Direito das Crianças

May 31, 2017 | Autor: Luís Filipe Salabert | Categoria: Direitos das Crianças
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Direito das Crianças Índice INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................. 2 I  Os Direitos Humanos específicos das Crianças ............................................................................................ 2 1 – Direitos Humanos ......................................................................................................................................... 2 Os Direitos Humanos no direito universal .................................................................................................... 2 Organização das Nações Unidas .............................................................................................................. 6 Os Direitos Humanos no sistema europeu.................................................................................................... 8 Conselho da Europa ................................................................................................................................. 8 União Europeia ........................................................................................................................................ 9 2 - O estatuto da Criança.................................................................................................................................. 11 3 - A protecção da Criança no direito universal................................................................................................ 15 4 - A Criança no Direito Internacional Privado ................................................................................................. 22 5 - A protecção da Criança no sistema europeu ............................................................................................... 23 II - O Superior Interesse da Criança .................................................................................................................24 Fixação do conteúdo do conceito por via legislativa ........................................................................................ 28 A interdisciplinaridade na fixação do conceito................................................................................................. 31 III  A relação materno/paterno/filial.............................................................................................................32 IV  «As crianças não são adultos em miniatura.» ..........................................................................................34 V  As limitações da lei ...................................................................................................................................37 Bibliogafia.......................................................................................................................................................40

Luis Salabert

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INTRODUÇÃO I  Os Direitos Humanos específicos das Crianças 1 – Direitos Humanos Os Direitos Humanos no direito universal No ocidente, admitem-se direitos fundamentais1 já desde o direito romano, se bem que a maior parte deles limitados, na sua titularidade, a classes muito restritas de sujeitos: a negação da identidade pessoal (aos escravos, tidos como coisas), a negação da cidadania ou a negação da capacidade de exercício (às mulheres, aos apóstatas, aos hereges, aos judeus), impunham a exclusão da titularidade dos direitos fundamentais. Roma legou para a posteridade noções que viriam a moldar a concepção moderna dos direitos humanos: a noção de Libertas (oposto de servidão) e a noção de Humanitas (vínculo que une os homens ao ponto de os transcender)2. O cristianismo, ao ensinar que todos os homens são filhos de Deus, sem distinção de raça, estatuto ou género3, veio dar uma nova leitura ao conceito de dignidade humana; igualmente veio temperar o poder de disposição da família sobre as crianças a ela pertencentes, ao relevar a permanente solicitude do Pai em relação ao Filho, do criador (aquele que dá a vida) em relação à criatura (aquele que recebe a vida, como um dom)4. Na Idade Média — que ficou para a história como “uma noite de mil anos”5 —, dá-se um retrocesso no que aos direitos humanos diz respeito6; tal deve-se às «contingências políticas, económicas e sociais, subjacentes à concentração de poderes, à subordinação do poder político ao poder religioso e à organização económica feudal». Nesse período, só na Grã-bretanha foi possível aos súbditos imporem ao soberano o respeito pela liberdade individual; a Charter of Liberties (também conhecida por Coronation Charter), FERRAJOLI, Luigi “Derechos fundamentales”, pág. 23 FERNANDES, ANTÓNIO JOSÉ, “Direitos Humanos e Cidadania Europeia”, pág. 20 3 «Não há judeu nem grego; não há servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo» – São Paulo, Carta aos Gálatas, 3:28, apud FERNANDES, ANTÓNIO JOSÉ, ibidem, pág. 21 4 «Por tanto, já não és servo, mas filho; e se és filho, também és herdeiro, pela graça de Deus.» – São Paulo, ibidem, 4:7 5 FERNANDES, ANTÓNIO JOSÉ, ibidem, pág. 22 6 idem, ibidem, pág. 24 Página 2 de 41 1 2

de 1100, proclamada por Henrique I, e a Magna Charta Libertatum, proclamada em 1215, pelo Rei João de Inglaterra, são seminais das constituições modernas. No século XIV, com o advento do Renascimento, opera-se o regresso às fontes clássicas sob o signo do humanismo7; é exaltada a dignidade do homem e proclamada a igualdade dos seres humanos (o que não impediu os fenómenos da expansão marítima dos estados europeus e a subsequente colonização de povos das então remotas África, América, Ásia e Oceania). O filósofo inglês John Locke (1602-1704), tido como o mais importante dos criadores da doutrina dos direitos naturais8 ou jusnaturalismo, escreveu — no seu segundo tratado “Sobre o governo civil”, ao introduzir o discurso sobre o “estado de natureza” — que, para se entender bem o poder político e apurar a sua origem, deve considerar-se em que estado se encontravam naturalmente os homens; este era um estado de perfeita liberdade para reger os seus próprios actos e dispor da sua própria pessoa e da sua propriedade, como considerasse melhor, dentro dos limites da lei e da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outra pessoa; era também um estado de igualdade, em que todo o poder e toda a jurisdição eram recíprocos; e era assim, porque criaturas da mesma espécie e da mesma categoria, que nascem sem distinção entre elas, com as mesmas vantagens da natureza e com as mesmas dificuldades, devem também ser iguais entre elas, sem subordinações ou sujeições. Neste “estado de natureza”, os direitos do homem eram poucos e essenciais 9: o direito à vida, o direito à sobrevivência (aqui se incluindo o direito à propriedade) e o direito à liberdade (compreendendo algumas liberdades, essencialmente negativas). Presume-se que o homem terá permanecido no seu estado natural, de “bom selvagem”, durante séculos, ao longo dos quais se foram estabelecendo vínculos sociais10: «…primeiro, vínculos de parentesco e de residência; depois, vínculos de afinidade religiosa, profissional e política…». Para os jusnaturalistas, a afirmação dos direitos naturais não era mais do que uma teoria filosófica, com um valor meramente de exigência ideal, de uma aspiração apenas realizável quando uma constituição os acolhesse e os transformasse numa série de prescrições

FERNANDES, ANTÓNIO JOSÉ, ibidem, pág. 26 BOBBIO, NORBERTO “El tiempo de los derechos”, pág. 38 9 BOBBIO, NORBERTO ibidem, pág. 119 10 FERNANDES, ANTÓNIO JOSÉ, “Direitos Humanos e Cidadania Europeia”, pág. 16 Página 3 de 41 7 8

jurídicas11. São as revoluções, americana (1776) e francesa (1789), que propiciam o grande salto em frente no sentido da efectivação dos direitos humanos; o legislador de então, deu forma aos teoremas12 ou meras proposições filosóficas que vinham de trás e atribuiu-lhes juridicidade, sob a forma de “declarações de direitos”13. Esta efectividade foi, no entanto, relativa; os direitos consagrados na lei, eram tendencialmente universais, mas a titularidade dos direitos humanos conferidos pelas declarações americana e francesa, era encabeçada pelos cidadãos americanos e franceses; a efectividade dos direitos humanos assim obtida era relativa: “ao mesmo tempo em que elas ganhavam em concreticidade, perdiam em universalidade”14. As revoluções industriais15 — ao implicarem o abandono da actividade primária por massas de trabalhadores que migraram para as cidades para se tornarem operários fabris — se, por um lado, criaram condições para a exploração da mão-de-obra, por outro levaram à organização dos mesmos trabalhadores, em defesa dos seus interesses económicos e sociais16. No campo dos direitos humanos, assistiu-se ao nascimento dos chamados “direitos de segunda geração” ou de “segunda dimensão”. Enquanto os “direitos de primeira dimensão” são aqueles que atribuem ao cidadão a liberdade de exercitar o direito que lhe é reconhecido e impõe a todos os outros e ao estado a abstenção de actos perturbadores daquele exercício, os “direitos de segunda dimensão” são aqueles que, para serem exercidos pelo seu titular, exigem uma atitude já não abstencionista, mas activa da parte daqueles órgãos da sociedade sobre os quais recaem os correspectivos deveres17.

BOBBIO, ibidem, pág. 39 MÓNACO, FERRAZ DE CAMPOS, “A declaração Universal dos Direitos da Criança e Seus Sucedâneos Internacionais (Tentativa de Sistematização)”, pág. 78 13 “Declaração de Independência” e “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” 14 idem, ibidem 15 a primeira foi a mecânica (a máquina de fiar foi inventada em 1765, por Hargreaves e a máquina a vapor foi inventada em 1769, por Watt); a segunda foi a eléctrica (Gramme inventou o dínamo eléctrico em 1871 e Parsons construiu o gerador de electricidade em 1884); depois veio a terceira (tecnológica, século XX, década de 70) e alguns saúdam já o advento da quarta (bio e nanotecnológica) 16 FERNANDES, ANTÓNIO JOSÉ, ibidem, pág. 47 17 MÓNACO, FERRAZ DE CAMPOS, ibidem, pág. 76, nota (142) Página 4 de 41 11 12

Corresponde à conceptualização desses “direitos a” e à sua recepção no direito positivo, o nascimento do conceito de Estado-Providência, ao qual é cometida a tarefa de intervir nos domínios económico e social, a fim de assegurar a igualdade de oportunidades de acesso à habitação, ao emprego, à educação, à saúde, à segurança social, etc. A afirmação da existência de direitos naturais originários, foi recebida nas declarações de direitos que precederam as constituições dos estados liberais modernos, como visto supra; assim se converteram em normas jurídicas invocáveis pelos cidadãos, em caso de violação — pelos particulares ou pelos poderes públicos —, dos efectivos direitos a que se reportavam. A Grã-Bretanha foi o berço de uma das primeiras acções internacionais em prol dos direitos humanos, com a fundação da Sociedade contra a Escravidão, em 1839. Seguiu-se-lhe a Primeira Convenção de Genebra, em 1864, que elevou o direito humanitário à dimensão positivada; foi também na mesma ocasião fundada a Cruz Vermelha, entidade independente e apolítica, com vocação de assistência a vítimas, militares e civis, de conflitos armados. Em Janeiro de 1918 teve lugar em Versalhes a Conferência de Paz que ficou conhecida pelo nome da localidade francesa que a acolheu, e que marcou o final da I Guerra Mundial; o Presidente Woodrow Wilson, dos Estados Unidos da América, apresentou na Conferência um relatório com 14 pontos, sendo que o 13º e o 14º previam, respectivamente, a instituição de uma organização internacional do trabalho e de uma sociedade geral das nações. No seguimento da aceitação destas propostas, veio a ser assinado, em Junho de 1918, o tratado que instituiu a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e, em Abril de 1919, o pacto que instituiu a Sociedade das Nações (SDN). Embora o pacto da SDN não contenha cláusulas específicas de direitos humanos, o seu artigo 23º prescreve obrigações relativas às condições de trabalho (que pretende humanas e equitativas para homens e mulheres) e ao tratamento equitativo das populações indígenas; o mesmo dispositivo ainda encarregou a SDN da fiscalização geral dos acordos relativos ao tráfico de mulheres e crianças18.

