Direito e Comportamento: uma revisão da literatura jurídica sob o prisma do Behaviorismo Radical [Monografia - Bacharelado em Direito]

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Descrição do Produto

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Ciˆencias Sociais Faculdade de Direito

Victor Luis Barroso Nascimento

Direito e comportamento: uma revis˜ ao da literatura jur´ıdica sob o prisma do Behaviorismo Radical

Rio de Janeiro 2016

Victor Luis Barroso Nascimento

Direito e comportamento: uma revis˜ ao da literatura jur´ıdica sob o prisma do Behaviorismo Radical

Monografia apresentada, como requisito parcial para obten¸c˜ao do t´ıtulo de Bacharel, a` Faculdade de Direito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Ms. Antˆonio Augusto Madureira de Pinho

Rio de Janeiro 2016

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CCS/C N244d

Nascimento, Victor Luis Barroso. Direito e comportamento: uma revisão da literatura jurídica sob o prisma do Behaviorismo Radical / Victor Luis Barroso Nascimento. - 2016. 134 f. Orientador: Profº. Antônio Augusto Madureira de Pinho. “Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.” 1. Direito - Filosofia. 2. Behaviorismo (Psicologia). 3. Comportamento Humano. I. Pinho, Antônio Augusto Madureira de. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Direito. III. Título. CDU 340

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta monografia, desde que citada a fonte.

_______________________________________ Assinatura

_____________________ Data

Victor Luis Barroso Nascimento

Direito e comportamento: uma revis˜ ao da literatura jur´ıdica sob o prisma do Behaviorismo Radical Monografia apresentada, como requisito parcial para obten¸c˜ao do t´ıtulo de Bacharel, a` Faculdade de Direito, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 21 de 03 de 2016. Banca Examinadora:

Prof. Ms. Antˆonio Augusto Madureira de Pinho (Orientador) Universidade do Estado do Rio de Janeiro Prof. Dr. Alexandre Fabiano Mendes Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro 2016

AGRADECIMENTOS

A meus pais e irm˜aos, que sempre me apoiaram e nunca deixaram de acreditar no meu potencial profissional e acadˆemico. A Patricia, minha eterna fonte de inspira¸ca˜o, sem a qual este trabalho dificilmente seria escrito com tanta leveza e esmero. A Tiago Gurgel e Ana Bernardo, os companheiros mais leais. A Guilherme Passos, amigo digno de admira¸c˜ao e revisor acadˆemico. Ao meu orientador e mentor, Prof. Ms. Antˆonio Augusto Madureira de Pinho, por permitir que eu desfrutasse de seus amplos conhecimentos filos´oficos e sempre me orientar da forma mais atenciosa, prudente e s´abia poss´ıvel.

“As vari´aveis externas, das quais o comportamento ´e fun¸c˜ao, d˜ao margem ao que se pode ser chamado de an´alise causal ou funcional. Tentamos prever e controlar o comportamento de um organismo individual. Esta ´e a nossa “vari´avel dependente” - o efeito para o qual procuramos a causa. Nossas “vari´aveis independentes” - as causas do comportamento – s˜ao as condi¸c˜oes externas das quais o comportamento ´e fun¸ca˜o. Rela¸co˜es entre as duas – as “rela¸co˜es de causa e efeito” no comportamento – s˜ao as leis de uma ciˆencia. Uma s´ıntese dessas leis expressa em termos quantitativos um esbo¸co inteligente do organismo como um sistema que se comporta.” Burrhus Frederic Skinner, Ciˆencia e Comportamento Humano

