Direito Canônico
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1. Introdução ao Direito Canônico 1.1 Função e definição Por conceito, John Gilissen define Direito Canônico como o direito da comunidade 1
religiosa dos cristãos, mas especialmente o direito da igreja católica . Além disso, o Direito Canônico também é uma forma de garantir os direitos dos fiéis e preservar seus interesses legítimos perante a instituição. Uma definição mais completa de Direito Canônico está contida no livro “New comentary on the code of Canon law” e dita que o Direito Canônico é um acervo de normas criados pela razão e iluminados pela fé, cujo intento é trazer ordem à comunidade eclesiástica, sendo articulado e promulgado por aquele que preza pelo bem da comunidade e tendo o propósito de servir ao bem comum. Além disso, o Direito Canônico impõe obrigações, ou seja, estabelece vínculos legais dos quais os direitos e 2
deveres transcendem” . Contudo, devese observar a Igreja não só como uma instituição religiosa, mas como uma comunidade humana, que influencia e é influenciada por seres humanos. O próprio nome latino da Igreja, “ ecclesia”, que significa “reunião,reunir”, suporta essa ideia da instituição como uma sociedade, um todo interligado. E esse fato se torna de extrema importância uma vez que, sendo uma comunidade humana, os direitos dessa se revelam operantes e relevantes para a Igreja. O surgimento de um conjunto de regras que regulasse esse agrupamento de pessoas então, se mostraria inevitável. A origem da palavra ‘canon’ assegura tal afirmação, pois tal palavra vem do grego ‘kanoon’, significando regra. Devido a essa característica de ser tanto 3
“da terra como do céu” , ela é imperfeita. Por esse motivo também se necessita de um Direito que ajude a guiar essa comunidade à sua perfeição e que auxilie na busca pelos autênticos valores, que também terão sua parcela de participação no alcance da perfeição. Ademais, não se deve esquecer que o Direito Canônico, além de regular as atividades eclesiásticas e suas relações, deve amparar a Igreja em sua missão de espalhar a palavra
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GILISSEN, John . Introdução histórica ao direito, 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.133.
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BEAL, John P. New comentary on the code of Canon law . Nova York: Paulist Press, 1995. P.7.
3
Idem. P.2.
divina pelo mundo, seja por estabelecer a ordem dentro da comunidade, criando assim um clima de paz que propicia a divulgação de palavra, ou por ser simplesmente ser um modo de ensinamento e transmissão de valores. A natureza do Direito Canônico, acompanha a daquela regulada por ele (Igreja Católica), portanto, fica claro que ele também terá um viés transcendental e religioso, ao mesmo tempo que portará característica do Homem. Sendo assim, podemos dizer que apesar de sua face divina e de regular leis consideradas divinas, sua face humana faz com que ele absorva características provindas do Homem, o legislador acaba transparecendo sua opinião: apesar de seu caráter divino, as leis eclesiásticas continuam condicionadas às circunstâncias históricas. Ademais, assim como a ecclesia, suas leis e diretrizes podem ser reformadas e mudadas todo tempo, se adaptando ao crescimento e expansão constante da instituição. Nesse contexto, também se leva em consideração que o legislador deve sempre tentar manter as leis menos rígidas e as mais genéricas possível, para diminuir a necessidade da reforma e do adequamento do código. Ainda, para ser legítima, qualquer norma imposta pelo Direito Canônico deve estar obrigatoriamente ligada a um valor. Se não for o caso, a norma perde o sentido, já que sua principal função é ajudar a se chegar ao bem comum e sem o suporte a um valor específico, isso não se torna possível, a norma perde sua autoridade: “ As normas, em si não tem 4
valores; elas existem para o bem destes” . Para findar este tópico, devemos ter em mente que o Direito Canônico se baseou enormemente no Direito Romano, devido a sua função como regulador das relações humanas dentro império e seu caráter universalista, que será adotado pela Igreja Católica devido aos seus interesses, principalmente visando a expansão da fé e a organização da in 2 Fontes do Direito Canônico A) Jus divinum
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Ibidem. P.3.
Constitui os ensinamentos das sagradas escrituras (Antigo e Novo testamento), das escrituras dos Apóstolos e dos Doutores da Igreja. Segundo Gilissen, pela época em que forma escrito, o Ius divinum tem grande influência da grega e oriental (escrito em hebraico) 5
. Wolkmer também atesta a isso, dizendo que os pensadores do cristianismo podem ser
diferenciados em dois grandes grupos: aqueles de inspiração grega (São Justiniano, São Irineu, Clemente de Alexandria, etc.) e aqueles que tem inspiração romana (Tertuliano, Lactâncio, São Ambrosio, etc.). Ainda, segundo ele, os pensadores de viés grego se ocupam de questões mais elevadas e profundas da teologia enquanto os de inspiração romana tem 6
maior inclinação por questões práticas, políticas e sociais (40). B) Jus canonicum É constituído por cânones e decretais. Segundo Wolkner, cânones são: regras jurídicosagradas que determinam de que modo devem ser interpretados e resolvidos os 7
vários litígios. (...) São leis, reveladas por um ser superior . Já Gilissen traz uma definição 8
um pouco mais sucinta: Canônes são as decisões dos concílios . C) O Costume Para Gilissen, O costume ou jus non scriptum , não terá grande influência no desenvolvimento do Direito Canônico devido ao enorme número de legislações escritas. Porém, para ser considerado costume ele deveria possuir algumas características definidas por canonistas da Idade Média: deve ter sido seguido por uma certa quantidade de tempo, 9
ser razoável e ser legítimo . D) Direito Romano
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GILISSEN, John . Introdução histórica ao direito, 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.143.
WOLKMER, Antonio Carlos . Fundamentos de Hisória do direito, 7ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. P.243. 6
WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma história das ideias jurídicas: da antiguidade à modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. P.40. 7
8 9
GILISSEN, John . Introdução histórica ao direito, 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.143. Idem. P.144.
Por sua desenvoltura durante o Império Romano, a Igreja e, por conseguinte seu código, assumem algumas características provindas desse fato. No caso do código, as leis eclesiásticas terão grande influência da parte civil do direito romano, principalmente o que concerne as obrigações e o processo civil. 1.3 Contexto da ecclesia A crise do império romano será decisiva para o futuro da religião cristã e mais ainda para a própria Igreja Católica Apostólica Romana. É justamente no fim do império que a religião cristã ganha força, contrário aos infindáveis esforços de dezenas de imperadores romanos que tentaram arduamente suprimir o avanço dessa religião, perseguindo seus seguidores (queimandoos na fogueira ou forçandoos a lutarem nos coliseus). Porém, a Religião resistiu e em 313 d.C., pelo Édito de Milão, Constantino declara o fim da intolerância religiosa: todas as religiões eram livres para praticarem seus cultos, inclusive a Católica. Constantino também ficou lembrado por ser o primeiro Imperador Católico, se convertendo a religião cristã pouco antes de sua morte (seu batismo pouco antes da morte faz dele católico). Alguns anos mais tarde (391 d.C.) o jogo se inverte, agora todas as outras religiões eram perseguidas, a não ser a católica que veio a se tronar a religião oficial do Império (Édito de Tessalônica), dando mais forças, importância e influência para essa religião em expansão. Com o expansionismo romano, o Império havia adquirido grandes extensões territoriais, que eram cercadas por povos vizinhos denominados como bárbaros - termo pejorativo que se referia a todos aqueles que não possuíam a mesma língua e crença do império romano, usado para se referir a povos germânicos, celtas, iberos, tártaros e persas- A invasão dos povos “bárbaros” do Norte, o Império Romano
do ocidente é destruído e fragmentado, dando início ao que mais tarde receberia o nome de Feudalismo. Nesse novo contexto de fragmentação territorial e política, surgem diversos sistemas políticos e econômicos que muitas vezes estavam baseados em relações de subordinação entre particulares. Logo,
o desmembramento do império romano foi se apropriando de
características de ambos povos, seja o modo de produção escravagista dos romanos e o regime comunitário dos povos germânicos do Norte, essa incorporação dúbia será responsável para formação de um regime feudal.
Mesmo com o colapso do Império Romano Ocidental, resquícios do direito romano permaneceram na Europa, tal fato pode ser justificado pela manutenção de características administrativas e religiosas semelhantes a organização imperial. O ius civiles continuava vigente entre populações latinizadas ao sul, tais como: Gália, Itália e Espanha. Já ao norte, o direito germânico predominou. As populações viviam de acordo com suas próprias leis, caracterizando assim, o princípio de personalidade jurídica, segundo o qual o indivíduo é submetido as leis do seu povo de origem, não importando o local que esteja. Foi a efetivação desse princípio que possibilitou a continuação da existência do direito romano mesmo após a queda do império. O direito se distanciou de sua essência clássica, passando a se caracterizar como um direito consuetudinário, baseado nos costumes de uma sociedade, que embora não formalizados, apresentam uma força de lei. Porém, com o fortalecimento do sistema feudal nos séculos X, XI e XII o poder passou a ser descentralizado, e houve um enfraquecimento do poder real, a Europa Ocidental passou a compor um cenário multifacetado de feudos. Com o poder real descentralizado, a nobreza perdeu força e já não conseguia mais impor suas leis, assim, o poder legislativo e judicial passaram a mão do senhor feudal. Assim, o direito ficou limitado as relações entre os senhores feudais e seus servos. Os escritos jurídicos eram inexistentes, e o costume passou a ser principal fonte de direito, que pautava a as relações de suserania e vassalagem. Porém, vale ressaltar que algumas instituições eclesiais – que tinham o domínio da escrita – deixaram escritos, assim, a justiça era muitas vezes a manifestação divina, uma vez que o clero era representação divina na terra. Agora sem as amarras estatais do Império Romano, a Igreja pode se expandir até assumir uma posição parecida com a de um Estado, a Igreja Estado se consolida como uma nova instituição reguladora da atividade humana num ambiente tão atomizado (palavras de Rogério Dutra dos Santos) . Um fator que iria contribuir enormemente para a ascensão da
Igreja como “Estado” é a capacidade que essa instituição teve de assimilar características provindas do antigo Império Romano bem como dos povos invasores, resultando em combinação, que em si, caracterizaria a nova sociedade da Baixa Idade Média. O responsável pela junção desses dois meios de vida (dos “bárbaros” e dos romanos) foi a Igreja Católica Romana. Por um lado, ela negava importantes aspectos da cultura romana, como o caráter divino do Imperador, a hierarquia e o militarismo; por outro lado, acabava por ser também um prolongamento do caráter universalista de Roma, fazendo, 10 por exemplo, com que o cristianismo fosse elevado à religião de Estado .