«Art. 23. Sob a reserva e em conformidade com as disposições das Convenções internacionais actualmente existentes ou que serão ulteriormente concluídas, os membros da Sociedade: 1. esforçar-se-ão por assegurar e manter condições de trabalho equitativas e humanas para o homem, a mulher e a criança nos seus próprios Página 5 de 41 18

Só com a II Guerra Mundial o tema dos direitos humanos ganhou uma dimensão verdadeiramente universal. Reunidos em Moscovo, os representantes da China, dos Estados Unidos da América, da Grã-Bretanha e da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas assinaram, em 30/10/1943, a Declaração de Moscovo, a qual dava conta da necessidade de estabelecimento de uma organização geral internacional dedicada à manutenção da paz e da segurança internacionais. Veio então a ser elaborada e aprovada a Carta da Organização das Nações Unidas 19, que entrou em vigor em 24 de Outubro de 1945. Organização das Nações Unidas A Carta das Nações Unidas20 enunciava no artigo 1º, nº 3, o objectivo de «Realizar a cooperação internacional… promovendo e estimulando o respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião». Em execução desse objectivo, veio a ser proclamada a Declaração Universal dos Direitos do Homem21. Foi com este instrumento jurídico internacional que todos os homens (não já apenas os cidadãos da Declaração Francesa), passaram a sujeitos de direitos. Com a integração dos direitos fundamentais na Declaração Universal atinge-se o patamar em que os direitos fundamentais obtêm uma protecção de segundo grau 22: — Tendem a ser protegidos não já somente no âmbito do estado, mas também contra o próprio estado, quando este deixar de cumprir as suas obrigações constitucionais em relação aos seus súbditos: «Desde a declaração universal, a protecção dos direitos naturais tende a ter em si mesma eficácia jurídica e valor universal. E o indivíduo tende a converter-se de sujeito de uma

territórios, assim como em todos os países aos quais se estendam suas relações de comércio e indústria e, com esse fim, por fundar e sustentar as organizações internacionais necessárias; 2. comprometem-se a garantir o tratamento equitativo das populações indígenas dos territórios submetidos à sua administração; 3. encarregam a Sociedade da fiscalização geral dos acordos relativos ao tráfico de mulheres e crianças, ao comércio do ópio e de outras drogas nocivas;…» 19 Em São Francisco, Estados Unidos da América, entre 25 de Abril de 26 de Junho de 1945, pelos delegados de cinquenta países. 20 Publicada no Diário da República, I Série-A, nº 117, de 22/05/1992 21 Aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 10/12/1948, publicada no Diário da República, I Série, nº 57, de 09/03/1978 22 BOBBIO, NORBERTO, ibidem, pág. 39 Página 6 de 41

comunidade estatal, em sujeito também da comunidade internacional, potencialmente universal.»23. Posteriormente, e por se reconhecer que a Declaração Universal não é mais do que um documento assertivo, «não é um tratado ou convenção…»24 e, portanto, não vincula os Estados, foi desde logo reconhecida a necessidade de efectivação dos direitos declarados, através de um texto vinculativo. Em 1950, a Assembleia-geral da ONU aprovou uma Resolução em que pedia à Comissão dos Direitos do Homem, que elaborasse os documentos necessários a essa efectivação. Assim, foram elaborados e aprovados pela Assembleia Geral da ONU, em 16/12/1966, o Pacto de Direitos Económicos, Sociais e Culturais e o Pacto de Direitos Civis e Políticos; o primeiro entrou em vigor em 03/01/1976, e o segundo em 23/03/1976, após o depósito do trigésimo quinto instrumento de ratificação ou adesão25. Outras convenções elaboradas no âmbito da ONU incidem sobre Direitos Humanos26: Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (21/12/1965), Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (18/12/1979), Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Castigos Cruéis, Inumanos ou Degradantes (10/12/1984), Convenção Internacional sobre a Protecção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Suas Famílias (18/12/1990), Convenção Internacional Para a Protecção de Todas as Pessoas contra Desaparecimento Forçado (20/12/2006), Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (13/12/2006). O estado de implementação de cada uma destas convenções é alvo de acompanhamento e vigilância por comissões especializadas. O Conselho dos Direitos Humanos é um organismo intergovernamental criado no âmbito do sistema da ONU, composto por 47 países e tem a responsabilidade de promover e proteger todos os direitos humanos em todo o globo27. Em 18 de Junho de 2007, o Conselho dos Direitos Humanos aprovou a Resolução 5/1, pela qual foi criado um novo procedimento de

idem, ibidem MIRANDA, JORGE, “Escritos vários”, pág. 106 25 Publicados no Diário da República, nºs 133, de 12/06/1978 e 157, de 11/07/1978 26 In http://www.ohchr.org/EN/ProfessionalInterest/Pages/CoreInstruments.aspx 27 In http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/Pages/HRCIndex.aspx Página 7 de 41 23 24

queixa (acessível a entidades colectivas ou indivíduos) visando padrões consistentes de violação grosseira de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, em qualquer parte do mundo e em quaisquer circunstâncias28. Os Direitos Humanos no sistema europeu Conselho da Europa Entre 8 e 10 de Maio de 1948 reuniu na Haia o 1º Congresso da Europa, tendo sido aí decidido criar o Conselho da Europa; os estatutos desta organização internacional de âmbito regional foram aprovados em Londres, em 5 de Maio de 1949. O objectivo deste Conselho é (artigo 1º dos Estatutos) o de “realizar uma união mais estreita entre os seus membros com vista a salvaguardar e promover os ideais e princípios que são o seu património comum e favorecer o seu progresso económico e social”. Ao Conselho da Europa cabe29: “defender os princípios da democracia e dos direitos do homem; promover os valores humanos e a melhoria da qualidade de vida dos europeus; favorecer a compreensão mútua entre os povos da Europa; desenvolver o sentimento de identidade europeia assente no seu património comum”. Para prosseguir esses objectivos (artigo 3º dos Estatutos), “todos os membros do Conselho da Europa devem aceitar os princípios do primado do direito e do gozo por todas as pessoas sob a sua jurisdição de direitos humanos e de liberdades fundamentais”. Em 4 de Novembro de 1950, reunidos em Roma, os estados membros do Conselho da Europa aprovaram a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, a qual entrou em vigor em 3 de Setembro de 195330. Em 1959 foi instituído o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tendo sido reconhecida a obrigatoriedade da sua jurisdição e, pelo Protocolo nº 931, o direito postulatório individual.

In http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/ComplaintProcedure/Pages/HRCComplaintProcedureIndex.aspx FERNANDES, ANTÓNIO JOSÉ, ibidem, pág. 57 30 Aprovada, para ratificação, pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, nº 236/78 (rectificada por Declaração da Assembleia da República publicada no Diário da República, I Série, nº 286/78, de 14 de Dezembro). 31 Aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 11/94, de 13 de Janeiro e ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 12/94, de 7 de Março Página 8 de 41 28 29

Como refere ALVES, JORGE

DE JESUS

FERREIRA32 «Ao contrário de outros textos de direito

internacional, a Convenção garante um controlo jurisdicional efectivo dos direitos nela consagrados, sendo, portanto, o modelo mais perfeito dessa garantia… A Convenção visa proteger direitos “não teóricos ou ilusórios, mas concretos e efectivos”… A Convenção estabelece um sistema que concede uma protecção credível contra a sua violação, através do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e da interpretação que este faz da Convenção e seus Protocolos adicionais.». Em 18/10/1961 foi aberta em Turim para assinatura dos Estados Membros a Carta Social Europeia, vista como “a contraparte da Convenção Europeia dos Direitos Humanos na esfera dos direitos económicos e sociais.33”. Em 1988, 1991 e 1995 foram abertos para assinatura os Protocolos Adicionais e, em 03/05/1996 foi aberta em Estrasburgo, para assinatura dos Estados Membros a Carta Social Europeia Revista34. O artigo 25 da Carta Social Europeia instituiu um Comité de Peritos constituído por 735 membros nomeados pelo Conselho de Ministros de entre os constantes de uma lista de “peritos independentes da maior integridade e de reconhecida competência em questões sociais internacionais”. Este Comité Europeu de Direitos Sociais julga a conformidade dos Estados Membros, com respeito às leis e práticas respectivas, com as prescrições da Carta. União Europeia Em 1989 foi adoptada por todos os Estados-Membros, à excepção do Reino Unido, a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores. Nos termos da Carta, a Comunidade é obrigada a assegurar os direitos sociais fundamentais dos trabalhadores. O Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, no seu artigo 151º (na versão do Tratado de Lisboa) faz referência não só à Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, mas também à Carta Social Europeia do Conselho da Europa, afirmando a disposição da União e dos Estados Membros de, tendo presentes os

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“A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, pág. 10 In http://conventions.coe.int/Treaty/en/Summaries/Html/035.htm

Aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 64-A/2001 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 54-A/2001 de 17 de Outubro 35 Actualmente 15, por decisão do Conselho de Ministros na 751ª reunião dos representantes Ministeriais (02-07/05/2001) Página 9 de 41

direitos sociais fundamentais, tais como aqueles documentos os enunciam, perseguirem os objectivos de promoção do emprego, de melhoria das condições de vida e de trabalho, de diálogo entre parceiros sociais, de desenvolvimento dos recursos humanos e de luta contra as exclusões. No Conselho Europeu de Nice de 7 de Dezembro de 2000, foi adoptada a Carta dos Direitos Fundamentais, a qual veio a ser anexada ao Tratado de Lisboa sob a forma de Declaração (A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que é juridicamente vinculativa, confirma os direitos fundamentais garantidos pela Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e resultantes das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros.). A Carta dos Direitos Fundamentais “reafirma, no respeito pelas atribuições e competências da União e na observância do princípio da subsidiariedade, os direitos que decorrem, nomeadamente, das tradições constitucionais e das obrigações internacionais comuns aos Estados-Membros, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, das Cartas Sociais aprovadas pela União e pelo Conselho da Europa, bem como da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.”36. A Carta visa exclusivamente proteger os direitos fundamentais dos cidadãos contra actos praticados pelas instituições da União Europeia e pelos Estados-Membros em aplicação dos Tratados da União. A sua inclusão no Tratado de Lisboa, embora sob a forma de Declaração, conferiulhe força jurídica vinculativa (com excepção do Reino Unido e Polónia). O Tratado de Lisboa, na redacção dada ao nº 2 do artigo 6º do Tratado da União, prevê a adesão da União à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Esta adesão permite ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de Estrasburgo controlar a conformidade dos actos da União com a CEDH, contribuindo assim para o reforço da protecção dos direitos fundamentais no interior da União.