RESUMO

NASCIMENTO, V. L. B. Direito e comportamento: uma revis˜ao da literatura jur´ıdica sob o prisma do Behaviorismo Radical. 2016. 132 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. Este trabalho pretende definir e analisar o processo de tomada de decis˜oes (especialmente as jur´ıdicas) atrav´es de um prisma simultaneamente filos´ofico, cient´ıfico e psicol´ogico, sendo utilizadas como base jur´ıdica as considera¸co˜es feitas por Frederick Schauer acerca da estrutura l´ogica dos processos decisionais no livro “Playing by the Rules” e acerca da importˆancia das san¸c˜oes para uma descri¸c˜ao emp´ırica do direito no livro ”The Force of Law ”, bem como aquelas feitas por Noel Struchiner acerca das rela¸co˜es existentes entre o direito e a linguagem, expostas no livro ”Direito e Linguagem”, e os fenˆomenos da puni¸c˜ao e da intui¸ca˜o moral, que s˜ao abordadas em dois artigos do livro ”Novas Fronteiras do Direito”. No que diz respeito a` esfera psicol´ogica, o comportamento humano ser´a descrito por meio de sua propriedades anal´ıtico-funcionais, sendo utilizada para isto a vertente da filosofia psicol´ogica denominada Behaviorismo Radical, elencada pelo seu principal autor, B.F. Skinner, em cinco de suas principais obras: “The Behavior of Organisms”,”O Comportamento Verbal”,”Ciˆencia e Comportamento Humano”, “O Mito da Liberdade” e ”Sobre o Behaviorismo”. Por fim, os elementos filos´oficos ser˜ao retirados de fontes extremamente diversificadas, incluindo autores como, por exemplo, Karl Popper, H. L. A. Hart, Ludwig Wittgenstein e Hans Kelsen. Palavras-chave: Direito - Filosofia. Behaviorismo (Psicologia). Comportamento humano.

ABSTRACT

NASCIMENTO, V. L. B. . 2016. 132 f. Monografia (Bacharelado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016. This work tries to define and analyze the process of decision making (especially in its juridical forms) from a perspective that is simultaneously philosophical, scientific and psychological, in which we utilize as a juridical base the considerations made by Frederick Schauer about the logical struture of decision making processes in the book ”Playing by the Rules”and about the importance of sanctions for a empirical description of law in his book ”The Force of Law”, as well as those made by Noel Struchiner about the existing relations between law and language, exposed in the book ”Direito e Linguagem”, and the phenomenons of punishment an moral intuition, studied in two articles on the book ”Novas Fronteiras do Direito”. On the psychological side, human behavior will be described in respect to its analytic-functional properties, which will be done with the use of the psychological theory known as Radical Behaviorism, described by B.F. Skinner in four of his main works: ”The Behavior of Organisms”, ”Verbal Behavior”, ”Science and Human Behavior”, ”Beyond Dignity and Freedom”and ”About Behaviorism”. At last, the philosophical elements will be taken from extremely diversified sources, including authors such as, for example, Karl Popper, H.L.A. Hart, Ludwig Wittgenstein and Hans Kelsen. Keywords: Law - Philosophy. Behaviorism (Psychology). Human Behavior.

´ SUMARIO

1 1.1 1.1.1 1.1.2 1.1.3 2 2.1 2.1.1 2.1.2 2.1.3 2.1.3.1 2.1.3.2 2.1.3.3 2.1.4 2.1.4.1 2.1.4.2 2.1.5 2.1.5.1 2.1.5.2 2.1.5.3 2.1.5.4 2.1.5.5 2.2 3 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 4 4.1 4.2 4.3 4.3.1

