Direito Canônico

June 22, 2017 | Autor: Túlio Borges | Categoria: História Do Direito, Direito Canônico, História do Direito do Brasil
Share Embed


Descrição do Produto

1. Introdução ao Direito Canônico  1.1 Função e definição  Por  conceito,  John  Gilissen  define  Direito  Canônico  como  o direito da comunidade  1

religiosa  dos  cristãos,  mas  especialmente  o direito da igreja católica ​ . Além disso, o Direito  Canônico  também  é  uma   forma  de  garantir  os  direitos  dos  fiéis  e  preservar  seus  interesses  legítimos  perante  a  instituição.  Uma  definição  mais  completa  de  Direito  Canônico  está  contida  no  livro  “New  comentary  on  the  code of Canon law” e dita que o Direito Canônico  é  um  acervo  de  normas  criados  pela  razão e iluminados pela fé, cujo intento é trazer ordem  à  comunidade  eclesiástica,  sendo  articulado  e  promulgado  por  aquele  que  preza  pelo  bem  da  comunidade  e  tendo  o  propósito  de  servir  ao  bem  comum.  Além  disso,  o  Direito  Canônico  impõe  obrigações,  ou  seja,  estabelece  vínculos  legais  dos  quais  os  direitos  e  2

deveres  transcendem” ​ .  Contudo,  deve­se  observar  a  Igreja  não  só  como  uma  instituição  religiosa,  mas  como  uma  comunidade  humana,  que  influencia  e  é  influenciada  por  seres  humanos.  O  próprio  nome  latino  da   Igreja,  “​ ecclesia”,  ​ que  significa  “reunião,reunir”,  suporta  essa  ideia  da  instituição  como  uma  sociedade,  um  todo  interligado.  E  esse  fato  se  torna  de  extrema   importância  uma  vez  que,  sendo  uma  comunidade  humana,  os  direitos  dessa se revelam operantes e relevantes para a Igreja.    O  surgimento  de  um  conjunto  de  regras  que regulasse esse agrupamento de pessoas  então,  se  mostraria  inevitável.  A  origem  da  palavra  ‘canon’ assegura  tal afirmação, pois tal  palavra  vem do grego ‘kanoon’, significando regra. Devido a essa característica de ser tanto  3

“da  terra   como  do  céu” ​ ,  ela  é  imperfeita.  Por  esse  motivo  também  se  necessita  de  um  Direito  que  ajude  a  guiar  essa  comunidade  à  sua  perfeição  e  que  auxilie  na  busca  pelos  autênticos  valores,  que  também  terão  sua  parcela  de  participação  no  alcance  da  perfeição.  Ademais,  não  se  deve   esquecer  que  o  Direito  Canônico,  além  de  regular  as  atividades  eclesiásticas  e  suas  relações,  deve  amparar  a  Igreja  em  sua  missão  de  espalhar  a  palavra 

1

GILISSEN, John​ . Introdução histórica ao direito, ​ 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.133.

2

BEAL, John P. ​ New comentary on the code of Canon law​ . Nova York: Paulist Press, 1995. P.7.

3

Idem. P.2.

divina  pelo  mundo,  seja  por  estabelecer  a  ordem  dentro  da  comunidade,  criando  assim um  clima  de  paz  que  propicia  a  divulgação  de  palavra,  ou  por  ser  simplesmente  ser  um  modo  de ensinamento e transmissão de valores.  A  natureza  do  Direito  Canônico,  acompanha  a  daquela  regulada  por  ele  (Igreja  Católica),  portanto,  fica  claro  que  ele  também  terá  um  viés  transcendental  e  religioso,  ao  mesmo  tempo  que  portará  característica  do  Homem.  Sendo  assim,  podemos  dizer  que  apesar  de  sua  face  divina  e  de  regular  leis  consideradas  divinas,  sua  face  humana  faz  com  que  ele  absorva  características provindas do Homem, o legislador acaba transparecendo sua  opinião:  apesar  de  seu  caráter  divino,  as  leis  eclesiásticas  continuam  condicionadas  às  circunstâncias  históricas.  Ademais,  assim  como  a  ​ ecclesia,  ​ suas  leis  e  diretrizes  podem ser  reformadas  e  mudadas  todo  tempo,  se  adaptando  ao  crescimento  e  expansão  constante  da  instituição.  Nesse  contexto,  também   se  leva  em  consideração  que o legislador deve sempre  tentar  manter  as  leis  menos  rígidas  e  as  mais  genéricas  possível,  para  diminuir  a  necessidade da reforma e do adequamento do código.  Ainda,  para  ser  legítima,  qualquer  norma  imposta  pelo  Direito  Canônico deve estar  obrigatoriamente  ligada  a  um  valor.  Se  não  for  o  caso,  a  norma  perde  o  sentido, já que sua  principal  função  é  ajudar a se chegar ao bem comum e sem o suporte a um valor específico,  isso  não  se  torna  possível,  a  norma  perde  sua  autoridade:  “  As  normas,  em  si  não  tem  4

valores; elas existem para o bem destes” ​ .  Para  findar  este   tópico,   devemos  ter  em  mente  que  o  Direito  Canônico  se  baseou  enormemente  no  Direito  Romano,  devido  a  sua  função  como  regulador  das  relações  humanas  dentro  império   e  seu  caráter  universalista,  que  será  adotado  pela  Igreja  Católica  devido  aos  seus  interesses,  principalmente  visando  a  expansão da fé e a organização da in​ 2  Fontes do Direito Canônico  A) ​ Jus divinum 

4

Ibidem. P.3.

Constitui  os  ensinamentos  das  sagradas  escrituras  (Antigo  e  Novo  testamento),  das  escrituras  dos  Apóstolos  e  dos  Doutores  da   Igreja.  Segundo  Gilissen,  pela  época  em  que  forma  escrito,  o  Ius divinum tem grande influência da grega e oriental (escrito em hebraico) 5

.  Wolkmer  também  atesta  a  isso,  dizendo  que  os  pensadores  do  cristianismo  podem  ser 

diferenciados  em  dois  grandes  grupos:  aqueles  de  inspiração  grega   (São  Justiniano,  São  Irineu,  Clemente   de  Alexandria,  etc.)  e  aqueles  que  tem  inspiração  romana  (Tertuliano,  Lactâncio, São Ambrosio, etc.). Ainda, segundo ele, os pensadores de viés grego se ocupam  de  questões  mais  elevadas   e  profundas  da  teologia  enquanto  os  de  inspiração  romana  tem  6

maior inclinação por questões práticas, políticas e sociais ​  (40).  B) ​ Jus canonicum  É  constituído  por  cânones  e  decretais.  Segundo  Wolkner,  cânones  são:  regras  jurídico­sagradas  que  determinam  de  que  modo  devem  ser  interpretados  e  resolvidos  os  7

vários  litígios.  (...)  São  leis,  reveladas  por  um  ser  superior ​ .  Já  Gilissen  traz  uma definição   8

um pouco mais sucinta: Canônes são as decisões dos concílios ​ .  C) O Costume  Para  Gilissen,  O  costume  ou  ​ jus  non  scriptum​ ,  não  terá   grande  influência  no  desenvolvimento  do  Direito  Canônico  devido   ao  enorme  número  de  legislações  escritas.  Porém,  para  ser  considerado  costume  ele  deveria  possuir  algumas  características  definidas  por  canonistas  da  Idade  Média:  deve  ter  sido  seguido  por  uma  certa  quantidade  de  tempo,  9

ser razoável e ser legítimo ​ .   D) Direito Romano 

5

GILISSEN, John​ . Introdução histórica ao direito, ​ 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.143.

WOLKMER, Antonio Carlos​ . Fundamentos de Hisória do direito,​ 7ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. P.243. 6

WOLKMER, Antonio Carlos. ​ Síntese de uma história das ideias jurídicas: ​ da antiguidade à modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006. P.40. 7

8 9

GILISSEN, John​ . Introdução histórica ao direito, ​ 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.143. Idem. P.144.

Por  sua  desenvoltura  durante  o  Império  Romano,  a  Igreja  e,  por  conseguinte  seu  código,  assumem  algumas  características  provindas  desse  fato.  No  caso  do  código,  as   leis  eclesiásticas  terão  grande  influência  da  parte  civil  do  direito  romano, principalmente o que  concerne as obrigações e o processo civil.  1.3 Contexto da ​ ecclesia  A  crise do império romano será decisiva para o futuro da religião cristã e mais ainda  para  a  própria  Igreja  Católica  Apostólica  Romana.  É  justamente  no  fim  do  império  que  a  religião  cristã   ganha  força,  contrário  aos  infindáveis  esforços  de  dezenas  de  imperadores  romanos  que  tentaram  arduamente  suprimir  o  avanço  dessa  religião,  perseguindo  seus  seguidores (queimando­os na fogueira ou forçando­os a lutarem nos coliseus).   Porém,  a  Religião  resistiu  e  em  313  d.C.,  pelo  Édito  de  Milão, Constantino  declara  o  fim  da  intolerância  religiosa:  todas  as  religiões  eram  livres  para  praticarem  seus  cultos,  inclusive  a  Católica.  Constantino   também  ficou  lembrado  por  ser  o  primeiro  Imperador  Católico,  se  convertendo  a  religião  cristã  pouco  antes  de  sua  morte  (seu  batismo  pouco  antes da morte faz dele católico). Alguns anos mais tarde (391 d.C.) o jogo se inverte, agora  todas  as  outras  religiões  eram  perseguidas,  a  não  ser  a  católica   que  veio  a  se  tronar  a  religião  oficial  do  Império  (Édito  de  Tessalônica),  dando  mais  forças,  importância  e  influência para essa religião em expansão.  Com o expansionismo romano, o Império havia adquirido grandes extensões territoriais, que eram cercadas por povos vizinhos denominados como bárbaros - termo pejorativo que se referia a todos aqueles que não possuíam a mesma língua e crença do império romano, usado para se referir a povos germânicos, celtas, iberos, tártaros e persas- A  invasão  dos  povos  “bárbaros”  do  Norte,  o  Império  Romano 

do  ocidente  é  destruído  e  fragmentado,  dando  início ao que mais tarde receberia o nome de  Feudalismo.  Nesse  novo  contexto  de  fragmentação  territorial  e  política,  surgem  diversos  sistemas  políticos  e  econômicos  que  muitas  vezes  estavam  baseados  em  relações  de  subordinação  entre  particulares.  ​ Logo,

o desmembramento do império romano foi se apropriando de

características de ambos povos, seja o modo de produção escravagista dos romanos e o regime comunitário dos povos germânicos do Norte, essa incorporação dúbia será responsável para formação de um regime feudal.

Mesmo  com  o  colapso  do  Império  Romano Ocidental,  resquícios do direito romano  permaneceram  na  Europa,  tal  fato  pode  ser  justificado  pela  manutenção  de  características  administrativas  e  religiosas  semelhantes  a  organização  imperial.  O  ​ ius  civiles  continuava  vigente  entre  populações  latinizadas  ao  sul,  tais  como:  Gália,  Itália  e  Espanha. Já ao norte,  o  direito  germânico  predominou.  As  populações  viviam  de  acordo  com  suas  próprias  leis,  caracterizando  assim,  o  princípio  de  personalidade  jurídica,  segundo  o  qual  o  indivíduo   é  submetido  as  leis  do  seu  povo  de  origem,  não  importando  o  local  que  esteja.  Foi  a  efetivação  desse  princípio  que  possibilitou  a  continuação  da  existência  do  direito  romano  mesmo  após  a  queda  do  império.  O  direito  se distanciou de sua essência clássica,  passando  a  se  caracterizar  como  um  direito  consuetudinário,  baseado   nos  costumes  de  uma  sociedade, que embora não formalizados, apresentam uma força de lei.   Porém,  com  o  fortalecimento  do  sistema  feudal  nos  séculos  X,  XI  e  XII  o  poder  passou  a  ser  descentralizado,  e  houve  um  enfraquecimento  do  poder  real,  a  Europa  Ocidental  passou  a  compor  um  cenário  multifacetado  de  feudos.  Com  o  poder   real  descentralizado,   a  nobreza  perdeu  força  e  já  não  conseguia  mais  impor  suas  leis,  assim,  o  poder  legislativo  e  judicial  passaram  a  mão  do  senhor  feudal.  Assim,  o  direito  ficou  limitado  as  relações  entre  os  senhores  feudais  e  seus  servos.  Os  escritos  jurídicos  eram  inexistentes,  e  o  costume  passou   a  ser  principal  fonte  de  direito,  que  pautava  a  as  relações  de  suserania  e  vassalagem.  Porém,  vale  ressaltar  que  algumas  instituições   eclesiais  –  que  tinham  o  domínio  da  escrita  –  deixaram  escritos,  assim,  a  justiça  era  muitas  vezes  a  manifestação divina, uma vez que o clero era representação divina na terra.        Agora  sem  as  amarras  estatais  do  Império  Romano,  a  Igreja  pode  se   expandir  até  assumir  uma  posição  parecida  com  a de um Estado, a Igreja Estado se consolida como uma  nova  instituição  reguladora  da  atividade humana num ambiente tão atomizado ​ (palavras de  Rogério  Dutra  dos  Santos)​ .  Um  fator  que  iria  contribuir  enormemente  para  a  ascensão  da 

Igreja  como  “Estado”  é  a  capacidade  que  essa  instituição  teve  de  assimilar  características  provindas  do  antigo  Império  Romano  bem   como  dos  povos   invasores,  resultando  em  combinação, que em si, caracterizaria a nova sociedade da Baixa Idade Média.  O  responsável   pela  junção  desses  dois   meios  de  vida  (dos  “bárbaros”  e  dos   romanos)  foi  a   Igreja  Católica  Romana.  Por  um  lado,  ela  negava  importantes  aspectos  da  cultura  romana,  como   o  caráter  divino   do  Imperador,  a  hierarquia  e  o  militarismo;  por  outro  lado, acabava  por  ser  também  um  prolongamento  do  caráter  universalista   de  Roma,  fazendo,  10 por exemplo, com que o cristianismo fosse elevado à religião de Estado ​ .  

