao disposto no artigo 4º, quando permite a fabricação e consumo da substância, independente de pronunciamento e controle da ANVISA. Art. 1o Esta Lei autoriza o uso da substância fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Art. 2º Poderão fazer uso da fosfoetanolamina sintética, por livre escolha, pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, desde que observados os seguintes condicionantes: I - laudo médico que comprove o diagnóstico; II - assinatura de termo de consentimento e responsabilidade pelo paciente ou seu representante legal. Parágrafo único. A opção pelo uso voluntário da fosfoetanolamina sintética não exclui o direito
de
acesso
a
outras
modalidades
terapêuticas. Art.
3º Fica
definido
como
de
relevância
pública o uso da fosfoetanolamina sintética nos termos desta Lei. Art. 4º Ficam permitidos a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da fosfoetanolamina sintética, direcionados aos usos de que trata esta Lei, independentemente de registro sanitário, em caráter excepcional, enquanto estiverem em curso estudos clínicos acerca dessa substância. Parágrafo único. A produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição e dispensação da fosfoetanolamina sintética somente são permitidas para agentes
regularmente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente.
Como visto, a lei não prevê que seja necessária a prescrição da fosfoetanolaimina para que o paciente possa usá-la (art. 2º) , causa certa incerteza o ato de não haver prescrição médica, mas o simples laudo médico que comprove a patologia. A opção, que fica a cargo do paciente, poderá conflitar com outros procedimentos médicos em curso, expor o paciente a superdosagem de medicamentos ou, até mesmo, induzi-lo a abandonar tratamentos convencionais diante do potencial “milagroso” da pílula do câncer. Segundo consulta efetuada na página oficial do Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde não vai fornecer
a
fosfoetanolamina,
porquanto
não
seja
a
substância um “medicamento”. Desta forma, quem quiser fazer uso da substância terá de pagar por ela (BRASIL, 2016). Isso não impede, todavia, aos juízes de continuarem a concedendo medidas liminares obrigando os sistemas públicos de saúde a oferecerem o produto aos pacientes, fundados no princípio da dignidade da pessoa humana, do direito à saúde, etc.. Em nota o Ministério da Saúde divulgou informação de
que "está sendo sugerida a prescrição médica em
talonário numerado que permita o rastreamento do paciente
(com justificativa para o uso)" (BRASIL, 2016), ficando ao alvedrio do paciente optar ou não por utilizar o produto. Como se diante do desespero da doença terminal houve ponderação e escolha consciente acerca de riscos e benefícios. Uma grande lacuna que se abre no ordenamento jurídico
brasileiro,
prometendo
ser
uma
porta
de
esperança: para o paciente que busca a cura ou para a receita dos royalties e dos laboratórios que contam com público cativo e ampla divulgação midiática com forte apelo
emocional,
afinal,
estamos
diante
de
uma
substância que promete ser capaz de curar uma das mais temidas enfermidades do ser humano.
Considerações Finais:
Há uma onda de descrédito para com a classe política que varre o país de norte a sul e tal ojeriza torna as decisões políticas algo desprezível. No fundo, todos nós gostaríamos de acreditar que, realmente, houve a descoberta de uma pílula capaz de enfrentar e combater o câncer, evolvendo aos pacientes a vida digna, reduzindo os sofrimentos atrozes e semeando a esperança de dias melhores. Quem dera pudéssemos
soltar rojões felicitando tal descoberta. Continuaremos orando para que tal aconteça. Não obstante a ciência é cética. E o ceticismo científico nos requer provas inquestionáveis da eficácia da substância. Até que nos venham dados concretos e confiáveis
de
pesquisar
sérias
com
resultados
satisfatórios, a fosfoetanolamina não passa de um engodo, uma promessa vã que ao ser alçada a condição de “pílula milagrosa” pela mídia e legitimada pela lei, transformou-se em um toque de Midas ao detentor da patente, haja vista o público certo e a avidez pelo consumo. Um insulto ao ser humano que se vê no ocaso da vida.
Anotações post scriptum: Em 19 de maio de 2016 o Supremo Tribunal Federal, por maioria e nos termos do voto do Relator Marco Aurélio Mello, deferiu a liminar para suspender a eficácia da Lei nº 13.269/2016, até o julgamento final da ação.
Referências: BRASIL, 2016. Agência Nacional de Vigilância Sanitária BRASIL, 2016. Senado Federal.
A INTRODUÇÃO DO GÊNERO TEXTUAL ENSAIO ACADÊMICO COMO ATIVIDADE DE ESCRITA NA FACULDADE PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS DE MARIANA: ESTUDO DE CASO Magna Campos1 Nordeci Gomes2 Resumo: O ensaio acadêmico, por se tratar de gênero textual que possibilita mais espaço para a subjetividade e por se situar na fronteira entre a ciência e outras formas de conhecimento, propicia uma experiência de escrita diferenciada em relação a outros gêneros acadêmicos, favorecendo, não raro, ao trabalho de expansão da competência de autoria dos textos. Sendo assim, este estudo de caso tem por finalidade investigar as impressões dos alunos do curso de Direito em relação à introdução do trabalho de escrita de ensaios acadêmicos, destinadas tanto à publicação ou às atividades avaliativas das disciplinas do curso, para atender, em princípio a propósitos expostos ao longo desta pesquisa. O estudo foi realizado via análise do contexto de produção dos textos e análise de transcrições de dez entrevistas orais realizadas entre o mês de abril e maio de 2016. As análises feitas podem subsidiar a continuidade do trabalho introduzido e apontar novos parâmetros a serem considerados. Palavras-chave: Ensaio. Ensaio acadêmico. Tipos de ensaio. Movimentos sociorretóricos. Percepção dos alunos. Estudo de caso.
Introdução: O trabalho com a produção de ensaios acadêmicos oferece um desafio inicial que se refere a investigar as peculiaridades deste gênero textual, a fim de diferenciá-los de outras modalidades de texto, como, por exemplo, do Mestre em Letras. Professora universitária e escritora. Aluna do 5° período em Direito. Monitora da área de Língua Portuguesa da Faculdade Presidente Antônio Carlos. 1 2
artigo científico e, até mesmo, de outras espécies de ensaios, tais quais os ensaios científico, literário e filosófico. A controvérsia sobre o gênero não é recente, tendo motivado até mesmo alguns estudos mais aprofundados para se estabelecer as regularidades e especificidades do gênero, como é o caso das pesquisas de mestrado realizadas por Pena (2005), na UFMG, e Ferragini (2011), na UNICAMP, ambas exploradas teoricamente neste trabalho, dentre vários outros importantes textos que tratam da questão. Neste sentido, o texto aqui elaborado, ao mesmo tempo
em
que
relata
uma
investigação
sobre
as
impressões iniciais que os alunos-ensaístas apresentam sobre a introdução do trabalho de elaboração do gênero textual ensaio acadêmico, como uma das atividades voltada à publicação ou à avaliação de disciplina, no curso de Direito, da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana;
presta-se
também
a
sistematizar
as
regularidades e peculiaridades do gênero e de sua diferenciação com outros gêneros ou espécies textuais, com os quais possa ser confundido, estabelecendo-se fronteiras que podem nortear o emprego didático dessa modalidade no universo acadêmico.
Portanto, essa pesquisa procura integrar a teoria de um gênero textual com a prática pedagógica real que o envolve, a fim de ampliar a percepção de tal prática, em um
contexto
específico,
ouvindo-se
e
analisando-se
algumas das vozes nela inscritas. Por isso, o estudo se justifica tendo em vista que tão importante quanto um trabalho desenvolvido no interior de um curso superior é a sua análise e reflexão, a capacidade de “olhar para si” e saber, com essa
atitude investigativa problematizar,
orientar ou reorientar sua prática pedagógica. A estratégia de investigação eleita para análise da situação citada e tratamento dos dados empíricos foi o estudo de caso, pois, por ser uma modalidade que se encaixa na vertente de pesquisas exploratórias de base qualitativa, o estudo caso atende à necessidade de se conhecer melhor a prática pedagógica adotada em um curso ou em um conjunto de disciplinas de um curso e de seus efeitos ou impressões. Assim, essa modalidade qualitativa em caráter exploratório possibilita que as pesquisadoras, autores deste estudo, exercitem suas capacidades
interpretativas
dos
dados,
devidamente
contextualizados, sem que precisem perder o contato com o desenvolvimento do acontecimento em si. Toma-se como referência um dos estudiosos mais expressivos sobre a metodologia de estudo de caso, Robert
Yin (2005, p. 32), que define o estudo de caso como sendo “uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro do seu contexto de vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos”. Dessa forma, o estudo de caso, como pressuposto por Yin (2005), pode ser direcionado para o estudo de um indivíduo, de um grupo ou de uma organização de forma mais intensiva e abrangente, trazendo consigo a vantagem de valorização do contexto de ocorrência do caso. Características que se coadunam
perfeitamente
com
o
propósito
desta
investigação, melhor tratado mais adiante, na seção correspondente à exposição sobre o trabalho com tal gênero na faculdade mencionada. Como instrumento ou procedimento de coleta de dados, empregou-se a técnica da entrevista oral gravada, seguida,
obviamente,
do
processo
de
transcrição,
observando-se os preceitos metodológicos para condução desse
processo.
Após
transcrição,
os
dados
foram
sistematizados e interpretados no contexto desta pesquisa. Para tratar do tema e realizar o estudo de caso proposto, o texto está estruturado em uma discussão teórica inicial sobre as fronteiras do gênero ensaio acadêmico
em
peculiaridades,
relação sua
a
outras
linguagem
modalidades,
suas
característica,
sua
organização sociorretórica, seguidas da descrição do cenário de pesquisa para explicitar as condições de produção
dessa
modalidade
textual
na
instituição
selecionada, da apresentação dos dados empíricos e das interpretações produzidas. 2. As fronteiras do gênero textual ensaio acadêmico: fronteiras
Nesta seção do estudo, serão tratadas a distinção entre o ensaio acadêmico e o científico, entre o ensaio acadêmico e os ensaios filosófico e literário, além de serem apontadas as características da linguagem do ensaio acadêmico, bem como as peculiaridades e estrutura deste tipo de ensaio. Pode-se,
a
essa
altura,
alguém
estar
se
perguntando: Se já existe o ensaio científico, o ensaio literário e o ensaio filosófico, porque o esforço em traçar peculiaridades do ensaio acadêmico, por que nomeá-lo assim, e por que não apenas estender as características dos ensaios mencionados ao ensaio acadêmico e pronto? Há, sem dúvida, neste estudo, um esforço de se encontrar neste entremeio entre as espécies textuais acima uma utilização didática do ensaio como um gênero acadêmico capaz de contribuir para a constituição da competência autoral dos estudantes da graduação e para
o desenvolvimento de outras competências relacionadas à escrita – como, por exemplo, desenvolver o senso crítico, a escrita
planejada,
argumentação
e
o
domínio
defesa
de
da
um
norma
culta,
a
posicionamento,
a
capacidade de síntese e análise/ análise e síntese dentre outras. Além, é claro, do esforço de se estabelecer fronteiras mais nítidas entre ensaio que aqui se nomeia como acadêmico e o artigo científico, e entre ele e o ensaio mais informal, representado pelo ensaio filosófico e literário. Afinal, assim como a própria palavra, “ensaio”, o gênero remete à ideia de novas possibilidades e de abertura. 2.1 Ensaio acadêmico versus ensaio científico
Quando se estuda o gênero ensaio, mesmo o diferenciando
entre
ensaios
formais
(científico
e
acadêmico) e informais (ensaio filosófico e ensaio literário), ainda assim é comum se esbarrar com a ambiguidade de entendimento dentro da própria subclassificação formal do gênero textual, pois em muitos casos, não se é clara a distinção entre o que seja o ensaio científico e ensaio acadêmico. Se são a mesma coisa, apenas com nomes diferentes, ou se são espécies diferentes de um mesmo gênero textual.
Neste trabalho, considera-se que haja diferenciações entre as duas nomenclaturas e entre o que elas designam, portanto, considera-se o ensaio acadêmico uma espécie textual diferente do ensaio científico, embora os considere pertencentes a um mesmo gênero textual. O ensaio científico é, como evidenciou a pesquisa de mestrado realizada por Pena (2005), na qual se analisou textos
publicados
em
cinco
periódicos
científicos
nacionais, com classificação qualis considerada alta, em que se buscava detectar diferenças entre o que essas revistas
e
os
autores
dos
textos
nelas
veiculados
nomeavam serem artigos científicos e ensaios científicos, uma vez que tais periódicos aceitavam ambos os textos. Conforme o estudo mencionado, em termos de prática
de
produção
os
dois
gêneros
são
muito
semelhantes: Em relação à função numa situação comunicativa, não percebemos, ao analisar os periódicos, características que pudessem determinar uma diferença entre os dois gêneros. [...] não conseguimos definir diferenças significantes entre os artigos e os ensaios [em relação ao] Canal: ambos são encontrados em periódicos científicos destinados ao público acadêmico de áreas específicas. Estilo: não se tratando de estilo pessoal, mas do estilo geral dos textos científicos, não
encontramos muitas diferenças entre os dois gêneros. Conteúdo: é sempre constituído por questões relacionadas às pesquisas científicas, seus resultados ou questionamentos tanto nos artigos, quanto nos ensaios. Composição: os dois gêneros possuem uma mesma estrutura: a do texto predominantemente dissertativo – Resumo / introdução / desenvolvimento /conclusão / referências bibliográficas Função: apesar dos manuais dizerem o contrário, observamos que os dois gêneros têm a mesma função: a de informar e/ou discutir questões referentes ao universo científico. (PENA, 2005, p. 43)
A
pesquisadora
consegue
traçar
alguma
diferenciação entre o artigo e o ensaio científicos apenas em termos do modo de enunciação, relacionado a uma memória discursiva pré-construída, assim: O artigo é um gênero que traz em si um préconstruído de científico e por isso deve estar presente em todos os periódicos que se classificam como fazendo parte da ciência. Este gênero já tem o seu lugar assegurado pela memória discursiva que carrega e o seu pertencimento já lhe é dado pela própria ciência. Não é causa de estranhamento o fato deste gênero ser comum a todos os manuais e periódicos de textos científicos. Já o ensaio tem sua memória afetada por questões fora do que é entendido como científico. Sempre muito relacionado ao literário, o ensaio precisa de um esforço maior para ser aceito como um gênero científico. (PENA, 2005, p. 76) grifos nossos
O que leva a constatar que, muitas vezes, no meio universitário, não se faz clara distinção entre aquilo que se chama
de
ensaio
científico
e
de
artigo
científico.
Atribuindo rigor científico, objetividade e conclusibilidade a ambos. É
em
virtude
dessa
indefinição
entre
o
que
diferenciaria o ensaio científico do artigo que se prefere aqui a diferenciá-lo do ensaio acadêmico. Pois, entende-se que o ensaio acadêmico é um gênero textual com grande espaço para a subjetividade e para o emprego de outras fontes/vozes que não apenas aquelas da ciência, mas também outras que a circundam. Dessa forma, o “rigor típico do ensaio [acadêmico] aparece aliado, quase sempre, ao estilo de interpretação e de julgamento pessoal. Sem ser [puramente] subjetivo, o ensaio não abole o espaço da subjetividade como pretende fazer o tratado ou o artigo científico” (PAVIANI, 2010. P. 28). Isso porque, tal qual menciona Severino (1986), no ensaio, o autor tem maior liberdade para defender determinada posição, pois “não precisa de se apoiar no rigoroso aparato de documentação empírica e bibliográfica como é feito em outros trabalhos científicos” (CAMPOS, 2015, p. 6).
Além disso, o ensaio acadêmico está mais aberto à argumentação que à comprovação, à defesa de opinião que à experimentação, por isso, normalmente, a parte de fundamentação do ensaio acadêmico é bem mais enxuta que a do artigo científico. Como ensina Paviani (2010, p. 30), O ensaio, ao contrário do tratado e do artigo científico, desenvolve os argumentos ensaisticamente, isto é, experimentando, questionando refletindo, criticando o próprio objeto de estudo. É um gênero textual essencialmente crítico e interpretativo. [...] sua função é mostrar mediações. Embora seu parentesco com a retórica, nada nele é sofístico no sentido da pura persuasão3.
Isso quer dizer que o ensaio acadêmico é marcado pela interpretação avaliativa sobre determinado caso, pela visão subjetiva do escritor-autor, porém fundamentada na área ou domínio discursivo, ao qual está vinculado. Sendo assim, o ensaio permite novas discussões e debates, instiga ao posicionamento e oferece maior liberdade para fazê-lo, após análise-reflexão perante uma questão, não se descuidando do contexto em que o caso é dado ao estudo. (CAMPOS, 2015, p. 4)
3
Persuasão aí tomada como uma espécie de manipulação.
Traçada essa diferenciação salutar entre ensaio acadêmico
e
ensaio
científico,
a
fim
de
se
evitar
ambiguidades, pode-se prosseguir a exposição sobre o gênero aqui em estudo. 2.2 Ensaio acadêmico
filosófico
e
literário
versus
ensaio
Os ensaios filosóficos e literários apresentam, não raro, uma liberdade de tema, estilo e de abordagem muito maior que o ensaio acadêmico. Por isso, são chamados de ensaios informais, pois são, normalmente, escritos em prosa livre. Essa espécie de ensaio se aproxima mais daquela que é apontada como sendo a origem do emprego do termo “ensaio” designando uma modalidade de texto. Essa origem remonta as produções de Michel de Montaigne, em seus Ensaios, publicados em 1580. O surgimento do ensaio como uma das formas de “expressão do espírito humano”, como relata Bombassaro (2010, p. 11), é crucial para o processo de mudança conceitual que é operada no Renascimento Europeu. Neste sentido, “importa salientar somente um aspecto muito peculiar desse aspecto de mudança conceitual da filosofia da época: o surgimento do ensaio como gênero literário, tomando como referência a
obra
de
Montaigne
(1533-1592)”,
conforme
propõe
Bombassaro (2010, p. 11). À época, a liberdade pressuposta pelo gênero ensaio favorece à mudança conceitual e paradigmática. É o que se pode depreender da citação adiante: No caso de Montaigne, é preciso ter presente a força da mudança conceitual representada pelo questionamento radical das formas de expressão do pensamento vigentes no mundo medieval e a transição para uma mentalidade profundamente distinta que emergia com o processo de laicização e marcava o surgimento de um modo de ver o mundo, quer no âmbito da cosmologia, quer na esfera dos negócios humanos. A uma nova visão do cosmos deveria corresponder uma nova concepção de homem. Nesse processo não mudavam somente os conceitos, mas também o seu modo de expressão. Então, se buscarmos uma forma específica de expressão da vida do espírito emblemática do Renascimento, certamente poderemos encontrá-la no ensaio filosófico. (BOMBASSARO, 2010, p.12)
Essa maior liberdade de “expressão”, questionadora e provocadora, é exposta pelo próprio ensaísta francês em um de seus ensaios: Exponho aqui meus sentimentos e opiniões, dou-os como os concebo e não como os concebem os outros; meu único objetivo é analisar a mim mesmo e o resultado dessa análise pode, amanhã, ser bem diferente do de hoje, se novas experiências me mudarem. Não tenho autoridade para impor minha maneira de ver, nem o desejo, sabendo-me demasiado
mal instruído para instruir os outros. (MONTAIGNE4 citado por GALVÃO, 2006, p. 11)
Essa modalidade usa a linguagem coloquial e direta, às vezes, aproximando-se do diálogo, nela o autor assume todos os riscos de apresentar uma perspectiva peculiar de interpretar o mundo. Suas afirmações são marcadas pela possibilidade, pela especulação e pela contingência, mais preocupadas, não raro, com o olhar do observador que com o observado. Importando mais o que é dito que a forma de dizer. O advento do ensaio, no contexto anteriormente descrito, representa uma mudança não apenas na forma textual, mas o anseio por uma nova forma de pensar e a instauração de uma nova visão de mundo libertada da cristalização dos modelos escolásticos e humanistas, centrada na estrutura rígida da argumentação formal. Assim,
essa
modalidade
pode
ser
situada
epistemologicamente, na fronteira entre a arte, a filosofia e a ciência, no entender de Bombassaro (2010). Se o ensaio filosófico apresenta-se como essa ruptura, como nova possibilidade não apenas de escrita, característica presente até hoje, o ensaio literário também ocupa esse “entre-lugar, local da exegese e reflexão, de MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Tradução Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1972. Coleção: Os pensadores. 4
imaginação e memória, de leitura e releituras do texto literário e da Histórica”, muitas vezes chamando atenção para a periferia da Literatura, para aqueles textos não pertencentes ao cânone literário, propondo leituras e ideias inovadoras, como registra Secco (2003, p. 272). Por isso, entende-se, aproveitando a fala de Paviani (2010, p.31), e estendendo-a aos propósitos deste estudo, que, geralmente, “o ensaio filosófico e literário é o gênero textual dos autores experientes, densos, originais e profundos” e “o ensaio acadêmico cabe bem como o gênero dos principiantes, daqueles que nem sempre têm o domínio técnico dos gêneros científicos”, mas que serve bem aos propósitos de preparar tais autores para as competências necessárias para gêneros mais considerados científicos, como é o caso do artigo e da monografia, por exemplo. Pode-se dizer, inclusive, que o ensaio acadêmico serve, se esta for a intenção, como um gênero de passagem para gêneros mais complexos. Para efeitos didáticos, aponta-se aqui um esquema que organiza as espécies de ensaios aqui arroladas:
Gênero textual ensaio Espécies textuais mais formais
Espécies textuais mais informais5
Ensaio (muito
científico próximo
ao
Ensaio filosófico Ensaio literário
artigo científico) Ensaio acadêmico Esquema 01: Classificação das espécies de ensaios. Fonte: Elaboração própria.
2.3 Peculiaridades do gênero ensaio acadêmico De acordo com Campos (2015), na busca por trabalhos que permitam uma avaliação formativa da leitura e da percepção crítica que os alunos apresentam referentes aos casos ou assuntos polêmicos, em suas respectivas áreas de estudo, o ensaio acadêmico mostra-se como um dos gêneros mais promissores, pois devido à sua extensão textual6 é possível de ser elaborado em tempo relativamente menor (SILVEIRA, 1992) que um artigo científico, por exemplo.
Há algumas outras espécies que não serão tratadas aqui, mas que se enquadram, nesta categoria: os ensaios sociológicos, antropológicos e históricos. Também é comum se falar no ensaio jornalístico, todavia, este último é costuma ser mais sintético e menos denso que os anteriores. 6 Normalmente, entre 03 e 10 páginas de texto, podendo ter um pouco mais. 5
Além disso, o ensaio acadêmico não se propõe à mera revisão bibliográfica acrítica ou exposição não autoral de um apanhado de falas teóricas, prática que, infelizmente, acadêmica
tem-se
de
muitos
observado
crescer
estudantes
das
na
escrita
universidades
brasileiras. Nele, “é desejável que haja o desenvolvimento de um ponto de vista acerca de um tema, uma tomada de posição definida e a expressão dos pensamentos com certa originalidade” (FIGUEIREDO, 2012, p. 7). Quantas vezes, os textos, especialmente artigos científicos e monografias, elaborados pelos estudantes não passam apenas de uma espécie de “fofoca científica”, elaborados no esquema “segundo fulano... de acordo com beltrano...
para
siclano...
siclano
afirma...
beltrano
pressupõe...” no qual não se observa, além do mosaico costurado de citações, espaços de diálogo/debate com essas vozes citadas direta ou indiretamente, marcando, assim, a inscrição do sujeito que escreve o texto no discurso. Fato este que problematiza a questão da autoria textual e evidencia a forte inclinação à compilação camuflada, pressuposta como uma das modalidades de plágio7.
A respeito da modalidade de plágio por mosaico de citações ver: KROKOSCZ (2012, p.44). 7
Assim, a competência para a elaboração de textos mais autorais8, e, por conseguinte, para a autoria, como ensina Pfeiffer (2002, p. 11), “deve ser construída e não simulada”. Desse modo, Ter como horizonte apenas um ponto final como meta – um texto com o desenho espacial adequado, começo/meio/fim, coesão e coerência – e não olhar para o processo de construção da posição de autoria – atribuir sentidos na inscrição histórica –, fará com que mantenhamos o processo de funcionamento do simulacro da autoria que consiste, fundamentalmente, no jogo de tentativa e erro do sujeito escolar [e universitário] buscar alcançar um modelo prefixado. O modelo, quando é apenas modelo, é esvaziado de sentido, estanca-se na repetição empírica ou formal. (PFEIFFER, 2002, p. 11)
O ensaio acadêmico pode servir ao desenvolvimento dessa competência de escrita relacionada à autoria textual – uma vez que abre espaços mais volumosos para a interpretação e para o posicionamento do sujeito como autor – e, neste sentido, pode também contribuir para o uso dessa competência em outros gêneros acadêmicos. Isso porque o ensaísta não se destina simplesmente ao convencimento de seu interlocutor, mas a explicitar o seu modo de pensar aquela questão ou problemática, tecendo Essa competência e outras relacionadas à escrita acadêmica são trabalhadas no ensaio acadêmico seguinte: CAMPOS, Magna Campos. Escrita acadêmica: de dom a habilidade construída. Mariana: FUPAC-Mariana, 2016. 8
uma reflexão dos fatos no aqui e agora de sua escrita, portanto, em uma historicidade, trazendo à baila “o pano de fundo” do acervo de conhecimentos e vivências daquele que escreve. Neste aspecto, é importante acrescentar que: É costumeiro imprimir-se no texto do ensaio uma discussão, uma nova perspectiva e insights sobre questões de interesse atual. Na área jurídica, por exemplo, vários casos, mudanças, desconformidades e descumprimentos da lei, posicionamentos dos magistrados diante de entendimentos “polêmicos” mereceriam ser discutidos ensaisticamente na universidade, antes mesmo de se produzir um trabalho mais denso como um artigo ou uma monografia a seu respeito. Neste sentido, seria possível se provocar uma reflexão sobre quão bom ou ruim, quão aplicável ou não seria uma alteração na legislação, o quão negligente é a não alteração de uma legislação, a quem exclui, o papel que teve o posicionamento de uma magistrado para a área, por exemplo. Provocando, assim, um amadurecimento do problema, antes de se pesquisá-lo mais a fundo. (CAMPOS, 2015, p.6)
Todavia, atualmente, embora seu emprego tenha se efetivado com mais frequência na práxis de alguns cursos ou disciplinas universitárias, o ensaio ainda encontra certa desconfiança na seara acadêmica, tendo em vista ser essa uma modalidade de texto em que a subjetividade, a flexibilidade
e
a
liberdade
interpretativa
do
autor
encontram bem mais espaço que em outras modalidades clássicas de gêneros acadêmico-científicos. Talvez o ensaio seja uma provocação ao pensamento cartesiano puro e redutor, hoje tão problematizado, como por Boaventura Sousa Santos, em sua Crítica da razão indolente. Desta forma, como provoca Larrosa (2003, p. 109) apoiado em sua leitura de O ensaio como forma, de Adorno (2003)9, “o espaço acadêmico certamente é o espaço de disciplina da expressão, o espaço onde a disciplina do espírito - o dizer o que há para dizer - está disciplinado no dizer como tem que ser dito”. E, ensaiar é justamente abrir espaço para o estilo próprio do dizer, para a interpretação mais subjetiva, julgando-se aquela realidade ou problemática em questão, não a partir do nada, mas a partir da própria opinião de quem escreve. Por isso, no ensaio acadêmico, o rigor10, a interpretação e o julgamento pessoal do autor pressupõem que haja maior liberdade de expressão, liberdade que a maioria dos gêneros não possuem. A liberdade consiste em poder defender uma posição sem o apoio empírico, documentos ou outros recursos metodológicos. (PAVIANI, 2010, p.28)
ADORNO, Theodor W. Ensaio como forma. In: ___ Notas de literatura. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003, p. 15-45. 10 Rigor que não se confunde com exatidão. 9
Entretanto, não se pode perder de vista que a mera opinião, rasa e evidenciada apenas “pelo gostei”, “não gostei”, “concordo ou discordo”, “sou contra ou sou a favor” é diferente da opinião crítica sustentada que se espera de um estudante de um curso superior. Tal liberdade não quer dizer que se pressuponha a elaboração da crítica, da reflexão, da avaliação ou do posicionamento de forma superficial ou apenas ancorada em opiniões alheias, sem alicerces no senso crítico, que se distancia do senso comum em termos de profundidade e de conexões mais
profundadas,
inclusive,
com
o
conhecimento
científico. Neste
sentido,
menciona-se
a
sistematização
apresentada por Ferragini (2011, p. 61-62) para tratar da funcionalidade, da função social e da ação, características deste gênero: Objetivo//funcionalidade: apresentar uma argumentação bem fundamentada sobre um tema, a partir de uma análise subjetiva, buscando persuadir o leitor por meio de sólida arguição, da validade e relevância das ideias contidas no ensaio. Função social: expressar ponto de vista do autor sobre determinado tema, sem explorá-lo exaustivamente. Trata-se de um estudo não aprofundado, não acabado, a partir do qual se expõe análise do ensaísta. Ação: análise subjetiva do tema.
Assim,
por
exemplo,
é
emitir
opinião,
julgar,
explorar, comentar ou analisar uma realidade ancorandoa em um porquê de tal posicionamento, ou na avaliação da relação entre causas e consequências das questões levantadas, ou ainda, na relação de comparação com outras
situações
passados,
dentre
ou
procedimentos
várias
outras
presentes
ou
possibilidades
de
posicionamento interpretativo. Desta forma, o ensaio acadêmico encontra-se em uma fronteira híbrida na busca pela legitimidade com gênero textual acadêmico, uma vez que pode mesclar, em sua
composição,
tanto
características
subjetivas
de
interpretação, com marcas mais evidentes desta liberdade argumentativa, quanto algumas características da escrita científica, conforme demanda da comunidade discursa constituída pelo curso/disciplina em que o ensaio se insira. Portanto, o ensaio “é, também, sem dúvida, uma figura do caminho da exploração, do caminho que se abre ao tempo em que se caminha“ (LARROSA, 2003, p. 112), necessitando, assim, “de um texto pré-existente, não para ser examinado, mas para ter um solo onde correr” (LARROSA, 2003, p. 114). Neste sentido, o ensaio acadêmico se diferenciaria do ensaio literário ou do ensaio filosófico por estes
apresentarem estilo mais informal, estruturas e temas mais livres, como já tratado. Todavia, ambos tenderiam à subjetividade no exercício livre do pensamento11, e, no caso do ensaio acadêmico, muitas vezes, este serve de reflexão inicial para subsidiar futuramente a elaboração de outros gêneros textuais acadêmicos como artigos científicos e monografias, por exemplo. Portanto, oscilando entre a rigidez e a liberdade surge o ensaio acadêmico, espelho do avanço dos tempos e da necessidade de uma escrita científica que, embora híbrida, traga a lume a “verdade” ou, quiçá, “verdades” de uma pesquisa ainda incipiente, mas que, certamente, poderá se tornar ponto de partida para investigações futuras. (FIGUEIREDO, 2012, p. 3)
Aquele que ensaia, mesmo na modalidade de ensaio acadêmico, não tem a obrigação de dissimular sua relação de distanciamento com o objeto “pesquisado”, como pressuposto em várias outras modalidades de gêneros do meio universitário, marcando sua presença pelo “eu”, no caso do ensaio elaborado individualmente e do “nós”, no Entretanto, entende-se aqui tal liberdade no viés proposto pela análise do discurso, que considera que todo dizer está inscrito em formações discursivas e ideológicas que “permitem” certos posicionamentos e silenciam ou tornam mais improváveis outros. Portanto, não uma liberdade plena, isenta de pressuposições, tampouco na perspectiva de um sujeito totalmente determinado, mas daquela em que a negociação de sentidos interpretativos vai se instaurar. 11
caso do ensaio elaborado em conjunto com outra pessoa. Observe-se, que como é sabido, no discurso acadêmico, muitas vezes, o objeto estudado se sobrepõe ao autor do texto, como forma de se perseguir os propósitos da objetividade
–
distanciando-se
das
marcas
da
subjetividade – e do distanciamento entre sujeito e objeto preconizados pela escrita acadêmico-científica. Tampouco, intenciona-se com um ensaio concluir-se ou fechar-se um tema12, pelo contrário, é a abertura que se insinua, a provocação a percorrer outras trilhas do saber, outras possíveis leituras interpretativas sobre a questão, nova perspectiva, capaz de abrir-se para novos acordos ou descordos por parte de quem lê. Leitura que pode dialogar mais abertamente não apenas com uma área da ciência, mas com várias outras, e não apenas com a ciência, claro, mas também com várias outras formas de se conhecer o mundo13. Assim, pode-se, por exemplo, colocar em diálogo, fatos do cotidiano entrelaçando-os menos rigidamente com o Cinema ou com o Direito, com o Jornalismo ou com a Literatura, ou talvez, com todos, desde que não se perca o fio interpretativo condutor,
Mas se pode perguntar: E qual estudo, dentro do discurso científico, não propiciaria novas discussões, debates, perspectivas e qual deles seria finalizador? 13 Lembrando-se que além do conhecimento científico, tem-se também o conhecimento empírico, artístico, teológico e filosófico. 12
capaz de manter a coerência e a articulação entre os elementos, tanto interna com externamente. Entretanto, o ensaio acadêmico, por ser mais formal que outras modalidades de ensaio, não dispensa que se evidenciem as fontes pesquisadas e empregadas na escrita do texto, quer seja em forma de citações diretas ou de indiretas. Mas fato é que, ainda que essa modalidade seja mais formal e, portanto, menos livre que outras, coexiste para ela, especialmente quando produzida na graduação, uma permissão maior para o uso daquelas fontes não consideradas estritamente científicas. Neste caso, é corriqueiro coabitar em um mesmo ensaio fontes exclusivamente da área da ciência e outras como textos de jornais e de revistas não acadêmicos, de revistas de divulgação científica, de sites de instituições de apoio ao “fazer profissional” de uma determinada área do mercado,
dentre
outras,
tudo
isso
em
diálogo
complementar. Sendo assim, o ensaio não exclui alguns tipos de fontes, mas inclui. Nele a criatividade e a lógica estão presentes, tal qual argumenta Ferragini (2011), uma vez que a lógica é responsável pela articulação dos argumentos
apresentados
e
a
subjetividade e liberdade na discussão.
criatividade
pela
2.4 Características da linguagem do ensaio acadêmico Conforme Campos (2015), é em virtude dessa maior subjetividade e liberdade de “expressão” que os ensaios acadêmicos costumam ser escritos em 1ª pessoa do discurso,
no
singular
(eu),
quando
é
elaborado
individualmente e, no plural (nós), quando é elaborado com
mais
alguém.
Assim,
é
comum
observarem-se
expressões tais como as seguintes: “eu percebo um avanço na discussão sobre tal coisa em relação a...”, “eu analiso essa mudança como um retrocesso...”, “eu interpreto essa decisão do juiz como uma preocupante premissa para...”, “eu observo que se deixou de lado o cerne da questão para...”, “eu concordo que não é mais possível analisar tal problemática sem considerar o avanço tecnológico a que estamos submetidos” etc. No entanto, a pessoalidade do texto não significa descuido com a estrutura lógica e argumentativa com a qual deve ser construído. Ficando a tal lógica como opção estilística do autor: se partirá das particularidades para tentar expandir para uma geral ou se partirá do geral para lhe verificar os pormenores. Pois, como dispõe Paviani (2010, p. 28), “deve a exposição do assunto ser lógica, mesmo adotando o estilo livre, isto é,
sem seguir os
passos de uma análise detalhada ou uma demonstração
exaustiva, o ensaio expõe a matéria com racionalidade, mesmo quando utiliza a linguagem poética”. O aspecto mais formal do ensaio acadêmico é o que, muitas vezes, o diferencia do ensaio filosófico e do literário. Pois, além de organizar a exposição ou a argumentação do texto, dentro do universo acadêmico, é preciso seguir as normas de padronização, referenciação e citação, tais quais preconizam a ABNT ou os manuais de normalizações das instituições nas quais os ensaios são escritos ou inscritos. Soma-se às normas, um cuidado mais acurado com a arquitetura textual, ou seja, com as “partes” que compõem o ensaio acadêmico, dando-lhe organização sistemática, diferentemente da assistematicidade e da informalidade comuns aos ensaios literários e filosóficos. Todavia, todas as modalidades de ensaio resguardam dois pontos
em
comum:
a
subjetividade
e
o
caráter
experimental. É preciso observar que a fundamentação teórica, ainda que menos aprofundada que em outras modalidades textuais do meio acadêmico, como é o caso do artigo e da monografia, esta precisa ser estruturada de maneira a servir de fundamento para as inferências lógicas a serem realizadas, entenda-se: para a condução da análise, posicionamento, discussão. Por isso, não basta apenas
levantar algumas poucas coisas sobre o tema, se estas não possibilitam a discussão e o alcance dos possíveis significados intencionados para o caso. Por sua vez, o caso/problema deve ser relevante e propício à análise e à discussão para que renda ao autor do ensaio uma boa perspectiva de trabalho. Muitos ensaios são valorizados pela atualidade e originalidade da perspectiva adotada, pela coerência e consistência das reflexões e das conclusões.
2.5 A estrutura do gênero ensaio acadêmico
O gênero ensaio acadêmico, por estar dentro das espécies de ensaios mais formais, segue uma estrutura mais detalhada que as dos ensaios informais. Sendo assim, pode-se apontar como pertencentes à arquitetura estrutural dessa espécie de ensaio, tendo em vista
suas
peculiaridades,
os
seguintes
movimentos
sociorretóricos14:
A abordagem sociorretórica de estudo dos gêneros textuais trabalha principalmente com a organização retórica e os propósitos comunicativos do texto e têm em John Swales um de seus importantes representantes, conforme propõem Hemais e Biasi-Rodrigues (2005). 14
Esquema do gênero textual ensaio acadêmico Movimento 1: Apresentação do ensaio Passo 1: Título: subtítulo
Descritivo ou figurativo
Passo 2: Autor(es) e afiliação
Nome e sobrenome; curso e faculdade
Passo 3: Resumo
Tema, motivação ou objetivo, e objeto em discussão (caso, questão problemática ou questão provocadora apreciados) Movimento 2: Contextualização/ inserção do ensaio num cenário
Passo 4: Introdução
Apresentação da temática, situar o objeto em discussão (caso, questão problemática ou questão provocadora apreciados) dentro de contexto social ou conceitual, justificativa e propósito(s) do ensaio Passo 5: Exposição do caso Relato mais detalhado do objeto em discussão a ser apreciado/ contextualização Passo 6: Breve fundamentação 15 Alicerçar a discussão objeto em discussão em referencial elaborado a partir de fontes bem escolhidas Movimento 3: Posicionamento/ perspectiva assumida Passo 7: Avaliação/ discussão/
Análise crítica do objeto em discussão (objeto em discussão (caso, questão posicionamento problemática ou questão provocadora apreciados) Passo 8: Considerações finais Cruzamento do propósito pessoal para o ensaio com a análise realizada Movimento 4: Explicitação de fontes empregadas Passo 9: Referências bibliográficas
Disposição das fontes usadas
Esquema 02: Esquema do gênero textual ensaio acadêmico. Fonte: Elaboração própria.
Em alguns ensaios acadêmicos a fundamentação pode preceder à exposição do caso. 15
O
esquema
consideráveis
em
proposto relação
à
apresenta estrutura
diferenças normalmente
empregada em um artigo científico, o que contribui para evitar as confusões comuns entre a outra espécie de ensaio, a científica, e artigo. Sem adentrar-se muito no mérito dos artigos científicos, tendo em vista que o propósito deste trabalho é outro, mas com intuito de esclarecer de vez qualquer confusão do ensaio acadêmico com o gênero mencionado acima, dispõe-se também aqui, de forma sintética, a arquitetura dos artigos científicos, nas
espécies
de
artigos
experimentais,
empíricos
e
teóricos, conforme esquema 03, construído com base na classificação proposta por Motta-Roth e Hendes (2010): Artigo experimental
Artigo empírico
Artigo teórico
Título: subtítulo Autor Afiliação Resumo Palavras-chave Abstract Key-words Introdução Metodologia Resultados Discussão Conclusão Referências Apêndices Anexos
Título: subtítulo Autor Afiliação Resumo Palavras-chave Abstract Key-words Introdução Fundamentação Teórica Metodologia Resultados e Discussão Conclusão Referências Apêndices Anexos
Título: subtítulo Autor Afiliação Resumo Palavras-chave Abstract Key-words Introdução Fundamentação Teórica Considerações Finais Referências Apêndices Anexos
Esquema 03: Esquema do gênero textual artigo científico. Fonte: Elaboração própria
A estrutura do ensaio acadêmico não coincide com nenhuma das três espécies do gênero textual artigo científico, além de não envolver a questão da metodologia de pesquisa, de dar atenção especial ao caso avaliado, ao posicionamento do autor diante da questão, de estabelecer critérios mais simples para elaboração do resumo, da introdução, da fundamentação e das considerações. Além de, como já ressaltado, ser escrito necessariamente em 1ª pessoa, e de aceitar referências bibliográficas com maior liberdade quanto ao credenciamento científico. O que a investigação de Pena (2005) detectou na confusão entre ensaio científico e artigo, não pode ser estendido para o ensaio acadêmico, pois o fato de muitas vezes os autores ou os periódicos científicos classificarem seus próprios textos ora como um ensaio ora como artigo, dada as semelhanças de estruturação e de forma de tratar os seus objetos de estudo, não se aplicaria com facilidade à espécie em estudo. Isso se deveria, sem dúvida, entre outros fatores já mencionados, às distinções previstas na forma de abordagem do objeto em discussão (caso) e na estrutura
textual,
fatores
peculiares
que
situam
discursivamente o ensaio acadêmico no entre-lugar entre a ciência e outros conhecimentos.
Tampouco, seria fácil confundir o ensaio acadêmico com o ensaio filosófico ou literário, haja vista estrutura mais regrada do primeiro e mais livre do segundo.
3. O trabalho com o gênero ensaio acadêmico na FUPAC-Mariana
Nesta seção do estudo, serão tratadas as questões relativas à contextualização do trabalho com ensaios acadêmicos
na
instituição
mencionada,
o
papel
da
monitoria neste contexto, a experiência dos graduandos e dos professores com a produção de ensaios desta espécie e as perspectivas do trabalho.
3.1 O surgimento e justificativa da proposta A FUPAC-Mariana é uma instituição pequena, que oferece um único curso de graduação, em Direito, e um curso de especialização, também na área correlata ao curso. A instituição apresenta, em média, 250 graduandos matriculados16, por período, distribuídos entre os 10 períodos do curso.
16
O trabalho com ensaios acadêmicos tem sido desenvolvido na graduação.
A entrada de novatos é realizada anualmente, e, o perfil
característico
das
pessoas
que
adentram
na
faculdade, no curso de Direito, é daquelas que dividem seu tempo entre o trabalho formal (horário administrativo ou revezamento de turno), os estudos e as questões familiares. Em
meados
de
2014,
alguns
professores
da
graduação, um tanto quanto frustrados com os resultados relacionados à baixa qualidade dos artigos científicos e aos problemas de autoria advindos desta atividade – a qual era indicada em suas disciplinas, especialmente, da metade do curso em diante e naquelas disciplinas mais específicas do Direito – buscavam uma possível melhoria nos resultados com estes textos. Neste contexto, o trabalho com a produção de resenhas críticas, já estabelecido de forma intensiva e institucionalizada na faculdade17, não parecia, em uma relação direta, ser suficiente para auxiliar a solucionar a problemática
levantada
e
ampliar
a
qualidade
das
produções textuais dos graduandos. Em uma conversa informal com a professora das disciplinas
iniciais
da
área
de
linguagem
e
de
Para mais informações sobre o trabalho, ver: CAMPOS, Magna. Letramento acadêmico: desenvolvimento da escrita do gênero textual resenha na FUPACMariana. In: FUNDAÇÃO PRESIDENTE ANTÔNIO CARLOS. Direito: contemporaneidade e ensino. Mariana: FUPAC-Mariana, 2016. 17
metodologia18 da instituição, em momentos de intervalos de aulas, na sala dos professores – momento em que, de praxe, várias questões são comentadas ou discutidas entre os colegas, e que, sem dúvida, representa um dos pontos fortes da relação entre os docentes da instituição – dois dos professores expuseram suas frustrações com os artigos e monografias desenvolvidos pelos graduandos e recebidos por eles. A professora em questão mencionou que havia uma lacuna, no processo de letramento acadêmico, entre a transição da resenha e do artigo ou monografia que as atividades
costumeiras
na
faculdade
não
estavam
suprindo. Isso porque, normalmente, os graduandos da instituição não elaboravam, como atividades, outros gêneros textuais escritos além de resenhas e de petições. No
mais
as
avaliações
se
restringiam,
em
várias
disciplinas do curso, às provas. Uma ou outra disciplina desenvolviam pôsteres e trabalhos voltados para análise de alguma questão. Além disso, sempre foi mencionado, espacialmente, nas reuniões de professores, que era preciso realizar atividade que auxiliasse aos alunos no desenvolvimento da
A professora é autora deste estudo, realizado em conjunto com a monitora da área. Na faculdade, há as disciplinas de Métodos para Normalização do Trabalho Acadêmico e Leitura e Produção de Textos, no 1° período. 18
competência
de
autoria,
nos
trabalhos
em
geral
desenvolvidos na faculdade. Neste
contexto,
os
dois
professores
acima
mencionados, diante da questão apontada, indagaram-se então sobre qual modalidade de texto escrito se poderia trabalhar, para preencher tal lacuna. Duas alternativas lhes foram sugeridas pela professora da área de linguagem e metodologia: uma delas seria de se trabalhar com um pré-artigo, ou seja, uma versão simplificada do artigo científico, na qual se deveria traçar quais elementos do artigo os alunos precisariam abordar e quais seriam dispensados, e, só então, realizada tal atividade, se evoluísse para o artigo propriamente dito. A outra foi a sugestão de se trabalhar com um novo gênero textual, o ensaio acadêmico, que parecia atender bem às questões relacionadas à competência de autoria e a servir de base para gêneros acadêmicos mais complexos, como artigo e monografias. A professora ressaltou também que tal gênero textual,
se
adotado,
para
atender
aos
propósitos
mencionados, precisaria deixar claro o seu entre-lugar, assim,
o
gênero
não
deveria
ser
de
estruturação
totalmente livre e nem deveria se tornar um artigo disfarçado de ensaio, como mencionado ocorrer com a confusão entre ensaio e artigo científicos. Dessa forma, era
possível vincular outros conhecimentos ao conhecimento científico e dessa relação trabalhar com mais qualidade o letramento acadêmico dos alunos. A
professora
que
já
elaborava
alguns
textos
didáticos para um Manual de Redação Científica, que registraria no ano seguinte, se dispôs a tratar do ensaio acadêmico e disponibilizá-lo gratuitamente aos alunos e professores da faculdade, a fim de subsidiar os trabalhos nas disciplinas que se interessassem em adotar a elaboração desse esse gênero textual como atividade. Assim, o texto didático O gênero textual ensaio acadêmico foi produzido e disponibilizado digitalmente, aos alunos e professores, antes mesmo de o Manual em questão ser registrado19. acadêmico
Ressalte-se nas
que
atividades
a
inserção
avaliativas
de
do
ensaio algumas
disciplinas não ocorreu por orientação institucional ou mesmo de um professor, mas sim como uma sugestão aos que nele vislumbrasse algo que as demais atividades comuns à instituição não atenderiam. Ainda em 2014, um dos professores envolvidos na conversa adotou, pela primeira vez, o ensaio acadêmico como atividade. No ano seguinte, outros professores
Tal material passou a ser o texto norteador para elaboração dos ensaios acadêmicos da faculdade, tanto nas disciplinas quanto para publicação nos livros institucionais. 19
aderiram
à
produção
de
ensaios
acadêmicos
como
atividade em suas disciplinas. Outro fator importante a ser considerado é que, uma vez que alguns professores inseriram o gênero ensaio em suas atividades disciplinares, os dois livros institucionais – produzidos no formato de e-book, registrados no sistema de ISBN, pela mantenedora da faculdade (Fundação Presidente Antônio Carlos) – abriram espaço, também por sugestão da professora envolvida20 à gestão da faculdade, para a publicação de ensaios acadêmicos, além de artigos científicos. Essa foi uma estratégia para abrir aos alunos que se interessassem em publicar seus textos uma forma mais acessível, por ser um texto de menor extensão e, de certa forma,
de
elaboração
mais
simples,
uma
nova
possibilidade de publicação. A seleção para publicação ocorreu via concurso de ensaios acadêmicos, aberto aos alunos e ex-alunos do curso, desde que atendesse ao prérequisito de temática e de estar sob orientação de um dos professores da casa. Assim, a produção de ensaios acadêmicos na faculdade,
deu-se
tanto
por
solicitação
de
alguns
professores, como atividade avaliativa, como também por
20
Agora papel de coordenadora da Comissão Própria de Avaliação (CPA).
iniciativa do próprio aluno interessado em publicá-lo nos livros institucionais.