˜ INTRODUC ¸ AO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A escolha do paradigma e suas justifica¸c˜ oes . . . . . . . . . . . . . . Raz˜oes para uma abordagem cient´ıfica da psicologia . . . . . . . . . . . . Fenˆomenos fisiol´ogicos e an´alise comportamental . . . . . . . . . . . . . . Cognitivismo e Behaviorismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ˆ ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DAS CIENCIAS COMPORTAMENTAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Categorias descritivas essenciais para uma an´ alise do comportamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Comportamentos respondentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Comportamentos operantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Est´ımulos e suas propriedades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Est´ımulos aversivos e refor¸cadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Est´ımulos incondicionados e condicionados . . . . . . . . . . . . . . . . . . Est´ımulo discriminativo, est´ımulo delta e est´ımulo discriminativo punitivo Formas de condicionamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Condicionamento cl´assico, respondente ou Pavloviano . . . . . . . . . . . . Condicionamento operante, extin¸ca˜o e contingˆencias punitivas . . . . . . . Outras vari´aveis importantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Generaliza¸ca˜o e refor¸co diferencial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Prepotˆencia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Priva¸c˜ao e sacia¸c˜ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Motiva¸c˜ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Emo¸ca˜o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . S´ıntese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . COMPORTAMENTOS VERBAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Defini¸c˜ ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mandos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Tatos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Intraverbais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Autocl´ıticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . DIREITO COMO COMPORTAMENTO . . . . . . . . . . . . . . . As vantagens de uma an´ alise comportamental do direito . . . . . O hom´ unculo jur´ıdico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Comportamentos verbais jur´ıdicos e legislativos . . . . . . . . . . . Mandos jur´ıdicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

9 9 11 14 16 24 24 24 26 28 28 30 31 34 34 36 38 39 41 42 43 45 47 51 51 58 60 63 66 69 69 72 74 75

4.3.1.1 4.3.2 4.3.2.1 4.3.2.2 4.3.3 4.3.3.1 4.3.3.2 4.3.3.3 4.3.4 4.3.4.1 4.3.4.2 5 5.1 5.1.1 5.1.1.1 5.1.1.2 5.1.2 5.1.2.1 5.1.2.2 5.2 5.2.1 5.2.1.1 5.2.1.2 5.2.1.3 5.2.2 5.2.2.1 5.2.2.2 6

Normas, precedentes normativos e decis˜oes judiciais . . . . . . . . . . . . Tatos jur´ıdicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Predicados f´aticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Categorias e defini¸c˜oes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Autocl´ıticos jur´ıdicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Crit´erios de interpreta¸ca˜o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Princ´ıpios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Revis˜ao por ´org˜aos superiores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Intraverbais jur´ıdicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Jurisprudˆencia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Doutrina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ´ UMA ANALISE DA LITERATURA ESPEC´IFICA . . . . . . . Noel Struchiner . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Direito e Linguagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Uma defini¸c˜ao comportamental dos conceitos de textura aberta, semelhan¸ca de fam´ılia e jogo de linguagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Casos f´aceis e dif´ıceis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Novas fronteiras do Direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Diferentes caracter´ısticas das contingˆencias punitivas . . . . . . . . . . . O modelo s´ocio-intuicionista de Haidt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Frederick Schauer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . The Force of Law . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Puni¸co˜es e recompensas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O homem intrigado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Rela¸co˜es causais entre leis e comportamentos . . . . . . . . . . . . . . . Playing by the Rules . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Suprainclus˜ao, infrainclus˜ao e justifica¸c˜oes . . . . . . . . . . . . . . . . . Tipos de sistemas decisionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ˜ CONCLUSAO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ˆ REFERENCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . . . . . . . . . . . . .

77 79 79 81 82 83 85 87 88 89 90 91 91 91

. . . . . . . . . . . . . . .