Conclui  ainda  Franco  Júnior:  “  A  Igreja  passava  a  ser  a  herdeira  natural  do  Império  11

Romano”  ​ .  Com  sua  nova  função,  se  torna  imperativo  que  a  própria  Igreja  comesse   a  se  organizar  internamente,  criando  assim  uma  série  de  regras  advindas  de  concílios,  decretos  etc.  Nesse  começo  é  que  a  Igreja  instituirá  sua  forma  de  organização  clerical:  uma  hierarquia  rígida,  com  um  papa  como  sumo  pontífice  e  líder  da  Religião  Católica.   Essa  organização  tem  seu  fundamento  numa  passagem  bíblica  que  dita  que   Cristo  passa  seus  poderes  a  seus  apóstolos  para  que  esses  possam  continuar  a  dispersar  a  religião  cristã.  Dessa  forma,  os  apóstolos  passam  esses  “poderes”  aos  bispos  (anciões)  que  então  passam  aos  seus  subordinados  (abades,  padres etc.). Portanto, através de uma série de circunstância  políticas,  religiosas,  geográficas  e  históricas,  o  Bispo  de  Roma  foi  acumulando  poder  até  ser declarado o sumo pontífice da Religião Católica ou Papa.  Ademais,  para  os  povos  Germânicos a presença de um líder carismático (guerreiro),  com  qualidades  diferenciadas  tanto  morais  quanto  espirituais,  era  fundamental  e garantia a  obediência  e  a   dominância  daqueles  sobre  seu  controle,  sendo  imperativa  sua  vontade  e  decisão  sobre  alguma  ação  litigiosa.  A  Igreja  se  aproveitará  disso  instituindo  na  figura  do  Papa  esse  líder  carismático,  o  que  facilita  a  alienação  e  a  conversão  dos  fiéis.  Portanto,  como diz Wolkmer 

FRANCO JUNIOR, Hilario. ​ A idade média​ : nascimento do ocidente, 2ª Ed. São Paulo: brasiliense, 2001. P.89. 10

11

Ibidem. P.90.

O  direito  germânico  trouxe  o  modelo  que  originou  o  laço  social  mais  característico  do  feudalismo:  o  vínculo  de autoridade baseado no carisma de um  líder  guerreiro.  Dessa  forma,  tendo  consciência  de  que  a  manutenção  do  poder  senhorial  se  dará   através  de  vários  instrumentos  jurídicos  e  políticos,  na  sua  tipologia  pura  Max  Weber  vai  afirmar  ser  a  relação  de  séquito  baseada  na  dominação  carismática,  o feudo sendo, desse modo, uma apropriação de poderes  e  direitos  de  mando  exercida  através  de  uma  relação  “fraterna”  de  fidelidade  moral.12  Toda  essa  política   para  atrair  fiéis  e  expandir  a  fé  cristã  terá  resultados  estrondosamente  positivos,  quase  toda  a  Europa  Feudal  é  Católica  e  de  certa  forma  subordinada à Igreja: A Igreja foi (...) uma força onipresente  no  desenvolvimento financeiro  e  jurídico  da  Europa.  Como  maior  latifundiário,  estava  comprometida  com  a  defesa  do  13

feudalismo ​ .  Ou  seja,  a  Igreja,  como  maior  senhor  feudal  da  Europa,  detinha  plenos  poderes sobre todo o continente, se marmorizando no poder.  Dessa  forma,  a  instituição de um Direito Clerical nada mais é do que a consolidação  formal  da  Igreja  no  poder:  agora  com  uma  massa  de  súditos,  a  Igreja   deveria  ter  regras  institucionalizadas  para  regulá­los  e  regular a si mesma. Assim, cria­se o Direito Canônico.  Conforme  o  tempo passa e a Igreja vai acumulando ainda mais poder e influência, o Direito  Canônico  passa  a  ter  um  caráter  punitivo  e  repressivo,  principalmente  quando  se  releva  o  fato  de  que  se  tem  uma  perda  da  justiça  institucionalizada  junto  com  a  fragmentação  de  Roma.  É  de  se  esperar,  portanto,  que  a  Igreja  como  instituição  máxima  e  maior  do  Feudalismo, assuma também o papel de fazer justiça,  à  medida  que  crescia  a  influência   da  Igreja  Católica  das  questões  temporais­  já  que  toda  concessão  de  terra  trazia  autoridade  para   o  concedente  em  relação ao concessionário, os tribunais seculares passaram 

​OLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos Da História do Direito, Belo Horizonte, 2012, p.269 W TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine R. ​ O direito e a ascensão do capitalismo​ . Rio de Janeiro: Zahar, 1978. P.53. 12 13

a  ser  pressionados  para  julgar  seus  litígios  a  partir  do  Direito Canônico e  14 para transmitir seu poder de decisão aos tribunais canônicos ​ .   

A  jurisdição  eclesiástica  passou  a  ser  competente,  por  exemplo,  a  julgar  todos  os  casos  relativos ao casamento e à maioridade dos litígios envolvendo direito de família.  1.4 Compilação do Direito Canônico  A)Parte geral  Por  ser  um  direito  escrito,  o  momento de sua compilação é de extrema importância.  Como  visto anteriormente, a Igreja  ganha alto poder jurisdicional, ou seja, ocupa o papel do  Estado  de  aplicador  de  regras,  a  Igreja  passa  a  ser  “o  poder  judiciário”.  Dessa  forma,  a  Igreja  irá  buscar  amparo  no  direito  da  sociedade  a  qual   ela  foi  fundada,  o  direito Romano,  passando  utilizar  dele  cada  vez  mais,  porém  com  algumas  adaptações  para  que  ele  se  encaixe  no  pensamento  eclesiástico.  Ou  seja,  “  (a  legislação  romana)  deveria  ser  interpretada  por  doutores  abalizados  pelo  clero  nas  universidades,  (atribuindo)  sentido  15

oficial dos textos romanos” ​ .  Além  disso,  a  Igreja,  com  a   dominação  da  produção  intelectual  jurídica através das  universidades  e  monastérios,  também  utilizou  do  direito  como  forma  de  dominação  e  submissão:  “mais  que  levar   a  verdade,  o  que o jurista canônico externa é a vontade política  16

do  poder  eclesiástico  em  fazer  valer  seus  comandos” ​ .  O  direito   canônico  se  torna  uma  forma de dominação e legitimidade do poder papal.  B) Compilação de Graciano  Por  volta  de  1140,  Graciano,  monge   professor  de  teologia  da  universidade  de  Bolonha,  faz  uma  compilação  de  decretos,  leis,  pareceres  e  decisões  eclesiásticas  que  também ficou conhecida como O decreto ou Concordância dos cânones discordantes. 

WOLKMER, Antonio Carlos​ . Fundamentos de História do direito,​ 7ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. P.242. 14

15

16

Ibidem. P.243. Ibidem. P.243.

O  decreto  se  torna  importante  uma  vez  que  ele  unifica  a  legislação  da  Igreja,  concluindo  um  processo  histórico   que  começou  no  século  IV  d.C  e  assim  consolidando de  forma  definitiva   a  Igreja  como  instituição,  garantindo  também  a  legitimidade  do  papa e de  toda  a  jurisdição  eclesiástica.  Cláudia  Rosane  Roesler  resume: “(a  compilação de Graciano  foi  uma)  tentativa  de  harmonização  e  conciliação   doutrinária  entre  as  diversas  forças  que  17

existiam dentro da Igreja em sua época” ​ (p.24)  Esta  também  se  trona  uma  compilação  diferenciada  pelo  seu   caráter  unitário  e  tentativa  de  fazer  das  legislações  algo  coeso  e inter­relacionado, fato que não caracterizava  compilações  anteriores.  Para  se  atingir  este  objetivo,  Graciano   utiliza   de  um  método  que  consiste  em  analisar  o  problema  de  forma  dialética,  expondo­o  e  posteriormente  apresentando  uma  solução  “a  partir  do  exame  das  ​ contrarietates  ​ que  nele  podem  ser  encontradas,  com  base  nas  ​ auctoritates​ ,  escolhendo  e  justificando  sua  conclusão  neste  18

procedimento de harmonização e concordância” ​ .  O ​ decretum​  é divido em três partes  Na   primeira  parte,  no  início  de  cada  distinctio,  o  autor  resume  os  princípios  gerais  que  nela   serão  desenvolvidos  e  por  vezes  preocupa­se  em  ligá­la  com  a  distinctio  precedente.  Na  segunda  parte  cada  causa  é  iniciada  com  a  exposição  de  um  imaginário caso  prático, ao  qual  o autor  faz  seguir  a  análise  das   várias  questões  que  precisam ser  decididas  para  19 solucioná­lo. A terceira parte da coleção é pura exposição de textos ​ . 

Outro  aspecto  extremamente  inovador  trazido  por  esse  jurista  é  sua  notável  distinção  entre  teologia  e  Direito,  que  apesar de não ser uma cisão completa, já é suficiente  para  facilitar  o  tratamento  do  tema  mais  juridicamente.  Por  esse  fato,  Graciano  pode  ser  considerado o fundador da canonística como Ciência do Direito Canônico.   

ROESLER, Claudia Rosane. ​ A estabilização do Direito Canônico e o Decreto de Graciano​ . Revista Seqüência, nº 49, p. 9-32, dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 2015-06-29. P.24. 17

18

Idem. P.25. 19

Ibidem. P.26.

  3. A formação do Corpus Juri Civilis na Idade Média  Como  foi  visto,  o Direito Canônico foi na Idade Média, peça chave para a formação  do  pensamento  Ocidental.  Engendrado  num  contexto  de  ruptura  com  a  tradição  da  Antiguidade,  o  Direito  Canônico  é  essencial  para  melhor  se  entender  o  direito  como ele se  dá  hoje.  Para  melhor  compreensão,  será  feita uma divisão cronológica do Direito Canônico  em  duas  épocas: Baixa Idade Média, que abrange os séculos V ao X, Alta Idade Média, que  vai  do  século  XI  ao  XV.   Percebe­se  que  nessa  ordem  a  Idade  Média  começa  com  a  queda  do  Império Romano do Ocidente, com a conquista de Roma por Odoacro em 476, e termina  com  a  queda  do  Império   Romano  do  Oriente,  com  a  conquista  de  Constantinopla  pelos  turcos  otomanos  em  1453.  A  Igreja  Católica  nesse  período  se  firma  com  hegemonia  no  continente  Europeu,  e  é  dessa  pretensa  hegemonia  que  surge  a  construção  do  Direito  Canônico.   3.1 Alta Idade Média  As  invasões  dos  povos  germânicos  tiveram  suma  importância  e  influência  no  cotidiano  dos  habitantes  da  Europa  de  um  Império  cada  vez  mais  esfacelado. Esse período  tem  como  matriz,  três   acontecimentos  principais:  O  fortalecimento  do  poder  da  religião,  centrada  numa  Igreja  extremamente  descentralizada  e  integrada  às  culturas  locais;  a  ascensão  e  a  queda  do  Império  Carolíngio;  e  a  perda  de  força  das grandes invasões, que se  findam  em  meados  do  século  IX.   Há  nesse  contexto  o  surgimento  das  relações  feudais,  cada  vez   menos  centralizadas  em  uma  autoridade  central,  e  mais  em  um  conjunto  de  relações  contratuais  entre  as  pessoas.  O  direito  assim  se  torna  cada  vez  mais  baseado  nos  costumes  e  tradições,  se  aproximando  da  visão  germânica  da  elaboração  dos  direitos,  baseada  em  relações  consuetudinárias.  Dessa  forma  a  Europa  na  Baixa  Idade  Média  se  institui  em  vários  direitos:  Direitos  germânicos,  Direito  Carolíngio,  Direitos  Eslavos,  Direito Feudal e Direito Canônico.20  A  Igreja  vai  se  inserir  nesse  contexto  de  maneira  a  seguir  a  máxima da propagação  exaltada  pelo  próprio  Messias: convertendo, muitas vezes através de coerção, povos pagãos  20

GILISSEN, John​ . Introdução histórica ao direito, ​ 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.128.

