Direito como integridade e integridade do meio ambiente

June 26, 2017 | Autor: J. Pinheiro Faro ... | Categoria: Ronald Dworkin, Direito Ambiental, Direito Constitucional, Teoria do Direito, Direitos Fundamentais
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Conselho Editorial

Organizadores

Capa

Produção Editora

Agradecimento

Adriano Sant´Ana Pedra Caleb Salomão Daury César Fabriz Eliana Junqueira Munhós Ferreira Ézio Carlos S. Baptista Gilsilene Passon Picoretti Francischetto João Maurício Adeodato

Jovacy Peter Filho Nelson Camatta Moreira Olívia Cerdoura Garjaka Baptista Paulo Ferreira Da Cunha Samuel Meira Brasil Júnior Tárek Moysés Moussalem Willis Santiago Guerra Filho

Organizadores

Paulo Roberto Ulhoa • Julio Pinheiro Faro • Daury César Fabriz Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes • Heleno Florindo da Silva

Paulo Roberto Ulhoa Julio Pinheiro Faro Daury César Fabriz Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes Heleno Florindo da Silva Concepção: Paulo Ulhoa e Maria Helena Fabriz Execução: Link Editoração Foto: Weverson Rocio (RPPN Fazenda Bulcão sede do Instituto Terra em Aimorés - MG) 2012 Revisão: Executada pelos próprios autores Diagramação: Link Editoração Impressão: Grafitusa Editora Cognorama Rua Aleixo Neto, 454 - Sala 503 Praia do Canto - Vitória/ES - CEP 29057-200 Especial à jornalista Maria Helena Fabriz

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Direitos humanos e meio ambiente / Paulo Roberto Ulhoa, Júlio Pinheiro Faro, (coordenadores). Vitória : Cognorama, 2014. Vários autores. 1. Direito ambiental - Brasil 2. Direitos humanos 3. Instituto Terra 4. Meio ambiente Brasil 5. Proteção ambiental - Brasil I. Gomes, Carla Amado. II. Faro, Júlio Pinheiro. III. Ulhoa, Paulo Roberto. 14-06081CDU-34:502.7(81) Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Meio ambiente : Direito ambiental 34:502.7(81)

Direitos

humanos e meio ambiente

obra dedicada ao Instituto Terra

Sumário M

Apresentação Daury Cesar Fabriz_______________________________________________8

M

Nota dos organizadores

9.  Função socioambiental das contratações públicas:

o Estado como ator da sustentabilidade Elizabeth de Mello Rezende Colnago ____________________________________ 185



um caminho rumo ao desenvolvimento Mariana de Siqueira __________________________________________________ 207



o respeito ao direito de se viver em um ambiente saudável Vanessa de Fátima Terrade _____________________________________________ 219



Pública tem o dever legal de garantir Gilmar Alves Batista __________________________________________________ 233



ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes __________________________________________________ 245



por impactos ambientais: o que o Brasil pode aprender a partir da experiência jurisdicional internacional? Orlindo Francisco Borges ______________________________________________ 267



pessoas jurídicas de Direito público e de Direito privado Renata Machado Saraiva _______________________________________________ 291



no Direito ambiental brasileiro Camila Pedroni Ribeiro Cristina Grobério Pazó ________________________________________________ 321

5.  A educação em meio ambiente como um dos pilares para a cidadania



Lívia Gaigher Bósio Campello Carlos Walter Marinho Campos Neto ____________________________________ 341

6.  Educação ambiental como instrumento de posse de direitos e cidadania



e tribunais em matéria ambiental Hermes Zaneti Jr. ____________________________________________________ 361



nas demandas coletivas ambientais: substituição processual Márcia Vitor de Magalhães e Guerra _____________________________________ 391



equilibrado na Constituição Federal de 1988 Fernando Carlos Dilen da Silva Paulo Roberto Ulhôa __________________________________________________ 413



M M M M

Academia Brasileira de Direitos Humanos_________________________11 Prefácio______________________________________________________12 Mensagem dos homenageados___________________________________18 O Instituto Terra_____________________________________________20 Introdução Julio Pinheiro Faro_______________________________________________25

1.  A patrimonialização do meio ambiente e o novo constitucionalismo

latino-americano: a Pachamama e a busca pelo buen vivir Heleno Florindo da Silva _______________________________________________ 31



 rojeto do novo Código Florestal brasileiro: P um estado de exceção permanente destrutivo do meio ambiente Luísa Cortat Simonetti Gonçalves e Daury Cesar Fabriz ______________________ 51

2.

3.  O binômio direito-dever fundamental ao meio ambiente



ecologicamente equilibrado e seu alicerce na solidariedade Ivy de Souza Abreu ____________________________________________________ 65

4.  Direito como integridade e integridade do meio ambiente: o dever



fundamental de proteção do meio ambiente e a proposta interpretativa de Dworkin a partir da jurisprudência do STF e do STJ Ludmila Lais Costa Lacerda e Julio Pinheiro Faro ____________________________ 79



Jackelline Fraga Pessanha Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes _______________________________________ 107



Margareth Santos Schayder ____________________________________________ 123



comunicação: em busca da formação crítico/cidadã discente Wagner Scopel Falcão Ítalo Severo Sans Inglez _______________________________________________ 145

7.  A educação ambiental e as tecnologias da informação e 8.  A teoria da injustiça ambiental como ocultamento da



ocorrência do racismo ambiental na sociedade brasileira Helena Carvalho Coelho Lorena Ferreira Carpes ________________________________________________ 165

10.  Gestão democrática das águas no Brasil: 11.  O controle das áreas contaminadas:

12.  Saneamento básico: direito do cidadão que a Defensoria 13.  Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,

14.  O uso de herbicidas e a violação de direitos humanos

15.  Em defesa da igualdade de responsabilização penal entre 16.  Causas excludentes de nexo causal: aplicabilidade

17.  Tutela do meio ambiente do trabalho nos planos internacional e interno 18.  Ensaio sobre a função de garantia dos juízes

19.  D  efinição do modelo brasileiro de legitimidade ativa ad causam 20.  A  proteção do meio ambiente ecologicamente

4

Direito como Integridade e Integridade do Meio Ambiente: O Dever Fundamental de Proteção do Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj Ludmila Lais Costa Lacerda1 Universidade Federal de Minas Gerais Julio Pinheiro Faro2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Sumário: Introdução. 1 O Direito como Integridade de Ronald Dworkin. 2.

A Interpretação do Stf e do Stj Sobre Integridade

e Meio Ambiente. Conclusão

1) Mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Graduada em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas); Advogada e Consultora Jurídica. Tem experiência e interesse acadêmico pelas áreas de Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, Hermenêutica Jurídica, Direito Público, Direito Constitucional, Teoria da Constituição e Hermenêutica Constitucional. Currículo Completo: http://lattes.cnpq.br/7654938362880630. 2) Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH); Pesquisador vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Direito da FDV (Mestrado/Doutorado) e do Departamento de Direito Público (Mestrado) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Servidor Público Federal. Pesquisa nas áreas de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Teoria Política e Direito Constitucional. http://lattes.cnpq.br/1936096236504255.

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Direito como Integridade e Integridade do Meio Ambiente: O Dever Fundamental de Proteção do Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj

H

Introdução

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O direito ao ambiente adequado foi mundialmente reconhecido pela Declaração do Meio Ambiente, em seu princípio primeiro, adotada na Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em 1972, sendo assegurado ao ser humano o direito fundamental à preservação do ambiente e o direito à vida. No Brasil, diante da importância que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem (art. 225, Constituição brasileira de 1988), ele é considerado pela doutrina majoritária nacional como um direito fundamental, ainda que não esteja presente nos artigos do Título II. Tal pensamento de correlação tem respaldo diante do fato de que com um meio ambiente saudável há melhor qualidade de vida, requisito básico e indispensável para a existência humana digna (concretização do art. 1º, III, da Constituição de 1988). Assim, assegurado meio ambiente ecologicamente equilibrado, também se garante o direito individual à vida e à dignidade humana e são promovidos os demais direitos fundamentais, de modo a possibilitar o entendimento que, assegurar um meio ambiente equilibrado é, também, amparar um direito individual e social. O presente trabalho propõe uma análise da interpretação que o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm sobre a integridade do meio ambiente. A discussão é feita a partir da proposta do Direito como integridade de Ronald M. Dworkin, a qual é apresentada na segunda seção e aplicada na terceira, para encerrar o artigo com considerações finais sobre o tema. Utiliza-se, para isso, uma metodologia dialógico-argumentativa.

1) O Direito como Integridade de Ronald Dworkin A teoria da decisão e argumentação jurídica tem trabalhado com questões de justificação por meio de critérios de legitimidade (justos) e através de critérios de validade (legalistas). No Direito, a diferença entre uma prática lícita e ilícita pode estar tanto pautada sob a perspectiva científica de uma situação ecológica e sustentável, como em um futuro a ser delineado e construído de forma idealizada a partir de condições do presente. A justificativa quanto a uma decisão pode ser focada tanto no prisma da validade das normas criadas, quanto na fundamentação de uma decisão jurídica legítima.