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In “Preâmbulo” da Carta dos Direitos Fundamentais Página 10 de 41

2 - O estatuto da Criança Até à modernidade, a criança foi representada como um “ser” carecido de razão e, portanto, imperfeito; a carência de entendimento, determinava que a criança não podia ser mais do que o destinatário da actividade paterna de conformação ou padronização social através da educação, a qual pressupunha a disciplina; esta, por sua vez, era entendida como compatível com o uso da força, com intuitos correctivos; as crianças estavam sujeitas à família, cujo poder de disposição sobre elas era mais ou menos ilimitado, consoante as latitudes culturais. Até ao século XX, nos países em que foi produzida legislação incidente nas crianças, a preocupação era a da questão social provocada pela orfandade ou abandono, situações muitas vezes conducentes a comportamentos anti-sociais, como a mendicidade ou a delinquência. Assim, as leis produzidas tinham mais em vista a protecção da sociedade do que propriamente a protecção das crianças; as leis tinham um cunho marcadamente higienista, sendo a preocupação maior a de afastar as crianças órfãs, abandonadas e/ou “delinquentes” do convívio social. As leis visavam a educação compulsória das crianças privadas de inserção familiar, promovendo o internamento em regime fechado até à maioridade; nas instituições acolhedoras misturavam-se crianças órfãs e abandonadas com crianças “delinquentes”. Em 1874, ocorreu em Nova Iorque, Estados Unidos da América, o que ficou conhecido como o “Caso Mary Ellen”. Mary Ellen Wilson era uma criança órfã de pai e abandonada pela mãe, que foi entregue, com a idade de dois anos, por uma instituição pública municipal da cidade de Nova Iorque, Estados Unidos da América, a um casal, cujo membro masculino passou a arrogar-se a qualidade de seu pai biológico; tendo este morrido, a viúva voltou a casar e passou a maltratar gravemente a pequena Mary Ellen37. Uma assistente social, que se

Em 1864, filha de Francis e Thomas Wilson, nasceu em Nova Iorque uma menina a quem foi posto o nome de Mary Ellen. Pouco depois do seu nascimento, Thomas morreu e Francis foi forçada a trabalhar fora de casa. Não podendo tomar conta de Mary Ellen, Francis alojou a criança em casa de uma mulher, Mary Score, mediante pagamento de uma quantia em dinheiro. A situação económica de Francis deteriorou-se e deixou de poder fazer os pagamentos a Mary Score; deixou também de visitar a menina. Sem pagamento e sem notícias de Francis, Mary Score entregou a criança, com dois anos de idade, ao “Department of Charities”, entidade que, na cidade de Nova Iorque, tinha cometida a tarefa, entre outras, de prover às crianças sem família. Este departamento veio a colocar a criança na casa de Mary e Thomas Cormack; após essa colocação, o departamento negligenciou a Página 11 de 41 37

dedicava a visitar e assistir membros da comunidade necessitados de auxílio por razões de idade, doença ou pobreza, tomou conhecimento do caso e tentou que as autoridades retirassem a criança aos seus guardadores. Apesar de existirem, já nessa altura, na cidade de Nova Iorque, leis que permitiam a retirada de crianças a quem tivesse a sua guarda, com fundamento em maus tratos que lhe fossem infligidos, os apelos da assistente social não foram atendidos; em desespero, levou o caso ao líder do movimento humanista nos Estados Unidos — Henry Bergh —, até então apenas dedicado à protecção dos animais. Sensibilizado, Henry Bergh, fez sua a tarefa de conseguir a retirada da criança aos seus guardadores. Com o auxílio de um advogado, também ligado ao movimento humanista americano, levou o caso a tribunal onde o juiz proferiu uma primeira ordem que pôs a criança sob protecção do tribunal; após ouvir a própria Mary Ellen, o juiz acabou por decidir retirá-la definitivamente aos seus

supervisão das condições de vida da pequena Mary Ellen, de quem Thomas passou a dizer-se pai biológico. Pouco tempo após a colocação da criança, Thomas veio a falecer. Mary Cormack casou com Francis Connolly e o casal mudou para uma nova casa, num prédio de apartamentos. Mary maltratava a menina, o que era conhecido dos vizinhos. Pouco tempo depois, o casal voltou a mudar de casa. Em 1874, um dos anteriores vizinhos do casal, pediu a uma assistente social de uma Missão Metodista, Etta Wheeler — que regularmente visitava os moradores pobres e/ou doentes —, que procurasse saber como se encontrava a pequena Mary Ellen. Etta Wheeler deslocou-se à nova morada de Mary Ellen, onde falou com uma vizinha, Mary Smitt, doente crónica e confinada à casa, a qual lhe referiu que frequentemente ouvia gritos de criança vindos da casa dos Connolly. Sob pretexto de solicitar ajuda para Mary Smitt, Etta Wheeler apresentou-se a Mary Connoly e assim pôde ver por si própria a condição da pequena Mary Ellen, então com dez anos de idade: a criança estava suja e magra, vestida com roupas velhas e puídas; aparentava não ter mais de cinco anos de idade e no momento da visita lavava, numa bacia pousada sobre um banco, uma frigideira de peso quase igual ao seu próprio. Segundo o relato da própria Etta Wheeler, «sobre a mesa encontrava-se um chicote de fitas de couro torcidas e as magras pernas e braços da criança apresentavam muitas marcas do seu uso». Nesse tempo, alguns estados americanos já tinham leis proibindo o excessivo uso da força na disciplina das crianças; no caso concreto de Nova Iorque, havia uma lei que permitia ao Estado recolher crianças vítimas de negligência por parte dos seus guardadores. Apesar disso, as autoridades de Nova Iorque, baseadas na sua interpretação dessa lei e no relato de Etta Wheeler, mostravam-se relutantes em intervir. Etta não desistiu de ajudar a pequena Mary Ellen e dirigiu-se a Henry Bergh, fundador da Sociedade Americana para a Prevenção da Crueldade sobre Animais; foi a sobrinha de Etta quem a convenceu a procurar Bergh, dizendo-lhe que Mary Ellen era seguramente e para todos os efeitos, um pequeno membro do reino animal. Henry Bergh abraçou a causa da pequena Mary Ellen, enquanto cidadão preocupado com o tratamento desumano que vinha sendo dado àquela criança. Etta obteve os testemunhos de vizinhos do casal Connolly segundo os quais a pequena Mary Ellen era frequentemente alvo de maus tratos por parte de Mary Connolly. Henry Bergh deu início a um processo judicial com vista à retirada de Mary Ellen da casa de Mary Connolly, alegando tratamento desumano. A opinião pública foi mobilizada através de extensa cobertura jornalística. No dia em que compareceu perante o juiz, Mary Ellen estava vestida de trapos, com o corpo coberto de escoriações e tinha uma ferida do sobrolho esquerdo à face, onde Mary Connolly a tinha atingido com uma tesoura. O juiz emitiu uma ordem colocando Mary Ellen sob protecção judicial. Em Abril de 1874, Mary Connolly foi condenada a um ano de trabalhos forçados, pelo crime de agressão dolosa cometido sobre a pequena Mary Ellen. Quanto a esta, o tribunal colocou-a num abrigo institucional para adolescentes; entendendo que esta situação não era apropriada para uma criança de dez anos, Etta Wheeler pediu ao juiz que colocasse Mary Ellen à guarda da sua própria mãe, o que foi concedido. Depois da morte da mãe de Etta Wheeler, a pequena Mary Ellen, passou a viver com uma irmã de Etta, situação que se manteve até que, com a idade de 24 anos, veio a casar (retirado de http://www.americanhumane.org/about-us/who-we-are/history/story-of-mary-ellen.html). Página 12 de 41

guardadores. Apesar da dedicação de Henry Bergh ao movimento humanista de protecção dos animais, os relatos que referem que — na falta de legislação própria de protecção das crianças —, teria sido invocada em tribunal a lei de protecção dos animais38, não correspondem à realidade: “…algumas das imprecisões nascem de coloridos, mas erróneos, relatos jornalísticos, outras de simples má interpretação dos factos, outras ainda da complexidade da história do movimento de protecção das crianças nos estados Unidos e na Grã-bretanha e as respectivas ligações ao movimento para o bem-estar dos animais…”39: posto ter Henry Bergh desempenhado um instrumental, porém relevante, papel na retirada de Mary Ellen aos seus guardadores, não é verdade que o seu advogado — ele próprio ligado ao movimento humanista animal —, tenha argumentado que Mary Ellen merecia protecção enquanto “membro do reino animal”; numa audiência do tribunal que julgou este caso, Henry Bergh declarou que não actuava na sua qualidade de presidente da Sociedade Nova Iorquina para a Prevenção da Crueldade sobre os Animais — antes enfatizou que actuava neste caso, “determinado, no quadro legal aplicável, a impedir as frequentes crueldades praticadas sobre as crianças”. Este “Caso Mary Ellen”, foi o ponto de partida de um movimento mundial de apoio à criança maltratada ou negligenciada; nomeadamente nos Estados Unidos da América e na Grã-bretanha, os membros das já existentes sociedades humanistas de protecção dos animais, seguiram o exemplo de Henry Bergh e passaram a dar atenção, também, ao problema dos maus tratos infligidos a crianças. Em 1875, foi fundada em Nova Iorque a Sociedade Nova Iorquina para a Prevenção da Crueldade sobre Crianças (New York Society for the Prevention of Cruelty to Children – SPCC); esta foi a primeira instituição do seu género. Em 1877, a SPCC e várias outras sociedades para a prevenção da crueldade sobre animais de todo o país, juntaram-se para formar a Associação Humanista Americana (American Humane Association), que se vem ocupando, até à actualidade, do bem-estar das crianças e dos animais. Por todo o mundo, o Caso Mary Ellen espoletou uma vaga de interesse sobre as VAN BUEREN, GERALDINE, “The International Law on the Rights of the Child”, citada por DOLINGER, JACOB, in “A Criança no Direito Internacional”, pág. 81, nota 3 39 in http://www.americanhumane.org/about-us/who-we-are/history/mary-ellen-wilson.html Página 13 de 41 38

crianças, de que resultou o nascimento de muitos movimentos cívicos determinados à sua protecção. Entretanto, na Europa, o médico Janusz Korczak (nascido em Varsóvia em 1878, baptizado Henryk Goldszmit) dedicava a sua vida a cuidar de crianças, tendo desenvolvido um sistema próprio de educação; este sistema compreendia o reconhecimento de direitos à criança, nomeadamente o direito a ser amada, o direito a ser ouvida, o direito a ser respeitada, o direito a ser ele própria. “As crianças não são as pessoas de amanhã, são pessoas hoje. Elas têm o direito a serem tomadas a sério e as serem tratadas com carinho e respeito. Deve ser-lhes garantida a possibilidade de crescerem e tornarem-se seja quem for que estão destinadas a ser — a pessoa desconhecida que existe dentro de cada criança é a nossa esperança para o futuro. … As pessoas falam dos mais velhos com respeito. Mas falam das crianças com condescendência e sobranceria. Isto está errado, pois a criança também merece respeito. Ainda é pequena e fraca. Não sabe muitas coisas, não pode ainda fazer muitas coisas. Mas o seu futuro — o que ela vai ser quando crescer — impõe-nos que a respeitemos como respeitamos os mais velhos.”40 O pensamento de Janusz Korczak desempenhou um papel no desenvolvimento da reflexão sobre o tema dos direitos da criança, nomeadamente nos trabalhos preparatórios da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, segundo afirma um dos participantes do processo, Thomas Hammarberg, Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa, no prefácio do livro “Janusz Korczak, The Child’s Rignt to Respect”. A UNESCO declarou 1978/1979 o Ano de Korczak, para comemorar o centenário do seu nascimento, coincidentemente com o Ano da Criança decretado pela ONU. Em Dezembro de 1946, foi criada a UNICEF – Fundo Internacional de Emergência das Nações Unidas para as Crianças, com o fim de ajudar as crianças da Europa vítimas da II Guerra Mundial. No início da década de 50, o seu mandato foi alargado para responder às necessidades das crianças e das mães nos países em desenvolvimento. Em 1953, tornou-se uma agência permanente das Nações Unidas, passando a ser designar por Fundo das Nações Unidas para a Infância, mantendo embora a sigla inicial. Em 29/30 de Setembro de 1990 a UNICEF secretariou a reunião dedicada aos problemas das