92 97 99 99 103 111 111 111 116 117 119 119 123 126 130

9 ˜ 1 INTRODUC ¸ AO

1.1 A escolha do paradigma e suas justifica¸c˜ oes Antes de adentrar propriamente no tema deste trabalho, tendo em vista a vasta gama de teorias que atualmente coexistem no interior dos meios acadˆemicos que estudam fenˆomenos comportamentais, faz-se necess´aria uma breve digress˜ao sobre o paradigma te´orico aqui adotado, bem como uma subsequente justifica¸ca˜o dos crit´erios de sele¸ca˜o que foram utilizados durante a inevit´avel escolha de certos sistemas explicativos em detrimento de outros. Inicialmente, ser´a oferecida uma descri¸ca˜o sucinta destes crit´erios, sendo todos melhor elaborados em t´opicos espec´ıficos dedicados ao seu detalhamento. Em um primeiro momento, realizamos uma sele¸c˜ao referente ao tipo de an´alise te´orica almejada, sendo adotado crit´erio de discrimina¸c˜ao relativo a` cientificidade das teorias existentes. Desta forma, descartam-se todas aquelas que se pautam exclusivamente pelo vi´es do pensamento te´orico-filos´ofico, que n˜ao estendem (ou n˜ao podem estender) seus m´etodos de pesquisa a` pr´atica emp´ırica dos laborat´orios ou que n˜ao sobrevivem ao crivo do crit´erio Popperiano de falseabilidade1 . A justificativa para este crit´erio ´e, em s´ıntese, uma justificativa para a pr´opria existˆencia do m´etodo cient´ıfico. O progresso da ciˆencia est´a intimamente ligado tanto ao quanto compreendemos o nosso mundo quanto ao grau de controle que temos sobre ele. Descobertas e avan¸cos cient´ıficos frequentemente s˜ao acompanhados por evolu¸co˜es t´ecnicas nos campos que lhes correspondem e, tendo em vista o car´ater cumulativo de seu saber, a ciˆencia cada vez mais vem fornecendo a` humanidade os subs´ıdios necess´arios para o conhecimento, compreens˜ao e conquista de todas as for¸cas presentes na natureza. Portanto, a sele¸c˜ao de um m´etodo com base no crit´erio da cientificidade se pauta n˜ao apenas na chance presumivelmente maior de correspondˆencia a` realidade que a ciˆencia carrega, mas tamb´em nos not´aveis avan¸cos pr´aticos que a incorpora¸ca˜o do m´etodo cient´ıfico traz a todos os campos do saber onde sua sedimenta¸ca˜o ´e poss´ıvel, eis que os conhecimentos atrav´es dele produzidos s˜ao constantemente postos `a prova e empregados em t´ecnicas que permitem um maior grau de controle humano sobre os fenˆomenos analisados. Em um segundo momento, a sele¸c˜ao busca filtrar as teorias e campos psicol´ogicos atualmente tidos como cient´ıficos de acordo com sua pertinˆencia ao objeto que ser´a analisado – a saber, a intera¸ca˜o entre fenˆomenos normativos e psicol´ogicos na produ¸ca˜o de

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Uma aplica¸c˜ ao espec´ıfica deste crit´erio `a psican´alise freudiana e `a psicologia individual de Alfred Adler pode ser vista no artigo “Science as falsification” de Karl R. Popper, originalmente publicado no livro “Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge” (POPPER, 1962).