Direitos Humanos e Meio Ambiente

Ludmila Lais Costa Lacerda m Julio Pinheiro Faro

Atualmente, autores como Robert Alexy3 e Ronald Dworkin4 colocam os princípios morais como o fundamento de validade e da legitimidade do direito. Devido à necessidade de uma abordagem teórica constitucional e principiológica quanto aos direitos e garantias ambientais no Brasil pelos tribunais, procuraremos desenvolver, como cerne no presente artigo, os argumentos da teoria de Ronald Dworkin em paralelo com comentários de modo acessório e comparativo a outras teorias e casos concretos. Antes de tudo, é importante diferenciar as perspectivas dos autores ora mencionados, pois Dworkin não trabalha com diferenciação entre regras e princípios conforme estrutura de aplicação ou por características morfológicas. Ele trabalha com uma distinção lógico-argumentativa partindo do caso5 concreto para análise das razões trazidas pelos participantes na discussão para então compreendermos as regras e os princípios. Ademais, Dworkin traz não somente a possibilidade de regras e princípios, mas inclusive, de diretrizes políticas, assim, enquanto um princípio consagra uma exigência de um direito, uma diretriz política traz um objetivo a ser alcançado, o qual geralmente coincide com alguma questão de ordem econômica, política ou social e pode ser considerada desejável em uma comunidade. Nesse sentido, para o mencionado jusfilósofo, diretrizes políticas podem ser aplicadas em graus distintos, mas não os princípios, pois esses últimos possuem o caráter de “trunfo”, sendo aplicados

3) Alexy afirma que “a partir de um estágio mínimo de desenvolvimento, todos os sistemas jurídicos contêm necessariamente princípios. Isso basta como base para a fundamentação de uma conexão necessária entre direito e moral pelo argumento dos princípios”. Ver: ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 90. 4) O positivismo de H. L. A. Hart sustentou que o direito seria um conjunto de regras identificadas por meio de uma única regra de reconhecimento. Afirmou ainda que, esse conjunto de regras válidas esgotaria o conteúdo do direito e, não havendo regra clara que seja identificada pela regra de reconhecimento ao caso concreto, os juízes teriam poder discricionário para decidir. Defendeu igualmente que, os direitos e obrigações poderiam originar-se somente de regras jurídicas as quais seriam validadas pela regra de reconhecimento. Consequentemente, nos casos em que não haja regras jurídicas validadas pela regra de reconhecimento, não se poderia sustentar que uma das partes do litígio teria direito a alguma decisão a seu favor. Para Dworkin o conteúdo do direito não se esgotaria em um conjunto de regras, e nem poderia ser totalmente identificado (delimitado) por uma regra de reconhecimento, pois na legislação e na prática jurídica existiriam, também, “princípios” que possuiriam estrutura e funcionamento distintos das regras e que poderiam ser aplicados pelos juízes aos casos. 5) Em comparativo teórico, podemos afirmar que para Günther, o problema não é a aplicação correta de uma norma, mas da “aplicação da norma correta” (apropriada). Ver: GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy Editora, 2004, p.55. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Direito como Integridade e Integridade do Meio Ambiente: O Dever Fundamental de Proteção do Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj

de modo deontológico e prevalecendo também contra as diretrizes políticas6. Em suas obras, Dworkin não considera adequada uma concepção da democracia ou de princípios políticos justos a partir da mera premissa majoritária7, já que as decisões da maioria podem ser justas ou injustas (mesmo 6) FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito constitucional. 6.ed. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 237.

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7) Nesse sentido, de uma democracia sob concepção do majoritarismo, observar Waldron e o debate do tema “democracia e constitucionalismo”. Segundo ele, o Poder Legislativo tem mais legitimidade que o Poder Judiciário, pois o procedimento legislativo parte de instituições representativas, compostas por membros eleitos diretamente pela população. Segundo Waldron, nos lugares onde a legislação não pode ser invalidada pelo Poder Judiciário, o povo (representado pela maioria legislativa) decide os assuntos de ‘forma definitiva’, na medida em que elege os candidatos que os representarão no Poder Legislativo. Ao se adotar o Judicial Review, o eleitor que vota em candidatos que tendem a representar seus ‘interesses’ não tem segurança alguma de que seu ponto de vista será considerado. Dessa forma, o Judicial Review seria politicamente ilegítimo para Waldron, pois privilegia poucos juízes que sequer foram eleitos diretamente, em detrimento dos votos da maioria e de seus representantes diretos, retirando os cidadãos comuns do processo e da solução final de assuntos sobre direitos, deixando de lado os princípios de representação e igualdade política. Para que uma decisão legislativa tenha sido tirânica em relação a determinada(s) pessoa(s), não basta que essa pessoa faça parte da minoria que decide. Além disso, é preciso que: (i) a decisão tenha realmente sido equivocada, causando implicações negativas para os direitos dos afetados e (ii) a minoria que decide coincida com a minoria afetada pela decisão. Ele ressalva que o processo legislativo só é legítimo se cada votante tiver a garantia de que os demais votantes encaram os direitos dos outros com igual respeito e consideração. Quando essa premissa (pressuposta) não é observada, o Poder Judiciário estaria reforçando a democracia ao determinar a não aplicação da lei (ilegítima ou inválida por não respeitar a participação de todos). Waldron afirma que o compromisso com os direitos dos demais é uma premissa (pressuposto) que ele assume (assim, nos casos em que ela não fosse observada teríamos um “non-core case” e o Judicial Review realmente poderia servir para combater tais anomalias). Porém, a solução judiciária será sempre excepcional e de curto prazo, apta a resolver casos específicos e imediatos. A solução de longo prazo adequada é a revisão legislativa que corrija eventual distorção da lei. Waldron ainda defende que o fato de o processo legislativo poder não ser adequado em algum momento não torna o Judicial Review necessariamente adequado, pois a ausência de premissas desqualifica o Poder Legislativo, mas não faz caírem por terra todos os argumentos contrários ao arranjo judicial (uma vez que os juízes também podem errar ou não observar a declaração de direitos e todas as premissas, ou pressupostos democráticos e participativos traçados). No campo da decisão judicial, ele acaba adotando a “natureza mista do raciocínio moral”, de acordo com a qual os juízes se envolvem em um raciocínio que torna inseparável a parte moral da parte jurídica da sua missão (alguns dirão que o raciocínio moral vai além de muitos aspectos que o raciocínio jurídico). O autor cita o método de equilíbrio reflexivo recomendado por Rawls e outros como uma forma de abordar questões morais entre certos julgamentos e princípios gerais. Certo é que, para Waldron, os juízes nunca deixam o raciocínio moral para trás em nada que fazem, nem mesmo no raciocínio mais técnico e legalista pode fazer com que eles deixem os elementos mais reconhecidamente morais de sua argumentação. Engajar-se em que tipo de raciocínio é também uma das coisas que moralidade requer (ele diz que essa pode ser a forma da denúncia de Dworkin sobre Posner). Conrado Hübner defende que a democracia em Waldron não é meramente procedimental ou formal, pois faz uma reivindicação substantiva pelo direito Direitos Humanos e Meio Ambiente

Ludmila Lais Costa Lacerda m Julio Pinheiro Faro

que excepcionalmente) com as minorias sem que possam ser consideradas como menos democráticas8. Há uma defesa que Dworkin chama de “concepção constitucional da democracia”9, segundo a qual, as decisões tomadas de participação (como um ‘direito dos direitos’), ao que parece, Hübner trata a participação meramente através de via indireta (institucional) com reforço da representação através de mecanismos eleitorais. Ele afirma que em Waldron a regra da maioria não seria um ‘mero’ procedimento da democracia, uma vez que há nela um conteúdo fundamental, ou seja, a regra maioria teria assim, um valor moral. Hübner afirma que as críticas ao Judicial Review não são firmadas somente na regra da maioria (que teria um conteúdo moral fundamental relacionado ao direito de participação através de representantes), mas que tais críticas apontam a revisão judicial apenas como mais um (novo) procedimento de democratização. A partir da colocação de Hübner, talvez seja possível afirmar que, sendo a ‘regra da maioria’ passível de consideração como ‘procedimento democrático de conteúdo moral fundamental’ relacionado ao ‘direito de participação’, nada impede que o Judicial Review também seja considerado como um procedimento de democratização (em âmbito jurisdicional), também de cunho moral e fundamental ao direito de participação (seja através também de representantes na esfera judiciária ou de modo mais direito e efetivo como cidadão – por mecanismos jurídicos e processuais difusos de acesso pelas partes ao poder judiciário), porém, para correção daqueles casos que possam envolver erros no procedimento de regra da maioria (principalmente na esfera legislativa), em que não sejam observados os direitos também fundamentais, inclusive de participação das minorias. Ver: WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999; WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. The Yale Law Journal, v. 115, 2006; WALDRON, Jeremy. Do judges reason morally? In: HUSCROFT, Grant (org). Expounding the Constitution: essays in constitutional theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2008; HÜBNER MENDES, Conrado. Controle de constitucionalidade e democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 8) DWORKIN, Ronald. Is democracy is possible here? Princeton: Princeton University Press, 2006, p. 131. 9) Para Dworkin o objetivo que define democracia tem de ser diferente: que as decisões sejam tomadas por instituições políticas cuja estrutura, composição e modo de operação dediquem a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, a “mesma consideração e o mesmo respeito” (o que nem sempre a premissa majoritária, por si somente, pode garantir). A concepção de Dworkin também engloba o mecanismo e premissa majoritária e a complementa com ressalvas (limitações). Dworkin não opõe objeções ao emprego deste ou daquele procedimento majoritário ou não-majoritário para proteção e promoção da igualdade (igual consideração e respeito). Pode haver então uma interdependência e mútua sustentação (entre a concepção de democracia caracterizada pela regra majoritária e a concepção constitucional de democracia). Há certas condições para exercício das liberdades positivas e da democracia segundo a concepção constitucional. Dworkin divide essas condições em: condições estruturais - a comunidade política não pode ser somente nominal, tem de ter sido estabelecida no decorrer de um processo histórico que tenha produzido fronteiras territoriais suficientemente reconhecidas e estáveis. E condições de relação - determinam como um indivíduo deve ser tratado por uma comunidade política verdadeira para que possa ser um membro moral dessa comunidade. Uma comunidade política não pode fazer de nenhum indivíduo um membro moral se não possibilitar que nas decisões coletivas essa pessoa tenha participação, um interesse (na decisão) e independência em relação a ela. É preciso observação de três elementos: (i) participação - todas as pessoas devem ter a oportunidade de modificar de algum modo as Obra dedicada ao Instituto Terra