com  o  pretexto  do  “salvamento  de  almas”.  Esse  caráter  ecumênico  universalista  da  Igreja  acaba  por  propiciar  essa  expansão  pela  Europa,  começada  ainda  na época romana,  levando  a  relações   cada  vez  mais  intrincadas  das autoridades  religiosas com os poderes civis locais.  Eu  um  contexto  feudal,  isso  significa  uma política de alianças entre o poder laico e o poder  secular,  através  de  casamentos,  testamentos  e  as  demais  relações  de  cunho  feudal,  como  o  patrimonialismo e a posse de terras, principal meio de produção da época.  A  maioria  dos  historiadores  do  direito  acabam por, dessa maneira, considerar a Igreja uma  forma  de  Instituição  totalmente  descentralizada,  onde  os  bispos  tinham  plenos  poderes  em  suas respectivas áreas. Tigar e Levy atestam a isso, dizendo  A Igreja foi  (...) uma força onipresente no desenvolvimento  financeiro  e jurídico da  Europa.  Como  maior  latifundiário,  estava  comprometida  com  a  defesa  do  feudalismo,   e  com  toda  a  sua  autoridade  auxiliou  na   repressão  das  revoltas  de  camponeses  que  varreram o  continente.  Denunciava  como  hereges  ou  trancafiava  em  mosteiros  todos  aqueles  que  desejavam  restabelecer  a  imagem  de  urna  Igreja  comunal,  apostólica.Assim,  a  Igreja  veio  a  participar  como  grande  senhor  feudal,  já  que  despontou  como  proprietária  de  vastas  extensões  de  terra  e, por  seu  poder   espiritual   e   temporal  abranger  toda  a  Europa  durante  o  período  medieval,  foi  certamente  a  única  instituição  sólida   existente.  As  poucas  cidades  que  sobreviveram   à  desintegração  do  Império  Romano  foram,   por  conseguinte,  as  cidades episcopais e arcebispais.21   

Dessa  maneira,  o  Direito  Canônico  vai  se  engendrando  através  dos  séculos   para  formar  um  arcabouço  de  dominação  sobre  a  vida  nos  feudos.  Vale  ressaltar  que  essa  dominação  era  essencialmente  descentralizada  na  Baixa  Idade  Média,  com  a instituição do  direito consuetudinário, se valendo da instituição generalizada dos costumes.  A  ascensão  do  Império Carolíngio  se deu principalmente pela habilidade em utilizar  o  poder  da  religião  e   das  relações  feudais  de  vassalagem  como  nenhum  outro  reino  de sua  época.  Sucessor  espiritual  do  Império  Romano,  conheceu  seu  auge  sob  os  reinados  de  Pepino,  o  Breve  e  Carlos  Magno.  Porém,  além  de  abrangir  grande  parte  dos  territórios  do  Império  Romano  Ocidental,  os  carolíngios  foram  além  e  se  extenderam  por  toda  a  Alemanha,  influenciando  uma  área  do  norte  da  Espanha  até  as  estepes  russas.  Há  durante  todo  o  Império  Carolíngio  uma  estreita  aliança  com  a  Igreja,  pois  os  imperadores   Carolíngios  retiravam  parte  de  sua  legitimidade  da  sagração  pela  Igreja.  Em  troca, a Igreja 

21

 TIGAR, Michael E.; LEVY, Madeleine R. ​ O direito e a ascensão do capitalismo​ . Rio de Janeiro: Zahar,  1978. P.53. 

como  instituição  adquiriu  parte   das  conquistas  carolíngias  na  Itália  Central,  que  até  1870  constituirão  as  terras  seculares da Igreja (donatio Peppini). Os imperadores Carlos Magno e  seu  sucessor  Lotário,  intervém   bastante  na  organização  da  Igreja,  porém  com  o  enfraquecimento   do   Império  Carolíngio,  os  reis  e  senhores  feudais  ficam  cada  vez  mais  submetidos às altas autoridades eclesiásticas.22     3.2 Baixa Idade Média  A  tradição  cultural  da  descentralização  dos  poderes,  tanto  religioso  quanto  secular,  em  uma  época  posterior  à  queda  do  Império  Romano  no  Ocidente,  acabou   por  levar  a  diferenças  culturais  acentuadas  entre  as  mais  diversas  regiões  da  Europa.  Essas  diferenças  levam  a  uma  ruptura  política  e  geográfica  dentro  da   Igreja,  conhecido  como  Cisma  do  Oriente,  ocorrido  em  1054.  As   causas  dessa  separação  são,  além  da   ausência  de  um  poder  central  e  coercitivo  na  Instituição  da  Igreja  Católica,  ao  costume  bizantino  do  cesaropapismo,  caracterizando  uma  espécie  de  teocracia  à  moda  de  Justiniano  nos  séculos  anteriores ao Cisma.23  O  Cisma  do  oriente  então   dividiu  a  Igreja  em  duas:  a  parte  Ocidental,  Católica,  Apostólica  e  romana,  e   a  Oriental,  Ortodoxa  e  grega. Além desse acontecimento relevante,  outros  dois  são  de  suma  importância  na  construção  do  Direito  Canônico:  A  Querela  das  Investiduras,  representando  a  afirmação  do  poder  papal;   e  a  Renacença  do  século  XII,  período  de  muitas  transformações  políticas,  sociais  e econômicas na Europa, que acabaram  por  assentar  as  bases  para  o  Renascimento  e  a  Revolução  Científica  vistos  na  Idade  Moderna.  Com  a  perda  de  autoridade  da  cúria  romana  no  Oriente  devido  ao  Cisma,  começa  a  haver  uma  movimentação  política  direcionada  à  centralização  do  poder  papal,  conforme  explica  Lopes,  Até  então,  a  Igreja do ocidente havia sido uma comunidade sacramental, espiritual,  não  jurídica  e  muito  mais  uma  federação  de  Igrejas nacionais  do  que uma  rígida  monarquia  centralizada  em  Roma.(...)  É  com  Gregório  VII,  neste  reínicio  da  expansão  do  Ocidente,  que as coisas  começam  a mudar, e  a mudança  se reflete e é   GILISSEN, John​ . Introdução histórica ao direito, ​ 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1995. P.137. LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P. 61. 22 23

também  constituída  no  campo  do  direito.  Antes  de  Gregório   VII,  a  jurisidição   religiosa  não  se  destacava  claramente  dos sacramentos. Sacramentos e lei  eram ma  só e mesma  coisa. Leis canônicas não se distinguiam bem da  liturgia e teologia24. A  Lei  era  uma espécie de disciplina, regra comum. Mas  as regras comuns eram muito  vagas:  quanto  mais  comuns,  mais  vagas  e  abstratas.  Por  exemplo:  a  Espanha  arabizada constituíra sua própria tradição litúrgica, o chamado rito moçárabe.25 

  A  Igreja  em  Roma,  por  tal  descentralização,  se  via  cada  vez  mais  ameaçada  pela  ocorrência   de  novas  rupturas.  A  movimentação  política  então  pode  ser   vista  como  uma  tentativa  de  contraposição  a  subordinação  ao  poder  civil  feudal,  sobretudo  ao  poder  do  Sacro  império  Romano.  Gregório  VII  então,  toma  uma  série  de  medidas  que  em  conjunto  constituirão  as  bases  para  a  formação  dos  Estados  Nacionais,  de  acordo  com  uma  perspectiva  weberiana26:  a  instituição  de  uma  dominação  burocrática  racional,  legal  e  formal.  É  nesse  esforço  principalmente  que  começa  a  se   desenvolver  o  Direito  Canônico,  pois  Gregório  VII  propõe­se  libertar  a  Igreja  do  poder  secula,  porém não apenas sua Igreja  particular,  mas  a  Igreja  Ocidental  inteira,  e  isto  só  pode  ser  feito  organizando  um  poder  político mais eficaz do que o de seus adversários, no caso o Sacro Império Romano.  A  reforma  gregoriana  se baseia na oposição a todas as relações  feudais características que a  Igreja católica vinha tendo nos seus mais variados níveis.  Gregório  centra­se  principalmente  na  oposição  à  simonia  (venda  de  coisas  sagradas,  particularmente  os  cargos  e  ordenações  clericais),   ao  casamento  dos  clérigos  (nicolaísmo)   e  à  nomeação  de  leigos  para  cargos  mais altos  e  dignidade  eclesiásticas,  recebendo  os  benefícios  (rendas) de terras, paróquias  mosteiros, etc.”   Em   1075,  dando  início  a  sua  reforma,  Gregório  emite  ou  organiza   o  famoso  Dictatus  Papae​ ,  cuja  verdadeira  natureza  é ainda controvertida27. (…) O fato é que  se  tratava  de  uma  série  de  títulos  ou  princípios   visando  dar  liberdade  e   independência  à  Igreja.  Entre  eles  destacavam­se   os  seguintes:  (1)  A  Igreja  Romana  foi  fundada exclusivamente pelo Senhor; (2) Só o bispo de Roma pode ser  chamado  universal  de   direito;  (3)   Só  ele  pode  depor  e  instalar   bispos;  (4)  Seu  legado   precede  a  todos  os  bispos  de  um  concílio,   mesmo  se  tiver   um  grau  hierárquico inferior, epode senteciar qualquer um deles à deposição;(7) Só ele pode  legislar  de  acordo  com  as  necessidades  do  tempo;  (9)  Sé  seus  pés  podem  ser  beijados  pelos  príncipes todos; (10) Só seu nome deve ser recitado nas Igrejas; (11)  Ele  pode  depor  os  imperadores;  (16)  Não  podem  chamar  sínodos  gerais  sem  as  suas  ordens;  (17)  Nenhum  capítulo  ou  livro pode ser  considerado  canônico sem  a  sua  autoridade;  (18)  Nenhum  de  seus  julgamentos  pode  ser  revisto,  mas  ele  pode  24

BERMAN, Harold. ​ Law and Revolution​ . Cambridge: Harvard University Press, 1983. P.204

LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P68. 26 Idem. P.69. 27 BERMAN, Harold. ​ Law and Revolution​ . Cambridge: Harvard University Press, 1983. P. 95. 25

rever  os  julgamentos  de  todos;  (21)  Os  casos  mais  importantes  de  todas as Igrejas  podem  ser  levados  à Sé Apostólica  (ele é ordinário em  qualquer jurisdição); (27) A  ele   compete  dissolver  os  laços  de  vassalagem  e  fidelidade  para  com  o  homem  injusto. Foram 27 proposições que revolucionaram não  apenas as terras do império,  essencialmente  as  hoje  ocupadas  pela   Alemanha  e  Itália  (...),mas  todo  o resto  da  Cristandade  latina,   repercutindo  de   tal  modo  que  nos  séculos  seguintes  a mesma  centralização  papal  se  expressa  em  conflitos  famosos  com  os  reis  da  Inglaterra  e  Portugal.28   

Durante  a  Baixa  Idade  média,  os  reis  eram  considerados  autoridades  sacrais  e  adquiriam  seu  poder  pela  unção:  a  sagração  do  rei  era  uma  cerimônia  religiosa  e  política.  No  entanto,  a  reforma  gregoriana,  acaba  por  afirmar  indiretamente  que  os  reis  estavam  dentro  da  Igreja,  e  não  acima  dela  (​ imperator  in  Ecclesiam,  non  super  Eclessiam);  ​ e  que  dentro  da  Igreja  a  autoridade  máxima  era  o  papa.  Isso  ía   totalmente  contra  a  estrutura  política do Império, que por tradição era um ​ poder e não um território, como se pensa.29 Era  um  poder  baseado  na   autoridade  (​ imperium​ )  e  na  capacidade  de  governar  (​ jurisdictio​ ).  Ademais,  não  era   um poder sobre um  determinado povo em um determinado território, mas  sim  sobre  um  conjunto  de  senhores,  intrincados  em  uma  rede  de  relações  feudais  e  interpessoais.  Não  havia  uma   burocracia  central,  vigorando  sobretudo   o   ​ princípio  da  personalidade  (ou  pessoalidade)  dos  costumes  locais  e  de  algumas  leis.  “O  império  era,  pois, uma entidade militar/espiritual”.30  O  modelo  carolíngio de  colaboração entre Igreja e Estado, através daquelas relações  feudais  é  findado  pela  reforma  gregoriana,  passando  a  vigorar  um  modo 

de 

não­intervenção  do  Estado  na  ​ ecclesia​ ,  ​ que  perdura  até  a  Reforma.  Com  o  catolicismo  marjoritariamente  estabelecido  na  Europa,  o  papa  resolve  centralizar  a  nomeação  dos  bispos,  diferentemente  da  Baixa  Idade  Média,  onde  costume  era  que  os  bispos  fossem  nomeados  por  outros  três  bispos, criando assim uma “rede” que dispensava uma autoridade  central  presente,  coisa  difícil  de  se  ter  em  uma  Europa   amplamente  fragmentada.  Essa  “rede”  era  muito  interligada  aos  poderes  locais,  estabelecendo  relações  de  “compadrio”  com o poder feudal. 

LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.70. 29 BERMAN, Harold. ​ Law and Revolution​ . Cambridge: Harvard University Press, 1983. P. 89. 30 LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.71. 28

Esse  atrito  entre  Império  e  Igreja  acaba  por  estabelecer  a  Questão  das Investiduras,  que  foi  uma  série  de  conflitos  armados  que  só  seriam  apaziguados  meio século mais tarde,  através da concordata de Worms em 1122. Tal acordo reconheceu ao Imperador o direito de  investir  bispos  com  a  autoridade  secular  ("pela  lança")  nos  territórios  que  estes  governassem, mas não com a autoridade sagrada ("pelo anel e báculo").31  Os antescedentes do movimento reformador gregoriano advém principalmente  nas reformas  de  Cluny,  também  chamadas  de  reformas  beneditinas.  De certa maneira, a abadia de Cluny  foi  a  primeira  a  abandonar  as  relações  feudais  seculares,  uma  vez  que  seu  abade  passou  a   exercer  autoridade  sobre  todos  os  mosteiros  próximos,  estabelecendo  assim  uma  centralização  com  os  senhores  políticos  feudais  em  uma  única  pessoa  (aspecto  organizacional)   A  instituição  da  Paz  de Deus e da Trégua de  Deus ­ idealizadas pela abadia  de  Cluny  –  no  contexto  político  europeu  também  teve  grande  influencia  na   reforma  papal.  (aspecto moral).32  A  influência  desses  aspectos,  a  centralização  burocrática  e  moral,  fez  com  que  Gregório  procurasse  fortalecer  o  Direito  Canônico  para  fins  de  supremacia  argumentativa,  ou seja, havia a necessidade de montar um arcabouço jurídico capaz de afirmar a autoridade  papal.  Com  a  Concordata  de  Worms,  estabelece­se  um  equilíbrio  entre  o poder espiritual e  o  temporal,  sendo  essa  disputa  um   fruto  característico  da  tradição   ocidental.  Assim,  no  Ocidente não se desenvolvem teocracias como a ortodoxa, a muçulmana e a hindu, uma vez  que  nem  o  Imperador  tinha  poder  para  se  apossar  da  estrutura  clerical,  nem  o  Papa  tem  influência o suficiente para interferir nos Estados seculares europeus.33  A  reforma  gregoriana portanto, é de suma importância para a formação da tradição oriental.  De  fato,  Berman34  considera  a  Reforma  Gregoriana  como  a  primeira  revolução  do  mundo  ocidental,  pois  teria  sido  rápida,  total,  universalizante,  socioeconômica.  Está  ao  lado  de  todas  as  outras  revoluções   do   segundo  milênio:  a  Russsa  (1917),  a  Francesa  (1789),  a 

31

Idem. P.72. BARROW, Julia. "Ideology of the Tenth-Century English Benedictine 'Reform'". Apud Skinner, Patricia. Challenging the Boundaries of Medieval History: The Legacy of Timothy Reuter. Turnhout, Bélgica: Brepols. 2009. P. 142. 33 LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.73. 34 BERMAN, Harold. ​ Law and Revolution​ . Cambridge: Harvard University Press, 1983. P. 115. 32

Americana  (1776),  a  Inglesa  (1688­1689)  e  a  Protestante  (séc.  XVI). Essas  revoluções tem  entre  si  muitas  características  em  comum:  “todas elas, além de seguirem  um projeto, foram  violentas e rápidas, mas nunca se consolidaram se não num espaço de mais de uma geração,  e sempre trouxeram um direito novo que se firma e substitui um direito velho”.  Foi  da  concepção  de  Igreja  de  Gregório  que  começou  a  nascer  o  Estado  moderno:  são  instituídos  uma  burocracia,  um   poder  de  legislação,  uma  ambição  de  universalidade.  Concepção  importante  também  foi  a  reafirmação  da  superioridade  da  lei  sobre  a  tradição  consuetudinária,  sendo  de  Gregório  a  famosa  afirmação:  “O  Senhor  disse:  ‘meu  nome  é  verdade’,  não  ‘meu  nome  é  costume’  ”.  A  reforma  também  restaura  o  príncipio  argumentativo  para  a  resolução  de  conflitos,  através  da  ampla  adoção  da  Paz  de Deus e da  Trégua  de  Deus,  distinguindo  da  concepção  militarista  presente  na  Baixa   Idade  Média.  A  partir  disso,  a  autoridade  se   reafirma sobre o ​ potestas ​ (o poder legítimo) e não mais sobre a  potentia  ​ (a  força).  Na  reforma  também  há  o  estabelecimento  da  ​ militia  Christi  como  um  processo de militarização do papado contra as forças imperiais, que estabelece as bases para  o lançamento das Cruzadas nos séculos posteriores.35  3.3 A Formação do Corpus Juris Canonicum  Durante  toda  a  Baixa   Idade  Média,  havia  uma  infinidade  de  cânones  que  disciplinavam  a  ​ ecclesia​ ,  esta  por  sua  vez  descentralizada  e  distribuida  por  toda  a  Europa  Ocidental.No  entanto,  com  a  emergência  da  Alta  Idade  Média,  caracterizada  pela  centralização  do  poder  papal,  surge  a  necessidade  da  codificação  desses  cânones.  Já  em  1090,  alguns  anos  após  a  reforma  gregoriana,  Ivo,  bispo  de  Chartres  (já  um  centro  intelectual,  devido  a  uma  escola  anexa  à  catedral),  redige  uma  série  de livros jurídicos que  abrangem  principalmente  o  direito  canônico,  desta  forma,  “estava  tendo  início  uma  tentativa  de  reduzir  a  pluralidade  a  um  todo  que  pudesse  ser  dominado  e  transmitido  escolástica e escolarmente”.36 

LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.74. 36 LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.79. 35

Porém  é  em  1140  (entre  1139  e  1148,  de acordo com Musselli. P.37) que foi feita a  codificação  crucial  do  Direito Canônico: O Decreto de Graciano. Abrangindo mais de 3800  textos  comentados,  foi  reconhecido  como  uma  autoridade  doutrinária  e   intelectual  na  época.  “Graciano  concebia  o  Direito  como  um  ​ corpo  vivo,  vivido  pela  tradição  e  com  um  futuro.  Nisto  era  diferente  dos  juristas  civilistas  (estudiosos  do  direito romano justinianeu),  que viam no texto de Justiniano um texto acabado.”.  Devido  àquela  pluralidade  de  cânones,  havia  a  constante  presença  de  conflito  jurídico,  gerando  constante  presença  de  antinomias  no  âmbito  jurídico.  Graciano  soube  melhor  do  que  ninguém  empregar  os  princípios  do  método  escolástico  para  a  resolução  desse  problema:  “em  caso  de  contradição,  seria  preciso  fazer  uma  distinção”.  Estes  princípios  eram  quatro:  (a)​ ratione  significationis​ ;  (b)​ ratione  temporis​ ;  (c)ratione  loci​ ;  (d)ratione  dispensationis.  ​ O  primeiro  critério  impunha  a  facilitação  da  hermenêutica  jurídica,  através  da  investigação  filológica37.  Os  outros  três critérios distinguiam as normas  pelo  seu  tempo  de  vigência  (  superioridade  da  ​ lex  posterior  sobre  a  lex  anterior​ ), pelo  seu  espaço  de  vigência  (superioridade  da  lei  local  sobre  a  lei  geral)  e  pela  sua  matéria  (superioridade  da   lei   especial  sobre  a  lei  geral).  Esses  princípios  foram  se  arraigando  na  tradição  ocidental,  e  são  presentes  ainda  hoje  quase  na  mesma  forma  que  Graciano  os  apresentou.38  A  partir  de  Graciano,  a  influência  dos  canonistas  vai  se  afirmando   cada  vez  mais,  constituindo  uma  espécie  de  carreira  e  de  burocracia, se firmando, segundo Lopes (p.80), a  primeira  burocracia  moderna  do  Ocidente.  Da  Universidade  de  Bolonha  saíam  vários  canonistas  influentes,  como  os   Papas  Alexandre  III  (1159­1181),  aluno  de  Graciano,  e  Inocêncio  III  (1198­1216).  Dessa  forma,  havia  cada  vez  mais  “legislação  papal”  ,  assim  dizendo, concomitante com a centralização do poder papal.  Os  concílios  também  eram  importantes  ferramentas  de  criação  e  estabelecimento  de  cânones,  e  juntamente  com  o  papel  doutrinário  dos  canonistas,  ampliavam  a  jurisdição 

MUSSELI, Luciano. ​ ​ Storia del diritto canonico: introduzione alla storia del diritto e delle istituzioni ecclesiali​ . Torino: Giappichelli, 1992. P.39. 38 LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. P.79. 37

eclesiástica.  O  auge  dessa  jurisdição  se  dá  pela  instituição  do  Tribunal  da  Inquisição,  que  centraliza  na  Santa  Sé  o  poder  de  julgar  os  chamados  crimes  contra   a  religião(P.80).  Em  alguns  lugares,  como em Paris de 1219 e 1600, só  se estudava o direito canônico, por temor  dos  reis  da  França  de que o direito romano significasse uma submissão do rei ao imperados  (alemão)  do  Sacro  Império  ou  influenciasse  discussões  neste  sentido.  o  título  confferido   a  quem  estudasse  ​ leis  cânones  era,  pois,  ​ Doctor  Utrisque  Iuris​ ,  doutor  em  ambos  os  os  direitos.  Naturalmente,  à  Igreja  foi  relegado  o  monopólio  de  codificação  dos  cânones.  no  ano  de  1234, Gregório IX, promulga uma atualização do Decreto de Graciano,  chamado de  “​ Decretales  Extra  Decretum  Gratiani  Vacantes​ ”.  Esse  decreto,  juntamente  com  adições  posteriores formaria a base do que hoje é conhecido como Corpus Iuri Canonici.39    3.5. Processo Inquisitório: Reafirmação do Direito Canônico  

A Inquisição medieval, também conhecida como caça as  bruxas, ocorreu nos  séculos  XV  e  XVII  cuja  principal  finalidade  era  a  captura de hereges para o enfrentamento  de qualquer questionamento dos dogmas de  Igreja, num momento em que o direito era fruto  da  manifestação   divina.  Nessa  perspectiva  surge  um  aparelho  da  Igreja  responsável  pelo  estabelecimento  do  direito  penal,  através  da  tortura  daqueles   que  eram  considerados  subversivos ao estabelecimento da ordem.  “  A  Inquisição  Medieval,  inicialmente  criada  pela  Igreja  para  combater  as  heresias,  em  sua  versão  moderna,  além  de  revelar­se  muito  mais  violenta,  apresenta  uma  dimensão  política,  que  foi  sendo  desenvolvida  desde  seu  surgimento,  principalmente  pela  nobreza  na  perseguição  de  indivíduos  que   constituíam uma ameaça ao poder”40  O  direito  canônico  se  consolidou  como  único  direito  escrito  na  época,  e  embora  sua  elaboração  era  destinada  ao  regramento  daqueles  que  compunham  o  clero,  seu  alcance  estendeu­se aos leigos.  

39 40

Idem. PP. 80-81. ​OLKMER, Antonio Carlos​ W . Fundamentos de História do direito,​ 7ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 286

“Em  matéria  penal,  era  competência  de  os  Tribunais  Eclesiásticos  processar  e   julgar  todas  as  pessoas  que  praticassem  alguma  infração  contra  religião  (heresia,   apostasia,  simonia,  sacrilégio,  bruxaria,  etc.),  bem  como  o  adultério  e  a  usura.  No  apogeu  da  Inquisição,  os  Tribunais  Seculares da Europa  ganharam  jurisdição sobre tais crimes, suplementando os Tribunais Eclesiásticos  como instrumentos judiciais de perseguição. 41  O  direito  canônico  encontrava­se  sistematizado,  formalizado  e  escrito,  tal  fato  contribuiu  para  sua  enorme  influência  no  direito  laico.  Além  disso,  o  forte  vínculo  entre  Igreja  e  Estado  foi  determinante  para  adoção  de  um  aparato  legal  que  legitimasse a tortura  de todos aqueles que questionassem Deus.   Mas  foi  a  Igreja  que,  principalmente,  influenciou  e  incentivou  a  adoção  dos  novos  procedimentos  do  direito  penal.  Mudando  inicialmente  a  forma  do  processo  nos  Tribunais  Eclesiásticos,  a  Igreja  proibiu,  no  IV Concilio de Latrão  (1215),  a  participação  dos  clérigos  nos  ordálios.  O  ordálio,  que  apelava  a   providência  divina   para  estabelecera  culpa  ou  inocência  do  réu,  requeria  a  presença  de  clérigos  para  abençoar  a  operação.  Estando  estes,  a  partir  do  Concílio,  proibidos  de  participar  dos  ordálios,  não  mais  poderiam  ser  realizados”.42  “O  direito  Canônico  não  tendo  terminado  este  ou  aquele  suplício  em  particular,  os  juízes podem se servir daqueles que eles acreditarão serem os mais  apropriados para tirar do acusado a confissão do seu crime”.43  3.4 A Renascença do Século XII e o Direito Canônico  Diferentemente  do  senso comum, a Idade Média em si não foi um período de trevas,  mas  sim  um  período  de  altos  e  baixos.  No  século  XII  por  exemplo,  há  a  afluência  de  uma  série  de  manifestações  políticas,  econômicas,  científicas  e   culturais  que  causariam  uma 