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citado em “Korczak lectures – Janusz Korczak, The Child´s Right to Respect” Edição do Conselho da Europa, pág. Página 14 de 41

crianças, que teve lugar em Nova Iorque; a “Cimeira Mundial para as Crianças”41 foi o maior encontro de líderes mundiais, tendo comparecido 71 chefes de estado e 88 outros altos representantes, a maioria dos quais de nível ministerial. Foram adoptadas a “Declaração para a Sobrevivência, Protecção e Desenvolvimento das Crianças”42 e um “Plano de Acção para Implementação da Declaração nos anos 90”43. Entre 8 e 10 de Maio de 2002 teve lugar a Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU sobre Crianças, na qual participaram mais de 7.000 pessoas 44. Nesta Sessão Especial, participaram crianças como delegados oficiais e quatro governos (os da Holanda, da Noruega, da Suécia e do Togo) fizeram-se representar por jovens nas suas comunicações à Assembleia Geral. Do trabalho de construção de consenso, que durou mais de dois anos, resultou uma agenda para o futuro, focada em quatro prioridades: promoção de vidas saudáveis; promoção do acesso de todos a educação de qualidade; protecção das crianças contra o abuso, exploração e violência; combate ao HIV/SIDA. Esta Sessão Especial culminou com a adopção do documento “Um mundo para as crianças”. Neste documento, os líderes mundiais são convocados a completar a agenda da Cimeira Mundial para as Crianças de 1990, ainda não integralmente cumprida, e a perseguir outros objectivos, em particular aqueles da “Declaração do Milénio”45: «Reconhecemos que, ademais das nossas responsabilidades individuais para com as nossas próprias sociedades, temos uma responsabilidade colectiva de defender os princípios da dignidade humana, da igualdade e da equidade ao nível global. Enquanto lideres temos portanto um dever perante todas as pessoas do mundo, especialmente as mais vulneráveis e, em particular, as crianças do mundo, a quem o futuro pertence».

3 - A protecção da Criança no direito universal A protecção das crianças por via legislativa internacional tem os seus primórdios na Convenção aprovada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1919, a qual veio proibir o trabalho nocturno na indústria aos menores de 18 anos 46.

“World Summit for Children” “Declaration on the Survival, Protection and Development of Children” 43 “Plan of Action for implementing the Declaration in the 1990s” 44 http://www.unicef.org/specialsession/ 45 Resolução 55/2 da Assembleia Geral das Nações Unidas, aprovada na 55ª Sessão, em 08/09/2000 46 Decreto nº 15.361 de 03/04/1928, Diário do Governo, I Série, nº 207, de 14/04/1928 Página 15 de 41 41 42

Seguiu-se-lhe a Convenção sobre Supressão do Tráfico de Mulheres e Crianças, adoptada em 1921 pela Liga das Nações. Foi também sob os auspícios da Liga das Nações que, em 1924, veio a ser aprovada a Declaração de Genebra sobre Direitos das Crianças, que foi proclamada como a “Carta da Liga sobre a Criança”, assim redigida: «Pela presente Declaração dos Direitos da Criança, comummente conhecida como a Declaração de Genebra, homens e mulheres de todas as nações, reconhecendo que a Humanidade deve à criança o melhor que tem a dar, declara e aceita como sua obrigação que, acima e além de quaisquer considerações de raça, nacionalidade ou crença: I – A criança deve receber os meios necessários para seu desenvolvimento normal, tanto material como espiritual; II – A criança que estiver com fome deve ser alimentada; a criança que estiver doente precisa ser ajudada; a criança atrasada precisa ser ajudada; a criança delinquente precisa ser recuperada; o órfão e o abandonado precisam ser protegidos e socorridos; III – A criança deverá ser a primeira a receber socorro em tempos de dificuldades; IV – A criança precisa ter possibilidades de ganhar seu sustento e deve ser protegida de toda a forma de exploração; V – A criança deverá ser educada com a consciência de que seus talentos devem ser dedicados ao serviço de seus semelhantes.». A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, já contém referências à criança nos seus artigos 2547 e 2648.

“2 – A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimónio, gozam da mesma protecção social.” 48 “1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. 2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. 3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos.” Página 16 de 41 47

Em 20 de Novembro de 1959, a Assembleia Geral da ONU aprovou, pela Resolução da Assembleia Geral nº 1386, a Declaração dos Direitos da Criança, a qual proclama dez princípios: «Princípio 1º – A criança gozará dos direitos enunciados nesta Declaração. Estes direitos serão reconhecidos a todas as crianças sem discriminação alguma, independentemente de qualquer consideração de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou outra da criança, ou da sua família, da sua origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou de qualquer outra situação. Princípio 2º – A criança gozará de uma protecção especial e beneficiará de oportunidades e serviços dispensados pela lei e outros meios, para que possa desenvolver-se física, intelectual, moral, espiritual e socialmente de forma saudável e normal, assim como em condições de liberdade e dignidade. Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança. Princípio 3º – A criança tem direito desde o nascimento a um nome e a uma nacionalidade. Princípio 4º – A criança deve beneficiar da segurança social. Tem direito a crescer e a desenvolver-se com boa saúde; para este fim, deverão proporcionar-se quer à criança quer à sua mãe cuidados especiais, designadamente, tratamento pré e pós-natal. A criança tem direito a uma adequada alimentação, habitação, recreio e cuidados médicos. Princípio 5º – A criança mental e fisicamente deficiente ou que sofra de alguma diminuição social, deve beneficiar de tratamento, da educação e dos cuidados especiais requeridos pela sua particular condição. Princípio 6º – A criança precisa de amor e compreensão para o pleno e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade. Na medida do possível, deverá crescer com os cuidados e sob a responsabilidade dos seus pais e, em qualquer caso, num ambiente de afecto e segurança moral e material; salvo em circunstâncias excepcionais, a criança de tenra idade não deve ser separada da sua mãe. A sociedade e as autoridades públicas têm o dever de cuidar especialmente das crianças sem família e das que Página 17 de 41

careçam de meios de subsistência. Para a manutenção dos filhos de famílias numerosas é conveniente a atribuição de subsídios estatais ou outra assistência. Princípio 7º – A criança tem direito à educação, que deve ser gratuita e obrigatória, pelo menos nos graus elementares. Deve ser-lhe ministrada uma educação que promova a sua cultura e lhe permita, em condições de igualdade de oportunidades, desenvolver as suas aptidões mentais, o seu sentido de responsabilidade moral e social e tornar-se um membro útil à sociedade. O interesse superior da criança deve ser o princípio directivo de quem tem a responsabilidade da sua educação e orientação, responsabilidade essa que cabe, em primeiro lugar, aos seus pais. A criança deve ter plena oportunidade para brincar e para se dedicar a actividades recreativas, que devem ser orientados para os mesmos objectivos da educação; a sociedade e as autoridades públicas deverão esforçar-se por promover o gozo destes direitos. Princípio 8º – A criança deve, em todas as circunstâncias, ser das primeiras a beneficiar de protecção e socorro. Princípio 9º – A criança deve ser protegida contra todas as formas de abandono, crueldade e exploração, e não deverá ser objecto de qualquer tipo de tráfico. A criança não deverá ser admitida ao emprego antes de uma idade mínima adequada, e em caso algum será permitido que se dedique a uma ocupação ou emprego que possa prejudicar a sua saúde e impedir o seu desenvolvimento físico, mental e moral. Princípio 10º – A criança deve ser protegida contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial, religiosa ou de qualquer outra natureza. Deve ser educada num espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade universal, e com plena consciência de que deve devotar as suas energias e aptidões ao serviço dos seus semelhantes.» A declaração faz expresso apelo, no seu preâmbulo, à Declaração de Genebra de 1924 e à Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, assumindo assim a sua natureza

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tributária daqueles dois instrumentos49. Surpreendem-se nesta Declaração de 1959 evidentes novidades, relativamente à Declaração de 1924:  A criança passa, de mero destinatário dos cuidados preconizados, a sujeito de direito internacional, logo com capacidade de gozo de direitos e liberdades 50;  É reconhecido à criança o direito ao afecto (“amor e compreensão”, princípio 6º);  É reconhecido à criança o direito de brincar (“A criança deve ter plena oportunidade para brincar e para se dedicar a actividades recreativas”, princípio 7º, quarto parágrafo);  Introduz o conceito de interesse superior da criança (“best interest”, na versão inglesa; “l'intérêt supérieur”, na versão francesa; “interés superior”, na versão castelhana; “melhores interesses”, na versão brasileira). A este conceito, interesse superior, passa a ficar subordinada a actividade legislativa que tenha a criança por destinatária (princípio 2º); o melhor (superior) interesse da criança será o princípio directivo (guiding principle) dos responsáveis pela sua educação e orientação (princípio 7º, terceiro parágrafo). Como sucedia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, também esta Declaração dos Direitos da Criança estava destituída de força legal: tinha apenas «valor moral, histórico e filosófico, sem maiores consequências jurídicas»51. Outros instrumentos — além da Declaração Universal dos Direitos do Homem —, vieram a referir direitos das crianças: o Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e

“…WHEREAS the need for such special safeguards has been stated in the Geneva Declaration of the Rights of the Child of 1924, and recognized in the Universal Declaration of Human Rights and in the statutes of specialized agencies and international organizations concerned with the welfare of children…” 50 DOLINGER, JACOB, “A criança no direito internacional”, pág. 83 51 DOLINGER, JACOB, ibidem, pág. 84 Página 19 de 41 49

Culturais de 1966 [artigos 10, nº 352; 12, nº 2, a)53; 13, nº 154]; o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 (artigo 2455). Em 1 de Janeiro de 1979, o Secretário-geral da ONU assinou a proclamação desse ano de 1979, como o ”Ano Internacional da Criança”. Sob proposta da Polónia, foi deliberada pela Assembleia Geral da ONU cometer à Comissão de Direitos Humanos a preparação de um tratado, que consagrasse legalmente os princípios proclamados pela Declaração de 1959. Em 20 de Novembro de 1989, veio a ser aprovada a “Convenção dos Direitos da Criança”56, que entrou em vigor em 2 de Setembro de 1990, depois de depositado, junto do Secretário-geral da ONU, o 20º instrumento de ratificação ou adesão. De todos os membros da ONU, apenas a Somália e os Estados Unidos não ratificaram a Convenção57 (até à data presente, Agosto de 2014). Para os efeitos da Convenção, “criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”58. A Convenção — tal como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de que se confessa tributária — trata de direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos; mas vai mais