Conclui ainda Franco Júnior: “ A Igreja passava a ser a herdeira natural do Império 11
Romano” . Com sua nova função, se torna imperativo que a própria Igreja comesse a se organizar internamente, criando assim uma série de regras advindas de concílios, decretos etc. Nesse começo é que a Igreja instituirá sua forma de organização clerical: uma hierarquia rígida, com um papa como sumo pontífice e líder da Religião Católica. Essa organização tem seu fundamento numa passagem bíblica que dita que Cristo passa seus poderes a seus apóstolos para que esses possam continuar a dispersar a religião cristã. Dessa forma, os apóstolos passam esses “poderes” aos bispos (anciões) que então passam aos seus subordinados (abades, padres etc.). Portanto, através de uma série de circunstância políticas, religiosas, geográficas e históricas, o Bispo de Roma foi acumulando poder até ser declarado o sumo pontífice da Religião Católica ou Papa. Ademais, para os povos Germânicos a presença de um líder carismático (guerreiro), com qualidades diferenciadas tanto morais quanto espirituais, era fundamental e garantia a obediência e a dominância daqueles sobre seu controle, sendo imperativa sua vontade e decisão sobre alguma ação litigiosa. A Igreja se aproveitará disso instituindo na figura do Papa esse líder carismático, o que facilita a alienação e a conversão dos fiéis. Portanto, como diz Wolkmer
FRANCO JUNIOR, Hilario. A idade média : nascimento do ocidente, 2ª Ed. São Paulo: brasiliense, 2001. P.89. 10
11
Ibidem. P.90.
O direito germânico trouxe o modelo que originou o laço social mais característico do feudalismo: o vínculo de autoridade baseado no carisma de um líder guerreiro. Dessa forma, tendo consciência de que a manutenção do poder senhorial se dará através de vários instrumentos jurídicos e políticos, na sua tipologia pura Max Weber vai afirmar ser a relação de séquito baseada na dominação carismática, o feudo sendo, desse modo, uma apropriação de poderes e direitos de mando exercida através de uma relação “fraterna” de fidelidade moral.12 Toda essa política para atrair fiéis e expandir a fé cristã terá resultados estrondosamente positivos, quase toda a Europa Feudal é Católica e de certa forma subordinada à Igreja: A Igreja foi (...) uma força onipresente no desenvolvimento financeiro e jurídico da Europa. Como maior latifundiário, estava comprometida com a defesa do 13
feudalismo . Ou seja, a Igreja, como maior senhor feudal da Europa, detinha plenos poderes sobre todo o continente, se marmorizando no poder. Dessa forma, a instituição de um Direito Clerical nada mais é do que a consolidação formal da Igreja no poder: agora com uma massa de súditos, a Igreja deveria ter regras institucionalizadas para regulálos e regular a si mesma. Assim, criase o Direito Canônico. Conforme o tempo passa e a Igreja vai acumulando ainda mais poder e influência, o Direito Canônico passa a ter um caráter punitivo e repressivo, principalmente quando se releva o fato de que se tem uma perda da justiça institucionalizada junto com a fragmentação de Roma. É de se esperar, portanto, que a Igreja como instituição máxima e maior do Feudalismo, assuma também o papel de fazer justiça, à medida que crescia a influência da Igreja Católica das questões temporais já que toda concessão de terra trazia autoridade para o concedente em relação ao concessionário, os tribunais seculares passaram
OLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos Da História do Direito, Belo Horizonte, 2012, p.269 W TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine R. O direito e a ascensão do capitalismo . Rio de Janeiro: Zahar, 1978. P.53. 12 13
a ser pressionados para julgar seus litígios a partir do Direito Canônico e 14 para transmitir seu poder de decisão aos tribunais canônicos .
A jurisdição eclesiástica passou a ser competente, por exemplo, a julgar todos os casos relativos ao casamento e à maioridade dos litígios envolvendo direito de família. 1.4 Compilação do Direito Canônico A)Parte geral Por ser um direito escrito, o momento de sua compilação é de extrema importância. Como visto anteriormente, a Igreja ganha alto poder jurisdicional, ou seja, ocupa o papel do Estado de aplicador de regras, a Igreja passa a ser “o poder judiciário”. Dessa forma, a Igreja irá buscar amparo no direito da sociedade a qual ela foi fundada, o direito Romano, passando utilizar dele cada vez mais, porém com algumas adaptações para que ele se encaixe no pensamento eclesiástico. Ou seja, “ (a legislação romana) deveria ser interpretada por doutores abalizados pelo clero nas universidades, (atribuindo) sentido 15
oficial dos textos romanos” . Além disso, a Igreja, com a dominação da produção intelectual jurídica através das universidades e monastérios, também utilizou do direito como forma de dominação e submissão: “mais que levar a verdade, o que o jurista canônico externa é a vontade política 16
do poder eclesiástico em fazer valer seus comandos” . O direito canônico se torna uma forma de dominação e legitimidade do poder papal. B) Compilação de Graciano Por volta de 1140, Graciano, monge professor de teologia da universidade de Bolonha, faz uma compilação de decretos, leis, pareceres e decisões eclesiásticas que também ficou conhecida como O decreto ou Concordância dos cânones discordantes.
WOLKMER, Antonio Carlos . Fundamentos de História do direito, 7ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. P.242. 14
15
16
Ibidem. P.243. Ibidem. P.243.
O decreto se torna importante uma vez que ele unifica a legislação da Igreja, concluindo um processo histórico que começou no século IV d.C e assim consolidando de forma definitiva a Igreja como instituição, garantindo também a legitimidade do papa e de toda a jurisdição eclesiástica. Cláudia Rosane Roesler resume: “(a compilação de Graciano foi uma) tentativa de harmonização e conciliação doutrinária entre as diversas forças que 17
existiam dentro da Igreja em sua época” (p.24) Esta também se trona uma compilação diferenciada pelo seu caráter unitário e tentativa de fazer das legislações algo coeso e interrelacionado, fato que não caracterizava compilações anteriores. Para se atingir este objetivo, Graciano utiliza de um método que consiste em analisar o problema de forma dialética, expondoo e posteriormente apresentando uma solução “a partir do exame das contrarietates que nele podem ser encontradas, com base nas auctoritates , escolhendo e justificando sua conclusão neste 18
procedimento de harmonização e concordância” . O decretum é divido em três partes Na primeira parte, no início de cada distinctio, o autor resume os princípios gerais que nela serão desenvolvidos e por vezes preocupase em ligála com a distinctio precedente. Na segunda parte cada causa é iniciada com a exposição de um imaginário caso prático, ao qual o autor faz seguir a análise das várias questões que precisam ser decididas para 19 solucionálo. A terceira parte da coleção é pura exposição de textos .
Outro aspecto extremamente inovador trazido por esse jurista é sua notável distinção entre teologia e Direito, que apesar de não ser uma cisão completa, já é suficiente para facilitar o tratamento do tema mais juridicamente. Por esse fato, Graciano pode ser considerado o fundador da canonística como Ciência do Direito Canônico.
ROESLER, Claudia Rosane. A estabilização do Direito Canônico e o Decreto de Graciano . Revista Seqüência, nº 49, p. 9-32, dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 2015-06-29. P.24. 17
18
Idem. P.25. 19
Ibidem. P.26.
3. A formação do Corpus Juri Civilis na Idade Média Como foi visto, o Direito Canônico foi na Idade Média, peça chave para a formação do pensamento Ocidental. Engendrado num contexto de ruptura com a tradição da Antiguidade, o Direito Canônico é essencial para melhor se entender o direito como ele se dá hoje. Para melhor compreensão, será feita uma divisão cronológica do Direito Canônico em duas épocas: Baixa Idade Média, que abrange os séculos V ao X, Alta Idade Média, que vai do século XI ao XV. Percebese que nessa ordem a Idade Média começa com a queda do Império Romano do Ocidente, com a conquista de Roma por Odoacro em 476, e termina com a queda do Império Romano do Oriente, com a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453. A Igreja Católica nesse período se firma com hegemonia no continente Europeu, e é dessa pretensa hegemonia que surge a construção do Direito Canônico. 3.1 Alta Idade Média As invasões dos povos germânicos tiveram suma importância e influência no cotidiano dos habitantes da Europa de um Império cada vez mais esfacelado. Esse período tem como matriz, três acontecimentos principais: O fortalecimento do poder da religião, centrada numa Igreja extremamente descentralizada e integrada às culturas locais; a ascensão e a queda do Império Carolíngio; e a perda de força das grandes invasões, que se findam em meados do século IX. Há nesse contexto o surgimento das relações feudais, cada vez menos centralizadas em uma autoridade central, e mais em um conjunto de relações contratuais entre as pessoas. O direito assim se torna cada vez mais baseado nos costumes e tradições, se aproximando da visão germânica da elaboração dos direitos, baseada em relações consuetudinárias. Dessa forma a Europa na Baixa Idade Média se institui em vários direitos: Direitos germânicos, Direito Carolíngio, Direitos Eslavos, Direito Feudal e Direito Canônico.20 A Igreja vai se inserir nesse contexto de maneira a seguir a máxima da propagação exaltada pelo próprio Messias: convertendo, muitas vezes através de coerção, povos pagãos 20
GILISSEN, John . Introdução histórica ao direito, 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.128.