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por maioria pelos cidadãos não definem a democracia; o objetivo que define democracia é pautado por decisões coletivas tomadas por instituições políticas, nas quais as estruturas, composições e modos de operação dediquem a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, com a mesma consideração e o mesmo respeito10. As pessoas participam de uma democracia quando governam a si mesmas, porém como parceiras de um empreendimento político coletivo, assim, através de uma visão constitucional, uma comunidade que ignora os interesses de uma minoria é por essa razão, antidemocrática, ainda que possua eleições majoritárias11. A teoria proposta por Ronald Dworkin ainda enfrenta o tema da divergência teórica a partir da análise do exercício da justiça pelos juízes nas decisões judiciais, ou seja, por meio da prática nos tribunais, vez que o direito “é a nos-

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decisões coletivas. / (ii) reciprocidade - o processo político de uma comunidade política verdadeira deve expressar alguma concepção de igualdade de consideração para com o interesse de todos os membros da comunidade, um indivíduo não pode ser um membro a menos que seja tratado pelos outros como tal. Uma sociedade onde a maioria despreza as necessidades e perspectivas de uma minoria, não se mostra somente injusta, mas também ilegítima. / (iii) independência moral - A independência moral deve ser mais controversa do que as duas primeiras. Os membros de uma comunidade política podem encarar uns aos outros como sócios num empreendimento conjunto, como os membros de uma orquestra ou de uma equipe de futebol, todos os quais compartilham muitas coisas, ainda que o empreendimento como um todo seja conduzido (em decisões e circunstâncias) de uma maneira com a qual nem todos concordem completamente sempre. Não há nada nessa ideia constitucional de democracia que ponha em xeque a responsabilidade do indivíduo de decidir por si mesmo que vida viver, dados os recursos e oportunidades que lhe são oferecidos antes e depois das tomadas de decisões coletivas. A comunidade política verdadeira é aquela feita de agentes morais independentes. Não se pode determinar o que os cidadãos devem pensar exatamente a respeito de política ou ética, mas deve propiciar circunstâncias que os permitam chegar a convicções em matéria de ética e política, através da reflexão própria. Ver em: DWORKIN, Ronald. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 10) DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 26. 11) Ver também: DYZENHAUS, David. The Incoherence of Constitutional Positivism. In. HUSCROFT, Grant (org). Expounding the Constitution: essays in constitutional theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Dyzenhaus faz uma interessante crítica à postura de um ‘positivismo político’ e posições ‘neo-benthamistas’ como alega ser a de Waldron, também propõe a ideia sobre uma interação institucional: mais cooperativa e responsável com a decisão em si tomada e amadurecimento dos princípios democráticos em uma sociedade, e menos ‘rude’ com possíveis desdobramentos destrutivos e de usurpação em prol de interesses corporativistas, assim, as instituições podem emanar decisões pautadas em um fortalecimento mútuo da confiança e legitimidade (nas relações entre as próprias instituições e os cidadãos), principalmente em lugares onde ocorre uma progressiva transição para o modelo de democracia liberal e consolidação de interações civis pautadas no ‘igual respeito e igual consideração’. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Ludmila Lais Costa Lacerda m Julio Pinheiro Faro

sa instituição social mais estruturada e reveladora” e se “compreendermos melhor a natureza de nosso argumento jurídico, saberemos melhor que tipo de pessoas somos”12. Dworkin vai além da perspectiva analítica, da divisão entre “ser” e “dever ser” e da busca por cognições descritivas ou críticas normativas do direito a partir de um observador externo com pretensão de uma teoria neutra. No Direito como integridade há um resgate de demonstrações por meio da prática nas decisões judiciais (como produtos da argumentação e interpretação das práticas sociais, da história e do tempo) que revelam impossibilidade da neutralidade de teorias semânticas sobre o direito, visto que tanto estas teorias (concepções do direito) quanto seus autores (“observadores”/participantes) estarão sempre imersos13 em um contexto histórico e portanto limitados, marcados pelo tempo e por pré-compreensões14. 12) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 15. 13) Interessante destacar segundo Lenio Streck: “... o processo de subsunção no Direito reproduz metafisicamente a divisão ser-ente, opondo o ser ao ente... o resultado disso é o predomínio do método, do dispositivo, da tecnização e da especialização, que na sua forma simplificada redundou em uma cultura jurídica estandartizada, na qual o direito não é mais pensado em seu acontecer.” Ver: STRECK, Lenio Luiz. A crise da hermenêutica e a hermenêutica da cise: a necessidade de uma Nova Crítica do Direito (NCD). Em: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição Constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 117-130. 14) Contrário ao império da racionalidade metódica destacada a partir do Aufklärung, Gadamer expõe que a racionalidade não pode ser vista como uma ferramenta mágica em prol da compreensão livre dos “pré-conceitos”, pois compreender algo já é sempre interpretar (fusão de horizontes), vez que a visão é sempre feita a partir dos pré-conceitos do interprete. Reassalta-se que, conforme Gadamer, “preconceitos / pré-conceitos” não são vistos de maneira pejorativa e tampouco como uma limitação à interpretação. A constatação que a compreensão flui mediatizada por conhecimentos prévios demonstra que a compreensão sempre se funda em pré-compreensões. Ao fixar a compreensão em métodos que desconsiderem a tradição e levem à interpretação, despreza-se também o aspecto fundamental humano, que é a sua posição histórica, passando a tratá-lo como ser a-histórico. A condição histórica de todo conhecimento e de qualquer método tido como correto são condição de possibilidade para seu próprio aprimoramento e também de reconhecimento das suas debibilidades. Assim, não é correto analisar um evento histórico ignorando-o no contexto presente e no contexto em que foi escrito. A tensão causada entre um comando de sentido criado e realizado no passado e a necessidade de constantemente aplicá-lo no presente, exige do interprete sempre uma interpretação e reconstrução (coerente) do conteúdo de tal comando em seu momento de criação e momentos de suas aplicações anteriores, para solucionar uma questão de acordo com as exigências do presente... Em sua origem, o fenômeno hermenêutico não é problema do método. A questão não está em submeter às obras a um método de compreensão científico, mas em se compreender a tradição, não se compreende apenas obras, mas também é necessário discernimento e reconhecimento de contingentes verdades: “com a experiência da filosofia, com a experiência da arte, da própria historia. São modos de experiência nos quais se manifesta uma verdade que não pode ser verificada com os meios metodológicos Obra dedicada ao Instituto Terra

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As teorias semânticas do Direito partem do pressuposto que os advogados e os juízes utilizam os mesmos critérios para determinar se uma proposição jurídica é verdadeira ou falsa, ou seja, nas teorias semânticas acredita-se que os envolvidos na prática jurídica estão de acordo a respeito dos fundamentos do Direito. Assim, para os teóricos do positivismo jurídico a verdadeira divergência sobre a natureza do Direito seria uma divergência empírica estabelecida sobre um consenso institucional pré-estabelecido, enquanto, na escola do Direito natural as divergências sobre o fundamento do Direito e validade das preposições jurídicas estariam em questões de critérios morais e não inteiramente factuais. Há também a corrente do realismo jurídico, que permite a previsão de prováveis e possíveis decisões de acordo com variados contextos, assim, o fundamento do Direito e determinação da validade das proposições jurídicas dependem de resultados calculados pelo magistrado, os adeptos dessa corrente afirmam que “o Direito” conforme explicitado pelos juspositivistas e os jusnaturalistas não existe, e o que existem são somente decisões judiciais a serem proferidas considerando probabilidades e cálculos futuros, ou que resulta apenas daquilo que “o juiz tomou em seu café da manhã”15. Em contraponto às perspectivas existentes, a teoria de Dworkin considera como “elemento central a coerência de princípio”, não desprezando “a equanimidade (fairness), justiça (justice) e o devido processo legal16 (procedure due process)” negando, portanto, que “as manifestações do Direito sejam meros relatos factuais voltados para o passado” ou que sejam somente “programas instrumentais voltados para o futuro”. Para a teoria do direito como integridade “as afirmações jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretativas voltadas tanto para o passado quanto para o futuro”17. O direito que apresenta integridade sinaliza e norteia a aplicação dos princípios em face de cada caso concreda ciência”. Ver: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997, p. 29-30. 15) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 45. 16) Uma observação: Para Marcelo Cattoni a tarefa geral da jurisdição (constitucional) no marco do paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, “é a garantia das condições processuais para o exercício da autonomia pública e da autonomia privada dos co-associados jurídicos, no sentido da equiprimordialidade e da interrelação entre elas.” Para Cattoni deve ser garantida a participação dos possíveis afetados por cada decisão na matéria, através de uma interpretação construtiva que compreenda o próprio processo como garantia das condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos. Ver: CATTONI, Marcelo. Devido processo legislativo. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 166. 17) FERNANDES, Bernardo Gonçalves; PEDRON, Flávio Quinaud. Poder Judiciário e(m) crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 209. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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to, que é considerado como evento único e irrepetível18. Dworkin se contrapõe a tais perspectivas e apresenta casos19 demonstrando que, na prática, há, verdadeiramente, uma divergência teórica quanto aos fundamentos do Direito. O autor menciona, inclusive, o caso “Snail Darter”20, que versou sobre uma lei promulgada pelo Congresso dos Estados Unidos da América em 1973, conhecida como “Lei das Espécies Ameaçadas”, que autorizava ao ministro do Interior designar as espécies que, em sua opinião, estariam próximas da extinção. Um grupo de preservacionistas do Tennessee vinha se opondo ao projeto de construção de uma barragem da Administração do Vale do Tennessee porque o projeto estava alterando a geografia da região, para produzir um aumen18) Menelick de Carvalho Netto aduz que há um grande desafio, posto hoje em relação aos direitos fundamentais, como sendo: a descoberta que o Direito moderno não regula nem a si mesmo. Nas palavras do professor: “O direito moderno só se dá a conhecer por meios de textos e textos, que por definição são manipuláveis. Kelsen já buscara trabalhar o caráter indeterminado do Direito moderno a partir de uma concepção positivista de ciência. Dworkin, ao contrário, buscará responder a esse desafio, no contexto do atual conceito de ciência, optando pelo enfoque da hermenêutica filosófica. Se são possíveis várias leituras de um mesmo texto, para ela, a saída se encontra na concretude e na singularidade dos eventos sociais que o Direito regula. A situação vivencial concreta levada ao Judiciário é única, irrepetível, por definição. No campo social, os eventos não se repetem em grau definitivo, porque se o fizerem já não são os mesmos, uma vez que nós que os vivenciamos somos pessoas diferentes do que antes fôramos, já que aprendemos vivencialmente com eles. Somos pessoas mais vivenciadas, mais vividas, mais experientes e as nossas expectativas em relação a eles são distintas. É nesse sentido que Ronald Dworkin pôde afirmar que há uma única decisão correta para cada caso, não é em termos de que só seja possível uma única leitura de um texto legal. Dworkin tem uma formação extremamente sofisticada, é um crítico literário, sabe não somente que um texto admite várias leituras, mas que o horizonte de possibilidade das leituras se altera com as mudanças sociais verificadas ao longo do tempo”. E ainda: “não há saída fora de nós mesmos, nossa situação é hermenêutica, vemos a nós mesmos em tudo. E se o nós que construímos for um nós pobre, um nós excludente e excluído, um nós de um país periférico, é claro que a identidade constitucional será apenas um ícone para os poderosos reproduzirem a sua privatização do espaço público, como, aliás, necessariamente se veem obrigadas a fazer as ditaduras.” Ver: CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. Em: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 159-161. 19) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 20-38. 20) Ainda hoje, trinta anos após batalhas jurídicas para salvar uma espécie ameaçada, o pequeno peixe que bloqueou a conclusão de uma barragem ainda é invocado em vários escritos. No livro “The Snail Darter and the Dam” o advogado Zygmunt J. B. Plater narra o caso no qual participou juntamente com seus alunos, vencendo diante da Suprema Corte Norte Americana. Ele oferece um relato detalhado de seis anos contra um projeto que, segundo ele, “não fazia sentido econômico e era falho desde o início”. Ver: PLATER, Zygmunt Jan Broël. The Snail Darter and the Dam. New Haven: Yale University Press, 2013. Obra dedicada ao Instituto Terra