10 decis˜oes (sejam jur´ıdicas ou n˜ao). A tem´atica do presente trabalho, como ser´a exposto em maior detalhe no momento oportuno, mant´em seu foco sobre as rela¸co˜es de causalidade2 e determina¸ca˜o presentes entre indiv´ıduos e est´ımulos externos que agem sobre os mesmos durante a ocorrˆencia do fenˆomeno decisional, o que torna necess´ario o emprego de uma teoria que trate especificamente das rela¸co˜es existentes entre o indiv´ıduo e o meio em que ele habita. Desta forma, s˜ao afastados, por ora, todos os campos de estudo que se ocupam exclusivamente das rela¸co˜es de economia interna presentes no interior dos organismos humanos, o que exclui da presente an´alise tanto o campo da fisiologia quanto o da neurociˆencia. A justificativa deste crit´erio ´e de origem puramente pr´atica: muito embora estas sejam duas pr´aticas cient´ıficas que sem d´ uvida alguma possam trazer contribui¸co˜es relevantes para o presente estudo, os fenˆomenos que tais ciˆencias analisam encontram-se em campos de estudo diversos daquele onde s˜ao observados aqueles que o presente trabalho pretende analisar. A esfera do comportamento, muito embora possua ineg´avel v´ınculo com a esfera da fisiologia, constitui campo distinto e possui sua pr´opria linguagem descritiva. Portanto, da mesma forma que fenˆomenos biol´ogicos e qu´ımicos s˜ao descritos por uma linguagem pr´opria que se diferencia daquela empregada na f´ısica (n˜ao obstante o fato de todos os fenˆomenos biol´ogicos e qu´ımicos serem redut´ıveis a fenˆomenos f´ısicos), uma redu¸ca˜o dos fenˆomenos comportamentais a fenˆomenos neurol´ogicos e f´ısicos, muito embora n˜ao se mostre imposs´ıvel, seria tarefa extremamente ´ardua e contraproducente (conforme ser´a indicado em mais detalhes no ponto 1.1.2). Em um terceiro momento, a sele¸ca˜o busca quantificar o potencial anal´ıtico de cada uma das teorias ainda aplic´aveis, preferindo aquelas com maior precis˜ao, clareza e economia de termos em detrimento daquelas que se utilizam de fic¸c˜oes explanat´orias ou esquemas desnecessariamente complexos que sejam redut´ıveis a partes mais simples. Ap´os a aplica¸ca˜o dos dois filtros anteriormente expostos, os paradigmas mais not´aveis dentre os quais ainda se pode escolher s˜ao aqueles denominados cognitivismo e behavio´ importante notar que ambos mantˆem pr´aticas cient´ıficas s´olidas e ainda rismo radical. E possuem um corpo dedicado de cientistas e estudiosos na atualidade, o que faz com que qualquer op¸c˜ao traga todos os benef´ıcios te´oricos enumerados durante a justifica¸ca˜o dos

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Em seus livros e escritos sobre o behaviorismo, Skinner, para evitar poss´ıveis ambiguidades e confus˜ oes com as acep¸c˜ oes que tais conceitos adotaram em outras teorias, substitui os termos “causa” e “efeito” pelos termos “vari´ avel independente”e “vari´avel dependente”, que s˜ao utilizados com mais frequˆencia no meio cient´ıfico. No entanto, o pr´ oprio autor ressalta que trata-se de vocabul´ario pr´oprio do meio cient´ıfico e, contanto que as formula¸c˜oes “causais” sejam utilizadas dentro de suas conceptualiza¸c˜ oes mais tradicionais (como “eventos antecedentes” e “eventos posteriores”, sendo ambos ligados por um nexo de influˆencia denominado “causal” sempre que se verifica que uma modifica¸c˜ao dos eventos antecedente necessariamente acarreta uma altera¸c˜oes dos eventos posteriores), tais termos n˜ao apresentam nenhum ´ obice ` a an´ alise funcional, raz˜ao pela qual receber˜ao preferˆencia no presente estudo.

11 dois primeiros crit´erios de sele¸ca˜o. No entanto, existe uma certa fric¸ca˜o entre ambos e, com isto, torna-se imperativa a interven¸c˜ao do terceiro crit´erio para a ado¸c˜ao de apenas um destes paradigmas. Por raz˜oes que ser˜ao melhor expostas no t´opico 1.1.3, a teoria que melhor atende ao crit´erio de analiticidade e economia descritiva ´e a behaviorista3 , raz˜ao pela qual a mesma ser´a adotada em todas as an´alises aqui realizadas. A justifica¸c˜ao deste u ´ltimo crit´erio encontra suas ra´ızes na filosofia anal´ıtica e se assenta na necessidade de uma maior clareza e funcionalidade em proposi¸c˜oes descritivas referentes ao universo natural. A eficiˆencia da t´ecnica empregada nas descri¸c˜oes cient´ıficas est´a diretamente ligada a` eficiˆencia da ciˆencia como um todo, do que se depreende que, para a manuten¸ca˜o da validade e utilidade de suas conjecturas, os te´oricos devem adotar uma postura revisionista e buscar sempre atualizar a linguagem (e, por consequˆencia, o paradigma) utilizada na formula¸c˜ao das proposi¸c˜oes de cada ciˆencia. Ademais, tal postura determina que os cientistas identifiquem com a maior precis˜ao poss´ıvel n˜ao s´o seus objetos de estudo, mas tamb´em, na medida do poss´ıvel, as unidades atˆomicas do fenˆomeno a ser analisado4 , o que sugere a necessidade de uma atualiza¸c˜ao paradigm´atica sempre que unidades antes tidas como fundamentais forem desmembradas e explicadas em fun¸co˜es de outras unidades, que as substituem como as novas unidades atˆomicas da teoria.