com o pretexto do “salvamento de almas”. Esse caráter ecumênico universalista da Igreja acaba por propiciar essa expansão pela Europa, começada ainda na época romana, levando a relações cada vez mais intrincadas das autoridades religiosas com os poderes civis locais. Eu um contexto feudal, isso significa uma política de alianças entre o poder laico e o poder secular, através de casamentos, testamentos e as demais relações de cunho feudal, como o patrimonialismo e a posse de terras, principal meio de produção da época. A maioria dos historiadores do direito acabam por, dessa maneira, considerar a Igreja uma forma de Instituição totalmente descentralizada, onde os bispos tinham plenos poderes em suas respectivas áreas. Tigar e Levy atestam a isso, dizendo A Igreja foi (...) uma força onipresente no desenvolvimento financeiro e jurídico da Europa. Como maior latifundiário, estava comprometida com a defesa do feudalismo, e com toda a sua autoridade auxiliou na repressão das revoltas de camponeses que varreram o continente. Denunciava como hereges ou trancafiava em mosteiros todos aqueles que desejavam restabelecer a imagem de urna Igreja comunal, apostólica.Assim, a Igreja veio a participar como grande senhor feudal, já que despontou como proprietária de vastas extensões de terra e, por seu poder espiritual e temporal abranger toda a Europa durante o período medieval, foi certamente a única instituição sólida existente. As poucas cidades que sobreviveram à desintegração do Império Romano foram, por conseguinte, as cidades episcopais e arcebispais.21
Dessa maneira, o Direito Canônico vai se engendrando através dos séculos para formar um arcabouço de dominação sobre a vida nos feudos. Vale ressaltar que essa dominação era essencialmente descentralizada na Baixa Idade Média, com a instituição do direito consuetudinário, se valendo da instituição generalizada dos costumes. A ascensão do Império Carolíngio se deu principalmente pela habilidade em utilizar o poder da religião e das relações feudais de vassalagem como nenhum outro reino de sua época. Sucessor espiritual do Império Romano, conheceu seu auge sob os reinados de Pepino, o Breve e Carlos Magno. Porém, além de abrangir grande parte dos territórios do Império Romano Ocidental, os carolíngios foram além e se extenderam por toda a Alemanha, influenciando uma área do norte da Espanha até as estepes russas. Há durante todo o Império Carolíngio uma estreita aliança com a Igreja, pois os imperadores Carolíngios retiravam parte de sua legitimidade da sagração pela Igreja. Em troca, a Igreja
21
TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine R. O direito e a ascensão do capitalismo . Rio de Janeiro: Zahar, 1978. P.53.
como instituição adquiriu parte das conquistas carolíngias na Itália Central, que até 1870 constituirão as terras seculares da Igreja (donatio Peppini). Os imperadores Carlos Magno e seu sucessor Lotário, intervém bastante na organização da Igreja, porém com o enfraquecimento do Império Carolíngio, os reis e senhores feudais ficam cada vez mais submetidos às altas autoridades eclesiásticas.22 3.2 Baixa Idade Média A tradição cultural da descentralização dos poderes, tanto religioso quanto secular, em uma época posterior à queda do Império Romano no Ocidente, acabou por levar a diferenças culturais acentuadas entre as mais diversas regiões da Europa. Essas diferenças levam a uma ruptura política e geográfica dentro da Igreja, conhecido como Cisma do Oriente, ocorrido em 1054. As causas dessa separação são, além da ausência de um poder central e coercitivo na Instituição da Igreja Católica, ao costume bizantino do cesaropapismo, caracterizando uma espécie de teocracia à moda de Justiniano nos séculos anteriores ao Cisma.23 O Cisma do oriente então dividiu a Igreja em duas: a parte Ocidental, Católica, Apostólica e romana, e a Oriental, Ortodoxa e grega. Além desse acontecimento relevante, outros dois são de suma importância na construção do Direito Canônico: A Querela das Investiduras, representando a afirmação do poder papal; e a Renacença do século XII, período de muitas transformações políticas, sociais e econômicas na Europa, que acabaram por assentar as bases para o Renascimento e a Revolução Científica vistos na Idade Moderna. Com a perda de autoridade da cúria romana no Oriente devido ao Cisma, começa a haver uma movimentação política direcionada à centralização do poder papal, conforme explica Lopes, Até então, a Igreja do ocidente havia sido uma comunidade sacramental, espiritual, não jurídica e muito mais uma federação de Igrejas nacionais do que uma rígida monarquia centralizada em Roma.(...) É com Gregório VII, neste reínicio da expansão do Ocidente, que as coisas começam a mudar, e a mudança se reflete e é GILISSEN, John . Introdução histórica ao direito, 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.137. LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P. 61. 22 23
também constituída no campo do direito. Antes de Gregório VII, a jurisidição religiosa não se destacava claramente dos sacramentos. Sacramentos e lei eram ma só e mesma coisa. Leis canônicas não se distinguiam bem da liturgia e teologia24. A Lei era uma espécie de disciplina, regra comum. Mas as regras comuns eram muito vagas: quanto mais comuns, mais vagas e abstratas. Por exemplo: a Espanha arabizada constituíra sua própria tradição litúrgica, o chamado rito moçárabe.25
A Igreja em Roma, por tal descentralização, se via cada vez mais ameaçada pela ocorrência de novas rupturas. A movimentação política então pode ser vista como uma tentativa de contraposição a subordinação ao poder civil feudal, sobretudo ao poder do Sacro império Romano. Gregório VII então, toma uma série de medidas que em conjunto constituirão as bases para a formação dos Estados Nacionais, de acordo com uma perspectiva weberiana26: a instituição de uma dominação burocrática racional, legal e formal. É nesse esforço principalmente que começa a se desenvolver o Direito Canônico, pois Gregório VII propõese libertar a Igreja do poder secula, porém não apenas sua Igreja particular, mas a Igreja Ocidental inteira, e isto só pode ser feito organizando um poder político mais eficaz do que o de seus adversários, no caso o Sacro Império Romano. A reforma gregoriana se baseia na oposição a todas as relações feudais características que a Igreja católica vinha tendo nos seus mais variados níveis. Gregório centrase principalmente na oposição à simonia (venda de coisas sagradas, particularmente os cargos e ordenações clericais), ao casamento dos clérigos (nicolaísmo) e à nomeação de leigos para cargos mais altos e dignidade eclesiásticas, recebendo os benefícios (rendas) de terras, paróquias mosteiros, etc.” Em 1075, dando início a sua reforma, Gregório emite ou organiza o famoso Dictatus Papae , cuja verdadeira natureza é ainda controvertida27. (…) O fato é que se tratava de uma série de títulos ou princípios visando dar liberdade e independência à Igreja. Entre eles destacavamse os seguintes: (1) A Igreja Romana foi fundada exclusivamente pelo Senhor; (2) Só o bispo de Roma pode ser chamado universal de direito; (3) Só ele pode depor e instalar bispos; (4) Seu legado precede a todos os bispos de um concílio, mesmo se tiver um grau hierárquico inferior, epode senteciar qualquer um deles à deposição;(7) Só ele pode legislar de acordo com as necessidades do tempo; (9) Sé seus pés podem ser beijados pelos príncipes todos; (10) Só seu nome deve ser recitado nas Igrejas; (11) Ele pode depor os imperadores; (16) Não podem chamar sínodos gerais sem as suas ordens; (17) Nenhum capítulo ou livro pode ser considerado canônico sem a sua autoridade; (18) Nenhum de seus julgamentos pode ser revisto, mas ele pode 24
BERMAN, Harold. Law and Revolution . Cambridge: Harvard University Press, 1983. P.204
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P68. 26 Idem. P.69. 27 BERMAN, Harold. Law and Revolution . Cambridge: Harvard University Press, 1983. P. 95. 25
rever os julgamentos de todos; (21) Os casos mais importantes de todas as Igrejas podem ser levados à Sé Apostólica (ele é ordinário em qualquer jurisdição); (27) A ele compete dissolver os laços de vassalagem e fidelidade para com o homem injusto. Foram 27 proposições que revolucionaram não apenas as terras do império, essencialmente as hoje ocupadas pela Alemanha e Itália (...),mas todo o resto da Cristandade latina, repercutindo de tal modo que nos séculos seguintes a mesma centralização papal se expressa em conflitos famosos com os reis da Inglaterra e Portugal.28
Durante a Baixa Idade média, os reis eram considerados autoridades sacrais e adquiriam seu poder pela unção: a sagração do rei era uma cerimônia religiosa e política. No entanto, a reforma gregoriana, acaba por afirmar indiretamente que os reis estavam dentro da Igreja, e não acima dela ( imperator in Ecclesiam, non super Eclessiam); e que dentro da Igreja a autoridade máxima era o papa. Isso ía totalmente contra a estrutura política do Império, que por tradição era um poder e não um território, como se pensa.29 Era um poder baseado na autoridade ( imperium ) e na capacidade de governar ( jurisdictio ). Ademais, não era um poder sobre um determinado povo em um determinado território, mas sim sobre um conjunto de senhores, intrincados em uma rede de relações feudais e interpessoais. Não havia uma burocracia central, vigorando sobretudo o princípio da personalidade (ou pessoalidade) dos costumes locais e de algumas leis. “O império era, pois, uma entidade militar/espiritual”.30 O modelo carolíngio de colaboração entre Igreja e Estado, através daquelas relações feudais é findado pela reforma gregoriana, passando a vigorar um modo
de
nãointervenção do Estado na ecclesia , que perdura até a Reforma. Com o catolicismo marjoritariamente estabelecido na Europa, o papa resolve centralizar a nomeação dos bispos, diferentemente da Baixa Idade Média, onde costume era que os bispos fossem nomeados por outros três bispos, criando assim uma “rede” que dispensava uma autoridade central presente, coisa difícil de se ter em uma Europa amplamente fragmentada. Essa “rede” era muito interligada aos poderes locais, estabelecendo relações de “compadrio” com o poder feudal.