3.2 O trabalho da monitoria de Língua Portuguesa e a seleção dos entrevistados Em
semestres
alternados,
geralmente,
no
2°
semestre do ano, a FUPAC-Mariana disponibiliza o acompanhamento/reforço de monitoria na área de Língua Portuguesa aos alunos do Direito, realizando a seleção de aluno
monitor.
Essa
alternância
ocorre
porque
no
semestre inicial do ano, esse reforço é realizado pelo trabalho de nivelamento em Língua Portuguesa, conduzido pela própria professora das disciplinas da área. As orientações para quem quer saber mais sobre o gênero ensaio acadêmico são realizadas nestas duas atividades
de
reforço:
ora
no
nivelamento
ora
na
monitoria. Neste estudo, focaremos mais a atenção no papel da monitoria, tendo em vista que essa é uma atividade mais extensiva, pois ocorre ao longo de boa parte do semestre, e pelo fato de essa monitoria ter focado suas atividades no apoio da produção dos gêneros textuais resenhas, ensaio acadêmico e artigo científico, por opção da coordenadora
da monitoria, tendo em vista os interesses da demanda detectada. A atividade de monitoria aqui tratada é referente àquela acontecida no 2° semestre de 2015, entre os meses de setembro, outubro e novembro, e contou com 25 datas de atendimentos, com tempo 30 min. de monitoria cada, e contou com 46 atendimentos no total. Destes 46 atendimentos, esta pesquisa selecionou 10 alunos que procuraram a monitoria para atendimento, especificamente, sobre a elaboração do ensaio acadêmico, para entrevista. Essa seleção se deu conforme consulta de disponibilidade atendimento,
dos em
alunos,
que
participarem
frequentaram
de
entrevista
tal oral,
estruturada com 12 questões, com a monitora em questão21. Todas as entrevistas concedidas pelos alunos foram gravadas, mediante termo de consentimento livre e esclarecido
(Anexo
B),
devidamente
apresentado
e
assinado pelos alunos participantes. Após gravação, todas as entrevistas foram transcritas para word, com o apoio do software Express Scribe22. O período de realização das Embora no semestre de elaboração do estudo de caso, 2016/1, a monitora não estivesse atuando em nenhuma monitoria, ela foi indicada a permanecer vinculada à monitoria da área, para novamente ser a monitora do semestre seguinte. 22 Software que auxilia o processo de transcrição, pois permite, escuta de áudio com controle de velocidade, usando controles do próprio teclado, possibilitando assim que o digitador transcreva mais facilmente os áudios para texto escrito, usando um editor de texto, como o word, por exemplo. 21
entrevistas ocorreu entre os meses de abril e maio de 2016. Portanto,
esse
estudo
de
caso
conta
com
a
participação de 10 alunos como respondentes à entrevista oral gravada.
3.3 A experiência de escrita dos graduandos: entrevista com um grupo de “alunos-ensaístas” 3.3.1 Contexto:
Como já informado, a entrevista realizada com os alunos
contou
com
um
roteiro
de
12
questões
semiestruturadas pelas autoras deste estudo, conforme propósito traçado previamente. Os entrevistados foram designados seguindo-se enumeração sequencial de 0 a 10, assim: E1, E2... E10. De forma semelhante, a monitora que entrevistou os participantes será designada de (I). Todas as questões do roteiro de entrevista podem ser lidas no anexo A, ao final deste texto. No processo de entrevista, cuidou-se, conforme preconiza Manzini ([s.d], p. 2)23, das três fases pressupostas:
Em seu material sobre entrevistas em educação, formulado para sua livredocência em Educação, na Unesp-Marília, disponível em: http://www.oneesp.ufscar.br/texto_orientacao_transcricao_entrevista 23
Na primeira fase, [...] um roteiro foi elaborado. A segunda fase é a entrevista propriamente dita, ou seja, o processo de coleta de dados. A terceira fase é o processo de transcrição. Teoricamente, o que o pesquisador deveria fazer em todas essas fases seria ir à busca do seu objetivo de pesquisa.
O processo de transcrição foi realizado o mais próximo possível à data de realização da entrevista, pela própria entrevistadora, buscando-se assegurar fidelidade ao conteúdo das falas dos entrevistados. Todavia, não desconsideramos que, na transcrição, elementos como a entonação, ênfase, dúvidas, rapidez ou lentidão nas reações, risos, repetições, típicas da oralidade, sejam prejudicados. Assim, buscou-se manter o novo documento (a transcrição) bem próximo ao original (das verbalizações gravadas), tal qual ensina Manzini ([s.d], p. 3). 3.3.2 O que as entrevistas revelam:
O
gênero
textual
ensaio
apresentou-se
como
novidade, para oito dos dez entrevistados, sendo que apenas um afirma já ter lido o gênero ensaio, antes de cursar a graduação em Direito, na instituição, e outro se mostrou na dúvida se já havia lido ou não. Todavia, nenhum entrevistado havia escrito um ensaio, seja ele de
que espécie fosse. O caráter de novidade pode ser observado nas transcrições de E7 e E4, ilustrativas do fato, expostas adiante:
E7: Não é... na nossa instituição foi a primeira vez, nunca tinha tido essa experiência antes, então só aqui que eu tive conhecimento desse ensaio acadêmico. E4: Não, na verdade eu nem nunca tinha ouvido falar sobre ensaio acadêmico, fiquei tendo conhecimento foi aqui na faculdade.
O entrevistado E2 é o único a afirmar já conhecer, porém, o entrevistado E5 mostrou-se na dúvida, como se pode observar em suas falas transcritas a seguir:
E2: Eu já tinha lido, mas produzido, não. E5: Acredito que já tinha lido algum, só não sabia que era um ensaio e fazer, nunca fiz antes de cursar Direito, não.
E, interessantemente, o entrevistado E3 assinala que embora nunca tenha elaborado um ensaio acadêmico, já havia produzido um artigo científico, menção que reforça a percepção associativa do ensaio acadêmico com o ensaio científico e deste com o artigo científico:
E3: O ensaio propriamente dito eu não o fiz, mas já trabalhei em confecção de artigo acadêmico e foi uma experiência proveitosa principalmente naquela em que a gente aprende essas normas de confecção do artigo, desse trabalho acadêmico.
Quando indagados se haviam produzido o ensaio acadêmico por livre iniciativa, com interesse de publicá-lo, ou como exigência de alguma disciplina do curso, cinco entrevistados resumiram suas respostas em dizer que era por exigência de uma disciplina, como na transcrição selecionada de E8, usada aqui como ilustrativa do fato:
E8: Foi por exigência avaliativa do curso.
Quatro outros apontaram desejo de publicação, ainda que estivessem casando esse desejo à exigência de alguma disciplina, tal qual evidencia as falas de E3 e E6:
E3: O ensaio acadêmico, nesse caso especifico, foi para atendimento dos dois proveitos, tanto para publicação, quanto ao cumprimento da exigência de uma matéria, se não me engano, de Direito Constitucional. E6: Foi por exigência avaliativa, mas agora estou pretendendo publicá-lo.
Um entrevistado diz ter produzido dois ensaios em momentos distintos do curso, para participar do concurso interno que dava direito aos selecionados de publicarem seus textos no livro intitucional. Nos dois momentos, a produção foi por sua livre iniciativa, todavia, em um deles a temática foi traçada pelo professor. Observa-se, na fala do entrevistado, que o fato de ele reforçar que “não tive como” e não “pude” escolher o tema e ter que seguir a orientação recebida do professor que o orientou, parece não o agradar tanto quanto na ocasião em que escolheu o tema do ensaio para o concurso: E1: Na verdade, são de minha iniciativa, mas o segundo, o tema foi escolhido pelo professor, então no segundo ensaio eu não tive como escolher o tema, eu pensava em outro tema, mas não pude fazer. (I) – Então você escreveu mais de um artigo? E1 – Sim, escrevi mais. (I) – Mais de um ensaio, desculpe. E1 – Dois ensaios. (I) – “Tá”. O Primeiro? E1 – O primeiro, no primeiro concurso, por iniciativa, própria mesmo. E o segundo, também, eu iria escrever, mas não do tema que foi escolhido.
Pode-se retirar dessa fala uma orientação para o trabalho com o ensaio, pensando-se que, em algumas ocasiões, seria interessante deixar livre ao aluno a escolha da temática a ser escrita, talvez, circunscrevendo-se
apenas a área ou assunto maiores, dentro dos quais os alunos poderiam se aventurar; noutras, estipulando-se o tema. Alternando-se, assim, a didática de proposição do ensaio acadêmico e estimulando o debate de temáticas variadas. No que se refere ao processo de orientação da escrita do ensaio, nove dos dez alunos entrevistados esperavam – muito provavelmente, pela novidade e desconhecimento do gênero textual a ser produzido – mais momentos com o orientador, ao longo do processo de escrita, destinados à retirada de dúvidas e a explicações, tanto no caso dos ensaios
de
produzidos
iniciativa para
as
própria, disciplinas.
quanto É
o
nos que
ensaios se
pode
depreender, nos trechos adiante retirados de nove das dez entrevistas: (I) Você recebeu alguma orientação professor para elaborar o ensaio?
desse
---E1: Houve um pouco de orientação. Dos dois ensaios, um pouco de orientação, não o tanto que eu acho que necessitava, mas houve sim, pouco. E2: Não recebi orientação nenhuma. E3: Só no fornecimento dos materiais em que seriam baseadas as discussões do ensaio, no mais, não teve nenhuma participação do professor.
E4: Não, isso ficou bem obscuro, a gente ficou em dúvida, como fazer, como formular o ensaio acadêmico, tivemos que buscar apoio fora, não vindo do professor, ele não nos trouxe clareza, sobre o assunto não. E5: Não. Foi feito só um apoio só sobre o tema que seria o ensaio, nada, além disso. E6: Não, ele disponibilizou mesmo, foi só o tema e ai, nós mesmos corremos atrás. E7: Não, não teve apoio não. É igual eu já falei anteriormente, quem me apoiou mesmo, me mostrou como se faz, foi a aluna da monitoria. E8: Não me recordo de nenhuma. E9: Não.
Uma entrevistada, E10, porém, ressalta que após algumas tentativas, conseguiu a orientação do professor. A entrevistada deixa entrever em sua fala a persistência que lhe foi necessária para conseguir o apoio orientativo. E10: Olha... particularmente, eu tive sim, um apoio do professor orientador do ensaio, após algumas tentativas de resposta.
A fala de E10 assinala a necessidade de o aluno “correr atrás” e, às vezes, até mesmo persistir na solicitação do apoio de seu orientador, quando sente necessidade de auxílio. Pois, pode ser que, sem a solicitação, o professor não perceba adequadamente as dificuldades que assolam os orientandos.
Entretanto, como o gênero textual era desconhecido, foi disponibilizado aos alunos interessados tanto um material didático – esclarecendo do que se trata o gênero ensaio acadêmico, sua estrutura proposta, a forma de abordagem, estilo e peculiaridades da escrita – tal qual já mencionado na parte de contextualização temática do trabalho
na
instituição.
Esse
material,
conforme
pressupõem as falas dos entrevistados, foi importante para apoiá-los no processo de elaboração ensaística. Esse pressuposto pode ser deduzido dos depoimentos de E2, E3, E4, E7 e E10, selecionados a seguir: (I): Para escrever seu ensaio, você consultou o material didático sobre a escrita do gênero textual ensaio acadêmico, disponibilizado pela nossa faculdade?[...] Esse material lhe ajudou a entender melhor o ensaio e como elaborá-lo? ---E2: Foi... eu consultei o material. [...] Eu diria o seguinte: sem esse material eu não conseguiria escrever o ensaio não. E3: Sim, feito a consulta e ampla, nesse contexto. [...] Sim. O material disponibilizado foi bem abrangente e deu esse subsídio, pelo menos no meu caso. E4: Sim, foi através do material que foi nos colocado à disposição que a gente teve maior interação pra elaborar o ensaio acadêmico. E7: Sim. Ajudou bastante, né, faz a gente conhecer bem melhor sobre essa modalidade de texto e a estrutura também né.
E10: Sim. Porque da primeira vez eu fiz o ensaio com o material do lado e agora da segunda vez que a gente precisou fazer o ensaio, eu já consegui fazer melhor, já fluiu de uma forma mais tranquila.
Além do material didático, diga-se, um apoio passivo aos alunos, a Monitoria da área de Língua Portuguesa do curso, foi “reconfigurada” para oferecer um apoio ativo quanto
à
elaboração
do
ensaio
acadêmico
aos
interessados. Neste sentido, a monitora foi devidamente preparada pela professora coordenadora da monitoria, por meio de encontros pessoais e de estudos prévios, para esse trabalho específico com os ensaios. Esse apoio dado pela monitoria foi ressaltado positivamente pelos entrevistados, o que demonstra a importância desse tipo de atividade dentro da instituição, para reforçar conhecimentos, melhorar qualidade ou cobrir eventuais lacunas quanto ao conhecimento de elaboração textual necessário para a escrita dos gêneros acadêmicos solicitados no curso. Mais ainda, infere-se, nas falas citadas, que a monitoria foi, de fato, um subsídio crucial para que alguns alunos tivessem condições de elaborar um ensaio satisfatório: (I) Ok. O apoio à escrita do ensaio acadêmico, oferecido na monitoria, que você acabou de citar, ajudou a elaborar o trabalho de forma mais produtiva e mais segura? E como que esse
apoio te ajudou específica?
assim...
de
forma
mais
---E1: Ajudou sim, na correção do meu trabalho, por diversas vezes, quando eu achava que já “tava” terminado eu levava até a monitoria e ela me auxiliava, achava que eu deveria melhorar algum ponto e desse jeito eu consegui publicar dois artigos, nos dois livros da faculdade. E4: Foi muito produtiva, na verdade, o conhecimento pra iniciar o ensaio acadêmico, foi através da monitoria, se não fosse a monitoria, acho que eu não tinha nem saído do lugar, como fazer. Então a monitoria, assim... foi de grande valia para a confecção do ensaio acadêmico. E6: Ajudou muito na formatação e também na forma de produzir, como a linguagem que era mais complicada, ai foi de grande valia. E7: Sim. Esse ensaio acadêmico, oferecido pela monitoria ajudou bastante, principalmente, na parte que você tem que se posicionar, porque é importante... né... além de tudo, você ter conhecimento da tese que o autor defende pra depois, você se posicionar também. E principalmente na impessoalidade que “cê” tem que usar. E8: Sim. Como eu não tinha nenhuma visão de nada, me deu uma ideia do que fazer, eu não sabia nada. E9: Sim. Foi nesse momento com a colega [monitora], que eu pude ter um norte, de como deveria proceder a escrita do ensaio acadêmico, pois eu não sabia, como era feito o ensaio acadêmico, como deveria fazer corretamente o ensaio acadêmico, fui até a monitora e ela me esclareceu como deveria se redigir o ensaio acadêmico, tirando minhas dúvidas.
As falas citadas de E1, E4, E6, E7, E8 e E9 deixam entrever ainda que os alunos precisam da orientação ativa, e, quando na correria de seus afazeres, não se desconsiderando
o
fator
“número
de
alunos
para
orientação em cada turma”, os professores não consigam destinar um tempo para orientação dos alunos, é essencial que os cursos disponibilizem alguma estratégia de apoio neste sentido. Estratégia essa, no caso da realidade aqui investigada, com finalidade de apoiar os alunos quanto ao gênero
textual
e
à
sua
adequada
elaboração,
especialmente, por se tratar de a modalidade introduzida ser desconhecida da maioria dos acadêmicos. Pois, para muitos, não basta o apoio passivo de um material didático apenas. Esse é um alerta também para todos nós que lecionamos nos cursos superiores, uma vez que, é preciso avaliar-se
a
possibilidade
de
se
reservar,
já
no
planejamento de uma disciplina, algum tempo a ser destinado ao processo de orientação da escrita de trabalhos mais específicos, estendendo nossa atenção cada vez mais ao processo de elaboração dos textos e não apenas ao produto final, a fim de termos mais qualidade nas
produções
proficiente.
e
Além,
um é
letramento
óbvio,
de
acadêmico
essa
mais
estratégia
de
acompanhamento ativo diminuir ou, até mesmo, eliminar as ocorrências de plágio acadêmico, que tanto assola os ambientes universitários atualmente. Aproveitando-se
essa
linha
de
raciocínio,
foi
perguntado aos entrevistados a respeito de quais tipos de dificuldades
tiveram
quando
foram
solicitados
a
elaborarem, pela primeira vez, o ensaio. Algumas questões foram mais apontadas, como a estruturação-composição, a formatação, o estilo, a linguagem, a contextualização e a incorporação adequada das vozes alheias no texto, como podem ser lidas nas passagens selecionadas de E2, E3, E6, E9 e E10. (I): Eh, que tipo de dificuldade você encontrou para elaborar o ensaio acadêmico, quando lhe foi solicitado pela primeira vez? ---E2: Formatação, até quando eu poderia copiar alguma coisa, de alguém, as citações, quando que seria considerado plágio, quando não ia. E3: – A grande dificuldade, no meu ver do trabalho acadêmico é a composição, a formatação dele dentro das normas técnicas, é a grande dificuldade. E6: Mais foi a formatação, a linguagem também que eu achei um pouco difícil que eu nunca tinha feito e a elaboração num todo assim, achei bem... um pouco complicado. E9: Primeiramente a dificuldade maior que a gente tem é de como fazer o ensaio, porque a
gente não tem um embasamento de... de... já ter tido, igual a gente viu a resenha que foi explicado minuciosamente , como fazer, igual a petição inicial, foi explicado, agora o ensaio acadêmico, não a gente não “teve” orientação do professor de como proceder, de como... é... como que é dividido, como que é o inicio, o meio, o fim, como efetuar a pesquisa, como transcrever. E10: A maior dificuldade foi contextualizar o tema do ensaio.
Entretanto, destaca-se a fala de E8, por entender-se que
o
entrevistado
parecia
tomar-se
de
um
desnorteamento absoluto quanto ao que fazer: E8: Todas. Não sabia nem começar.
E foi exatamente esse entrevistado quem respondeu que a monitoria é o que lhe deu uma ideia de como fazer, pois “como eu não tinha nenhuma visão de nada, me deu uma ideia do que fazer, eu não sabia nada” (E8). Mais uma vez, reforçando o papel do apoio à escrita. Também foi indagado aos participantes se o fato de o ensaio acadêmico ser mais subjetivo, escrito na primeira pessoa, isso facilitaria ou dificultaria a escrita. Neste sentido, sete dos entrevistados considera que o uso da subjetividade facilita, dois consideram dificultar e um aponta pós e contras. Vejam-se algumas das opiniões relacionadas a facilitar, associadas liberdade de “colocar suas próprias ideias” no texto elaborado:
E1: Facilita, porque falar na primeira pessoa você está falando, suas ideias, o que você pensa daquele assunto, então fica bem mais fácil de falar, do que falar do que os outros estão pensando. E2: Eu acredito que facilita, porque ele me ajuda a expressar facilmente minha opinião e se tiver algum outro problema, divergência, etc. assim eu posso colocar como eu, então, não vai nem perceber, isso dentro do texto. E9: – Minha opinião facilita, porque quando a gente tá escrevendo, a gente não pensa no próximo, a gente, pensa na gente, então a gente sempre usa o eu e quando a gente usa o nós dificulta porque é um todo e a gente às vezes só escreve mais pra gente e não pro outro.
Já quem considera que dificulta, argumenta que a emissão da opinião, do posicionamento declarado dificulta a abordagem das “teses”, como afirma E3: E3. Eu acho que transmite um pouco de dificuldade, que às vezes tem que emitir uma opinião pessoal, acho que essa grande dificuldade, a gente não consegue mostrar todos os aspectos das teses que estão confrontadas nesse ensaio.
Ou que esse não é um recurso muito usual em outras modalidades textuais da prática usual do aluno: E10: Pra mim, dificulta. Eu prefiro usar a terceira pessoa, primeiro, por costume mesmo. Até mesmo no estágio, quando você “ta” fazendo estágio, você vai elaborar a peça pro cliente, você usa a terceira pessoa, então pra mim é muito difícil colocar a primeira pessoa pra qualquer tipo de escrita agora.
Já o entrevistado E4 responde que ora facilita ora dificulta, e parece, caso a interpretação do sentido que quis dar ao termo “amplitude maior”, seja o de que não é muito parecido com outras modalidades, concordar com o entrevistado anterior (E10), em relação ao sair do “comum”: E4: Na verdade eu vou dizer das duas formas: ora ele facilita, ora dificulta. Na questão de como você dar a sua opinião, ele facilita, quando você precisa de uma amplitude maior, ai você “ta” privado daquele eu. Né... então assim ele tem o pros e o contra também.
Interessante observar que um entrevistado (E3) ressalta que é preciso usar o “eu” com parcimônia, para que o ensaio não fique muito informal: E3: Eu acho que facilita a elaboração do texto, né, mas se você ficar usando muito o eu, eu acho que fica meio assim, né, informal demais e como é, claro que ali é um texto onde você vai argumentar e vai expor, né, a sua opinião o seu ponto de vista, mas eu acho que “cê” tem que fazer uma coisa mais formal, mais elaborada e não usar tanto o eu.
Neste
contexto,
é
importante
notar
que
a
subjetividade, para alguns, incomoda por não ser a perspectiva mais comum adotada em suas produções textuais acadêmicas, o que lhes demandaria mudar o
“protocolo discursivo” assumido na escrita. Fato que era esperado, tento em vista a novidade de estilo e a inclusão do posicionamento do aluno no texto de forma mais direta que em outras modalidades. Além disso, assumir essa perspectiva mais pessoal pode dar a entender que é necessário usar o “eu” o tempo todo no texto, questão que precisa ser mais bem entendida, pois não se trata simplesmente de se repetir o “eu” ao longo do texto, mas de firmar uma posição enunciativa mais clara em relação ao assunto em reflexão, como bem salienta E3, é preciso “expor e argumentar” para defesa de um posicionamento. Ressalte-se ainda que, como já tratado na parte teórica deste estudo, a informalidade é questão a ser evitada na elaboração do ensaio acadêmico, cabendo mais a outras formas de ensaios. No entanto, se se considerar que a ideia do trabalho com o ensaio acadêmico seja estimular a competência de autoria, neste aspecto, o ensaio parece ter alcançado bom entendimento dos entrevistados quanto a reservarem mais espaço para o desenvolvimento das reflexões e das opiniões pessoais, no texto. Outro aspecto interessante que a entrevista reforça é a substituição gradual da pesquisa realizada na biblioteca
física
pela
pesquisa
na
internet.
Há,
majoritariamente, um grande destaque da internet como fonte
de
Entretanto,
pesquisa, pouco
se
apontada esclarece
pelos
entrevistados.
sobre
quais
fontes
bibliográficas se busca na internet, nas pesquisas que os entrevistados realizaram para a escrita do ensaio. (I) Que tipo de fontes “bibliográficas” você recorre com mais frequência para a elaboração do ensaio acadêmico? ---E3: Eu uso as mais... as que estão disponibilizadas na internet acho mais fácil acesso e tem uma amplitude muito maior de consulta. E4: Ah... é mais a internet é o site mesmo. E6: Mais o site mesmo, internet. E8: Internet. E9: Ah! Eu utilizo a internet e as doutrinas.
Ainda que apareçam menções aos livros, estes estão em segundo plano: E1: Internet, em primeiro lugar e livros. E2: Internet, principalmente, livros, depende.
Mesmo dos que especificam um pouco mais as fontes usadas, ainda assim, observa-se uma mistura de fontes mais acadêmicas com outras menos acadêmicas.
E5: Artigo científico na internet. E7: - Eu “vô ne” sites: Jus Brasil, InfoEscola, Brasil Escola, que eu acho que esses sites, eles explicam muito bem, traz muitas... muitos materiais que são muito bem utilizados. E10: Eu pesquiso muito na internet. Eu uso doutrinas que eu busco na internet, jurisprudências, agora eu tenho usado bastante, por costume também de uso, e... no mais outros artigos.
Para a produção do ensaio acadêmico, como já mencionado,
a
questão
das
fontes
encontra
maior
liberdade de uso, possibilitando uma gama maior de utilização de materiais de apoio. Todavia, é preciso ter ciência que importa bastante a qualidade da fonte utilizada, muito mais que sua cientificidade. Esse critério é parâmetro norteador importante que o aluno deve observar ao pesquisar fontes para uso na elaboração do ensaio. Outra questão indagada aos alunos referia-se ao fato de o trabalho ser realizado individualmente ou com mais alguém, e suas preferências neste sentido. As opiniões se dividem, como pode ser observado nas passagens adiante, tendo como razões algumas questões interessantes e que foram agrupadas abaixo:
Razão: dificuldade de chegar a um acordo sobre as ideias E1: Individualmente eu acho mais interessante, porque a gente consegue colocar a ideia, o que a gente pensa. Quando está em dupla, não é certo, o que você pensa às vezes você tem que abrir mão de alguns pontos, para colocar os pontos da outra pessoa. E3: Eu tenho a preferência de escrever individualmente, porque em grupo às vezes vai ter divergências das pessoas que integram esse grupo e às vezes não consegue chegar numa conclusão plausível. E5: Prefiro individualmente, porque ai num tem o problema com divergências de opinião, aquilo que eu realmente penso é o que vai ir pro papel. E8: Individualmente, porque cada um tem uma opinião e fica difícil de colocar as duas, discutir. E10: É relativo. Porque individualmente você pode expor sem limitação a sua ideia, quando é em grupo, como é proposto aqui na instituição, você tem que se resguardar da opinião da outra pessoa e às vezes, as opiniões, nem sempre são iguais, às vezes elas divergem em muitas coisas, ai se torna muito difícil.
Razão: falta de interesse de pessoas do grupo E2: Individualmente, porque quando você escreve em grupo, a pessoa não tem um certo interesse, quando você pega uma pessoa interessada é bom, mas quando não há interesse, melhor é fazer sozinha mesmo.
Razão: afinidade
E6: O que eu já escrevi até hoje, foi em grupo, então eu achei melhor porque minha dupla foi... a gente tem mais ou menos as ideias mais parecidas, então foi tranquilo fazer em grupo, eu sozinha, eu nunca fiz. E4: Na verdade eu fiz o ensaio acadêmico é... em grupo, foi com o meu marido, então eu vou dizer da experiência que eu tenho... eu vou falar que... é... em grupo para mim foi melhor, eu nunca fiz ele individual, então eu não tenho como experiência, falar que individual seria melhor, mas feito em grupo com o meu marido, foi muito bom, pra mim, não tive problema.
Razão: ampliar horizontes de discussões E7: Eu prefiro em grupo. Por quê? Porque eu acho que quando junta uma outra pessoa com você ela também expõe é... o ponto de vista dela, te dá mais umas ideias, então eu acredito que em grupo facilita mais. E9: Em grupo, porque o ensaio acadêmico é um trabalho que exige mais da pessoa, assim... não é que é difícil exige toda um pesquisa, tendo outra pessoa pra você fazer o ensaio, “cê” manda o material pra ela, ela manda outro material diferente e às vezes, quando a gente mesmo escreve a gente não vê o erro da gente e a outra pessoa vê onde a gente tá errada, ou até mesmo ajuda a esclarecer no que a gente não tá entendendo.
Quanto ao tempo que os entrevistados gastam para a produção de um bom ensaio acadêmico, as opiniões divergem, indo de médias de tempo por volta de um mês até médias menores que dez dias. Talvez, essa divergência
se deva ao fato de que alguns alunos elaboraram o ensaio sozinhos e outros em dupla ou grupo, o que pode influenciar na percepção do tempo necessário. Dos que consideram ser necessários mais tempo, destacam-se as falas de E1, E2, E6 e E9: E1: Uns 40 dias, mas agora eu tenho a meta de fazer em 20 a 25. E2: Uns 30, 35, por ai. E6: Ah, eu demorei bastante que eu fui fazendo cada dia um pouco, por falta de tempo, essas coisas, acho que demorou um mês mais ou menos, cada dia eu fazia uma coisa. E9: Ah! Um ensaio acadêmico bem feito, bem elaborado, com pesquisa aprofundada, dois meses, quando “cê” tem tempo né.
Certo é que, em um curso cuja realidade da maioria dos alunos é trabalhar durante o dia e, do trabalho, ir direto para as aulas na faculdade, ao se estipular uma atividade avaliativa tal qual a elaboração do ensaio acadêmico, ao menos nesta fase introdutória do trabalho com o gênero, já que os alunos ainda não estão muito habituados a produzi-lo, há que se resguardar um tempo considerável para a fase de elaboração. E, até mesmo, analisar-se quantos outros professores do mesmo período estão solicitando tal produção, se não é viável elaborar um atividade interdisciplinar por meio da produção de ensaios
acadêmicos, aproximando-se disciplinas de uma mesma turma ou curso.
Considerações finais:
As peculiaridades do gênero ensaio acadêmico discutidas neste texto ajudam a diferenciá-lo do ensaio científico e também do ensaio filosófico e do literário. A apresentação de uma estrutura sociorretórica norteadora pode auxiliar a outros interessados em trabalhar ou produzir textos nesta modalidade, e, assim não terem que se apoiar apenas em sua finalidade e não em sua estrutura, como é comum quando se trata de tal gênero. Mas,
de
todas
as
peculiaridades
do
ensaio
acadêmico duas delas se avultam: a transcendência da análise subjetiva do tema sobre outras questões e o entrelugar dos conhecimentos passíveis de fundamentarem suas discussões, não se restringindo ao conhecimento científico
apenas,
mas
na
permeabilização
desse
conhecimento por outros. O estudo de caso realizado, com análise das entrevistas orais realizadas com um grupo selecionado de alunos-ensaístas, pertencentes ao Curso de Direito, da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana, propicia entender melhor o funcionamento da elaboração dos
ensaios acadêmicos, na fase em que os ensaios passaram a fazer parte do rol de gêneros textuais possíveis de serem produzidos
pelos
alunos
do
curso,
como
atividade
avaliativa. O estranhamento ou acolhida de sua escrita mais subjetiva, o aprendizado de sua estrutura sociorretórica, a visualização de outras funções sociais para o gênero que não apenas àquelas associadas à avaliação, a necessidade de
apoio
passivo
principalmente,
(material
ativo
didático
adequado)
(orientação/monitoria)
a
e,
essa
iniciação, o desnorteamento enfrentado por alguns alunos diante da tarefa de elaborar um gênero totalmente novo, inclusive na leitura, os possíveis ganhos nas reflexões, nas críticas e no confronto de ideias, além do trabalho em prol de
ampliação
da
competência
de
autoria
e
do
“protagonismo” do discurso são alguns dos aspectos que podem ser mais bem conhecidos na discussão do caso analisado. Enfim, o que as entrevistas ajudam a materializar são as impressões iniciais que a introdução do trabalho com o gênero textual ensaio acadêmico produzem nos alunos e o que se pode aprender com suas falas e percepções, a fim de se aperfeiçoar tal trabalho.
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ANEXO A: ROTEIRO DA ENTREVISTA COM OS ALUNOS 1. Antes de cursar o Direito em nossa instituição, você já havia lido
ou
produzido
algum
ensaio
em
sua
carreira
acadêmica/escolar ou profissional? Poderia contar sobre essa experiência anterior, caso tenha tido? 2. O(s) ensaio(s) acadêmico(s) que você produziu, em nossa instituição,
foi(ram)
por
sua
iniciativa,
pois
queria
ter
oportunidade de publicá-lo ou foi por exigência avaliativa de alguma disciplina do curso? 3. Caso tenha feito como uma atividade avaliativa para alguma disciplina, que tipo de apoio/orientação este professor ofereceu aos alunos sobre como elaborá-lo? 4. Houve orientações particularizadas, em algum momento da disciplina, para tratar com os alunos ou grupos de alunos, dos ensaios em elaboração, apontando-se caminhos e melhorias possíveis? 5. Que tipo de dificuldade(s) você encontrou para elaborar o ensaio acadêmico, quando lhe foi solicitado pela primeira vez? 6. Para escrever seu ensaio, você consulta ou consultou o material didático sobre a escrita do gênero textual ensaio acadêmico, disponibilizado pela nossa faculdade? 7. Esse material lhe ajudou a conhecer melhor essa modalidade de texto, a linguagem a ser empregada, a estrutura padrão e a entender que esse gênero tende a ser bem mais subjetivo que outros empregados no curso?
8. O apoio à escrita do ensaio acadêmico oferecido na Monitoria de Língua Portuguesa ajudou-lhe a elaborar o trabalho de forma mais produtiva e mais segura?
Se sua resposta for
afirmativa, pode mencionar no que esse apoio lhe ajudou, mais especificamente? 9. O gênero textual ensaio acadêmico, por ser mais subjetivo que outras
modalidades
de
texto
produzidas
na
faculdade,
possibilita que se escreva usando a 1ª pessoa do singular (eu). Em sua análise, a escrita em 1ª pessoa, ou seja, usando o “eu” facilita ou dificulta a elaboração do texto? Por quê? 10. Que tipo de fontes “bibliográficas” você recorre com mais frequência para a elaboração do ensaio acadêmico? 11. Você prefere escrever o ensaio acadêmico individualmente ou em grupo? Por quê? 12. Quanto tempo em média (dias) você leva para elaborar um ensaio acadêmico?
ANEXO B: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Prezado(a) participante: Sou estudante do 5° período do curso de graduação em Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Estou realizando uma pesquisa em conjunto com a Profª. Ms. Magna Campos, na condição de monitora da área de Língua Portuguesa, relacionada com a Escrita do Gênero Textual Ensaio Acadêmico em nossa faculdade. Sua participação envolve conceder-nos uma entrevista oral que será gravada em áudio, para depois será transcrita a fim de se analisar os dados. A participação nesse estudo é voluntária e se você decidir não participar ou quiser desistir de continuar em qualquer momento, durante a entrevista, tem absoluta liberdade de fazê-lo. Na publicação dos resultados desta pesquisa, sua identidade será mantida no mais rigoroso sigilo. Serão omitidas todas as informações que permitam identificá-lo(a). Apenas serão usados dados referentes ao período em que você está matriculado no curso e um nome genérico de “entrevistado 01, entrevistado 02, entrevistado 03” e, assim em diante, conforme quantidade de pessoas entrevistadas. Mesmo
não
tendo
benefícios
diretos
em
participar,
indiretamente você estará contribuindo para a compreensão do fenômeno estudado e para a produção de conhecimento científico. Quaisquer dúvidas relativas à pesquisa poderão ser esclarecidas pelo(s) pesquisador(es), pelos e-mails:
[email protected] ou
[email protected].
Você concorda em participar e autoriza a gravação em áudio da entrevista?
(
)sim
_______________________________________________ Assinatura do Entrevistado Atenciosamente, ___________________________________ Aluna-monitora: Nordeci Gomes ___________________________________ Professora: Ms. Magna Campos
(
) não
PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS INFRACONSTITUCIONAIS E ASPECTOS DA LEI 11.101/2005
Michele Aparecida Gomes Guimarães1 Nilson Gonçalves do Nascimento2 Resumo: Desde a Constituição Federal de 1988, o legislador brasileiro optou por um sistema jurídico dinâmico, no qual prevalece “o ser”. Diante dessa constatação buscou-se apresentar e discutir os princípios constitucionais relevantes ao Direito Empresarial, apontando eventuais problemas e sugerindo possíveis soluções, principalmente no tocante à Lei 11.101/2005, a qual inaugurou um momento histórico no Direito Falimentar, visto que trouxe inovações importantes para a evolução do sistema econômico. Embora a nova sistemática veio suprir as mazelas da legislação anterior, ainda não alcançou índices notórios ao fim que se destina. A empresa individual e as sociedades empresárias fazem parte de um complexo sistema econômico que por vezes é atingido por crises, assim, precisam encontrar o caminho para manutenção no mercado, sob pena da falência. Palavras-chave: Crise - Recuperação – Dignidade.
Introdução Pretende-se, neste trabalho, apontar os princípios constitucionais e infraconstitucionais que norteiam a Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogada e Consultora Jurídica militante nas áreas do Direito do Consumidor, Civil, Trabalhista, Ambiental, Administrativo e Previdenciário. Assessora Jurídica do Serviço Municipal de Água e Esgoto de Ouro Preto. Professora da Universidade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Tutora do curso de Graduação em Administração Pública do Centro de Educação à Distância (CEAD) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 1
2
Aluno do 9° período de Direito.
154
atividade
econômica,
correlacionando-os
à
Lei
11.101/2005 que apresentou uma nova ótica pautada no princípio da preservação da empresa. A
preocupação
em
corrigir
as
falhas
nas
engrenagens do sistema econômico, aparece de modo a ensejar a reestruturação da empresa ou da sociedade empresária, evitando, assim, o fracasso e o consequente rompimento do ciclo potencial de riquezas. Contempla-se promover discussões, sobretudo, nas perspectivas contemporâneas, embora a nova LRF (Lei de Recuperação e Falências) tenha completado apenas dez anos em 2015, já apresenta alguns dados possíveis de apontar direcionamentos das condutas e dos possíveis resultados de ordem prática, como por exemplo, destacar o número de Empresas ou Sociedade Empresárias que alcançaram o óbice desta lei. Requer-se,
ainda,
analisar
alguns
dispositivos
legais, como exemplo, o Art. 24,§1º, os quais, na prática, muitas vezes não coadunam para a transformação ou readequação das entidades estruturantes do organismo econômico revelando as causas, bem como as possíveis consequências no contexto empresarial. 2. Princípios constitucionais e infraconstitucionais e a empresa 155
A Constituição Federal da República de 1988 assegurou ao indivíduo uma série de direitos que limitam o poder do Estado contra si, entre os quais, estão os princípios constitucionais que transcendem a ótica de uma
interpretação
ordenamento
jurídico
literal
e
brasileiro,
operam-se impondo
por
todo
obrigações,
constituindo direitos, e funcionando como parâmetros para o legislador. O art.1º, III, CF/88 é o eixo do sistema jurídico brasileiro e estabelece a dignidade da pessoa humana como Fundamento da República Federativa do Brasil. Segundo Peter Haberle, citado por Nery Júnior e Maria de Andrade Nery (2013, p. 178) a Constituição que se compromete com a dignidade humana gera uma força protetiva pluridimensional constituindo premissa para todas as questões jurídico-dogmáticas particulares. O princípio da dignidade da pessoa humana não apenas serve de norte para o legislador, mas funciona verdadeiramente como pilar mestre, de tal sorte, que é a mola propulsora do ordenamento jurídico pátrio. Promover tratamento digno às pessoas, numa sociedade rica em diversidade, é acima de tudo, confiar ao Direito uma complexa missão, seja através do legislativo ou das demais organizações democráticas a convergirem para o equilíbrio 156
e demandarem por soluções que viabilizem resultados práticos e eficientes. A razão de estar explícito no Art.1º, III, CF, denota a clara intenção do constituinte em operar pela promoção da
justiça
social,
considerando
o
indivíduo
não
isoladamente, mas num contexto referenciado, ou seja, unidade
essencial
à
coletividade.
Por
isso,
a
Lei
11.101/2005 não pode ser interpretada isoladamente em função da ficção jurídica sob pena de causar sérias consequências, como por exemplo, considerar a sociedade empresária apenas no aspecto formal, esquecendo-se dos benefícios, aspectos materiais, como a empregabilidade, o qual traduz-se na garantia de alimentação, saúde, lazer, autoestima, confiança, e tantos outros. Então, é coerente racionar que o princípio da preservação da empresa, contido no art.47, da lei de recuperação e falências não foi calcado como mero apontamento,
sobretudo,
decorre
do
princípio
da
dignidade da pessoa humana insculpido na Constituição Federal da República, que, sem dúvida, será o ponto de partida e centro de convergência para toda manifestação jurídica. Cabe-nos, para além, traçar reflexões no tocante aos princípios gerais da ordem econômica dispostos no Art.170, CF/88, a saber: 157
A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II. propriedade privada III. função social da propriedade VII. redução das desigualdades regionais e sociais VIII. busca pelo pleno emprego
O caput do Art. 170, da Constituição Federal preconiza liberdades que funcionam como colaboradoras do princípio da dignidade da pessoa humana. Se a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano, é exigível, “a priori,” entender que é necessário haver trabalho,
significando
emprego,
tarefa,
labuta;
a
valorização é adjetivo, o qual apresenta-se como qualidade que consiste em promover dignidade do homem para o homem, ainda que seja representando a ficção jurídica, já que esta nada realiza só. A livre iniciativa permite a qualquer do povo o direito de empreender, criar seu próprio negócio desde que respeitado o princípio da legalidade, ou seja, deverá adequar-se naquilo que o legislador estabeleceu para cada caso concreto. Visa com isso, atender às finalidades do Estado, que visa realizar os anseios da sociedade em conformidade com o princípio da solidariedade, base do 158
sistema jurídico tributário e organismo útil para a transformação, sendo fonte precípua de arrecadação e consequente ratificação dos fundamentos da república, quer especialmente assegurar a dignidade da pessoa humana. O princípio da propriedade privada e o princípio da função social devem ser examinados em conjunto por este estabelecer
limites
àquele.
Assim,
segundo
os
ensinamentos de Nery Júnior e Maria de Andrade Nery (2013, p. 847), “a propriedade privada é um direito fundamental do cidadão desde que manifeste sua função social” levando-nos a entender que a propriedade privada não poderá agir livremente, ausente de parâmetros, será ela, dirigida em harmonia com a coletividade sendo indispensável para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A função social é um pressuposto ao Estado Democrático de Direito, principalmente pela defesa dos direitos de terceira geração, ou direitos difusos. Desse modo,
faz-se
econômica
seja
mister, realizada
que em
determinada conformidade
atividade com
a
preservação dos meios necessários à defesa da vida com qualidade,
o que coaduna com a dignidade da pessoa
humana.
159
O princípio da redução das desigualdades regionais e sociais projeta-se no alcance de “justiça”. Sandel, em sua obra “JUSTIÇA” (O que é fazer a coisa certa) produziu notáveis reflexões a partir da temática, conduzindo o leitor para diversos conhecimentos, como as abordagens de John Rawls, Immanuel Kant, Jeremy Bentham e outros mais. Esta obra prima não é matéria de nosso estudo, neste trabalho, porém é oportuno apresentar o conceito de ‘justiça’ de JONATHAN RÉE, citado por Sandel (capa). “Justiça é um convite oportuno para renunciarmos a disputas políticas e avaliarmos se somos capazes de ter uma discussão sensata sobre em que tipo de sociedade realmente queremos viver”. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ao estabelecer como princípio da atividade econômica a redução das desigualdades regionais e sociais pretendeu a formatação de um Estado justo, construído na ordem solidária e garantidora do “bem estar social”. Isso pressupõe uma relativização dos conceitos jurídicos que em acordo ao grau de interesses de uma sociedade permite a cada geração realizar-se de modo satisfatório, levando-se em conta aquilo que de fato é justo para a coletividade. O princípio da busca do pleno emprego sugere que o Estado promova
oportunidades para as empresas ou 160
sociedades empresárias a fim de que estas ao exercerem sua função social, possibilite aos indivíduos acesso ao trabalho iniciando o ciclo de produção de riquezas. Dessa forma, o trabalho prestado será compensado através de salários, os quais serão utilizados para o exercício do bem estar, logo o consumo servirá de munição para a produção, indústria e o comércio. Esse arranjo permite ao Estado consolidar-se harmonicamente, pois satisfaz o óbice da propriedade privada, que alcança os resultados pretendidos pelo administrador como a obtenção
do lucro, gerando em
contrapartida a divisão de riquezas aos seus funcionários pela compensação salarial, investimentos diretos em organizações da sociedade, além da contribuição de impostos e diversos benefícios diretos e indiretos gerados pela
movimentação
da
Empresa
ou
Sociedade
Empresária. 2.1-Alguns aspectos da Lei 11.101/2005
Nesse ponto, vale dizer que é dever do Estado proporcionar
meios
para
garantir
as
atividades
econômicas. Assim, a concepção da empresa adotada pelo Código Civil de 2002, apresenta-se no art. 966 com a seguinte redação: “considera-se empresário quem exerce 161
profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.” Segundo os ensinamentos de Coelho (2010, p.10) do conceito de empresário apresentado no Art.966 é possível extrair o da empresa. Desse modo, é razoável entender
que
para
ser
empresa
deverá
preencher
determinadas características, como atividade econômica, sendo esta, necessariamente organizada, vinculada à produção ou circulação de bens ou serviços. Esse conceito é de notável importância, pois a Lei 11.101/2005, em seu Art.2º tratou de excluir algumas sociedades empresárias da recuperação e falência. Além disso,
a conceituação de ordem técnica aduz para
inequívocos, os quais se limitam à compreensão da teoria da empresa adotada pelo código civil de 2002. Percebe-se, que os princípios da ordem econômica dispostos
no
Art.170.