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to desnecessário de energia hidrelétrica. Esse grupo descobriu que uma barragem quase concluída, que custara mais de cem milhões de dólares, ameaçava destruir o único hábitat do snail darter, um peixe de 7,5 cm. Assim, convenceu o ministro a apontá-lo como uma espécie ameaçada de extinção e a impedir a conclusão da barragem. A Administração do Vale argumentou que a lei não podia ser interpretada de modo a impedir a conclusão ou operação de qualquer projeto já em fase avançada de construção. Demonstrou, ainda, várias leis do Congresso que sugeriam seu interesse na conclusão da barragem, inclusive a autorização da dotação de recursos para o projeto. No entanto, a Suprema Corte determinou a interrupção da obra. O presidente Warren Burger, cujo voto foi seguido pela maioria dos juízes, afirmou que quando o texto é claro, a corte não tem o direito de recusar-se a aplicá-lo apenas por acreditar que seus resultados serão tolos. Entendeu que, sendo claro o significado das palavras do texto, então o tribunal deve atribuir esse significado àquele termo, a menos que se pudesse mostrar que o legislador pretendia, na verdade, um resultado diverso. No caso, porém, considerou o juiz que o histórico do processo legislativo que leva à promulgação da Lei das Espécies Ameaçadas não autorizava tal conclusão, pois estava claro que o Congresso queria dar às espécies ameaçadas de extinção alto grau de proteção, mesmo em detrimento de outros objetivos sociais. O juiz Lewis Powell, vencido, entendeu que a Corte deveria adotar uma interpretação eficaz, compatível com o bom senso e o bem -estar público. Para ele, os tribunais só deveriam aceitar um resultado absurdo se encontrassem uma prova inequívoca de que fosse isso o pretendido. Neste caso, os juízes admitiram que a Corte deveria seguir a lei, mas discordaram sobre o sentido dela, sobre o modo como os eles deveriam decidir sobre qual norma jurídica resultava de textos promulgados pelo Congresso. Diferentemente do caso que envolveu controvérsias normativas norte-americanas, no histórico do Direito brasileiro, podemos afirmar que há uma tendência a criar legislações rígidas para garantir a preservação do meio ambiente. A Constituição de 1988 é a primeira a tratar de forma direta o meio ambiente, tendo o tema se consubstanciado no art. 225, além do referido dispositivo, ao longo do texto constitucional são feitas diversas referências ao meio ambiente, o que demonstra uma preocupação com a proteção jurídica efetiva mediante diversas garantias e mecanismos processuais, como, por exemplo, a ação popular. No caso brasileiro, a competência do poder público para proteger o meio ambiente e combater abusos é comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, tendo em vista a preocupação com a eficácia e a responsabilidade protetiva de forma conjunta por todos os entes federativos. Em relação Direitos Humanos e Meio Ambiente

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à competência para legislar sobre o tema, ela é concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal, cabendo aos Municípios a competência suplementar nos casos de interesse local. Nos documentos jurídicos nacionais podemos encontrar diretrizes principiológicas que norteiam as práticas cidadãs juntamente com as práticas institucionais dos poderes públicos, como direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado em decorrência do direito à vida (seja como existência física e saúde, seja como aspecto da dignidade da existência humana). Também pode ser observada a dimensão de responsabilidade a partir da solidariedade intergeracional21 (entre gerações), que busca assegurar a solidariedade entre a geração presente e as futuras, para que se possa usufruir, de forma saudável, dos recursos naturais. A partir de 1988 há um compromisso constitucional com a natureza pública da proteção ambiental, que preconiza a primazia do interesse público sobre o particular, além da indisponibilidade do interesse público. Podemos falar também no desenvolvimento sustentável, finitude dos recursos ambientais e ligação dessa realidade com a prática das atividades econômicas. No campo da responsabilização, é possível argumentar sobre a questão do “poluidor pagador” e a do “usuário pagador”, que refletem fundamentos da responsabilidade em matéria ambiental. Em relação à proibição do retrocesso ecológico podemos dizer que possui caráter irretroativo em relação às conquistas quanto à proteção ambiental, e pode ser identificada nos conceitos de proteção deficiente e proteção excessiva. Sobre a “prevenção” e a “precaução”, a primeira relaciona-se com o perigo concreto de um dano inevitável e iminente, fazendo-se necessário adotar medidas urgentes para evitá-lo, já a segunda trata do perigo abstrato potencial, pautado na incerteza científica e na dúvida, devendo haver extrema consideração da necessidade para adoção de qualquer medida, não somente na reparação de qualquer dano (iniciado ou concluído), como para a redução de incidentes. A participação na informação e educação ambiental e na promoção de atividades e audiências públicas pode demonstrar que o cidadão não depende de seus representantes políticos para atuar na gestão do meio ambiente, dotandolhe de capacidade para atuação instantânea na preservação do meio ambiente e na gestão ambiental. A proteção do meio ambiente é tema transversal e ubíquo na sociedade, sendo primordial quando tratamos dos direitos humanos, pois toda atividade pública deve considerar o fundamento de preservação da vida e, principalmen21) Observar novamente a Declaração de Estocolmo e o Princípio terceiro da ECO-92. Obra dedicada ao Instituto Terra

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te, a qualidade para que as pessoas possam viver de modo plural, respeitando autonomia e responsabilidade, conforme cada ‘projeto de uma vida boa’. Sendo assim, a partir de uma verificação (superficial e breve) quanto aos documentos jurídicos, garantias, competências e responsabilidades do poder público em relação ao tema ambiental para a tomada de decisões, inclusive aquelas proferidas por um magistrado diante um caso concreto, questiona-se, como proceder a tal tomada de decisões e como justificar argumentativamente a decisão (principalmente em âmbito judicial). Para decidir conforme o Direito como integridade, Dworkin traça uma concepção sobre interpretação22, podendo ser dividida a etapa interpretativa em três subetapas: etapa pré-interpretativa, etapa interpretativa e etapa pós-interpretativa. A primeira identifica as regras e padrões que fornecem o conteúdo experimental da prática. A segunda estabelece uma justificação dos princípios que se ajustam às práticas em questão, visando garantir que se obtenha uma “interpretação” e não uma “invenção”. Por fim, a terceira reforma a prática para que esta se adapte. O Direito como integridade é uma teoria alternativa, onde as afirmações jurídicas voltam-se tanto para o passado quanto para o futuro e que recusa descoberta de um direito pré-existente (convencionalismo) ou invenção de um direito novo (pragmatismo), pois coloca a prática jurídica melhor compreendida quando se reconhece que as decisões judiciais contêm as duas coisas e nenhuma delas. Para construí-la, Dworkin utiliza de metáforas na tentativa que seu intérprete capture a essência das experiências comunicadas e as aplique em sua prática, a partir de uma substituição analógica. A palavra metáfora tem a mesma raiz de “ânfora”, um recipiente usado para guardar e transportar óleos e condimentos de um lugar para outro23, de modo semelhante, as metáforas dworkinianas parecem conter ideias e ensinamentos valiosos tendo a capacidade de conservá-los e potencial de transmiti-los no decorrer do tempo. Uma das metáforas utilizadas na teoria do Direito como integridade é o “romance em cadeia” (chain novel), onde o juiz em sua atividade, é comparado a um crítico literário que procura interpretar as diversas dimensões de valor em uma obra ou peça teatral. O magistrado faria parte de um grupo de romancistas responsáveis por escrever um romance em série, sendo que cada romancista interpretaria os capítulos anteriores para dar início à escrita de