“Medidas especiais de protecção e de assistência devem ser tomadas em benefício de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação alguma derivada de razões de paternidade ou outras. Crianças e adolescentes devem ser protegidos contra a exploração económica e social. O seu emprego em trabalhos de natureza a comprometer a sua moralidade ou a sua saúde, capazes de pôr em perigo a sua vida, ou de prejudicar o seu desenvolvimento normal deve ser sujeito à sanção da lei. Os Estados devem também fixar os limites de idade abaixo dos quais o emprego de mão-de-obra infantil será interdito e sujeito às sanções da lei.” 53 “As medidas que os Estados Partes no presente Pacto tomarem com vista a assegurar o pleno exercício deste direito deverão compreender as medidas necessárias para assegurar:… A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o são desenvolvimento da criança” 54 “Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa à educação. Concordam que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido da sua dignidade e reforçar o respeito pelos direitos do homem e das liberdades fundamentais. Concordam também que a educação deve habilitar toda a pessoa a desempenhar um papel útil numa sociedade livre, promover compreensão, tolerância e amizade entre todas as nações e grupos, raciais, étnicos e religiosos, e favorecer as actividades das Nações Unidas para a conservação da paz.” 55 “1. Qualquer criança, sem nenhuma discriminação de raça, cor, sexo, língua, religião, origem nacional ou social, propriedade ou nascimento, tem direito, da parte da sua família, da sociedade e do Estado, às medidas de protecção que exija a sua condição de menor. 2. Toda e qualquer criança deve ser registada imediatamente após o nascimento e ter um nome. 3. Toda e qualquer criança tem o direito de adquirir uma nacionalidade.” 56 Ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 49/90 57 https://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=IV-11&chapter=4&lang=en 58 artigo 1º Página 20 de 41 52

longe, quando introduz novos conceitos, como o do “direito à identidade”59; embora implícito na Declaração (quando no seu artigo 6º afirma o direito de todo o ser humano ao reconhecimento da personalidade jurídica), aí não se declara expressamente o direito à identidade pessoal. A Convenção estipula, no seu artigo 3º, nº 1, que «Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.». No artigo 12º, a Convenção vem instituir o direito da criança a ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou organismos adequado; não é fixado qualquer limite de idade, ficando este direito de ser ouvida apenas condicionado à posse, pela criança, de “capacidade de discernimento” (child who is capable of forming his or her own views). A Convenção instituiu o Comité dos Direitos da Criança60, ao qual ficou confiada a tarefa de “examinar os progressos realizados pelos Estados Partes no cumprimento das obrigações que lhes cabem nos termos” da Convenção. Na primeira sessão do seu 22º encontro, que teve lugar em 15/10/1991 o Comité produziu o documento “Linhas gerais visando a forma e conteúdo dos relatórios iniciais61”, no qual instituiu como “Princípios gerais”: «13. Deve ser fornecida informação relevante, incluindo as principais medidas legislativas, judiciais, administrativas ou outras, em vigor ou previstas, factores e dificuldades encontradas e progresso alcançado na implementação das disposições da Convenção, e prioridades de implementação e objectivos específicos para o futuro, com respeito a: (a) Não-discriminação (artº 2); (b) Melhor interesse da criança (artº 3); (c) O direito à vida, sobrevivência e desenvolvimento (artº 6); (d) Respeito pelas opiniões da criança (artº 12).». A Comissão de Direitos Humanos da ONU preparou dois Protocolos Opcionais à Convenção,

artigo 8º: “Os Estados Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência ilegal.” 60 artigo 43º, nº 1 61 “General guidelines regarding the form and content of initial reports to be submitted by states parties under article 44, paragraph 1 (a), of the convention” Página 21 de 41 59

adoptados e abertos para assinatura, ratificação ou adesão pela Resolução A/RES/54/263, da Assembleia Geral da ONU, de 25 de Maio de 2000: o primeiro, visando “A venda de crianças, prostituição infantil e pornografia infantil”62, entrou em vigor em 18 de Janeiro de 2002; o segundo, visando “A participação de crianças em conflitos armados” entrou em vigor em 12 de Fevereiro de 200263. Na 66ª sessão da Assembleia Geral das ONU que teve lugar em 19/12/2011, foi adoptado e aberto para assinatura pela Resolução A/RES/66/138 o 3º Protocolo Opcional à Convenção, sobre um “Procedimento de Comunicações”, o qual entrou em vigor em 14/04/201464. Este Protocolo veio permitir o direito de indivíduos ou grupo de indivíduos sujeitos à jurisdição de um Estado parte na Convenção, por si ou através de representante, apresentarem comunicações ao Comité dos Direitos das Crianças alegando ser(em) vítima(s) de violação por esse Estado de algum ou alguns dos direitos estatuídos pela Convenção ou pelos respectivos Protocolos opcionais. A Assembleia Geral da ONU adoptou, em 15 de Novembro de 2000, pela sua Resolução 55/25, a Convenção contra Crime Organizado Transnacional e, em suplemento, dois Protocolos, um dos quais tem o objectivo de “Prevenir, Suprimir e Punir Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças”65. Em 20 de Novembro de 2001 o Conselho de Segurança da ONU adoptou a Resolução 1379 em que, recordando várias resoluções anteriores, faz apelo a todos os envolvidos em conflitos armados para que respeitem as disposições da lei internacional relativas aos direitos e protecção das crianças.

4 - A Criança no Direito Internacional Privado A Conferência Permanente de Direito Internacional Privado da Haia, produziu diversas convenções pertinentes às crianças, nomeadamente quanto a alimentos, adopção, sequestro de filhos; quanto a protecção propriamente dita, sucederam-se três convenções: a de 1902

Ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 14/2003, de 5 de Março Ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 22/2003, de 28 de Março 64 Ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 100/2013, de 9 de Setembro 65 Ratificado pelo Decreto do Presidente da República nº 19/2004 Página 22 de 41 62 63

(Convenção para Regular a Tutela de Menores66); a de 1961 (Convenção Relativa à Competência das Autoridades e à Lei Aplicável em Matéria de Protecção de Menores 67); e a de 1996 (Convenção da Haia de 1996 Relativa à Jurisdição, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e de Medidas de Protecção dos Filhos68); segundo o artigo 51º desta última, a Convenção de 1996 substitui as de 1902 e 1961, sem prejuízo do reconhecimento das medidas tomadas na vigência da Convenção de 1961. A Convenção de 1996 prescreve, no seu artigo 23º, que as medidas tomadas pelas autoridades de um Estado Contratante serão reconhecidas ex vi lege em todos os restantes Estados Contratantes; mas o mesmo artigo, no seu número 2, estipula que o conhecimento será negado, nomeadamente, se a medida foi tomada no contexto de procedimento judicial ou administrativo sem ter sido dada à criança (salvo em caso de urgência) a oportunidade de ser ouvida, em violação da lei do Estado em que o reconhecimento é pretendido; no Relatório Explicativo da Convenção, de Paul Lagarde, a recusa de reconhecimento na falta de audição da criança é explicada nos seguintes termos: «Este fundamento de recusa é directamente inspirado pelo Artigo 12, parágrafo 2, da Convenção das Nações Unidas sobre Direitos das Crianças. Não significa que a criança deva ser ouvida em todos os casos. Foi feito notar, com boa razão, que não é sempre do interesse da criança ter que emitir uma opinião, em particular se os dois pais estão de acordo quanto à medida a tomar. É apenas quando a falta de audição da criança é contrária aos princípios fundamentais do Estado requerido que tal pode justificar a recusa de reconhecimento.».

5 - A protecção da Criança no sistema europeu Em 25 de Janeiro de 1996, foi assinada em Estrasburgo a “Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças”, a qual entrou em vigor em 1 de Julho de 2000, após as três ratificações necessárias, incluindo as de dois estados membros do Conselho da Europa; aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República nº 7/2014, de 13 de Dezembro de 2013 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 3/2014, publicados

Carta Régia de 07/02/1907, Diário do Governo º 62, de 12/06/1902 Decreto-lei nº 48494, de 22/07/1968 68 Decreto 52/2008 de 13 de Novembro Página 23 de 41 66 67

no Diário da República, 1ª série, nº 18, de 27 de janeiro de 2014, a CEEDC entrou em vigor em Portugal no dia 1 de Julho de 201469. A Convenção aplica-se aos menores de 18 anos70 e tem por objecto, no melhor interesse das crianças («in the best interests of children»), promover os seus direitos, garantir-lhes direitos processuais e facilitar o exercício desses direitos através da asseguração de que as crianças são informadas e admitidas a participar, pessoalmente ou por intermédio de outras pessoas ou instituições, em procedimentos perante uma autoridade judicial que as afectem71; para efeitos da Convenção, “procedimentos perante uma autoridade judicial afectando crianças” são os processos de família, em particular aqueles que envolvam o exercício de responsabilidades parentais, tais como residência e acesso às crianças72. A Convenção atribui à criança sujeita a procedimento judicial os direitos processuais de ser informada e de expressar as suas opiniões no âmbito do processo e de solicitar a nomeação de um representante especial; nos termos do artigo 2º da Convenção, por “representante especial” entende-se «uma pessoa, tal como um advogado, ou uma instituição nomeada para intervir perante uma autoridade judicial em representação de uma criança». O exercício destes direitos está ou pode ser condicionado: (i) no caso do direito a ser informada e expressar as suas opiniões, depende do reconhecimento, pela lei interna, que é possuidora de “suficiente entendimento”73; (ii) no caso do direito de solicitar a nomeação de representante especial, os Estados podem limitar o seu exercício às crianças a que a lei interna reconheça terem “suficiente entendimento”74.

II - O Superior Interesse da Criança Como já vimos supra, a Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe, no seu artigo 3º, nº 1, que «Todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.» (versão portuguesa). A expressão

Artigo 21º, nº 4 Artigo 1, nº 1 71 Artigo 1, nº 2 72 Artigo 1, nº 3 73 Artigo 4º, nº 1 74 Artigo 4º, nº 2 69 70

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que consta da versão inglesa da Convenção é “the best interests of the child shall be a primary consideration”; já quanto à versão francesa a expressão é “l'intérêt supérieur de l'enfant doit être une considération primordiale”; na versão castelhana “una consideración primordial a que se atenderá será el interés superior del niño”; na versão brasileira “devem considerar, primordialmente, o interesse maior da criança”. A Declaração Universal dos Direitos da Criança, no seu princípio 2º, estipulava que «Ao promulgar leis com este fim, a consideração fundamental a que se atenderá será o interesse superior da criança.» (versão portuguesa). A expressão constante da versão inglesa é «In the enactment of laws for this purpose, the best interests of the child shall be the paramount consideration.»; a versão francesa prevê «Dans l'adoption de lois à cette fin, l'intérêt supérieur de l'enfant doit être la considération determinante»; e na espanhola lê-se: «Al promulgar leyes con este fin, la consideración fundamental a que se atenderá será el interés superior del niño.»; já a versão brasileira prevê «Na instituição das leis visando este objectivo, levar-se-ão em conta sobretudo, os melhores interesses das crianças». Entre as versões inglesa da Convenção e da Declaração, surpreende-se uma evidente diferença no que toca à consideração que deve ser dada aos “best interests of the child”: enquanto na Declaração devia ser A consideração mais importante (paramount = more important than anything else75), na Convenção será UMA consideração primária (a primary consideration). Parece existir “uma manifesta involução76” que JACOB DOLINGER (loc. cit.) reconhece, mas tem por feliz: «O interesse da criança, individualmente considerada, poderá conflituar com o interesse da colectividade das crianças ou com a ordem pública, i. e., com algum princípio fundamental de natureza legal constitucional, com algum compromisso internacional, com algum princípio moral ou com algum interesse económico inalienável, que, em última análise, seja benéfico à própria criança cujo problema está sendo examinado». Por outro lado, constata-se também uma diferença evidente, quer na Declaração, quer na Convenção, entre as versões portuguesa, espanhola e francesa, por um lado, e as versões inglesa e brasileira, por outro; enquanto as primeiras elegem o vocábulo “superior”, as segundas elegem os vocábulos “best”, “maior” e “melhores”. Será porventura despicienda uma reflexão profunda sobre a escolha das palavras; mas não podemos deixar de ponderar 75 76