CF,
são
relevantes
para
a
manutenção das instituições produtoras de bens e serviços, as quais “visam atender a dignidade da pessoa humana conforme os ditames da justiça social”. No
entanto,
ainda
que
adotado
medidas
preventivas e estimulantes para a economia poderão existir hipóteses, as quais trazem dificuldades ou até mesmo causem a ruína de determinada empresa ou da sociedade empresária. Então, o legislador ponderou a 162
motivação para a superação de crises ou momentos difíceis devendo justificar no princípio da preservação da empresa. O Art.47, da Lei 11.101/2005, trouxe a seguinte redação: A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômica-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
A preocupação com a manutenção dos entes jurídicos
personificados
justifica-se
pelos
inúmeros
benefícios colhidos individualmente e pelo próprio Estado, que somados resultam na benesse da coletividade. A característica marcante funde-se na função social da atividade econômica, onde é implícita a ideia de utilidade. Segundo Bentham, citado por Sandel (2012, p.48), o conceito de utilidade se verifica “por qualquer coisa que produza prazer ou felicidade e que evite a dor ou o sofrimento”. O pressuposto essencial do Direito Empresarial, principalmente no tocante à legislação da recuperação judicial, extrajudicial e falência coaduna pelos máximos 163
resultados extraídos pela coletividade, isso quer dizer que preservar a empresa não se trata de medida protecionista isolada
ou
pactuada
com
interesses
exclusivamente
particulares. A preservação da empresa é condição para fomentar o desenvolvimento do país e dos indivíduos que compõem
um
dos
elementos
mais
importantes
na
formação do estado, o “povo”. Entender
esse
processo
é
compreender
a
importância da empresa e aplicar todo conhecimento a fim de evitar o seu fracasso, formatando meios para preservála, e fazê-la cumprir a função social da propriedade, pois somente dessa forma estará atendendo aos critérios de utilidade, ou seja, busca-se proporcionar a coletividade o máximo de satisfação possível. O legislador preocupou-se em criar mecanismos para promover resultados no desenvolvimento da atividade econômica, contudo, sabe-se que na prática a aplicação da lei não se dá de modo simples. Nesse contexto, por diversas vezes, a tentativa de salvar a empresa é frustrada colhendo os piores resultados possíveis, como prejuízos a credores, empregados, aos cofres públicos e outros ainda decorrentes da relação jurídica existentes nas sociedades empresárias. O instituto da recuperação judicial, extrajudicial e falência ganharam notoriedade na última década, porquê 164
apesar
de
inúmeras
críticas
tem
produzido
alguns
resultados, ainda que suscetíveis de análises baseadas em previsões,
tal
ocorrência
justifica-se
por
números
significativos de empresas sob processo de recuperação, não podendo afirmar ou negar
o sucesso, tão pouco a
derrocada da operação. Segundo dados da revista exame (19/12/2013) nos Estados
Unidos
30%
das
empresas
que
pedem
a
recuperação judicial “conseguem se salvar”, citando como exemplo o caso da General Motors, uma montadora que enfrentou crise em 2008 e foi dividida em duas pelos seus credores alcançando o cumprimento de todas obrigações e voltando a gerar lucros. No Brasil, os dados não são tão favoráveis, isso decorre principalmente pela legislação ainda considerada por muitos como recente, mas é possível destacar outros problemas que inviabilizam o sucesso da recuperação das empresas. Segundo
dados
da
Consultoria
Corporate
Consulting veiculada pela Exame(19/12/2013), somente em 2013 ocorreram 675 pedidos de recuperação judicial, entre esses, o mais famoso foi o caso do Grupo X, com dívidas em torno de 15 bilhões de reais e ainda apontam que desde a criação lei 11.101/2005 até o ano de 2013 foram aproximadamente 4000 casos de pedidos de 165
recuperação judicial, sendo os resultados alarmantes, pois informam que apenas 1% dessas empresas conseguiram se reestruturar e voltar a operar gerando lucros. Frisa-se, que 10% das empresas enquadradas na situação exposta anteriormente, faliram e o restante, continuam a operar, ou seja, 89% dessas empresas estão sob processo de recuperação. O Art.61, da Lei 11.101/2005 estabelece o prazo de dois anos para o devedor cumprir as obrigações que se vencerem neste período, havendo descumprimento de qualquer obrigação, o §1º do referido artigo dispõe a convolação
da
recuperação
em
falência.
O
art.63
estabelece que cumpridas as obrigações no plano da recuperação judicial dentro do prazo estipulado no art. 61 desta lei, encerra-se a recuperação judicial. Note-se,
que
existe
algo
lacunoso,
uma
vez
constatado a existência de números importantes de empresas as quais já não deveriam se enquadrar em processo de recuperação, pois já ultrapassaram o prazo legal. A situação merece reflexão; ou o tempo estipulado pelo legislador é surreal, permitindo qualificá-lo como insuficiente ou então não se leva tão a sério a proposição contida no art. 47 da lei de recuperação e falência pelos diversos motivos já expostos neste trabalho.
166
O plano de recuperação judicial deve ser traçado às minúcias contendo elementos suficientes para justificar o deferimento
pelo
Magistrado.
Cada
caso
concreto,
certamente guardará disposições próprias que demandará análise complexa por profissional altamente qualificado, portanto, não se deve permitir recuperação judicial “a de eterno”; é necessário, antes de mais nada, constatar a possibilidade e a capacidade do ente jurídico personificado em
adequar-se
reestruturação,
aos
meios
cumprindo
as
suficientes devidas
para
obrigações
a e
gerando resultados positivos. Como já conhecido pelas exposições anteriores, alguns acreditam que o insucesso da Lei 11.101/2005 refere-se ao fato da legislação ser considerada recente. Nesse aspecto existem dados mais atuais que apontam mudanças nos resultados. Em recente matéria publicada pelo Jornal Brasil Econômico informações
(10/07/2015), do
Instituto
usando Nacional
como da
base
as
Recuperação
Empresarial (INRE) apontam que 5%(cinco por cento) das empresas em processo de recuperação judicial conseguem cumprir o plano de recuperação e voltam a operar normalmente, cumprindo sua função social. Segundo os dados, desde a vigência da Lei 11.101/2005 até o ano de 2015, foram registrados 6.938 167
casos de recuperação judicial, e 3.859 casos de falências. Se comparados com os dados fornecidos no ano de 2013, em que o resultado positivo foi de 1%, é perceptível o avanço,
contudo a
constatação
é grave
ainda
que
considerado o fato de várias empresas ainda estarem sob o processo de recuperação judicial. O
Jornal
Econômico
(10/07/2015)
trouxe
o
depoimento do Presidente do INRE e Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Carlos Henrique Abrão, segundo ele, o plano de recuperação varia, em média, de seis a dez anos e somente depois de uma década é que o Juiz
pode
decretar
a
falência
automática
por
descumprimento de prazo. A
prolongação
demasiada
do
prazo
para
a
recuperação das empresas, provavelmente é causadora de prejuízos e contribui para a decretação da falência. Conhecer suas consequências é tolerar o desrespeito aos princípios constitucionais, bem como, o princípio da preservação da empresa. É necessário traçar planos sólidos, com seriedade e perspectivas de superação, não se admitindo fracassos, pois este é inerente a sociedades desqualificadas, ausentes do espírito empreendedor. O art. 5º do Decreto-Lei n.4.657/92, estabelece que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. 168
Sendo assim, clama-se por uma justiça mais atenta aos anseios sociais, deve então, o Magistrado ao analisar o plano de recuperação da empresa ou da sociedade empresária em crise, atuar de forma a atender a dignidade
da
pessoa
humana,
numa
perspectiva
contemporânea, justa e solidária. Deverá, acima de tudo, vincular-se aos objetivos que a lei 11.101/2005, traçou em seu art.47, sob pena de antagonizar aos preceitos fundamentais. Outra questão tormentosa refere-se à quantia paga ao administrador judicial. O art.24, da LRF estabelece que o magistrado deve fixar o valor de acordo com a capacidade de pagamento do devedor, observando ainda o grau de complexidade exigido para realizar a tarefa, não se esquecendo de balizar nos valores praticados no mercado para atividade semelhante. O §1º, do art. 24 da LRF expõe a faculdade do Juiz em limitar a ordem de pagamento no máximo de 5% (cinco por cento ) do valor devido aos credores no caso da recuperação judicial ou em si tratando de falência, igual porcentagem da venda dos ativos. Contudo, na prática o que acontece de praxe é o levantamento do administrador, seja pessoa física ou jurídica baseado em 5% (cinco por cento ).
169
“A
consultoria
Deloitte,
responsável
por
administrar a OGX, uma das empresas do Grupo X, pediu 25 ( vinte e cinco) milhões de reais para cuidar do caso num prazo de 30 ( trinta ) meses”, (exame(19/12/2013)), embora o valor fora refutado pelo Ministério Público, a Consultoria
aceitou
receber
um
terço
do
valor,
aproximadamente 8 ( oito ) milhões de reais. Fica evidente o quão é desproporcional o valor proposto e o aceito. Em situações complexas como esta, é provável que ocorra uma pressão psicológica por parte daqueles que pretendem prestar o serviço, pois, trata-se de valores aviltantes e é cercado de um marketing fora dos propósitos normais do cotidiano. Isso coloca o objetivo da LRF em risco, uma vez que visa, a reestruturação da sociedade e não o enriquecimento de uns em função de outros. Não se pode descartar a complexidade de caso, mas é necessário haver uma probabilidade quase certa de que a sociedade empresária irá alcançar as metas estipuladas no plano da recuperação e voltar a gerar lucros. Salienta-se que no caso concreto deve o magistrado aplicar o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade (Agravo de Instrumento 595.951-4/0-00, relatado pelo Des. Romeu Ricupero, Coelho (2010, p.78)) levando-se em
170
conta o resultado do trabalho do administrador e sua especificidade. Percebe-se,
desde
logo,
que
a
faculdade
do
Magistrado na ponderação dos valores indicados para pagamento ao administrador judicial, vinculada aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, não resolve
por
alternativas;
completo isso
a
ocorre,
questão, devido
embora a
sugere
desatenção
do
legislador. Em regra, aplica-se porcentagem sobre ganhos, ou seja, se a empresa individual ou a sociedade empresária rendeu lucros, sobre estes, devera incidir determinada possibilidade de ganhos. Na recuperação judicial o devedor encontra-se em situação de dificuldade financeira, razão pela qual necessita passar pelo processo de reestruturação, aumentar o seu passivo significa torná-lo mais vulnerável e de certa forma, aumenta as dificuldades para
o
cumprimento
das
obrigações.
Esses
fatos
contribuem de modo significativo para atrasar o processo de recuperação, causando graves prejuízos a credores, trabalhadores e demais sujeitos de direito. Conclusão Alternativa provável é apresentar critérios rígidos na avaliação do pedido de recuperação, e somente 171
autorizá-la, se viável. A partir de então, a viabilidade certamente proporcionará outros meios para pagamento do administrador, como por exemplo, participar de cotas da sociedade empresária. Dessa forma, o administrador estará gerindo em parte seu próprio negócio, o que lhe forçará a aplicar o máximo de diligência possível, sob pena de não atingir sua retribuição. Nos Estados Unidos, os casos de sucessos na recuperação judicial estão, quase sempre, diretamente ligados a essa forma de participação. No período de dificuldade a sociedade empresária precisa de superar o passivo, e a entrada de sócios além de aumentar a confiança
do
mercado,
equilibra
as
forças
nas
negociações. No
Brasil,
não
se
pode
atribuir
à
culpa
exclusivamente nas lacunas da Lei 11.101/2005, existem um complexo de situações que na verdade não aduzem para o “empreendedorismo virtuoso”, principalmente no tocante à legislação tributária, as altas alíquotas de impostos e de taxas forçam as empresas individuais e as sociedades empresárias a trabalharem numa zona de perigo.
Então,
significativas
no
quando mercado
ocorrem os
reflexos
“turbulências” são
sentidos
rapidamente, e por diversas vezes colocam em sacrifício o exercício da atividade econômica. 172
O ano de 2015, período no qual a crise econômica se instalou é possível constatar essa realidade com facilidade. A equipe econômica se pauta no intuito de continuar
arrecadando
através
de
tributos
como
anteriormente à crise; isso é inadmissível, portanto é o que acontece. Se a atividade econômica passa por crises é necessário usar o princípio da solidariedade no sentido reverso, ou seja, contribui-se por este, fomentado o desenvolvimento do país e quando a dificuldade se instala é preciso que o Estado utilize de mecanismos para gradativamente restabelecer a confiança no mercado. Uma das formas prováveis a ser aplicada, é facilitar o crédito de modo responsável com preços baixos, pois com dinheiro em caixa a propriedade privada realiza investimentos
em
desnecessárias,
áreas
frágeis
preservando
contendo
empregos,
despesas
e
criando
oportunidades de diversificação de capital; somados esses esforços a crise será breve e passageira, ao contrário o cenário será outro; ocorrerá uma leva de pedidos de recuperação, falências, e às vezes, muito antes, inúmeras desistências de continuar a desenvolver a atividade econômica, como ocorrem no momento atual. A fuga dos empresários são reflexos da pouca importância
atribuída aos empreendedores pelo Estado,
aqueles ao exercerem a atividade de risco,
e por esse 173
motivo deve suportar todos os ônus. Essa realidade afasta dos ideais de uma sociedade justa e solidária maculada em princípios fundamentais, os quais,
devem considerar
o ser humano como centro de atenção da ação estatal. Logo,
requer
a
contemporâneos,
construção
ousados
e
de
paradigmas
pautados
numa
ótica
moderna com fulcro no desenvolvimento e qualidade de vida. Referência COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários á lei de falências e de recuperação de empresas. 7. Ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 10-78. SANDEL, Michel j. Justiça, o que é fazer a coisa certa; [tradução 8ª Ed. de Heloisa Matias e Maria Alice Maximo]. 8ª Ed, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 4849. JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição
Federal
Comentada
e
Legislação
Constitucional. 4ª Ed, rev. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 48, 178, 845-855. Disponível em: . Acesso: 2 set 2015, 09:34 Atualizado em: 10/07/2015, 08:57. 174
Disponível em: , acesso: 02 out 2015, 10:28. Disponível em : Acesso: 28 set 2015, 14:23. Disponível em: Acesso em: 23 set 2015, 14:29.
175
A TUTELA DO HIPOSSUFICIENTE NA NOVA AXIOLOGIA PROCESSUAL DA LEI Nº 13.105/2015 (“NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”)
Carlos Randel Crepalde Mafra1 Fabiano César Rebuzzi Guzzo2 Waldir Araújo Carvalho3 Resumo: O presente artigo estuda as normas processuais do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/15) que promovem uma especial proteção do litigante mais vulnerável, bem como tece críticas a normas sem concretude, analisando, entre outros, os institutos da tramitação processual prioritária, da distribuição dinâmica do ônus da prova, da gratuidade judiciária e das regras atinentes ao cumprimento de sentença de prestação de alimentos. Palavras-chave: Hipossuficiente, vulnerabilidade, Código de Processo Civil.
Introdução
Logo de imediato é necessário especificar o que se entende pelo léxico “hipossuficiente” e o que sem entende por hipossuficiência no âmbito jurídico-processual. Segundo o dicionário Michaelis hipossuficiente é a “pessoa que é economicamente humilde; que não é autossuficiente”4. O dicionário Priberam, por sua vez, Advogado. Mestrando em Criminologia Forense pela Universidade de Buenos Aires. Professor Assistente FUPAC-Mariana. 2 Advogado. Mestre em Direito e Globalização. Professor Adjunto UFOP. Professor Adjunto FUPAC-Mariana e Professor Titular FDCL. 3 Advogado. Pós-graduando Lato Sensu em Direito Processual pela PUC-MG 4 Disponível em: 1
176
oferece o seguinte significado: “que não se basta a si próprio, geralmente em relação aos recursos econômicos ou financeiros”5. Contudo este significado é restrito para os objetivos deste artigo. Neste sentido, adota-se o conceito denso desenvolvido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, no âmbito das decisões sobre a hipossuficiência no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), para o qual há diversas modalidades de vulnerabilidades. A
hipossuficiência
clássica
consiste
em
mera
vulnerabilidade econômica, que também é acobertado pela recente legislação processual civil. Todavia, entre as modalidades de vulnerabilidade, há a vulnerabilidade informacional, a vulnerabilidade técnica, a vulnerabilidade fática a depender do caso concreto e, sobretudo, a vulnerabilidade jurídica que se verifica na ampla infraestrutura advocatícia dos grandes grupos econômicos, na dificuldade de obtenção de elementos probatórios, etc. Neste contexto, a Lei 13.105/2015, que trouxe para o ordenamento jurídico hodierno o novo Código de Processo Civil (NCPC), também trouxe no seu bojo uma série de institutos e aperfeiçoamentos legislativos que Acesso em 22/05/2016. 5 Disponível em: > Acesso em 22/05/2016.
177
buscam
equilibrar
as
relações
jurídico-processuais,
evitando-se que a parte com menos recursos financeiros ou técnicos enfrente mais obstáculos durante o acesso ao judiciário e ao provimento jurisdicional pleiteado. Trata-se, sem dúvida, da concretização do princípio da igualdade e da isonomia processual, razão pela qual, o marco-teórico deste artigo consiste em um estudo sobre os novos valores jurídicos (axiologia) contido de maneira implícita ou explícita no NCPC. Assim, ensina Theodoro Jr. (2015, p. 111) que: As partes deverão merecer tratamento paritário, devendo o juiz zelar pelo “efetivo contraditório” (art. 7º): a igualdade de tratamento não pode se dar apenas formalmente. Se os litigantes se acham em condições econômicas e técnicas desniveladas, o tratamento igualitário dependerá de assistência judicial para, primeiro, colocar ambas as partes em situação paritária de armas e meios processuais de defesa. Somente a partir desse equilíbrio processual é que se poderá pensar em tratamento paritário no exercício dos poderes e faculdades pertinentes ao processo em curso. E, afinal, somente em função dessas medidas de assistência judicial ao litigante hipossuficiente, ou carente de adequada tutela técnica, é que o contraditório terá condições de se apresentar como efetivo, como garante o art. 7º do NCPC.
Contudo, também há críticas severas quanto a dispositivos legais que, por serem demasiado simbólicos ou sintéticos, falharam na defesa da parte hipossuficiente. 178
Ante o exposto, serão analisados os seguintes institutos processuais conforme a seguir delineados com maior profundidade. 2. Prioridade de tramitação
O art. 1.048, constante no livro complementar das disposições
finais
e
transitórias,
regulamentou
a
prioridade de tramitação dos processos, porém sua regulamentação foi absolutamente defasada e deixou muito a desejar por duas razões basilares. A primeira foi o rol restrito indicado pelo NCPC, que consiste basicamente em três hipóteses: pessoa maior de 60 anos (que já constava no Estatuto do Idoso, art. 71, mas foi aglutinado ao código), pessoa portadora de doença grave (desde que enumerada no art. 6o, inciso XIV, da Lei no 7.713/88) e as ações de competência da justiça da infância e juventude (que também já estava prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente). Nesta toada, se verifica que a restrição das doenças graves ao indicado rol restringe por demasiado as hipóteses legais, quais sejam: [...] tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante,
179
nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome da imunodeficiência adquirida [...]
Afinal,
tal
limitação
afronta
a
jurisprudência
dominante do STJ de que este rol é exemplificativo, posto que existem inúmera doenças raras e gravíssimas que só podem ser constatadas no caso concreto (RESP nº 1.235.327/RJ
-
STJ);
REsp
nº
1.284.290/PR
2011/0204551-6 STJ). Ademais, o NCPC se esqueceu dos deficientes físicos e
mentais
que
também
sofrem
de
uma
peculiar
vulnerabilidade – contudo, deve-se aplicar, nesta situação, o Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei de inclusão da pessoa com deficiência (Lei nº 13.146/15) que prevê a tramitação processual prioritária por força do seu art. 9º, inciso VII. Obviamente que aquele que goza da prioridade de tramitação possui uma condição subjetiva de especial vulnerabilidade,
razão
pela
qual,
a
segunda
crítica
consiste justamente na disposição legal genérica de que os feitos prioritários receberão “identificação própria que evidencie o regime” e que o juízo determinará as “providências minimamente,
a
serem
qualquer
cumpridas” instrumento
sem
prevê,
concreto
de
prioridade ou sequer um meio minimamente coercível de 180
controle das serventias judiciais para efetivação da prioridade – tratando-se, pois, de norma estéril na defesa dos hipossuficientes. Por fim, insta complementar que nas hipóteses de crianças
e
adolescentes,
há
ainda
uma
prioridade
suplementar em caso de suspeita de alienação parental, conforme previsto no art. 4º da Lei nº 12.318/10 (que sequer foi mencionada pelo novo código). 3. Jurisprudência defensiva, “litigantes débeis” e instrumentos de paridade
Entende-se por jurisprudência defensiva todos os precedentes
construídos
pelos
tribunais
com
nítida
finalidade de dificultar o conhecimento de determinadas demandas ou recursos, através da exigência de requisitos burocráticos esdrúxulos que levavam, normalmente, a extinção do feito sem análise do mérito. São inúmeros os exemplos no NCPC que combatem a jurisprudência defensiva, mas quatro em especial chamam a atenção: i) o art. 1.003, §4º que determina que a tempestividade recursal se verifica na data da postagem nos correios (superando-se a famigerada Súmula 216 do STJ); ii) o art. 218, §4º que afirma que o ato praticado antes do início do prazo é tempestivo (superando-se a 181
antiga
tese
da
intempestividade
prematura);
iii)
a
possibilidade do STJ e STF desconsiderar vício formal em recurso tempestivo (art. 1.029, §3º), como por exemplo a indicação do prequestionamento ou da repercussão geral em tópico específico na peça; iv) a possibilidade de suprir vício documental antes da decisão de inadmissibilidade do recurso como na insuficiência de custas (art. 1.007, §2º) e na ausência de documentos essenciais ao agravo de instrumento (art. 1.017, §3º). Neste contexto, lecionam Theodoro Junior, Nunes, Bahia & Pedron (2015, p. 15/16): Exemplos nefastos como o da “jurisprudência defensiva” no campo recursal, rigor quase “ritual” na análise de requisitos procedimentais, foram amplamente combatidos no Novo CPC, uma vez tal modo de interpretar o sistema processual promove o impedimento da fruição plena de direitos (muitas vezes, fundamentais) e esvaziam o papel garantístico que o processo deve desempenhar na atualidade. O uso de tais expedientes com o único objetivo de diminuir a carga de processos pode até possuir uma jusficativa instrumental, mas não se conforma aos ditames de um modelo constitucional de processo próprio ao Estado Democrático de Direito. Para a diminuição do número de ações (ou de seu peso sobre o bom funcionamento do Judiciário) o Novo CPC quer se valer de procedimentos democráticos e expostos ao contraditório.
Evidente que para os litigantes que possuíam condições de contratar grandes escritórios de advocacia 182
com
um
imenso
quadro
de
profissionais
ultra-
especializados nas diversas esferas de conhecimento do direito, havia uma maior facilidade para driblar as “armadilhas” jurisprudenciais. Por outro lado, os litigantes que tinham condições de contratar apenas pequenos e médios escritórios de advocacia, quando não apenas o advogado
autônomo,
com
pouca
infra-estrutura
e
limitação de domínio de conhecimento jurídico eclético, acabava
por
pleitear
em
situação
de
“debilidade
processual” – os chamados “ligantes débeis”. Nesta seara o NCPC preza pelo princípio da cooperação e do tratamento paritário entre partes e juízes, evitando-se que eventual ignorância possa resultar na extinção de ações sem apreciação do mérito. Assim há inúmeros instrumentos de paridade que buscam evitar o desequilíbrio jurídico, tais como a desconsideração da personalidade jurídica inversa, a adoção da distribuição dinâmica do ônus da prova, o ativismo
judicial
equilibrado
e
o
microssistema
de
precedentes no combate a litigância de má-fé – os quais analisaremos abaixo. O
NCPC
regulamentou
o
incidente
de
desconsideração da personalidade jurídica no art. 133 e seguintes. E, neste diapasão, previu expressamente a possibilidade de desconsideração inversa (art. 133, §2º) 183
que busca evitar justamente a fraude inversa, na qual as pessoas físicas camuflam se patrimônio pessoal no patrimônio de pessoas jurídicas (as chamadas “máscaras societárias”) – fato muito comum em ações de divórcio, conforme precedente do STJ no Recurso Especial nº 948.117-MS: Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.
Importante salientar que nas relações de consumo e no dano ambiental é cabível a desconsideração sempre quando a pessoa jurídica for obstáculo ao ressarcimento, independentemente da prova de desvio de finalidade ou confusão patrimonial como exige a legislação civil comum. Também é importante salientar que o incidente de desconsideração é aplicável aos juizados especiais (art. 1.062, NCPC) – afinal, por força de lei, até então, nenhuma intervenção de terceiro era admitida nos JESP’s (art. 10, Lei nº 9.099/95). Sobretudo, insta acrescentar que é justamente nos juizados especiais cíveis que litigam 184
a maioria esmagadora das partes hipossuficientes e vulneráveis em todas as suas modalidades. Mas, sem fração de dúvida, o principal instrumento de paridade processual foi a adoção da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, coloquialmente conhecida como inversão do ônus da prova que até então era restrita as relações de consumo (art. 6º, VIII, CDC) e ao direito ambiental. O
art.
373,
§1º,
determina
que
diante
de
peculiaridades da causa relacionada a impossibilidade ou excessiva dificuldade de produção da prova pela parte que cabia o encargo ou maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário poderá o juiz atribuir o ônus da prova de forma
diversa,
fundamentando
e
dando
as
partes
oportunidade de se desincumbir do ônus – esta decisão é impugnável com agravo de instrumento (art. 1.015, XI, NCPC). Nesta conjectura, Didier Jr, Oliveira & Braga (2015, p. 124) expõem com precisão refinada a natureza do instituto: O CPC consagrou, legislativamente e com aperfeiçoamentos, a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova (na Argentina, onde foi bem desenvolvida, chamada de teoria das cargas probatórias dinâmicas [...] é possível a redistribuição judicial do ônus da prova quando, à luz do caso concreto, revelar-se que
185
a obtenção da prova do fato contrário pode ser mais facilmente obtida por uma parte em relação a outra. Neste caso, a redistribuição do ônus da prova feita pelo juiz visa à concretização da ideia de quem o ônus deve recair sobre aquele que, no caso concreto, possa mais facilmente dele se desincumbir. [...] (mas) não é possível a inversão judicial do ônus da prova feita na sentença. [...] O processo cooperativo exige que a modificação do ônus da prova respeite a necessidade da prévia informação às partes dos novos encargos probatórios e permitir a atuação da parte para desincumbi r- se do novo ônus a ela imposto.
Logo,
o
NCPC
amplia
as
possibilidades
de
hipossuficiência em razão de vulnerabilidades probatórias fáticas
a
serem
constatadas
no
caso
concreto,
acautelando-se assim um maior número de litigantes fragilizados que não sejam apenas consumidores – agora, pode-se inverter o ônus da prova em favor do alimentante, em causas possessórias em favor da coletividade carente ou de povos indígenas, em favor do idoso em ações contra instituições bancárias, em favor do paciente quando litiga em face dos médicos, em favor da mulher gestante em ações de divórcio, etc. Insta informar que a própria justiça laboral, por meio da Instrução Normativa nº 39 do Tribunal Superior do Trabalho (art. 3º, VII) já afirmou que o ônus dinâmico da prova se aplica nas relações jurídicas de trabalho.
186
Quanto aos direitos das provas, é fundamental acrescentar ainda duas previsões legais notórias, a primeira é a autorização da aplicação do conhecimento da experiência comum do juiz: Art. 375. O juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e, ainda, as regras de experiência técnica, ressalvado, quanto a estas, o exame pericial.
Que, faticamente, auxilia na defesa dos necessitados quando escassos os meios de prova. E, em segundo é a possibilidade de “perícia simplificada” (prova técnica simplificada) quando se tratar de questão de menor complexidade que consiste apenas na inquirição do expert pelo juiz a respeito de ponto controvertido e durante a inquirição o perito poderá usar recursos audiovisuais, maquetes, etc. para esclarecer as questões técnicas da causa: Art. 464. A prova pericial consiste em exame, vistoria ou avaliação. [...] § 2o De ofício ou a requerimento das partes, o juiz poderá, em substituição à perícia, determinar a produção de prova técnica simplificada, quando o ponto controvertido for de menor complexidade. § 3o A prova técnica simplificada consistirá apenas na inquirição de especialista, pelo juiz, sobre ponto controvertido da causa que demande especial conhecimento científico ou técnico.
187
§ 4o Durante a arguição, o especialista, que deverá ter formação acadêmica específica na área objeto de seu depoimento, poderá valer-se de qualquer recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens com o fim de esclarecer os pontos controvertidos da causa.
Evidente que os custos financeiros desta perícia são bem mais acessíveis que a pericia tradicional e permite ao hipossuficiente o acesso ao meio de prova, sobretudo, nos juizados especiais. O magistrado também possui uma série de poderes protetivos e probatórios que auxiliam na tutela processual do hipossuficiente como a possibilidade de admissão de amicus curiae em todos os graus de jurisdição, a autorização para uso de todas as medidas indutivas, coercitivas,
mandamentais
ou
sub-rogatórias
para
assegurar ordem judicial (art. 139, IV); dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova adequando-os as necessidades do conflito (art. 139, VI); determinar a qualquer tempo o comparecimento das partes para inquirir sobre os fatos da causa (art. 139, VIII);
é
possível
designar
uma
“audiência
de
saneamento/esclarecimento” (357, §3º), quando a causa for complexa e seja necessário o saneamento com cooperação das partes; a previsão legal de que o pedido deve ser interpretado no conjunto da postulação (art. 322, §2º), pois há jurisprudência antiga que já chegou extinguir 188
ações de adoção ou tutela em face de pais acusados de abuso sexual por ausência de pedido expresso de perda do poder familiar (p. ex.: REsp 476382 SP 2002/0145642-3 STJ). Tratam-se de pequenos ativismos judiciais aplicados com moderação para promover a isonomia entre as partes no processo. Evidente que tais mecanismos podem no caso concreto atuar em favor do litigante débil, seja por razões de qualidade argumentativa (como petições mal redigidas) ou até mesmo por insuficiência probante que poderá ser suprida
pelo
juízo,
inclusive
com
possibilidade
de
esclarecimentos direto da parte – ocorrendo um verdadeiro diálogo com o magistrado. Vale constatar que há previsão no NCPC para aplicação da teoria da ponderação de Robert Alexy: Art. 489 [...] §2º: No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão.
Exemplo clássico é a extensão da pensão por morte ao filho maior que é estudante universitário, afastando-se a vedação do art. 77, §2º, II da Lei nº 8.213/91 através de uma interpretação teleológica e ponderada da norma:
189
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. PENSÃO. ESTUDANTE UNIVERSITÁRIA. MAIORIDADE. DIREITO. 1.Tendo como norte o direito à educação, dever do Estado e da família, deve ser resguardado o direito à percepção de pensão, ainda que o seu beneficiário tenha atingido a maioridade, até que o mesmo complete a idade de 24 (vinte e quatro) anos, no intuito de possibilitar o custeio dos seus estudos universitários. 2. Precedentes do Eg. STJ. (TRF da 5ª Região. AC 282794/CE. Rel. Des. Federal Luiz Alberto Gurgel de Faria. DJ 10.04.2003, p. 553).
Trata-se de norma de imperiosa justiça social, afinal a legalidade estrita não pode prejudicar o litigante que, no caso concreto, através de uma axiologia deontológica profunda, indica ter maior direito ao provimento buscado, sobretudo quando se tratar de pessoa vulnerável. Por fim e não menos importante, o NCPC consagra um “microsistema de precedentes”, conforme amplamente estudado e divulgado desde sua publicação, que consiste na aplicação de mecanismos que visem uniformizar a jurisprudência infundadas incidente
e
ou
de
impedir recursos
resolução
o
ajuizamento
protelatórios, de
demandas
tais
de
ações
como
o
repetitivas,
a
improcedência liminar e a tutela da evidência. Este microssistema combate, principalmente, os chamados “litigantes habituais” (empresas de telefonia móvel, instituições bancárias, etc.) que contratam grandes escritórios de advocacia de massa para ajuizamento de 190
cobranças incabíveis e defesas e recursos genéricos com objetivo de postergar o acesso ao provimento jurisdicional final. Neste sentido, o NCPC passa a exigir a impugnação específica recursal sob pena de não conhecimento liminar do recurso (art. 932, III), autoriza o julgamento imediato pela improcedência em caso de pedido que contrarie entendimento jurisprudencial sedimentado, inclusive em súmula de direito local (art. 332) e permite a antecipação da tutela final quando, independente da demonstração de perigo de dano, restar evidente nos autos a probabilidade do direito pleiteado (seja pela caracterização do abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório ou pelo fato da petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável, etc.) - a chamada tutela provisória da evidência (ou tutela sumária) do art. 311. O NCPC, contudo, retrocedeu no que tange a tutela provisória ao estabelecer no art. 1.059 que aplica-se o disposto nos arts. 1º a 4º da Lei nº 8.437/92 (Lei da Cautelar contra o Poder Público) e no art. 7º, §2º da Lei nº 12.016/09 (Mandado de Segurança) no que tange a tutela provisória contra a Fazenda Pública – tratam-se de hipóteses,
praticamente
esquecidas
que
foram 191
“ressuscitadas”, nas quais se veda a antecipação do provimento jurisdicional. O art. 7º, §2º da Lei de Mandado de Segurança diz que “não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias
e
bens
provenientes
do
exterior,
a
reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza”. A Lei nº 8.437/92, por sua vez, diz que não será possível “medida liminar que esgote, no todo ou em qualquer parte, o objeto da ação”, bem como compensação de créditos previdenciários e exige, no mandado de segurança e na ação civil pública, a justificação prévia. “Esqueceu-se” o NCPC que a Fazenda Pública também é um litigante habitual que diariamente atua de maneira protelatória prejudicando a população mais vulnerável, seja negando vagas em creches infantis ou o fornecimento de medicamentos essenciais, bem como promovendo execuções fiscais infundadas de débitos flagrantemente prescritos.
4. O aperfeiçoamento da gratuidade judiciária
192
O NCPC praticamente derrogou a Lei nº 1.060/50, restando poucos artigos em vigor, e aperfeiçoou a justiça gratuita aos necessitados. Agora há previsão expressa de que o poder público deve ter “recursos alocados” para o pagamento de periciais em favor daqueles que litigam sob o pálio da gratuidade judiciária (art. 95, §3º), bem como a previsão expressa de que
a
gratuidade
pleiteada
pela
pessoa
natural
é
presumida (art. 99, §3º), enquanto a pessoa jurídica deve fazer prova de sua condição como já havia sido fixado jurisprudencialmente. Sobretudo, o art. 98, nos seus incisos, trouxe um rol exemplificativo, mas extremamente didático acerca do que se compreende na justiça gratuita, como os selos postais, honorários advocatícios, exame genéticos, memória de cálculo, etc., e, no seu inciso IX a positivação mais importante: “os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo
judicial
no
qual
o
benefício
tenha
sido
concedido”. Trata-se da gratuidade cartorária, cujos custos são evidentemente elevados para os mais pobres – afinal, basta imaginar o valor para averbação de uma sentença 193
de usucapião, por exemplo. Tal previsão encerra um intenso debate na jurisprudência: TJ-DF Agravo de Instrumento AGI 20140020128953 DF 001298459.2014.8.07.0000 (TJ-DF) Data de publicação: 02/10/2014 Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. GRATUIDADE DE JUSTIÇA. EXTENSÃO A ATOS EXTRAJUDICIAIS. POSSIBILIDADE. DECISÃO REFORMADA 1) Sendo a parte beneficiária da gratuidade de justiça, não tendo condições financeiras para averbar a partilha no Cartório do Registro de Imóveis, cabe ao Juiz determinar a sua realização. 2) A extensão da gratuidade de justiça aos atos em Cartórios Extrajudiciais confere efetividade à prestação jurisdicional. 3) Recurso conhecido e provido.
Também há, agora, previsão da gratuidade parcial (art. 98, §5º) apenas para alguns atos ou com redução de percentual. Por exemplo, é possível a justiça gratuita apenas quanto a perícia ou determinação de pagar apenas metade dos honorários de sucumbência, mas sem se aplicar as diligencias dos oficias de justiça quando módicas. Este
dispositivo,
sem
dúvida,
concretiza
uma
equidade processual, pois nem todas as vulnerabilidades são idênticas, há uma gradação em cada caso, cada hipossuficiência é subjetiva e a assistência jurisdicional deve corresponder as exatas necessidades do litigante. 194
Por fim há previsão de gratuidade superveniente no caso de miserabilidade jurídica surgida após o início do processo (art. 99, §1º) e em caso de indeferimento ou revogação do pedido é possível agravo de instrumento (art. 1.015, V) que estará dispensado do pagamento do preparo até a decisão que confirme ou revogue a gratuidade pretendida (art. 101, §1º). Ademais o fato do litigante estar assistido por advogado particular não é razão suficiente para o indeferimento da justiça gratuita (art. 99, §4º), conforme já havia se firmado nos tribunais: TJ-RJ APELAÇÃO 00304032620138190087 RJ 26.2013.8.19.0087 (TJ-RJ)
APL 0030403-
Data de publicação: 26/06/2015 Ementa: IMPUGNAÇÃO À GRATUIDADE DE JUSTIÇA HIPOSSUFICIÊNCIA NÃO AFASTADA MERAS AFIRMAÇÕES ADVOGADO PARTICULAR NÃOIMPEDIMENTO DA CONCESSÃO DO BEN EFÍCIO - MANUTENÇÃO. I- Impugnação apresentada baseando-se apenas em afirmações, sem produção de qualquer prova capaz de afastar a hipossuficiência econômica da parte. II- Manutenção do ato decisório. IIIRecurso a que se nega seguimento, na forma do artigo 557, caput, do Código de Processo Civil.
5. As “defesas públicas” e os atos processuais
195
Na vigência do CPC/73 havia entendimento, ainda não sedimentado, que os chamados escritórios-modelo ou assistência judiciária universitária, também gozavam das mesmas prerrogativas inerentes a defensoria pública em relação a duplicidade dos prazo processuais. Nesse
sentido
o
acórdão
da
ministra
Nancy
Andrighi: 1. Segundo a jurisprudência desta Corte, interpretando art. 5º , § 5º , da Lei nº 1.060 /50, para ter direito ao prazo em dobro, o advogado da parte deve integrar serviço de assistência judiciária organizado e mantido pelo Estado, o que é a hipótese dos autos, tendo em vista que os recorrentes estão representados por membro de núcleo de prática jurídica de entidade pública de ensino superior. 2. Recurso especial provido para que seja garantido à entidade patrocinadora da presente causa o benefício do prazo em dobro previsto no art. 5º , § 5º , da Lei 1.060 /50. (REsp 1106213/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 07/11/2011).
Nessa
conjuntura,
o
NCPC
positivou
tal
entendimento no art. 186, §3º, in verbis: Art. 186. A Defensoria Pública gozará de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais [...] § 3o O disposto no caput aplica-se aos escritórios de prática jurídica das faculdades de Direito reconhecidas na forma da lei e às entidades que prestam assistência jurídica gratuita em razão de convênios firmados com a Defensoria Pública.
196
Evidente
que
a
duplicidade
de
prazo
para
apresentação de defesa, interposição de recurso, etc., acautela os interesses do litigante mais carente que depende dos préstimos e essenciais serviços gratuitos de advocacia prestados pelos núcleos de assistência jurídica das faculdades de direito. Contudo, o respectivo parágrafo foi extremamente singelo ao conferir, pela exegese literal, apenas esta prerrogativa funcional aos escritórios de prática jurídica, isto porque outras prerrogativas institucionais poderiam ter sido autorizadas, como a intimação pessoal dos professores universitário que auxiliam nos respectivos núcleos. Ademais, importante salientar que houve uma pontual melhora em relação a alguns aspectos práticos da rotina forense em favor das defensorias públicas. Por exemplo, a dispensa de procuração assinada em favor
do
defensor
público
para
ajuizamento
e
peticionamento em favor do jurisdicionado, bastando apenas a qualificação da parte na peça processual, ante a dispensa autorizada pelo art. 284, II, NCPC. Em termos de praticidade, esta dispensa agiliza o atendimento dos casos e a celeridade na distribuição das ações. Quanto a este tema, importante também anotar que agora é possível (para todos os advogados) a cláusula ad 197
judicia
et
extra
para
assinar
a
declaração
de
hipossuficiência em nome do cliente, consoante art. 105, NCPC. Além do exemplo supra-mencionado, há ainda a dispensa legal de intimação da testemunhas pelo defensor público que poderá se valer desde já da intimação judicial (art. 455, §4º, IV, NCPC). Afinal, o NCPC tornou a intimação judicial uma exceção a regra, conforme art. 455: Art. 455. Cabe ao advogado da parte informar ou intimar a testemunha por ele arrolada do dia, da hora e do local da audiência designada, dispensando-se a intimação do juízo. § 1o A intimação deverá ser realizada por carta com aviso de recebimento, cumprindo ao advogado juntar aos autos, com antecedência de pelo menos 3 (três) dias da data da audiência, cópia da correspondência de intimação e do comprovante de recebimento. § 2o A parte pode comprometer-se a levar a testemunha à audiência, independentemente da intimação de que trata o § 1o, presumindose, caso a testemunha não compareça, que a parte desistiu de sua inquirição.
Logo, há um beneficio àquele que é atendido pelas defensorias públicas justamente me razão da onerosidade maior na promoção das intimações testemunhais – beneficio este, note-se, que deveria também ser estendido expressamente
aos
núcleos
de
prática
jurídica
universitária.
198
O NCPC também falhou ao não tratar da advocacia dativa que ainda faz as vezes da defensoria pública na maioria esmagadora dos municípios carentes do país. Ademais, há dispositivos esparsos no código que direta ou indiretamente auxiliam os litigantes mais hipossuficientes, os quais serão dissertados abaixo. É possível a requisição pelo juízo do endereço do réu nos cadastros das concessionárias de serviços públicos (OI, CEMIG, etc.) conforme art. 256, §3º. Hipótese que já havia precedente na jurisprudência e que favorece os litigantes com poucos recursos de pesquisa, bem como os núcleos de assistência jurídica e defensorias: A expedição de ofícios às repartições públicas e empresas de serviço público, como à Delegacia Regional da Receita Federal, ao Tribunal Regional Eleitoral, às empresas de telefonia Telemar, Vivo, TIM, Oi e Claro, à CEMIG e à COPASA, com o intuito de obter informações acerca do endereço do réu ou de bens passíveis de penhora, é uma medida excepcional, devendo ser utilizada apenas quando a parte não dispuser de outro meio para atingir seu objetivo (TJ-MG - Agravo de Instrumento Cv AI 10035091605622001 MG (TJ-MG).
O art. 248, §2º autoriza que a pessoa jurídica possa ser
citada
na
pessoa
do
funcionário
que
recebe
correspondência (recepcionista), bem como no caso de condomínio edilício com controle de acesso, ou seja, citase na pessoa do porteiro (art. 248, §4º) – tais normas 199
evitam que os mais afortunados possam se furtar a citação. O art. 257, parágrafo único, autoriza a citação por edital por outros meios em razão da peculiaridade da comarca, por exemplo, a citação em igrejas, após o culto, durante os avisos finais, antes da benção final. E, o art. 256, §2º, consagra a possibilidade já aplicada no dia a dia, de citação por edital pelo rádio em caso de domicílios inacessíveis – muito comum nas chamadas “rádio-favela”. Há ainda a possibilidade de precatória por telefone (art. 264) que é muito útil em caso de extrema urgência como ocorre no pagamento de débitos alimentícios para fins de oficiar estabelecimento prisional em outra comarca onde o devedor se encontra recolhido. Norma de fundamental importância é a do art. 279, §2º que aplica o principio pás de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo) aos incapazes, ao determinar que a nulidade por ausência de intervenção do parquet somente será decretada após a manifestação do mesmo sobre a existência de prejuízo – o mesmo podendo-se dizer quanto a Defensoria Pública. Por fim, o NCPC consagrou a ampla possibilidade de negócios
processuais
(convenções
processuais),
nos
termos do art. 190:
200
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Logo realização
será de
possível, provas
por
exemplo,
(inclusive
requerer
pericial)
antes
a da
contestação, com a finalidade de verificar se há margem para o litígio, se assim as partes acordarem. Outro exemplo é o “calendário processual” do art. 191, no qual as partes em comum acordo com o juiz fixam as datas para a prática dos atos processuais, dispensando-se, assim, a necessidade de intimação, bem como no caso de “saneamento
consensual”,
“pericia
consensual”
e
“distribuição consensual do ônus da prova”. Tais
convenções
promovem
uma
emancipação
processual do hipossuficiente, emponderando-o sobre o processo até então kafkiano e permitindo que este possa “auto-legislar” sobre as regras do seu processo produzindo um direito orgânico e autocompositivo, consoante os anseios dos próprios interessados.
6. Alimentos e interdição
201
No que tange as relações jurídico-processuais de família, o NCPC foi tímido nas inovações e na tutela dos vulneráveis, mas trouxe alguns micro-aperfeiçoamentos relevantes. Inicialmente, chama a atenção que este não tenha abolido do ordenamento a famigerada Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/68) que já se encontra pode demasiada obsoleta. Porém, o NCPC criou um procedimento especial chamado “Ações de Família” (art. 693 e seguintes) que aplica-se nas ações de Divórcio, Reconhecimento/Extinção de União Estável, Guarda e Regulamentação de Visitas. E aplica-se, “no que couber” (diz o código), nas Ações de Alimentos. Contudo, a única peculiaridade relevante é que a citação
para
comparecimento
conciliação/mediação
deve
na
ocorrer
audiência de
de
mandado
desacompanhado da petição inicial e quando houver abuso/alienação
parental
o
juiz
deverá
tomar
o
depoimento do incapaz. Quanto
a
Ação
de
Alimentos/Revisional/Exoneração/Oferta ainda é possível a aplicação, em tese, das regras do rito tradicional quanto aos alimentos provisórios no despacho da inicial, a audiência de “conciliação e julgamento” (e havendo 202
ausência do autor importará arquivamento e do réu importará a revelia e confissão quanto a matéria de fato), devendo as partes devem comparecerem acompanhadas de testemunhas, etc. - salvo se se tratar de mera audiência de conciliação, pois aqui caberia a aplicação do procedimento de Ação de Família. Quanto
aos
atos
executivos
houve
a
grande
inovação: a possibilidade de Cumprimento de Sentença que Reconheça a Exigibilidade de Obrigação de Prestar Alimentos (art. 528 e seguintes) - que já fazia parte de grande parte das críticas doutrinárias em oposição a distribuição de ações autônomas de execução (clássicos “733” e “732”). Conforme lecionava Maria Berenice Dias6: Em face de sua natureza, os alimentos podem e devem ser cobrados pelo meio mais ágil. O fato de a lei ter silenciado sobre a execução de alimentos não pode conduzir à ideia de que a falta de modificação dos arts. 732 a 735 do CPC impede o cumprimento da sentença”. No mesmo sentido a ministra Nancy Andrighi: "Conclui-se que, tendo o cumprimento de sentença tornado mais ágil o adimplemento da quantia devida, e considerando a presteza que deve permear a obtenção de alimentos – por ser essencial à sobrevivência do credor –, a cobrança de alimentos pretéritos deve se dar via cumprimento de sentença, sem a DIAS, Maria Berenice; LARRÁTEA, Roberta Vieira. O Cumprimento de Sentença e a Execução de Alimentos. Disponível em: > Acesso em 07/03/2016. 6
203
necessidade de uma nova citação executado" (STJ – RESP 1.315.476).
do
No NCPC, a intimação para pagar é no prazo de 3 (três) dias e o executado pode, neste prazo, justificar a impossibilidade de efetuá-lo. Se não houver manifestação o juiz de ofício pode protestar o pronunciamento (o que difere um pouco da regra geral, pois o ônus do protesto é da parte exeqüente) inclusive se se tratar de alimentos provisórios – pode-se também a requerimento da parte o juiz determinar a inclusão do nome do executado em cadastro de inadimplentes (SPC/SERASA), por disposição do art. 782, §3º c/c §5º. Segundo o art. 528, §2º, a comprovação de fato que gere a impossibilidade absoluta de pagar justifica o inadimplemento. Se não ocorrer o pagamento ou a justificação, além do protesto, é possível a decretação da prisão civil pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses em regime fechado (aqui não há imposição de multa de honorários advocatícios). Cogitou-se a hipótese de regime semi-aberto quando da elaboração do código, mas a tese acabou não vingando durante os debates parlamentares. Ademais, não se aplica as regras de parcelamento previstas na execução de títulos extrajudiciais (art. 916, §7º) – norma sem sentido, pois nada impede a celebração 204
de acordos para o pagamento do débito, o que, inclusive, é do interesse do alimentado vulnerável. Redação confusa é a dos parágrafos §7º e §8º do art.528, que dizem que o débito que autoriza a prisão civil compreende até as 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução (pode com um mês apenas) e as que vencerem no curso do processo (conforme a antiga Súmula 309 do STJ) e dizem que o exequente pode optar em promover o cumprimento nos termos do Cumprimento de
Sentença
Definitivo
por
Quantia
Certa
(não
se
admitindo a prisão, como ocorria no art. 732 do CPC/73). No CPC/73 era comum a distribuição de duas ações executivas de alimentos (uma para cada um dos ritos) e, agora, aparentemente, o NCPC não resolveu esta celeuma, permanecendo a necessidade de dois cumprimentos de sentença, conforme quadro didático abaixo: 1º Mês
2º Mês
3º Mês
4º Mês
Cumprimento de Sentença de
Cumprimento de Sentença de
Cumprimento de Sentença de
Cumprimento de
Prestar Alimentos (com prisão)
Prestar Alimentos (com prisão) ou
Prestar Alimentos (com prisão)
Sentença de Prestar
ou Cumprimento de Sentença
Cumprimento de Sentença Definitivo
ou Cumprimento de Sentença
Alimentos do 4º, 3º
Definitivo de Pagar Quantia
de Pagar Quantia Certa
Definitivo de Pagar Quantia
e 2º mês (com
Certa
prisão) c/c
Certa
Cumprimento de Sentença Definitivo de Pagar Quantia Certa do 1º mês (na mesma peça ou em peças autônomas?)