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um novo capítulo, assim, cada um deveria escrever seu capítulo de modo a contribuir para um todo coerente24. A escolha pelo gênero narrativo em prosa na modalidade romance abdica das formas clássicas e não se liga à subjetividade do lírico, à tragédia do dramático ou à objetividade do épico, dando lugar à escrita da realidade e do hodierno a cada tempo. Diante do jogo entre tradição (passado), novidade (futuro) e imediato (presente), o “romance em cadeia” demonstra a necessidade de encadeamento da narrativa jurídica, onde, considerado o conjunto da obra, cada (novo) capítulo escrito mantém plausibilidade com as partes produzidas por diversos juízes e Cortes, o que pode ser mais facilmente exequível em ordenamentos que exijam a consideração do precedente como parte da argumentação. Assim, uma argumentação jurídica inspirada no “romance em cadeia” não pode negligenciar interpretação dos debates escritos em diversos capítulos por distintos autores na cadeia do romance jurídico e a obra não pode conter capítulos isolados em que juízes desprezem os precedentes, escrevam argumentos restritos (“interpretações” ou “literalidades”/“subsunções”) que considerem apenas o texto das leis como cânones, e/ou recorram exclusivamente a argumentos políticos no momento de elaboração dos textos normativos por seus autores. Essa postura desvinculada comprometeria a segurança jurídica e a visão constitutiva da justiça, já que a busca daquilo que o legislador/autor quis dizer, caso não sejam considerados outros elementos presentes no iter decisório, desnatura as conexões históricas e despreza as contribuições (não subjetivas, mas compartilhadas entre a comunidade) que o intérprete/romancista/ magistrado pode oferecer aos casos. Além disso, ao se valer somente de argumentos políticos pautados na intenção do legislador no momento de ações políticas ou somente em uma política de resultados prospectivos, o juiz estaria a desconsiderar a necessidade de um equilíbrio de opiniões, já que os legisladores divergem entre si; desconsideraria também que, durante a elaboração das leis, os legisladores poderiam decidir a partir de suas próprias opiniões e convicções ou negociações com grupos de interesses particulares (apesar de se esperar que, além dos juízes, os legisladores de uma comunidade ajam com base em princípios e com integridade, o histórico da legislatura é limitado para servir de base exclusiva às pretensões argumentativas na construção da decisão correta, servindo a priori como tentativa de apontar as convicções que justificaram o que os legisladores fizeram).

22) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 81. 23) LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Mercado das Letras, EDUC, 2002. Direitos Humanos e Meio Ambiente

24) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 276. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Salutar mencionar um apontamento feito por Dworkin25: a busca por uma interpretação exclusiva do autor como revelação plena da obra já foi alvo de crítica de Gadamer26. Em uma visão íntegra do Direito, há importância na memória e em seu acesso pelas decisões, o que fica demonstrado diante da exigência de que as novas decisões não somente considerem decisões passadas, mas que contenham também uma recuperação das narrativas construídas pelo encadeamento de decisões pretéritas, realizando argumentativamente, na nova decisão, uma des-re-construção das decisões passadas, (re)interpretando -as criticamente e aperfeiçoando-as à luz, principalmente, das exigências do caso concreto (em questão), das práticas sociais e dos princípios justificados. A partir do resgate da memória é possível que, além de uma formação coerente e encadeada do Direito, haja o desenvolvimento da identidade do(s) próprio(s) sujeito(s) constitucional(is)27. A memória coletiva e a lembrança de acontecimentos exigem, como suporte, os discursos intersubjetivos tecidos na esfera pública e operados com uma construção contínua mediante a (re)interpretação. Também como um dos pilares para a construção da decisão jurídica, além do romance em cadeia, Dworkin lança mão da “comunidade de princípios”. Afinal, as decisões ao longo do romance em cadeia são construídas para (e também por) uma sociedade que aceita a integridade como virtude, transformando-se em um “tipo especial de comunidade”, a qual desenvolve sua autoridade moral para assumir e mobilizar a força coercitiva. A comunidade de princípios segue a ideia de que as pessoas aceitam um governo não somente por regras expressas estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas por quaisquer outros compromissos que possam decorrer dos princípios pres25) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 62-63. 26) Habermas ainda apontou em Gadamer uma visão por demais passiva se a hermenêutica assumisse o fluxo comunicativo como unilateral (autor – interpretes), Habermas justifica que a interpretação pressupõe que também o autor poderia aprender com o intérprete sobre a obra e seus sentidos. Ver: HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 92-93. 27) Para Rosenfeld não faz sentido falar em constitucionalismo sem pluralismo. Em uma comunidade homogênea, com um objetivo coletivo único e sem uma concepção de que o indivíduo tem algum direito legítimo ou interesse distinto daqueles da comunidade como um todo, o constitucionalismo seria supérfluo. O constitucionalismo depende do pluralismo e pode ser visto como outorga de meios para sua institucionalização. A identidade constitucional é propensa a se alterar com o tempo, sendo ora um significado ora outro, conforme a interpretação que se faça da expressão, necessária a reelaboração através de um entrelaçamento entre o passado e o futuro das gerações que se sujeitam a uma determinada Constituição. – Ver em: ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 21-36. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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supostos nas decisões públicas. Assim, politicamente, o conjunto de normas públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à medida que as pessoas da comunidade se tornem mais sofisticadas em perceber e em explorar o que esses princípios exigem a cada nova circunstância28. Para expor a complexa estrutura da interpretação jurídica, Dworkin, inspirado pela história do herói mitológico Hércules (Héracles29 para os gregos), utiliza um juiz imaginário de capacidade e de paciência sobre-humanos, que aceita o Direito como integridade30. Ele representa a figura do magistrado a partir da atividade interpretativa, da comunidade de princípios e do romance em cadeia, e constrói a resposta correta para cada caso. Na esteira do mito, Dworkin descreve (contrafactualmente) o juiz Hércules como um magistrado com capacidade e paciência sobre-humanas, que não se deixa abater pelo tamanho da tarefa e que, por ser persistente e dedicado, não vai abdicar da decisão, ou seja, não passará o problema adiante. Além disso, o juiz Hércules é um dos responsáveis na construção de uma resposta (correta/ adequada) para cada caso, assim como o Héracles da mitologia grega se empenhou para buscar uma solução inteligente e específica para cada trabalho con28) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 229. 29) O conto grego descreve Héracles como um extraordinário mortal (tanto que após sua morte foi convertido em semideus) filho de Zeus e Alcmena (neta de Perseu), foi anunciado como Rei de Micenas antes de seu nascimento. Porém, Hera, a rainha do Olimpo que o odiava, o destronou. Ela manipulou Zeus a fazer um juramento: a primeira criança que nascesse naquele dia assumiria os mandos da Casa Real de Perseu. Hera retardou o parto de Héracles e apressou o de seu primo Euristeu, este nasceu primeiro e assumiu o trono. Desde jovem Héracles já era um guerreiro letal e graças a suas façanhas ganhou a mão de Mégara com quem teve seis filhos. Em mais um ato contra o herói, Hera invocou Atê (deusa da loucura) que lançou a sombra da insanidade sobre Héracles fazendo com que em um surto ele se equivocasse e matasse seus próprios filhos. Abandonado e arrasado pela dor e culpa, Héracles foi ao Oráculo que como expiação ordenou que ele se curvasse a serviço de Euristeu (seu primo e Rei de Micenas, covarde e invejoso que vivia no ócio e luxo) o Rei ordenou à Héracles doze missões mortais e impossíveis de executar à primeira vista (Os Doze Trabalhos de Héracles). Após ser dispensado por Euristeu e se remir cumprindo as 12 tarefas, Héracles desposou Dejanira, que foi raptada por um centauro apaixonado, Héracles venceu o centauro com flechas envenenadas. Antes de morrer o centauro entregou a túnica com seu sangue para Dejanira prometendo que se seu marido colocasse tal vestimenta a amaria para sempre. Assim ocorreu. Um dia desconfiada do fim do amor de Héracles sua esposa lhe enviou a túnica, sendo que, a vestimenta estava embebida de sangue e também de veneno (causador da morte do centauro). Ao usar a veste, Héracles, tomado de dor, acabou por arrancar as próprias carnes e no desespero do sofrimento se lançou sobre feches de lenha implorando que alguém lhe ateasse fogo, o que foi feito por um de seus discípulos. Ver: BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. 34. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 30) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 287. Obra dedicada ao Instituto Terra