apud Longman Dictionary of Contemporary English DOLINGER, JACOB, “A Criança no Direito Internacional”, pág. 89 Página 25 de 41

que, pelo menos em português, dizer “o interesse superior da criança” parece não ser o mesmo que dizer “os melhores interesses da criança”; de algum modo, fica-nos a sensação que, no primeiro caso, nos estamos referindo a uma “criança ideal” e a um seu “superior interesse”, também ideal; enquanto no segundo já pensamos numa concreta criança, aquela cujo problema estamos procurando resolver no sentido dos seus melhores interesses. Seja como for, dúvidas não há de que, com qualquer dos vocábulos — “superior”, “maior” ou “melhor” —, estamos em presença de conceito indeterminado; trata-se de «uma noção em desenvolvimento contínuo e progressivo» face ao qual «o juiz não se limita a declarar o direito mas procede a uma adaptação deste aos factos e às situações sociais»; ao utilizar este conceito, o legislador permite que o juiz, vendo reforçados os seus poderes interpretativos, decida «em oportunidade»77. Tratando-se de um conceito que se apresenta estreitamente ligado à realidade quotidiana, não se mostra definível em abstracto, devendo antes «ser investigado, em cada caso concreto, sempre e sempre de novo»78. Mas será este um conceito normativo — contendo uma única solução possível, a descobrir por via de interpretação —, ou será antes um «conceito discricionário, portador de várias soluções, igualmente válidas, cuja escolha dependeria de um parecer pessoal do juiz»79? A esta questão responde MARIA CLARA SOTTOMAYOR, defendendo que é possível distinguir, dentro do conceito, duas zonas: a do núcleo e a do halo. O núcleo pode ser preenchido com recurso a valoração de factores objectivos, verificáveis e efectivamente verificados, enquanto no halo se verifica um maior grau de incerteza, impossível de superar mediante o recurso a princípios jurídicos ou a valores gerais, exigindo do juiz uma decisão pessoal; entre estas duas áreas extremas existiria uma zona intermédia, na qual o julgador penderia para critérios objectivos ou para a sua concepção pessoal. E acrescenta a mesma Autora: «Nas questões de família… a descoberta do “justo” faz apelo a processos psicológicos de decisão não inteiramente racionalizáveis, o que não significa que sejam irracionais. No entanto, o julgador não pode seguir acriticamente a conclusão a que o conduz o seu sentimento jurídico, pois nele poderiam estar contidos os seus preconceitos, a SOTTOMAYOR, MARIA CLARA, “Exercício do Poder Paternal Relativamente à Pessoa do Filho…”, págs. 51/53 idem, ibidem, pág. 54, citando outros autores 79 idem, ibidem, ibidem, pág. 59 Página 26 de 41 77 78

sua experiência pessoal da vida, a sua visão do mundo»80. Relativamente ao «interesse do menor» escrevem RUI EPIFÂNIO e ANTÓNIO FARINHA81: «Trata-se, afinal, de uma noção cultural intimamente ligada a um sistema de referências vigente em cada momento, em cada sociedade, sobre a pessoa do menor, sobre as suas necessidades, as condições adequadas ao seu bom desenvolvimento e ao seu bem-estar material e moral». ALMIRO SIMÕES RODRIGUES82 defende que «O respeito pelo interesse do menor passa necessariamente pela definição de um direito do menor em que sejam considerados os diferentes estádios do seu desenvolvimento e as consequentes capacidades de que vai dispondo, designadamente a de informação e expressão… A definição daquele direito novo muito ganhará se for orientada numa perspectiva interdisciplinar: a pedagogia, sociologia, antropologia cultural, psicologia (social, do desenvolvimento e cognitiva) além de outras, proporcionarão, certamente, contributos inestimáveis». O mesmo Autor83 afirma que o “interesse do menor” «só poderá definir-se através da abordagem e actuação sistémica e interdisciplinar, porquanto apenas este procedimento garante ao menor a aprendizagem da decisão e escolha de valores e formas de se situar e de se relacionar com os outros»; e acrescenta: «Interesse fundamental da criança é desenvolver-se num ambiente familiar, em que possa estabelecer relações afectivas estáveis e contínuas que lhe permitam dispor de um clima de segurança, indispensável à prossecução das suas tarefas de desenvolvimento fundamentais.». Descobrir qual o “interesse do menor” em cada caso concreto pode ser uma tarefa particularmente difícil. Quando estão presentes factos que se impõem, objectivamente, como condicionadores da decisão em determinado sentido (os constitutivos do núcleo do conceito), a questão pode ser resolvida sem angústias especiais; mas quando estes factos não estão presentes e o julgador tem que apoiar-se apenas no halo do conceito, as dificuldades aumentam.

idem, ibidem, pág. 71 “Organização Tutelar de Menores”, pág. 326 82 Revista “Infância e Juventude”, nº 1, Janeiro-Março de 1985, pág. 20 83 Revista “Infância e Juventude”, nº 4, Outubro-Dezembro de 1986, pág. 15 Página 27 de 41 80 81

Fixação do conteúdo do conceito por via legislativa Uma das vias para resolver estas dificuldades é a de, por via legislativa, indicarem-se factores a ter em conta obrigatoriamente pelo juiz, assim limitando a discricionariedade da sua decisão. Em Portugal, a Assembleia da República, através da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (Subcomissão de Igualdades de Oportunidades), procedeu a uma avaliação dos sistemas de acolhimento, de protecção e tutelares de crianças e jovens, tendo sido produzido um Relatório, apresentado publicamente em 02/05/2006. Entre as “Recomendações” apresentadas por esse Relatório, consta no ponto «2. quanto aos instrumentos: a. clarificação dos conceitos: superior interesse da criança, urgência, perigo;…». O Instituto de Apoio à Criança (IAC)84, anunciou em “press release” de 11/04/2008: «A Direcção e a Presidente Executiva do Instituto de Apoio à Criança serão recebidos pelo Presidente da Assembleia da República, no próximo dia 15 de Abril, pelas 15 horas, para entrega de um documento propondo a adopção de medidas legislativas para clarificação do conceito legal de “Superior Interesse da Criança”, elaborado com o contributo de diversas personalidades credenciadas na área dos Direitos da Criança e subscrito por pessoas de diferentes áreas profissionais (juristas, pediatras, pedopsiquiatras, psicólogos, educadores, professores, sociólogos, etc). Neste documento propõe-se a consagração legal expressa do direito da criança à preservação das suas ligações psicológicas profundas e à continuidade das relações afectivas gratificantes e de seu interesse, direito reconhecido com base no aprofundamento dos conhecimentos científicos actuais. Aconselha-se, também, reafirmar o direito da criança a ser ouvida, a garantir a livre expressão do seu pensamento e a participação nas decisões que lhe dizem respeito que o artº 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança reconhece sem qualquer limite de idade, e já consagrado na jurisprudência do

“O IAC é uma instituição sem fins lucrativos, criado em 1983 por um grupo de pessoas de diferentes áreas profissionais – médicos, magistrados, professores, psicólogos, juristas, sociólogos, técnicos de serviço social, educadores e tantos outros. Tem por objectivo principal contribuir para o desenvolvimento integral da criança, na defesa e promoção dos seus direitos, sendo a criança encarada na sua globalidade como sujeito de direitos na família, na escola, na saúde, na segurança social ou nos seus tempos livres.” “Mensagem da Presidente” in http://www.iacrianca.pt/ Página 28 de 41 84

Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.…». Pode e deve perguntar-se qual a razão destas iniciativas — uma do órgão legislativo e outra da sociedade civil —, no sentido da “clarificação do conceito de superior interesse da criança”. A resposta é dada no Relatório supra referido: «Já quanto aos aplicadores do Direito, nomeadamente quanto os Tribunais, constata-se que os magistrados não estão convenientemente preparados no âmbito das matérias “ser criança”. É necessário que a “cultura judiciária” passe a estar atenta aos sinais do interesse superior da criança.». Será possível, por via legislativa, fixar o conteúdo de um conceito indeterminado? MARIA CLARA SOTTOMAYOR dá notícia de ordenamentos jurídicos em que tal sucedeu 85. O “CHILD CUSTODY ACT OF 1970” do Estado do Michigan, Estados Unidos da América86, é a lei, entrada em vigor em 01/04/1971, pela qual foram: declarados os direitos dos menores; estabelecidos os direitos e deveres relativos à sua guarda, alimentos e visitas em situações de litígio; estabelecidos direitos e deveres relativos aos alimentos a filhos maiores em determinadas circunstâncias; regulados determinados processos e recursos; e revogadas outras leis ou partes delas. Na sua secção 3., é definido o conceito “best interests of the child” para efeitos da interpretação e aplicação dessa lei: é a soma total dos factores que depois enuncia e que são os seguintes: (a) amor, afecto e outros laços emocionais existentes entre as partes envolvidas e a criança; (b) capacidade e disposição das partes envolvidas para dar à criança amor, afecto e orientação e para continuar a educação religiosa da criança na sua fé, caso exista; (c) a capacidade e disposição das partes envolvidas para providenciar à criança alimento, vestuário, cuidados médicos e outras necessidades materiais; (d) o período de tempo que a criança tenha vivido num ambiente estável e satisfatório e a conveniência da manutenção da sua continuidade; (e) a permanência futura, como uma unidade familiar, do lar de acolhimento existente ou proposto; (f) a boa formação moral das partes envolvidas; (g) a saúde mental e física das partes envolvidas; (h) os antecedentes da criança no que respeita ao seu lar, à sua escola e à sua comunidade; (i) a preferência da criança, desde que seja razoável e o tribunal considere que a criança tem idade suficiente para expressar essa preferência; (j) a vontade e capacidade de cada uma das partes para facilitar e encorajar uma