205
Esta inclusive é a crítica de Maria Berenice Dias: “Havendo parcelas antigas e atuais, não conseguiu o legislador encontrar uma saída. Parece que continua a ser
indispensável
que
o
credor
proponha
dupla
execuções, o que só onera as partes e afoga a justiça” 7. Mas, a grande questão é quando ocorre o pagamento parcial,
se
tais
valores
deverão
ser
abatidos
no
cumprimento por quantia certa ou no cumprimento de prestação de alimentos. Mesmo com concessão dos efeitos suspensivo a impugnação,
não
haverá
impedimento
para
que
o
exequente levante mensalmente a prestação alimentícia – ou seja, o efeito suspensivo se aplica aos débitos pretéritos e não aos que vão se vencendo mensalmente durante o cumprimento de sentença – afinal, deve-se tutelar a necessidade mensal do alimentado hipossuficiente. Por fim, verificada a conduta procrastinatória do executado deve-se dá ciência ao Ministério Público dos indícios do crime de abandono material. Quanto
a
impenhorabilidade
patrimonial,
é
importante destacar uma novidade em especial, prevista no art. 833, IV, qual seja, a penhorabilidade dos vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as DIAS, Maria Berenice. A cobrança dos alimentos no novo CPC. Disponível em: > Acesso em 11/03/2016. 7
206
remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal que sejam excedentes a 50 (cinqüenta) salários mínimos (ou no caso de alimentos, em qualquer valor) – bem como no caso de caderneta de poupança. Ante o exposto é nítido que o cumprimento de sentença
alimentício
trouxe
uma
maior
tutela
do
hipossuficiente que depende dos alimentos, pois trouxe a celeridade processual do cumprimento de sentença (que dispensa nova citação) e mecanismos coercitivos mais efetivos como o protesto e a negativação do nome do devedor nos cadastro de inadimplentes, porém falhou um pouco na organização processual da cobrança. No
que
diz
respeito
a
curatela
dos
maiores
incapazes, houve algumas alterações no procedimento de interdição, devendo-se, todavia, ser feita uma leitura conjunta com o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº13.146/15) que alterou o Código Civil, sobretudo porque ocorreu algumas sobreposições legislativas – ademais a expressão
mais
adequada
não
é
“interdição”,
mas
“processo que define os termos da curatela”.
207
O art. 747 do NCPC prevê que o representante de entidade (asilo, hospital psiquiátrico) na qual se encontre abrigado o interditado é legitimo para promover a ação (hipótese que não está no Código Civil) e o Código Civil no art. 1.768, IV, prevê que a própria pessoa pode requerer a sua interdição (ocorre que este artigo foi revogado pelo NCPC antes dele ter tido sua redação alterado pelo Estatuto que foi publicado após a publicação do NCPC – particularmente entendemos que o Estatuto revogou a revogação do NCPC ao dar ao artigo uma nova revogação, sobretudo por ser lei especial e por dialogar com a mesma ideologia do NCPC). Além dos familiares o Ministério Público pode promover a interdição, mas apenas no caso de doença mental se os familiares não promoverem, não existirem ou forem incapazes – ou seja, o MP não pode promover interdição
nas
demais
hipóteses:
causa
transitória/permanente não puder exprimir sua vontade, ébrios habituais e viciados em tóxicos e os pródigos (aqui o NCPC foi mais restrito que o próprio Estatuto, pois o Código Civil no art. 1.771 permite nas demais hipóteses se os familiares não promoverem, não existirem ou forem incapazes, artigo este que também havia sido revogado pelo NCPC).
208
Citado o interditando para entrevista minuciosa com o juiz, este pode se utilizar de “equipe multidisciplinar” (expressão
do
“especialista”)
Cód. na
qual
Civil/Estatuto, avaliará
as
o
NCPC
fala
potencialidade
e
preferências do interditando e será reduzida a termo as respostas e as perguntas (em regra só se transcreve as respostas em oitivas em audiências) – sendo possível a utilização de recursos tecnológicos (o Estatuto chama de “tecnologia assistiva”: todo equipamento funcional que promove a autonomia do deficiente). O juiz ainda pode determinar a oitiva de parentes e de pessoas próxima (fato que se justifica na escolha do eventual curador). Depois da entrevista o interditando tem 15 (quinze) dias para impugnar o pedido (o NCPC não usa a palavra “contestar”) – qualquer parente poderá intervir como assistente. Após haverá a prova pericial que pode ser realizada por uma equipe multidisciplinar – o laudo deverá especificar os atos para os quais haverá necessidade de curatela. Na sentença o juiz fixará os limites da curatela e os atos que o interditado poderá praticar autonomamente e será publicada no registro de pessoas naturais, na internet e na imprensa. Segundo o art. 1.775-A do Código Civil, incluído pelo Estatuto, é possível curatela compartilhada (que infelizmente não é regulamentada pelo NCPC). O curador 209
pode apresentar escusa ao juiz no prazo de 5 (cinco) dias sob pena de renúncia ao direito (os exemplos estão previstos nas disposições da tutela do art. 1.736 Cód. Civil: a mulher casada, o maior de 60 anos, quem habitar longe, quem tiver quatro filhos ou mais, aquele que já exercer uma curatela, etc.). Se for argüida a remoção do curador este será citado para contestar em 5 (cinco) dias, seguindo-se o rito comum. Em caso de extrema gravidade o juiz pode suspender curador e nomear substituto interino. O pedido de levantamento (total ou parcial) da curatela pode ser feito pelo próprio interditado em apenso aos autos da interdição – o juiz nomeará pericia e designará audiência de instrução e julgamento. Em regra se o interditado for curador de outro curatelado, o curador do interditado terá autoridade sobre o curatelado do interditado, art. 757, salvo entendimento diverso do juiz. O NCPC revogou o art. 1.773 do Código Civil que previa que o recurso contra a sentença de interdição produziria efeito desde logo, portanto, agora a Apelação em processo de interdição possui duplo efeito, suspendo a interdição até a confirmação pelo juízo de segundo grau. Por fim, o art. 1.783-A do Código Civil, incluído pelo Estatuto, prevê o instituto da Tomada de Decisão Apoiada pelo interditado, mecanismo que visa conferir autonomia 210
para decisões pelo interditado com auxilio de pessoas de sua confiança, inclusive em negócios jurídicos – porém, não há instrumentalização processual do instituto, logo não se sabe se o pedido de tomada deve ocorrer nos autos da interdição, em um incidente apensado ou em uma ação inominada de jurisdição voluntária. Portanto houve significativas mudanças processuais quanto a tutela do maior incapaz que goza de especial hipossuficiência, sobretudo quanto a manutenção de sua autonomia naquilo que é capaz de discernir. Conclusões
Ante
toda
a
exposição
crítico-dogmática
desenvolvida neste artigo, é possível alcançar algumas conclusões ainda tênues em relação a nova espinha dorsal do processo civil. Há inúmeras normas processuais que tutela a parte hipossuficiente e juridicamente vulnerável, algumas das quais foram aqui abordadas, sem obviamente, ser possível exaurir toda a legislação. A distribuição
dinâmica do ônus probante, a
gratuidade cartorária e o cumprimento de sentença alimentícia,
sem
sombra
de
dúvida,
projetem
211
prioritariamente os litigantes débeis, desde que tais normas sejam corretamente aplicadas pelos juízos. Há uma expressão folclórica de que “o direito civil é o direito dos ricos e o direito penal é o direito dos pobres” – o NCPC, com certeza, desmistificar esta lenda ao prever mecanismos processuais de equidade processual e acesso a justiça a todas as classes sociais. Todavia,
ainda
há
muito
a
ser
pensando
e
desenvolvido, seja no âmbito do Código de Processo Civil ou da própria legislação extravagante – neste sentido, há crítica pertinentes quanto a gratuidade judiciária, aos benefícios processuais dos núcleos de prática jurídica, etc. Mas, ao compararmos a nova axiologia processual com a antiga processualística do CPC/1973, há um incomparável amparo aos litigantes hipossuficientes que agora podem contar com uma série de normas que direta ou indiretamente permite efetivo acesso ao provimento jurisdicional final, tal como dissertado ao longo do texto. Portanto, o NCPC tutela de maneira razoavelmente concreta
e
preocupada
a
parte
juridicamente
ou
economicamente mais vulnerável da relação processual, assegurando a todos, sem discriminação, o direito a sentença de mérito. Bibliografia 212
ARRUDA ALVIM NETTO; ASSIS, Araken de.; ARRUDA ALVIM, Eduardo. Comentários ao Código de Processo Civil. 3 ed. São Paulo: RT, 2014. DIAS, Maria Berenice. Manual de direitos das famílias. 10ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015. THEODORO JUNIOR, Humberto. NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC – Fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum – vol. I. 56. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum – vol. III. 47. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016. WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Editora RT, 2006.
213
BREVES APONTAMENTOS SOBRE A DESERDAÇÃO
Raphael Furtado Carminate1
Resumo: Este artigo trata sucintamente do instituto da deserdação, fazendo um breve apanhado histórico do instituto e comentários sobre suas causas. Palavras-chave: Direito das Sucessões. Deserdação.
Considerações gerais
Deserdação é “o acto pelo qual o herdeiro necessario é privado de sua legitima, ficando excluido da successão”. (OLIVEIRA, 1936, p. 41) A origem da deserdação remonta ao Direito Romano, na sucessão formalmente necessária, na qual o pater familias deveria expressamente instituir seu filho como herdeiro ou deserdá-lo. Etimologicamente,
poder-se-ia
entender
a
deserdação como o ato pelo qual se priva alguém da herança. No entanto, conforme exposto acima, apenas os Doutorando e mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Ouro Preto. Advogado. Professor adjunto de Direito Civil da Universidade Presidente Antônio Carlos – Unidades Mariana e Itabirito. 1
214
herdeiros necessários estão sujeitos a deserdação, uma vez que para excluir os legítimos da sucessão basta dispor da integralidade do patrimônio sem os contemplar, ou simplesmente declarar que não deseja que estes o sucedam. “Entretanto é de observar que o desherdado perde não só a reserva, mas tambem a sua quota na parte disponivel do espólio”. (MAXIMILIANO, 1937, p. 455) Este ato somente pode ser praticado através de testamento válido, devendo o testador expressamente declarar as causas de deserdação, que serão adiante abordadas,
sob
pena
de
invalidade
da
deserdação,
conforme disposto no artigo 1.964 do Código Civil. (BRASIL, 2002)2 Caso o testamento contenha vício ensejador de nulidade ou anulabilidade, a deserdação igualmente o será. Observa Pontes de Miranda, contudo, que a deserdação “poderá ser nula ou anulada, sem o ser o testamento,
nos
casos
em
que
as
disposições
testamentárias o são, sem que se eive de nulidade absoluta ou relativa o testamento que as contém”. (MIRANDA, 2005, p. 314) Embora aparentemente tenham o mesmo efeito, qual seja, o de excluir algum herdeiro da sucessão, Art. 1.964. Somente com expressa declaração de causa pode a deserdação ser ordenada em testamento. (BRASIL, 2002) 2
215
deserdação
e
indignidade
não
se
confundem.
Tais
institutos também não são formas de incapacidade para suceder. Como bem define Clóvis Bevilaqua, “capacidade jurídica é a aptidão para adquirir direitos e exercer, por si ou por outrem, os actos da vida civil. São capazes todos aquelles a quem a lei não recusa o reconhecimento dessa aptidão”. (BEVILAQUA, 1932, p. 71) Explica Roberto Senise Lisboa que Legitimação é autorização legal para a prática de um ato ou negócio jurídico. Em princípio, toda pessoa se encontra legitimada para adquirir direitos por si ou através de seu representante. Entretanto, a lei proíbe que algumas pessoas capazes, em determinadas situações, possam integrar a relação jurídica que as colocaria, conforme o legislador, em uma situação mais favorável. (LISBOA, 2009, p. 209)
Como os efeitos da indignidade e da deserdação se
operam
única
e
exclusivamente
numa
sucessão
específica, não retirando do indigno ou deserdado a possibilidade de suceder outras pessoas, não se pode falar que estes institutos retiram a capacidade sucessória mas, tão-somente, a legitimidade. O indigno ou deserdado, portanto, seriam, em condições normais, herdeiros do de cujus mas, em decorrência da prática de algum dos atos 216
previstos em lei, ou de sua exclusão por testamento, não participarão daquela sucessão especificamente. José de Oliveira Ascensão conclui, assim, que O carácter relativo da exclusão indicia-nos que estamos antes perante uma ilegitimidade: não incapacidade sucessória passiva, pois, mas ilegitimidade sucessória passiva. Acabamos pois por chegar à conclusão de que, em rigor, a lei não contempla nenhum caso de incapacidade para as pessoas singulares, mas tão-somente ilegitimidades sucessórias passivas. (ASCENSÃO, 1986, p. 149)
Tendo em vista serem pessoais os efeitos da exclusão, sendo o indigno ou deserdado considerado prémorto à abertura da sucessão, tais institutos atuam anteriormente à abertura da sucessão, excluindo um sucessível em tese. Assim, conforme disposto no artigo 1.816 do Código Civil, os descendentes do excluído herdam por representação na sucessão de que se trata. O indigno
ou
deserdado
não
recebe
a
herança
e,
posteriormente, a perde. Ele é pré-excluído da sucessão, ou seja, não tem legitimidade sucessória. (BRASIL, 2002) Apesar especialmente
das no
semelhanças
fato
de
supra
ambas
apontadas,
implicarem
na
ilegitimidade para suceder em decorrência da prática de algum ato ilícito contra o autor da herança ou seus 217
familiares, há diferenças substanciais entre a indignidade e deserdação. “Chama-se indignidade, desde remota data, à ingratidão gravíssima com que o herdeiro ou legatário corresponde ao benefício que o testador lhe fez, o que é motivo suficiente, também, para a revogação das doações e para a deserdação do herdeiro legítimo”. (GONÇALVES, 1951, p. 1323) Carlos Maximiliano aponta as diferenças cruciais entre deserdação e indignidade, sendo elas: A desherdação é exclusiva da sucessão testamentária; ao passo que a indignidade é peculiar á sucessão legítima, tanto que, em falta de dispositivo especial e explícito mandando estendê-la a outra espécie ou modo de haver bens causa mortis, não a aplicam aos legatários.3 A segunda decorre da lei únicamente e só mediante sentença pode ser reconhecida e ter efeito contra o beneficiado; a primeira depende da vontade expressa do hereditando, sem embargo da indispensabilidade da prova judiciária de haver sido merecida e regularmente imposta a privação da legítima. Entretanto, a pena cominada serve para castigar o sucessor testamentário indigno quando o de cujus não está mais em condições de fazê-lo. A desherdação é de alcance mais amplo e Como exemplo de casos em que a deserdação não atinge os legatários, Carlos Maximiliano aponta o Código Civil Francês, que se omite a este respeito (MAXIMILIANO, 1937, p. 102). Neste caso, portanto, o autor não diz que no Brasil não são aplicáveis aos legatários as causas de indignidade mas, sim, que para esta aplicação é necessária expressa previsão legal. No Código Civil vigente, tal previsão é expressa no caput de seu artigo 1.814. (BRASIL, 2002) 3
218
abrange maior cópia de faltas, porque se baseia na vontade explícita do falecido; a indignidade funda-se na vontade presumida; por isso cabe em hipóteses menos numerosas, estritamente aplicada, e deixa ainda de prejudicar o desamoroso, quando assim resolva a sua vítima clemente. (MAXIMILIANO, 1937, p. 102/103)
Como a indignidade é fundada na vontade presumida do de cujus, caso o mesmo perdoe o indigno, este deve expressamente fazê-lo em testamento ou outro ato autêntico, sob pena de prevalecer a vontade da lei em face da vontade do autor da herança.4 Já
a
deserdação
é
resultante
da
vontade
expressa do testador. No entanto, a vontade do testador não pode ser livremente manifestada no sentido de excluir qualquer um de seus herdeiros necessários de sua sucessão, por força da legítima. Somente pode haver deserdação na hipótese de ter o deserdado praticado alguma das condutas previstas em lei como ensejadoras da aplicação desta penalidade.
Art. 1.818. Aquele que incorreu em atos que determinem a exclusão da herança será admitido a suceder, se o ofendido o tiver expressamente reabilitado em testamento, ou em outro ato autêntico. Parágrafo único. Não havendo reabilitação expressa, o indigno, contemplado em testamento do ofendido, quando o testador, ao testar, já conhecia a causa da indignidade, pode suceder no limite da disposição testamentária. (BRASIL, 2002) 4
219
A deserdação (e
também a indignidade) é
identificada, embora com críticas, por toda a doutrina como sendo uma sanção civil aplicável àquele que pratica algum
ato
qualificado
pela
ordem
jurídica
como
reprovável. Neste sentido, Pontes de Miranda pergunta-se: Qual o fundamento da deserdação? Não deveria ser uma pena; à alma contemporânea só serviria a alegação de não caber a sucessão necessária quando, com a morte do de cuius, o herdeiro não precisa, é um desligado da família, de que não deve receber proveitos. Mas verdade é que o Código Civil manteve o caráter odioso de pena, reflexo assaz compreensível do individualismo estacionário do direito das sucessões. (MIRANDA, 2005, p. 308)
Por se tratar de sanção civil, em respeito ao disposto no inciso XXXIX, do artigo 5º da Constituição Federal5,
as
interpretação
hipóteses extensiva,
de
deserdação
tampouco
não
admitem
analógica,
sendo
restritivo o rol de hipóteses ensejadoras da aplicação desta penalidade civil. (BRASIL, 1988) A prática de algum ato reprovável previamente estabelecido em lei como ensejador de deserdação, “é capaz de remover todos os entraves de ordem pública que
Art. 5º. (...) XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. (BRASIL, 1988) 5
220
o legislador impôs à vontade do testador, devolvendo-lhe a sua plenitude”. (CRUZ, 1986, p. 55) Uma vez presentes, portanto, os pressupostos da deserdação, que são a existência de herdeiros necessários, testamento válido, e declaração de causa prevista em lei, o autor da herança pode afastar de sua sucessão um herdeiro necessário, excepcionando-se a proteção que lhe é conferida pela legítima. Neste sentido, a conclusão de José de Oliveira Ascensão, de que é “da essência da vocação legitimária impor-se à vontade do de cuius. Se se verificarem porém os pressupostos da deserdação a vontade do testador retoma o seu império, podendo afastar um sucessível da sucessão”. (ASCENSÃO, 1986, p. 154) Em matéria de deserdação, embora seja a mesma emanada da manifestação de vontade do testador, em verdade, ela é mais fruto da vontade legislativa que por razões
morais
qualificou
determinados
atos
como
contrários aos interesses do autor da herança que, de fato, um modo de retomada da vontade do autor da herança como elemento principal na definição do destino de seu patrimônio para depois de sua morte. Tanto que uma vez afastado da sucessão o deserdado, seus filhos ocupam o lugar a ele destinado na sucessão, representando-o como se este fosse pré-morto à época de sua abertura. 221
2. Causas de deserdação
Como exposto acima, um dos pressupostos da deserdação
é
a
presença
de
uma
das
causas
expressamente tipificadas em lei como ensejadoras da aplicação desta penalidade. Sendo assim, passa-se à análise das causas escolhidas pelo legislador como passíveis de exclusão do herdeiro necessário por deserdação.
2.1. Causas de deserdação dos descendentes pelos ascendentes
Em primeiro lugar, o Código Civil de 2002 estabelece as causas de deserdação dos descendentes pelos ascendentes (BRASIL, 2002). Excetuando-se a hipótese contida no inciso III do artigo 1.744 do Código Civil revogado (BRASIL, 1916), que previa a deserdação por “desonestidade da filha que vive na casa paterna”, as demais hipóteses de deserdação previstas no Código Civil vigente são iguais às dispostas em seu antecessor.6 Neste sentido: Apesar de as hipóteses de deserdação serem praticamente idênticas às do Código Civil revogado, as causas de indignidade diferem de um diploma para o outro. 6
222
Art. 1962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: I – ofensa física; II – injúria grave; III – relações ilícitas com a madrasta ou como padrasto; IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade. (BRASIL, 2002) Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I – que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade. (BRASIL, 2002)
Como a deserdação da filha “desonesta” que vivia em casa paterna era fruto de um “patriarcalismo impiedoso” (MIRANDA, 2005, p. 330), inadmissível no atual estágio evolutivo da sociedade brasileira, o legislador andou bem ao suprimir esta hipótese de deserdação, anteriormente fundada no “desrespeito ao ascendente”. (MAXIMILIANO, 1937, p. 466) Sendo assim, as hipóteses de deserdação dos descendentes pelos ascendentes são, além das causas de 223
indignidade previstas no artigo 1.814 do Código Civil, o cometimento de ofensa física, injúria grave, relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto, e o desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade. (BRASIL, 2002)
a. Causas de indignidade
Partindo
das
causas
de
indignidade,
que
também são aplicáveis às outras hipóteses de deserdação, observa-se que a primeira causa de exclusão da sucessão é a autoria, co-autoria ou participação em homicídio doloso, ou tentativa, contra o autor da herança, seus descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro. É fundamental, neste caso, que o homicídio, ou tentativa, tenha sido doloso, ou seja, que o herdeiro tenha tido a intenção de fulminar a vida do autor da herança ou de seus familiares próximos. Embora seja louvável a ampliação do rol das pessoas cuja vida tentara o herdeiro a ser excluído, omitiu-se o legislador acerca dos irmãos e sobrinhos do autor da herança pessoas por quem, pelo menos em tese, também teria o mesmo grande apreço. Salomão Cateb, ao comentar o dispositivo em exame, faz observação pertinente no sentido de que 224
a lei brasileira difere da legislação francesa, na qual exige-se a prévia condenação na esfera criminal para exclusão. Entre nós, os dois processos são distintos e independentes. Embora o tema seja de Direito Civil, absolvido o herdeiro na esfera criminal, claro que deixa de existir a causa excludente. A sentença criminal produz efeito de coisa julgada e lícito não será reconhecer a indignidade no juízo cível. (CATEB, 2007, p. 204)
Deste modo, se o herdeiro necessário é um assassino em série, mas não atentou contra a vida de nenhuma das pessoas arroladas no inciso I do artigo 1.814 do Código Civil, não pode o autor da herança deserdá-lo, cabendo-lhe o direito à reserva hereditária. (BRASIL, 2002) Além disso, se o herdeiro necessário cometeu homicídio culposo, como nos acidentes de trânsito, por exemplo, apesar de sua irresponsabilidade ter causado a perda
de
entes
queridos
por
parte
do
titular
do
patrimônio, ele não poderá ser excluído da sucessão. Merece
análise
a
hipótese
em
que
um
inimputável criminalmente, como os menores e deficientes mentais7, praticam a conduta tipificada como homicídio Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. (BRASIL, 1940) 7
225
contra uma das pessoas arroladas no inciso I do artigo 1.814 do Código Civil (BRASIL, 2002). Estas pessoas poderão, ou não, ser deserdadas? Como
os
criminalmente
inimputáveis
são
incapazes na esfera civil (artigo 3º, incisos I e II, e artigo 4º, incisos I, II e III, do Código Civil8), e considerando-se ser a deserdação uma sanção cível, a conclusão que se afigura mais correta é a de Orlando Gomes, no sentido de que “quando falte imputabilidade, não há indignidade”. (GOMES, 1998, p. 30) Esta opinião é corroborada por Zeno Veloso que afirma que “a deserdação é pena, e, como pena, não pode ser infligida a inimputável”. (VELOSO, 1993, p. 457) Venosa discorda desta conclusão, afirmando que a inimputabilidade, que no juízo criminal afasta a punição, deve ser vista aqui cum granum salis, isto é, com reservas. O menor de 18 anos é inimputável, mas não seria moral, sob qualquer hipótese, que um parricida ou Art. 27. Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. (BRASIL, 1940) 8 Art. 3º. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I – os menores de 16 (dezesseis) anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos. Art. 4º. São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer: I – os maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos; II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo. (BRASIL, 2002)
226
matricida adolescente pudesse se beneficiar de sua menoridade para concorrer na herança do pai que matou. E não são poucos os infelizes exemplos que ora e vez surgem nos noticiários. (VENOSA, 2008, p. 59)
Com todo o respeito à opinião supra destacada, mostra-se mais correto o raciocínio de Orlando Gomes (1998) e Zeno Veloso (1993) uma vez que se o sujeito é incapaz para a prática dos atos da vida civil, sendo viciados
os
atos
jurídicos
por
ele
praticados,
e
considerando-se ser a deserdação uma sanção civil, não é possível sua aplicação em decorrência de atos praticados por herdeiros necessários na situação de incapacidade civil. Embora incentivaram
o
se
tenha
legislador
ciência a
elencar
das as
razões
que
causas
de
deserdação, é igualmente claro que o Direito é ciência autônoma, devendo as soluções para seus eventuais conflitos ser encontradas dentro do próprio ordenamento, não servindo a moral, que tem caráter subjetivo, para esta finalidade. A segunda hipótese de indignidade é a acusação caluniosa,
em
juízo,
do
autor
da
herança,
ou
o
cometimento de crimes contra a sua honra, ou de seu cônjuge
ou
companheiro.
Ao
contrário
da
hipótese
anterior, este caso não contempla o cometimento dos 227
referidos crimes contra a honra dos descendentes ou ascendentes do autor da herança. Importante observar que a acusação caluniosa geradora da exclusão por indignidade é apenas aquela efetuada em face do autor da herança, sendo clara a redação do inciso II do artigo 1.814 do Código Civil neste sentido. (BRASIL, 2002) Não se pode confundir, também, “acusação caluniosa em juízo” com o crime de denunciação caluniosa tipificado no artigo 339 do Código Penal, que tem a seguinte redação: Art. 339. Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente. (BRASIL, 1940)
Este tipo penal abarca uma gama de condutas superior à simples “acusação caluniosa em juízo” não sendo motivo de deserdação dar causa à instauração de investigação
policial,
investigação
administrativa
ou
inquérito civil contra o autor da herança. A denúncia caluniosa, para gerar indignidade, tem de ser feita em juízo, seja ele cível, criminal, trabalhista ou militar.
228
Arnoldo Wald entende possível a exclusão por indignidade do herdeiro que for condenado criminalmente pelos crimes previstos no inciso II do artigo 1.814 do Código Civil (BRASIL, 2002), “seja em vida ou após seu falecimento”. (WALD, 2002, p. 21) Por fim, o inciso III do artigo 1.814 do Código Civil elenca como hipótese de exclusão por indignidade o ato de se inibir ou obstar, por meios fraudulentos ou violentos, a disposição dos bens por ato de última vontade. Esta causa abarca tanto um herdeiro legítimo que obste a facção de testamento ou que suprima testamento cerrado ou particular outrora confeccionado com o intuito de impedir que a parte disponível desprenda-se da legítima. E também quando aquele legítimo herdeiro obrigar o testador a revogar sua última vontade. Pode ainda ocorrer na hipótese de pessoa não dotada da qualidade de herdeiro legítimo ou necessário que constranja o de cujus a testar ou elabore um testamento falso. É configurável ainda na hipótese de pessoa contemplada em testamento anterior que impeça o testador de revogá-lo. (HIRONAKA, 2007, p. 374/375)
No entanto, a mesma autora adverte que se o testador consegue, posteriormente, fazer valer sua vontade da forma como pretendia, não há que se falar em exclusão do herdeiro
229
legítimo, nem sequer contemplado por última vontade última do testador neutralizando o vício (HIRONAKA, 2007, p. 375)
do testamentário vontade, pois a pôde ser expressa, que a atingia.
b. Ofensa física
O Código Civil, através de redação simplificada, elenca a ofensa física como causa de deserdação (BRASIL, 2002). Nesta hipótese, não se cogita da gravidade do ato, bastando que tenha havido ofensa corporal. Não se supõe a dor. Nem o grande perigo, ou sequer, a possibilidade disto. Só se supõe o ato intencional, que constitua o mau trato corporal. A simples ameaça de ofensa não constitui causa suficiente para a deserdação; mas pode, em certos casos, ser, só por si, injúria grave. (MIRANDA, 2005, p. 329)
Esta hipótese de deserdação está diretamente relacionada à violência que expressa a falta de respeito que
devem
os
descendentes
ter
para
com
seus
ascendentes não incidindo, por óbvio, nas hipóteses em que tal violência é praticada em legítima defesa.
c. Injúria grave 230
Ao contrário das ofensas físicas, a injúria ensejadora da exclusão por deserdação deve ser grave. Neste ponto andou mal o legislador ao subjetivar hipótese de deserdação pois a dimensão da injúria varia de uma pessoa para a outra, sendo que, em determinadas situações, ela pode vir a se afigurar como tal para o testador mas, o juiz, ao analisar a causa de deserdação, pode concluir não ter tamanha amplitude. O juiz, no entanto, ao verificar a gravidade da injúria no caso concreto, deve “levar em conta as características pessoais dos envolvidos, tais como a formação moral, nível social e cultural da família, bem como o ambiente em que vivem” (GONÇALVES, II, 2008, p. 406). d. Relações ilícitas com a madrasta ou padrasto
Pontes de Miranda define “como relação ilícita tudo que constituiria ato de libidinagem e de sedução amorosa”, não se restringindo ao ato sexual consumado mas, também, ao “namoro”, “atos pudendos, quaisquer que sejam”, “cópula” e a “correspondência amorosa”. (MIRANDA, 2005, p. 333)
231
Já Carlos Maximiliano afirma que “o texto presupõe comércio impuro consumado, cópula carnal; não basta afeição tendente a ofensa da pudicicia, nem o galanteio, ou namoro”. (MAXIMILIANO, 1937, p. 468) Como a razão de ser desta causa de deserdação é a traição da confiança recíproca estabelecida entre pais e filhos no âmbito doméstico, entende-se ter maior razão a primeira linha de pensamento citada, pois abarca todas as hipóteses aptas a refletir este elemento. Frise-se que, neste caso, a lei expressamente utiliza as expressões “madrasta” e “padrasto”. Sendo assim, não pode o neto ou neta ser deserdado em virtude de relacionamento amoroso mantido com a esposa ou marido de seu avô ou avó. Assim, somente as relações estabelecidas entre o filho ou filha e o cônjuge ou companheiro do pai ou mãe poderão ensejar sua deserdação. Se o filho “rouba” a namorada do pai, por exemplo, tal fato não implicará em consequência alguma no âmbito sucessório. e. Desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade
Ao
comentar
este
dispositivo, Itabaiana
de
Oliveira afirma que 232
quem deixa ao desamparo o seu ascendente affectado de alienação mental, ou de grave enfermidade, demonstra ser um individuo inteiramente destituido de sentimentos de solidariedade humana e torna-se, por isso, indigno de lhe succeder, por faltar a esse herdeiro a reciprocidade da affeição para com o seu ascendente. (OLIVEIRA, 1936, p. 46)
No entanto, este dispositivo permite concluir que o abandono do ascendente sem alienação mental ou grave enfermidade é legítimo, não gerando como consequência a possibilidade de deserdação. Deste modo, um descendente que tem pais ricos, velhos, mas saudáveis, pode, simplesmente, interná-los e abandoná-los num asilo para idosos, sem que isto venha a implicar na possibilidade de perda de seus direitos sucessórios. Arnaldo Rizzardo, verificando não ter o legislador elencado esta hipótese como causa de deserdação, afirma que “a interpretação, nestas situações, deve ser extensiva, pois repugna à consciência humana o abandono. Até porque
a
velhice
importa
em
degenerescência
do
organismo humano, que retira a capacidade”. (RIZZARDO, 2008, p. 533) Embora moralmente legítimo o posicionamento supra apontado, observa-se que o mesmo carece de 233
substrato
jurídico,
uma
vez
que
as
hipóteses
de
deserdação, como já visto, são taxativas, e não admitem interpretação extensiva. Paulo Nader faz interessante observação acerca da impossibilidade de o “ascendente em alienação mental” vir a deserdar o descendente que o abandona, sendo preferível elencar tal hipótese como causa de indignidade. Nestes casos, mesmo que o ascendente “tenha momentos de lucidez, estará impedido de testar. Como esta causa não se encontra prevista entre as que autorizam a indignidade, os herdeiros necessários, nestas condições, não poderão ser privados de receber a herança”. (NADER, 2010, p. 414) 2.2. Causas de deserdação dos ascendentes pelos descendentes
Embora
incomum,
pois
normalmente
os
descendentes sobrevivem aos ascendentes, o Código Civil elenca em seu artigo 1.963 as hipóteses de deserdação destes por aqueles. (BRASIL, 2002) Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes: I – ofensa física; II – injúria grave;
234
III – relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta; IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade. (BRASIL, 2002)
As hipóteses contidas no artigo 1.814 e nos incisos I e II do artigo supra citado são exatamente iguais às previstas para deserdação dos descendentes pelos ascendentes, já comentadas no sub-tópico anterior. Já as demais hipóteses não foram ainda abordadas, passandose à análise das mesmas. (BRASIL, 2002)
a. Relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta
As relações entre parentes por afinidade em linha reta ofendem a harmonia familiar, razão pela qual são repudiadas pelo ordenamento jurídico, evidenciando um grande desrespeito do ascendente para com seus filhos e netos. Sobre esta hipótese é importante mencionar que o neto ou neta que mantém “relações ilícitas” com o cônjuge ou companheiro de seus avós não pode ser por eles deserdados, uma vez tal hipótese não está contida no 235
inciso III do artigo 1.962 do Código Civil e os casos de deserdação não admitem interpretação extensiva, ao passo que na hipótese contrária os ascendentes em segundo grau podem ser excluídos da sucessão. (BRASIL, 2002) b. Desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade
Do mesmo modo que previsto para a deserdação dos descendentes, os ascendentes somente podem ser deserdados no caso de desamparo de filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade. Assim sendo, nos casos de abandono de filhos ou netos saudáveis, os pais que não cumprem com os deveres inerentes ao poder familiar não podem vir a ser excluídos de suas respectivas sucessões, sendo herdeiros dos mesmos ainda que jamais tenha havido entre eles qualquer vínculo afetivo familiar. Ao comentar este dispositivo, Maria Berenice Dias afirma ser esta Mais uma incongruência do legislador. Os pais só são penalizados se os filhos tiverem necessidades especiais. Não se pode olvidar que alguém com deficiência mental não pode testar, o que torna quase inócua esta hipótese de deserdação. Assim, pais que deixam de cumprir com os deveres decorrentes do poder familiar não podem ser deserdados, ainda que
236
desatendam ao comando constitucional que impõe à família assegurar proteção com absoluta prioridade a crianças e adolescentes (CF 227). Logo, o genitor que abandonou o filho ainda criança, deixando-o em total desamparo, pode ser seu herdeiro, mesmo tendo cometido o delito de abandono material (CP 224) e estar sujeito à destituição do poder familiar (CC 1.638 II). No caso de o filho falecer sem descendentes, o genitor recebe o patrimônio amealhado sem qualquer auxílio paterno. (DIAS, 2008, p. 311)
Além disso, pais que alienaram seus filhos, fazendo com que os mesmos adquirissem a síndrome da alienação parental, também não podem ser deserdados, pois esta conduta paterna, que dependendo do nível da síndrome gerará danos enquanto o filho viver, não configura hipótese de deserdação.
2.3. Deserdação do cônjuge e do companheiro
Apesar de o Código Civil de 2002 ter elevado o cônjuge à condição de herdeiro necessário, o que também se aplica ao companheiro, conforme fundamentado supra, consequência lógica seria a imposição de hipóteses de deserdação do mesmo. (BRASIL, 2002) No
entanto,
o
legislador
não
elencou
as
hipóteses de deserdação do cônjuge, embora o artigo 237
1.961 do Código Civil estabeleça que “os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão”. (BRASIL, 2002) Assim sendo, apesar de o filho que mantém relações ilícitas com a esposa de seu pai, por exemplo, poder ser por ele deserdado, a mesma penalidade não pode ser aplicada à sua cúmplice. Deste modo, de acordo com o Código Civil, se o cônjuge traído falecer antes da sentença
de
decretação
do
divórcio,
sua
esposa
necessariamente será sua herdeira. (BRASIL, 2002) Não sendo possível a aplicação da analogia em matéria restritiva de direito, a omissão da lei fica sem qualquer possibilidade de solução, até porque as hipóteses de deserdação tratadas na lei não seriam mesmo aplicáveis aos cônjuges. Assim, até que se supra tal omissão, o cônjuge, embora herdeiro necessário, não pode ser deserdado. (CARVALHO NETO, 2005, p. 115)
Tendo o legislador se omitido no que tange à deserdação
do
cônjuge
e,
consequentemente,
do
companheiro, que sequer fora expressamente elevado à condição
de
herdeiro
necessário,
não
resta
outra
alternativa que não a conclusão acerca da impossibilidade de deserdação dos mesmos.
238
3. Notas conclusivas
Como o direito à legítima somente pode ser restringido
nos
casos
expressamente
previstos
pelo
legislador, observa-se que, muitas vezes, ele é fonte de injustiça e grande sofrimento para o autor da herança que, ante a omissão legislativa, fica obrigado a deixar seus bens para pessoas que o abandonaram, traíram sua confiança ou praticaram graves crimes, por exemplo, sob a justificativa de uma falsa preservação da solidariedade familiar. Um descendente que estupra sua irmã, também descendente do autor da herança, ou um marido que abusa sexualmente das filhas de sua esposa, por exemplo, não podem ser excluídos da sucessão do ascendente ou cônjuge porque o legislador não arrolou estes casos como causas de deserdação. Observa-se, assim, que outorgar ao legislador o poder de definição do destino do patrimônio das pessoas para
depois
de
sua
morte,
estabelecendo
que
determinadas pessoas são herdeiras necessárias e não podem ser excluídas da sucessão, a não ser em hipóteses excepcionais estabelecidas pelo próprio Legislativo, expõe o cidadão que licitamente construiu seu patrimônio a situações absurdas como as supra apontadas, deixando-o 239
de mãos atadas, obrigando-o a beneficiar pessoas que o prejudicaram.
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241
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242
O RESULTADO DA EVOLUÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E SUA INTERAÇÃO COM OS PRINCÍPIOS TRABALHISTAS FUNDAMENTAIS
Shirlene de Oliveira Sales1 Michele Aparecida Gomes Guimarães2 Resumo: O trabalho subscrito aponta a evolução histórica e principiológica do Direito do Trabalho em sua aplicabilidade nas relações empregatícias. Analisa-se a sucessão de tais acontecimentos cujo personagem principal é o trabalhador. Na evolução histórica, vêse que as relações trabalhistas se apresentam em diferentes formas no decurso do tempo, quais sejam: escravo, servil, companheiros, aprendizes, bem como operário, nominação usada na Revolução Industrial, marco importante do surgimento do direito trabalhista. O presente artigo buscou demonstrar a relevância dos princípios para que alcance sua eficácia plena. Ao final, conclui-se que os princípios trabalhistas é resultado de uma intensa reflexão sobre a evolução do Direito do Trabalho. Palavras-chave: Princípios.
Evolução
do
trabalho.
Influências
no
Brasil.
Introdução
Graduada em Ciências Contábeis pela Faculdade de Ciências Contábeis de Ponte Nova, MG. Discente do curso de Direito UNIPAC – Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana,MG 2 Mestre em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogada e Consultora Jurídica militante nas áreas do Direito do Consumidor, Civil, Trabalhista, Ambiental, Administrativo e Previdenciário. Assessora Jurídica do Serviço Municipal de Água e Esgoto de Ouro Preto. Professora da Universidade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Tutora do curso de Graduação em Administração Pública do Centro de Educação à Distância (CEAD) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). 1
243
É sabido que o Direito do Trabalho surgiu pela necessidade de entabular regras, oriunda de conflitos das relações de emprego, haja vista que o trabalhador ou obreiro, é personagem constante em toda a história da humanidade, seja, nas condições de escravo, servo, artesão e operário.
A sucessão de acontecimentos
durante toda a evolução do direito do trabalho levou o legislador a editar regras, adotar princípios, visando a proteção do trabalhador, cujo objetivo é alcançar o equilíbrio social através de um trabalho digno. Nessa esteira, o Direito do Trabalho, assim como os demais ramos jurídicos, é cercado de princípios que o norteiam, que buscam auxiliar os intérpretes do Direito a aplicar a lei de acordo com o caso concreto. Gize-se que o direito laboral, ao longo de sua trajetória, cujo cenário era de sofrimento, luta e manifestação da classe obreira, atualmente é dotada de rígidas normas, princípios, cuja finalidade é a proteção à classe trabalhadora. Neste contexto, faz-se um apanhado dos princípios do direito do trabalho, haja vista sua importância na aplicabilidade nos casos concretos, cujo objetivo é o amparo à parte hipossuficiente na relação trabalhista. Para o desenvolvimento deste breve artigo, foi utilizada
a
realização
de
pesquisa,
bibliográficas, 244
através de doutrinas, legislação, analisando o foco principal: o resultado da evolução do direito do trabalho e sua interação com os princípios fundamentais. 2. Evolução histórica do trabalho
Desde os primórdios o homem se viu obrigado a exercer
alguma
atividade
laborativa,
baseada
em
encargos degradante muitas vezes humilhante, onde a autoridade exercida pelos mais fortes prevalecia sobre os mais fracos. Antes é importante mencionar o significado da palavra trabalho, nesse sentido de acordo com Martins (2014, p.4) “Trabalho vem do latim tripalium, que era uma espécie de instrumento de tortura de três paus ou canga que pesava sobre os animais”. Neste viés, a ideia inicial de Trabalho refere-se a algo penoso, doloroso, ou seja, castigo. 2.1 Escravidão
Doutrinadores falam que a fase do trabalho começa pela escravidão, o escravo era considerado uma espécie de “res” ou ‘coisa’ não possuía qualquer forma de proteção tampouco direitos, eram submetidos a 245
trabalhos forçados, muitas vezes humilhantes, por serem
considerados
‘coisa’
os
escravos
eram
propriedade de seu senhor, no qual exercia todo o poder sobre o escravo. Desta
feita,
na
Antiguidade
o
trabalho
era
baseado na exploração de mão de obra alheia, ou seja o homem tinha o escravo como coisa material, um direito real. A obrigação do escravo era simplesmente trazer riqueza e sustento para o seu dono. É de fato a fase do trabalho mais desumana da história
da
humanidade,
visto
que,
até
hoje
é
contestada em suas formas semelhantes.
2.2 Servidão
Em segundo momento surge a servidão, que era desenvolvida nas sociedades Feudais. Chamados de servos, as pessoas que laboravam para os senhores feudais em troca de proteção. Não eram livres, tinham que prestar serviços trabalhados no uso da terra, entregando parte da produção rural aos senhores feudais. No entanto o trabalho era considerado como castigo, uma vez que os nobres não trabalhavam. Esse
246
regime de trabalho é marcante até o final da Idade Média. (DELGADO, 2013) Fontes seguras, relatam que a sociedade medieval enfraqueceu, tendo em vista, a escassez de terras, a pressão exercida pelos senhores sobre os servos, bem como epidemia de pestes, levaram os servos a migrarem do campo para a cidade, a procura de trabalho e com isso estabeleceram bases através de corporações de ofício. (DELGADO, 2013) 2.2 Corporações de Ofício
A terceira fase são as corporações de Ofício, baseado em trabalho artesanal, cujos grupos eram divididos de acordo com a modalidade, ou seja: sapateiros, ferreiros, carpinteiros, entre outros. Era composta
por
três
personagens:
os
mestres,
os
companheiros e os aprendizes. Sobre
estes
três
personagens,
Sergio
Pinto
Martins conceitua que: Os mestres eram os proprietários das oficinas, que tinham passado pela prova da obramestra. Os companheiros eram trabalhadores que percebiam salários dos mestres. Os aprendizes eram os menores que recebiam dos mestres o ensino metódico de ofício ou profissão. (MARTINS, 2014, p.4).
247
Vale ressaltar que nesta fase havia certa liberdade do trabalhador, embora não existisse norma jurídica trabalhista. A relação era bastante autoritária, haja vista que o interesse das corporações de ofício era o seu estabelecimento, o resultado do trabalho produzido do que a proteção dos trabalhadores. Martins (2014, p. 4-5) menciona também, que as corporações de ofício tinham como características: “[...] estabelecer
uma
estrutura
hierárquica;
capacidade
produtiva;
produção.”
Ainda há o fato de que a jornada de
regulamentar
a
regular técnica
a de
trabalho dos aprendizes eram de 12 a 14 horas por dia, e no verão chegava até 18 horas, portanto a jornada de trabalho
era
muito
longa.