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.70. 29 BERMAN, Harold. Law and Revolution . Cambridge: Harvard University Press, 1983. P. 89. 30 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.71. 28
Esse atrito entre Império e Igreja acaba por estabelecer a Questão das Investiduras, que foi uma série de conflitos armados que só seriam apaziguados meio século mais tarde, através da concordata de Worms em 1122. Tal acordo reconheceu ao Imperador o direito de investir bispos com a autoridade secular ("pela lança") nos territórios que estes governassem, mas não com a autoridade sagrada ("pelo anel e báculo").31 Os antescedentes do movimento reformador gregoriano advém principalmente nas reformas de Cluny, também chamadas de reformas beneditinas. De certa maneira, a abadia de Cluny foi a primeira a abandonar as relações feudais seculares, uma vez que seu abade passou a exercer autoridade sobre todos os mosteiros próximos, estabelecendo assim uma centralização com os senhores políticos feudais em uma única pessoa (aspecto organizacional) A instituição da Paz de Deus e da Trégua de Deus idealizadas pela abadia de Cluny – no contexto político europeu também teve grande influencia na reforma papal. (aspecto moral).32 A influência desses aspectos, a centralização burocrática e moral, fez com que Gregório procurasse fortalecer o Direito Canônico para fins de supremacia argumentativa, ou seja, havia a necessidade de montar um arcabouço jurídico capaz de afirmar a autoridade papal. Com a Concordata de Worms, estabelecese um equilíbrio entre o poder espiritual e o temporal, sendo essa disputa um fruto característico da tradição ocidental. Assim, no Ocidente não se desenvolvem teocracias como a ortodoxa, a muçulmana e a hindu, uma vez que nem o Imperador tinha poder para se apossar da estrutura clerical, nem o Papa tem influência o suficiente para interferir nos Estados seculares europeus.33 A reforma gregoriana portanto, é de suma importância para a formação da tradição oriental. De fato, Berman34 considera a Reforma Gregoriana como a primeira revolução do mundo ocidental, pois teria sido rápida, total, universalizante, socioeconômica. Está ao lado de todas as outras revoluções do segundo milênio: a Russsa (1917), a Francesa (1789), a
31
Idem. P.72. BARROW, Julia. "Ideology of the Tenth-Century English Benedictine 'Reform'". Apud Skinner, Patricia. Challenging the Boundaries of Medieval History: The Legacy of Timothy Reuter. Turnhout, Bélgica: Brepols. 2009. P. 142. 33 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.73. 34 BERMAN, Harold. Law and Revolution . Cambridge: Harvard University Press, 1983. P. 115. 32
Americana (1776), a Inglesa (16881689) e a Protestante (séc. XVI). Essas revoluções tem entre si muitas características em comum: “todas elas, além de seguirem um projeto, foram violentas e rápidas, mas nunca se consolidaram se não num espaço de mais de uma geração, e sempre trouxeram um direito novo que se firma e substitui um direito velho”. Foi da concepção de Igreja de Gregório que começou a nascer o Estado moderno: são instituídos uma burocracia, um poder de legislação, uma ambição de universalidade. Concepção importante também foi a reafirmação da superioridade da lei sobre a tradição consuetudinária, sendo de Gregório a famosa afirmação: “O Senhor disse: ‘meu nome é verdade’, não ‘meu nome é costume’ ”. A reforma também restaura o príncipio argumentativo para a resolução de conflitos, através da ampla adoção da Paz de Deus e da Trégua de Deus, distinguindo da concepção militarista presente na Baixa Idade Média. A partir disso, a autoridade se reafirma sobre o potestas (o poder legítimo) e não mais sobre a potentia (a força). Na reforma também há o estabelecimento da militia Christi como um processo de militarização do papado contra as forças imperiais, que estabelece as bases para o lançamento das Cruzadas nos séculos posteriores.35 3.3 A Formação do Corpus Juris Canonicum Durante toda a Baixa Idade Média, havia uma infinidade de cânones que disciplinavam a ecclesia , esta por sua vez descentralizada e distribuida por toda a Europa Ocidental.No entanto, com a emergência da Alta Idade Média, caracterizada pela centralização do poder papal, surge a necessidade da codificação desses cânones. Já em 1090, alguns anos após a reforma gregoriana, Ivo, bispo de Chartres (já um centro intelectual, devido a uma escola anexa à catedral), redige uma série de livros jurídicos que abrangem principalmente o direito canônico, desta forma, “estava tendo início uma tentativa de reduzir a pluralidade a um todo que pudesse ser dominado e transmitido escolástica e escolarmente”.36
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.74. 36 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.79. 35
Porém é em 1140 (entre 1139 e 1148, de acordo com Musselli. P.37) que foi feita a codificação crucial do Direito Canônico: O Decreto de Graciano. Abrangindo mais de 3800 textos comentados, foi reconhecido como uma autoridade doutrinária e intelectual na época. “Graciano concebia o Direito como um corpo vivo, vivido pela tradição e com um futuro. Nisto era diferente dos juristas civilistas (estudiosos do direito romano justinianeu), que viam no texto de Justiniano um texto acabado.”. Devido àquela pluralidade de cânones, havia a constante presença de conflito jurídico, gerando constante presença de antinomias no âmbito jurídico. Graciano soube melhor do que ninguém empregar os princípios do método escolástico para a resolução desse problema: “em caso de contradição, seria preciso fazer uma distinção”. Estes princípios eram quatro: (a) ratione significationis ; (b) ratione temporis ; (c)ratione loci ; (d)ratione dispensationis. O primeiro critério impunha a facilitação da hermenêutica jurídica, através da investigação filológica37. Os outros três critérios distinguiam as normas pelo seu tempo de vigência ( superioridade da lex posterior sobre a lex anterior ), pelo seu espaço de vigência (superioridade da lei local sobre a lei geral) e pela sua matéria (superioridade da lei especial sobre a lei geral). Esses princípios foram se arraigando na tradição ocidental, e são presentes ainda hoje quase na mesma forma que Graciano os apresentou.38 A partir de Graciano, a influência dos canonistas vai se afirmando cada vez mais, constituindo uma espécie de carreira e de burocracia, se firmando, segundo Lopes (p.80), a primeira burocracia moderna do Ocidente. Da Universidade de Bolonha saíam vários canonistas influentes, como os Papas Alexandre III (11591181), aluno de Graciano, e Inocêncio III (11981216). Dessa forma, havia cada vez mais “legislação papal” , assim dizendo, concomitante com a centralização do poder papal. Os concílios também eram importantes ferramentas de criação e estabelecimento de cânones, e juntamente com o papel doutrinário dos canonistas, ampliavam a jurisdição
MUSSELI, Luciano. Storia del diritto canonico: introduzione alla storia del diritto e delle istituzioni ecclesiali . Torino: Giappichelli, 1992. P.39. 38 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.79. 37
eclesiástica. O auge dessa jurisdição se dá pela instituição do Tribunal da Inquisição, que centraliza na Santa Sé o poder de julgar os chamados crimes contra a religião(P.80). Em alguns lugares, como em Paris de 1219 e 1600, só se estudava o direito canônico, por temor dos reis da França de que o direito romano significasse uma submissão do rei ao imperados (alemão) do Sacro Império ou influenciasse discussões neste sentido. o título confferido a quem estudasse leis cânones era, pois, Doctor Utrisque Iuris , doutor em ambos os os direitos. Naturalmente, à Igreja foi relegado o monopólio de codificação dos cânones. no ano de 1234, Gregório IX, promulga uma atualização do Decreto de Graciano, chamado de “ Decretales Extra Decretum Gratiani Vacantes ”. Esse decreto, juntamente com adições posteriores formaria a base do que hoje é conhecido como Corpus Iuri Canonici.39 3.5. Processo Inquisitório: Reafirmação do Direito Canônico
A Inquisição medieval, também conhecida como caça as bruxas, ocorreu nos séculos XV e XVII cuja principal finalidade era a captura de hereges para o enfrentamento de qualquer questionamento dos dogmas de Igreja, num momento em que o direito era fruto da manifestação divina. Nessa perspectiva surge um aparelho da Igreja responsável pelo estabelecimento do direito penal, através da tortura daqueles que eram considerados subversivos ao estabelecimento da ordem. “ A Inquisição Medieval, inicialmente criada pela Igreja para combater as heresias, em sua versão moderna, além de revelarse muito mais violenta, apresenta uma dimensão política, que foi sendo desenvolvida desde seu surgimento, principalmente pela nobreza na perseguição de indivíduos que constituíam uma ameaça ao poder”40 O direito canônico se consolidou como único direito escrito na época, e embora sua elaboração era destinada ao regramento daqueles que compunham o clero, seu alcance estendeuse aos leigos.