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loc. cit., pág. 66, nota 141 in http://www.legislature.mi.gov Página 29 de 41

relação próxima e contínua entre a criança e o progenitor a quem não seja confiada ou entre a criança e os progenitores, no caso de não ser confiada a nenhum deles; (k) violência doméstica, independentemente de a quem foi dirigida ou de a criança ter a ela assistido; (l) qualquer outro factor considerado pelo tribunal como relevante para uma situação de disputa de guarda em concreto. O “CHILDREN ACT 1989”, é a lei passada pelo Parlamento Inglês em 16/11/1989 87, para: reformar a lei relativa às crianças; providenciar serviços das autoridades locais para crianças desamparadas e outras; alterar a lei respeitante ao acolhimento de crianças, em lares de acolhimento registados, em lares das comunidades locais, em lares familiares voluntários e em lares institucionais voluntários; tomar medidas com respeito a famílias de substituição, creches e infantários e adopção; e tudo o que ao antecedente respeite. O nº 1 — intitulado “Welfare of the child” —, da sua Parte I, Introdução, determina que, quando um tribunal decide qualquer questão relativa à educação de uma criança ou à administração da propriedade de uma criança, ou a aplicação de qualquer rendimento dela resultante, o bem-estar da criança será a mais importante consideração; em quaisquer procedimentos nos quais surja qualquer questão respeitante à educação de uma criança, o tribunal terá sempre em vista o princípio geral de que qualquer demora na decisão da questão é susceptível de prejudicar o bem-estar da criança; quando o tribunal decidir sobre fixação, alteração ou cessação de regime de visitas e haja oposição de qualquer das partes envolvidas e quando o tribunal decidir sobre fixação, alteração ou cessação de medida de protecção, deve ter-se em conta particularmente (a) os desejos e sentimentos da criança em causa que seja possível apurar (atendendo à respectiva idade e entendimento); (b) as suas necessidades físicas, emocionais e educacionais; (c) os prováveis efeitos nela de qualquer mudança de circunstâncias; (d) a sua idade, sexo, antecedentes e quaisquer características da criança que o tribunal considere relevantes; (e) qualquer mal que a criança tenha sofrido ou esteja em risco de sofrer; (f) a capacidade de satisfazer as necessidades da criança, de cada um dos progenitores ou de qualquer outra pessoa relativamente a quem o tribunal considere a questão relevante; (g) o quadro de poderes concedidos ao tribunal por esta lei no procedimento em causa. No nº 5, dispõe que, quando um tribunal estiver a considerar determinar, ou não, uma ou mais medidas com respeito a uma criança ao abrigo desta lei, não 87

in http://www.opsi.gov.uk/ Página 30 de 41

decidirá determinar a medida, ou qualquer das medidas, a não ser que considere que, fazê-lo, será melhor para a criança, do que não determinar medida nenhuma.

A interdisciplinaridade na fixação do conceito Como já vimos, ALMIRO RODRIGUES defende uma perspectiva interdisciplinar; MARIA CLARA SOTOMAYOR secunda-o, dizendo que «A dimensão interdisciplinar do conceito de interesse da criança postula… a assistência da psicologia e em geral de todas as ciências humanas para o preenchimento do seu conteúdo, atenuando a dificuldade da decisão para o juiz.»88. Mas logo acrescenta: «…as teorias psicológicas não podem fornecer, devido ao seu carácter hipotético e genérico, uma resposta certa e indiscutível à questão da atribuição da guarda dos filhos», pelo que «Os dados fornecidos pelos peritos ajudarão o tribunal a determinar de forma mais profunda quais são essas circunstâncias. Mas o parecer por eles emitido quanto à resolução final terá apenas um valor indicativo…». O Regime Geral do Processo Tutelar Cível89 prevê no artigo 2-1 que o juiz pode, em qualquer fase do processo, nomear ou requisitar assessores técnicos a fim de assistirem a diligências, prestarem esclarecimentos, realizarem exames ou elaborarem pareceres; as informações, relatórios, exames e pareceres que venham a ser incorporados no processo são sujeitos ao contraditório das partes, as quais podem pedir esclarecimentos, juntar outros elementos ou requerer a solicitação de informações que considerem necessárias90. Como vimos anteriormente, uma das inovações da Declaração de 1959, foi a consagração do direito da criança ao afecto (princípio 6º); a Convenção de 1989 reconheceu que a criança, para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, deve crescer num ambiente familiar, em clima de felicidade, amor e compreensão (considerando 6º). Parece evidente que a avaliação do ambiente familiar da criança, nomeadamente no que ao clima de felicidade, amor e compreensão respeita, não pode ser feita pelo juiz com base apenas em prova testemunhal; e é também evidente que as declarações dos adultos envolvidos não podem seriamente fundamentar — por si só —, uma decisão: se as questões relativas ao poder paternal estão sendo resolvidas por via judicial, parece seguro que as partes loc. cit., pág. 74 Lei nº 141/2015, de 8 de Setembro 90 Artigo 25 88 89

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não vêm os mesmos assuntos com os mesmos olhos, e não chegam às mesmas conclusões. Pode o juiz socorrer-se de presunções, mas estas apenas onde a prova testemunhal caiba 91. Pode (deve) o juiz ouvir a criança, posto que a sua maturidade lhe permita formar e expressar uma opinião. Mas o tribunal será o melhor ambiente para uma criança expressar uma opinião, caso a tenha formado? A pergunta é retórica. Pode e deve o juiz socorrer-se da assessoria técnica; os assessores nomeados ou requisitados são peritos, a quem competirá92 descobrir (através de entrevistas, testes, etc), articular (perante o tribunal, emoções difíceis de exprimir pelas partes), esclarecer (o tribunal, sobre factores e considerações relevantes) e analisar (aplicando os seus conhecimentos científicos ou técnicos a fontes de prova, para ajudar a sua revelação ao tribunal). ALMIRO RODRIGUES constata93 uma coincidência histórica: «No mesmo ano (1959) em que a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovava a Declaração dos Direitos da Criança, John Bowlby apresentava uma nova concepção de relação afectiva e pela primeira vez empregou o termo “attachment” para a exprimir.». E interroga: «Terão, nessa altura, os juristas e os psicólogos feito ou desejado fazer um congresso para, por um lado, com a Declaração dos Direitos da Criança e, por outro, com as novas concepções de atmosfera afectiva, discutir e delinear novas alternativas?…».

III  A relação materno/paterno/filial A estrutura de parentesco fundou-se durante muito tempo na existência de vínculo matrimonial e na presunção “pater is est”94; esta presunção, de que o pai da criança era o marido da mãe, tinha uma função social, de protecção da dignidade do casamento 95; mas mesmo neste regime a maternidade e a paternidade sempre foram considerados como factos biológicos; «O sangue foi sempre a expressão privilegiada dos vínculos entre as pessoas. “O sangue é a vida” e quem dá o sangue dá a vida.»96.

Código Civil, artigo 351 SOTTOMAYOR, MARIA CLARA, ibidem, pág. 80 93 Revista “Infância e Juventude”, nº 4, Outubro-Dezembro de 1986, pág. 11 94 “Pater is est quem nuptiae demonstrant” = presunção impeditiva da investigação da paternidade, se o marido da mãe a não negar 95 COELHO, FRANCISCO PEREIRA e OLIVEIRA, GUILHERME DE, “Curso de Direito de Família”, Vol. II, Tomo I, pág. 23 96 OLIVEIRA, GUILHERME DE, comunicação apresentada no Colóquio “O Sangue e os Afectos”, Coimbra, 9/10 de Maio de 2008, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Centro do Direito da Família Página 32 de 41 91 92

A evolução da ciência — por um lado, no que toca à forma de determinação pericial da paternidade e, por outro, no que toca à diversificação das técnicas reprodutivas artificiais —, veio de certa forma pôr em crise a “verdade biológica” como paradigma da determinação da relação paterno-materno/filial97. No que toca às técnicas reprodutivas, percorreu-se um longo caminho desde a fertilização in vitro, produzida com material genético dos futuros pais, até à mãe hospedeira, que não contribui com qualquer material genético, mas apenas “fornece” o acolhimento físico ao feto. Como é evidente, esta técnica pode levantar — e, de facto, levanta —, problemas jurídicos que não se compadecem com as soluções que há poucas décadas eram o “estado da arte”; quem é a mãe: a que doa o óvulo, a que fornece a hospedagem, ou a que contratou uma e outra para lhe fornecerem um filho? No Estado da Califórnia, Estados Unidos da América98, os que pretendem vir a ser os futuros pais devem outorgar, com as outras partes envolvidas, um contrato, previamente à fecundação do óvulo; antes do nascimento da criança, os futuros pais devem dar entrada, no tribunal com jurisdição no local onde a criança vai nascer, de uma petição para estabelecimento de maternidade/paternidade/filiação; logo que os documentos que estabelecem a relação materno/paterno/filial são despachados por um juiz, a guarda do nascituro é atribuída aos futuros pais tão logo os médicos consintam na remoção da criança do hospital de nascimento; o Tribunal também dá ordem ao hospital de nascimento para inserir no certificado de nascimento os nomes dos futuros pais; assim se elimina a necessidade de uma posterior adopção e se reconhece a relação materno/paterno/filial que as partes tinham em vista. O uso da “gravidez de substituição” está longe de ser comum; mas já o não está tanto o recurso a bancos de esperma ou/e de óvulos, por pessoas que, por natureza ou disposição, não seguem os métodos clássicos de procriação. Onde fica a verdade biológica nestes casos? Quem é o pai, quem é a mãe? Quem deu (vendeu) o material genético? Quem desejou a criança e depois de a ter consigo a considerou seu/sua filho/a e a tratou como tal? O sangue, ou o afecto?

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MÓNACO, GUSTAVO FERRAZ DE CAMPOS, loc. cit., pág. 201 In http://leginfo.legislature.ca.gov/faces/billNavClient.xhtml?bill_id=201120120AB1217 Página 33 de 41

«Os afectos — por si sós — tiveram sempre uma expressão limitada, no Direito. Na verdade, os afectos, raramente foram valorizados para fundamentar, ou densificar, uma relação jurídica. Mas a importância dos afectos tem crescido; o Direito tende a valorizar e a proteger as relações sociais e afectivas estabilizadas, mesmo com o sacrifício da “verdade biológica”»99. A sócio-afectividade ganha terreno como “elemento proeminente para o estabelecimento da filiação”100; o comportamento das pessoas que integram a relação, o afecto, «em muitos casos é o mais hábil para revelar quem efectivamente são os pais». Ou como diz MARIA CLARA SOTOMAYOR: «Verdadeiros pais são os pais psicológicos, ou seja, aqueles que cuidam da segurança, da saúde física e do bem-estar emocional das crianças… O respeito pela criança como pessoa significa respeito pelas suas relações afectivas. Este respeito prevalece sobre a empatia que possamos ter, como adultos, com os sentimentos dos pais»101.