Por
estarem
sob
a
responsabilidade de seus mestres, sofriam castigos de natureza corporal. Vale destacar, que a corporações foi a ancora para o surgimento do capitalismo, uma vez que, nesta fase existia o comércio que era realizado por meio de moedas. As corporações de ofício foram cessadas com a Revolução Francesa, pois violava os ideais da revolução, ou seja: liberdade, igualdade e fraternidade. (DELGADO, 2013) 248
2.3 Revolução Industrial
Outra fase importante é marcada pela Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII. Nesta fase surgem às máquinas a vapor e aos poucos as corporações de ofício perdem força e espaço, o trabalho manual é substituído
pelas
máquinas,
e
em
contrapartida
necessitavam de pessoas para manejá-las. Observa-se que antes o trabalho era manual e artesanal, se existia alguma máquina, era rudimentar. Com o surgimento da Revolução Industrial, as mudanças foram enormes, a economia que era atividade agrária manufatura, passa a ser mecanizada. Com a máquina, o processo de produção ficou mais célere e produzindo em grande escala. O período foi marcado por grandes alterações econômicas, política, social e cultural. O trabalho escravo, dos servos e das corporações foi substituído pelo trabalho assalariado. O capitalismo é firmado expandindo assim a economia. (DELGADO, 2013). Nota-se que o período industrial, existiam duas classes: os detentores de capital por meio de produção, e o
outro
lado
os
operários,
classe
considerada
hipossuficiente. Grandes abusos, tais como: ambientes 249
insalubres, mão de obra infantil, jornada excessivas de trabalho entre 14 a 16 horas, incluindo pessoas do sexo feminino. As classes operárias, motivadas pelo ideal de justiça, começaram a organizar através de sindicados e a reivindicar por melhores condições de trabalho. Diante desta situação, houve a necessidade do Estado intervir nas relações de trabalho, haja vista que no mundo, surgiam questões semelhantes, tais como: Lei de Peel na Inglaterra, que trata-se de normas protetivas de referente a menores; Encíclica Catolica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, doutrina da Igreja Católica, baseava-se na necessidade de uma nova postura entre empregados e patrões, chamada de “Questão Social”, salientando o respeito e a dignidade da classe trabalhadora; A Constituição Mexicana de 1917, que traz em sua carta a primeira norma trabalhista; O Tratado de Versalles de 1919, enfatizava a relação de trabalho subordinado, prevendo a criação da OIT Organização Internacional do Trabalho. Assim, a Carta del Lavoro, de 1927 o qual enfatizava
o
corporativismo,
visando
organizar
a
economia em torno do Estado, que por sua vez deixa de ser omisso e passa a intervir nas relações de trabalho, passando a promulgar leis, normas, regulamentando as 250
condições de trabalho, e finalmente nasce o direito do trabalho. Nesse sentido, conceitua Fábio Goulart Villela, ao considerar que: Revolução Industrial pode ser considerada, por certo, como um dos principais marcos da história do Direito do Trabalho. Isso porque foi a partir do advento dessa efetiva transformação dos meios de produção que se iniciou a chamada questão social em duas classes distintas – burguesia e proletariado – marcadas pelos interesses totalmente antagônicos, começaram a entrar em conflito ameaçando a paz social. (VILLELA, 2008, p.15)
Portanto, a Revolução Industrial foi marcada com as primeiras leis, direcionadas para a proteção dos trabalhadores, baseada no bem estar social e melhores condições
de
trabalho.
Foi
nesse
período
que
o
empregado passou a ser visto pelo Estado como parte hipossuficiente na relação de trabalho. A doutrina confirma que o direito do trabalho teve origem na sociedade industrial. 3. Influências que levaram a evolução do direito do trabalho no Brasil
251
Em relação à história do Direito do Trabalho em nossa
sociedade
comparando
com
a
história
do
trabalho, é morosa, uma vez que esta existe desde a antiguidade, conforme acima mencionado, enquanto aquela, seu advento foi na Revolução Industrial. Devido vários acontecimentos, regadas às lutas e conquista da classe hipossuficiente, em prol de justiça e dignidade humana no que concerne às relações de trabalho, o Brasil sofreu influencias externas e internas. Em relação as externas, são advindas de outros países. Sobre as influências externas Amauri Mascaro Nascimento, expõe:
As influências advindas de outros países que exerceram, de certo modo, alguma pressão no sentido de levar o Brasil a elaborar leis trabalhistas, sublinhem-se as transformações que ocorriam na Europa e a crescente elaboração legislativa de proteção ao trabalhador em muitos países. Também pesou o compromisso internacional assumido pelo nosso país ao ingressar na Organização Internacional do Trabalho, criada pelo Tratado de Versailles (1919), propondo-se observar normas trabalhistas e, mais recentemente, a crise econômica mundial de 2009 (NASCIMENTO, 2011, p. 50)
252
De certa maneira, as influências externas estão ligadas aos vários movimentos sociais, que levaram o Brasil a elaborar leis trabalhistas com o objetivo de proteger o trabalhador. Já as influências internas, destacamos para o movimento operário, que participaram os imigrantes italianos, com inspirações anarquistas, provocadas por inúmeras greves em fins de 1800 e início de 1900. Destacamos também o surto industrial oriunda da Primeira Grande Guerra Mundial, que provocou um aumento considerável de fábricas e de operários. Nessa perspectiva, o advento do Direito do Trabalho no Brasil foi a passos lentos. O marco foi a Lei Áurea, considerado o diploma legal, que extinguiu toda a escravidão existente no Brasil. Depois vieram as Leis esparsas, dispersas, que discorria sobre trabalho de menores.
Importante
mencionar
que
finalmente
o
Código Civil de 1916, entrou em vigor, no qual regulava a relação de emprego como locação de serviços. Outros destaques é a partir da década de trinta, considerado
para
institucionalização, Trabalho;
os
doutrinadores
a
fase
da
no qual surgiu: Ministério do
Constituição Federal de 1934 onde tratou
pela primeira vez, sobre matéria trabalhista, garantindo a liberdade sindical, igualdade salarial, salário mínimo, 253
jornada de oito horas de trabalho, proteção do trabalho de mulheres e menores, dentre outros; A Constituição de 1937 modelo corporativista, o qual registra a forma do Estado intervir na entidade sindical, estabelecendo impostos, bem como controlar o poder normativo da Justiça do Trabalho. Na década de quarenta é marcada pelo diploma normativo a CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas. Nas palavras de Villela (2008, p. 30) “A CLT, como é nominalmente abreviada, pode ser considerada como uma compilação de leis esparsas, com alterações legislativas,
com
vista
à
complementação
de
um
sistema.” Logo após surge a Constituição de 1947, o direito do trabalho é tratado de forma democrática, onde foi criada diversas leis ordinárias, destacamos a Lei nº 625/49, onde faz referência ao repouso semanal remunerado, dentre outras. Observa-se
que
a
Constituição
de
1967
direcionava a militarismo, mas manteve os direitos laborais
estabelecidos
nas
Cartas
anteriores,
e
finalmente a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, marco importante para o Direito do Trabalho,
onde
sacramentou
novos
direitos
direcionados ao trabalho. O Legislador tutelou os direitos trabalhistas, em dimensão ampla nos artigos 6º 254
ao 11º, que fazem parte do Capítulo II, intitulado “Dos Direitos Sociais”, bem como encontra-se elencadas no artigo 5º e seus incisos os direitos e garantias fundamentais,
normas
especificas
de
Direito
de
Trabalho Individual e Coletivo. Neste sentido, mister expor os dizeres do grande jurista Maurício Godinho Delgado, no que se refere ao Direito Individual e Coletivo: [...] complexo de princípios, regras e institutos jurídicos que regulam a relação empregatícia de trabalho e outras relações normativamente especificadas, englobando, também, os institutos, regras e princípios jurídicos concernentes às relações coletivas entre trabalhadores e tomadores de serviços, em especial através de suas associações coletivas. (DELGADO, 2013 p.47).
Para alguns doutrinadores, o mencionado diploma pode
ser
detalhista,
considerado pois
há
como
diversos
uma direitos
Constituição e
garantias
direcionadas à sociedade, trabalhadores urbano e rural, cuja finalidade é a melhoria da condição social e formas mais justas de reger as relações trabalhistas. É certo que todas as Constituições Brasileiras, o legislador passou a incluir em seu corpo de leis, normas trabalhistas,
de
acordo
com
determinados 255
acontecimentos ou elementos referente à situação política, econômica e social do nosso país, vivenciados naquele momento da história. Atualmente foi aprovado a lei do contrato de trabalho referente a trabalhadores domésticos.
3. Princípios fundamentais do direito do trabalho
A palavra princípio pode dar ideia de começo, aquilo que vem antes, nascedouro. Neste sentido salienta Martins (2014, p.64) “princípio vem do latim principium, princippi, com o significado de origem, começo, base”. Ainda acrescentando, menciona Villela (2008, p.63) que “os princípios são as diretrizes fundamentais, as proposições básicas de uma determinada ciência. São alicerce de um fenômeno cientifico”. Neste contexto, se faz necessário um breve estudo de alguns princípios do Direito do Trabalho, uma vez que tem como funções: normativas, interpretativas e informativas. Respectivamente, a normativa refere-se à fonte supletiva, nas lacunas ou omissão da lei, atua-se no caso concreto; as interpretativas servem de critério orientador para os aplicadores e intérpretes da lei; e as 256
funções informativas servem de orientação ao legislador à criação de novos preceitos legais. No artigo 8º da CLT estabelece os princípios como meio de decidir os conflitos no direito trabalhista, vejamos: Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. Parágrafo único - O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste.
Desta forma, o legislador indica às autoridades, os interpretes do direito, mecanismos para que seja aplicado no caso concreto. Vale ressaltar, que a base principiológica do Direito Trabalhista, serve como referência ao âmbito da doutrina nacional, está na obra “Princípios de Direito do Trabalho” do autor Uruguaiano Américo Plá Rodrigues (DELGADO, 2013)
257
3.1 Princípio da Proteção
Alguns
doutrinadores
consideram-se
esse
princípio, como o mais importante dentre os princípios trabalhistas, pois está inserido o direito tutelar de ordem constitucional, bem como dá origem a outros princípios laborais. Como regra, este princípio visa minimizar a superioridade
do
empregador
em
relação
aos
empregados que são considerados parte hipossuficiente da relação trabalhista. Sobre a divisão do princípio da proteção, Martins (2014, p.72) desmembra em três formas, a saber: “(a) o in dubio pro operário; (b) o da aplicação da norma mais favorável ao trabalhador; (c) o da aplicação da condição mais benéfica ao trabalhador”. Quanto ao princípio in dubio pro operário também chamado de princípio in dubio pro misero, determina que havendo dúvida, o interprete do direito deverá direcionar o direito à parte hipossuficiente da relação trabalhista. O princípio da aplicação da norma mais favorável ocorre quando há divergência na relação trabalhista, havendo duas ou mais normas sobre a mesma matéria, 258
será aplicada, no caso concreto, a mais benéfica ao trabalhador, denominada pelos doutrinadores como “flexibilização das normas”, ou seja, é a quebra da hierarquia, hipótese quando a norma inferior comprova ser mais vantajoso para o empregado. No artigo 620 da CLT
elenca
que:
“as
condições
estabelecidas
em
convenção, quando mais favoráveis, prevalecerão sobre as estipuladas em acordo”. Com relação ao princípio da aplicação da condição mais benéfica ao trabalhador, preserva as cláusulas aplicadas no contrato de trabalho ou no regulamento da empresa contratuais, a mais vantajosa e benéfica ao trabalhador, apensa-se à ideia de direito adquirido, conforme
firmado
pela
Constituição
da
República
Federativa do Brasil em seu artigo 5º, inciso XXXVI. Este princípio encontra-se positivado no artigo 468 da CLT de teor seguinte: “Nos contratos individuais de trabalho só é licita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem,
direta
empregado,
sob
ou pena
indiretamente, de
nulidade
prejuízos da
ao
cláusula
infringente desta garantia”. Assim, o mencionado princípio, resguarda as condições mais benéficas do empregado, ao longo de todo
o
contrato,
assegurando
os
direitos
mais 259
vantajosos, não podendo, portando, serem alterados ou suprimidos pelo empregador. 3.2 Princípio da Irrenunciabilidade de Direitos
A regra deste princípio é baseada na premissa de que o trabalhador jamais deve privar-se de seus direitos uma vez consagrados pela legislação trabalhista. As formas de privação de direitos, de acordo com a doutrina são: transação, conciliação, composição ou até mesmo abrir mão de algo, como por exemplo, que o trabalhador renuncie ao aviso prévio, conforme elenca a súmula 276 do Tribunal Superior do Trabalho. Assim o legislador elucida de forma clara no artigo 9º da CLT “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação.” Entretanto, se essa renúncia for favorável ao trabalhador,
será
“permitida”
mediante
Poder
Judiciário.
3.3 Princípio da Primazia da Realidade
260
O presente princípio dispõe que os fatos prevalecem sobre a forma, ou seja, os documentos são menos importantes que os fatos, primam-se a verdade real. Este princípio também foi consagrado pelo artigo 9º da CLT. Em linhas gerais, o objetivo é a pessoa humana em sua dignidade, e a boa-fé objetiva no relacionamento entre as partes na seara trabalhista. Logo, o referido princípio é um poderoso instrumento para análise e solução em uma situação de litígio laboral. Assim, bem explica Maurício Godinho Delgado ao elucidar-nos que: O princípio da primazia da realidade, sobre a forma (chamado ainda de princípio contrato realidade) amplia a noção civilista de que o operador de jurídico, no exame das declarações volitivas, deve atentar mais a intenção dos agentes do que ao envoltório formal através de que transpareceu a vontade (art. 85, CCB/1916; art. 112, CCB/2002) (DELGADO, 2013, p.199)
Desta forma, caberá aos interpretes do direito, examinar com atenção qual a verdade real dos fatos, haja vista que impera sobre qualquer contrato formal.
3.4 Princípio da Continuidade da Relação de Emprego 261
Este princípio prevê a continuidade do vínculo empregatício em favor do trabalhador.
É vedada a
dispensa de forma arbitrária, conforme artigo 7º, I da Constituição da República Federativa do Brasil, onde pressupõe a proteção contra despedida arbitrária. Vale ressaltar que a exceção à regra, são os contratos contrato
por de
tempo
determinado,
trabalho
temporário
podemos e
citar:
contrato
de
experiência. De acordo com CLT, o contrato de trabalho terá validade por tempo indeterminado, ou seja, o objetivo deste princípio é assegurar maior continuidade da relação de emprego. A aplicabilidade deste princípio é baseada na Súmula 212 do TST “o ônus de provar o término de contrato de trabalho quando negados a prestação
de
serviço
e
o
despedimento,
é
do
empregador, pois o princípio da continuidade da relação de
emprego
constitui
presunção
favorável
ao
empregado.” Alguns doutrinadores afirmam que este princípio é uma Relação de caráter alimentar, pois em regra o ser humano necessita do trabalho para sobreviver, ou seja, existe o ânimo de continuidade, a pessoa precisa do trabalho para fins alimentares. 262
3.5 Princípio da Inalterabilidade Contratual Lesiva
O mencionado princípio é baseado no Direito Civil da
Inalterabilidade
dos
Contratos,
resumido
pelo
axioma jurídico pacta sunt servanda, “os pactos devem ser cumpridos”. Não
obstante,
este
princípio
sofreu
várias
modificações na seara civilista, bem como na área do Direito do trabalho, adequando para Inalterabilidade Contratual Lesiva, que visa a impossibilidade de o empregador alterar o contrato laboral com a intensão de prejudicar o trabalhador. Nesta mesma linha de raciocínio Maurício Godinho Delgado, registra a existência de particularização do princípio
da
inalterabilidade
contratual
lesiva,
denominando de “Intangibilidade Contratual Objetiva”, expondo o seguinte: Tal diretriz acentuaria que o conceito do contrato empregatício não poderia ser modificado (como já ressaltado pelo princípio da inalterabilidade contratual lesiva) mesmo que ocorresse efetiva mudança no plano do sujeito empresarial. Ou seja, a mudança subjetiva perpetrada (no sujeito-empregador) não seria apta a produzir mudança no corpo do contrato (em seus direitos e obrigações, inclusive passados). Trata-se de sucessão trabalhista, como se percebe (também
263
conhecida como alteração subjetiva do contrato de trabalho), O contrato de trabalho seria intangível, do ponto de vista objetivo, embora mutável do ponto de vista subjetivo, desde que a mudança envolvesse apenas o sujeito-empregador. (DELGADO, 2013, p.197).
Dessa forma, o legislador protege este princípio como instrumento de justiça no Direito do trabalho, a ser aplicada no caso concreto com objetivo de equilíbrio nas relações de trabalho, no que se refere a contrato de trabalho bem como as partes envolvidas.
3.6 Princípio da Intangibilidade salarial
O presente princípio determina que as normas de trabalho devam prevalecer nas relações laborais, ou seja, elas
são
imperativas
e
obrigatórias.
As
normas
trabalhistas não devem ser alteradas, mesmo se houver declaração das partes no qual afasta empregado bem como empregador das regras trabalhistas. Conforme estabelece o artigo 468, caput da CLT “Ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado, salvo quando este resultar de adiantamentos, de dispositivos de lei ou de contrato coletivo.” No entanto na súmula 342 do TST, prevê o 264
desconto desde que haja autorização prévia e por escrito do empregador, sem coação, podemos citar o desconto de plano de saúde. Nota-se que o legislador impôs exceções, uma delas é adiantamentos realizados pelo empregador, podemos citar: desconto do INSS, Imposto de renda, dentre outras. Outro exemplo é ocorrência de dano, quando há dolo ou culpa. Respectivamente dolo é decorrente da vontade do empregado em prejudicar o patrimônio do empregador, neste caso, não haverá autorização prévia do empregado, é totalmente válido o desconto. Já a culpa, quando o empregado agiu por negligência, imprudência ou imperícia, o desconto será lícito, desde que autorização seja prévia do trabalhador. Em suma, a partir da evolução legislativa do Direito do Trabalho e da apresentação dos princípios matrizes desse ramo do Direito, é possível afirmar que o resultado de tal processo possui ligação direta com princípios trabalhistas fundamentais. A evolução das relações de trabalho e sua base legal se desenvolveram ao longo dos períodos históricos até o tempo presente com o escopo de buscar harmonia e efetividade dos princípios aplicáveis às relações trabalhistas.
265
Conclusão
Por todo o exposto, neste breve artigo, busca-se demonstrar a importância da evolução histórica do direito do trabalho, bem como seu reflexo no Brasil, cujo resultado foi a garantia dos direitos trabalhistas, protegendo o empregado em todos os conflitos da relação empregatícia, assegurando um vida digna. Observa-se que os direitos trabalhistas foram surgindo de acordo com o clamor das sociedades em busca
de
seus
direitos
e,
em
consequência,
o
trabalhador passou a ser respeitado como um cidadão, uma vez que no início da evolução do trabalho, este era tido como castigo. Sem dúvida, para regulamentação das relações trabalhistas, surgiram os princípios constitucionais e específicos, que foram extraídos de diplomas legais, cujo objetivo é a eficácia e as melhorias nas relações trabalhistas. Vale ressaltar a importância do princípio da proteção, por ser considerado o mais eficaz do direito do trabalho, uma vez que dá ideia abrangente e protege a parte hipossuficiente. Toda a normatização do direito do trabalho tem como base fundante este princípio, que dá 266
origem
também
a
todos
os
outros
princípios
trabalhistas. Contudo, o direito do trabalho, ao longo de sua história se aperfeiçoou com a finalidade de tutelar e proteger
o
trabalhador,
considerada
a
parte
hipossuficiente das relações laborais. Vários diplomas foram
criados
para
regulamentação
das
relações
trabalhistas, bem como surgiram vários princípios, que constituem, sem dúvida, um papel essencial nas relações trabalhistas.
Referências BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. Vade Mecum Compacto de Direito Rideel. 7ª ed. São Paulo: Rideel, 2014. BRASIL. Decreto Lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943. Consolidação das Leis do Trabalho. Vade Mecum Compacto de Direito Rideel. 7º ed. São Paulo: Rideel, 2014. BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmulas. Vade Mecum Compacto de Direito Rideel. 7ª ed. São Paulo: Rideel, 2014. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12ª ed. São Paulo: LTr, 2013. 267
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 36º ed: São Paulo, LTr, 2011. MARTINS, José Pinto. Direito do Trabalho, 31ª ed. Atlas 2014. VILLELA, Fábio Goulart. Introdução ao Direito do Trabalho – História e Principiologia. Rio de Janeiro: Elservier, 2008.
268
A CONTRIBUIÇÃO DA PSICANÁLISE AO DIREITO PENAL
Flávia Regina Gonçalves Viana1 René Dentz2
Resumo: Se a organização do ambiente do trabalho deve assegurar boas condições para o profissional evitando-lhe o estresse também na prisão a forma de direcionar ao preso com desdém, com mau-trato, nada vai melhorar seu desempenho. Faltará estímulo ou trazer uma extrema raiva que poderá se tornar “surda” aos apelos, pode haver desmaios em tentativa de fuga aos problemas que ali se coabitam. Os limiares de uma risada podem soar como provocação, podendo levar à agressão ou ao homicídio. Portanto, o trato pessoal é imprescindível não só no ambiente profissional quanto no prisional. Se a linguagem influencia no quê se pensa também desprover informações pode levar a esquema de pensamentos e ódios. Para romper o círculo vicioso de esquemas rígidos que o mau trato pode gerar até mesmo por falsas crenças. Palavras-Chave: Personalidade; Direitos Humanos; Alteridade.
Introdução
Segundo Mira e López – 1967- somente a lenta e penosa ação coercitiva da educação ensinará a conduta e resultará em um compromisso de uma transação entre a Bacharel em Direito pela UNIPAC/Mariana; Licenciada em História pela UFOP. 2 Professor Titular da UNIPAC/Mariana; Professor do IBHES-Belo Horizonte; Professor do SEB Global Alphaville; Psicanalista; Membro do International Institute for Hermeneutics/Freiburg Universität-Alemanha. 1
269
satisfação e suas necessidades e a dos demais. O indivíduo aprende, então, que deverá repartir sua comida, seus brinquedos, sua casa, etc. com seus irmãos e deverá respeitar os outros sujeitos. Que deverá tolerar em seu contradito e que seus desejos têm de se ajustar a certas normas impostas pela sociedade para poderem ser satisfeitos. Essa aprendizagem depende de vários fatores: o meio em que se realiza a técnica de ensinamento, a capacidade
discriminativa
do
indivíduo,
a
força
ou
intensidade de seus instintos, etc. Todo indivíduo que teve tal aprendizagem de modo insuficiente por qualquer das causas está destinado à delinquência. O delito terá lugar quando fatalmente a energia da tendência à ação não respeitar os limites compatíveis com sua satisfação ou descarga social. A luta contra a delinquência deve ser estabelecida no terreno da previsão mais que no terreno da correção. Afirma ainda que todos nós nos tornamos sugestionáveis diante do que tememos, do que odiamos ou do que amamos e nossa sugestibilidade aumenta à proporção que aumenta nosso medo, nossa cólera e nosso amor. Para se realmente obter uma equipe de trabalho coesa e justa, todos os funcionários de uma unidade penal deveriam passar por testes psicológicos e psicanalíticos, a fim de serem melhor preparados. Os policiais também deveriam 270
ter,
no
trato
cotidiano,
boa
capacitação,
inclusive
psicológica, para obterem mais justa prova nos processos. Seria necessário que eles soubessem taquigrafia, que possuíssem gravadores de som e máquinas fotográficas, a fim
de
que
suas
informações
obtivessem
relatos
completos, não partes, expressas em seu léxico peculiar. Em potencial
relação
à
apreciação
criminógeno,
dos
pergunta-se:
indicadores seria
o
do
exame
criminológico realmente crível e realmente aplicável em nossas
instituições?
Não
poderiam
ter
vícios
na
metodologia? Alguns autores afirmam que há vícios e que são comprometedores, pois há neles as inferências pessoais dos indivíduos que examinam. São, na verdade, erronias oriundas da não aplicação de uma metodologia e de uma anamnese que não se utiliza dos conhecimentos dos fatores do crime, bem como dos dados psicoevolutivos que edificam a personalidade. A criação das CTC’s (Comissão Técnica de Classificação), orientada pela ONU, em 1951, tinha como objetivo a procura de elementos fáticos para estabelecer a individualização da pena. Na verdade, ela funciona como a tarefa de opinar sobre a progressão, mesmo assim, sujeita a vicissitudes. Ao questionário responderiam
proposto todos
por
Odon
igualmente
Ramos como
Maranhão,
uma
massa
homogênea? Haveria sempre imprescindivelmente uma 271
forma de organizar o perfil psicológico de todo e qualquer detento, sem erros? E a permanência em estágios iniciais que representa uma falta de adaptação, não reunindo méritos para prosperar não significaria um aumento no potencial criminógeno? 2. Direito e Personalidade
Se
a
exigência
de
adequação
da
pena
está
automaticamente obrigando a adequação ao local, como poderá em cela de homicida conviver um rurícola de pouca instrução que cortou uma árvore? A triagem à qual se submetem
seria
realmente
a
transparência
de
sua
evolução, aqui no sentido de realmente mudança em seu modo de pensar e agir? E aos que não foram sentenciados, que se recusam a estudar cumprindo pena apenas como indiciados, não traria um convívio pernicioso a roubar o mérito caso não possuíssem uma firme personalidade? Se a averiguação das normas deve se dar por testemunhos puros, isso é, não deformados de antemão pelas próprias pessoas que têm interesse de procurar a verdade e, muitas vezes, ao tentar se aproximar delas fazem perguntas sugestivas, capciosas ou de respostas forçadas
que
demasiadamente
dirigidas cioso
de
por sua
um
interrogador
obrigação
e
pouco 272
preparado para cumpri-la tecnicamente, não forçaria a “barra”? MIRA Y LÓPEZ afirma que o relato espontâneo aproxima-se muito mais da verdade que o interrogatório, visto que esse processo coloca o indivíduo em condições de inferioridade e o impede de dar a devida resposta. Além disso, os interrogadores, para evitar o perigo de serem enganados, acreditam que não há melhor meio do que começar enganando a testemunha. Somando-se a isso a técnica de alternar perguntas afirmativas e negativas, fato que condiciona previamente a resposta de acordo com que o interrogador espera. Em busca da verdade, utiliza-se de aspectos
contraproducente,
pois
se
baseiam
na
atemorização do indivíduo, ameaçando-o com castigos humanos e divinos no caso de declarar em falso. MIRA (1967) informa que o delinquente ocasional deveria ser tratado não pelo grau de sua perversidade, nem pelo grau de suas intensões delituosas e, sim, nas particularidades do processo de suas motivações. Além disso, afirma que o delinquente deveria ser protegido contra a ameaça da reincidência, que é favorecida pela incompreensão hostil da sociedade. Deveria haver serviços que classificassem seus méritos técnicos profissionais ou suas habilidades e seus conhecimentos e que esses serviços fossem relacionados a bolsas de trabalho, centros de assistência social da indústria, sindicatos trabalhistas, 273
laboratórios
psicotécnicos.
Deveria
haver,
também,
consultórios jurídicos para orientar as pessoas, afinal, não é
aumentando
a
severidade
das
leis
penais,
nem
diminuindo os direitos democráticos que se poderá conseguir a reintegração da normalidade. Ao contrário, é assegurando justiça, equilíbrio psicobiológico, saúde e paz que se conseguiria essa harmonia. Um regime tributário bem
empregado
e
uma
difusão
de
conhecimentos
científicos aumentariam a carga de uma política sadia. Os pequenos desajustes individuais evitariam o fracasso na correção de nossos jovens. MIRA (1967) faz uma grande classificação de personalidades e, apesar de o estudo delas fugir à nossa meta, observamos que autor nos inspira ainda mais a acreditar que não é a supressão de medida retributiva, retaliativa,
castigo
ou
repressão
que
levaria
a
um
progresso, mas, sim, as medidas reeducadoras, com profilaxia do crime. A lextalionis, de “olho por olho” utilizados por muitos policiais, inclusive percebidos e divulgados pela mídia, nada mais é do que um “creampuffcriminology”, sistema pão de ló. Proteger a infância, combater a miséria e o desemprego a ignorância e os vícios, com certeza, resultarão
em
vida
saudável.
A
criminalidade
não
desaparece com a punição. Nossa História atesta essa 274
verdade. Segundo os autores Fiorelli, Fiorelli e Junior (2006), os problemas comportamentais são variados. Muitas vezes há empecilhos à boa comunicação, e uma delas é a falta de atenção. É a escuta superficial, falta de clareza e determinação, que pode despertar emoções negativas, pois a mente escolhe palavras sintonizadas. Uma
frase
conciliadora,
de
repente,
pode
soar
ameaçadora. A linguagem reflete o pensamento, afirma Aclan (apud Fiorelli, 2006). As crenças arraigadas, o preconceito, os esquemas rígidos de pensamento e o mecanismo de defesa também ameaçam
a
boa
comunicação.
Então,
interessou
à
pesquisadora saber se quem aplica o interrogatório policial está preparado psicologicamente ou se tem formação pessoal para fazê-lo, ou se estamos atrasados no tempo por formas coercitivas de se apurar um testemunho, de averiguá-lo como verdadeiro; se nas falas e nos processos adentram o preconceito arraigado, muitas vezes explícito por parte de alguns policiais. Ao dizer “o vagabundo”, quando
de
supetão
aprisionam
indivíduo
para
averiguações e ele não tem dinheiro para pagar um advogado, fica à mercê ora da justiça gratuita ora do defensor apontado pelo juiz. Enquanto isso se dá, é o indiciado tratado literalmente como sentenciado fosse e 275
mais manietados pelo conflito. Portanto a linguagem é indispensável e crucial, pois é o estopim da emoção. Sendo assim, em nossas entrevistas, estivemos atentos à fala, apesar de percebermos boa limpeza e organização, aferíamos ali o suporte discricionário da fala. 3. O Dito e o Não-Dito
As
palavras
podem
traduzir
generalizações
e
particularidades, podem ser perigosas e introduzir graves distorções na comunicação, porque, em geral, traduzem preconceitos
de
pensamento.
Conclui-se
que
o
profissional, para tomar uma averiguação, deveria ser muito bem preparado, o que longe está da realidade. Isso foi comprovado pela entrevista junto com o advogado, o qual afirmou que a polícia está mal preparada para averiguar os crimes. Expressar um juízo de valor no termo “vagabundo”, já, em si, tem a conotação de pré-julgar. Fiorelli (2006) aduz que a percepção do indivíduo torna-se seletiva no sentido de perceber apenas o que confirmatório para sua própria filosofia. Ou seja, se já mau-direcionado o seu “tratamento” dentro da cadeia, e lá fora? Como irá se posicionar diante das emoções de uma nova
vida
em
que
poderia
ser
despertada
sua
recuperação? Estudiosos sugerem que a eficácia da 276
punição aumenta quanto menor o grau de maturidade na relação interpessoal. Sem motivação, qualquer obstáculo será suficiente para demovê-la; uma pequena dificuldade poderá
encaminhar
soluções
desfavoráveis
e
ceder
facilmente a pressões. Os grilhões encontram-se dentro de cada pessoa “Se a vida é curta, cabe não permitir que seja pequena” (Fiorelli, 2006). Muitas vezes, os atos de deferência – como, por exemplo, ter de se referir aos superiores comosenhor (a) – exigido em instituições na sua interação com a equipe diretora
podem
indignidades
de
produzir fala
e
indignidades ação
exigidas
na
fala.
“Às
do
internado
correspondem as indignidades de tratamento que outros lhe dão”. (Goffman, 2010) Mas,
parece
que
essa
questão
da
fala
é
completamente desconhecida no ambiente carcerário, no trato cotidiano de alguns agentes penitenciários, guardas e policiais, o que demonstra claramente a má preparação para o trato com o ser humano. Longe está a percepção de educação para uma pátria formadora. O certo é que Ihering (2007) já afirmava:“a luta dessa concepção, a luta pelo direito subjetivo é também uma luta pela lei”. Nesse trato mal preparado do direito, não haveria uma violação subjetiva no terreno legal? É como se o meu eu: “não gosto de ninguém; significa não gostar de si 277
mesmo; maltrato, porque, no Brasil, é assim; significa que não quero mudar minha postura arraigada de também querer punir; quem pode manda e quem é inteligente
obedece”;
perpetua
a
hierarquia
procedimental, produzindo, assim, uma dificuldade da inserção social. Petrarca já dizia:“Traslaspica e laman qual muro hemesso”, ou seja, entre o querer e o poder, existe um abismo (Rigonatti, 2003). Portanto, não podemos inferir ao sentimento de justiça um sentimento embotado ou uma aversão à luta de impregná-la em todas as atitudes. O direito concreto deve ser encarado como um poder em que o Estado não só deve repelir
injustiça
como
também
deve
preparar
seus
profissionais para exercê-la. Não basta o juiz estar pronto e a polícia saber punir, é preciso mais do que isso. Estaria o devido processo legal vinculado apenas à depuração do sistema acusatório? Sim, e daria azo ao aparecimento de zonas de incertezas no que se refere a Constitucionalidade.....bem como certas práticas dos operadores do direito (DUCLERC, 2004, p.166)
Entende-se, invariavelmente, por meio de todos os textos lidos e estudados, que a preparação do sujeito que aplica a pena, a do que a recebe e a do que julga deve assegurar um Direito penal justo para as minorias, não 278
uma Bruzundanga de leis mal interpretadas e mal aplicadas por uma hierarquia quase patrimonial de valores superados, coercitivos, desmantelados. Deve-se ter a percepção do sujeito como um ser ativo, integrante, reformador de seus problemas, participante de linhas construtoras de uma vida digna tal qual a proposta da Constituição Brasileira de 1988. 4. Violência e Alteridade A mímesis está na constituição dos atributos humanos. Existem diversas variações de mímesis segundo René Girard. O mais comum é a mímesis aquisitiva ou de apropriação. Trata-se do desejo a partir do qual o ser humano imita o desejo de outro em busca de um mesmo objeto e, assim, inaugura-se uma rivalidade com essa pessoa pela posse do objeto desejado por ambos. Assim define a relação entre Mímesis e Violência James Alison: A violência atrelada à mímesis de apropriação torna frágil toda vida social humana, e foi assim durante o transcorrer do longuíssimo processo de hominização. Vemos aqui uma encruzilhada nesse processo, ainda em seu estágio humano inicial. Podemos imaginar um grupo que, devido à presença da mímesis entre seus membros - pessoas querendo o que o outro tem ou o que o outro é, e lutando por isso -, sofra uma crise aguda de desordem cuja virulência começa a corroer o próprio tecido
279
social. A violência endêmica se agrava entre os membros do grupo até que o grupo se restabelece, graças à resolução gerada pela mímesis conflituosa, a qual espontânea e arbitrariamente converge sua violência sobre uma vítima substituta (o bode expiatório), que, por ser incapaz de retaliar, não oferece ameaça alguma de ampliar ou dar continuidade à violência. A vítima é geralmente alguém que está à margem, um forasteiro, alguém portador de alguma espécie de deficiência física ou mesmo alguém que possua um destaque excessivo no grupo. A vítima é expulsa linchada ou sacrificada - não importando como, pois o mecanismo subjacente é o mesmo. Uma vez que o grupo espontânea e unanimemente escolheu a vítima, culpando-a pelo conflitos e infortúnios sofridos por ele, a expulsão da vítima produz o momento unânime de paz, que á a base de uma nova ordem social (ALISON, 2010).
Também contribui Girard (1998): Os primitivos procuram romper a simetria das represálias no nível da forma. Ao contrário de nós, eles percebem muito bem a repetição do idêntico, e tentam eliminá-lo por meio do diferente. Quanto aos modernos, eles não temem a reciprocidade violenta. É ela que estrutura todo castigo legal.
A condenação generalizada da homossexualidade que persiste nas sociedades contemporâneas, ainda muito influenciadas pela lei religiosa é, segundo Danièle HervieuLéger (2003), a principal resistência à visibilidade dessas famílias,
percebidas
como
atentatórias
ao
caráter 280
“sagrado”
adquirido
pela
“família”
nas
sociedades
modernas. Segundo Elisabeth Zambrano: Essa “sacralidade”, que toma como apoio a ordem natural das relações entre os sexos, torna “impensável” qualquer outra configuração de família que não seja a composta por pai-homem, mãe-mulher e filhos. Esse impositivo “divino” não está presente apenas nas religiões, encontra-se, também, em outras áreas do saber. A influência religiosa se expressa em três campos. No direito, temos o código napoleônico que mantém vivo, depois da Igreja, o caráter “sagrado” estabelecido pela “natureza” entre aliança e filiação, com a afirmação de que o pai é o marido da mãe. Para a psicanálise, a subjetivação do sujeito e sua humanização passam pela necessidade de elaboração do chamado complexo de Édipo, processo psíquico que exige a presença dos dois sexos e a obediência ao “Nome do Pai” (ZAMBRANO, 2006, p. 12).
As três áreas podem ser fundamentadas em rígido núcleo
metafísico,
mas
também
podem
ser
desconstruídas. No campo psicanalítico, o papel desse saber pode ser libertador quando passamos a pensar no âmbito do simbólico, abrindo o horizonte do “Não-Dito”. É a partir do Outro que o sujeito fala e deseja. Esse Outro, alteridade radical, que não é a mãe, o pai, ou qualquer semelhante, qualquer partner imaginário; marca o lugar da linguagem, que permite ao sujeito humano situar-se diante do sexo e das gerações.
Isto situa a via de 281
introdução do registro simbólico no psiquismo e por conseqüência, da castração. O Nome-do-Pai é justamente esse significante que no Outro, na alteridade, é o significante do Outro enquanto lugar da lei, do limite, onde o sujeito encontra sua delimitação, sua nomeação. Finalmente, cabe ressaltar que a questão do sujeito diante do Outro não se resume a esse Outro como lugar da lei. Na perspectiva mais radical, o Outro remete ao que está além de toda regulação possível. A libido organiza-se, regula-se, tomando o phallus como símbolo. No entanto, por ora ressalte-se aqui a dimensão do Outro que ultrapassa a referência fálica. A inscrição fálica articula o gozo às leis do significante, leis da linguagem, mas a noção de gozo Outro proposta por Lacan, aponta um gozo fora da linguagem, fora do sexo, fora da possibilidade de ser apreendido por representações.
Entretanto, é na
medida em que estamos todos dentro da referência fálica, referência de linguagem, que também, a partir dela, podemos sentir os efeitos de um mais além.
É essa
sinalização de um mais além do fálico que permite a Lacan sublinhar, em relação aos humanos, não propriamente a difundida dualidade dos sexos, mas uma outra dualidade, frente à qual o sujeito é dividido — a dualidade de gozos: gozo fálico e um gozo Outro, sempre visado. Ou seja, a compreensão da sexualidade deve pressupor um ser 282
humano dividido, falho, limitado e ao, mesmo tempo, livre para vivenciar sua corporeidade em sua historicidade. Com isso, pode existir na dimensão sexual e, por isso mesmo, em alteridade.
Conclusão Alessandro Barata (1999 apud Lopes) afirma em seu texto que há no sistema econômico atual uma rotulação de
indivíduos,
um
poder
penal
estigmatizante
que
administra a criminalidade, mas não há real combate ao crime e não há política social descriminalizante. Essa é a situação que encontramos na unidade penal de Mariana, onde o imputado tem como tratamento “o vagabundo, o ordinário, o criminoso”. Tratamento esse aliado à política de utilização de algemas constantemente em trato diário a fim de se evitar fugas entre a escola e a cela. Convém lembrar que o muro que deveria ser tomado por extrema necessidade, até o momento ainda está por concluir. Instiga o porquê de uma política criminalizadora dirigida apenas aos pobres e analfabetos. Essa é a população que lá está. Ocorreu negativa por parte do diretor de se conhecer todas as celas e todos os presidiários. Mas conclui-se que o Direito Penal, hoje institucionalizado, é apenas desigual. Não há reais direitos 283
humanos. Ele é utilizado pelas parcelas detentoras do poder
e
que
mantêm
interesses
antagônicos
na
coletividade, o que gera uma necessidade de controle social, de papeis de grupos sociais e na divisão de poder. O Direito Penal deveria ser adequado a uma operação mínima, entretanto, é utilizado na legalidade formal para suprir a irracionalidade. Isso é visível em todo Brasil, portanto Mariana também faz parte deste contexto. Percebe-se uma falsa ideia de igualdade jurídica que, na verdade, esconde a violenta desigualdade social. O que deveria existir era uma política criminal para os excluídos e esses, na verdade, são a clientela dos processos penais perversos de seleção criminal. Então, construir uma política descriminalizante se faz necessário. Deve-se caminhar para além de uma política punitiva.
Referências: ALISON,
James.
Fé
Além
do
Ressentimento.
Fragmentos católicos em voz gay. São Paulo: É realizações, 2010. FIORELLI, José Osmir; FIORELLE, Maria Rosa; OLIVÉ, Marcos Júlio Malhadas Junior. Psicologia Aplicada ao Direito. LTR, 2010. 284
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 4 d. Rio de Janeiro: Vozes, 2012. GIRARD, René. A violência e o sagrado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. GRECO, R. Curso de Direito Penal. Vol. 1. 14 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. GOFFMAN, E. Prisões,Manicômios e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 2010. IHERING, Rudolf Von. A Luta Pelo Direito. São Paulo: Martin Claret, 2007. ROUSSEAU, J. J. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2007. JEFFERSON, Barros Jorge. Direito Processual Penal. São Paulo: Fischer & Associados, 2006. OLIVEIRA, J. (org). Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. MYRA Y LOPES, Emilio. Manual da Psicologia Jurídica. Mestre Jou, 1967. LOPES, Luciano Santos. Injusto Penal. Belo Horizonte: Arraes. 2012; MESSA, Ana Flávia. Direito Penal. Para Aprender Direito. (col). São Paulo: Fischer & Associados, 2006. RIGONATTI, S. P (coord.); SERAFIM, A. P.; BARROS, e. L. (orgs.). Temas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica. 1ª ed. São Paulo: Vetor 2003. 285
TRINDADE, André Karan. A Teoria do Direito e de democracia de Luigi Ferrajoli: um breve balanço do “Seminário de Bréscia” e de discursão sobre a Principia luris Revista Brasileira de Estudos Políticos. n. 103, jul./dez. 2011, p. 111-137. Disponível em: . Acesso em: 07/04/2015.
286
REUNIÃO DE PROCESSOS E PRERROGATIVA DE FORO: ACERCA DE UMA CONTROVÉRSIA NO PROCESSO PENAL José Carlos Henriques Rodrigo Ferreira
1 2
Resumo: O presente paper intenta fazer uma análise da problemática instaurada pela reunião de processos, no âmbito do juízo criminal, quando ao menos um dos ocupantes do polo passivo da ação penal tenha prerrogativa de foro. A questão está em saber se, no caso de concorrerem, no polo passivo da ação penal, um ou mais sujeitos processuais, ao menos um deles com prerrogativa de foro, qual o procedimento a seguir. A discussão ganha foros de legitimidade, sobretudo, com a edição da súmula 704 do STF, segundo a qual “não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do coréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. Apurar criticamente os desdobramentos do conteúdo da referida súmula é o propósito que nos move para, ao final, concluir no sentido de a questão mantém-se problemática e merece, por isto mesmo, maior atenção da doutrina. Palavras-chave: Prerrogativa de foro. Processo penal. Controversia.
Ponto de partida para a compreensão do problema A jurisdição, definida em caráter superficial, apenas como a atividade decorrente do Poder/dever de dizer o direito no caso concreto, desempenhada pelo Estado,
Mestre em filosofia e direito, especialista em direito civil e processual civil, professor do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Itabirito e da Faculdade de Direito de Conselheiro Lafaiete. 2 Especialista em direito público, Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, professor do Curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Itabirito e da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana. 1
287
substituindo a vontade das partes e obrigando-as a submeter-se àquela solução posta, tem o seu exercício dividido entre os diversos órgãos do Poder Judiciário. As regras que definem a divisão do exercício da atividade
jurisdicional
são
chamadas
de
regras
de
competência e, em casos excepcionais, podem sofrer alteração, mediante o emprego de normas de modificação. Pois bem, em sendo assim, importa destacar que umas
das
regras
de
modificação
de
competência,
estabelecidas na nossa legislação processual penal, são aquelas que determinam a unidade de processo e julgamento, nos casos de infrações penais consideradas conexas ou que guardem relação de continência entre si, as quais estão explicitadas nos artigos 76 a 82 do Código de Processo Penal. Nestes casos, embora digam respeito, na situação concreta, a fatos ou a agentes criminosos, que poderiam ser processados e julgados separadamente, a lei, orientada por critérios prévios de conveniência, como o afastamento de
decisões
comodidade,
discrepantes para
um
e
incongruentes
melhor
e
desenvolvimento
pela da
produção probatória, estabeleceu que deveriam todos os autores e fatos ser processados e julgados, em um único feito. 288
Todavia, questão relevante e controversa surgiu a partir do momento em que se vislumbrou a possibilidade de duas ou mais autoridades, todas com foros privativos por prerrogativa de função definidos na Constituição Federal, concorrerem para a prática de uma mesma infração penal (caso de continência). Neste caso, os estudiosos do direito processual penal se dividem em dois grupos que ostentam posições contrapostas. Posicionam-se, de um lado, aqueles que entendem ser perfeitamente viável a solução da competência pela simples aplicação das normas ordinárias previstas no Código de Processo Penal, devendo prevalecer a jurisdição de maior graduação, caso sejam de diversas categorias. Este entendimento encontra guarida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que editou a Sumula 704 que dispõe que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. À vista do conteúdo da mencionada
súmula,
aduzem
os
defensores
deste
posicionamento que a mesma não faz qualquer distinção, aplicando-se a todo e qualquer caso de conexão e continência. Por outro lado, existe uma segunda corrente, também forte, que ostenta entendimento diametralmente 289
oposto, aduzindo que, nestes casos, ou seja, na hipótese de concurso de autoridades, ambos com foro privativo constitucional, haveria que se proceder à separação dos processos e julgamento. Os principais argumentos desta segunda corrente giram em torno de ser a competência constitucional obrigatória,
de
sob
natureza pena
de
absoluta nulidade,
e
observância
bem
como
ao
argumento de que a junção implicaria em ofensa ao Princípio do Juiz Natural e, também, que uma norma infraconstitucional – Código de Processo Penal – não poderia modificar competência estabelecida por norma constitucional. É nessa atmosfera controversa que se desenvolverá o
presente
estudo
que
tem
por
escopo,
após
o
aprofundamento de conceitos fundamentais das áreas Constitucional
e
Processual,
como
Jurisdição
e
Competência, além de Princípio do Juiz Natural e Supremacia
das
Normas
Constitucionais,
concluir
apontando qual seria a solução mais acertada para a contenda doutrinária, ora apresentada. 2. Jurisdição: o direito, concretamente, dito pelo Estado Nos primórdios da civilização humana, não havia um Estado forte e organizado, sendo certo que este 290
Estado, até então, ainda não detinha o monopólio da aplicação do Direito aos casos concretos. Naqueles tempos primórdios, inicialmente eram as próprias partes envolvidas que tutelavam seus direitos de forma que, caso um indivíduo de um grupo sofresse uma agressão aos seus direitos, deveria, por si só, mas geralmente com o envolvimento de seu grupo, aviar as providências
necessárias
para
o
fim
de
obrigar
o
agressor/infrator a suportar as consequências daquela violação. Eram os tempos da chamada vingança privada, nos quais vigia o velho brocardo do “olho por olho, dente por dente”, ou seja, a própria parte era quem deveria impor, pela força bruta, o seu interesse. Conforme ensinam Cintra, Grinover e Dinamarco3, uma outra forma possível de solução dos conflitos de interesses
naqueles
tempos
primitivos
seria
a
autocomposição, a qual se caracteriza pela disposição, por uma ou ambas as partes, de todo o seu interesse ou apenas de parte dele. Prosseguem os autores aduzindo que a autocomposição se divide em três espécies, sendo a desistência, a submissão ou a transação. A primeira se caracteriza pela renúncia à pretensão, entendida esta CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido Rangel, GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo, 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 27. 3
291
como a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio. A segunda espécie se caracteriza pela desistência da parte em relação à resistência antes oferecida à pretensão alheia. E, por fim, a transação se caracteriza pela presença de concessões recíprocas, de forma que cada uma das partes envolvidas abra mão de uma parcela de seu direito para o fim de atingir a pacificação. Todavia, alguns fatores começaram a influenciar uma mudança de posicionamento quanto à melhor forma de solução dos conflitos entre os indivíduos, sendo que um dos mais relevantes foram as flagrantes injustiças que, muitas vezes, resultavam de uma tutela de interesses alicerçada apenas na força. Ora, era fácil notar que quando o indivíduo que teve o seu direito ofendido é fraco, ou pertencente a um grupo mais fraco do que o do seu agressor, ele ficava privado da defesa de seus direitos, estando obrigado a se conformar com a lesão que lhe tivesse sido imposta, o que não era justo e não promovia a pacificação social. Então,
começou-se
a
pensar
na
solução
dos
conflitos de interesses por meio da intervenção de terceiros, desinteressados diretamente no conflito e, por isso, imparciais. Inicialmente, esta tarefa era exercida por pessoas que ostentavam um status de confiabilidade 292
diferenciado dos demais membros da comunidade. Era assim
que
os
próprios
indivíduos,
cujos
direitos
estivessem em conflito, elegiam árbitros, imparciais, para solucionar a questão. A escolha recaía, em regra, sobre os sacerdotes e os anciãos. Estes últimos decidiam com fundamento nos costumes e tradições locais, enquanto os sacerdotes se orientavam pela vontade dos Deuses. Historicamente, pois, surge o juiz antes do legislador 4. Mais
adiante,
fortalecimento
do
com
o
crescente
e
Estado,
o
qual,
determinado
em
gradativo
momento, reuniu forças para obrigar os cidadãos a respeitar as normas por ele impostas, este mesmo Estado começou a monopolizar a solução dos conflitos de interesses. Inicialmente sua intervenção ocorreu de forma tímida quando, no direito romano arcaico, as partes compareciam
espontaneamente
perante
o
pretor
e
prestavam o compromisso de aceitar aquilo que fosse decidido. Neste momento, o Estado ainda não decidia a lide, mas apenas participava da solução na medida em que era o pretor quem atribuía ao árbitro escolhido pelas partes o encargo de decidir o conflito de interesses. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido Rangel, GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo, 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 28. 4
293
Ilustrativamente, ensinam Cintra, Grinover e Dinamarco5, que os cidadãos em conflito compareciam perante o Pretor, comprometendo-se a aceitar aquilo que fosse decidido; e esse compromisso, necessário porque a mentalidade da época repudiava ainda qualquer ingerência do Estado (ou de quem quer que fosse) nos negócios de alguém contra a vontade do interessado, recebia o nome de litiscontestatio. Em seguida, escolhiam um árbitro de confiança, o qual recebia do Pretor o encargo de decidir a causa.