39 40
Idem. PP. 80-81. OLKMER, Antonio Carlos W . Fundamentos de História do direito, 7ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 286
“Em matéria penal, era competência de os Tribunais Eclesiásticos processar e julgar todas as pessoas que praticassem alguma infração contra religião (heresia, apostasia, simonia, sacrilégio, bruxaria, etc.), bem como o adultério e a usura. No apogeu da Inquisição, os Tribunais Seculares da Europa ganharam jurisdição sobre tais crimes, suplementando os Tribunais Eclesiásticos como instrumentos judiciais de perseguição. 41 O direito canônico encontravase sistematizado, formalizado e escrito, tal fato contribuiu para sua enorme influência no direito laico. Além disso, o forte vínculo entre Igreja e Estado foi determinante para adoção de um aparato legal que legitimasse a tortura de todos aqueles que questionassem Deus. Mas foi a Igreja que, principalmente, influenciou e incentivou a adoção dos novos procedimentos do direito penal. Mudando inicialmente a forma do processo nos Tribunais Eclesiásticos, a Igreja proibiu, no IV Concilio de Latrão (1215), a participação dos clérigos nos ordálios. O ordálio, que apelava a providência divina para estabelecera culpa ou inocência do réu, requeria a presença de clérigos para abençoar a operação. Estando estes, a partir do Concílio, proibidos de participar dos ordálios, não mais poderiam ser realizados”.42 “O direito Canônico não tendo terminado este ou aquele suplício em particular, os juízes podem se servir daqueles que eles acreditarão serem os mais apropriados para tirar do acusado a confissão do seu crime”.43 3.4 A Renascença do Século XII e o Direito Canônico Diferentemente do senso comum, a Idade Média em si não foi um período de trevas, mas sim um período de altos e baixos. No século XII por exemplo, há a afluência de uma série de manifestações políticas, econômicas, científicas e culturais que causariam uma
OLKMER, Antonio Carlos W . Fundamentos de História do direito, 7ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 288 Idem 43 L EGENDRE, Pierre. Op. Cit., p.99. 41 42
turbulência no modelo feudal até então presente. Um dos primeiros historiadores medievalistas a estudar esse período, Charles Haskins, afirmava já na década de 20: “(O Século XII na Europa) foi em muitos aspectos uma era de vida e vigor renovados. Foi a época das Cruzadas, do crescimento das cidades e dos embriões dos Estados burocráticos Ocidentais, da emergência da arte Gótica e da literatura popular; o ressurgimento dos clássicos e da lírica greco romana, além do direito romano; a restauração da ciência grega, com contribuições árabes; e a origem das primeiras universidades europeias.”44 De fato, nesse contexto de renascimento intelectual, se dá a escolástica. Tendo como ícones São Tomás de Aquino (na teologia) e Graciano (na codificação), a escolástica se caracterizou como um movimento intelectual de restauração da tradição científica clássica, integrada a conceitos da tradição cristã agustiniana. Abrangindo principalmente conceitos filosóficos, a escolástica se firma no estudo da ontologia, hermenêutica jurídica, da teologia e da filosofia.45 Os canonistas, ao desenvolverem o direito canônico, acabaram por elaborar vários princípios de cárater jurídicopolítico que se aplicariam a todos os corpos eclesiásticos. Segundo Lopes, seriam quatro princípios. O primeiro era o Princípio Eletivo, que ao estabelecer a eleição de cargos de autoridade pelos próprios membros da Igreja, de certa forma separava a Igreja do resto da cristandade como uma corporação hierarquizada. Já não eram mais as assembléias de todos os cristãos o que contava: mas também já não seriam os senhores e nobres locais seculares que determinariam o futuro das igrejas; seria um novo personagem definido: o clero, como corporação, corpo e representante da corporação igreja (ou paróquia, abadia, diocese etc.). A Igreja havia sido um corpo místico que incluía todos os fiéis e passava progressivamente a ser uma corporação jurídicodisciplinar, que abrangia, para certos efeitos, apenas o clero.46
O segundo princípio, Lopes continua, era o da Soberania das Corporações, onde o papa só poderia interferir para sanar irregularidades e fazer valer determinados atos, pois a
HASKINS , Charles Homers . The Renaissance of the Twelfth Century . Cambridge: Harvard University Press, 1927. P.VII - Introduction. 45 SCHOEDINGER, Andrew B. Readings in Medieval Philosophy. 1 ª Ed. New York: Oxford University Press, 1996, P.65. 46 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. PP.82-83. 44
assembléia corporativa era soberana. O terceiro princípio era o Princípio Assemblear, que afirmava o papel legislativo dos concílios na Europa. Por fim, o o Princípio Monárquico estabelecia a figura do papa como o chefe superior, um verdadeiro Pontifex maximus , com poder de enviar legados, núncios, delegados (juízes), coletores, banqueiros para as dioceses. Dessa forma, acabouse por disseminarse uma prática crescentemente autônoma de resolução de controvérsias, marcada pelo novo espírito racionalizador e formalizador que já contaminara a filosofia escolástica. Pensase que a filosofia escolástica, na verdade, mais aprendeu com o processo e a argumentação jurídica do que ensinou. O fato é que o processo canônico opôsse com certa clareza à experiência anterior na solução de controvérsias, inaugurando uma tradição que perduraria, pelo menos na Europa Continenatal, até os idos contemporâneos.47 5. Direito Canônico no Brasil 5.1 Direito Canônico no Brasil Colonial A) Início da colonização
Dentro de uma perspectiva histórica, sabese que as normas eclesiásticas da Igreja Católica entraram no Brasil via colonização portuguesa, já que elas faziam parte importante das normas jurídicas que vigoravam em Portugal. Como na época do Brasil Colônia a maior parte da cultura jurídica provinha da metrópole (não haviam fóruns nem tribunais no Brasil) e a legislação era imposta por Portugal, através das ordenações reais, fica claro então que o Brasil terá seu ordenamento jurídico baseado em leis lusitanas, ainda mais quando se percebe que o direito brasileiro só se “libertará” do português com a homologação do primeiro código Civil nacional em 1916. Conforme discutido por Szanjawski: A partir de 1531, Portugal passou a colonizar o Brasil sendo que, a este tempo, vigiam em Portugal as Ordenações Manuelinas, sendo estas, o primeiro estatuto jurídico do Brasil ao lado de cartas régias, cartas de foral e de cartas de doação, que se constituíam documentos jurídicos.
47
Idem. PP.88-91.
Durante todo o período colonial, vigoravam no Brasil as Ordenações Filipinas, decretadas em 1603, ao lado de decretos, alvarás e resoluções promulgadas por 48 Portugal.
Além disso, Portugal desde sua concepção como país se mostra fervorosamente católico e que, portanto, segue muito daquilo proposto pela Igreja, se baseando até mesmo em seu código de leis. Isso ocorreu pois, segundo discutido por Wolkmer, em seu livro História do Direito no Brasil, a igreja fora uma força onipresente no desenvolvimento financeiro e jurídico da Europa. Com sua condição de maior latifundiária, estava comprometida com a defesa do feudalismo, e com toda a sua autoridade auxiliou na repressão das revoltas de 49
camponeses que varreram o continente. Contudo, a primeira tentativa de administração da colônia não estava tendo o êxito esperado, a divisão em capitanias Hereditárias era um fracasso, inclusive do ponto de vista jurídico no qual esta divisão tornava impossível a aplicação das leis sem um Estado centralizado e forte. Foi então que, a partir dos Governos Gerais, começou a efetiva aplicação da legislação penal no Brasil, sendo esta mudança administrativa fundamental para o sucesso da colônia; a presença de um governo centralizado nas mãos de um governador geral garantiu a organização da colônia e sua efetiva colonização, bem como regulamentação. A legislação aplicada no âmbito penal era o Livro X das Ordenações Filipinas. Hoje em dia, as penas por ele aplicada seriam consideradas cruéis e desmedidas; alguns exemplos desse fato seriam: a pena de morte natural (enforcamento no pelourinho, seguido de sepultamento), a morte natural cruelmente (dependia da imaginação do executor e dos árbitros), a morte natural pelo fogo (queima do réu vivo, passando primeiro pelo garrote), morte natural para sempre (enforcamento, ficando o cadáver pendurado até o apodrecimento). O sentido desta legislação é a intimidação feroz, sem qualquer tipo de proporção entre a pena e o delito, e que ainda confundia os interesses do Estado com os da Igreja. Este tipo de legislação demonstra o espírito reinante nas legislações até o surgimento 48
SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de Personalidade e sua Tutela . 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.130. 49
WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil . Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 177
do movimento humanitário, transpassando a necessidade de o Estado se mostrar temível e respeitado. Sobre isso, Wolkmer afirma, Com o fracasso da grande maioria das capitanias, tratou a Metrópole de dar à Colônia outra orientação designada como sistema de governadoresgerais. Surgiu, assim a utilização de um certo número de prescrições decretadas em Portugal, reunindo desde cartas de Doação e Forais das capitanias até CartasRégias, Alvarás, Regimentos dos governadores gerais, leis e, finalmente, as Ordenações Reais. Em geral, a legislação privada comum, fundada nessas Ordenações do 50 Reino, era aplicada sem qualquer alteração em todo o território nacional.
A percepção das manifestações do Direito Canônico no Brasil se faz sentir logo após o descobrimento, quando chegou à nova terra a Igreja Secular, representada por párocos, canônicos e outros dignitários catedralícios, bem como o primeiro bispo, que por longo tempo seria o único em todo o país. Os sacramentos do batismo e do matrimônio foram as principais preocupações dos religiosos que para cá vieram, ainda mais quando a nova terra estava cheia de potenciais fiéis que deveriam ser “salvos”: os índios. Assim, foram os indígenas que primeiro tiveram contato e sofreram a interferência do Direito Canônico no Brasil, sendo mais afetado o modo como constituíam suas famílias que era inaceitável para os religiosos europeus. Colocando, ainda, de forma geral, os índios foram largamente aculturados pelos europeus, em um primeiro momento para servir como mãodeobra e posteriormente tinhase um propósito mais espiritual, de arrecadação de novos fiéis e expansão da fé; portanto, podese concluir que a religião teve grande participação nesse processo de aculturação, alterando de forma ativa a vida do índio desde os primeiros contatos. Wolkmer atesta que, Na verdade, o processo colonizador, que representava o projeto da Metrópole, instala e impõe numa região habitada por populações indígenas toda uma tradição cultural alienígena e todo um sistema de legalidade “avançada” sob o ponto de vista do controle e da efetividade formal. O empreendimento do colonizador lusitano, caracterizando muito mais uma ocupação do que uma conquista, trazia consigo uma cultura considerada mais evoluída, herdeira de uma tradição jurídica milenária proveniente do Direito Romano. O Direito Português, enquanto expressão maior do avanço legislativo na península ibérica, acabou constituindose na base quase que exclusiva do Direito pátrio. Analisando as raízes culturais da legislação brasileira, escreve A. L. Machado Neto que, dos três grupos étnicos que constituíram nossa nacionalidade, somente 50
WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil . Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.44.
a do colonizador luso trouxe influência dominante e definitiva à nossa formação jurídica. Se a contribuição dos indígenas foi relevante para a construção de nossa cultura, o mesmo não se pode dizer quanto à origem do Direito nacional, pois os nativos não conseguiram impor seus “mores” e suas leis, participando mais “na humilde condição de objeto do direito real”, ou seja, objetos de proteção jurídica. Igualmente o negro, “para aqui trazido na condição de escravo, se sua presença é mais visível e assimilável no contexto cultural brasileiro, a sua própria condição servil e a desintegração cultural a que lhes impelia a imigração forçada a que se viam sujeitos, não lhes permitiu também pudessem competir com o luso na 51 elaboração do Direito brasileiro”.