1.1.1 Raz˜oes para uma abordagem cient´ıfica da psicologia Historicamente, a psicologia sempre foi um campo de estudo ligado de forma ´ıntima a` filosofia, sendo que apenas no s´eculo XIX seus te´oricos come¸caram a empregar esfor¸cos significativos no sentido de criar um corpo cient´ıfico autˆonomo sobre a mat´eria. A despeito do amplo reconhecimento da psicologia como campo cient´ıfico na atualidade, ainda existem, no meio acadˆemico, diversas teorias explicativas referentes a

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Usualmente, ´e feita uma distin¸c˜ ao entre os conceitos de “ciˆencias comportamentais” e “behaviorismo”, sendo este o u ´ltimo considerado a base te´orica e filos´ofica do primeira. No entanto, eles ser˜ao utilizados aqui como sinˆ onimos, devendo ser interpretados como termos mais amplos, que se referem ao modelo explicativo comportamentalista como um todo.

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A rela¸ca˜o existente entre unidades fundamentais e precis˜ao epistemol´ogica ´e expressa de forma magistral pelo artigo existente na Stanford Encyclopedia of Philosophy sobre a filosofia anal´ıtica de acordo com Bertrand Russel, tendo especial destaque a seguinte transcri¸c˜ao: “No lado epistemol´ogico, Russl argumenta que tamb´em ´e importante mostrar como cada entidade question´avel pode ser reduzida a, ou definida em termos de, outra entidade (ou entidades) cuja existˆencia ´e mais certa. Por exemplo, nesta vis˜ ao, um objeto f´ısico ordin´ ario que normalmente pudesse ser imaginado como cognosc´ıvel apenas por meio da inferˆencia pode, ao rev´es, ser definido como “uma certa s´erie de apari¸c˜oes, conectadas umas ` as outras pela continuidade e por certas leis causais. ... De forma mais geral, uma “coisa” ser´a definida como uma certa s´erie de aspectos, qual seja, aqueles que comumente seriam ditos ser da coisa. Dizer que certo aspecto ´e um aspecto de certa coisa significar´a meramente que ele ´e um dos que, tomados de forma serial, s˜ ao a coisa. (1914a, 106–107)” (IRVINE, 2015)(tradu¸c˜ao nossa)