O passo seguinte foi dado no momento em que o Estado reuniu condições de impor aos conflitantes um árbitro escolhido por ele. Foi aí que surgiu a figura do legislador. Isto porque, neste momento em que o Estado reuniu forças para impor às partes o árbitro por ele escolhido,
surgiu
a
necessidade
de
uma
certa
uniformização na solução dos conflitos. Diante deste panorama, o Estado começou a criar regras preestabelecidas, de forma abstrata, para orientar os árbitros na solução das lides e facilitar a aceitação de tal solução por parte dos envolvidos, haja vista que a padronização de soluções afastava a sensação de injustiça e arbitrariedade.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido Rangel, GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo, 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 28. 5
294
O último estágio da evolução na solução de conflitos foi dado no momento em que o Estado, agora já bastante fortalecido e organizado, passou não só a monopolizar o direito de eleger um árbitro para solucionar os conflitos de interesses mas, ele próprio, por meio do pretor, aplicava a solução ao caso concreto. A essa atividade do Estado de apreciar os interesses em conflito, de forma imparcial, e, substituindo a vontade das partes, impor a solução para o caso concreto dá-se o nome de jurisdição. 3. Competência: repartição funcional do exercício da jurisdição A jurisdição, como se pode notar, consiste em uma parcela do Poder Soberano do Estado, qual seja o Poder de dizer o Direito no caso concreto. Assim, conforme dissertam Cintra, Grinover e Dinamarco6, por sua própria natureza, não comporta divisões, na medida em que seria inconcebível a ideia da existência de uma pluralidade de soberanias dentro de um mesmo Estado. Entretanto, embora a jurisdição seja una, não seria viável, do ponto de vista prático, o exercício de tal atividade por um único indivíduo, tendo surgido a CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido Rangel, GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo, 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 156. 6
295
necessidade de se proceder a uma distribuição de parcelas do seu exercício
entre os vários órgãos do Poder
Judiciário. Note-se que não estamos falando em dividir a jurisdição propriamente dita, esta continua una, o que se divide/distribui é o seu exercício entre vários órgãos diferentes do Poder Judiciário, para o fim de se otimizar e viabilizar a entrega da prestação jurisdicional nos casos concretos. Essa divisão de parcelas do exercício da Jurisdição estabelece limites de atuação para os diversos órgãos do Poder Judiciário, de forma que um determinado órgão jurisdicional
somente
poderá
exercer
tal
atividade,
substituindo a vontade das partes, de maneira imparcial, e impondo a solução legal ao caso concreto, dentro de limites que tenham sido previamente determinados. Nesse toar, a competência nada mais é do que a divisão, funcional, de parcelas do exercício da Jurisdição. A doutrina costuma referir-se à competência como sendo a medida da jurisdição. E esta medida é legalmente definida, sendo certo que a própria Constituição Federal e as leis de organização judiciária de cada Estado e da União é que definem a parcela de Jurisdição a ser conferida a seus juízes e tribunais.
296
4. Definição do Juízo Competente, em matéria penal Para a individualização do juízo competente para o julgamento de uma causa, alguns critérios devem ser observados. Num primeiro momento, há que se observar a natureza da infração penal praticada, haja vista a necessidade de esclarecer se a competência será da jurisdição comum ou de uma das jurisdições ditas especiais. As jurisdições especiais com competência criminal são as exercidas pelas Justiças Eleitoral e Militar. A primeira, ou seja, a Justiça Eleitoral, encontra guarida nos artigos 118 a 121 da Constituição da República, sendo que neste último artigo ficou relegada à lei complementar a tarefa de definir as competências de seus juízos e tribunais. Já a justiça militar, competente para o julgamento dos crimes militares, assim definidos em lei, também encontra amparo constitucional, sendo certo que o artigo 124 da Constituição estabelece que a lei definirá os limites de sua competência. Para além destas jurisdições especiais, têm-se as jurisdições tidas como comuns, sendo espécies tanto a Justiça Estadual como a Justiça Federal. Esta última, ou seja, a Justiça Federal, encontra suas competências 297
definidas nos artigos 108 e 109 da Constituição Federal. No
primeiro,
estão
previstas
as
competências
dos
Tribunais Regionais Federais, enquanto no último, as competências Todavia,
dos
neste
juízes
primeiro
federais de momento
de
primeiro
grau.
definição
de
competência, interessa mais o disposto no artigo 109, haja vista que as competências definidas para os Tribunais, na esfera federal, referem-se geralmente aos chamados foros por prerrogativa de função, objeto de estudo mais adiante. Sendo assim, conforme os dizeres constitucionais, aos juízes federais compete processar e julgar os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral; os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; as causas relativas a direitos humanos nas hipóteses de grave violação, casos em que o Procurador-Geral da República, com
a
finalidade
de
assegurar
o
cumprimento
de
obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em 298
qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal; os crimes contra a organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem
econômico-financeira;
os
"habeas-corpus",
em
matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição; os crimes cometidos a bordo de navios ou aeronaves, ressalvada a competência da Justiça Militar; os crimes de ingresso ou permanência irregular de estrangeiro; a disputa sobre direitos indígenas7. A competência da Justiça Comum Estadual, por seu turno, é a mais extensa, haja vista ser residual. Assim, verificando-se no caso concreto que aquela infração não é da competência de uma das justiças especializadas ou da Justiça Comum Federal, a competência será a Justiça Estadual. Por fim, ainda levando em consideração a natureza da infração penal, a Constituição definiu o Tribunal do Júri como o competente para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (CF/88, art. 5, XXXVIII).
7
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 1988.
299
Pois bem, todavia, para a definição do órgão jurisdicional competente para o julgamento da matéria não será bastante a observação da natureza da infração penal praticada, devendo-se atentar para as condições pessoais do autor do crime. Esta circunstância torna-se relevante nos casos em que o autor do fato criminoso desempenha funções de tamanha relevância para a sociedade e para o Estado que a Constituição ou a lei o confere a prerrogativa de ser processado e julgado originariamente por um órgão jurisdicional de maior graduação, colegiado, podendo ser um Tribunal comum ou Superior. São os casos de foro por prerrogativa de função. Em regra, os foros por prerrogativa de função estão previstos no texto da própria Constituição Federal, nos dispositivos em que a mesma define as competências dos Tribunais. Contudo, admite-se, em casos excepcionais, como o dos deputados estaduais, que as Constituições Estaduais estabeleçam tais prerrogativas. Neste ultimo caso, ou seja, de foro privativo definido exclusivamente em Constituição conflitar
com
Estadual,
este
competência
sucumbirá definida
na
sempre
que
Constituição
Federal, como no caso em que um Deputado Estadual cometer crime contra a vida, situação na qual prevalecerá a competência do Tribunal do Júri. Nesse sentido foi editada a súmula 721 do Supremo Tribunal Federal, com 300
o seguinte teor: a competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição estadual. Importa salientar, ainda, que no caso de haver conflito entre um foro privativo e um foro definido em razão da natureza da infração, ambos previstos na Constituição Federal, haverá de prevalecer o primeiro. Seria o caso de um juiz de direito que praticasse um crime doloso contra a vida. Pelo critério da natureza da infração a
Constituição
definiu
como
competente
para
o
julgamento dos crimes dolosos contra a vida o Tribunal do Júri,
enquanto
que
pelo
critério
ratione
personae
estabeleceu o Tribunal de Justiça como foro privativo por prerrogativa de função para julgar os juízes, então, neste caso, prevaleceria o foro por prerrogativa de função. Desta forma, a Constituição Federal, dispondo sobre as
competências
especificamente
no
originárias que
pertine
dos às
Tribunais, definições
de
prerrogativas de foro, define-as da seguinte forma: Compete aos Tribunais Regionais Federais processar e julgar, originariamente, os juízes federais da área de sua jurisdição, incluídos os da Justiça Militar e da Justiça do Trabalho, nos crimes comuns e de responsabilidade, e os membros do Ministério Público da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral (CF/88, art. 108, I, a). 301
Anteriormente, em seu art. 105, I, a, a Constituição define Competir ao Superior Tribunal de Justiça processar e
julgar,
originariamente,
nos
crimes
comuns,
os
Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais. Por fim, é no artigo 102 que está prevista a competência originária do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar, nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República e, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente. 302
Existem
ainda
outras
autoridades
que
têm
prerrogativa de foro definida na Constituição Federal, como os Prefeitos Municipais, que por força do disposto no artigo 29, X, serão julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado. É o caso também dos juízes e membros do Ministério Público que sempre serão julgados perante o Tribunal de Justiça do seu Estado, ressalvada apenas a competência da Justiça Eleitoral. 5. Concurso de Pessoas e Foro Privativo 5.1 Apresentando a controvérsia Não é difícil imaginar hipóteses em que uma autoridade,
com
foro
privativo,
pratique
crime
em
concurso com um terceiro, que não dispõe da mesma prerrogativa. Então, neste caso, restaria saber qual a solução jurídica correta. Ou seja, a indagação permeia a forma como proceder em relação ao processo e julgamento de cada um dos corréus. É que, conforme as normas do Código de Processo Penal, verificando-se as situações
definidas em lei,
tratando-se de conexão e continência, deverá haver unidade de processo e julgamento. Cuida-se de casos em que ocorreria a prorrogação de competência.
303
Entretanto,
sendo
o
foro
privativo
uma
circunstância excepcional, determinada em razão da relevância das funções desempenhadas por determinados sujeitos, estaria em conformidade com a Constituição da República a atração do cidadão comum para julgamento no foro privativo, ou o contrário, ou seja, a atração da autoridade
para
julgamento
no
Juízo
de
Primeira
Instância? Pois bem, em primeiro lugar importa salientar que, entendendo-se pela possibilidade da aplicação das regras de conexão e continência à situação hipotética trazida a exame, somente seria viável a atração para julgamento dos corréus
no
foro
estabelecido
constitucionalmente.
Fernando Capez, sobre o tema, leciona que a competência estabelecida pela CF exerce força atrativa sobre qualquer outra fixada em escala normativa diversa (Constituições estaduais e leis)8. Sendo assim, é exatamente este o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal em relação à matéria, tendo sua jurisprudência se firmado no sentido de que em caso de concurso de sujeitos em que um detiver prerrogativa de foro e o outro não, deverão prevalecer os
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 269. 8
304
critérios de modificação de competência por continência e conexão. Tanto o é, que o tribunal editou a súmula 704, cujo alcance é o foco do nosso estudo, dispondo a mesma que não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados. Isso posto, conforme o entendimento do Pretório Excelso, prossegue Capez aduzindo que, assim, quando somente um dos réus gozar de foro por prerrogativa de função, haverá a atração ao mesmo de todos os demais processos. Na hipótese de um dos agentes ter seu foro especial
fixado
diretamente
pela
CF
e
o
outro,
exclusivamente, pela Constituição estadual, os processos também deverão ser reunidos9. Nesse passo, a questão da força atrativa do foro privativo para o processo e julgamento do correu que não detém
prerrogativa
polêmicas
ou
de
discussão
foro na
não
demanda
doutrina
pátria,
maiores sendo
amplamente admitida.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 269. 9
305
5.2 Duas autoridades com foro privativo definido na Constituição da República A questão ganha relevo, contudo, nos casos em que o concurso se opera entre duas autoridades, ambas com foro privativo definido na Constituição Federal, todavia, em tribunais diferentes. Seria o exemplo de um Juiz de Direito concorrer com um Senador no cometimento de uma infração penal comum. Ora, o primeiro tem foro privativo no Tribunal de Justiça do seu Estado, enquanto o ultimo tem foro privativo no Supremo Tribunal Federal. A indagação pertinente é a seguinte: neste caso, tendo ambas as autoridades foros privativos definidos na Constituição Federal, deveriam ser aplicadas as regras ordinárias de conexão e continência ou a solução que se impõe seria a separação dos processos e julgamentos? Bem,
existe
uma
corrente
doutrinária
e
jurisprudencial que entende que o processo e julgamento deverá ser único, situação na qual haverá de prevalecer a jurisdição de maior graduação. É o entendimento que resulta da aplicação da súmula 704 do Supremo Tribunal Federal e das regras estabelecidas no Código de Processo Penal na medida em que, por força do disposto no seu artigo 78, inciso III, no concurso
entre
jurisdições
de
diversas
categorias,
predominará a de maior graduação. 306
Assim, como os foros privativos estabelecem a prerrogativa de determinadas pessoas serem processadas e julgadas originariamente nos tribunais, sejam ou não superiores, conforme o caso, certamente será necessário observar a qual tribunal compete julgar cada um dos corréus para o fim de se estabelecer o foro prevalente. No nosso exemplo, ou seja, no caso de concurso entre um Juiz de Direito e um Senador, no cometimento de crime comum, ambos seriam processados e julgados perante o Supremo Tribunal Federal, tribunal este mais graduado que os Tribunais de Justiça dos Estados. Os defensores desta primeira posição o fazem ao argumento de que a súmula 704 do Pretório Excelso não estabelece qualquer distinção, aplicando-se em todo e qualquer caso em que se verifique conexão e continência. Logo, aduzem ser a regra também aplicável nos casos em que concorrerem, para a prática de um mesmo crime, autoridades
com
foros
privativos
diversos,
ambos
constitucionalmente definidos. Outro argumento utilizado é o de que, cuidando-se de um mesmo crime, seria mais conveniente a unidade de julgamento, pelo óbvio motivo de se evitarem decisões conflitantes acerca de uma mesma matéria, bem como por conveniência na produção probatória. 307
Por outro lado, solução defendida por uma outra corrente doutrinária é a de que deverá haver a separação dos processos, haja vista que estando ambos os foros privativos definidos na Constituição Federal não haveria de prevalecer regra de modificação de competência, estabelecida esta na legislação ordinária. Neste
sentido,
Capez,
criticando
a
junção
de
processos, nestes casos, menciona em seu manual de Processo
Penal
que
essa
posição
jurisprudencial,
aparentemente firmada de modo irreversível, pode ser criticada pelo fato de que uma regra meramente processual, como é a da conexão e da continência, não deveria ter o condão de afastar o juiz natural fixado pela própria CF10. Há também que se atentar para o fato de que, cuidando-se de competências absolutas, intimamente relacionadas com o Princípio do Juiz Natural, tais regras são de observância obrigatória, cogente. Estranhamente, de um ponto de vista técnico, prevalece na jurisprudência pátria, contudo, o primeiro entendimento, ou seja, de que a sumula 704 do Supremo Tribunal Federal tem aplicação ampla e irrestrita aos casos de conexão e continência, inclusive aos casos em que ocorre o concurso de autoridades e que tenham, CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, fls. 270. 10
308
ambas,
foro
privativo
definido
na
Constituição,
em
tribunais diversos. 6. Incompetência Absoluta e Princípio do Juiz Natural Ocorre que as competências definidas em razão da pessoa (ratione personae) têm a finalidade de garantir àquelas autoridades liberdade no desempenho de suas relevantes funções, prevalecendo, assim, o interesse público na sua fixação. Por isso,
conforme salientado
acima, cuida-se de competências de natureza absoluta. Sobre as consequências da violação das regras de competência absoluta ou relativa, leciona Alexandre Freitas Câmara que a incompetência relativa admite prorrogação da competência, enquanto a incompetência absoluta não admite tal prorrogação. E prossegue o autor, afirmando que prorrogar competência é tornar competente um juízo originariamente incompetente.11 Desta forma, podemos concluir que a prorrogação de competência consiste em uma excepcional modificação da competência originária, sendo certo que aquele juízo, inicialmente incompetente, torna-se competente para a apreciação de determinada causa, em razão da aplicação de uma regra de modificação de competência. CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol. 1, 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2008, p. 98. 11
309
Nesse toar, há que se observar que os casos em que se permite a flexibilização de uma regra de incompetência absoluta,
mediante
sua
prorrogação
para
juízo
inicialmente incompetente, restringem-se às exceções previstas em normas de mesma hierarquia, ou seja, cuidando-se de foros definidos pela Constituição Federal, somente norma de mesma estatura poderia estabelecer exceções. Sobre o tema, Eugênio Pacelli leciona que Como se vê, o princípio do juiz natural, instituído ratione materiae e ratione personae, configura hipótese de competência absoluta, inafastável por vontade das partes processuais, revelando a natureza pública do interesse em disputa, somente se admitindo a sua prorrogação por oportunidade da aplicação de norma da mesma estatura, ou seja, de norma ou princípio igualmente constitucionais. 12
Nota-se
que
a
incompetência
absoluta
guarda
íntima relação com o princípio do Juiz Natural. Nesse contexto, para avaliar qual a solução mais acertada para a espécie, é necessário partirmos da premissa de que o nosso texto constitucional abarca este princípio. Ora, a Constituição da República, no seu artigo 5º, incisos XXXVII e LIII, estabelece que não haverá juízo ou tribunal
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 15ª ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2011. 12
310
de exceção, bem como que ninguém será processado nem sentenciado, senão pela autoridade competente. Pois bem, daí se infere que a própria Constituição veda expressamente o estabelecimento arbitrário de juízos ou tribunais para o fim de julgar um caso específico. Como corolário, podemos concluir seguramente que a Constituição
consagra
aquilo
que
Alexandre
Freitas
Câmara denomina como princípio do juízo constitucional13, ao explicar que uma das facetas do princípio do Juiz Natural, intimamente ligada ao juízo, e não à figura do juiz propriamente
dita,
jurisdicionados
o
é
a
de
que
julgamento
é
garantido
perante
juízo
aos cuja
competência seja constitucionalmente preestabelecida, havendo vedação à criação de tribunais, posteriormente ao fato, para seu julgamento específico, bem como à designação arbitrária de um julgador específico para tal caso. Conclui
o
autor
referido
que
a
competência
constitucional a ser observada em um processo é aquela que estava estabelecida na Lei Maior na data em que
CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol. 1, 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2008. 13
311
ocorreu o fato que será submetido ao Judiciário.14 Cuida-se de verdadeira garantia fundamental do cidadão. Consectária deste raciocínio é a conclusão de que, então, nos casos em que a própria Constituição elegeu expressamente um foro privativo para aquele que exerce uma relevante função no Estado brasileiro, como nos casos dos parlamentares federais, entre outros tantos exemplos, estes foros são a materialização do seu juízo natural para a causa, constituindo-se a sua estrita observância uma garantia fundamental daquele cidadão. A conclusão a que se pode chegar é a de que a definição
de
competências,
notadamente
na
esfera
constitucional, e o princípio do Juiz Natural guardam entre si íntima relação, haja vista que a ofensa às competências assim previamente definidas implica em inegável ofensa àquele constitucional princípio/garantia, gerando nulidades absolutas e, portanto, insanáveis. Por tudo, seria inconcebível a ideia da possibilidade de flexibilização do juízo eleito originariamente pela Constituição Federal para o julgamento de determinadas pessoas, para elas estatuindo prerrogativas de foro, em casos nos quais a própria Constituição não excepcionou. CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol. 1, 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2008, p. 44. 14
312
7. Supremacia Constitucional Conforme
salientado,
firmes
nas
idéias
de
inviolabilidade da competência constitucional, de caráter absoluto, bem como na de direito do jurisdicionado a ser julgado por seu Juiz Natural já se demonstra de forma inequívoca a impossibilidade de se unir em um mesmo processo e julgamento autoridades cujos foros privativos foram definidos pela própria Constituição, impondo-se a separação dos processos. Mas
não
é
somente
o
caráter
absoluto
da
competência ratione personae e o Princípio do Juiz Natural que conduzem a tal conclusão. Sendo sabedores de que as normas de conexão e continência são causas de modificação de competência há que se aquilatar se nos casos de concurso de agentes com foro privativo por prerrogativa de função definidos, ambos na Constituição, mas em tribunais diversos, seria viável a modificação
desta
competência
constitucionalmente
estabelecida para o fim de se atender a circunstâncias de conveniência (unidade de processo e julgamento ou em razão da maior facilidade na produção da prova, bem como para se evitarem decisões contraditórias), com fundamento em normas infraconstitucionais, haja vista a existência de hierarquia entre tais normas. 313
O nosso ordenamento jurídico, conforme salientado, é organizado de forma hierarquizada, sendo que a Constituição
Federal
encontra-se
no
vértice
do
ordenamento, sendo o diploma que fundamenta a ordem jurídica nacional, conferindo validade a todas as outras normas, e que espraia seus princípios e fundamentos por todo o ordenamento. Ora, há muito que se difunde a ideia de que a Constituição, contrariamente ao que pensava Ferdinand Lassale, tem força normativa, não se constituindo em mera carta de boas intenções. Suas normas são de observância obrigatória, às quais se deve conferir, o quanto
mais
concretização.
se É
puder, fato
efetividade,
que
há
atualização
regras
e
e
princípios
constitucionais e que aquelas se distinguem destes pela maior ou menor densidade normativa. Enquanto as regras seriam dotadas de maior grau de densidade, com maior definição fática de seu conteúdo, portanto, ou princípios apontariam, com menor grau de densidade normativa, para direções otimizantes de compreensão do direito. Assim, quanto às regras ou se cumprem ou se descumprem, de uma só vez, podendo, certamente, serem medidas
as
consequências
do
maior
ou
menor
afastamento do que, pela regra, restou estabelecido. De 314
outro lado, os princípios compareceriam como ordens de otimização, podendo ser cumpridos em graus diversos. Contudo,
regras
Constituição,
e
princípios
enquanto
propriamente
ditas,
superioridade
no
se
estabelecidos
normas colocam
ordenamento,
na
constitucionais, em
posição
de
parte
do
fazendo
paradigma constitucional de controle da validade das normas e atos normativos infraconstitucionais. Sabido que as normas constitucionais definidoras de competência, são regras, dotadas, então, de densidade normativa pronunciada, não havendo possibilidades de desvios hermenêuticos, sob pena de se
instituir o
interprete como figura postada acima do legislador maior, o Poder Constituinte. Nem
mesmo
o
intérprete
mor,
guardião
da
Constituição, no nosso modelo o STF, poderia contrariar, em decisões, regras específicas e determinadas em seu sentido, assim definidas pela normação constitucional. Talvez, alegando ofensa a princípios, em casos de comprovado vilipêndio destes, poderia o sentido de uma regra constitucional ver-se reconstruído, adotando-se uma direção mais consentânea com a otimização pretendida pelos princípios. No entanto, no caso em discussão, firmada a competência, especificamente, na norma constitucional, 315
como regra e, não havendo, na hipótese, ofensa a princípio constitucional, a regra haverá de ser aplicada tal como estabelecida. Aliás, no caso da fixação da competência, com atribuição de foro
privativo, como consta da
Constituição, pretendeu o legislador constituinte firmar a garantia dos direitos a quem exerça funções que devam ser protegidas. Neste sentido, de fato, segundo nos parece acertado, constitui direito individual daquele que goza de foro próprio o ver-se processado e julgado, apenas neste foro constitucionalmente competente. O intuito da regra é proteger o exercício da função, que não seria ou poderia não ser desempenhada a contento, em detrimento do interesse público. A função exige, em seu exercício, o estabelecimento de prerrogativas de proteção de seu próprio atuar, não da pessoa que atua. Obviamente, nestes casos, em que se definem as competências na Constituição, estabelece-se um direito público constitucional subjetivo, que não pode ser derrogado por nenhuma norma infraconstitucional. Em favor desta posição milita, certamente, um princípio hermenêutico amplamente conhecido: o da supremacia das normas constitucionais. De fato, se o constitucionalismo se firmou como técnica de limitação do poder do Estado, ao definir seus contornos, é certo que as 316
normas constitucionais, integrantes da Lei Maior, devem se postar acima dos demais regramentos, afastando-os em casos de incompatibilidades formais e materiais. Aliás, este o fundamento do necessário controle de validade
das
normas
infraconstitucionais
frente
ao
paradigma traçado pela Constituição. Enfim, uma regra infraconstitucional como, no caso, aquela que define competência, não poderia se sobrepor a uma norma constitucional que tenha já definido a competência, isto que tenha atribuído no arcabouço do Estado a que órgãos caberia a parcela de poder suficiente para processar e julgar. Por tudo, uma norma infraconstitucional definidora de
competência
somente
poderia
prevalecer
no
ordenamento jurídico frente a uma outra regra de mesma natureza, pela adoção de outros critérios solucionadores dos conflitos normativos. Mas, no caso de haver, em relação à mesma regra, conteúdo normativo de definição constitucional, obviamente, este deveria prevalecer, sob pena de atribuirmos, erroneamente, maior poder ao legislador
ordinário
e
não
ao
exercício
do
Poder
Constituinte, originário ou derivado reformador. Eis
porque,
concluímos,
as
competências
estabelecidas na Constituição devem ser observadas, sob pena de serem violados os princípios garantidores do 317
processo e atingido o direito daquele que tenha estatuída, em razão da função que exerça, uma prerrogativa de foro. Não nos parece que a edição da súmula 704, pelo STF, possa encerrar o debate sobre a questão. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: 1988. BRASIL. Código de Processo Penal. Brasília, DF: 1941. CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, vol. 1, 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2008. CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido Rangel, GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo, 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição: (Die normative Kraft der Verfassung). Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal, 15ª ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2011. SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil: Processo de Conhecimento, vol. I, 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 318
319
ENSAIOS
320
A EVOLUÇÃO DA PENA E MOMENTOS FILOSÓFICOS René Dentz1 Alessandra Sayonária2
Resumo: Propõe-se uma análise da evolução histórica das penas e, ao mesmo tempo da responsabilização do sujeito. Quando alguém cometia algum crime ficava a mercê, dos poderes dos soberanos, que puniam como bem entendiam, sem qualquer tipo de proporcionalidade. Diante disso, surge a função do psicanalista que, poderia servir de apoio, orientar, auxiliar o adolescente no cumprimento da medida socioeducativa. Pois, o psicanalista dá voz ao sujeito. Ele induz, convence, dá liberdade para que o sujeito fale sobre seu ato e “aceite” responsabilizar-se por ele. A psicanálise produz um sujeito entre isso que disse e o queria dizer (não dito), acessando o inconsciente do mesmo. Para o Direito é suficiente uma resposta pautada na pedagogia implícita às diretrizes legais. Sabe-se, porém, que essa resposta jurídica de ordem socioeducativa não garante por si só uma mudança subjetiva. A lei é um Outro que impõe limites, mas é preciso que alguém, nesse processo de execução, implique o infrator em seu ato. Palavras-chave: Pena; Inconsciente; Interdição.
Introdução No decorrer da evolução das penas, surgiram teorias que buscavam explicar as finalidades e características das mesmas, através de comportamentos sociais e de acordo com as organizações do estado de cada época. São três as teorias: Teoria absoluta ou retributiva, preventiva ou utilitarista e, mista ou eclética. Professor Titular da UNIPAC/Mariana; Professor do IBHES-Belo Horizonte; Professor do SEB Global Alphaville; Psicanalista; Membro do International Institute for Hermeneutics/Freiburg Universität-Alemanha. 2 Bacharel em Direito pelo IBHES/Facemg-Belo Horizonte. 1
321
A
Teoria
Absoluta
tinha
como
característica
principal punir o agente pelo fato do mesmo ter cometido crime. Retribuía-se com o mal o mal causado, por isso o nome retributiva. A pena era uma forma de retribuição ao criminoso pela ação ilícita realizada. 2. A visão utilitarista da pena
A Teoria Preventiva ou Utilitarista, como o próprio nome diz, objetiva prevenir novos delitos, ou seja, impedir a reincidência em novos crimes. Romeu Falconi, afirma que, na Teoria Utilitária, a pena deve ter uma função. Segundo o mesmo, essa teoria se caracteriza pela Prevenção Geral e Prevenção Especial. Afirma Falconi (2002, p. 249): Os positivistas raciocinam diferentemente em relação à pena e suas conseqüências praticas. Essa Escola positiva as teorias “relativas”, e entende que a pena deve ter finalidade “UTILITARIA”. Assim, deve ela não-somente ter por escopo a punição, mas também recuperar o delinqüente para o convívio social. (...). A pena deverá servir ademais, como “prevenção”. Essa “prevenção” poderá ser “geral”, que é aquela que reflete sobre os demais elementos da sociedade, servindo de “intimidação” para aqueles que, porventura, pretendam praticar qualquer conduta delituosa. A prevenção “especial”, de sua parte, reflete diretamente sobre a pessoa do criminoso. Trata-se aqui de
322
demonstrar ao criminoso que, se errou, o Estado punirá, visando, assim, à sua “ressocialização.
Desta forma, o cumprimento de uma pena por um condenado, tem como premissa a prevenção de novos delitos e a utilidade de tal pena. Sobre o princípio da Utilidade, Jeremy Bentham (1989, p. 04): Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segunda a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência a promover ou a comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo.
A Teoria do Utilitarismo visa a felicidade ao maior numero de pessoas envolvidas. Tem como lógica a comparação ao que causa dor e prazeres, ou seja, tudo aquilo que traz prazer é bom e, o que causa dor é mau. Afirma Bentham (1989, p. 03): A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a
323
norma que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia das causas e dos efeitos.
Quanto a Teoria Mista ou Eclética, essa unifica as características
mais
importantes
das
duas
teorias
anteriores. Para essa teoria, a pena é uma forma de punição á aquele que cometeu crime pelo fato do mesmo ter desrespeitado determinações da lei. E, é também uma forma de prevenir a ocorrência de novos delitos. 3. Vigiar e Punir – Michael Foucault
Michael Foucault foi um pensador e filósofo francês e importante autor de textos e documentos nos meios sociais, filosófico e jurídico. Sua obra Vigiar e Punir é um amplo estudo sobre punições na idade moderna. Disserta sobre a forma de julgar do poder, observando os mecanismos punitivos e repressivos usados naquela época. Foucault demonstrou como eram as formas de punições típicas que perduraram até o início do século XVIII,
onde
o
sistema
de
governo
monárquico
predominava. As penas aplicadas aos condenados eram
324
desumanas, marcadas pela tortura de forma brutal aos corpos dos mesmos. As penas cruéis eram aplicadas para retribuir o mal causado, e forma de manifestação de poder por parte dos reis sobre os corpos dos condenados. Alguns exemplos dessas
penas
eram
o
enforcamento,
mutilações
de
cabeças, facadas no peito, dentre tantas outras formas de torturas. Segundo Foucault, o corpo do condenado se tornava propriedade do rei. Os suplícios aconteciam em locais públicos, com a intenção de provocar horror e medo no povo. Foi então que, o “feitiço começou a voltar contra o feiticeiro”. A população já revoltada com tanta crueldade, se voltava contra a pessoa do soberano e, as vezes, tentavam linchar o carrasco para salvar o condenado que, se demonstrando arrependido suportando com paciência e humildade a todas as torturas. Em meados do século XVIII, essa forma punitiva dominante passou por mudanças. As penas passaram a serem aplicadas mediante a proporcionalidade entre os crimes, vez que se fortaleceu o movimento de reforma humanista do direito penal. Foucault preconiza: “É preciso punir exatamente para impedir”. E assim, ele apresenta seis regras para o poder de punir: 325
Regra da quantidade mínima: Um crime é cometido porque traz vantagens. Se à idéia do crime fosse ligada a idéia de uma desvantagem um pouco maior, ele deixaria de ser desejável. Regra da idealidade suficiente: Se o motivo de um crime é a vantagem que se representa com ele, a eficácia da pena está na desvantagem que se espera dela. O que ocasiona a “pena” na essência da punição não é a sensação do sofrimento, mas a idéia de uma dor, de um desprazer, de um inconveniente — a “pena” da idéia da “pena”. A punição não precisa portanto utilizar o corpo, mas a representação. Ou antes, se ela tem que utilizar o corpo, isto o será na medida em que ele não é tanto o sujeito de um sofrimento, quanto o objeto de uma representação: a lembrança de uma dor pode impedir a reincidência, do mesmo modo que o espetáculo, mesmo artificial, de uma pena física pode prevenir o contágio do crime. Mas não é a dor em si que será instrumento da técnica punitiva. Portanto, de nada adianta fazer ostentação dos patíbulos, por tempo o mais prolongado possível, e exceto nos casos em que se trate de suscitar uma representação eficaz. Eliminação do corpo como sujeito da pena, mas não forçosamente como elemento num espetáculo. A recusa aos suplícios que, no limiar da teoria, só encontrara uma formulação lírica, encontra aqui a possibilidade de se articular racionalmente. É a representação da pena que deve ser maximizada, e não sua realidade corpórea. Regra dos efeitos laterais: A pena deve ter efeitos mais intensos naqueles que não cometeram a falta; em suma, se pudéssemos ter certeza de que o culpado não poderia recomeçar, bastaria convencer os outros de que ele fora punido. Intensificação centrífuga dos efeitos que conduz ao paradoxo
326
de que, no cálculo das penas, o elemento menos interessante ainda é o culpado (exceto se é passível de reincidência). Esse paradoxo Beccaria ilustrou no castigo que propunha no lugar da pena de morte: escravidão perpétua. Pena fisicamente mais cruel que a morte? Absolutamente, dizia ele: pois a dor da escravidão, para o condenado, está dividida em tantas parcelas quantos instantes de vida lhe restam; pena indefinidamente divisível, pena eleática, muito menos severa que o castigo capital, que logo se equipara ao suplício. Em compensação, para os que vêem ou se representam esses escravos, o sofrimento que suportam se resume numa só idéia; todos os instantes da escravidão se contraem numa representação que se torna então mais assustadora que a idéia da morte. É a pena economicamente ideal: é mínima para o que a sofre (e que, reduzido à escravidão, não poderá reincidir) e máxima para os que a imaginam. Entre as penas e na maneira de aplicá-las em proporção com os delitos, devemos escolher os meios que causarão no espírito do povo a impressão mais eficaz e mais durável, e ao mesmo tempo a menos cruel sobre o corpo do culpado. Regra da certeza perfeita: É preciso que, à idéia de cada crime e das vantagens que se esperam dele, esteja associada a idéia de um determinado castigo, com as desvantagens precisas que dele resultam; é preciso que, de um a outro, o laço seja considerado necessário e nada possa rompê-lo. Esse elemento geral de certeza que deve dar eficácia ao sistema punitivo implica num certo número de medidas precisas. Que as leis que definem os crimes e prescrevem as penas sejam perfeitamente claras, “a fim de que cada membro da sociedade possa distinguir as ações criminosas das ações virtuosas”. Que essas leis sejam publicadas, e cada qual possa ter acesso a elas; que se acabem as tradições orais e os
327
costumes, mas se elabore uma legislação escrita, que seja “o monumento estável do pacto social”, que se imprimam textos para conhecimento de todos: “Só a imprensa pode tornar todo o público e não alguns particulares depositários do código sagrado das leis”. Que o monarca renuncie a seu direito de misericórdia, para que a força que está presente na idéia da pena não seja atenuada pela esperança dessa intervenção: Se deixamos ver aos homens que o crime pode ser perdoado e que o castigo não é sua continuação necessária, nutrimos neles a esperança da impunidade... que as leis sejam inexoráveis, os executores inflexíveis. E principalmente que nenhum crime cometido escape ao olhar dos que têm que fazer justiça; nada torna mais frágil o instrumento das leis que a esperança de impunidade; como se poderia estabelecer no espírito dos jurisdicionados um laço estreito entre um delito e uma pena, se viesse afetá-lo um certo coeficiente de improbabilidade? Não seria preciso tornar a pena tanto mais temível por sua violência quanto ela deixa menos a temer por sua pouca certeza? Mais que imitar assim o antigo sistema e ser “mais severo, é preciso ser mais vigilante”. Daí a idéia de que o instrumento de justiça seja acompanhado por um órgão de vigilância que lhe seja diretamente ordenado, e permita impedir os crimes, ou, se não cometidos, prender seus autores; polícia e justiça devem andar juntas como duas ações complementares de um mesmo processo — a polícia assegurando “a ação da sociedade sobre cada indivíduo”, a justiça, “os direitos dos indivíduos contra a sociedade; assim cada crime virá à luz do dia, e será punido com toda certeza. Mas é preciso além disso que os processos não fiquem secretos, que sejam conhecidas por todos as razões pelas quais um acusado foi condenado ou absolvido, e que cada um possa reconhecer as razões de punir:
328
Que o magistrado pronuncie em alta voz sua opinião, que seja obrigado a reproduzir em seu julgamento o texto da lei que condena o culpado... que os processos que se ocultam misteriosamente na escuridão dos cartórios sejam abertos a todos os cidadãos que se interessam pelo destino dos condenados. Regra da verdade comum: Sob esse princípio de grande banalidade esconde-se uma transformação de importância. O antigo sistema das provas legais, o uso da tortura, a extorsão da confissão, a utilização do suplício, do corpo e do espetáculo para a reprodução da verdade haviam durante muito tempo isolado a prática penal das formas comuns da demonstração: as meias-provas faziam meiasverdades e meios-culpados, frases arrancadas pelo sofrimento tinham valor de autentificação, uma presunção acarretava um grau de pena. Sistema cuja heterogeneidade em relação ao regime ordinário da prova só constituiu realmente um escândalo no dia em que o poder de punir teve necessidade, para sua própria economia, de um clima de certeza irrefutável. Como ligar de maneira absoluta no espírito dos homens a idéia do crime e a do castigo, se a realidade do castigo não acompanha, em todos os casos, a realidade do delito? Estabelecer esta última, com toda evidência, e de acordo com meios válidos para todos, torna-se uma tarefa primeira. A verificação do crime deve obedecer aos critérios gerais de qualquer verdade. O julgamento judiciário, nos argumentos que utiliza, nas provas que traz, deve ser homogêneo ao julgamento puro e simples. Abandono, então, das provas legais; rejeição da tortura, necessidade de uma demonstração completa para fazer uma verdade justa, retirada de qualquer correlação entre os graus da suspeita e os da pena. Como uma verdade matemática, a verdade do crime só poderá ser admitida uma vez inteiramente comprovada. Segue-se que, até à
329
demonstração final de seu crime, o acusado deve ser reputado inocente; e que, para fazer a demonstração, o juiz deve usar não formas rituais, mas instrumentos comuns, essa razão de todo mundo, que é também a dos filósofos e cientistas: Em teoria, considero o magistrado como um filósofo que se propõe a descobrir uma verdade interessante... Sua sagacidade o fará compreender todas as circunstâncias e relações, aproximar ou separar o que deve sêlo para julgar sadiamente. O inquérito, exercício da razão comum, despoja-se do antigo modelo inquisitorial para acolher o outro muito mais flexível (e duplamente reconhecido pela ciência e o senso comum) da pesquisa empírica. O juiz será como um “piloto que navega entre os rochedos”: Quais serão as provas ou de que indícios poder-nos-emos contentar? É o que nem eu nem ninguém ainda ousou determinar em geral; estando as circunstâncias sujeitas a variar ao infinito, devendo as provas e os indícios se deduzir dessas circunstâncias, é necessário que os indícios e as provas mais claros variem proporcionalmente. Agora a prática penal vaise encontrar submetida a um regime comum da verdade, ou antes a um regime complexo em que se misturam para formar a “íntima convicção” do juiz elementos heterogêneos de demonstração científica, de evidências sensíveis e de senso comum. A justiça penal, se conserva formas que garantem sua eqüidade, pode-se abrir agora às verdades de todos os ventos, desde que sejam evidentes, bem estabelecidas, aceitáveis por todos. O ritual judiciário não é mais em si mesmo formador de uma verdade partilhada. É recolocado no campo de referência das provas comuns. Estabelece-se então, com a ultiplicidade dos discursos científicos, uma relação difícil e infinita, que a justiça penal hoje ainda não está apta a controlar. O senhor de justiça não é mais senhor de sua verdade.
330
Regra da especificação ideal: Para que a semiótica penal recubra bem todo o campo das ilegalidades que se quer reduzir, todas as infrações têm que ser qualificadas; têm que ser classificadas e reunidas em espécies que não deixem escapar nenhuma ilegalidade. É então necessário um código, e que seja suficientemente preciso para que cada tipo de infração possa estar claramente presente nele. A esperança da impunidade não pode se precipitar no silêncio da lei. É necessário um código exaustivo e explícito, que defina os crimes, fixando as penas. Mas o mesmo imperativo de cobertura integral pelo efeitos-sinais da punição obriga a ir mais longe. A idéia de um mesmo castigo não tem a mesma força para todo mundo; a multa não é temível para o rico, nem a infâmia a quem já está exposto. A nocividade de um delito e seu valor de indução não são os mesmos, de acordo com ostatus do infrator; o crime de um nobre é mais nocivo para a sociedade que o de um homem do povo. Enfim, já que o castigo quer impedir a reincidência, ele tem que levar bem em conta o que é o criminoso em sua natureza profunda, o grau presumível de sua maldade, a qualidade intrínseca de sua vontade: De dois homens que cometeram o mesmo crime, em que proporção é menos culpado aquele que mal tinha o necessário com relação àquele a quem sobrava o supérfluo? De dois perjuros, em que medida é mais criminoso aquele em que se procurou, desde a infância, imprimir sentimentos de honra com relação àquele que, abandonado à natureza, nunca recebeu educação? Vemos aí ao mesmo tempo a necessidade de uma classificação paralela dos crimes e dos castigos e a necessidade de uma individualização das penas, em conformidade com as características singulares de cada criminoso. Essa individualização vai representar um peso muito grande em toda a história do direito penal moderno; aí está sua fundamentação; sem dúvida em termos de
331
teoria do direito e do acordo com as exigências da prática cotidiana, ela está em oposição radical com o princípio da codificação; mas do ponto de vista de uma economia do poder de punir, e das técnicas através das quais se pretende pôr em circulação, em todo o corpo social, sinais de punição exatamente ajustados, sem excessos nem lacunas, sem “gasto” inútil de poder mas sem timidez, vê-se bem que a codificação do sistema delitoscastigos e a modulação do par criminosopunição vão a par e se chamam um ao outro. A individualização aparece como o objetivo derradeiro de um código bem adaptado”.
Diante de tantos castigos existentes, a prisão passa a ser mais uma das penas a serem aplicadas. A prisão era a forma de manter o acusado preso até o julgamento. Pouco tempo depois, a prisão se tornou a principal forma de punição. Foucalt afirma: De maneira que se eu traí meu país, sou preso; se matei meu pai, sou preso; todos delitos imagináveis são punidos da maneira mais uniforme. Tenho a impressão de ver um médico que, para todas as doenças, tem o mesmo remédio.
Assim, surgiu o Panóptico. A idéia dessa prisão modelo foi do filósofo Jeremy Bentham. Tratava-se de um edifício em forma de anel, com pequenas selas de janelas de dentro para fora, com ângulos abstratos de vigia e, uma torre no centro. Com isso, os presos ficavam com a 332
sensação de estarem sendo vigiados mesmo quando ninguém está vendo, obrigado a fazer o que é correto e, a seguir as normas. Para Foucault, a prisão deveria ser genérica, ou seja, igual para todos. Acreditava que, a solidão trazia a reflexão; o trabalho junto com o isolamento é frutífero, ajuda na transformação. De acordo com o autor, o poder de punir deveria ser de caráter preventivo, utilitário e corretivo. Sendo assim, Michael Foucault, através de sua obra Vigiar e Punir, demonstra como foi o processo de evolução da condenação dos acusados, onde as penas cruéis de tortura e suplícios em público perdem lugar para a prisão, buscando a correção dos criminosos, através de medidas humanitárias e utilitárias.
4. A Pena e a Psicanálise
O Estatuto da Criança e do Adolescente junto com a Constituição Federal de 1.988 preveêm que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos e que, a estes são reservados a Proteção integral e a Prioridade Absoluta, por estarem em fase de desenvolvimento, merecendo assim, 333
maior cuidado e atenção mas, sem deixar de punir caso cometam algum tipo de infração. Para a Psicanálise a responsabilização pelos atos praticados não depende da idade. Os jovens perante a psicanálise devem ser vistos de forma Jurídica e Psíquica pois, a lei que garante seus direitos é a mesma que prevê a sua sujeição, o que pode causar conflitos e até mesmo o cometimento de crimes. Não há por completo um sujeito dotado de todo conhecimento, um sujeito todo consciente. O sujeito do direito consciente não se confunde com o sujeito da psicanálise,
aquele
que
do
qual
nada
se
sabe
(inconsciente) e nada se quer saber. Cyro Marcos da silva sustenta: Somos todos efeitos de um Outro que nos banhou com palavras. Somos efeito de palavra: carne, pêlo, osso e sangue alienados na linguagem, subvertidos pela linguagem, súditos, sempre impossibilitados, pela própria palavra, de atingir a essência. Para nos dar vida como sujeito da fala, a palavra cobra o preço de mortificar o ser, a tão desejada essência.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (p. 43) afirma: Em psicanálise, o sujeito (diferente, portanto, do sujeito de direitos, do direito), vai aparecer dependente da cadeia de significantes que se inscreve no registro do simbólico, o qual inaugura o que é, por aqui, note-se bem, não está fora da estrutura (como o do direito), mas
334
dentro dela; e é matriz de enunciação, não de enunciado. Enunciar é manifestar, falar; e a pulsão é o caminho, embora desconheça por completo a verdade da qual é portadora.