​OLKMER, Antonio Carlos​ W . Fundamentos de História do direito,​ 7ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 288 Idem 43 L​ EGENDRE, Pierre. Op. Cit., p.99. 41 42

turbulência  no  modelo  feudal  até  então  presente.  Um  dos  primeiros  historiadores  medievalistas a estudar esse período, Charles Haskins, afirmava já na década de 20:   “(O Século XII na Europa) foi em muitos aspectos uma era de vida e vigor renovados. Foi a  época  das  Cruzadas,  do  crescimento  das  cidades  e  dos  embriões  dos  Estados  burocráticos  Ocidentais,  da  emergência  da  arte  Gótica  e  da  literatura  popular;  o  ressurgimento  dos  clássicos  e  da  lírica  greco  romana,  além  do  direito  romano;  a  restauração da ciência grega,   com contribuições árabes; e a origem das primeiras universidades europeias.”44  De  fato,  nesse  contexto  de  renascimento  intelectual,  se  dá  a  escolástica.  Tendo  como  ícones  São  Tomás  de  Aquino  (na   teologia) e Graciano (na codificação), a escolástica  se  caracterizou  como  um  movimento  intelectual  de  restauração  da  tradição  científica  clássica,  integrada  a  conceitos  da  tradição  cristã  agustiniana.  Abrangindo  principalmente  conceitos  filosóficos,  a  escolástica  se  firma  no  estudo  da  ontologia,  hermenêutica  jurídica,  da teologia e da filosofia.45   Os  canonistas,  ao  desenvolverem  o  direito  canônico,  acabaram  por   elaborar  vários  princípios  de  cárater  jurídico­político  que  se  aplicariam  a  todos  os  corpos  eclesiásticos.  Segundo  Lopes,  seriam  quatro  princípios.  O  primeiro  era  o  Princípio  Eletivo,  que  ao  estabelecer  a  eleição  de  cargos  de  autoridade  pelos  próprios  membros  da  Igreja,  de  certa  forma separava a Igreja do resto da cristandade como uma corporação hierarquizada.   Já  não  eram  mais  as  assembléias  de  todos  os  cristãos  o que  contava: mas também  já não  seriam  os senhores e nobres locais seculares que determinariam o futuro das  igrejas;  seria  um  novo  personagem  definido:   o  clero,  como  corporação,  corpo  e  representante  da  corporação  igreja  (ou  paróquia,  abadia,  diocese  etc.).   A  Igreja  havia  sido  um  corpo  místico que  incluía todos os fiéis e passava progressivamente  a  ser  uma  corporação jurídico­disciplinar, que abrangia,  para certos efeitos, apenas  o clero.46  

  O  segundo  princípio,  Lopes  continua,  era  o  da  Soberania  das  Corporações,  onde  o  papa  só  poderia  interferir  para  sanar  irregularidades   e  fazer  valer determinados atos,  pois a 

HASKINS​ ​ ,​ Charles Homers​ . The Renaissance of the Twelfth Century​ .​ Cambridge: Harvard University Press, 1927. P.VII - Introduction. 45 SCHOEDINGER, Andrew B. ​ ​ Readings in Medieval Philosophy. ​ 1​ ª Ed.​ New York: Oxford University Press, 1996, P.65. 46 LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História​ : Lições Introdutórias. 3ª Ed. São Paulo: Editora Atlas. 2008. PP.82-83. 44

assembléia  corporativa  era  soberana.  O  terceiro  princípio  era  o  Princípio  Assemblear,  que  afirmava  o  papel   legislativo  dos  concílios  na  Europa.  Por  fim,  o  o  Princípio  Monárquico  estabelecia  a  figura  do  papa  como  o chefe superior, um verdadeiro ​ Pontifex maximus​ ,  com  poder de enviar legados, núncios, delegados (juízes), coletores, banqueiros para as dioceses.  Dessa  forma,  acabou­se  por  disseminar­se  uma  prática  crescentemente  autônoma  de  resolução  de controvérsias, marcada pelo novo espírito racionalizador e formalizador que já  contaminara  a  filosofia  escolástica.  Pensa­se  que  a  filosofia  escolástica,  na  verdade,  mais  aprendeu  com  o  processo  e  a  argumentação  jurídica  do  que  ensinou.  O  fato  é  que  o  processo  canônico  opôs­se  com  certa  clareza  à  experiência  anterior  na  solução  de  controvérsias,  inaugurando  uma  tradição  que  perduraria,  pelo  menos   na  Europa  Continenatal, até os idos contemporâneos.47    5. Direito Canônico no Brasil  5.1 Direito Canônico no Brasil Colonial  A) Início da colonização 

Dentro  de  uma  perspectiva  histórica,  sabe­se  que as normas eclesiásticas da Igreja Católica  entraram  no  Brasil  via  colonização  portuguesa,  já  que  elas  faziam  parte  importante  das  normas  jurídicas  que  vigoravam  em  Portugal.  Como  na  época  do  Brasil  Colônia  a  maior  parte da cultura  jurídica provinha da metrópole (não haviam fóruns nem tribunais no Brasil)  e  a  legislação  era  imposta  por  Portugal, através das ordenações  reais, fica claro então que o  Brasil  terá  seu  ordenamento  jurídico  baseado  em  leis  lusitanas,  ainda  mais  quando  se  percebe  que  o  direito  brasileiro  só  se  “libertará”  do  português  com  a  homologação  do  primeiro código Civil nacional em 1916. Conforme discutido por Szanjawski:  A  partir  de  1531,  Portugal  passou  a  colonizar  o Brasil  sendo  que,  a  este  tempo,  vigiam  em  Portugal  as  Ordenações  Manuelinas,  sendo  estas,  o  primeiro  estatuto  jurídico  do  Brasil ao  lado  de cartas  régias,  cartas  de foral  e de  cartas  de  doação,  que se constituíam documentos jurídicos. 

47

Idem. PP.88-91.

Durante  todo  o  período  colonial,  vigoravam  no   Brasil  as  Ordenações  Filipinas,  decretadas  em   1603,   ao  lado  de decretos,  alvarás  e  resoluções  promulgadas  por  48 Portugal.  

 

Além  disso,  Portugal  desde  sua  concepção  como  país  se  mostra  fervorosamente  católico  e  que,  portanto,  segue  muito  daquilo  proposto  pela  Igreja,  se  baseando  até  mesmo  em  seu  código  de  leis.  Isso ocorreu  pois, segundo  discutido por  Wolkmer, em seu livro História do  Direito  no  Brasil,  a  igreja  fora  uma  força  onipresente  no  desenvolvimento  financeiro  e  jurídico  da  Europa.  Com  sua   condição  de  maior  latifundiária,  estava  comprometida  com  a  defesa  do  feudalismo,  e  com  toda  a  sua  autoridade  auxiliou  na  repressão  das  revoltas  de  49

camponeses que varreram o continente.    Contudo,  a  primeira  tentativa   de  administração  da  colônia  não  estava  tendo  o  êxito  esperado,  a  divisão  em  capitanias  Hereditárias  era  um  fracasso,  inclusive do ponto de vista  jurídico  no  qual  esta  divisão  tornava  impossível  a  aplicação  das  leis  sem  um  Estado  centralizado  e  forte.  Foi  então  que,  a  partir  dos  Governos  Gerais,   começou  a  efetiva  aplicação  da   legislação  penal  no  Brasil,  sendo  esta  mudança  administrativa  fundamental  para  o  sucesso  da   colônia;  a  presença  de  um  governo  centralizado  nas  mãos  de  um  governador  geral  garantiu  a  organização  da  colônia  e  sua  efetiva  colonização,  bem  como  regulamentação.  A  legislação  aplicada  no  âmbito  penal  era  o  Livro  X  das  Ordenações  Filipinas.  Hoje  em  dia,  as  penas  por  ele  aplicada  seriam  consideradas  cruéis e desmedidas;  alguns  exemplos  desse  fato  seriam:  a  pena  de  morte  natural  (enforcamento  no  pelourinho,  seguido  de  sepultamento),  a morte natural cruelmente (dependia  da imaginação do executor  e  dos  árbitros),  a  morte  natural  pelo  fogo  (queima  do  réu  vivo,  passando  primeiro  pelo  garrote),  morte  natural  para  sempre  (enforcamento,  ficando  o  cadáver  pendurado  até  o  apodrecimento).  O  sentido  desta  legislação  é  a  intimidação  feroz,  sem  qualquer  tipo  de  proporção  entre  a  pena  e  o  delito,  e  que  ainda confundia  os interesses do Estado  com os da  Igreja. Este tipo de legislação demonstra o espírito reinante nas legislações  até o surgimento  48

SZANIAWSKI, Elimar. ​ Direitos de Personalidade e sua Tutela​ . 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.130. 49

WOLKMER, Antônio Carlos. ​ História do Direito no Brasil​ . Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 177

do  movimento  humanitário,  transpassando  a  necessidade  de  o  Estado  se  mostrar  temível  e  respeitado. Sobre isso, Wolkmer afirma,   Com  o   fracasso  da  grande  maioria  das   capitanias,  tratou  a  Metrópole  de  dar  à  Colônia outra  orientação designada como sistema de  governadores­gerais. Surgiu,  assim  a  utilização  de  um  certo  número  de  prescrições   decretadas  em  Portugal,   reunindo  desde  cartas  de  Doação  e  Forais  das  capitanias  até  Cartas­Régias,  Alvarás,  Regimentos  dos  governadores  gerais,  leis  e, finalmente,  as  Ordenações  Reais.  Em  geral,  a  legislação  privada   comum,  fundada  nessas  Ordenações  do  50 Reino, era aplicada sem qualquer alteração em todo o território nacional.​    

A  percepção  das  manifestações  do  Direito  Canônico  no  Brasil  se  faz  sentir  logo  após  o  descobrimento,  quando  chegou   à  nova  terra  a  Igreja  Secular,  representada  por  párocos,  canônicos  e  outros  dignitários   catedralícios,  bem  como  o  primeiro  bispo,  que  por  longo  tempo  seria  o  único  em  todo  o  país.   Os  sacramentos  do  batismo  e do matrimônio foram as  principais  preocupações  dos  religiosos  que  para  cá  vieram,  ainda   mais quando a nova terra  estava  cheia  de  potenciais  fiéis  que  deveriam  ser  “salvos”:  os  índios.   Assim,  foram  os  indígenas  que  primeiro   tiveram  contato  e  sofreram  a  interferência  do  Direito  Canônico  no  Brasil,  sendo  mais  afetado  o  modo  como  constituíam  suas famílias que era inaceitável  para  os  religiosos  europeus.  Colocando,  ainda,  de  forma  geral,  os  índios  foram  largamente  aculturados  pelos  europeus,  em  um  primeiro  momento  para  servir  como  mão­de­obra  e  posteriormente  tinha­se  um  propósito   mais  espiritual,  de  arrecadação  de  novos  fiéis  e  expansão  da  fé;   portanto,  pode­se  concluir  que  a  religião  teve  grande  participação  nesse  processo  de  aculturação,  alterando  de  forma  ativa  a  vida  do  índio  desde  os  primeiros  contatos. Wolkmer atesta que,   Na   verdade,  o  processo  colonizador,   que  representava  o  projeto   da  Metrópole,  instala  e impõe numa região habitada por populações indígenas toda uma tradição  cultural  alienígena  e  todo  um  sistema  de  legalidade  “avançada”  sob  o  ponto  de  vista do controle e da efetividade formal.  O  empreendimento  do   colonizador  lusitano,  caracterizando  muito  mais  uma  ocupação  do  que  uma  conquista,  trazia  consigo  uma  cultura  considerada  mais  evoluída,  herdeira  de  uma  tradição  jurídica  milenária  proveniente  do  Direito  Romano. O Direito Português,  enquanto expressão maior do avanço legislativo na  península  ibérica, acabou  constituindo­se  na  base  quase  que exclusiva do Direito  pátrio.  Analisando  as  raízes  culturais  da  legislação  brasileira,   escreve   A.  L.  Machado   Neto  que,  dos  três  grupos  étnicos  que  constituíram nossa nacionalidade, somente   50

WOLKMER, Antônio Carlos. ​ História do Direito no Brasil​ . Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.44.

a  do  colonizador  luso  trouxe  influência dominante  e  definitiva  à  nossa formação  jurídica.  Se  a  contribuição  dos  indígenas  foi relevante para a construção de nossa  cultura,  o  mesmo  não  se  pode  dizer  quanto à  origem do Direito nacional, pois os  nativos   não  conseguiram  impor  seus “mores”  e  suas  leis,  participando  mais  “na  humilde condição  de  objeto do direito real”, ou seja, objetos de proteção jurídica.  Igualmente  o negro,  “para  aqui  trazido  na condição de escravo, se sua presença é  mais  visível e assimilável  no  contexto  cultural  brasileiro,  a  sua  própria  condição  servil e  a  desintegração cultural  a  que  lhes  impelia  a  imigração  forçada  a  que  se  viam  sujeitos,  não  lhes  permitiu   também   pudessem  competir  com  o  luso  na  51 elaboração do Direito brasileiro”.  