12 fenˆomenos do comportamento e do c´erebro humano que possuem car´ater notoriamente filos´ofico e especulativo. Como exemplo, podemos citar as teorias Fenomenol´ogica, Gestaltista e Psicanal´ıtica, todas amplamente debatidas por estudiosos e aplicadas terapeuticamente por psic´ologos ainda nos dias de hoje. Desta forma, antes de afirmar justificadamente que, no presente caso, as teorias cient´ıficas devem prevalecer sobre as teorias filos´oficas, mostra-se necess´aria uma defesa tanto das vantagens espec´ıficas que uma ciˆencia do comportamento proporciona aos seus te´oricos quanto das vantagens gerais que a cientifiza¸ca˜o dos campos de estudo e a aplica¸c˜ao do m´etodo cient´ıfico em si proporcionam. De fato, este ´e um tema de suma importˆancia para os cientistas comportamentais, tendo sido extensivamente discutido por praticamente todos os te´oricos not´aveis da psicologia cient´ıfica. O pr´oprio Skinner devota um cap´ıtulo inteiro de sua obra “Ciˆencia e Comportamento Humano” a` defesa da utilidade que o m´etodo cient´ıfico pode propiciar ao estudo do comportamento humano. Como se n˜ao bastasse, ele ainda dedica um livro inteiro - “O Mito da Liberdade” (SKINNER, 1973) - a desmistificar algumas no¸co˜es bastante recorrentes na literatura, presentes nos mais variados campos do saber, que buscam caracterizar rela¸co˜es entre os homens e suas condutas, redefinindo tais conceitos em termos comportamentais e indicando de forma clara como, surpreendentemente, at´e mesmo as no¸co˜es mais elementares e corriqueiras podem encontrar-se em conflito direto com as evidˆencias emp´ıricas atualmente existentes. Isto se d´a principalmente devido a` ausˆencia de conhecimento e esclarecimento acerca destas u ´ltimas quando tais conceitos foram criados, sendo muitos deles empregados h´a s´eculos pelos mais diversos pensadores e podendo suas cria¸co˜es serem remontadas a ´epocas muito anteriores ao surgimento da pr´opria ciˆencia. Citemos, como exemplo deste u ´ltimo fenˆomeno, alguns casos examinados por Skinner no livro retromencionado. Nesta obra, o autor dedica especial aten¸c˜ao a dois conceitos bastante tradicionais: “liberdade” e “dignidade”. Em suas concep¸co˜es mais difundidas, a “liberdade” de um homem est´a associada `a sua capacidade de auto-determina¸c˜ao e a indetermina¸c˜ao externa de sua vontade, enquanto sua “dignidade” est´a relacionada `a possibilidade e necessidade social de que o mesmo venha a ser responsabilizado por seus atos, devendo receber cr´edito ou puni¸co˜es de acordo com o teor destes. No entanto, a no¸ca˜o cient´ıfica de que o comportamento ´e em larga medida determinado pelo meio e que encontra-se em uma cadeia causal natural (sendo, com isso, causado por diversos fatores extrˆaneos ao organismo) de certa forma agride estes conceitos, uma vez que a determina¸ca˜o do ato de um sujeito pelos est´ımulos a que ele se sujeita esvazia totalmente o poder causal da “autonomia do agente” e torna sua “vontade livre” plenamente determinada, n˜ao obstante enfraquecer a possibilidade de culpabiliza¸ca˜o e concess˜ao de m´erito ao declarar que, em raz˜ao da influˆencia ambiental, as condi¸co˜es externas a que o indiv´ıduo se sujeita s˜ao t˜ao importantes para a emiss˜ao de comportamentos culp´aveis ou credit´aveis

13 quanto o pr´oprio indiv´ıduo. Observe-se, no entanto, que estas defini¸co˜es n˜ao s˜ao as u ´nicas poss´ıveis; ao definirmos “liberdade” como ausˆencia de determina¸ca˜o do comportamento por est´ımulos aversivos (como dor, sofrimento ou necessidade) e determinarmos que puni¸c˜oes e acredita¸co˜es n˜ao s˜ao aplicadas porque os sujeitos “as merecem”, mas sim porque sua aplica¸c˜ao visa a modificar suas tendˆencias comportamentais, por exemplo, parece que satisfazemos todas as ˆansias da filosofia tradicional sem nos desvencilhar da linha tra¸cada pela ciˆencia, eis que, desta forma, o car´ater determinado das condutas n˜ao constitui o´bice `a existˆencia destes conceitos ou `a persecu¸ca˜o do que eles simbolizam na vida real pelos seres humanos. Retornando ao ponto principal, podemos dizer que, em geral, os argumentos principais a favor da ciˆencia costumam mencionar tanto a importˆancia pr´atica que existe no avan¸co de seus objetivos de previs˜ao e controle dos fenˆomenos naturais mediante descri¸co˜es concretas precisas5 quanto o not´avel sucesso que ela tˆem obtido na persecu¸ca˜o destes mesmos fins. Como ´e sabido, a ciˆencia provˆe subs´ıdios diretos para a previs˜ao acertada de eventos futuros e para a cria¸ca˜o de tecnologias que manipulam os eventos estudados – disponibilizando, desta forma, um extensivo rol de ferramentas aptas a permitir que sejam controlados os mais diversos fenˆomenos da natureza. Avan¸car as propostas do m´etodo cient´ıfico no campo da psicologia ´e avan¸car, simultaneamente, todas as tentativas de manipula¸ca˜o de comportamentos realizadas pelo homem, principalmente aquelas que versam sobre os comportamentos dos pr´oprios homens. Desta forma, todos os campos que lidam com fenˆomenos que est˜ao em alguma medida relacionados com comportamentos e t´ecnicas para sua modula¸c˜ao – como, por exemplo, a economia, o direito e a sociologia – seriam de alguma forma beneficiados por esta agenda. Portanto, temos que a importˆancia da ciˆencia reside na ineg´avel utilidade que a mesma oferece para a humanidade frente a` existˆencia de um meio natural em que ela inevitavelmente se insere e que nem sempre lhe ´e favor´avel, servindo de instrumento para a manipula¸ca˜o de fenˆomenos de modo a lhe criar as mais diversas vantagens e para possibilitar o efetivo incremento dos conhecimentos que se possui sobre o mundo e seu