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siderado inexequível, dentre os doze que lhe foram ordenados. Em contrapartida ao juiz dotado de tantas qualidades e tão próximo à dedicação e perfeição encontra-se a falibilidade humana, que é admitida e trabalhada por Dworkin quando ele explica o motivo para querer se utilizar ‘Hércules’ e não de outro exemplo extraído da falibilidade judicial: (1) utilizar-se de um exemplo falível seria admitir que por “desventura e com frequência” os juízes tomarão decisões injustas não adiantando que eles se esforçassem para chegar a decisões justas; (2) por serem considerados falhos, poderia entender-se que os juízes não precisam fazer esforço algum para apontar institucionalmente o direito das partes, de modo a decidir os casos com base em razões políticas ou, simplesmente, não os decidir; o que o autor considera como perverso. Assim, ficaria aberta a possibilidade de que os juízes submetessem a outros órgãos as questões de Direito colocadas pelos casos sem resposta aparente ou clara. Se fosse assim, Dworkin questiona a quem submeter tais casos, e, também, se o judiciário poderia se eximir de julgar. A figura do juiz Hércules suscita uma crítica pertinente feita por Habermas31 a Dworkin: a impossibilidade de se conceber o Direito de uma comunidade composta por somente um narrador e a “solidão” de Hércules ao decidir “sozinho” demonstrariam a falta de pressupostos de uma teoria do discurso. Tal crítica se mostra infundada se analisada a teoria de Dworkin em seu conjunto, pois tanto o juiz Hércules quanto os diversos autores do romance em cadeia (inclusive as partes que participam do processo judicial) são membros dessa comunidade, tendo sua visão formada por um mesmo “pano de fundo de silêncio compartilhado”32 que rege as práticas sociais. Assim, retomando uma das metáforas ora retratada (a da comunidade de princípios), percebe-se que o juiz Hércules também faz parte dessa comunidade, e interage e desenvolve suas tarefas a partir dessa realidade. Ademais, não haveria qualquer outro interlocutor que se esmerasse mais que juiz Hércules na construção do Direito como integridade. Os críticos da metáfora de Hércules não percebem que as atribuições dele decorrem de um recorte no trabalho de Dworkin, o qual alerta os leitores que seu projeto é limitado também nesse sentido, pois “concentra-se na decisão judicial, nos juízes togados,

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mas estes não são os únicos protagonistas nem mesmo os mais importantes”33. Dworkin não defende que os juízes devam34 ter (ou não) a “última palavra”35, mas ressalta que, “ainda que os juízes devam ter a última palavra, sua palavra não será melhor por esta razão”36, pois têm o dever de descobrir quais são os direitos das partes, e não inventar novos direitos, e aplicá-los de modo retroativo37. Assim, o juiz real deve suprir sua desvantagem em relação a Hércules recorrendo aos participantes e garantindo o trânsito livre de comunicação na prática jurídica38. Hércules não se considera nem um passivista nem um ativista39: acredita, assim como em outros casos, que sob o regime do Direito como 33) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 16-19. 34) Para Dworkin “a democracia não faz questão de que os juízes tenham a última palavra, mas também não faz questão de que não a tenham”. Ver: DWORKIN, Ronald. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10. 35) Cumpre ressaltar que conforme Hanna Pitkin “ninguém tem a última palavra, pois não há última palavra”. No entanto, é importante observar que essa colocação ocasiona negação da existência de uma ‘última palavra’. Assim, nega o que está em questão ‘à priori’, ou seja, nega inclusive a tensão sobre momentâneas “prevalências institucionais” e existência de autoridade para controle-correção da produção legislativa, assim como controle-correção da produção judiciária. Diante da negativa de existência da “ultima palavra”, nos parece mais adequado que se faça um questionamento inicial do que é ou poderia ser considerado como “última palavra”, sobre qual a sua função e importância para o desenvolvimento democrático. A “última palavra” não se resume a uma decisão definitiva, mas a uma série de decisões institucionais temporais, constantemente (re)construídas e, portanto, modificadas ou modificáveis sob vários aspectos, em relação à vários assuntos e competências institucionais. Uma “última palavra” (inclusive a “última palavra” sobre quem dita “a última palavra”) para as instituições e sistemas perdura pelo tempo que consegue equilibrar satisfatoriamente (e articular através da atividade discursiva) melhores soluções temporais viáveis para os atritos / tensões e discordâncias práticas / teóricas juntamente com a correção demandada e minimização de erros. Os poderes públicos estabelecem relações de diálogos através de desacordos e discussões institucionalizadas. Interessa que esse diálogo não configure mera disputa destrutiva, com questões de vaidade e competição institucional sobre ilusões quanto à “última palavra” e “monopólio” da autoridade, mas sim, que propicie oportunidades e condições para cooperação e coordenação mútua com decisões construídas de forma mais democrática, legítima e institucionalizada, considerando o desenvolvimento (social, político e jurídico) dos cidadãos em suas autonomias, ajustes necessários e historicidade de uma comunidade. 36) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 492. 37) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 127.

31) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 276-277. 32) CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, vol. 3, p. 473. Belo Horizonte: Curso de Pós-Graduação em Direito da UFMG e Mandamentos, maio/1999. Direitos Humanos e Meio Ambiente

38) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 114. 39) Importante frisar que em suas obras sobre uma decisão judicial justificada e adequada constitucionalmente, sendo dotada de legitimidade, Dworkin não defende ativismo judicial. Até mesmo pelos riscos de decisionismo que uma postura assim ocasiona. Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma que “... e a outra face da moeda é o lado do decisionismo e do ‘oba-oba’. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de atraObra dedicada ao Instituto Terra

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integridade, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação para resposta adequada, não uma emenda. Hércules atribui relevância apenas aos argumentos de princípio40 (ratios), já que a tese dos direitos sustenta que tais argumentos correspondem corretamente à responsabilidade do tribunal. De forma resumida, o caminho feito por Hércules para encontrar a resposta correta a um problema jurídico inicialmente é: trabalhar com coerência argumentos e justificações os direitos em conflito; Selecionar as hipóteses principiológicas que possam corresponder à melhor interpretação do histórico das leis e decisões anteriores, caso haja mais de uma hipótese é necessário encontrar uma correta; Encontrar a hipótese correta a partir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios. A partir da coerência é possível encontrar uma resposta satisfatória quando princípios aparentemente conflitam; Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se essa interpretação é coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua comunidade. Mesmo seguindo toda uma construção para decidir o caso, Hércules sabe da possibilidade de encontrar decisões incoerentes. Por isso precisa também de uma teoria sobre os erros.41 96

vés deles, buscarem a justiça – ou que entendem por justiça -, passaram a negligenciar no seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser. Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham a suas preferências e valores aos jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação dos poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança jurídica, porque torna o direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico”. Ver: SARMENTO, Daniel. Ubiquidade Constitucional: Os Dois Lados da Moeda. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2007. 40) Thomas Bustamante leciona sobre a atividade judicial e os limites e deficiências da razão prática, sendo plausível que o juiz aplique decisões com efeitos prospectivos e de modo a afetar qualquer segurança jurídica a partir da justificação e fundamentação em princípios constitucionais, assentando sua decisão em argumentos jurídicos e não exclusivamente pragmáticos nos casos de mutação jurisprudencial prospectiva. Ver: BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial. São Paulo: Noeses, 2012, p. 465. 41) O presente artigo não visa exaurir ou mesmo resumir de modo completo o conteúdo teórico proposto por Dworkin, trata-se apenas de uma abordagem interpretativa e dialógica sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente

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2) A Interpretação do Stf e do Stj Sobre Integridade e Meio Ambiente

Apresentada a teoria de Ronald Dworkin do Direito como integridade, como aquela em que o Direito é construído a partir do diálogo entre intérpretes, como um romance em cadeia, propõe-se, aqui, uma abordagem ousada, inspirada na proposta dworkiniana e na perspectiva dos deveres fundamentais. Realiza-se, assim, uma análise a partir das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiros relacionada com o dever de preservar a integridade do meio ambiente.42 Nesse sentido, é necessário discorrer, mesmo brevemente sobre o tema dos deveres fundamentais. Apesar de o conceito de dever ser, originariamente, um conceito moral, seu uso no âmbito jurídico está consolidado, o que revela uma conexão entre Direito e Moral.43 É muito comum dizer que o Direito é um instrumento que se propõe organizar a vida social. E como ele é essencialmente linguagem, revela-se um texto prescritivo, ou um discurso prescritivo, exprimindo uma diretiva, um modelo de agir ou se comportar.44 O que se extrai desses textos prescritivos, por meio de um procedimento interpretativo multifásico, são as normas, isto é, enunciados prescritivos que se referem àquilo que é normal, a algo que deve ou costuma acontecer, enfim, a uma regra.45 Portanto,

alguns pontos propostos pelo autor para interligação com o tema. Portanto, para uma leitura “à melhor luz” do autor e de suas obras, ler inicialmente: DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 42) Ressalte-se: o próprio dever de preservar o meio ambiente (assegurando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado) se revela relacionado à uma integridade com os demais direitos que possam vir a ser assegurados, pois, a integridade em questão, não se refere somente a uma estrutura ambiental sustentável, mas também à própria lógica ou noção de ter e assegurar quaisquer direitos (inclusive os humanos/individuais). 43) ASIS ROIG, Rafael de. Deberes y obligaciones en la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1991, p. 54-55 e 448. 44) MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 28; SGARBI, Adrian. Introdução à teoria do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 54. 45) KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1986, p. 5; ROBLES, Gregorio. Considerações sobre a teoria da norma jurídica em Kelsen. In: FARO, Julio Pinheiro; BUSSINGUER, Elda Coelho de Azevedo (org.). A diversidade do pensamento de Hans Kelsen. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 92. Obra dedicada ao Instituto Terra