  B) Jesuítas no Brasil  Vale  ainda  ressaltar  que  o  Concílio  de  Trento  oficializou  a  divisão  de  forças,  propiciando  que  a  Península  Ibérica  se  convertesse  no  principal  baluarte  de  reação  ao  protestantismo.  Temendo  a  expansão  protestante,  urgira  a  reafirmação  da  integridade  da  fé  e  dos  dogmas,  (...)  teria  início   o   processo   de  censura  inquisitorial,  que  aniquilaria  o  alvorecer  do  humanismo  luso.  Neste  contexto,  a  Companhia  de  Jesus  e  a  Inquisição  vieram  configurar   no território nacional os contornos da sociedade.  Esses  traços,  conforme  Wolkmer,  são essenciais para compreender o tipo de cultura que foi  propagado  pela  Metrópole  durante  os  primórdios  da  colonização  lusitana   no   Brasil.  Tratava­se   de  uma  cultura  senhorial,  escolástica,  jesuítica,  católica,  absolutista,  autoritária,  obscurantista  e acrítica. Em tal contexto, o principal polo irradiador da formação cultural da  nova  Colônia  foi  a  solidificação  da  catequese  católica  e   do   ensino  do  humanismo  escolástico,  transplantada  predominantemente  pela  Companhia  de  Jesus,  que  implicaria,  como  reconhece  Alberto  Venâncio  Filho,  que  “a  cultura  portuguesa  nos   séculos  XVI  e  XVII e na primeira metade do século XVIII conservar­se­ia impermeável às transformações  que  se  processavam  no  continente  europeu  após  o  Renascimento,  com  a  expansão  dos  52

estudos científicos e a disseminação do método experimental”.   C) Era Pombalina 

51

Ibidem. P.42

52

Ibidem. P.48

Com  efeito,  as  reformas  pombalinas  limitam  largamente  a  jurisdição  do  clero   (os  jesuítas  são  expulsos  de  Portugal,  em  1759),  restringem  os  benefícios  da  nobreza,  incrementam  o  poder  econômico  da  burguesia  e  impulsionam  a  reformulação  do  ensino  e  do  modelo  universitário  (alcançando  a  Universidade  de  Coimbra).  Segundo  ainda  discutido  por  Wolkmer,  certamente  que  esse  movimento  renovador  do  iluminismo  pombalino,  centrado   na  abertura   aos  avanços  científico­culturais,  na  reforma  do  ensino  e  da  máquina  administrativa, e na desestruturação da força jesuítica,  favorece as condições para o advento  do  liberalismo  português.  Em  fins  do  século  XVIII  e  ao  longo  do  século  XIX,  começam  a  chegar  ao  Brasil  os  ecos  do  ciclo  de  ideias  representados  pelo  iluminismo  pombalino  e  53

pelas primeiras manifestações do liberalismo engendrados na Metrópole lusitana.   5.2 Direito Canônico no Brasil Império  Sabe­se  que  a  igreja  também  foi  atuante  na  época  da  independência.  Pela  luta  pela  independência,  por  exemplo,  muitas  lideranças  religiosas,  lideranças  católicas, deram a sua  vida  na  luta  por  esse  processo  como  Frei  Caneca,  símbolo  da  luta  democrática  em  Pernambuco.  Em  1822,  apesar  de  os  ideais  de  independência  terem  sido  muito  citados  e  reivindicado  pela  população  na  época,  sabe­se  hoje  que   o   que  desencadeou  o  processo  de  independência foi a questão financeira e a sua subordinação à Portugal.  Frente  a  independência,  o  país  necessitava  de  legislação  própria.  Entretanto,  a  Lei  de  20.10.1823  determinou  a  observância  da  legislação  portuguesa  enquanto  se  elaborava  a  brasileira.  Foi  convocada  a  Constituinte  em  três  de  junho  de  1822.  Para  poder  continuar  existindo,  a  Constituinte  teve  que  se  submeter  à  vontade  do  Imperador,  sendo  dessa forma  designada  por  muitos  como  “Constituinte  Consentida”.  Porém,  alegando  estar  trazendo  graves  perigos  à  nação,  D.  Pedro  fechou  a  Assembleia  Constituinte  e  nomeou  uma  comissão de sua confiança para a elaboração da constituição.  Não  obstante,  com  o  advento  do  liberalismo  da  Independência  e  do  Estado  nacional  brasileiro,  segundo  discutido  por  Lima   Lopes,  as  Ordenações  vão  sendo  a  pouco  e  pouco  revogadas.  O  Livro  V   é  logo  substituído  pelo  Código  Criminal  do  Império  de  1830;  o  53

Ibidem. P.89

processo  e  estrutura  da  magistratura  são  reformados  pelo  Código  do  Processo  Criminal  de  1832,  e  o  processo  civil  vai  reger­se  a  partir  de  1850  também  pelo  Regulamento  (decreto)  737.  Os  Livros  I  e  II  perdem  sua  razão  de  ser  com  os  eventos  revolucionários   a  partir  de  1820  (Revolução  do  Porto)  e  1821­1822  (Independência),  sem  falar  na  transformação  do  Brasil  em  Reino  Unido  (1815)  e  na  transferência  da  Corte  (1808).  O  único  a  ter  vida mais  longa  foi  o  Livro  IV,  mesmo  assim  bastante  temperado  pelo  uso  da  doutrina  e  das  consolidações  privadas  de  leis  civis,  que  durante  o  século  XIX  antecedem  o  Código  Civil,  muito  especialmente  a  Consolidação  das  Leis  Civis  de  Teixeira  de  Freitas  (1858).   Mesmo   assim,  como  lembra  Ascarelli,  as  Ordenações  e  sua  respectiva  prática  forense  impuseram  aos  brasileiros  uma  enorme   tradição  jurídica,  cuja  pesada  herança  ainda  pode  ser  vista  54

debaixo da camada mais recente de cultura legal.     Vale  ainda  ressaltar  que  as  relações  entre  Igreja  Católica e Estado foram estreitas no Brasil  tanto  na  colônia  quanto  no  Império,  pois,  além  de  garantir  a  disciplina  social  dentro   de  certos  limites,  a  igreja  também  executava  tarefas  administrativas  que  hoje  são  atribuições  do  Estado,  como  o  registro  de  nascimentos, mortes e casamentos. Contribuiu ainda a Igreja  com  a  manutenção  de  hospitais,  principalmente  as  Santas  Casas.  Em  contrapartida,  o  Estado  nomeava  bispos  e párocos, além de conceder licenças  à construção de novas igrejas.  Somente  com a proclamação da República em 1889, houve a separação formal entre Estado  e  Igreja  Católica,  mas  sua  presença  continuou  ainda  viva,  como   comprova  a  existência  de  várias festas e feriados nacionais.  5.3 As Contribuições ao Direito brasileiro contemporâneo  A  contribuição  e  influência  do  direito  canônico,  foram  muito  além  da  transmissão  para  o  nosso  sistema  jurídico,  de  normas,  costumes  e  filosofia,  incluindo  também,  aspectos  funcionais  e  organizacionais para o sistema. A própria questão da hierarquia e interpretação  das normas já eram previstas no Direito Canônico. Assim conforme Lima Lopes,   O Decreto,  obra  fundamental  do  Direito  Canônico  clássico,  de Graciano,  monge  camaldulense   mestre  em  teologia  em   Bolonha,  empregou  o  método  escolástico,  compondo  a  pluralidade  de cânones discordantes:  "Em caso  de contradição, seria  54

LIMA LOPES, J.R. ​ O Direito na História​ : Lições introdutórias. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. p.273.

preciso fazer uma distinção.  Assim  fazendo, foi capaz de organizar, hierarquizar e  expressar  os  princípios  pelos  quais  se  eliminavam  as  antinomias  dos  cânones.  Fazia  a  concordância  usando  quatro critérios: a) ratione significationis;  b) ratione  temporis;  c) ratione loci; d) ratione dispensiationis. O primeiro  critério impunha a  distinção  dos  sentidos  possíveis  das  normas,   eliminando  contradições  pela  investigação  filológica.  Os  outros  três  critérios  distinguiam  as  normas  pelo  seu  tempo  de  vigência,  entendendo  que  a  lei  posterior  revogaria  a  anterior  (Lex  posterior),  pelo  seu  espaço  de  vigência,  entendendo  que  a  Lei   local  particular  revogaria  a  lei  geral,  pela sua  matéria,  entendendo  que a Lei especial revogaria a  lei  geral.  Mas  tudo  isto  fazia­se  num  contexto  dialético  e  aplicativo.  Essa  racionalização  não  era  abstrata,  senão   feita  em  cada  caso.  E  tais critérios  foram  sendo  universalizados  e  entraram  a  fazer  parte  da  tradição  jurídica  ocidental   55 quase que com a mesma formulação dada por Graciano."​    

  Estes  princípios  do  direito  canônico,  com  algumas  inovações  e  ajustes,  são  contemplados  em  nosso  processo  jurídico  e  legislativo,   onde  a  hierarquia  das  normas  obedecem aspectos  semelhantes.  Claro  está,  que  não  fosse  estar  previsto  a  séculos,  de  toda  maneira  seria  desenvolvido  nos  tempos  modernos,  o  que  não  afasta  o  conceito  de  "influência",  pois  de  qualquer  forma,  o  legislador  de  nossos  dias  vislumbrou  uma  evolução  histórica  a  partir  do  Direito Canônico.  Por  ser  um  direito  organizado  sob  os  princípios  religiosos  do  catolicismo,  o  Direito  Canônico  não  pode  ser  considerado  um  direito  inferior  ou  sem  importância  na  história  do  Direito.  Somente  pelo  que  já   foi  exposto,  já  teria  sido  uma  importante  contribuição,  no  entanto, esta relevância é maior, como veremos adiante.  A  influência  do  Direito  Canônico  nos  processos  jurídicos,  de  modo  geral,  se  deu  pela  sua  evolução  e  pela   formação  de  todo  um  sistema  de  operadores  jurídicos,  profissionalizando­os e uniformizando sua atuação. Segundo discutido por Lima Lopes,   O  processo  canônico  legou­nos  algumas  características  especiais.  Em  primeiro  lugar  1)  é  um  processo  conduzido  por profissionais em direito; em  segundo lugar  2)  reconhecia  um  sistema  de  recursos  que  permitia  a  uniformização,  a  concentração  e  a  centralização do poder; em terceiro lugar 3) finalmente; impôs  a  escrita  sobre  a   oralidade,  constituiu  o sistema cartorial."  No  que  diz respeito  ao  processo civil  primeiramente,  o  processo canônico  introduziu  o escrito. Com ele,  destaca­se  em  importância  a  figura  dos  notários.  Além  do  juiz,  é  preciso  contar  com  este redator  oficial  de  formulas  e  atos  judiciais,  termos  que  são  reduzidos a  56 escrito como memória (termos, autos) do processo.   

55 56

Ibidem. p.94. Ibidem. p.100

Deste  direito,  provém  também  regras  e normas para o Direito Comercial ou Empresarial da  contemporaneidade, regras sobre processo penal, sucessões, família, além de matérias sobre  ilícitos públicos. Segundo ainda Lima Lopes,   Os  juramentos  julgavam­se  pelo  direito  canônico,  e  vem  daí  uma  parte  da  disciplina  de  contratos  e  dívidas.  Finalmente,  toda  matéria  de  pecados públicos  que  podia  incluir simonia,  usura,  adultério,  heresia...  Desta  jurisdição construída  pela  Igreja  nos  séculos  XII   a  XIV  especialmente procederam  regras  de família,  57 sucessões, contratos, processo penal, etc.   

Com  fundamento  na  premissa   de  que,  os  direitos  não  pertencem  à  totalidade  de  seus   fiéis,  mas  sim  a  Deus,  os  canonistas  começaram  a  criar  um  conceito  técnico­jurídico  de  pessoa  jurídica.  Partem  da  aceitação  da  capacidade  jurídica da universitas, separada da capacidade  jurídica  dos  seus  membros.  Passa­se  a   sustentar  que  os  titulares  dos  direitos  eclesiásticos  não  são  os  membros  da  comunidade   religiosa,  mas  Deus,  na  figura  de  seu  representante  terrestre.  Aparece  assim,  a  distinção  entre  o  conceito  jurídico  de  pessoa  e  conceito  real  de  pessoa  como  ser  humano.  Esse rompimento da identificação entre a corporação eclesiástica  e  a  pessoa  como  ser  humano  dá  origem  ao  conceito  de  pessoa  jurídica  que,  por  ficção  jurídica,  passa  a  ter   capacidade  jurídica.  Pode­se  concluir   que  os  canonistas  foram  os  primeiros a distinguir a corporação e seus membros, bem como a responsabilidade deles.  Além  das  dissertações  e  afirmações  relativas  a  temas  em  geral,  encontram  artigos  correlatos  em  nossos  códigos  atuais  e   no   código  canônico.  Eis  que,  sobre  o  conceito  e  aplicação da faculdade da autodefesa, no Art. 25 do Código Penal, segundo Toledo,   Entende­se  em  legítima  defesa  quem,  usando  moderadamente  dos   meios  necessários, repele  injusta agressão, atual ou  iminente,  a direito seu ou de outrem"  E  no  art.  23,   II, inclui  a  legitima defesa entre  as  causas  de  justificação,  ou  seja,  entre as excludentes da ilicitude. O Código Civil igualmente contempla  a legitima  defesa,  como  causa  de  exclusão  de ilicitude, no art. 160, I, instituindo uma forma  especial  de  autodefesa  da posse, no art. 502, abrangente  até de atos posteriores  ao  58 esbulho.   

 

57

Ibidem. p.101

58

TOLEDO, Francisco de Assis. ​ Princípios Básicos de Direito Penal​ . 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p.193.