B) Jesuítas no Brasil Vale ainda ressaltar que o Concílio de Trento oficializou a divisão de forças, propiciando que a Península Ibérica se convertesse no principal baluarte de reação ao protestantismo. Temendo a expansão protestante, urgira a reafirmação da integridade da fé e dos dogmas, (...) teria início o processo de censura inquisitorial, que aniquilaria o alvorecer do humanismo luso. Neste contexto, a Companhia de Jesus e a Inquisição vieram configurar no território nacional os contornos da sociedade. Esses traços, conforme Wolkmer, são essenciais para compreender o tipo de cultura que foi propagado pela Metrópole durante os primórdios da colonização lusitana no Brasil. Tratavase de uma cultura senhorial, escolástica, jesuítica, católica, absolutista, autoritária, obscurantista e acrítica. Em tal contexto, o principal polo irradiador da formação cultural da nova Colônia foi a solidificação da catequese católica e do ensino do humanismo escolástico, transplantada predominantemente pela Companhia de Jesus, que implicaria, como reconhece Alberto Venâncio Filho, que “a cultura portuguesa nos séculos XVI e XVII e na primeira metade do século XVIII conservarseia impermeável às transformações que se processavam no continente europeu após o Renascimento, com a expansão dos 52
estudos científicos e a disseminação do método experimental”. C) Era Pombalina
51
Ibidem. P.42
52
Ibidem. P.48
Com efeito, as reformas pombalinas limitam largamente a jurisdição do clero (os jesuítas são expulsos de Portugal, em 1759), restringem os benefícios da nobreza, incrementam o poder econômico da burguesia e impulsionam a reformulação do ensino e do modelo universitário (alcançando a Universidade de Coimbra). Segundo ainda discutido por Wolkmer, certamente que esse movimento renovador do iluminismo pombalino, centrado na abertura aos avanços científicoculturais, na reforma do ensino e da máquina administrativa, e na desestruturação da força jesuítica, favorece as condições para o advento do liberalismo português. Em fins do século XVIII e ao longo do século XIX, começam a chegar ao Brasil os ecos do ciclo de ideias representados pelo iluminismo pombalino e 53
pelas primeiras manifestações do liberalismo engendrados na Metrópole lusitana. 5.2 Direito Canônico no Brasil Império Sabese que a igreja também foi atuante na época da independência. Pela luta pela independência, por exemplo, muitas lideranças religiosas, lideranças católicas, deram a sua vida na luta por esse processo como Frei Caneca, símbolo da luta democrática em Pernambuco. Em 1822, apesar de os ideais de independência terem sido muito citados e reivindicado pela população na época, sabese hoje que o que desencadeou o processo de independência foi a questão financeira e a sua subordinação à Portugal. Frente a independência, o país necessitava de legislação própria. Entretanto, a Lei de 20.10.1823 determinou a observância da legislação portuguesa enquanto se elaborava a brasileira. Foi convocada a Constituinte em três de junho de 1822. Para poder continuar existindo, a Constituinte teve que se submeter à vontade do Imperador, sendo dessa forma designada por muitos como “Constituinte Consentida”. Porém, alegando estar trazendo graves perigos à nação, D. Pedro fechou a Assembleia Constituinte e nomeou uma comissão de sua confiança para a elaboração da constituição. Não obstante, com o advento do liberalismo da Independência e do Estado nacional brasileiro, segundo discutido por Lima Lopes, as Ordenações vão sendo a pouco e pouco revogadas. O Livro V é logo substituído pelo Código Criminal do Império de 1830; o 53
Ibidem. P.89
processo e estrutura da magistratura são reformados pelo Código do Processo Criminal de 1832, e o processo civil vai regerse a partir de 1850 também pelo Regulamento (decreto) 737. Os Livros I e II perdem sua razão de ser com os eventos revolucionários a partir de 1820 (Revolução do Porto) e 18211822 (Independência), sem falar na transformação do Brasil em Reino Unido (1815) e na transferência da Corte (1808). O único a ter vida mais longa foi o Livro IV, mesmo assim bastante temperado pelo uso da doutrina e das consolidações privadas de leis civis, que durante o século XIX antecedem o Código Civil, muito especialmente a Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas (1858). Mesmo assim, como lembra Ascarelli, as Ordenações e sua respectiva prática forense impuseram aos brasileiros uma enorme tradição jurídica, cuja pesada herança ainda pode ser vista 54
debaixo da camada mais recente de cultura legal. Vale ainda ressaltar que as relações entre Igreja Católica e Estado foram estreitas no Brasil tanto na colônia quanto no Império, pois, além de garantir a disciplina social dentro de certos limites, a igreja também executava tarefas administrativas que hoje são atribuições do Estado, como o registro de nascimentos, mortes e casamentos. Contribuiu ainda a Igreja com a manutenção de hospitais, principalmente as Santas Casas. Em contrapartida, o Estado nomeava bispos e párocos, além de conceder licenças à construção de novas igrejas. Somente com a proclamação da República em 1889, houve a separação formal entre Estado e Igreja Católica, mas sua presença continuou ainda viva, como comprova a existência de várias festas e feriados nacionais. 5.3 As Contribuições ao Direito brasileiro contemporâneo A contribuição e influência do direito canônico, foram muito além da transmissão para o nosso sistema jurídico, de normas, costumes e filosofia, incluindo também, aspectos funcionais e organizacionais para o sistema. A própria questão da hierarquia e interpretação das normas já eram previstas no Direito Canônico. Assim conforme Lima Lopes, O Decreto, obra fundamental do Direito Canônico clássico, de Graciano, monge camaldulense mestre em teologia em Bolonha, empregou o método escolástico, compondo a pluralidade de cânones discordantes: "Em caso de contradição, seria 54
LIMA LOPES, J.R. O Direito na História : Lições introdutórias. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. p.273.
preciso fazer uma distinção. Assim fazendo, foi capaz de organizar, hierarquizar e expressar os princípios pelos quais se eliminavam as antinomias dos cânones. Fazia a concordância usando quatro critérios: a) ratione significationis; b) ratione temporis; c) ratione loci; d) ratione dispensiationis. O primeiro critério impunha a distinção dos sentidos possíveis das normas, eliminando contradições pela investigação filológica. Os outros três critérios distinguiam as normas pelo seu tempo de vigência, entendendo que a lei posterior revogaria a anterior (Lex posterior), pelo seu espaço de vigência, entendendo que a Lei local particular revogaria a lei geral, pela sua matéria, entendendo que a Lei especial revogaria a lei geral. Mas tudo isto faziase num contexto dialético e aplicativo. Essa racionalização não era abstrata, senão feita em cada caso. E tais critérios foram sendo universalizados e entraram a fazer parte da tradição jurídica ocidental 55 quase que com a mesma formulação dada por Graciano."
Estes princípios do direito canônico, com algumas inovações e ajustes, são contemplados em nosso processo jurídico e legislativo, onde a hierarquia das normas obedecem aspectos semelhantes. Claro está, que não fosse estar previsto a séculos, de toda maneira seria desenvolvido nos tempos modernos, o que não afasta o conceito de "influência", pois de qualquer forma, o legislador de nossos dias vislumbrou uma evolução histórica a partir do Direito Canônico. Por ser um direito organizado sob os princípios religiosos do catolicismo, o Direito Canônico não pode ser considerado um direito inferior ou sem importância na história do Direito. Somente pelo que já foi exposto, já teria sido uma importante contribuição, no entanto, esta relevância é maior, como veremos adiante. A influência do Direito Canônico nos processos jurídicos, de modo geral, se deu pela sua evolução e pela formação de todo um sistema de operadores jurídicos, profissionalizandoos e uniformizando sua atuação. Segundo discutido por Lima Lopes, O processo canônico legounos algumas características especiais. Em primeiro lugar 1) é um processo conduzido por profissionais em direito; em segundo lugar 2) reconhecia um sistema de recursos que permitia a uniformização, a concentração e a centralização do poder; em terceiro lugar 3) finalmente; impôs a escrita sobre a oralidade, constituiu o sistema cartorial." No que diz respeito ao processo civil primeiramente, o processo canônico introduziu o escrito. Com ele, destacase em importância a figura dos notários. Além do juiz, é preciso contar com este redator oficial de formulas e atos judiciais, termos que são reduzidos a 56 escrito como memória (termos, autos) do processo.
55 56
Ibidem. p.94. Ibidem. p.100
Deste direito, provém também regras e normas para o Direito Comercial ou Empresarial da contemporaneidade, regras sobre processo penal, sucessões, família, além de matérias sobre ilícitos públicos. Segundo ainda Lima Lopes, Os juramentos julgavamse pelo direito canônico, e vem daí uma parte da disciplina de contratos e dívidas. Finalmente, toda matéria de pecados públicos que podia incluir simonia, usura, adultério, heresia... Desta jurisdição construída pela Igreja nos séculos XII a XIV especialmente procederam regras de família, 57 sucessões, contratos, processo penal, etc.