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normas jurídicas são também regras,46 que têm uma estrutura sintático-condicional, dotadas de um antecedente (causa, hipótese, descrição) e de um consequente (efeito, resultado, prescrição): o primeiro descreve uma situação hipotética, o segundo prescreve o efeito esperado com a ocorrência da hipótese. O que esses enunciados normativos significam, e quando utilizados, podem ser vistos a partir da perspectiva do Direito como integridade. Os significados das palavras e expressões contidas nos enunciados normativos dependem daquilo que Dworkin chamou de interpretação construtiva. Podemos aceitar essa proposta e lançar aqui uma concepção interpretativa de “meio ambiente” para auxílio no estudo do tema: o entendimento de que o meio ambiente é o conjunto de agentes físicos, químicos, biológicos e de fatores sociais suscetíveis de exercerem um efeito direto ou indireto, imediato ou a longo prazo, sobre todos os seres vivos, incluindo o ser humano.47 Decisões em matéria ambiental proferidas pelos tribunais serão consistentes se, tomadas aqui e agora, aproveitarem as lições do passado e se propuserem a construir um futuro melhor.48 O STF parece entender dessa mesma forma quando destaca que o direito à preservação da integridade do meio ambiente decorre de seu caráter metaindividual e do fato de decorrer da solidariedade, sendo, por isso, necessário impedir que quaisquer transgressões a esse direito faça irromper, no seio da coletividade, conflitos intergeracionais.49 Embora utilize nomenclaturas distintas,50 há um consenso dentro do tribunal, já a algum tempo, de que o direito ao meio ambiente funda-se na solidariedade, e, por isso é de interesse da coletividade.51 O STJ também parece partir desse consenso,

46) Princípios podem ser considerados metanormas (Ver: SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Far beyond from norms, distinguishing between rules and principles. ARSP – Archiv für Rechts-und Sozialphilosophie, vol. 97, n. 2, 2011). 47) IBGE. Vocabulário básico de recursos naturais e meio ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2004, p. 210. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/vocabulario.pdf. Acesso em: 09 maio 2014. 48) DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1986, p. 95. Ver. Também: OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 102. 49) STF. ADI 3540-MC, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 3.2.2006. 50) Direito metaindividual, direito transindividual, direito coletivo. 51) STF. MS 25284, Plenário, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJE 13.8.2010; STF. MS 22164, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 17.11.1995; STF. RE 134297, 1ª Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 22.9.1995. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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quando entende ser o meio ambiente um direito de todos.52 Nas decisões do STF a adoção do entendimento de que o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável depende da assunção de uma responsabilidade em nível intergeracional, ou seja, que o dever de preservação da integridade ambiental é um compromisso para a geração atual e para as futuras.53 O STJ adota igual linha de raciocínio ao afirmar que a Constituição impõe tanto ao Poder Público quanto à coletividade o dever de defender e de preservar o meio ambiente em benefício não apenas das presentes como também das futuras gerações.54 Evidencia-se nos julgados tanto do STF quanto do STJ que o direito ao meio ambiente equilibrado ecologicamente decorre do cumprimento do dever fundamental, imposto pela Constituição ao Poder Público e à sociedade, de fazer respeitar e defender a integridade do patrimônio ambiental para as atuais e futuras gerações.55 Essa precedência do dever sobre o direito é vista também nas exigências de compensações reparatórias e de realização de estudos e relatórios de impacto ambiental para a implantação de empreendimentos com significativo potencial impactante,56 e de cadastro de produtos potencialmente danosos,57 nas proibições de atividades que impliquem em tratamento cruel a espécimes da fauna58 ou em prática atentatória à flora,59 e na regulamentação 52) STJ. AgRg no REsp 958766, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 30.3.2010. 53) STF.ADPF 10, Plenário, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJE 4.6.2012; STF. ADI 1952MC, Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ 12.5.2000. 54) STJ. AgRg no REsp 958766, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 30.3.2010. 55) STF. AgRg no RE 417408, 1ª Turma, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJE 26.4.2012; STF. MS 26064, Plenário, Rel. Min. EROS GRAU, DJE 6.8.2010; STJ. AgRg no REsp 958766, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 30.3.2010; STF. MS 22164, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 17.11.1995 56) STJ. REsp 896863, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 2.6.2011; STF. ADI 3378, Plenário, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJE 20.6.2008; STF. ADI 1086, Plenário, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJ 10.8.2001. 57) STJ. Resp 1153500, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 3.2.2011; STF. AI 158479-AgR, 2ª Turma, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ 26.4.1996. 58) STF, ADI 1856, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJE 14.10.2011; STF. ADI 3776, Plenário, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 29.6.2007; STF. ADI 2514, Plenário, Rel. Min. EROS GRAU, DJ 9.12.2005. 59) STF. RE 134297, 1 Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 22.9.1995. Obra dedicada ao Instituto Terra

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da poluição, entendida como uma forma de degradação ambiental decorrente de atividades que, de alguma maneira, prejudiquem a saúde e o bem-estar da população ou condições estéticas ambientais.60 Os casos decididos pelos dois tribunais atestam a preocupação com o dever de proteger o meio ambiente firmando-se a responsabilidade objetiva fundada no risco integral, obrigando, então, o empreendedor a prevenir ou reduzir o impacto dos riscos à saúde e ao meio ambiente (princípio da prevenção), bem como a incluí-los em seus custos operacionais (princípio do poluidor-pagador).61 E isso se evidencia na preocupação em estabelecer medidas compensatórias pelo uso de recursos que causem danos inevitáveis e imprescindíveis previstos nos estudos e relatórios de impacto, e medidas mitigadoras e preventivas para os danos não previstos,62 devendo-se mensurar o dano não apenas a partir dos efeitos visíveis à fauna ou à flora, mas também pelo grau de desequilíbrio ecológico provocado.63 Verifica-se, nesse breve análise de alguns dos julgados do STJ e do STF que há uma construção coerente sobre o dever fundamental de proteção do meio ambiente que permite a sua defesa, ainda que os dois Tribunais cometam alguns erros judiciais. Há, portanto, a partir de uma abordagem baseada na teoria dos deveres fundamentais uma conexão condicional: a exigência do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado depende do cumprimento do dever de proteção a esse mesmo meio ambiente, e vice-versa; flagra-se uma relação jurídica obrigacional, permissiva da formulação de uma pretensão diante do descumprimento do dever para defender o direito e da titularidade do direito para exigir que se preserve e proteja o seu objeto (meio ambiente). Trata-se, assim, de dever e direito não autônomos, pois correlatos ou relacionados entre si, permitindo, então, uma exigibilidade dupla, seja por violação ao direito seja por descumprimento do dever.64 60) STJ. REsp 876931, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 10.9.2010. 61) STJ. REsp 1346430, 4ª Turma, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 21.11.2012; STJ. REsp 967375, 2ª Turma, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJE 20.9.2010. 62) STJ. REsp 896863, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 2.6.2011. 63) STJ. REsp 1164630, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 1.12.2010. 64) Para essa relação, ver, por exemplo: SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo); AMADO GOMES, Carla. O direito ao ambiente: vertentes pretensiva e impositiva de um falso direito. Argumenta, n. 16, 2012, p. 323; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Deveres fundamentais. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang; CARBONELL, Miguel (coord.). Direitos Humanos e Meio Ambiente

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A característica da exigibilidade revela que o binômio direito-dever ou dever-direito determina a natureza metaindividual ou transindividual da proteção ao meio ambiente; quer dizer, trata-se de um direito pertencente a e de um dever exigível dos cidadãos, e também de toda a coletividade, transcendendo ou indo além do indivíduo. Isso determina a natureza coletiva do direito e dever de proteção do meio ambiente, tornando-o, assim, um dever híbrido, pois é genérico por pertencer e a cada uma das pessoas, não sendo específico por não se relacionar a um direito subjetivo (potestativo) de uma pessoa específica.65 A construção jurisprudencial do STF e do STJ revela, como ficou registrado, que a sociedade e cada indivíduo têm tanto dever de quanto direito à proteção do meio ambiente, assim como o Estado (o Poder Público) possui o dever de protegê-lo ou conservá-lo.66 O referido dever, que tem uma profunda relação Direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 327; CASALTA NABAIS, José. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009, p. 78-83, 114-117 e 123-124; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 228; ALEGRE MARTÍNEZ, Miguel Ángel. Los deberes en la Constitución española: esencialidad y problemática. Teoría y Realidad Constitucional, n. 23, 2009, p. 279; PALOMBELLA, Gianluigi. De los derechos y de su relación con los deberes y los fines. Derechos y Libertades, n. 17, 2007, p. 129-130; VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 161; PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa, n. 4, 1987, p. 340-341; VARELA DÍAZ, Santiago. La idea de deber constitucional. Revista Española de Derecho Constitucional, n. 4, 1982, p. 69, 73, 84 e 86; NAVAS BENAVENTE, Sara. Observaciones a algunas normas del capítulo III “de los derechos y deberes constitucionales” del proyecto de nueva constitución. Revista Chilena de Derecho, vol. 6, 1979, p. 246-248; PARRA, Dario. Deberes constitucionales. Boletín de la Academia de Ciencias Políticas y Sociales, vol. 31, n. 34, 1966, p. 42. 65) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo); PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa, n. 4, 1987, p. 336. 66) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo); PINHEIRO, Gleydson Gleber Bento Alves de Lima. O dever fundamental de proteção do meio ambiente e a proibição da proteção deficiente à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Revista do Instituto de Direito Brasileiro, vol. 2, n. 9, 2013; ABREU, Ivy de Souza; FABRIZ, Daury César. O dever fundamental de proteção das matas ciliares e das nascentes com base no princípio da proibição do retrocesso: uma análise do Código Florestal brasileiro. Derecho y Cambio Social, n. 32, 2013; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontooura de; GRAU NETO, Werner. A esquizofrenia moral e o dever fundamental de proteção ao animal não humano. Revista Brasileira de Direito Animal, vol. 10, n. 1, 2012; SGARIONI, Márcio Frezza; RAMMÊ, Rogério Santos. O dever fundamental de proteção ambiental: aspectos axiológicos e normativos-constitucionais. Direito Público, n. 42, 2011; ZAMBRANO CETTINA, William. Deberes de los particulares en la ConstiObra dedicada ao Instituto Terra