No  Livro  V  das  Ordenações   do   Reino,  especificamente  no  Título  XXXV,  existe  a   previsão  da  excludente  da  ilicitude,  no  caso  do  homicídio:  "Qualquer  pessoa,  que  matar  outra,  ou  mandar  matar,  morra  por  ello  morte  natural.  Porém  se  a  morte  for  em  sua  necessária  defensa,  não  haverá  pena  alguma,  salva   se  nella  excedeo  a  temperança,  que  deverá, o poderá ter, porque então será punido segundo a qualidade do excesso"  Dessa  forma,  a   legislação  brasileira  é  uma  evolução  histórica,   daquilo  que já estava  previsto no Código Canônico, conforme discutido ainda por Toledo,   Assim  também  a  admitia,  quando exercida  nos limites da necessidade e  dentro  de  certa  proporcionalidade  (cum  moderamine  inculpatae tutelae),  segundo  as  fontes  romanisticas  e  bíblicas  em  que  se  inspirava.  E ainda  a admite, desde que mantida   a  devida  moderação  (debitum  servans  moderamen).  Esses  princípios,  desenvolvidos  através  dos   séculos  deram  os  contornos  definitivos  de  um  dos  institutos mais bem elaborados da ciência penal.  Antigo  cânon  2.205  parág.  4,  atual  1.323,  5º,  do  Codex  Júris  Canonici.  É  conhecido  o princípio  adotado pela teologia moral: vim vi repellere licet, sed cum  moderamine  inculpatae  tutelae  (permite­se  repelir  a  força pela  força,  mas  com  a  59 moderação de uma justa defesa).  

Também  no  Direito  de  Família,  o  Direito  Canônico  se  fez  influenciar  diretamente.  Em  Portugal,  o  alvará  de  12­09­1564  publicou  e  mandou  observar  as  disposições  do  Sagrado  Concílio  Tridentino  em  todos  os domínios da Monarquia Portuguesa..., por conseguinte, no  Brasil.  Este alvará, de autoria do Cardeal D. Henrique, regente português, foi ratificado por  D. Sebastião, em 1569.  E  assim  era  feito  no  Brasil,  que  era  colônia  de  Portugal, e, em razão desta  colonização,  possuía a densa maioria da população fiel ao catolicismo.  Com  a  Lei  n.  1.144,  de  11.09.1861,  cujo  projeto   era  do  Ministro  da  Justiça,  Diogo  de  Vasconcelos,  houve  a  permissão  para  o  casamento  de  pessoas  não  católicas.  O  enlace  deveria  ser  celebrado,  por  óbvio,  segundo  o  ritual  religioso  professado  pelos  nubentes.  A  regulamentação  do  casamento  civil  pelo  Decreto  181,  de   24.01.1890,   de  autoria  de  Rui  Barbosa,  ficou  abolida  a   jurisdição  eclesiástica,  sendo  o  único  casamento  válido  o  realizado,  por  autoridades  civis.  Embora,  mantendo  a  indissolubilidade  do  vínculo  e  a 

59

Ibidem. p.95.

utilização  da  técnica  canônica  dos  impedimentos  matrimoniais,  instituindo  nulidades  aos  que  violam  os  impedimentos  dirimentes  instituindo  anulabilidades  para  os  que  violam  os  impedimentos impedientes.   5.4.Considerações Finais  Está  demonstrado,  que  normas  canônicas  compuseram  as  Ordenações, que eram as normas  jurídicas  em  Portugal  à época prévia do descobrimento do Brasil. E que, com a colonização  portuguesa,  estas  se tornaram o primeiro estatuto jurídico a vigorar por aqui, permanecendo  vigentes  em  vários  de  seus  aspectos  até  a  promulgação  do  primeiro  Código  Civil,  o  que  ocorreu  somente  em  1917  em  pleno  século  XX.  Daí  em  diante,  apesar  da   substituição  completa  do  arcabouço  jurídico  nacional,  a  influência  do  direito  canônico  deve  ser  percebido  de  uma  maneira  cultural,  a  tal  ponto,  que  ainda  inspira  a  sociedade  e  seus  legisladores.   6.  O  SISTEMA  ROMANO­GERMÂNICO  E  O  DIREITO  CANÔNICO  E  AS  INFLUÊNCIAS  DESTE  NO  CASAMENTO  E  NO  CÓDIGO  CIVIL  BRASILEIRO  DE 1916  A  história  do  direito tem como objetivo compreender o direito atual, estudando como ele se  formou  e  desenvolveu  e,  também,  de  que  modo  evoluiu  no  decorrer  dos  séculos.  O direito  da  ​ civil  law  teve  sua  base  fundada  em  três grandes sistemas jurídicos: o Direito Romano, o  Direito  Germânico  e   o   Direito  Canônico.  Como  afirma  Gilissen:  “A  generalidade  dos   direitos  dos  países  europeus  faz  parte  da  família  dos  direitos  ditos  romanistas,  ou seja, dos  60

sistemas  jurídicos  influenciados  pelo  direito  romano  da  antiguidade.”   Ainda  segundo  Gilissen,   A  evolução  do  direito  na  Europa  Ocidental  dos  séculos  V  ao  XII  é  assim  denominada:  pela  sobrevivência,  depois  pelo  desaparecimento  progressivo  do  direito  romano;  pelo  progresso  do  direito dos povos germânicos, em  contato com  as  populações  romanizadas;  pela  atividade  legislativa  dos  reis  e  imperadores,  sobretudo  dos  Carolíngios;  enfim,  pelo  desmembramento  do  poder  no  quadro de  instituições  feudais.   É  necessário  acrescentar  aqui  o direito  canônico –  o  direito  61 da Igreja – cujo papel é cada vez mais considerável entre os séculos IV e XII.   

60 61

GILISSEN, John. ​ Introdução Histórica ao Direito.​ Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. p.13. Ibidem, p. 167.

Lima,  em  sua  obra,  diz  que  o  princípios  e  regras  dos  antigos  direitos  romano  e  canônico,  associados aos costumes dos povos germânicos,  formaram um conjunto de normas jurídicas  62

que influenciou os ordenamentos dos países ligados às nações europeias.    A  formação  do  sistema  romano­germânico  de direito está atrelada ao renascimento cultural  que  ocorreu  nos século XII e XIII na Europa ocidental, preparando um caminho amplo para  a  retomada  de  valores  da  antiguidade  clássica.  O  ressurgimento  das  cidades  e do comércio  permitiu  que  a  sociedade  constatasse  novamente  a  importância  do  direito.  O   ideal  de  uma  sociedade  cristã  fundada  na  caridade  foi abandonado e a própria Igreja passou a diferenciar  a  sociedade  religiosa  da  sociedade  laica, elaborando seu direito privado canônico. O direito  romano  era  o  objeto  de   grande  admiração  do  momento,  e  foi  com   base  nele  que  a  Igreja  edificou  o  direito  canônico.  Os  direitos  romano  e  canônico  tornaram­se  o  modelo  de  sistema jurídico a ser utilizado na época.   63

O antigo direito romano, como todo direito arcaico, é essencialmente consuetudinário,  não  tendo  desaparecido  com  a  queda  do  Império  Romano  do  Ocidente,  no  século  V.  Sobreviveu,  no  Ocidente,  nas  monarquias germânicas, após as invasões, devido à aplicação  do  princípio  da  personalidade  do  direito,  que  permite  ao  povo  vencido  a  continuidade  de  viver  sobre  o  seu  próprio  direito.  O  direito  romano  continuou  a  evoluir  “[...]  sobretudo  no  contato com as populações germânicas. Um direito romano ‘vulgar ‘  no  qual dominavam os  costumes  locais  próprios  de  cada  região,  suplanta  assim  progressivamente  os  textos  da  64

época clássica”. ​   Sobre o direito germânico, Gilissen diz,   O  sistema  jurídico  dos   povos  germânicos  que  viviam  a  leste  do  Reno  e  a  norte  dos   Alpes  na  época  romana  era  ainda  um  direito  tribal  arcaico  e  pouco  desenvolvido.  Alguns  destes  povos  invadiram  a  parte  ocidental  do  Império  Romano,  sobretudo  no  séc.  V. [...]  O  seu direito continua a  evoluir, sobretudo no   contato  com  populações  romanizadas  da  Europa   ocidental.  A  partir  da  época  carolíngia,  a   fusão  dos  dois  sistemas  jurídicos  –  o  romano  e  o   germânico  –  realizou­se  aí,  mas  num   quadro   político  e  social  novo,  que   dá  origem  a  um  65 sistema jurídico de tipo feudal (sécs. X a XII).  

LIMA, Tiago Asfor Rocha. ​ Precedentes judiciais civis no Brasil. ​ São Paulo: Saraiva, 2013. p. 79-82. GILISSEN, 1979, p. 85. 64 Ibidem, p. 169. 65 Ibidem, p. 17. 62 63

Não  havia  ​ um  ​ direito  germânico,  mas  sim  uma  variedade  de  costumes  dos  povos  germânicos.  Por  não  terem   deixado  documentos  escritos,  era  muito  difícil  definir  o  que  eram  regras  jurídicas  de  origem  germânica,  sendo,  muitas  vezes  assim  classificadas,  na  Baixa  Idade  Média,  pelo  simples  fato  de  não  aparentarem ser de origem romana. A melhor  documentação  existente  para  o  estudo  do  antigo  direito  germânico  são  as   ​ leges  barbarorum,  ​ que  constituem  costumes  dos  povos  germanos  redigidos,  do  século  VI ao IX,  após  as  invasões.  No  entanto,  todas  sofreram certa influência do direito romano, refletindo,  por  isso,  muito  mais  o  direito  da  época  de  sua  redação  do  que  o  da  época  anterior  às  invasões.  Tentando  conservar  alguma  do  direito  romano,  devido  a  presença  de  populações  romanizadas  em  seus  territórios,  os  reinos  bárbaros  editaram  um  “direito  romano  barbarizado   ou   vulgar”,  o  qual  desempenhava  um  papel  político  importante,   “pois  podia  66

significar uma garantia de legitimidade política e de aceitação”.   Gilissen, em sua obra, discorre sobre o desenvolvimento do direito canônico:   No  Império  Romano,  uma  religião  nova,  pregada  por  Cristo  e  pelos  seus  discípulos  no  século  I,  impôs­se  no  século  IV;  o  Império  torna­se  cristão.  Um  sistema  jurídico  próprio  da  comunidade  dos  cristãos,  o  direito  canônico,  desenvolve­se  à  margem  do  direito  romano,  sem  o  absorver;  instala­se  um  sistema  dualista  –  direito  laico  e direito religioso – que vai se manter até o século  67 XX.   

O  direito  canônico  é  o direito da Igreja católica, sendo sua principal fonte  a vontade divina,  tal  como  está  revelada  nos  livros  sagrados,  principalmente  na  Sagrada  Escritura.  “Este  direito  divino  é  completado  por  atos   de  caráter  legislativo  que  emanam  das  autoridades  68

constituídas  da  Igreja  católica  (concílios  e  papas)  e  pelo  costume”.   O  direito  romano  representou  o  papel  de  fonte  supletiva  ao  direito  da  Igreja;  esta  o  aplica na medida em que  ele  não  é  contrário  ao  ​ ius  divinum  e aos decretos e decretais. “O direito canônico recebe  do   direito  romano  uma  grande  parte  de  sua  teoria  das  obrigações e os  elementos essenciais do  seu  processo  civil.  Sua  influência  sobre  o  direito  laico  no  ocidente  europeu  é  considerável  devido a inúmeras razões:  

LOPES, José Reinaldo de Lima. ​ O Direito na História: Lições Introdutórias.​ São Paulo: Max Limonad, 2000, p.69. 67 GILISSEN, 1979, p.127. 68 Ibidem, p.142. 66

O  universalismo  cristão  da   Idade  Média;  o   mundo   medieval  no Ocidente  é  um  mundo cristão; o caráter escrito do direito canônico; este é,  na Europa ocidental, o  único direito  escrito entre  o fim do séc. IX e o séc. XIII; a atribuição aos tribunais  eclesiásticos da competência  exclusiva em numerosos domínios  da área do direito  69 privado, tais como o casamento e o divórcio.  

Por  ser  durante  a  maior  parte  da  Idade  Média  o  único  direito  escrito,  o  direito  canônico  “constituiu  objeto  de  trabalhos  doutrinais,  muito  mais   cedo  que  o  direito  laico [...] exerceu  70

uma  profunda  influência  na  formulação  e  desenvolvimento  deste   direito  laico”.   A  importância  do  direito  canônico  sobre  os  direitos  da  Europa  ocidental  pode  ser   explicada,  em  parte,  pela  competência  dos  tribunais  eclesiásticos,  não  apenas em relação ao membros  do  clero,  mas  também,  durante  a  Idade  Média, em relação  aos leigos. As jurisdições laicas,  no  apogeu  da  competência  das  jurisdições  eclesiásticas  (séculos  X  a  XIV),  estavam  em  plena  decadência,  devido ao enfraquecimento do poder real pelo feudalismo, conhecendo, a  Igreja,  um  amplo domínio de poder jurisdicional, mesmo em relação ao leigos. A jurisdição   dava  a  função  de  governar  segundo  leis.  “É  no  campo  da  jurisdição  e  do  processo  que  a  71

influência do direito canônico torna­se determinante”.    Lopes afirma que:   O  Direito  Canônico  tem  uma  importância  enorme  na  história  do  direito tanto  na  esfera  das   instituições,  quanto  na  da  cultura  jurídica.  Na esfera  das  instituições,  especialmente  no  processo  e  no  conceito  de  jurisdição.  É  dele  que  parte   a  reorganização  completa   da  vida  jurídica  europeia,  e  as  cortes,  tribunais,  jurisdições  leigas,  civis,  seculares,  principescas,  serão  mais  cedo   ou  mais  tarde  influenciadas  pelo  direito  canônico.  [...]  Na esfera da cultura, serão os canonistas  a  formular   critérios  de  racionalização  e  formalização  do   direito.  [...]   Se  a  tudo  isso  somarmos   a  influência  que  a  vida  da  Igreja  tem  no  Ocidente  medieval,  vemos  que  o direito canônico como disciplina da vida, dissemina­se capilarmente   72 na sociedade.  