Com fundamento na premissa de que, os direitos não pertencem à totalidade de seus fiéis, mas sim a Deus, os canonistas começaram a criar um conceito técnicojurídico de pessoa jurídica. Partem da aceitação da capacidade jurídica da universitas, separada da capacidade jurídica dos seus membros. Passase a sustentar que os titulares dos direitos eclesiásticos não são os membros da comunidade religiosa, mas Deus, na figura de seu representante terrestre. Aparece assim, a distinção entre o conceito jurídico de pessoa e conceito real de pessoa como ser humano. Esse rompimento da identificação entre a corporação eclesiástica e a pessoa como ser humano dá origem ao conceito de pessoa jurídica que, por ficção jurídica, passa a ter capacidade jurídica. Podese concluir que os canonistas foram os primeiros a distinguir a corporação e seus membros, bem como a responsabilidade deles. Além das dissertações e afirmações relativas a temas em geral, encontram artigos correlatos em nossos códigos atuais e no código canônico. Eis que, sobre o conceito e aplicação da faculdade da autodefesa, no Art. 25 do Código Penal, segundo Toledo, Entendese em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem" E no art. 23, II, inclui a legitima defesa entre as causas de justificação, ou seja, entre as excludentes da ilicitude. O Código Civil igualmente contempla a legitima defesa, como causa de exclusão de ilicitude, no art. 160, I, instituindo uma forma especial de autodefesa da posse, no art. 502, abrangente até de atos posteriores ao 58 esbulho.
57
Ibidem. p.101
58
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal . 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.193.
No Livro V das Ordenações do Reino, especificamente no Título XXXV, existe a previsão da excludente da ilicitude, no caso do homicídio: "Qualquer pessoa, que matar outra, ou mandar matar, morra por ello morte natural. Porém se a morte for em sua necessária defensa, não haverá pena alguma, salva se nella excedeo a temperança, que deverá, o poderá ter, porque então será punido segundo a qualidade do excesso" Dessa forma, a legislação brasileira é uma evolução histórica, daquilo que já estava previsto no Código Canônico, conforme discutido ainda por Toledo, Assim também a admitia, quando exercida nos limites da necessidade e dentro de certa proporcionalidade (cum moderamine inculpatae tutelae), segundo as fontes romanisticas e bíblicas em que se inspirava. E ainda a admite, desde que mantida a devida moderação (debitum servans moderamen). Esses princípios, desenvolvidos através dos séculos deram os contornos definitivos de um dos institutos mais bem elaborados da ciência penal. Antigo cânon 2.205 parág. 4, atual 1.323, 5º, do Codex Júris Canonici. É conhecido o princípio adotado pela teologia moral: vim vi repellere licet, sed cum moderamine inculpatae tutelae (permitese repelir a força pela força, mas com a 59 moderação de uma justa defesa).
Também no Direito de Família, o Direito Canônico se fez influenciar diretamente. Em Portugal, o alvará de 12091564 publicou e mandou observar as disposições do Sagrado Concílio Tridentino em todos os domínios da Monarquia Portuguesa..., por conseguinte, no Brasil. Este alvará, de autoria do Cardeal D. Henrique, regente português, foi ratificado por D. Sebastião, em 1569. E assim era feito no Brasil, que era colônia de Portugal, e, em razão desta colonização, possuía a densa maioria da população fiel ao catolicismo. Com a Lei n. 1.144, de 11.09.1861, cujo projeto era do Ministro da Justiça, Diogo de Vasconcelos, houve a permissão para o casamento de pessoas não católicas. O enlace deveria ser celebrado, por óbvio, segundo o ritual religioso professado pelos nubentes. A regulamentação do casamento civil pelo Decreto 181, de 24.01.1890, de autoria de Rui Barbosa, ficou abolida a jurisdição eclesiástica, sendo o único casamento válido o realizado, por autoridades civis. Embora, mantendo a indissolubilidade do vínculo e a
59
Ibidem. p.95.
utilização da técnica canônica dos impedimentos matrimoniais, instituindo nulidades aos que violam os impedimentos dirimentes instituindo anulabilidades para os que violam os impedimentos impedientes. 5.4.Considerações Finais Está demonstrado, que normas canônicas compuseram as Ordenações, que eram as normas jurídicas em Portugal à época prévia do descobrimento do Brasil. E que, com a colonização portuguesa, estas se tornaram o primeiro estatuto jurídico a vigorar por aqui, permanecendo vigentes em vários de seus aspectos até a promulgação do primeiro Código Civil, o que ocorreu somente em 1917 em pleno século XX. Daí em diante, apesar da substituição completa do arcabouço jurídico nacional, a influência do direito canônico deve ser percebido de uma maneira cultural, a tal ponto, que ainda inspira a sociedade e seus legisladores. 6. O SISTEMA ROMANOGERMÂNICO E O DIREITO CANÔNICO E AS INFLUÊNCIAS DESTE NO CASAMENTO E NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO DE 1916 A história do direito tem como objetivo compreender o direito atual, estudando como ele se formou e desenvolveu e, também, de que modo evoluiu no decorrer dos séculos. O direito da civil law teve sua base fundada em três grandes sistemas jurídicos: o Direito Romano, o Direito Germânico e o Direito Canônico. Como afirma Gilissen: “A generalidade dos direitos dos países europeus faz parte da família dos direitos ditos romanistas, ou seja, dos 60
sistemas jurídicos influenciados pelo direito romano da antiguidade.” Ainda segundo Gilissen, A evolução do direito na Europa Ocidental dos séculos V ao XII é assim denominada: pela sobrevivência, depois pelo desaparecimento progressivo do direito romano; pelo progresso do direito dos povos germânicos, em contato com as populações romanizadas; pela atividade legislativa dos reis e imperadores, sobretudo dos Carolíngios; enfim, pelo desmembramento do poder no quadro de instituições feudais. É necessário acrescentar aqui o direito canônico – o direito 61 da Igreja – cujo papel é cada vez mais considerável entre os séculos IV e XII.
60 61
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. p.13. Ibidem, p. 167.
Lima, em sua obra, diz que o princípios e regras dos antigos direitos romano e canônico, associados aos costumes dos povos germânicos, formaram um conjunto de normas jurídicas 62
que influenciou os ordenamentos dos países ligados às nações europeias. A formação do sistema romanogermânico de direito está atrelada ao renascimento cultural que ocorreu nos século XII e XIII na Europa ocidental, preparando um caminho amplo para a retomada de valores da antiguidade clássica. O ressurgimento das cidades e do comércio permitiu que a sociedade constatasse novamente a importância do direito. O ideal de uma sociedade cristã fundada na caridade foi abandonado e a própria Igreja passou a diferenciar a sociedade religiosa da sociedade laica, elaborando seu direito privado canônico. O direito romano era o objeto de grande admiração do momento, e foi com base nele que a Igreja edificou o direito canônico. Os direitos romano e canônico tornaramse o modelo de sistema jurídico a ser utilizado na época. 63
O antigo direito romano, como todo direito arcaico, é essencialmente consuetudinário, não tendo desaparecido com a queda do Império Romano do Ocidente, no século V. Sobreviveu, no Ocidente, nas monarquias germânicas, após as invasões, devido à aplicação do princípio da personalidade do direito, que permite ao povo vencido a continuidade de viver sobre o seu próprio direito. O direito romano continuou a evoluir “[...] sobretudo no contato com as populações germânicas. Um direito romano ‘vulgar ‘ no qual dominavam os costumes locais próprios de cada região, suplanta assim progressivamente os textos da 64
época clássica”. Sobre o direito germânico, Gilissen diz, O sistema jurídico dos povos germânicos que viviam a leste do Reno e a norte dos Alpes na época romana era ainda um direito tribal arcaico e pouco desenvolvido. Alguns destes povos invadiram a parte ocidental do Império Romano, sobretudo no séc. V. [...] O seu direito continua a evoluir, sobretudo no contato com populações romanizadas da Europa ocidental. A partir da época carolíngia, a fusão dos dois sistemas jurídicos – o romano e o germânico – realizouse aí, mas num quadro político e social novo, que dá origem a um 65 sistema jurídico de tipo feudal (sécs. X a XII).
LIMA, Tiago Asfor Rocha. Precedentes judiciais civis no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 79-82. GILISSEN, 1979, p. 85. 64 Ibidem, p. 169. 65 Ibidem, p. 17. 62 63
Não havia um direito germânico, mas sim uma variedade de costumes dos povos germânicos. Por não terem deixado documentos escritos, era muito difícil definir o que eram regras jurídicas de origem germânica, sendo, muitas vezes assim classificadas, na Baixa Idade Média, pelo simples fato de não aparentarem ser de origem romana. A melhor documentação existente para o estudo do antigo direito germânico são as leges barbarorum, que constituem costumes dos povos germanos redigidos, do século VI ao IX, após as invasões. No entanto, todas sofreram certa influência do direito romano, refletindo, por isso, muito mais o direito da época de sua redação do que o da época anterior às invasões. Tentando conservar alguma do direito romano, devido a presença de populações romanizadas em seus territórios, os reinos bárbaros editaram um “direito romano barbarizado ou vulgar”, o qual desempenhava um papel político importante, “pois podia 66
significar uma garantia de legitimidade política e de aceitação”. Gilissen, em sua obra, discorre sobre o desenvolvimento do direito canônico: No Império Romano, uma religião nova, pregada por Cristo e pelos seus discípulos no século I, impôsse no século IV; o Império tornase cristão. Um sistema jurídico próprio da comunidade dos cristãos, o direito canônico, desenvolvese à margem do direito romano, sem o absorver; instalase um sistema dualista – direito laico e direito religioso – que vai se manter até o século 67 XX.