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com o direito ao meio ambiente sano (relação condicional, o exercício de um depende do cumprimento do outro, e o cumprimento de um depende da existência do outro), encontra respaldo na Constituição brasileira de 1988, no art. 225, no qual se lê aquilo que resume bem a construção em cadeia interpretativa feira pelo STF e pelo STJ: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, enquanto bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida e bem-estar. Impondo-se ao Poder Público e à coletividade, bem como a cada indivíduo, o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Isso quer dizer que o dever de conservar ou proteger o meio ambiente é uma obrigação, que se relaciona com o direito ao meio ambiente sano (relação condicional), sendo passível de sanção o descumprimento dessa obrigação, como, ademais, registrou-se na análise das decisões do STF e do STJ. O destaque dado, pelos julgados dos dois tribunais, muito mais ao dever de proteção do ambiente que ao direito a ele relacionado tem sua razão de ser. A construção jurisprudencial parece se basear, ainda que não faça isso consciente e expressamente, no entendimento (consenso mínimo) de que para a reivindicação de direitos é necessário o cumprimento de deveres. Essa não é uma conclusão fácil em uma sociedade, como a ocidental, marcada pelo individualismo e pelo subjetivismo,67 em que a referência aos deveres é normalmente feita de passagem,68 ou como um adorno ou recurso de retórica.69 Para confirmar isso, basta folhear os livros de curso de Direito constitucional e notar quantas linhas são dedicadas ao tema. Como a teoria dos deveres fundamentais ainda está em construção,70 apenas é possível indicar, provisoriamente, que a natureza desses deveres está funtución y medio ambiente. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, 2010; GREY, Natália de Campos. Dever fundamental de proteção aos animais (Dissertação de Mestrado em Direito). Porto Alegre: PUC-RS, 2010; RUSCHEL, Caroline Vieira. O deber fundamental de proteção ambiental. Revista Direito & Justiça, vol. 33, n. 2, 2007; FENSTERSEIFER, Tiago. A dimensão ecológica da dignidade humana: as projeções normativas do direito (e dever) fundamental ao ambiente no Estado socioambiental de Direito (Dissertação de Mestrado em Direito). Porto Alegre: PUC-RS, 2007. 67) Sobre a relação entre individualismo e subjetivismo, ver, por exemplo: RENAUT, Alain. L’ère de l’individu. Paris: Gallimard, 1989. 68) ALEGRE MARTÍNEZ, Miguel Ángel. Los deberes en la Constitución española: esencialidad y problemática. Teoría y Realidad Constitucional, n. 23, 2009, p. 271.

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dada em noções como responsabilidade, solidariedade, fraternidade, cooperação, valores e alteridade. Isso quer dizer que o real sentido da existência de deveres está em como cada pessoa percebe o seu papel na sociedade e como se relaciona com as outras pessoas. Se há uma precedência dos direitos sobre os deveres, destacando uma exaltação do eu (ego) em prejuízo do outro (alter), é possível considerar haver uma crise de valores na sociedade,71 seria interessante que se voltasse a atenção para os deveres quando um direito não puder ser exercido. Em uma sociedade baseada na solidariedade, cooperação e valores, seria interessante que se repensassem os deveres, inclusive como condições para o exercício adequado dos direitos, fomentando a prática cidadã de mútua cooperação em relação ao patrimônio natural e aos recursos ecológicos que permitam valorização de proteção ambiental e uma melhor qualidade de vida aos integrantes dessa comunidade. O que se observa em relação ao meio ambiente, o qual se funda, enquanto objeto de estudo do ramo jurídico, em noções como responsabilidade, solidariedade, cooperação, e alteridade, bem como fraternidade. Isso se extrai especialmente do art. 225 da Constituição de 1988, como se pode observar logo em seu caput (imposição ao Poder Público e à coletividade do dever de defender e preservar o meio ambiente para as atuais e as futuras gerações), como em seus parágrafos, nos quais se estabelecem as incumbências do Poder Público em matéria ambiental (o §1º trata sobre a preservação e a manutenção do patrimônio ambiental), a responsabilidade de todos de recuperar o meio ambiente degradado (§§2º-3º e 6º), bem como o uso do meio ambiente (§§4º-5º). Os princípios e valores, tanto positivados quanto construídos pelos tribunais, que regem as relações com o meio ambiente, especialmente no que se refere ao dever de protegê-lo, têm íntima relação com o projeto teórico de Dworkin que coloca o Direito como integridade. Isso porque, para ele, “(...) se todos estamos em comunidade e nos vemos como membros de uma comunidade de princípios, profundamente divididos quanto aos projetos individuais de felicidade, mas unidos quanto a um projeto coletivo comum, qual seja, tentar tornar essa comunidade a melhor que ela pode, de modo a nos orgulharmos de fazer parte dessa comunidade, porque ela, inclusive, nos respeita, então temos que ser responsáveis uns pelos outros, devendo fiscalizar as ações estatais e as ações de nossos parceiros de empreendimento comum”.72 A isso se

69) BUSCH VENTUR, Tania. Deberes constitucionales. Revista de la Facultad de Ciencias Jurídicas de la Universidad Católica de Salta, n. 1, 2011, p. 64.

71) ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid: Civitas, 1997, p. 91-92, 119 e 125.

70) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo).

72) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 23.

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pode chamar de “democracia como parceria”.73 E a construção e preservação do meio ambiente depende essencialmente desse tipo de parceria. Em Dworkin, a questão da cooperação é imprescindível, especialmente para explicar a relação entre o Direito e a Moral e sua complementaridade na formação do Direito como integridade, bem como da comunidade de princípios. A proposta construída pelo autor se baseia no diálogo, pressupondo que todos os indivíduos de uma comunidade sejam respeitados em suas escolhas individuais,74 pois todos adotam um consenso mínimo de que o Direito é formado por um conjunto coerente de princípios, os quais visam garantir o igual respeito e consideração de um indivíduo por todos e de todos por um.75 O consenso mínimo ou o conjunto coerente de princípios no sistema ambiental brasileiro, parece ser, nesse sentido pela regra da proteção, que estabelece um dever (dever de proteção do meio ambiente) e que deve ser interpretada à sua melhor luz, para se construir um sistema de efetiva proteção ao meio ambiente. Em suma, tanto o STF quanto o STJ parecem ter interpretado à Constituição dentro daquilo que Dworkin propôs, coadunando com a concepção de meio ambiente aqui proposta como sendo um conjunto de agentes físicos, químicos e biológicos e de fatores sociais que podem exercer efeitos, diretos ou indiretos, imediatos ou mediatos, sobre todos os seres vivos (fauna, flora e seres humanos), de maneira que é preciso agir com responsabilidade e compromisso para que no presente se consiga extrair as lições do passado e se possa ajudar a construir um futuro melhor.

H

Conclusão

Ao expor sobre o processo decisório juntamente com a questão ambiental, podemos destacar a contribuição teórica de Dworkin em relação aos princípios (inclusive aqueles constitucionalizados e institucionalizados em uma sociedade) e a construção de uma esfera pública para a comunicação democrática e institucionalizada discursivamente, bem como, para a convivência e diálogo que considere a complexidade de argumentos e interações dos diversos atores sociais. 73) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 23. 74) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 80.

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Dworkin constrói sua teoria, que considera a Constituição como a construção de uma comunidade política de princípios e o Direito como prática interpretativa. Ele procura demonstrar que a filosofia do Direito e filosofia política não são disciplinas desvinculadas da prática, e que através desse reconhecimento é possível desenvolver uma ligação de forma mais profunda, esclarecedora e íntegra entre a prática e a teoria pelos juízes e cidadãos em tribunais de decisões. Assim, mesmo que inexistam regras ou leis expressas e minuciosas que procurem instruir ou detalhar determinados comportamentos esperados em uma comunidade, já que a lei não traz por si só a solução dos problemas e de todos os parâmetros, não sendo o “ponto de chegada”, mas sim um “ponto de partida” que inaugura e tematiza as discussões e reflexões de pessoas em uma sociedade democrática, mediante os princípios que regem as práticas sociais e a condição interpretativa do direito não há espaço ou lacuna para um poder amplamente discricionário dos juízes ao decidir um caso concreto. Na dimensão ambiental no Estado democrático de direitos, a interpretação principiológica considera o Direito como integridade para tratar sobre a integridade do meio ambiente. Podemos dizer que as vivências de casos concretos podem trazer uma percepção da adequação do processo decisório às exigências democráticas comunicativas e aprendizado discursivo para sua legitimidade, além da garantia de princípios e direitos fundamentais. Conforme visto na aplicação prática da teoria de Dworkin, tanto o STF quanto o STJ em várias decisões assumem a importância do tratamento deontológico do compromisso e do princípio constitucional em relação a um meio ambiente ecologicamente equilibrado para construir uma visão sobre a proteção da integridade do meio ambiente com certo enfoque sobre deveres fundamentais, ainda que não anuncie isso expressamente em seus julgados. Nesse sentido, é possível afirmar que a Constituição brasileira de 1988 abre espaço para o exercício interpretativo em uma comunidade política, primando pela consideração entre seus membros a partir de um processo decisório interpretativo e participativo que exercita a Constituição em permanentes discussões de uma comunidade política e fraterna que revisita interpretações históricas de seus princípios ao mesmo tempo em que os aplica visualizando a construção do futuro, o que propicia uma coerência institucional entre gerações ao longo do tempo e adequação da jurisdição constitucional brasileira às exigências do Estado democrático de direitos. No caso ambiental isso é bastante evidente, já que a leitura feita pelos tribunais coaduna-se com a registrada no texto constitucional originário.

75) OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 146. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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