Alexandre aduz que, o estado controla, ou pelo menos tenta controlar, as possibilidades de enunciação da verdade, de forma neutra e objetiva, através do senso comum,
assim,
censurando
a
construção
de
uma
democracia do saber. Warat afirma: “A meu juízo estamos diante de uma racionalidade mitológica que legitima politicamente uma doxa dissimulada como episteme”. A ciência do direito tem a objetividade como fachada, onde as crenças jurídicas mais significativas são de um legislador racional, preciso, completo, sem lacunas, que protege igualmente os cidadãos, no qual o julgamento é neutro e, no caso do direito penal, que se busca a verdade real (Cunha, p.118). Warat assevera: quando um juiz articula de uma forma determinada os elementos do delito e exclui outras possiblidades, está decidindo, sob uma fachada de objetividade, se o indivíduo entra no âmbito pessoal de validez do delito.
Os discursos jurídicos incompreensíveis atrai o autor jurídico afim de ser reconhecido pelo “senso comum teórico” dos demais juristas, por ser aquele que maneja habitualmente o raciocínio jurídico tido como uniforme, 335
completo e único mas, se analisado de forma detalhada, não se sustentará. Ao se mudarem ou trocarem as palavras de uma determinada
decisão,
através
do
princípio
da
interpretação, os resultados se modificam, por meio dos efeitos dissimuladores. Paul abertamente
Feyerabend, o
método
filósofo
da
científico,
ciência, afirmando
critica que
metodologias são incapazes de orientar adequadamente as atividades científicas e que, as regras metodológicas devem ser violadas. Silva defende que os juízes também podem se enganar. Que os juízes não são dotados de sabedoria absoluta ao ponto de nunca proferir uma decisão errada, equivocada. Afirma: Então, o juiz pensa existir porque julga. Mas, julgar implica pensar. Pensar faz arriscar, enganar-se. Enganar-se abala certezas. Certezas abaladas, até então são protetoras, trazem sofrimentos. Começa, agora, a aparecer um juiz não mais apenas como aquele que julga e pensa, mas como sujeito do engano, da certeza abalada, do sofrimento.
A decisão do magistrado precisa ser fundamentada desde a teoria que originou tal procedimento, para que 336
não ocorra deduções probatórias acerca do fato a ser punido. Então, para que o livre convencimento do juiz se adeque as questões constitucionais e democráticas das leis, a fundamentação do mesmo deverá partir da teoria do delito, analisando a conduta típica, depois as provas e, por último, o tipo penal. De acordo com a psicanálise, um juiz nunca chegará a verdade real de um processo, pelo mesmo ser inefável. Tudo aquilo produzido desde a denuncia ou queixa e apurados no decorrer do processo, será de competência de um juiz que, proferirá sua decisão optando por uma das hipóteses possíveis. Um julgador ao analisar as várias provas produzidas dentro de um processo é fundamental para o estado democrático de direito mas, a apreensão semântica não traz segurança jurídica, ela apenas, ilude (Miranda Coutinho, p. 74-75). As motivações proferidas por um magistrado em um ato decisório poderá se perder na fundamentação. De acordo com Alexandre (p. 367) : (...) o ‘jurista de ofício’ está preso aos conceitos fornecidos – prêt-à-porter – pelo senso comum teórico e suas industrias(doutrina e jurisprudência), ao passo que o ‘juristabricoler’ aceita deslizar /ousar com e nos significantes, num processo ético (Dussel) de atribuição de sentido realizado com os ‘outros’, partes no processo, e o Outro.
337
Os juristas de ofício estão presos ao que é fornecido pelo
senso
comum
teórico,
como
doutrinas
e
jurisprudências. Alexandre Morais acredita que um juiz pode articular decisões mais democráticas porque, demonstra, sem chicanas, blá-blá-blá, sua visão de mundo, que certamente influencia no ato decisório mesmo quando se acredita ilusoriamente “neutro” (Juiz Truman).
Alexandre Morais da Rosa compara o juiz á um engenheiro. Afirma que o engenheiro considera que qualquer material pode ser importante para uma obra, sem descartar, desperdiçar, nenhum objeto ou material, vez que, não se contenta apenas com sua prévia ideia do projeto. Afirma que, assim também deveria ser as atitudes do juiz, que diante de uma prova ou material apresentado na instrução do processo, seja acolhido ou rejeitado apenas no ato decisório, mediante fundamentação. Ou seja, é necessário que todo o processo aconteça para que, somente então, ao final ocorra a decisão. Conclusão De acordo com o autor Alexandre Morais da Rosa, é necessário que se elabore uma nova maneira de se ver as formas e os critérios em que são construídas as decisões 338
judiciais. Segundo ele, a antropologia e a literatura são áreas esquecidas pela “cientificidade” jurídica sendo que, ambas, possuem grande importância para se construir um caminho democrático. Alexandre afirma que, a filosofia da consciência foi superada pela linguagem e que, diante da rigidez dos discursos jurídicos, nem mesmo o princípio da Legalidade Estrita se manteve. Explica que as versões apresentadas pelas partes devem ser analisadas por um juiz imparcial, que não se esconda por detrás da sua liberdade de convencimento, mas que profira sua decisão de forma democrática. Referências ALFERES, Eduardo Henrique. A Mitigação das Penas em "Vigiar e Punir" de Michel Foucault. Conteúdo Jurídico. 2011. Disponível em: < http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-mitigacaodas-penas-em-vigiar-e-punir-de-michelfoucault,30993.html >. Acessado em 10 de maio de 2016. ALFERES, Eduardo Henrique. A mitigação das penas em “Vigiar e Punir” de Michel Foucault. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 85, fev 2011. Disponível em: . Acesso em 13 de abril de 2016.
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344
ESCRITA ACADÊMICA: DE DOM A HABILIDADE CONSTRUÍDA
Ms. Magna Campos1 Resumo: Neste ensaio acadêmico, proponho-me a discutir e a combater o senso comum e suas crenças imobilizadoras e reducionistas que permeiam a atividade de escrita acadêmica, propondo, em contrapartida, uma perspectiva mais ativa associada ao desenvolvimento de competências e de habilidades necessárias ao êxito nas produções textuais e que podem ser trabalhadas pelos e com os estudantes.
Introdução:
Há
certos
entendimentos
equivocados
sobre
a
escrita acadêmica que atrapalham os alunos de melhorem, progressivamente,
na
qualidade
de
suas
produções
textuais. Dentre esses entendimentos, a crença de que escrever seja um “dom gratuito”, que alguns têm e outros não, e que, por essa razão, não precisaria ser trabalhado e sua competência não tenha que ser desenvolvida por meio de estudo e prática constantes, tanto de escrita quanto de reescrita, é algo problemático. Outra crença que também causa danos ao processo de melhoria contínua associada
1
Mestre em Letras. Professora universitária e escritora.
345
à competência de escrita dos estudantes refere-se à ilusão de que bastaria o cuidado com os aspectos normativos da gramática
para
ter-se
um
texto
de
qualidade,
desconsiderando-se, com isso, que há muito que ser cuidado no texto para além da gramática. Entretanto, cabe ressaltar aqui que não desconsidero que haja “potenciais”, designado por alguns de “aptidões”, e, tampouco, que a gramática não seja importante para um texto. Sendo assim, ainda que haja “aptidão” associada à inteligência
linguística2,
uma
das
nove
inteligências
proposta por Howard Gardner, escrever, na modalidade e qualidade necessárias ao meio acadêmico, é desenvolver esse potencial de forma a gerar competências que se materializem em habilidades capazes de atuarem na elaboração gêneros textuais, de forma proficiente e adequada ao ambiente universitário. Portanto, é do desenvolvimento das competências e de habilidades que tal proficiência advém e não do “dom”, uma vez que apresentar potencial para algo é simplesmente isso: “estar suscetível de existir ou acontecer, mas sem existência real; virtual”,
conforme
descreve
o
Dicionário
Eletrônico
Houaiss. Se não for desenvolvido, o potencial é apenas Refere-se ao potencial para usar as apalavras de forma efetiva, quer oralmente, quer escrevendo. 2
346
promessa de vir a ser, mas não sua concretização. Afinal, como o próprio Gardner (1994)3 ensina, a competência linguística
é
a
inteligência
mais
ampla
e
mais
democraticamente compartilhada pelo ser humano, mas precisa ser estimulada e desenvolvida. Neste sentido, o que debato aqui e contra-argumento está ligado à crença imobilizadora ou reducionista, assentada na ideia de “incapacidade inata” ou, em outras palavras, “na falta de dom”,
que
pode
cercar
o
mau
entendimento
da
problemática aqui tratada e que leva muitos estudantes a não “trabalharem continuamente” em prol de melhorias em suas produções, resignando-se a resultados pífios. Crença que, não raro, leva os professores, que lecionam nas mais diversas áreas na academia, a afirmações nessa linha de pensamento, dificultando ainda mais a superação dessa ideologia. E, obviamente, não desconsidero a importância da forma de gramática adequada, na maioria das vezes, a norma culta da língua, para a escrita acadêmica. Mas é imprescindível que se compreenda que a gramática é um dos aspectos a serem cuidados na elaboração de um texto, não se pode circunscrever, apenas a esse aspecto, a
GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das múltiplas inteligências. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. 3
347
qualidade do texto elaborado, como Geraldi (2003)4 reforça. Assim, outros aspectos, como por exemplo, informatividade,
coerência,
coesão,
atendimento
aos
propósitos interacionais, estrutura composicional de cada gênero textual, adequação da linguagem ao gênero e estilo selecionados, dentre outros, que influenciam a qualidade das produções escritas, seriam negligenciados na nessa perspectiva equivocada e aqui debatida. 2. De dom à habilidade construída
A atividade de produzir um texto acadêmico seja ele um resumo, uma resenha, uma “redação5”, um paper6, uma pensata7, um ensaio acadêmico8, um artigo científico
GERALDI, João Wanderley. Portos de Passagem. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 4
Nome geralmente dado ao texto dissertativo-argumentativo ou dissertativoexpositivo, estruturado em introdução, desenvolvimento e conclusão. 6 Gênero textual escrito que se assemelha ao artigo científico, porém apresenta extensão menor e, comumente, destina mais espaço para a parte prática que a teórica. 7 Gênero textual escrito que registra as ideias da pessoa sobre uma questão, aquilo que lhe vier à mente por associação ou reflexão crítica, menos rigorosa quanto à necessidade de fundamentação teórica, podendo, inclusive, dispensar tal fundamentação. Quando apresenta a fundamentação teórica, assemelha-se ao ensaio acadêmico. 8 Gênero textual escrito que apresenta mais espaço para subjetividade, por isso, escrito em 1ª pessoa do singular (eu) e cuja fundamentação teórica não se restringe apenas a textos credenciados cientificamente. 5
348
ou qualquer outro gênero textual é sempre um trabalho desafiador. Todavia, o senso comum costuma cercar essa atividade de algumas crenças que podem atrapalhar o estudante na melhoria de suas habilidades relacionadas à escrita. Uma dessas crenças refere-se a considerar a escrita como um dom, nato ou recebido misticamente, que está atrelado ao fato de se escrever bem. Por tal razão, tendo em vista as dificuldades associadas à escrita enfrentadas por muitos estudantes, especialmente, no momento de produção de um texto acadêmico, considerase que seja a ausência de tal dom a grande responsável por tais problemas. Assim, para essas poucas pessoas escolhidas pelo destino, verdadeiras afortunadas, já que têm esse dom, escrever não lhes custariam esforços, planejamento, dedicação, reescritas contínuas, ou mesmo, tempo para o desenvolvimento de um bom texto. Além disso, escrever lhes seria sempre uma atividade prazerosa, inspirada e fluida. Nesse sentido, é comum também se pensar que o texto “cai-lhe do céu”, como que se acontecesse via uma ação mágica, sem esforço algum. Outra crença comum é a que de que escrever bem é questão restrita de boa gramática, isto é, “escrever sem erros gramaticais”. A competência gramatical, sem dúvida, 349
ajudará aquele que produz um texto a melhor redigir, à medida que, ao trabalhar em conjunto com outras competências necessárias para a produção de um bom texto contribua para que este atinja seus propósitos interativo-comunicativos.
A
competência
gramatical
precisa ser desenvolvida, mas não pode ser considerada como a única competência envolvida na produção textual, afinal quantos textos são perfeitos gramaticalmente, mas não produzem sentido ou sua informatividade está comprometida pela fraca elaboração das ligações entre texto e contexto. O que o senso comum ignora é que a escrita longe de ser um fenômeno espontâneo é uma habilidade cumulativa9,
ou
seja,
é
algo
a
ser
trabalhado
continuamente e que se vai melhorando pela prática contínua de produzir e de reescrever os próprios textos. Dessa forma, uma habilidade que pode ser desenvolvida por todos que a ela dediquem atenção, trabalho e esforço. Aqui vale aquela velha máxima de que “escrever se aprende escrevendo” e, acrescento, “reescrevendo”.
GARCEZ, Lucília Helena do Carmo. Técnica de Redação: o que é preciso saber para bem escrever. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 9
350
O
desenvolvimento
dessa
habilidade
está
relacionado às competências10 interacional-comunicativa, pragmática, discursiva e gramatical, por isso, pressupõe conhecimentos de certas peculiaridades da produção de textos escritos que vão desde conhecer o gênero textual que se quer escrever a conhecer as condições de produção de dado texto, para além do conhecimento das questões gramaticais inerentes à escrita acadêmica. Isso quer dizer que, dentre outras coisas, é preciso saber como aquele texto que se vai escrever organiza-se em termos de estrutura prevista para o gênero textual a que pertence. Sendo assim, é preciso saber, por exemplo, que o gênero textual “redação”, se for da espécie dissertativoargumentativa, se organiza por meio de uma introdução – na qual, comumente, apresentam-se o tema, a tese e o ponto de vista – de um desenvolvimento – em que se apresentam
os
argumentos
e
suas
sustentações/
estratégias argumentativas para reforçar o ponto de vista e a tese enunciados na introdução e de uma conclusão – em que se amarram os argumentos apresentados em prol de uma perspectiva adotada e se procede à observação final ANTUNES, Irandé. Práticas pedagógicas para o desenvolvimento das competências em escrita. In: COELHO, Fábio; POLAMANES, Roza (orgs.). Ensino da prática textual. São Paulo: Contexto, 2016. 10
351
ou se apresenta uma proposta concreta de intervenção, com
ações
sociais
para
mitigar
ou
resolver
uma
problemática, como é o caso do estilo de conclusão empregada na redação do ENEM. Da mesma forma, se se for escrever uma resenha crítica11 é preciso saber que ela se estrutura em quatro fases: apresentação do autor e do texto, resumo das principais informações/argumentos do texto resenhado, crítica à forma e ao conteúdo de tal texto e indicação da leitura desse a alguém somadas à referência bibliográfica do texto resenhado que abre a resenha. Em ambos os casos é preciso também se considerar as condições de produção12 do texto, uma vez que a escrita está vinculada a práticas sociais, não sendo atos isolados de um contexto micro e macro textual/discursivo. Essas condições envolvem basicamente: o para quem se está escrevendo: para o professor em uma disciplina; para um conjunto de professores
em
uma
atividade
interdisciplinar; para uma revista científica, para um livro, para um jornal; para um blog. Resenha crítica, nomenclatura usada para diferenciação da resenha indicativa e da resenha temática. 12 CAMPOS, Magna. Leitura e escrita: nuances discursivo-culturais. 2.ed. rev. ampl. Mariana: Aldrava Letras e Artes, 2012. 11
352
Condição
essa
ligada
à
competência
de
interação entre autor e leitor virtual/real, e, assim, de se planejar o texto levando em conta tal forma de interação. o como escrever: qual gênero textual (resumo, redação, resenha, ensaio, pensata, paper, artigo,
monografia
etc.);
qual
ou
quais
sequências tipológicas são comuns a esse gêneros
(sequência
argumentativa,
narrativa,
expositiva,
descritiva,
injuntiva
ou
dialogal), com qual registro linguístico esse gênero, produzido nessas condições, deverá ser escrito (formal, semiformal, informal); quais conhecimentos gramaticais (lexicais, morfossintáticos,
sintáticos,
semânticos,
ortográficos, por exemplo) são necessários para concatenar, articular, citar, referenciar, explicitar
ou
não,
relacionados
ao
processamento das ideias no texto. Condição ligada à competência pragmática13 de escrita, pois sendo a linguagem uma atividade social, está
relacionada
à
produção
de
“peças
O termo pragmática é empregado no sentido de linguagem contextualizada e usada em práticas sociais. 13
353
inteiras de linguagem” e não de fragmentos soltos e desarticulados. o como dizer: como separar as vozes daquele que escreve de outras presentes no texto (isto é, separação das vozes daquele que escreve o texto das vozes dos outros autores que são mencionados
no
texto).
Ainda
ligada
à
competência pragmática mencionada acima e à competência discursiva. o quando e onde se escreve: quanto tempo se tem para escrever, afinal escrever na sala de aula com um tempo delimitado pela horaaula ou, em casa, com mais tempo, não são condições similares. Além disso, o “onde” se escreve implica também pensar em quais recursos estão disponíveis, pois, veja-se, não se tem na escrita manuscrita as mesmas possibilidades/recursos que escrita digital permite. Inclusive, na escrita digital, cada vez mais
se
avulta
a
multimodalidade
(a
conjunção em um mesmo texto de três modalidades
de
registro:
oral,
visual
e
354
textual). Novamente, competência pragmática e discursiva. o
para
que
se
finalidade/propósito
escreve: da
escrita
qual
a
(para
ser
lida/avaliada pelo professor; para ser lida por vários leitores, para ser publicada, para servir de anotações para estudos futuros da própria pessoa que escreve, para informar, para persuadir, para convencer, para emocionar, para
motivar,
condição
para
está
registrar
diretamente
competência
etc.).
Essa
relacionada
à
interacional-comunicativa
e
ligada à funcionalidade da escrita, já que é uma
ação
de
determinado narrar, suscitar,
linguagem
propósito
informar, informar,
orientada
(escreve-se
explicar, persuadir,
para para
comentar, silenciar,
manipular, advertir etc.). Não se escreve para nada! Ainda que seja para cumprir uma mera obrigação, ainda sim, se tem uma finalidade. o que escrever: qual o tema/assunto a ser escrito e o quanto aquele que escreve conhece de tal assunto. Aqui, a leitura é uma forte aliada, 355
pois embora escrever se aprenda escrevendo, ler é, sem dúvida, crucial para se construir uma “rede de conhecimentos” importantes que poderão servir de base para o texto a ser redigido. E a ajuda da leitura não para por aí, auxilia também na ampliação do vocabulário e na apreensão de qualidades de um bom texto, como fluidez, clareza e informatividade bem dosada. o revisar e o reescrever: a primeira versão de um texto deve ser sempre considerada uma primeira versão, a qual pode, pela releitura analítica, silenciosa ou em voz alta, por si mesmo
ou
por
outra
pessoa
evidenciar
melhorias a serem feitas tanto no plano estrutural (gramática, estilo, estrutura do gênero, por exemplo) quanto no plano do conteúdo
do
texto
(coerência,
clareza
e
informatividade, pertinência, por exemplo) e no
plano
discursivo
(relação
texto/contexto/intertexto/ interdiscurso, por exemplo). Assim, pode-se entender que a escrita acadêmica se divide em três etapas: o
356
planejamento,
a
elaboração
e
a
edição
(revisão e reescrita). Além disso, na escrita acadêmica, é necessário também o desenvolvimento da competência que está relacionada à autoria, ou seja, ao fato de se assumir a condição de ser autor14 de um dizer. Neste aspecto, surge o problema do plágio, que se relaciona ao fato de se assumir a autoria de algo ou de alguma ideia que não lhe pertence. produzirem
Quantas um
vezes, texto,
ao os
serem
solicitados
estudantes
a
procedem,
simplesmente, a uma costura de informações coletadas aqui e ali, nos textos lidos, reduzindo a escrita do texto ao trabalho de apenas costurar o mosaico coletado, sem estabelecer nenhuma forma de diálogo com tais fontes, eximindo-se com tal procedimento da autoria “de fato”, embora o esteja assinando. O que se pode depreender do desenvolvimento de tais competências é que, muitas vezes, não é a quantidade que se escreve, mas o esforço e trabalho de tentar aprender com o processo de escrita e de reescrita, de observar e aprender com os próprios erros, ou mesmo, Autor aqui entendido no sentido de aquele que “diz” algo a “alguém”, não se adentrando à discussão da origem do dizer trazida por Michel Foucault, ao tratar da função-autor, no texto de sua conferência “O que é um autor?”, de 1969. 14
357
com os erros de outros, que se pode alcançar uma melhor qualidade dos textos produzidos. Reescrita que não pode se centrar na revisão puramente gramatical ou ortográfica, mas
na
melhoria
dos
aspectos
comunicativos
e
interacionais do texto, bem como pragmático-discursivos que o envolvem.
Considerações finais: As competências envolvidas na produção de um texto acadêmico, portanto, longe de serem fenômeno espontâneo e automático (um dom ou um passe de mágica), envolvem aprendizagem que ocorre em um processo recursivo, com muitas idas e vindas. Por isso, seu “treinamento” constante somado aos conhecimentos construídos com base tanto em aulas quanto em buscas autônomas é crucial. E, nessa busca pela qualidade dos textos, é preciso considerar-se
as
atividades
“leitura-apreensão”,
pois
de
“revisão-reescrita”
corroboram
para
e o
desenvolvimento de habilidades que tornam o processo de escrita mais efetivo e, assim, pela prática, chega-se à proficiência
na
produção
de
determinados
gêneros
textuais acadêmicos. Muitas vezes, é dessa produção efetivada,
mais
fluida
porque
desenvolvida 358
adequadamente, que nasce o “prazer” em escrever que alguns
alunos
apresentam,
capaz
de
confundir
os
observadores menos informados, que o julgam, como sendo “dom e inspiração mágica”.
359
DIREITOS FUNDAMENTAIS PERANTE A SOCIEDADE CIVIL Déborah Cristina de Fátima Moutinho 1 Patrícia Margarida Mapa2 Aparecido José dos Santos Ferreira3
Resumo: Esse texto tem por escopo analisar atos discriminatórios que contrapõem os princípios previstos na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º.
Introdução
A CRFB em seu artigo 5º trata dos direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos. Em seus incisos, ela estabelece que nenhum tipo de discriminação deverá ser permitida. Diante
do
fato
de
haver
possibilidade
de
discriminação por motivos sem relevância, como: questão de peso, cor, situação financeira, torna-se necessário
1Acadêmica
do 4º período do curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana – Fupac. ² Acadêmica do 4º período do curso de Direito da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana – Fupac. ³ Professor Adjunto da Faculdade Presidente Antônio Carlos de Mariana – FUPAC. Mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Itaúna e Especialista em Direito da Empresa pela Universidade Gama Filho.
360
analisar as prescrições constitucionais em nossa Carta Magna. Abordar-se-á no presente texto os casos ocorridos recentemente
em
grandes
shoppings
das
capitais
brasileiras e, mais especificadamente, do caso ocorrido Boate Vila Mix. Tudo começou com uma convocação dos cantores de funk em resposta a um projeto de lei que proibia bailes desse estilo musical nas ruas da capital paulista, cuja participação, em maioria, é de jovens pobres, negros em busca de diversão.
Esses jovens convocavam parte da
população que se identificasse com determinado grupo a reunir em local combinado para defender um direito específico. Para o professor Alexandre Barbosa Pereira, que estuda o comportamento dos jovens que participam do “rolezinho”,
este
ato
caracteriza-se
como
“uma
convocatória feita na internet pode levar centenas de jovens a se encontrarem num shopping, local onde podem ter acesso a esses bens cantados nas músicas dos mc´s da periferia, ainda que apenas por acesso visual. Rolezinhos não são protestos contra o shopping ou o consumo, mas afirmações de queremos estar no mundo do consumo, nos templos do consumo”. 361
A justificativa dos participantes não é para uma possível desordem no local ocupado, mas sim uma manifestação e protesto contra o preconceito e segregação social. Porém a sociedade enxergou de forma contrária a manifestação de jovens pobres, negros e de periferia, devido a grande repercussão a policia interveio de forma agressiva de repreensão a devida manifestação acionados pelos donos shopping e da população de classe média que frequenta o lugar de encontro com a manifestação. Outro caso que se irá analisar é o da boate Vila Mix, semelhante ao que ocorreu com o rolezinho, no qual o pobre, negro e as pessoas humildes foram barrados em uma boate na zona sul de São Paulo. Foi um caso de repercussão
nacional
de
extremo
desrespeito
aos
princípios constitucionais de igualdade e da dignidade da pessoa humana.
2. (In)Constitucionalidade do "rolezinho"
O Rolezinho se tornou motivo de discussão em todo país, por ser um evento onde há manifestação de pessoas, em sua maioria, jovens que adentram em locais públicos para mobilizar a sociedade em geral, os movimentos são desordenados e sem um fim próprio a atingir. Os locais 362
são frequentados por famílias, crianças, idosos, e a comunidade em geral. Como o fato referido envolve a maioria jovens, faz com que cause um impacto maior na sociedade, pela rebeldia que hoje pode se ver aflorada em seu meio. O que mais prejudica o próprio grupo em si é que, ferindo e destruindo o patrimônio alheio, acaba por perder o respeito da sociedade e, pior, o ato se materializa, aos olhos mais incautos, como uma afronta a lei local, apesar de
que,
mesmo
buscando
um
ideal,
agindo
sem
organização e políticas de coordenação, não consegue, em fim, expressar o que realmente almeja. Gize-se, pois, que não há previsão em lei de que o rolezinho seja proibido. Muito menos seus integrantes sabem o que estão buscando para que possam mostrar a sociedade
civil,
para
assim
fazer
valer
os
direitos
da constituição federal de 1988 como se descreve abaixo. Como, em geral, manifestações não são bem vistas pela sociedade e como acontecem sempre em lugares públicos, certos estabelecimentos comerciais exigem da lei que vete essas manifestações. Tal conduta coloca em cheque os princípios fundamentais de ir e vir previstos na constituição federal de 1988 art. 5º , XV que diz: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, 363
podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens” (BRASIL, 1988). Acresça-se que é livre manifestação de acordo com art. 5º , IV da constituição de 1988 que diz: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato” (BRASIL, 1988). Para alguns doutrinadores essa questão é bastante polêmica como Reinaldo Azevedo que fundamenta na carta magna que: “Ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e é livre a manifestação de pensamento, dogmas contidos na nossa Carta Magna”. (AZEVEDO, 2014) Há que se interpretar essa decisão dos jovens em fazer aglomeração em local público de forma positiva desde que, tenham fundamentos e seja uma manifestação clara, que tenham em mente as ideologias pelas quais estão lutando. Sem que haja interferência no direito de ir e vir de outras pessoas que estão em um mesmo espaço. Não deixa de ser uma análise de mudança como um retrocesso, já a juventude cada vez mais cedo procura por liberdade e aprecia o gosto pela igualdade deste que os direitos de um cidadão terminem onde começam de outro, direitos e deveres todo cidadão tem, isso chama-se democracia. 364
É, portanto o tema analisado a seguir sobre os direito fundamentais em como o respeito das leis por todos os cidadãos, liberdade de pensamento, consciência, opinião, expressão, reunião e associação são direito da sociedade em geral que desde os tempos do código de Hamurabi o homem vem lutando por esses direitos. 3- Direitos fundamentais
É aquele direito positivado de domínio do direito constitucional garantido pelo Estado à qualquer ser humano, porém cabe ao cidadão participar e vigiar tais direitos. São os direito declarados, derivados da natureza humana que foi escrito pela primeira vez no sec. XVIII a. C no
código
de
Hamurabi
que defendia
o
direito
de
propriedade e contemplava a honra, a dignidade, a família. Os direitos fundamentais e suas garantias já nascem com todo ser humano e outros são apenas criados pelo ordenamento jurídico, cabe porém a toda pessoa impor á sociedade que seja respeitado tais direitos naturais. Com a evolução do homem, nos tempos modernos tais direitos foram sendo ampliados e, hoje, a dignidade da pessoa
humana
tem
direito
de
destaque
na
constituição federal de 1988 como ressalta abaixo o artigo 365
1° da mesma, que a elevou em nível de fundamento do Nosso Estado: Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] III – a dignidade da pessoa humana. (BRASIL, 1988).
Concluui-se, portanto, que os direitos fundamentais são os direitos do homem garantidos juridicamente, são imprescritíveis
não
se
prescrevem
e
não
podem
ser renunciados em hipótese alguma, individuais, pois cada ser humano é um ente perfeito e completo, não podendo ser desrespeitados por nenhuma autoridade ou lei infraconstitucional, advêm da própria natureza humana,
daí
seu
caráter inviolável,
intemporal
e
universal. Com a questão polêmica do rolezinho e no que se refere aos constantes
barramentos de frequentadores,
negros, obesos, pessoas humildes e consideradas feias por parte de funcionários da Boate Villa Mix, na zona sul de São Paulo, estão entre os enfoques que violam a Constituição federal de 1988 e o direito do homem válidos para todos os povos em todos os tempos, tanto o rolezinho 366
como o impedimento de pessoas de diferentes etnias contradizem o direito de ir e vir ligado a pessoa humana e previsto na constituição como mencionado acima e, são reconhecidos mundialmente, por meio de pactos tratados, declarações
e
internacional,
outros
que
instrumentos
devem
ser
de
respeitados
caráter por
toda
sociedade e além de ser exigido e fiscalizado por todo cidadão comum. Com o escopo garantir ao ser humano a sua dignidade, o respeito à vida para o pleno desenvolvimento
de
asseguradas pelo
sua
personalidade
ordenamento
jurídico
que de
lhe
são
maneira
positivada e permanente. Os direitos fundamentais e os direitos humanos estão sempre interligados em busca de um bem comum entre
todo
o
homem
e
os
direitos
humanos
têm
uma posição bidimensional, pois por um lado tem um ideal a atingir, que é a conciliação entre os direitos do indivíduo e os da sociedade; e por outro lado, assegurar um campo legítimo para a democracia, é o que será demonstrado no tema a seguir.
4- Direitos humanos
367
Os direitos humanos são aqueles inerentes a todo ser humano independente de raça, cor, religião, sexo, nacionalidade, etnia, idioma. O direito que todos merecem como o direto á vida, liberdade, educação e ao trabalho, o mínimo para uma vida digna, foi estabelecido as Nações Unidas em 1945, depois da barbárie da Segunda Guerra Mundial
que
violou
todo
o
respeito
a
vida
e
o
direito humano fundamental. Entretanto, em meados do século XVII e XVIII, no Iluminismo, movimento cultural da época, o filosofo Rousseau redescobriu valores que colocam o homem no centro das preocupações, garantindo-lhes o direito à liberdade, igualdade e fraternidade desde os tempos antigos, abrangendo toda uma nação, a cujo governo compete a obrigação de agir em determinadas situações ou se absterem de certos atos, a fim de promover e proteger os direitos humanos e a liberdade de grupos ou indivíduos abandonados pelo governo. Foi um grande encorajamento à dignidade do homem que veio junto a igualdade entre homens e mulheres, promovendo o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla no meio da sociedade e dos seus direitos iguais e inalienáveis, constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. 368
Porém,
contraditoriamente
no
mundo
moderno
esses direitos ainda são violados, como acontece no movimento Rolezinho que certas autoridades e a própria sociedade em si querem proibir devido ser um movimento com certo tipo de pessoas e maioria jovens diferenciados e no que envolve a boate Villa Mix que discriminam certos grupos de pessoas e as proíbem de frequentar o espaço dentro da boate, violando todos os direitos do homem adquiridos e conquistados desde código de Hamurabi a Rousseau
e
os
descritos
na
lei
e nos
tratados
internacionais, cujo maior exemplo a como a que se refere é a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Nesse contexto, observe-se um dos mais importantes citações abaixo: Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela dignidade e o valor de cada pessoa; Os direitos humanos são universais, o que quer dizer que são aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas; Os direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser privado de seus direitos humanos; Os direitos humanos são indivisíveis, Todos os direitos humanos devem, portanto, ser vistos como de igual importância, sendo igualmente essencial respeitar a dignidade e o valor de cada pessoa. (ONU, 1948)
369
Todos têm o direito de ir e vir, até que não seja desrespeitado o direito do outro. Como se busca o direito para si próprio deve se ter consciência de dar ao outro o mesmo direito; resumindo em uma forma bem simples o direito à vida, à igualdade, à manifestação, à felicidade, para assim se respeitando cada um o seu lugar em busca de uma sociedade mais justa e igualitária a todo homem, seja no seu estado, território, ou país por sermos todos humanos em busca do bem comum. 5. Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas
Diante do caso da boate Villa Mix em São Paulo e dos rolezinhos nos shoppings fica difícil se falar em eficácia
dos
direitos
fundamentais
nas
relações
privadas. Quiçá em tolerância. Fato é que para se viver bem em sociedade é preciso maturidade suficiente para entender que ninguém é igual ao outro, ninguém pensa da mesma maneira, age da mesma forma e
o respeito às
diferenças é primordial para o bem estar de toda coletividade. Somente assim, é que se poderá atingir
370
um dos objetivos da República Federativa do Brasil, insculpida no art. 3º, III, da Constituição Federal. Infelizmente
se
sabe
que
muitos
não
se
respeitam, e ferem a Lei Maior que é a Constituição Federal de 1988, desrespeitando principalmente o seu artigo 5º. Pode-se afirmar então, que nestes ambientes de propriedade privada porem de caráter eminentemente públicos não se está agindo de acordo com a observância dos direitos fundamentais, por isso a ineficiência deles na sociedade, trazendo estes tipos de transtornos que poderiam ser evitados se não houvesse esse tipo de preconceito, de arrogância, de ignorância por parte de muitos que acham que lutar por alguns direitos é destruir um bem público e fazer baderna. E outros que acham que atender ao público é selecionar o público. Inaceitável. 6. Racismo e discriminação
A discriminação ocorre quando se restringe uma pessoa ou um determinado grupo de pessoas ao acesso a atividades ou lugares comuns. Pode de dar por sexo, 371
idade, cor, classe social, religião, cultura ou deficiência. Pode se dar por condição social, condição econômica, dentre outras. O indivíduo que discrimina não vê os valores humanos determinados por suas qualidades pessoais, tampouco por sua formação e habilidades profissionais. O foco é outro. O racismo é uma das formas mais duras de discriminação existentes. Ocorre quando o indivíduo tem julgada sua cor de pele ou traços físicos pessoais como sendo inferiores ou insignificantes perante outrem. O uso de estereótipos sobre a cor de pele, o julgamento de sua cultura e costumes, seu impedimento de acesso às atividades comuns e sua classificação em um nível inferior são consideradas práticas racistas. Sob o enfoque do ocorrido na Villa Mix, as situações acima foram ilustradas a partir do momento que a casa discriminava o público que poderia frequentar o local. A boate selecionava seus clientes por cor, classe social, aparência física e peso. Praticava ela discriminação em suas diversas formas. Essa atitude veio de contramão ao que rege a Constituição Federal, artigo 5º, referente à nossa igualdade perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza. 372
Mesmo que se permitisse o acesso à casa noturna e lá não houvesse qualquer restrição, o tratamento dado aos seus consumidores no interior da casa deve ser igualitário. Não podendo haver ainda divisão espacial, segregando o ambiente como restrito a pessoas magras, bonitas ou ricas, por exemplo. O indivíduo, independente de sua classe social, aparência ou cor deve ser tratado com igualdade em qualquer local que esteja. 7. Crime
A
boate
Villa
Mix
feriu
os
direitos
constitucionais com suas práticas discriminatórias. O fato de segregar o seu público foi em contramão aos princípios da igualdade e dignidade humana, em que todos somos iguais perante a Lei. As práticas de discriminação
registrados
contra
a
boate,
estão
previstas como crime perante a Lei nº 7.716/89, alterada pela Lei nº 9.454/97. O artigo 186 do Código Civil Brasileiro julga como ato ilícito o praticado pela boate, pois sua atitude violou o direito e causou danos ao indivíduo impedido de adentrar no estabelecimento para se divertir. Os proprietários do estabelecimento podem 373
responder criminalmente pelo ato e, caso condenados, podem pegar de um a três anos de reclusão e pagar multa. Os
representantes
da
Boate
Villa
Mix
divulgaram nota se defendendo com a afirmação de que jamais cometeram qualquer tipo de discriminação contra seu público. Porém, há indícios que provam o oposto como depoimentos de pessoas que sofreram tal constrangimento e inclusive de ex-funcionários da empresa, como descrito em entrevista à Agência Brasil.
“Eles
barram
negros,
eles
barram
pessoas
humildes, eles barram gente gorda” (BRASIL, 2015). Conclusão
Em pleno século XXI depara-se com esse tipo de situação
que
chega
a
ser
constrangedora
-
a
discriminação. Seja em festas, em estádios de futebol, no mercado de trabalho ou nas ruas, a sensação é que ainda vivemos em séculos passados, quando pessoas
julgadas
como
diferentes
do
padrão
estabelecidos eram excluídas, torturadas e até mesmo mortas. 374
O Brasil que é um país com diversas raças, cores, etnias, não possui um padrão de estereótipo. Somos muito diferentes. É preciso que as pessoas saibam se respeitar e entender que todos têm o mesmo direito independente de se, branco, pardo, negro, magro, gordo, alto, baixo, rico, pobre, etc. Na verdade é preciso que se inclua as pessoas na sociedade e nãoque se abandone e que se desrespeite. A boate Villa Mix de São Paulo, no ponto de vista deste trabalho, cometeu um crime, pois por ser uma boate conhecida, na qual os grandes cantores sertanejos se apresentam, deveria ao menos, por questão de respeito, receber todas as pessoas e não selecionar os mais bonitos, sob o ponto de vista deles. Se não tem mais espaço, não tem para todos os que estão do lado de fora aguardando e não somente para o “pretinho”, gordinho, feio que por sinal tem dinheiro para entrar e se manter durante aquele tempo dentro da casa noturna. Considera-se que o respeito, a dignidade, os valores do ser humano devem ser preservados para que todos vivam em harmonia, bem estar, enfim, num lugar bom para se viver, um lugar para todos. 375
Não se deve ser julgado pelo bolso, cor, altura, gordura, etc. Somos todos humanos, todos iguais perante a Lei. Portanto, uma atitude como essa é abominada pelas pessoas éticas e sensatas, cabendo a elas a revolta por ainda nos dias de hoje existir uma situação lastimável como essa. Referências Bibliográficas
BRASIL, Agência. Funcionários do Villa Mix eram forçados a barrar negro negro, humilde e gente gorda. São Paulo. 07 de agosto de 2015. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2015-0807/funcionarios-do-villa-mix-eram-forcados-a-barrarnegro-humilde-e-gente-gorda.html. Acessado em 28 de outubro de 2015. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição. html. Acessado em 30 de outubro de 2015. BRASIL. Novo Código Civil. Lei nº 10.403 de 10 de janeiro de 2002. Aprova o novo código civil brasileiro. Brasília, DF, 2002. DALARI, Dalmo Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1998, 2ª ed. G1, Portal de Notícias. Casa noturna Villa Mix é investigada pelo MP por discriminação. São Paulo. 05 de agosto de 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/sao376
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outubro de 2015. _________ Declaração Universal dos Direitos Humanos – ONU. Redigida em 10 de dezembro de 1948. Paris.
377
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO EM RAZÃO DOS CASOS DE DENGUE NO BRASIL Joana D Arc Aparecida de Oliveira1 Michele Aparecida Gomes Guimarães2 Resumo: O presente trabalho tem como objetivo geral elucidar a responsabilidade civil por danos decorrentes da omissão do Estado, mais especificamente, nos casos de dengue que rotineiramente vem assolando diversas regiões brasileiras, com drásticas conseqüências para a população. Partindo do pressuposto que no artigo 196 da Constituição da República de 1988 tem-se que a saúde é direito de todos e dever do Estado garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, tem-se que cabe ao Estado, diante da epidemia de dengue, promover as ações necessárias para a prevenção e a erradicação de tal doença. A partir de levantamento documental e bibliográfico, no ensaio acadêmico em tela apresentam-se algumas notas que esclarecem aspectos importantes da dengue, e, ao final, conclui-se que o Estado responde civilmente por danos causados em razão de sua omissão com sucedâneo em dispositivos do Código Civil Brasileiro e da Constituição de 1988.
Introdução Estatisticamente, é possível observar que os casos de
dengue
têm
crescido
no
Brasil. Aliado
a
isso,
1Acadêmica
do quinto período do curso de Direito da Universidade Presidente Antônio Carlos – Mariana. 2Mestre
em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Advogada e Consultora Jurídica militante nas áreas do Direito do Consumidor, Civil, Trabalhista, Ambiental, Administrativo e Previdenciário. Assessora Jurídica do Serviço Municipal de Água e Esgoto de Ouro Preto. Professora da Universidade Presidente Antônio Carlos de Mariana. Tutora do curso de Graduação em Administração Pública do Centro de Educação à Distância (CEAD) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
378
infelizmente também tem aumentado o número de óbitos em razão de tal doença, sem falar nas patologias correlatas. Igualmente, aumentam-se as discussões no que tange ao tipo de responsabilidade civil da Administração Pública em razão da omissão no seu dever de atuar de modo preventivo a fim de diminuir as conseqüências negativas provadas pela dengue. Nesse
desiderato,
importante
se
faz
traçar
discussões sobre o assunto com o escopo de analisar como se dá a responsabilidade do Poder Público nos casos de dengue. Para tanto, far-se-á levantamento bibliográfico e documental da temática, dividindo a tratativa nas seguintes partes: dengue - sintomas e epidemia; situação epidemiológica da dengue e omissão e responsabilidade civil do poder público diante da epidemia de dengue. Ao final, conclui-se que o Estado deve adotar medidas eficazes no combate e prevenção da dengue, e, havendo a ocorrência de danos os entes públicos podem ser
responsabilizados
civilmente
aplicando
a
teoria
subjetiva ou mesmo objetiva, preferindo-se a segunda corrente de entendimento visto o direito à saúde e a garantia do bem-estar dos cidadãos.
379
2. Dengue: sintomas e epidemia
A infecção pelo vírus da dengue causa uma doença de
amplo
espectro
clínico,
incluindo
desde
formas
oligossintomáticas até quadros graves, podendo evoluir para o óbito. Na apresentação clássica, a primeira manifestação é a febre, geralmente alta (39ºC a 40ºC), de início abrupto, associada à cefaléia, adinamia, mialgias, artralgias,
dor
retroorbitária.
O
exantema
clássico,
presente em 50% dos casos, é predominantemente do tipo máculo-papular, atingindo face, tronco e membros de forma aditiva, não poupando plantas de pés e mãos, podendo apresentar-se sob outras formas com ou sem prurido, freqüentemente no desaparecimento da febre. Anorexia, náuseas e vômitos podem estar presentes. Segundo Brito (2007), a diarréia, presente em 48% dos casos, habitualmente não é volumosa, cursando apenas com fezes pastosas numa freqüência de três a quatro evacuações por dia, o que facilita o diagnóstico diferencial com gastroenterites de outras causas. Entre o terceiro e o sétimo dia do início da doença, quando ocorre a defervescência da febre, podem surgir sinais e sintomas como vômitos importantes e frequentes, dor abdominal intensa e contínua, hepatomegalia dolorosa, desconforto 380
respiratório,
sonolência
ou
irritabilidade
excessiva,
hipotermia, sangramento de mucosas, diminuição da sudorese e derrames cavitários (pleural, pericárdico, ascite). Os sinais de alarme devem ser rotineiramente pesquisados, bem como os pacientes devem ser orientados a procurar a assistência médica na ocorrência deles. Em geral, os sinais de alarme anunciam a perda plasmática e a iminência de choque. O estudo realizado por Maron et. al. (2011) encontrou associação da dor abdominal à presença de ascite (VPP90%) e ao choque (VPP82%). Portanto, se reconhecidos precocemente, valorizados e
tratados
com
reposições
volumétricas
adequadas,
melhoram o prognóstico. O sucesso do tratamento do paciente com dengue está no reconhecimento precoce dos sinais de alarme. O período de extravasamento plasmático e choque levam de 24 a 48 horas, devendo o médico estar atento à rápida mudança das alterações hemodinâmicas. O sangramento de mucosas e as manifestações hemorrágicas, como epistaxe, gengivorragia, metrorragia, hematêmese, melena, hematúria e outros, bem como a queda abrupta de plaquetas, podem ser observadas em todas as apresentações clínicas de dengue, devendo, quando presentes, alertar o médico para o risco de o 381
paciente evoluir para as formas graves da doença, sendo considerados sinais de alarme. É importante ressaltar que pacientes podem evoluir para o choque sem evidências de sangramento espontâneo ou prova do laço positiva, reforçando que o fator determinante das formas graves da dengue são as alterações do endotélio vascular, com extravasamento plasmático, que leva ao choque, expressos por meio da hemoconcentração,
hipoalbuminemia
e/ou
derrames
cavitários. A dengue configura-se nas últimas décadas como importante causa de morbidade e mortalidade no Brasil e no mundo atingindo as zonas tropicais e subtropicais. Segundo Silva, (2002, p. 1), provavelmente o Aedes aegypti adaptou-se a vida urbana há milênios atrás: Dengue pode ser considerada um subproduto da urbanização desordenada e exagerada, verificada nos países em desenvolvimento. Poucas são as metrópoles do terceiro mundo livres de dengue, assim como poucas estão livres da criminalidade, do tráfico de drogas, da corrupção da poluição, do trânsito e de outras tantas mazelas de difícil controle.