O direito canônico é o direito da Igreja católica, sendo sua principal fonte a vontade divina, tal como está revelada nos livros sagrados, principalmente na Sagrada Escritura. “Este direito divino é completado por atos de caráter legislativo que emanam das autoridades 68
constituídas da Igreja católica (concílios e papas) e pelo costume”. O direito romano representou o papel de fonte supletiva ao direito da Igreja; esta o aplica na medida em que ele não é contrário ao ius divinum e aos decretos e decretais. “O direito canônico recebe do direito romano uma grande parte de sua teoria das obrigações e os elementos essenciais do seu processo civil. Sua influência sobre o direito laico no ocidente europeu é considerável devido a inúmeras razões:
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000, p.69. 67 GILISSEN, 1979, p.127. 68 Ibidem, p.142. 66
O universalismo cristão da Idade Média; o mundo medieval no Ocidente é um mundo cristão; o caráter escrito do direito canônico; este é, na Europa ocidental, o único direito escrito entre o fim do séc. IX e o séc. XIII; a atribuição aos tribunais eclesiásticos da competência exclusiva em numerosos domínios da área do direito 69 privado, tais como o casamento e o divórcio.
Por ser durante a maior parte da Idade Média o único direito escrito, o direito canônico “constituiu objeto de trabalhos doutrinais, muito mais cedo que o direito laico [...] exerceu 70
uma profunda influência na formulação e desenvolvimento deste direito laico”. A importância do direito canônico sobre os direitos da Europa ocidental pode ser explicada, em parte, pela competência dos tribunais eclesiásticos, não apenas em relação ao membros do clero, mas também, durante a Idade Média, em relação aos leigos. As jurisdições laicas, no apogeu da competência das jurisdições eclesiásticas (séculos X a XIV), estavam em plena decadência, devido ao enfraquecimento do poder real pelo feudalismo, conhecendo, a Igreja, um amplo domínio de poder jurisdicional, mesmo em relação ao leigos. A jurisdição dava a função de governar segundo leis. “É no campo da jurisdição e do processo que a 71
influência do direito canônico tornase determinante”. Lopes afirma que: O Direito Canônico tem uma importância enorme na história do direito tanto na esfera das instituições, quanto na da cultura jurídica. Na esfera das instituições, especialmente no processo e no conceito de jurisdição. É dele que parte a reorganização completa da vida jurídica europeia, e as cortes, tribunais, jurisdições leigas, civis, seculares, principescas, serão mais cedo ou mais tarde influenciadas pelo direito canônico. [...] Na esfera da cultura, serão os canonistas a formular critérios de racionalização e formalização do direito. [...] Se a tudo isso somarmos a influência que a vida da Igreja tem no Ocidente medieval, vemos que o direito canônico como disciplina da vida, disseminase capilarmente 72 na sociedade.
Uma corrente importante do pensamento político jurídico e canônico foi o conciliarismo, que insistia na predominância dos concílios sobre as decisões do papa. “O desenvolvimento do direito canônico ligouse ao surgimento de uma classe nova: aqueles que na Igreja viriam a dominar pelo seu particular saber de cânones [...] Com seu saber especializado,
69
Ibidem, p.17. Ibidem, p. 135. 71 LOPES, 2000, p.99. 72 Ibidem, p.83-84. 70
73
serviram à nova autocracia romana”. É no processo canônico que surge a figura do advogado: “o que age sem ser cúmplice ou sócio. Ele explica o direito após a apresentação 74
das provas de fato. É um jurisperito”. Sobre a contribuição canonística para a teoria da pessoa jurídica, Lopes disserta: No direito romano não havia pessoa jurídica – havia os colégios e as universalidades, associações. Mas a pessoa jurídica era, em parte, dispensável. Se a pessoa jurídica é um esquema de separação de patrimônio, representação e responsabilidade para uma atividade, o papel mais próximo disto é desempenhado em Roma pela família (patrimônio resguardado como fundo único, representado pelo pai – pater famílias – responsável jurídico). No direito feudal, a unidade produtiva sendo o feudo, o senhorio, as regras de responsabilidade e de representação confundemse com as regras feudais de vassalagem e prestação feudal (censos ou foros). A partir do direito canônico, os problemas de patrimônio comum, representação, responsabilidade, tornaramse novos. Serviram para uma primeira teoria da pessoa jurídica (corporação) que se desligava dos laços de família e dos laços de vassalagem, dentro ainda, 75 certamente, de um universo simbólico medieval.
Durante o século V ao século IX, três concepções distintas sobre o casamento vão se confrontar na Europa ocidental: uma originária do direito romano, outra do direito germânico e uma do direito canônico. As concepções romana e germânica, devido ao princípio da personalidade dos direitos, conviveram durante algum tempo. Em torno dos séculos VIII e IX, fundiramse ao direito canônico. Casamento e divórcio foram regidos pelo direito da Igreja até o século XVI e, em algumas regiões, até os séculos XVIII e XIX. O cristianismo exerceu uma forte influência sobre o avanço do casamento e do divórcio, e tal influência ainda fazse presente no direito atual. Para a concepção cristã primitiva, o casamento é baseado no amor que os cônjuges se devem mutuamente; ainda que fosse a castidade a ideia moral pregada pela Igreja. Segundo Gilissen: Inicialmente, a Igreja não se intromete nas formalidades do casamento: admite todas as formas existentes, romanas, orientais ou germânicas. Mas, influenciará a evolução dos direitos laicos, esforçandose por fazer admitir as suas próprias concepções do casamento. É assim que ela procura criar ligações duráveis, estáveis e sólidas, lutar contra o concubinato e dar um caráter religioso às festas 76 de casamento.
73
Ibidem, p.98. Ibidem, p. 102. 75 Ibidem, p.108-109. 76 GILISSEN, 1979, p.568. 74
O casamento canônico, ao tornarse sacramento, continua a ser puramente consensual. Desde esta época, a igreja admite algumas restrições ao casamento. Ao lutar contra a poligamia, proíbe a bigamia; a ocorrência de um casamento anterior não desfeito constitui uma proibição a um novo casamento. O incesto e o casamento entre parentes muito próximos são veementemente combatidos. Em relação ao divórcio, desde o início a igreja havia estabelecido a indissolubilidade do casamento. “A concepção cristã era, portanto, muito diferente da concepção romana. Por isso, os primeiros Imperadores lutaram contra a 77
enorme liberdade de divórcio admitida pelo direito romano clássico”. A partir do séculos VIII e IX, a matéria do divórcio é quase exclusivamente gerenciado pelo direito canônico. A indissolubilidade absoluta do casamento é imposta pelo direito canônico no século IX. Gilissen diz: A igreja conservou a mesma intransigência até aos nossos dias: o Corpus iuris canonici, de 1917, proclama ainda a indissolubilidade como uma das propriedades essenciais do matrimônio; desde que válido e consumado, não pode ser dissolvido por nenhum poder humano ou por nenhuma causa, a não ser pela morte.
Um dos maiores legados deixado pelo direito canônico, em relação ao casamento, foram os impedimentos – dirimentes e proibitivos. Preocupouse, inclusive, com as formalidades do casamento, para que se evitassem casamentos clandestinos. O Brasil, durante três séculos, ficou submetido às decisões do Concílio de Trento em relação ao casamento; o juízo eclesiástico era quem regulava as relações matrimoniais de acordo com o direito canônico. Com o advento da República, em 1989, foi instituído o casamento laico no Brasil. O Corpus Iuris Canonici influenciou veementemente o direito de família com o seu caráter moralizador, ético, repugnando o que fosse desonesto. A proibição do concubinato, a intervenção de um curador do vínculo na ação de nulidade, o casamento putativo pátrio, a manutenção da indissolubilidade do casamento, o rompimento do casamento sem dissolver o vínculo (impossibilidade de um novo casamento), são matérias presentes no Código Civil de 1916 advindas do direito canônico.
77
Ibidem, p.569.
Além das questões relacionadas ao casamento presente no Código Civil de 1916, o direito canônico também influenciou questões do Direito das Coisas, Direito das Obrigações e Direito das Sucessões. Sobre cada um desses direitos, Tavares discorre: O próprio Direito das Coisas, em numerosos preceitos, abeberouse no Direito Canônico, como sucede na distinção entre direitos reais e direitos pessoais, na ação de reintegração de posse (artigo 499), na legitimidade do direito de propriedade privada e na proibição do pacto comissório (artigo 765). [...] sobre a base do direito canônico repousam muitas relações jurídicas de natureza patrimonial. Assim, não escapou também o Direito das Obrigações à influência do Direito Canônico, como se percebe claramente do instituto da compensação. [...] O Direito pátrio, em matéria de Sucessões, como as demais legislações contemporâneas, conformouse ao sistema legado pelo Direito Romano, pelo antigo Direito Germânico e pelo Direito Canônico. Assim, cumpre ressaltar a inegável influência do Direito Canônico na estruturação da sucessão intestada e que se evidencia no direito de representação, pelo qual se opera a vocação indireta da sucessão legítima, quando o herdeiro é convocado a suceder em lugar 78 de outro sucessor, anteriormente prémorto.
O direito canônico desempenhou um papel importante durante toda a Idade Média, tendo sua influência diminuída a partir do século XVI, limitandose cada vez mais apenas às questões religiosas. O direito dos Estados passa a ser laico a partir deste época. “O direito canônico continua, no entanto, a ser um dos fundamentos históricos de todo o direito 79
ocidental, apesar do progresso do racionalismo e jusnaturalismo nos sécs. XVII e XVIII”. Mesmo com a laicização do direito, o direito canônico ainda tem importância para a formação dos direitos contemporâneos. Referências bibliográficas BERMAN, Harold. Law and Revolution . Cambridge: Harvard University Press, 1983. BARROW, Julia. Ideology of the TenthCentury English Benedictine 'Reform '. Apud Skinner, Patricia. Challenging the Boundaries of Medieval History: The Legacy of Timothy Reuter . Turnhout, Bélgica: Brepols, 2009. BENSON, Robert Robert Louis; CONSTABLE, Giles; LANHAM, Carol Dana,. Renaissance and Renewal in the Twelfth Century . Harvard University Press, 1982. TAVARES, Osvaldo Hamilton. A Influência do Direito Canônico no Código Civil Brasileiro. Justitia, São Paulo, 47(132): 49-56, out/dez. 1985, p.52-55. 78
79
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