I V  « A s c r i a n ç a s n ã o s ã o a d u l t o s e m m i n i a t u r a . » 102 A criança não é um mero apêndice do mundo adulto, um recipiente passivo dos cuidados parentais103: ao contrário, a criança interage com o seu meio ambiente, de acordo com as suas características inatas; esta interacção — e não uma atitude reactiva —, é a responsável pelas inúmeras variantes do carácter e da personalidade humanas, nomeadamente aquelas constatadas entre irmãos conviventes no mesmo círculo familiar. As crianças diferenciam-se dos adultos em várias instâncias: (i) a criança muda constantemente de um patamar de desenvolvimento para outro; (ii) a criança tem um sistema congénito de sentido do tempo, baseado na urgência de satisfação das suas necessidades; (iii) a criança entende os acontecimentos externos por referência a si própria (o nascimento de um irmão é interpretado como um acto hostil dos seus pais, a doença de um destes, como rejeição); (iv) na criança, a irracionalidade — correlatada aos desejos e impulsos primários — , domina grande parte do seu funcionamento; (v) a criança não tem noção da ligação biológica, a qual é adquirida muito mais tarde. O adulto desempenha um papel socializador da criança: (i) sujeitando-a a uma disciplina OLIVEIRA, GUILHERME DE, comunicação citada MÓNACO, GUSTAVO FERRAZ DE CAMPOS, ibidem 101 SOTTOMAYOR, MARIA CLARA, “A Nova Lei da Adopção” in “Direito e Justiça”, Vol. XVIII, 2004, II, pág. 243 102 GOLDSTEIN, JOSEPH e. a. “The Best Interests of The Child”, pág. 8 103 idem, ibidem, pág. 9 Página 34 de 41 99

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horária, dá-lhe a primeira noção de que a gratificação imediata não é sempre possível, o que reforça a capacidade da criança para tolerar o adiamento da gratificação, assim evitando a frustração; (ii) quando brinca com a criança que exige a inoportuna satisfação imediata de um qualquer desejo e lhe conta histórias, o adulto ajuda a criança a aguardar pela gratificação do seu desejo, obtendo gratificação parcial; (iii) o adulto que reage ao comportamento da criança louvando-o ou censurando-o, lança as fundações do autocontrolo da criança relativamente aos seus próprios impulsos. A relação da criança com os seus cuidadores (em regra, os pais, rectius a mãe) não é simples; começa inevitavelmente pela satisfação das necessidades da criança de alimento e calor, mas se esta satisfação for feita rotineira e friamente pelo cuidador, não se estabelece entre este e a criança uma relação; esta surge apenas com uma interacção diária mutuamente satisfatória, com partilha de intimidade física e de experiências. A continuidade da relação materno/paterno/filial é essencial para o desenvolvimento saudável da criança104, pois o crescimento é um processo que cria nela tensões internas; a instabilidade dos processos mentais presentes na criança, durante todo o percurso do seu desenvolvimento, exige a exposição a um ambiente que a criança sinta como fornecendo-lhe apoio; a descontinuidade da relação materno/paterno/filial afecta, na criança em idade pré-escolar (de idade até aos cinco anos), a sua capacidade de criar laços emocionais, levando a criança a deixar progressivamente de investir e passando a produzir ligações crescentemente ténues e indiscriminadas; nestas idades, a descontinuidade provoca também a perda das habilidades sociais nascidas do intercâmbio da criança com o seu cuidador; Anna Freud, citada em “The Best Interests…” de GOLDSTEIN, relata que as crianças inglesas, removidas das famílias durante a guerra, desenvolveram frequentemente enurese. A necessidade de preservar a continuidade das relações afectivas gratificantes, foi reconhecida pelo corpo legislativo português105: «O superior interesse da criança é determinado pela prevalência das relações afectivas profundas, e por isso sempre que haja conflito entre a relação biológica e a afectiva dever-se-á dar prevalência à última (sempre que seja demonstrado que a relação afectiva é profunda e a criança não desenvolveu relações

GOLDSTEIN, JOSEPH e. a. “The Best Interests of The Child”, pág. 19 Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República (Subcomissão de Igualdades de Oportunidades) apresentado publicamente em 02/05/2006 Página 35 de 41 104 105

profundas com os progenitores biológicos). O não reconhecimento deste princípio não protege a criança. Torna-se por isso necessário fazer a gestão da vinculação da criança, enchendo-a de afectos, dando-lhes continuidade, sem que se verifique vazios.… É fundamental a clarificação e consagração do princípio da prevalência das relações afectivas profundas como elemento determinante no esclarecimento do entendimento do interesse superior da criança.». O sentido do tempo que a criança tem é diferente do que tem o adulto; este, mede o tempo pelo relógio e pelo calendário; a criança mede o tempo pelas suas necessidades básicas e respectiva satisfação. O adulto (se tem o desenvolvimento próprio) aprendeu a antecipar o futuro e, assim, a gerir a demora na satisfação dos seus desejos106; a criança não tem essa capacidade: quer comer quando tem fome, dormir quando tem sono e ser limpa quando está suja — e nada disto pode esperar, seja qual for a hora do dia (ou da noite), seja qual for o dia da semana, seja qual for a disponibilidade ou disposição do seu cuidador para fazer o necessário para que aquela satisfação ocorra. Só com o decurso do tempo a criança virá a incorporar a forma como o seu cuidador satisfaz as suas necessidades — directamente ou por substituição (como quando brinca com ela para a distrair) —, bem como experimentará o desaparecimento e o reaparecimento do seu cuidador do seu campo de visão; com isso, a criança gradualmente desenvolverá a capacidade de antecipar o futuro e a tolerar o adiamento da gratificação. O facto de este desenvolvimento ser gradual, implica que um mesmo tempo de separação, constitui para uma criança em idade pré-escolar (menos de cinco anos) uma quebra de continuidade da relação, enquanto para uma criança em idade escolar teria menos significado ou nenhum significado, consoante a sua idade fosse menor ou mais avançada. O modo como a criança tem percepção do tempo, implica que qualquer decisão sobre a sua situação deva ser tomada rapidamente; a incorporação pelo direito português da consciência de que o tempo da criança é diferente do tempo do adulto está manifestada, designadamente, no Novo Regime Jurídico da Adopção, o qual fixa o período máximo de seis meses para o período de pré-adopção107; esta disposição é reveladora da «consciência de que o decurso do

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“GOLDSTEIN, JOSEPH e. a. “The Best Interests of The Child”, pág. 41 SOTTOMAYOR, MARIA CLARA, “A Nova Lei da Adopção”, pág. 251 Página 36 de 41

tempo representa para a criança danos psicológicos difíceis de reparar no futuro»; como o é da «consideração da importância, fragilidade e delicadeza dos valores a preservar e de como é difícil superar os efeitos de actos ou omissões traumatizantes para a criança… nos primeiros anos de vida».108 A aceitação, por um adulto, de uma criança que não é sua, pode acontecer de uma forma muito mais rápida do que a aceitação dele pela criança; mas quando um e outro se aceitaram mutuamente, a criança passa a ter um pai/mãe psicológico e o cuidador/a passa a ter um filho/a psicológico. A nova família deve merecer da lei a mesma protecção que as tradicionais famílias biológicas ou afectivas merecem e recebem.

V  As limitações da lei A lei pode quebrar uma relação afectiva, mas não pode forçar a sua criação, ou o seu desenvolvimento. Os tribunais e os órgãos da administração, têm o tempo e a capacidade de causar dano, mas não têm tempo, nem capacidade, para criar, ou controlar, o saudável desenvolvimento de laços familiares — nas suas funções oficiais, não podem as pessoas que integram estes corpos ser mães/pais de crianças alheias109. A lei e os órgãos encarregados pela sociedade da sua realização, não têm a capacidade de prever eventos ou necessidades futuras, que a ocorrerem, poderão vir a dar sentido ou a confirmar a bondade das decisões tomadas no presente. No caso português, o diagnóstico foi feito pelo Parlamento110: «Quanto aos Tribunais verificase, desde logo um deficit de Tribunais de Família e Menores. O país deve ser coberto de tribunais especializados de família e menores, ou pelo menos, quando tal não for possível nem adequado, por secções especializadas em matéria de crianças e jovens nos tribunais de competência genérica. Os tribunais têm que ser especializados: têm de ter gabinetes de psicologia, de mediação/audição familiar, e as próprias instalações dos tribunais precisam de adaptação, de serem mais acolhedoras. Quanto à formação dos agentes judiciais que intervêm nas áreas da criança, apontam-se os seguintes constrangimentos: ausência de formação específica com outras componentes (para além da área jurídica) dos magistrados que estão LEANDRO, ARMANDO, “Poder Paternal: Natureza, conteúdo, exercício e limitações. Algumas reflexões de prática judiciária”, in “Temas de Direito de família”, Livraria Almedina, Coimbra, 1986 109 “GOLDSTEIN, JOSEPH e. a. “The Best Interests of The Child”, págs. 46/48 110 Relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República (Subcomissão de Igualdades de Oportunidades) apresentado publicamente em 02/05/2006 Página 37 de 41 108

nos tribunais de família e menores (a formação especializada dos magistrados tem de passar a requisito para a colocação e permanência nos tribunais especializadas); inexistência de assessorias adequadas com formação especializada nas áreas das crianças e jovens; ausência de formação adequada por parte dos funcionários que trabalham nos tribunais de competência especializada; insuficiente formação dos agentes de polícia criminal; inexistência de formação adequada dos técnicos das EMAT111 (o que dificulta o trabalho em articulação com os tribunais).». Apenas a atinência a critérios simples pode garantir que as decisões se adequam à ratio das leis que visam a protecção das crianças: continuidade das relações afectivas gratificantes, noção do tempo próprio das crianças, consciência das limitações da lei e dos órgãos encarregados pela sociedade da sua realização. GOLDSTEIN e. a. propõem112 um quadro de períodos de tempo — durante os quais tenha uma criança estado sob o cuidado directo e contínuo de um adulto, o qual está disponível e tem vontade de continuar essa relação —, como intervalos máximos fora dos quais não seria razoável presumir-se que seriam mais significativos quaisquer laços residuais que pudessem subsistir na criança relativamente aos seus pais biológicos, do que os laços entretanto criados com o cuidador de longo-termo: (a) seis meses, para uma criança com idade até um mês ao tempo do início da relação com o cuidador; (b) doze meses, para uma criança com idade até três anos ao tempo do início da relação com o cuidador; (c) vinte e quatro meses para uma criança com idade de três anos ou mais ao tempo do início da relação com o cuidador. E defendem que, dentro dos parâmetros assinalados, a criança deverá ser mantida — em homenagem ao princípio da continuidade —, entregue ao seu cuidador de longo-termo, até decisão final do caso; e que esta decisão — em respeito do princípio da noção do tempo da criança — deve ocorrer, por razões de urgência, no mais curto prazo possível; pelas mesmas razões, as diligências para instrução da decisão, de retirada da criança ao seu cuidador de longo-termo, deverão preceder esta retirada: «Arrancar os laços afectivos entre a criança e os seus cuidadores de longo-termo, é a espécie de dano que não é totalmente — ou até substancialmente — compensado, mesmo pela reposição posterior dessa relação. Em termos de lesão irreparável, uma errada decisão de quebrar os laços afectivos delicados e complexos 111 112

EMAT = Equipas Multidisciplinares de Assessoria aos Tribunais “The Best Interests…”, cit., pág. 105 Página 38 de 41

que ligam a criança aos seus cuidadores de longo-termo, é um caso muito mais sério do que o de uma decisão de, intencionalmente, amputar um braço a uma criança, com um qualquer propósito terapêutico, admitindo-se que uma tal acção, se vier a revelar-se errada, pode ser corrigida, pela reposição do braço que, apesar das cicatrizes, poderá crescer tão forte como anteriormente se encontrava». Quando está em causa a decisão sobre o destino da criança, sempre que tal implique uma alteração importante do seu status quo, a consideração do “interesse superior da criança” impõe a opção pela alternativa menos nociva113. Para se apurar qual é — in casu —, essa alternativa, parece impor-se a ponderação dos critérios acima sugeridos: o sentido de tempo da criança, a necessidade de assegurar à criança a continuidade da relação afectiva gratificante quando esta exista, a incapacidade de previsão a longo prazo. E, em caso de não ser possível garantir que uma decisão — seja ela qual for —, é melhor para a criança do que deixar tudo como está, então pondere-se não introduzir alterações à situação existente.

113

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