A febre amarela e o dengue são viroses que se entrelaçam em razão de terem em seu ciclo um vetor comum, que é apesar de apresentarem manifestações
382
clínicas
e
respostas
imunológicas
diferenciadas
(TEIXEIRA, 2000). De acordo com Andries (2006), o primeiro relato de caso de doença semelhante à dengue, foi registrado numa enciclopédia chinesa da dinastia Chin (265 a 420 anos a.C.). Por achar que a doença estava associada a insetos, eles a denominaram de veneno da água. Em relação à primeira epidemia de dengue no mundo, há divergência entre os autores. Para alguns, os primeiros relatos sobre a dengue
ocorreram
na
Ilha
de
Java
em
1779
e,
posteriormente, em 1780, nos Estados Unidos. Outros autores acreditam que a primeira epidemia da doença aconteceu em 1784 no continente europeu e, outros, preferem acreditar que o primeiro registro de casos aconteceu em Cuba, em 1782. No século passado aconteceram várias epidemias, como na Austrália (1904 a 1905), no Panamá (1904 a 1912), na África do Sul (1921), África Oriental (1925), Grécia (1927 a 1928), Filipinas (1956), Tailândia (1958), Vietnã do Sul (1960), Singapura (1926), Malásia (1963), Indonésia (1969) e Birmânia (1970) (COSTA, 2001). Em suma, fato é que os casos de dengue têm aumentado significativamente no Brasil, como demonstra o cenário epidemiológico apresentado a seguir. 383
3. Cenário e análise da situação epidemiológica da dengue no Brasil
Traçando-se a situação epidemiológica da Dengue no Brasil no ano de 2016, colacionam-se alguns gráficos que elucidam o panorama no solo pátrio, senão vejamos:
Gráfico 01: Situação Epidemiológica da Dengue/2015 - Fonte: Ministério da Saúde – Dados atualizados em 08/09/2015
Segundo dados publicados em setembro de 2015 pelo Ministério da Saúde, o aumento do número de casos de 2014 para 2015 foi o maior e mais alarmante nos últimos tempos com a taxa de 178%. Isto porque o 384
aumento do número de casos de 2013 para 2015 foi bem menor na ordem de 1,3%.
Gráfico 02: óbitos por Dengue, Brasil de 2013/2014 e 2015 - Fonte: Ministério da Saúde – Dados atualizados em 08/09/2015
O gráfico acima mencionado mostra que o cenário epidemiológico compreendido entre os períodos de 2014 e 2015 em Minas Gerais, apresentou maior taxa de mortalidade com uma porcentagem de 72 %, sendo que de 2013 para 2015 o aumento foi de 14%.
385
Gráfico 03: Transmissão de Dengue em Minas Gerais/2015 - Fonte: SINAN-ONLINE/SES/MG – Dados atualizados em 25/09/2015
Foram
confirmados,
através
do
Sistema
de
Informação de Agravos de Notificação (SINAN) via online, 174.246 casos prováveis de dengue e 54 óbitos em Minas Gerais no ano de 2015.
386
Gráfico 04: Circulação dos sorotipos da Dengue/ Brasil/ 2015 Fonte: Ministério da Saúde – Dados atualizados em 02/09/2005
Segundo informações relatadas no mapa acima, em 2015 foram enviadas 18.281 amostras coletadas para análise no laboratório de referência do que
destas
7.381
com
positividade
Estado,
sendo
global
40,4%.
Atualmente a distribuição dos sorotipos de vírus da dengue também mudou: DENV1 (93,4%), DENV4 (5,4%), DENV2 (0,8%) e DENV3 (0,4%).
387
Gráfico 05: Comparativo de incidência por regional de saúde 2014/2015 - Fonte: SINAN/SES/MG – Data atualizada em: 24/09/2005
Houve também alteração nas incidências da doença entre os estados brasileiros. As maiores porcentagens continuam no Acre e Goiás, porém a terceira maior incidência em 2015 foi em São Paulo, ultrapassando o Rio de Janeiro que em 2012 teve a maior taxa epidemia já registrada.
388
Gráfico 05: Fonte: SINAN-ONLINE/SES/MG – Dados atualizados em 25/09/2015
Pode-se
observar
que
entre
os
períodos
compreendidos entre 2014 e 2015 foi registrado um aumento expressivo de casos prováveis de dengue por semana epidemiológica. Em suma, não se pode olvidar que os casos de dengue e óbito cresceram ao longo dos anos, o que demonstra que o Poder Público precisa adotar medidas mais eficazes na tentativa de diminuir a incidência de tal doença, sob pena de responder civilmente pelos danos causados ante as falhas no poder/dever de agir.
389
3 -Omissão e responsabilidade civil do poder público diante da epidemia de dengue
Vale ressaltar que o povo, através do voto, confere legitimidade
para
que
seus
representantes possam,
mediante a receita obtida com os tributos, executar seu plano de governo, onde fatalmente dentre seus objetivos estão a saúde (levando em consideração também a tutela pela Lei de Responsabilidades Fiscais e fiscalização pelo Tribunal de Contas e Ministério Público). Nesse
ínterim,
entre
as
responsabilidades
do
Estado, figura o dever de adotar políticas públicas preventivas para evitar a instalação de epidemias que causam danos às vezes irreparáveis para a população. A celeuma surge no momento em que o prejuízo deriva de uma omissão do Poder Público. Ele deveria agir, mas não o fez, ou fez tardia ou ineficientemente. Parcela da doutrina sustenta que nessa hipótese também se aplica a teoria objetiva, já que a Constituição Federal, ao tratar da responsabilidade do Estado no art. 37, § 6º, não teria feito qualquer ressalva acerca da aplicação da teoria objetiva
somente
para
as
condutas
comissivas
(MEDAUAR, 2003, p. 398). A responsabilidade civil decorre de ação e de omissão. Nesse contexto, o art. 927 do Código Civil 390
Brasileiro de 2002 preleciona que o agente que “por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. O parágrafo único do mesmo dispositivo legal relata o dever de “reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei”. Ainda sobre o assunto, vale dizer que o art. 37, § 6º, da Constituição da República de 1988, afirma que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. A partir de evolução doutrinária, legislativa e jurisprudencial, hodiernamente tem-se que a o Estado responde
objetivamente
pelos
danos
causados
aos
particulares. Quanto às condutas omissivas, parte da doutrina entende que a responsabilidade estatal por ação ou omissão
é
objetiva,
fundada
na
Teoria
do
Risco
Administrativo. Por outro lado, alguns pensam “que em casos
em
que
ocorre
uma
omissão
do
Estado,
a
responsabilidade é subjetiva, que exige dolo ou culpa da Administração, cabendo a parte comprovar a falta do serviço” (COSTA, 2008, P 49). 391
Os Colendos Tribunais Brasileiros ao julgarem ações de reparação por danos em razão de casos de dengue tem aplicado
responsabilidade
subjetiva,
que
tem
como
“fundamento a teoria da culpa anônima, consistente na falta do serviço ou no seu funcionamento defeituoso ou tardio”, o que depende de prova (RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n° 2007.00123817. TJRJ). Todavia, corrobora-se com Costa (2008, p. 67) no sentido de que a “Constituição adotou a teoria da responsabilidade objetiva, por danos causados por seus agentes
tanto
por
ação
ou
omissão
do
Estado,
prescindindo a comprovação do elemento culpa por parte da vítima”. Apesar Brasileiros
da
em
tendência adotar
a
dos
teoria
Egrégios da
Tribunais
responsabilidade
subjetiva, entende-se pela aplicação da responsabilidade objetiva
da
Administração
Pública
por
omissão
notadamente considerando que cabe ao Estado tentar evitar
a
propagação
da
dengue.
Isso
porque
a
Administração Pública tem o dever legal de agir visto que sua omissão pode agravar a epidemia de dengue no país.
Conclusão 392
Em suma, não se pode olvidar que os casos de dengue e óbito aumentaram ao longo dos anos, o que demonstra que o Poder Público precisa adotar medidas mais eficazes na tentativa de diminuir a incidência de tal doença, sob pena de responder civilmente pelos danos causados ante as falhas no poder/dever de agir. O Poder Público tem a responsabilidade de envidar todos os esforços para evitar uma situação epidêmica de dengue. Porém a omissão configura-se no fato da não adoção de políticas públicas, medidas preventivas e também pela demora na implementação de programas de prevenção e combate ao mosquito transmissor da doença. Vale ressaltar que, diante das informações anuais, citadas no curso do ensaio em epígrafe, observam-se claramente falhas na organização e planejamento dos órgãos públicos, o que implica no crescente número de acometimento da dengue no Brasil. Certamente, um maior investimento na prevenção e combate, favoreceria o controle da doença, pois hoje os investimentos se mostram insuficientes, principalmente no quadro reduzido de funcionários, que compõem as equipes de combate a dengue nos municípios e órgãos dos demais entes da federação. 393
Considera-se, então, que em face desta omissão, resta caracterizada a responsabilidade objetiva do Estado pela não adoção de medidas mais eficazes em fase dos resultados de mortes apresentadas. É importante também que haja um fortalecimento na Educação Ambiental nos municípios, incorporando ações concretas de práticas de prevenção, objetivando com que a população se sensibilize com a causa, promovendo uma mudança de comportamentos habituais. Deverá também o ente público contemplar, como medida de eficiência em sentido estrito, o investimento em tecnologias, com base em estudos científicos, partindo do prisma multidisciplinar mirando um nível de excelência a boa administração pública. Referências bibliográficas
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. Acessado em: 27 maio 2016. COSTA, M. A. R. A Ocorrência do Aedes aegypti na Região Noroeste do Paraná: um estudo sobre a epidemia da dengue em Paranavaí – 1999, na perspectiva da Geografia Médica. 2001. 214 p. Dissertação (Mestrado em Institucional em Geografia). Universidade Estadual Paulista - Faculdade Estadual de Educação Ciências e Letras de Paranavaí, Presidente Prudente. MARON, G. M. et al. Characterization of dengue shock Syndrome in Pediatric Patients in El Salvador. The Pediatric Infectious Disease Journal, Dallas, TX, v. 30, n. 5, p. 449-450, 2011. MEDAUR, Odete. Direito administrativo moderno. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. SILVA, M. R, et al. Histórico na Microbacia do Córrego do INTERGEO: Interações Departamento de Geografia 2002
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TEIXEIRA, M.G.L.C. Dengue e Espaços Intra-Urbanos: Dinâmica de Circulação Viral e Efetividade de Ações de Combate Vetorial. 2000. 189 p. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva). Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, Salvador.
395
IMPLICAÇÕES ACERCA DA EXECUÇÃO PROVISÓRIA DA PENA
Nordeci Gomes da Silva1 Ricardo José de Carvalho2 Aparecido José3
Resumo: O Supremo Tribunal Federal no dia dezessete de fevereiro de 2016 julgou o Habeas Corpus (HC126292) decidindo que a partir deste, poderá haver a execução provisória da pena em segundo grau de jurisdição, diante disso, esse texto objetiva analisar as diversas opiniões emitidas pelos Ministros, no julgamento, bem como as divergências trazidas por doutrinadores e profissionais do Direito, com enfoque sobre o respeito e/ou desrespeito à princípios Constitucionais.
Introdução
No dia 17 de fevereiro de 2016, o Supremo Tribunal Federal, julgou o HC 126.292, impetrado por Maria Cláudia Seixas do paciente Márcio Rodrigues Dantas, contra a Decisão do presidente do STJ, Ministro Francisco Falcão. A partir desse julgamento, que contou com o relator Teori Zavascki, o STF decidiu que poderá
1 2
Graduanda no 5º período de Direito da Fupac – Mariana. Graduando no 5º período de Direito da Fupac – Mariana.
Professor de Direito Constitucional II da Fupac – Mariana, que está avaliando o presente ensaio. 3
396
ocorrer a condenação em segundo grau de jurisdição (Tribunal de justiça ou Tribunal Regional Federal) sem aguardar o exame de recursos ao STJ e STF. Após
a
referida
decisão
percebemos
muitas
divergências de opiniões entorno do tema, alegando que o julgamento não está em consonância com o princípio consagrado pela Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, LVII, “a presunção da inocência”, em contrapartida há posicionamentos que não coadunam com este, alegando que após o estágio probatório que foi realizado nas duas primeiras instâncias, já admite - se a execução provisória da pena, sem opor-se ao princípio constitucional. Há ainda indagações sobre a aplicação do princípio da presunção da inocência na justiça brasileira, o professor/doutrinador Rogério Sanches Cunha, defende a tese de que este não é aplicado, mas sim o princípio da culpabilidade. Em face de tantas divergências, há inúmeras indagações. O propósito do presente é argumentar as diferentes posições à luz da Constituição Federal de 1988 e argumentos sustentados pelos Ministros que julgaram o HC 126.292 e doutrinadores, entre os quais, destacamos: Rogério Sanches Cunha. Para iniciarmos faremos algumas conceituações sobre Habeas Corpus e os princípios constitucionais abrangidos em face da referida decisão: 397
Presunção da inocência, duplo grau de jurisdição, duração razoável do processo, segurança jurídica, entre outros.
2. O habeas corpus Expressão originada do latim, que significa, “que tenhas o teu corpo”. É um remédio judicial, para proteger todos que tem sua liberdade infringida, é um direito de todo cidadão. Pode ser preventivo, concedido apenas quando existe a ameaça da liberdade de locomoção do indivíduo, ou liberatório (repressivo), quando pretende cessar o desrespeito à liberdade de se locomover. Este instituto tem sua origem ligada ao direito Romano, no qual um homem livre que fosse detido ilegalmente poderia reclamar sua exibição. Mas esta noção de liberdade não tem relação com os ideais modernos. Existem duas correntes de autores apontando a origem deste instituto. Uma apontando a autoria do Habeas Corpus ao Rei João Sem Terra, em 1215, na Inglaterra e outros apontando para o Rei Carlos II em 1679. Mas o Habeas Corpus em seu sentido mais moderno, tendo como preocupação a defesa rápida e eficaz da liberdade individual só apareceu em 1816, conforme preleciona Alexandre de Moraes (2015) “foi introduzido no 398
Brasil, com a vinda de D. João VI, em seu decreto de 23 de maio de 1821, e implicitamente na constituição Imperial de 1824”. Já na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de dezembro de 1948, em seu art. 8º, estabeleceu: “Toda pessoa tem direito a um recurso efetivo ante os tribunais
competentes
que
a
ampare
contra
atos
violatórios de seus direitos fundamentais, reconhecidos pela constituição e pelas leis”. Mas qual seria o seu conceito? Nossa Magna carta, em seu art. 5º, LXVIII, prevê, “Conceder-se á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofre violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Ou seja, a liberdade de ir, vir e ficar. Então podemos entender que Habeas Corpus é a garantia do direito de locomoção, no qual a ameaça de coação à liberdade cessa. O ministro Marco Aurélio, no julgamento em 05 de novembro de 2013, assim esclareceu: “Essa é a tendência atual do Habeas Corpus, que é meio idôneo para garantir todos
os
direitos
do
acusado
e
do
sentenciado
relacionados com sua liberdade de locomoção”. No
entanto
não
caberá
Habeas
Corpus
para
questionar pena pecuniária conforme Súmula 693 do STF ou nos moldes da Súmula 695, também do STF, quando já 399
extinta a pena privativa de liberdade. Também vale lembrar que conforme art. 5º, LXXVII, “São gratuitas a ações de Habeas Corpus e Habeas Data e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania”. O Habeas Corpus é cláusula pétrea, e como tal, não poderá ser retirado do ordenamento jurídico, em nenhuma hipótese. Após
essas
considerações
vejamos
como
o
nosso
ordenamento jurídico prevê o duplo grau de jurisdição. 3. O Duplo Grau de Jurisdição
O duplo grau de jurisdição foi positivado pela primeira vez na Constituição de 1824, como garantia constitucional aos litigantes de um processo. Com o passar
dos
anos,
levantaram
hipóteses
sobre
a
obrigatoriedade deste principio e então este começou a ser suprimido nas constituições posteriores, levando em consideração que ele não era expresso na Carta Maior. Nos dias atuais há grandes divergências acerca deste princípio, justamente porque a nossa Constituição da República, não o traz em seu bojo de forma expressa, contudo
parte
da
doutrina
acredita
que
ele
está
assegurado ao cidadão de forma implícita. O duplo grau de jurisdição não parece fático em todos os feitos e todas as instâncias de acordo com o 400
ordenamento jurídico brasileiro. Sendo assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem ressaltado que tem direito ao duplo grau de jurisdição, os casos expressos na Carta Magna. Essa orientação foi concebida em face de cláusula expressa contida no ar. 8º, 2, h, do Pacto San José da Costa Rica. Conforme fragmento de texto da decisão do Ministro Sepúlveda da Pertence no julgamento do RHC n. 79. 785/RJ: Duplo grau de Jurisdição, à luz da Constituição e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Para corresponder à eficácia instrumental que lhe costuma ser atribuída, o duplo grau de jurisdição há de ser concebido, à moda clássica, com seus dois caracteres específicos: a possibilidade de um reexame integral da sentença de primeiro grau e que esse reexame seja confiado a órgão diverso do que a proferiu e de hierarquia superior a ordem jurídica Com esse sentido próprio – sem concessões que o desnaturemnão é possível, sob sucessivas constituições da Republica, erigir o duplo grau em princípio e garantia constitucional”. (MINISTRO SEPULVEDA PERTENCE, RHC, n. 79.785/RJ)
Destarte, percebemos o afastamento do duplo grau de jurisdição como aplicação geral em nosso sistema jurisdicional. 4. Duração Razoável do Processo
401
A EC n. 45 acrescentou à Constituição Federal de 1988, norma que assegura a razoável duração do processo judicial e administrativo, artigo 5º, LXXVIII. Um processo moroso e com data indefinida para resolução do mérito afeta a forma da ideia de proteção judicial e não coaduna com a proteção da dignidade da pessoa humana, que garante a todos os cidadãos o respeito e proteção, resguardado - os de ofensas e humilhações. O poder público e o Judiciário têm o dever de adotar medidas que garantam ao jurisdicionado, um processo justo e em tempo razoável. Mais do que duração razoável do processo, o jurisdicionado almeja a segurança jurídica, vejamos a que se refere esse princípio nas próximas linhas. 5. Princípio da Segurança Jurídica
Modificações bruscas em determinados preceitos normativos, ocasiona indagações importantes no que tange a segurança jurídica. A segurança jurídica é um princípio de grande relevância no ordenamento jurídico, assumindo o papel da ideia de justiça material.
6. Divergências à decisão do HC 126.293 402
No caso do HC126.293 que culminou com a decisão em relação a prisão em segunda instância, o paciente, réu primário, apontado como autor de um roubo, tem pouco mais de 20 anos de idade, pai de duas crianças. Decretou-se a prisão desse cidadão baseando se em testemunhas que dizem tê-lo reconhecido, apesar de o assaltante estar encapuzado. Devido à fragilidade das provas o juiz de primeira instância revogou a prisão. O réu apelou, e em segunda instância, obteve sentença distinta, na qual foi condenado. Analisar esse caso como fato isolado pode provocar injustiças. Conforme comenta a Drª Maria Cláudia Seixas, advogada do caso: Esta decisão causa grande tristeza, estão rasgando a CF, ferindo o princípio da presunção da inocência. Cumprir uma pena antecipadamente, quando ainda haverá a oportunidade de recurso, num país onde o sistema carcerário está completamente falido,é realmente complicado. É necessário que juízes e tribunais tenham a serenidade para analisar caso a caso. Para não causar maior dano à este sistema. É preciso lembrar que o erro judiciário é possível, ele existe. Como seria a situação daquela pessoa que for presa em segunda instância e depois em novo recurso, for inocentada? (SEIXAS, 2014)
403
Analisando
a
decisão
de
acordo
com
tais
argumentos, ela pode causar muitos inconvenientes à população, principalmente aos menos favorecidos. Em um país onde existe grande dificuldade em conseguir uma ressocialização para os ex detentos, (que apesar de já terem cumprido a pena pelo seu erro com a sociedade, de acordo com o que ela própria convencionou por meio das leis e das penas) continuam sendo tratados de maneira inferiorizada.
Quando
cidadãos
são
acusados
injustamente, ninguém irá informar a uma cidade de interior, onde todos se conhecem, que o indivíduo foi preso por um erro, mas que foi inocentado em novo recurso, de modo que não deve nada à sociedade. Será que seu emprego anterior e sua vida estarão a sua espera? E este preconceito poderá recair sobre seus filhos e parentes, a indenização será o suficiente para reparar esse equívoco do estado? Não bastasse as controvérsias em relação aos problemas sociais, alguns estudiosos são contrários à decisão, alegando contradição em relação à presunção da inocência
advogados, juízes e demais profissionais do
Direito consideram essa decisão uma afronta a esse principio Constitucional, conforme podemos constatar em trecho do voto do Min. Ricardo Lewandowisk “não consigo ultrapassar
a
taxatividade
desse
dispositivo 404
constitucional, que diz que a presunção de inocência se mantém até o trânsito em julgado”. O ministro reforça em seu voto que nem mesmo argumentos importantes como recursos protelatórios em favor do réu são suficientes para desrespeitar o postulado da presunção da inocência, o qual ele considera cláusula pétrea. Em seu voto ele cita opiniões
de
processualistas
penais,
tais
como
Ada
Pellegrini Grinover: Pode-se afirmar em processo penal, que a interposição do recurso pela defesa em recurso extraordinário especial e mesmo do agravo de decisão denegatória, obsta a eficácia imediata do titulo condenatório penal, ainda militando em favor do réu a presunção de não culpabilidade, incompatível com a execução provisória da pena, ressalvados os casos de prisão cautelar. (HC 123292 - 2016)
A Ministra Rosa Werber, manifestou-se contrária à decisão, por considerar que o principio da segurança jurídica deve ser preservado, todavia ressalta que o direito é dinâmico e a constituição comporta uma leitura de acordo com as evoluções da sociedade. O Ministro Marco Aurélio, proferiu voto contrário fundamentando que a execução provisória da pena, em 2ª instancia não condiz com o caráter garantidor do Estado, questionando sobre a soberania da Carta Magna. O ministro Celso de Melo, 405
também se posicionou contrário à decisão, endossando o que os seus colegas ressaltaram sobre a contradição da decisão ao princípio da presunção da inocência.
7. O HC de 2009 e os pontos controvertidos à decisão de 2016 Sobre este mesmo tema, em 2009 o próprio STF teve outra postura, e por 7 votos a 4, decidiu que o réu, neste caso, um agricultor condenado em segunda instância por tentativa de homicídio. Nessa ocasião foram à favor do HC, os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski, Ayres Britto, Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes, e tendo como relator
o Ministro Eros Grau. Ficaram contra os
ministros Carlos Alberto Menezes Direito, Cármen Lúcia, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa. Conforme informou o portal G1, para o ministro Ricardo Lewandowski, a privação da liberdade é algo irreversível e incompatível com o princípio da razoabilidade. Ele destacou que, ao cumprir uma sanção que ao final pode ser reduzida ou até revertida, o réu estaria sofrendo um “dano irreparável”. Já para Barbosa, o entendimento da maioria dos colegas era incompatível com um modelo penal eficiente. E completa: “Se tivermos que esperar os deslocamentos de recursos, o 406
processo jamais chegará ao fim. Estamos criando um sistema penal de faz-de-conta. Não conheço nenhum país que ofereça aos réus tantos meios de recursos como o nosso”. A súmula 276, do STJ, defende esta questão ao afirmar
que
“a
interposição
de
recurso
sem
efeito
suspensivo, contra decisão condenatória não obsta a expedição de mandado de prisão.” Ou seja a existência de recursos judiciais não impede a expedição de mandatos de prisão. Sendo assim, a prisão em segunda instância seria aceitável. Mas na ocasião, não foi este o entendimento da maioria dos ministros do STF. E agora, em fevereiro deste, novo julgamento, mas com final diferente, e a prisão após decisão em segunda instância é autorizada. Decisões do STF tem seu peso, e deverão influenciar novos julgados, como foi em 2009. Por outro lado, alguns estudiosos acreditam que estão sendo desrespeitadas a Constituição Federal e também pactos internacionais em que o Brasil é consignatário. 8. Princípio da presunção princípio da culpabilidade Para
compreendermos
da
inocência
melhor
o
tema,
versus faz-se
necessário, esclarecer do que tratam o principio da presunção da inocência e o principio da culpabilidade. 407
A culpabilidade pode ser vista de três maneiras distintas: como elemento integrante do conceito analítico do crime; como principio medidor da pena e como principio impedidor da responsabilidade objetiva, penal. Trata-se de forma limitadora do direito de punir do Estado. O principio da presunção da inocência, previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, LVII, preceitua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, ou seja, a CR/88 não considera o cidadão inocente, contudo não permite a imputação de culpa até o trânsito em julgado da sentença condenatória definitiva. O professor Rogério Sanches Cunha (2016), defende a tese de que o sistema jurídico brasileiro não aplica o princípio
da
presunção
da
inocência,
mas
sim
da
presunção da não culpa, partindo do pressuposto de que acontecem prisões temporárias, prevista pela Lei 7.960 de 1989, regida pelo código de processo Penal Brasileiro, conforme preceitua o artigo 1ª da referida lei, a prisão temporária, será cabível quando esta for necessária para a investigação policial na fase de inquérito, quando o indiciado não possuir residência fixa, havendo dúvida quanto a sua identidade e nos casos de fundadas razões ou participação do indivíduo nos crimes dolosos contra a 408
vida. Importante ressaltar que essa prisão, ocorre por requisição do Ministério Público. Parece contraditório, privar um cidadão presumidamente inocente de sua liberdade em fase de investigação policial, sabendo que nesses
casos
não
ocorreram
decisões
condenatórias
definitivas. Não devemos confundir a prisão temporária com Prisão preventiva, a primeira só pode ser requerida durante a fase do inquérito policial, já a segunda em qualquer fase da instrução penal. É importante ressaltar que o STF aceita de forma excepcional, a prisão provisória ou preventiva, de pessoa presumida inocente, caso haja indícios suficientes da prática do ilícito. Conforme vem proferindo decisão: Em virtude do princípio constitucional da não culpabilidade, a custódia acautelada há de ser tomada como exceção. Cumpre interpretar os preceitos que regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos ou a instrução penal. (HC 101537)4
Diante
dos
argumentos
expostos,
podemos
considerar que a decisão do HC em discussão, pode ser considerada como positiva para o ordenamento jurídico 4
STF- HC 101537- Primeira turma – Rel. Min. Marco Aurélio.
409
brasileiro evitando que recursos protelatórios dificultem a prisão de pessoas que cometem crimes. E mais, não conflita ao princípio da presunção da inocência. Além disso, após duas decisões condenatórias não há que se falar em não culpa, considerando que as matérias de fato já foram analisadas, aos Tribunais resta julgar matérias relativas a direito, portanto não justifica um “culpado” Aguardar a decisão em liberdade, colocando em risco cidadãos idôneos. Em contrapartida o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, em 2009, referente ao HC 102.098-MC / SP disse: ...constrição cautelar antecipada, é sempre medida de todo excepcional, sendo inaceitável que a gravidade do crime imputado à pessoa seja suficiente para justificar a sua segregação, antes de a decisão condenatória penal transitar em julgado, em face do princípio da presunção de inocência...
De acordo com este entendimento, a prisão antes de esgotadas todas as oportunidades para recorrer, parece inconstitucional. Considerações finais
Diante de inúmeras divergências de opiniões, como podemos constatar no texto acima, pode - se concluir que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) nesse HC, 410
traz
um
grande
impacto
no
ordenamento
jurídico
brasileiro. Percebemos que a segurança jurídica nos últimos anos não tem ocorrido efetivamente, mediante grande número de decisões, por vezes controvertidas. Em relação ao princípio da presunção da inocência, percebemos que o Brasil, não o respeita de forma eficaz. Outro fator que cabe ressaltar é a morosidade dos processos judiciais em nosso ordenamento, que causam sensação de impunidade aos cidadãos que sofrem um mal injusto. Em face de tantas adversidades que carecem ser discutidas e consolidadas, ao findar esse trabalho não conseguimos tecer uma opinião contundente acerca do tema, acreditamos que a aplicação da execução provisória da pena, deve ser analisada caso a caso, com o intuito de que
não
sejam
cometidas
injustiças
aos
cidadãos
honestos. Referências Bibliográficas: ABREU, Diego. STF decide que réu só pode ser preso após condenação definitiva. Disponível em: Acesso em: 14/05/2016.
411
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Acesso em: 14/05/2016
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413
EM DIA COM A DEMOCRACIA: O DIREITO E A RACIONALIDADE DISCURSIVA EM JURGEN HABERMAS Adrielly Coelho; Amanda Fonseca; Ana Cláudia Macedo; André Luis Pereira; Daiane Estevam; Emanuelle Cerceaux; Yasser Jamil1 René Dentz2 Resumo: Habermas procura reconstruir a relação entre razão e sociedade a partir do direito natural e tenta buscar uma solução ideal para uma democracia efetiva que seja compatível com os direitos fundamentais dos cidadãos previstos na constituição. Segundo Habermas, existe uma má função do Estado Moderno que o subordina à mão invisível do mercado, subordinado diretamente ao volátil capital financeiro, fazendo com que se destrua assim a fé na democracia. Palavras-Chave: Razão; democracia, common Law.
Introdução Jurgen Habermas é, na atualidade, um dos filósofos de maior importância mundial, pois critica e esclarece os fundamentos da lei, tendo como horizonte os Direitos Humanos. Para tanto, coloca em discussão o papel do Estado, contribuindo para legitimar e efetivar os direitos Graduandos em Direito pela Unipac-Mariana; Professor Titular da Unipac-Mariana; Psicanalista; Membro do Grupo de Pesquisa em Linguagem e Direito: crítica e hermenêutica,da Unipac-Mariana; Membro do International Institute for Hermeneutics, na Freiburg Universität/Alemanha.
[email protected] 1 2
414
fundamentais descritos na constituição (Selvatti, 2011). Assim,
considera
que
é
possível
reconhecer
uma
“simbiose” entre o direito humano e a soberania popular. Para ele, a democracia e o direito devem desempenhar funções recíprocas, sendo dever do direito regular os conflitos entre os cidadãos e/ou entre a coletividade, enquanto fica sendo dever da política a função de elaborar os programas coletivos de ação, e cada um deve cumprir uma função própria. Ou seja, um sistema precisa ser complementado pelo outro. As sociedades modernas se integram pelas normas e valores e pelos sistemas econômicos e políticos, e o direito é pressionado para integrar todas as produções sociais ao mesmo tempo e legitimá-las.
Habermas afirma que um
instrumento usado que tem esta força de tentar resolver os conflitos e integrar a sociedade é a razão discursiva, que é descrita por ele como “salvadora da humanidade” (ATHAYDE, 2003). Através dela é possível atualizar os fundamentos do Direito, retirando-o de bases (pouco) sólidas metafísicas e, por isso, exclusivistas. O Direito precisa entrar de vez em uma era da pluralidade de discursos, em uma pós-metafísica. 2. Democracia e Argumentação
415
Para Habermas, o início da sociologia no Estado Moderno é explicado pela realidade social da época e pelos conceitos de lutas ideológicas existentes surgidas em consequência
da
Revolução
Francesa,
e
da
industrialização ao longo de todo o período. Todo o produto humano, o relativismo histórico, toda a ideologia política, todas as descobertas científicas e todos os produtos da sociedade foram vistos como elementos centrais formadores da sociedade (ATHAYDE,2003). A sociologia surgiu assim com um novo sentido e com uma nova ideologia política nascendo assim como uma nova disciplina sem levar em conta as outras matérias que já tratavam do pensamento e atuação humanos. O filósofo alemão argumenta que as sociedades contemporâneas são instáveis e estão sempre sendo comandadas pelo capital, com isto apresentam profundas contradições sociais, são ineficazes e não conseguem acompanhar os ensejos e valores que a sociedade procura. Há valores diferentes para os direitos humanos e para a soberania popular, o difícil e gratificante seria conseguir conciliar e desenvolver uma relação entre estas gerando uma coexistência entre autonomia privada e autonomia pública (SELVATTI, 2011). 416
Deve-se pensar na democratização radical do Estado e retirá-lo da escravidão do capital volátil, submetendo o Estado a toda forma de participação da sociedade combinada com representação política tradicional. Deve-se pensar em outras formas institucionais por todos os cidadãos, principalmente os juristas, cientistas políticos e políticos para que haja uma grande mudança em um Estado que não muda há mais de 200 anos. A prioridade da teoria discursiva de Habermas é tentar solucionar as questões relacionadas às sociedades modernas de alta complexidade como: valores culturais, religiosos e morais que são inerentes a indivíduos diferentes e culturalmente diversos, fazendo com que o direito
consiga
atender
ao
interesse
universal,
reconhecendo o pluralismo das sociedades, conjugando suas
diferenças,
comunidade
incluindo
política,
e
todos
os
valorizando
cidadãos a
na
autonomia
individual, fazendo com que se encontre o equilíbrio entre igualdade e diversidade (Selvatti, 2011). A
teoria
de
Habermas
procura
solucionar
os
problemas modernos através do diálogo, fazendo com que todos participem com argumentos que são colocados entre todos os participantes. É importante a idealização de um espaço público onde fica assegurada a democracia através de uma participação imparcial, longe de coerção e coação. 417
Ao tentar resgatar a legitimidade do direito e a formação democrática da legislação através da colonização do mundo da vida, consegue-se legitimar e reconstruir o Estado democrático-constitucional de direito. Deve haver uma grande rede de comunicação entre os cidadãos que faça com que os mesmos consigam neutralizar
a
pressão
do
poder
social
dos
grupos
majoritários que tem uma força gigantesca na tomada de decisão
na
orientação
do
poder
administrativo
das
instituições do estado de direito. Canotilho (2011) afirma que A existência de um espaço político público, móvel, vigilante e bem informado” que dinamize iniciativas populares, introduza alternativas nas escolhas políticas, domestique o poder dos media, imponha justificações rigorosas aos actos políticos, defenda o espaço dos cidadãos perante os privilégios neocorporativos, é hoje um controlo insubstituível nos estados constitucionais.
Em
uma
teoria
do
discurso
é
importante
o
interlocutor se apresentar de forma anônima, em reuniões de cidadãos autônomos não facilmente identificáveis. Isto para que se possa ligar o poder administrativo do aparelho estatal à vontade dos cidadãos. Para estas reuniões Habermas idealiza um espaço público onde os cidadãos
418
reúnam com respeito e imparcialidade, e onde estaria assegurada uma moralidade mínima (Selvatti, 2011). A integração social dos distintos mundos da vida, pluralizados e desencantados, é possível no medium do Direito que viabiliza a legitimidade democrática pautada na idéia da autolegislação, bem como cumpre a exigência moderna da positividade. A expressão de legitimidade do ordenamento jurídico consiste na compreensão de que as normas jurídicas são emanações do povo 3, enquanto que a
positividade
afasta-se
da
concepção
de
decisões
arbitrárias. Para Habermas, O direito extrai a sua força muito mais da aliança que a positividade do direito estabelece com a pretensão à legitimidade. Nessa ligação reflete-se o entrelaçamento estrutural entre a aceitação, que fundamenta os fatos, e a aceitabilidade exigida por pretensões de validade, que já estava introduzida no agir comunicativo e na ordem social mais ou menos natural, na forma de tensão entre facticidade e validade. Essa tensão ideal retorna intensificada no nível do direito, mais precisamente na relação entre a coerção do direito, que garante um nível médio de aceitação da regra, e a ideia da autolegislação – ou da suposição da autonomia política dos cidadãos associados – que resgata a pretensão de legitimidade das próprias regras, ou seja, aquilo que as torna racionalmente aceitáveis. (HABERMAS, 2003, v.1, p. 60-61). 3No
Brasil, o art. 1º, parágrafo único, da Constituição de 1988 prevê: todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. O art. Da Constituição Italiana de .. decisões em nome do povo.
419
O Estado Democrático de Direito é compreendido a partir de uma visão procedimentalista, sendo que para o autor alemão “não se pode ter nem manter um Estado de direito sem democracia radical”, cujo pressuposto reside na afirmação de que os sujeitos jurídicos privados não podem chegar ao gozo das mesmas liberdades subjetivas, se eles mesmos – no exercício comum de sua autonomia política – não tiverem clareza sobre interesses e padrões justificados e não chegarem a um consenso sobre aspectos relevantes, sob os quais o que é igual deve ser tratado como igual e o que é diferente deve ser tratado como diferente. (HABERMAS, 2003, v.1, p. 13).
Para Habermas, a legitimidade do direito “não se resolve num momento único de entrega de parcela de sua liberdade ao Estado, tal como no pacto social hobbesiano” e também não se encontra na “institucionalização do Direito Natural em liberdades subjetivas fundadas na autonomia moral, com propôs Kant”. (CRUZ, 2006, p. 130). O direito positivo conserva sua força integradora porque é passível de aceitação racional e tal aceitação identifica-se pelo fato dos destinatários das normas reconhecerem
a
si próprios
como
seus
autores.
A
produção deste direito positivo, coercitivo e racional dá-se pelo procedimento democrático, capaz de lhe conferir legitimidade. 420
Para
se
garantir
a
liberdade
e
igualdade
na
argumentação deve-se seguir um ideal de imparcialidade e não de neutralidade. O direito é uma institucionalização da argumentação moral. Com a positivação do direito, ocorre a legitimidade da ordem jurídica. Dessa maneira, para que ocorra uma fala ideal, não deve ocorrer a intervenção de nenhum elemento externo contingente e nenhum tipo de coerção, e se deve cumprir quatro condições que são: todos os participantes devem ter a mesma oportunidade de falar; todos os participantes devem ter igual oportunidade de interpretar, recomendar, explicar, justificar e refutar; todos os participantes devem ter
igual
oportunidade
de
expressar
suas
atitudes,
sentimentos e desejos e todos os participantes devem ter as mesmas oportunidades de recusar ordens, permitir, proibir e retirar promessas. A tradicional oposição entre idéia e realidade que no início foi primeiramente estudada em sentido ontológico foi superada. As idéias passaram a ser concebidas em conjunto com a realidade incorporada a ela. Para se conseguir a validade ideal, passou-se a ter a possibilidade de resgatar as idéias pelo discurso argumentativo (VIVAN, 2001).
421
3. Mundo da Vida e Agir Comunicativo
Com seu modelo sociológico, nosso autor divide a sociedade em um nível constituído pelo mundo da vida e por um segundo nível constituído por sistemas sociais especializados. O mundo da vida tem toda a sua racionalidade através da linguagem ordinária e com agentes coordenados e falantes, enquanto os sistemas sociais especializados têm toda a sua racionalidade em agentes com comportamentos estratégicos motivados pelo êxito, com lógica própria e que se destacam no mercado e na política (DURÃO, 2009). Habermas
denomina
o
“dilema
estrutural
da
sociedade complexa” a competição entre o Estado liberal e o Estado do bem-estar. Quando ocorre uma intromissão no mundo da vida pela política, ocorre uma redução da cidadania e uma transformação das burocracias estatais e a juridicização das relações sociais (Apud DURÃO, 2009). Com
isso,
procura
resolver
os
problemas
que
vão
aparecendo com a sociedade moderna e que não podem mais ser fundamentados na religião ou na metafísica pelo agir comunicativo, que é uma força motivadora que é capaz de produzir fundamentos. Dessa forma, acredita que para viver dentro das instituições sociais, e dentro dos 422
subsistemas econômicos e políticos, é preciso recuperar a sociabilidade, a espontaneidade, a solidariedade e a cooperação no mundo da vida. Deve-se também viver através do agir comunicativo que possibilita a fixação de normas de comportamento e introdução de formas de sanção. Habermas distingue a moral do direito de uma forma muito peculiar. Para ele o direito tem uma importância
crucial
ao
integrar
todo
o
sistema,
a
sociedade e o mundo da vida, traduzindo assim as mensagens
de
uma
forma
que
torne
o
mundo
compreensível para os códigos e seus sistemas econômicos e administrativos, enquanto a moral não ultrapassa os limites do mundo da vida. A ação comunicativa é o entendimento
mútuo
entre
vários
atores,
e
agir
comunicativo envolve a ação estratégica que usa a força da oratória. A ação comunicativa é uma interação voltada para o entendimento, e o agir comunicativo envolve a ação estratégica linguística.Na visão de Habermas, o agir comunicativo consegue superar o problema da tensão gerada entre facticidade e validade, pois orienta os participantes na coordenação das ações para integrar a sociedade (VIVAN, 2001).
423
4. Sistema Jurídico, Político e Democracia
Habermas defende a existência de uma conexão entre direito e política que juntos formam o estado de direito. O sistema jurídico e o sistema político têm funções próprias e também funções recíprocas entre si na sociedade. O sistema jurídico soluciona os conflitos entre os cidadãos enquanto o sistema político define programas coletivos de ações que transcendam aos problemas isolados de cada cidadão (DURÃO, 2009). Dessa maneira, explica que aidéia dos direitos humanos e da soberania do povo determinam até hoje a autocompreensão normativa de
Estado
Habermas
de
direito
assegura
democrático.
Desta
maneira,
separação
entre
questões
a
valorativas e questões de justiça, assegurando assim os direitos fundamentais que são essenciais e são legítimos quando existe um sistema jurídico positivado. Além disto, salienta que só vai haver uma real democracia quando houver legitimidade do direito, com garantia subjetivas conjugadas com ativa participação dos cidadãos, e todos os
direitos
fundamentais
fundamentados
dentro
do
sistema jurídico (SELVATTI, 2011). As principais alternativas políticas da sociedade moderna são o Estado liberal e o Estado do bem-estar. O 424
Estado liberal conta com a livre competição e com a não intervenção do estado na economia. E o Estado do bemestar intervém diretamente e constantemente na economia e no mercado para evitar crises, deslocando a crise do sistema econômico para o sistema político, aumentando o custo dos programas sociais, o aumento da inflação e do desemprego. Os princípios da democracia aparecem como cerne de um sistema de direitos que está interligado entre o princípio do discurso e da forma jurídica. O sistema de direito será construído a partir de um modelo de democracia procedimental que devera regulamentar a vida dos cidadãos e todas as condições necessárias para implementação dos processos democráticos. O processo democrático legitimo vai aparecer depois do direito posto e legalmente
constituído,
com
um
entendimento
racionalmente motivado. O princípio da soberania popular – autonomia pública – e os direitos humanos – autonomia privada – traduzem a resposta dupla das teorias do direito racional à
questão
da
legitimidade,
segundo
Habermas
que
adverte: embora Rousseau e Kant tenham empreendido esforços com o objetivo de pensar tanto a vontade soberana quanto a razão prática sob o conceito da autonomia da pessoa do direito, a tal ponto que no pensamento de ambos a
425
soberania popular e os direitos humanos se interpretam mutuamente, nenhum deles logrou fazer juiz à equiprimordialidade de ambas as idéias. (HABERMAS, 2004, p. 291).
A noção concorrente que existiu tradicionalmente entre a liberdade antiga e a liberdade moderna, que são associadas, respectivamente, às concepções de soberania do povo e direitos humanos clássicos, é reconstruída pelo autor a partir da co-originalidade. Assim, defende a idéia de que não ocorre hierarquia entre os princípios da moral e da democracia, e sim uma complementação entre eles. A legitimidade jurídica não pode ser assimilada a validade moral, e tampouco o direito deve estar completamente separado da moral. O direito não adquire um sentido normativo somente através de sua validade moral, mas sim de todo o procedimento que o torna legitimo. Habermas entende que o poder judiciário é de vital importância para a defesa da democracia e dos direitos fundamentais já que viabiliza o surgimento de uma cidadania ativa.
5. Direito e Política Reconhece o próprio Habermas a pertinência da reflexão no tocante aos direitos políticos dos cidadãos, 426
quais sejam, direitos de comunicação e participação que garantem o exercício da autonomia pública. Contudo, ele destaca que antes de se poder institucionalizar os pressupostos de comunicação para uma formação discursiva da vontade, os preceitos jurídicos já devem estar disponíveis na forma de direitos individuais fundamentais. [...] Não há Direito sem a autonomia privada dos cidadãos. Consequentemente, sem os direitos clássicos à liberdade, em especial, sem o direito fundamental às iguais liberdades subjetivas de ação, não haveria nenhum meio para a institucionalização jurídica daquelas condições, sob as quais os cidadãos pudessem participar da prática da autodeterminação. (HABERMAS, 2003, p. 71).
Os cidadãos só fazem uso adequado da autonomia pública se forem independentes em razão de uma autonomia privada garantida de modo uniforme. Em contrapartida, só podem usufruir uniformemente da autonomia privada se fizerem uso adequado da autonomia pública (HABERMAS, 2003, p. 72). Habermas acredita que a fusão tanto empírica como normativa entre direito e política resulta no estado de direito. Ocorre uma quebra entre o poder e as normas dentro do estado de direito revelando assim uma tensão entre a facticidade e a validade. Assim, considera que o princípio procedimental de soberania popular representa para o estado de direito o mesmo papel que o princípio da 427
democracia representa para o sistema de direitos. O princípio da soberania popular regula a mediação entre os direitos
subjetivos
fundamentais,
o
direito
objetivo
instituído pelo estado de direito e opoder político emana do poder comunicativo, que tem que penetrar nas instituições do estado de direito e converter-se em poder administrativo. Finalmente, o estado de direito neutraliza a influência do poder social para que a vontade e opinião pública se convertam em poder administrativo (DURÃO, 2009). Segundo o filósofo alemão, a separação dos poderes dentro do Estado garante que o poder administrativo reproduza o poder comunicativo gerado pelos cidadãos. O poder
executivo
é
estritamente
vinculado
ao
poder
legislativo, evitando que o governo possa determinar as condições para cada tomada de decisão, e não deixando que o poder administrativo intervenha na produção e aplicação do direito (Durão, 2009). Ao introduzir um princípio de separação entre o estado e a sociedade, Habermas quer defender os sujeitos privados da intromissão do Estado, garantindo assim livre competição e liberdade e prática da comunicação na esfera pública, fazendo com que o Estado não tente manipular os cidadãos, e permitindo assim que os grandes grupos de interesse possam ser neutralizados (DURÃO, 2009). 428
Habermas declara que o poder legislativo encarregase dos discursos de fundamentação, enquanto o poder judiciário institucionaliza os discursos de aplicação das normas,
e
o
poder
executivo
limita-se
á
questões
discursivas, e opera segundo a racionalidade (DURÃO, 2009).É preciso mostrar que os direitos positivados devem se
fundamentar
na
formação
e
no
princípio
da
democracia, etambém na teoria do discurso e nos pressupostos da linguagem (VIVAN, 2001). Nosso autor desenvolveu sua teoria do direito sob a diferenciação
entre
facticidade
e
validade,
tentando
colocar o direito natural clássico nos limites da razão e dentro da sociedade.Não é possível ter direito humano sem ter
uma
sociedade
democrática.A
facticidade
é
a
positividade do direito, e a validade é a legitimidade a ele conferida. No Estado democrático de direito, os direitos humanos e a democracia tem os seus lugares de destaque e determinam a autocompreensão normativa de Estados democráticos de direito. Considerações finais Para que se assuma o princípio da democracia, os próprios cidadãos devem decidir como devem assumir o princípio do discurso. Os cidadãos devem posicionar através da liberdade comunicativa a favor ou contra 429
pretensões de validade para garantir a participação em processos de decisões. Esta é uma possibilidade de autonomia política, uma forma de opinião e de vontade. Para que as leis sejam democráticas e válidas, elas devem ser feitas com base na razão comunicativa e deve envolver todos os cidadãos. Habermas,com
a
sua
teoria
discursiva
do
direito,tenta resolver um dos grandes problemas deixados pela
democracia
contemporânea,
que
é
a
relação
tempestuosa entre poder público e privado, e direito fundamental e a própria racionalidade. Referências ATHAYDE, Públio. Direito e Democracia em Habermas. Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/4494/direitoe-democracia-em-habermas >. Acesso em: 30 set.2015. CARNELUTTI, Francesco. Verdade, dúvida e certeza. Gênesis: Revista de Direito Processual Civil, Curitiba, n.9, p. 606-609, jul./set. 1998. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distribuída: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3.ed, Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004. DURÃO, Ayton Barbieri. Habermas: os fundamentos do estado democrático de direito. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/trans/v32n1/08.pdf>. Acesso em: 30 set. 2015.
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431
Mariana, 2016 432