Uma  corrente   importante  do  pensamento  político  jurídico  e  canônico  foi   o   conciliarismo,  que  insistia  na predominância dos concílios sobre as decisões do papa. “O desenvolvimento  do  direito  canônico   ligou­se  ao  surgimento  de  uma  ​ classe  ​ nova:  aqueles  que  na  Igreja  viriam  a  dominar  pelo  seu  particular  saber  de  cânones  [...]  Com  seu  saber  especializado, 

69

Ibidem, p.17. Ibidem, p. 135. 71 LOPES, 2000, p.99. 72 Ibidem, p.83-84. 70

73

serviram  à  nova  autocracia  romana”.   ​ É  no  processo  canônico  que  surge  a  figura  do  advogado:  “o  que  age  sem  ser  cúmplice  ou  sócio. Ele explica o direito após  a apresentação  74

das provas de fato. É um jurisperito”.    Sobre a contribuição canonística para a teoria da pessoa jurídica, Lopes disserta:   No  direito  romano  não  havia  pessoa  jurídica  –  havia  os   colégios  e  as  universalidades,  associações.  Mas a pessoa jurídica era, em parte, dispensável. Se   a  pessoa  jurídica  é  um  esquema  de  separação  de  patrimônio,  representação  e  responsabilidade  para  uma atividade, o papel mais próximo disto é desempenhado   em  Roma  pela  família  (patrimônio  resguardado  como  fundo  único,  representado  pelo  pai  –  ​ pater  famílias  –  responsável   jurídico).  No  direito  feudal,   a  unidade  produtiva  sendo  o  feudo,   o  senhorio,  as   regras  de  responsabilidade  e  de  representação  confundem­se  com  as  regras  feudais  de  vassalagem  e  prestação  feudal  (censos  ou  foros).  A  partir  do   direito  canônico,  os  problemas  de  patrimônio  comum,  representação,  responsabilidade,  tornaram­se  novos.  Serviram  para  uma  primeira  teoria  da  pessoa  jurídica  (corporação)  que  se  desligava  dos  laços  de  família   e  dos  laços  de  vassalagem,  dentro  ainda,  75 certamente, de um universo simbólico medieval.  

Durante  o  século  V  ao  século  IX,  três  concepções  distintas  sobre  o  casamento  vão  se  confrontar  na  Europa  ocidental:  uma  originária  do  direito  romano,  outra  do  direito  germânico  e  uma  do  direito  canônico.  As  concepções  romana  e  germânica,  devido  ao  princípio  da  personalidade  dos  direitos,  conviveram  durante  algum  tempo.  Em  torno  dos  séculos  VIII  e  IX,  fundiram­se  ao  direito  canônico.  Casamento  e  divórcio  foram  regidos  pelo direito da Igreja até o século XVI e, em algumas regiões, até os séculos XVIII e XIX.   O  cristianismo  exerceu   uma  forte  influência  sobre  o  avanço  do  casamento  e  do divórcio, e  tal  influência  ainda  faz­se  presente  no  direito  atual.  Para  a  concepção  cristã  primitiva,  o  casamento  é  baseado  no  amor  que  os  cônjuges  se  devem  mutuamente;  ainda  que  fosse  a  castidade a ideia moral pregada pela Igreja. Segundo Gilissen:   Inicialmente,  a  Igreja  não  se  intromete  nas  formalidades  do  casamento:  admite  todas  as  formas  existentes,  romanas, orientais  ou germânicas. Mas, influenciará a  evolução  dos  direitos  laicos,  esforçando­se  por  fazer  admitir  as  suas  próprias  concepções  do  casamento.  É  assim  que  ela  procura  criar  ligações  duráveis,  estáveis  e  sólidas,  lutar  contra  o  concubinato  e  dar  um  caráter  religioso  às festas  76 de casamento.    

73

Ibidem, p.98. Ibidem, p. 102. 75 Ibidem, p.108-109. 76 GILISSEN, 1979, p.568. 74

O  casamento  canônico,  ao  tornar­se  sacramento,  continua  a  ser  puramente  consensual.  Desde  esta  época,  a  igreja  admite  algumas  restrições  ao  casamento.  Ao  lutar  contra  a  poligamia,  proíbe  a  bigamia;  a  ocorrência  de  um  casamento  anterior  não  desfeito  constitui  uma  proibição  a  um   novo   casamento.  O  incesto  e  o  casamento  entre   parentes  muito  próximos  são  veementemente  combatidos.  Em  relação  ao  divórcio,  desde  o  início  a  igreja  havia  estabelecido  a  indissolubilidade  do  casamento.  “A  concepção  cristã  era,  portanto,  muito  diferente  da  concepção  romana.  Por  isso,  os  primeiros  Imperadores lutaram contra a  77

enorme  liberdade   de  divórcio  admitida  pelo  direito  romano  clássico”.   A  partir do séculos  VIII  e  IX,  a  matéria  do  divórcio  é  quase  exclusivamente  gerenciado  pelo  direito canônico.  A  indissolubilidade  absoluta  do  casamento  é  imposta  pelo  direito  canônico  no  século  IX.  Gilissen diz:   A  igreja  conservou  a  mesma  intransigência  até  aos  nossos  dias:  o  Corpus  iuris  canonici,  de  1917,  proclama  ainda  a  indissolubilidade  como  uma  das  propriedades  essenciais  do  matrimônio;  desde que válido e consumado, não pode  ser   dissolvido  por  nenhum  poder  humano  ou por  nenhuma  causa,  a  não  ser  pela  morte. 

Um  dos  maiores  legados  deixado pelo direito canônico, em relação ao casamento, foram os  impedimentos – dirimentes e proibitivos.   Preocupou­se,  inclusive,  com  as  formalidades  do  casamento,  para  que  se  evitassem  casamentos  clandestinos.  O  Brasil,  durante  três  séculos,  ficou  submetido  às  decisões  do  Concílio  de  Trento  em  relação  ao  casamento;  o  juízo  eclesiástico  era  quem  regulava  as  relações  matrimoniais  de  acordo  com  o  direito  canônico.  Com  o advento da República, em  1989, foi instituído o casamento laico no Brasil.  O ​ Corpus  Iuris  Canonici  influenciou  veementemente o direito de família com o seu caráter  moralizador,  ético,  repugnando  o  que  fosse  desonesto.  A  proibição  do  concubinato,  a  intervenção  de  um  curador  do  vínculo  na  ação  de  nulidade,  o  casamento  putativo  pátrio,  a  manutenção  da  indissolubilidade  do  casamento,  o  rompimento do casamento sem dissolver  o  vínculo  (impossibilidade  de um novo casamento), são matérias presentes no Código Civil  de 1916 advindas do direito canônico.  

77

Ibidem, p.569.

Além  das  questões  relacionadas  ao  casamento  presente  no  Código  Civil  de  1916,  o  direito  canônico  também  influenciou  questões  do  Direito  das  Coisas,  Direito  das  Obrigações  e  Direito das Sucessões. Sobre cada um desses direitos, Tavares discorre:   O  próprio  Direito  das  Coisas,  em   numerosos  preceitos,  abeberou­se  no  Direito  Canônico,  como  sucede  na  distinção  entre  direitos  reais  e  direitos  pessoais,  na  ação  de  reintegração  de  posse  (artigo   499),  na  legitimidade   do  direito  de  propriedade privada e  na  proibição  do  pacto comissório  (artigo 765). [...] sobre a  base  do  direito  canônico  repousam  muitas  relações  jurídicas  de  natureza   patrimonial.  Assim,  não  escapou  também  o  Direito das  Obrigações  à  influência  do  Direito  Canônico,  como  se  percebe claramente  do  instituto  da compensação.  [...]  O  Direito  pátrio,  em  matéria  de  Sucessões,  como  as   demais  legislações  contemporâneas,  conformou­se  ao   sistema   legado  pelo  Direito  Romano,  pelo  antigo  Direito  Germânico  e  pelo  Direito  Canônico.  Assim,  cumpre  ressaltar  a  inegável  influência  do  Direito   Canônico  na  estruturação  da  sucessão  intestada  e  que  se  evidencia  no  direito   de  representação,  pelo  qual   se  opera  a  vocação  indireta da  sucessão  legítima,  quando  o  herdeiro  é convocado a suceder em lugar  78 de outro sucessor, anteriormente pré­morto.  

O  direito  canônico  desempenhou  um  papel  importante  durante  toda  a  Idade  Média,  tendo  sua  influência  diminuída  a  partir  do  século  XVI,  limitando­se  cada  vez  mais  apenas  às  questões  religiosas.  O  direito  dos  Estados  passa  a   ser  laico  a  partir  deste  época.  “O  direito  canônico  continua,  no  entanto,  a  ser  um  dos  fundamentos  históricos  de  todo  o  direito  79

ocidental,  apesar   do   progresso  do  racionalismo e jusnaturalismo nos sécs. XVII e XVIII”.   Mesmo  com  a  laicização  do  direito,  o  direito  canônico  ainda  tem   importância  para  a  formação dos direitos contemporâneos.     Referências bibliográficas  BERMAN, Harold. ​ Law and Revolution​ . Cambridge: Harvard University Press, 1983.  BARROW,  Julia.  ​ Ideology  of  the  Tenth­Century  English  Benedictine  'Reform​ '.  Apud  Skinner,  Patricia.  ​ Challenging  the  Boundaries  of  Medieval  History:  The  Legacy  of  Timothy Reuter​ . Turnhout, Bélgica: Brepols, 2009.  BENSON,  Robert  Robert  Louis;  CONSTABLE,  Giles;  LANHAM,  Carol  Dana,.  Renaissance and Renewal in the Twelfth Century​ . Harvard University Press, 1982.  TAVARES, Osvaldo Hamilton. ​ ​ A Influência do Direito Canônico no Código Civil Brasileiro.​ Justitia, São Paulo, 47(132): 49-56, out/dez. 1985, p.52-55. 78

79

GILISSEN, 1979, p.17.

DAVID,  René.  ​ Os  grandes  sistemas  do  direito  contemporâneo​ .  Trad.  Hermínio  A.  Carvalho. 2. ed. Lisboa: Meridiano, 1972.  GILISSEN,  John​ .  Introdução  histórica  ao  direito,  ​ 2ª  Ed.  Lisboa:  Fundação  Calouste  Gulbenkian, 1995.   GILISSEN,  John.  ​ Introdução  Histórica  ao  Direito.  ​ Lisboa:  Fundação  Calouste  Gulbenkian, 1979.   HASKINS​ ,  ​ Charles  Homers​ .  The  Renaissance  of  the  Twelfth  Century​ .  ​ Cambridge:   Harvard University Press, 1927.  JÚNIOR,  Cláudio  Ricardo  Silva  Lima.  ​ Fundamentos  do  sistema  jurídico  romano­germânico.   acesso em: 20/07 às 16:45.  LIMA,  Tiago  Asfor  Rocha.   ​ Precedentes  judiciais  civis  no  Brasil​ .  São  Paulo:  Saraiva,  2013.  LOBATO,  Ana  Terra  Feitosa.  ​ Direito  Canônico:  uma  análise  histórica  da  institucionalização 

matrimonial. 

 acesso em: 21/07 às 15:35.  LOPES,  José  Reinaldo  de  Lima.  ​ O  Direito   na  História​ :  Lições  Introdutórias.  3ª  Ed.  São  Paulo: Editora Atlas, 2008.  LOPES,  José  Reinaldo  de  Lima.  ​ O  Direito  na História: Lições Introdutórias. ​ São Paulo:  Max Limonad, 2000.   MUSSELI,  Luciano.  ​ Storia  del  diritto  canonico:  introduzione  alla  storia  del  diritto   e  delle istituzioni ecclesiali​ . Torino: Giappichelli, 1992.  SCHOEDINGER,  Andrew  B.  ​ Readings  in  Medieval  Philosophy.  New  York:  Oxford  University Press, 1a ed, 1996. 

TAVARES,  Osvaldo  Hamilton.  ​ A  Influência  do  Direito  Canônico  no  Código  Civil  Brasileiro. 

Justitia, 

São 

Paulo, 

47(132): 

49­56, 

out/dez. 

1985. 

 acesso em: 21/07 às 14:42.  TIGAR,  Michael  E.;  LEVY,  Madeleine  R.  ​ O  direito  e  a  ascensão  do capitalismo​ . Rio de  Janeiro: Zahar, 1978.                   

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.