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´ uma tentativa “A ciˆencia ´e mais que a mera descri¸c˜ao dos acontecimentos `a medida que ocorrem. E de descobrir ordem, de mostrar que certos acontecimentos est˜ao ordenadamente relacionados com outros. Nenhuma tecnologia pr´ atica pode basear-se na ciˆencia at´e que estas rela¸c˜oes tenham sido descobertas. Mas a ordem n˜ ao ´e somente um produto final poss´ıvel; ´e uma concep¸c˜ao de trabalho que deve ser adotada desde o princ´ıpio. N˜ao se podem aplicar os m´etodos da ciˆencia em assunto que se presume ditado pelo capricho. A ciˆencia n˜ao s´o descreve, ela prevˆe. Trata n˜ao s´o do passado, mas tamb´em do futuro. Nem ´e previs˜ ao sua u ´ltima palavra: desde que as condi¸c˜oes relevantes possam ser alteradas, ou de algum modo controladas, o futuro pode ser manipulado. Se vamos usar os m´etodos da ciˆencia no campo dos assuntos humanos, devemos pressupor que o comportamento ´e ordenado e determinado. Devemos esperar descobrir que o que o homem faz ´e o resultado de condi¸c˜oes que podem ser especificadas e que, uma vez determinadas, poderemos antecipar e at´e certo ponto determinar as a¸c˜ oes.” (SKINNER, 2003, pg. 7)

14 funcionamento. Em que pesem as muitas utilidades da filosofia, nem mesmo os seus ramos mais pragm´aticos costumam oferecer tantas vantagens t´ecnicas a seus membros quanto as pr´aticas cient´ıficas, devendo ser conferida precedˆencia a estas sempre que o que est´a sendo buscado ´e, em u ´ltima instˆancia, a amplia¸ca˜o dos conhecimentos emp´ıricos do homem e do efetivo dom´ınio que o mesmo tem sobre os fenˆomenos da natureza.

1.1.2 Fenˆomenos fisiol´ogicos e an´alise comportamental Como mencionado anteriormente, afastar a aplica¸ca˜o da fisiologia e da neurociˆencia ao presente trabalho n˜ao implica em um questionamento da validade ou utilidade destes campos. Muito pelo contr´ario: a ciˆencia do comportamento precisa necessariamente pressupor que existem fenˆomenos fisiol´ogicos subjacentes a todos os fenˆomenos comportamentais, sob pena de, conceitualmente, tornar o organismo uma caixa-preta67 . No entanto, tem-se que a explica¸c˜ao comportamental e a explica¸c˜ao fisiol´ogica, apesar de complementares, possuem objetos claramente distintos e, n˜ao obstante, s˜ao plenamente independentes uma da outra, n˜ao sendo de forma alguma necess´ario que ambas sejam operadas simultaneamente. De fato, temos que a fisiologia, quando aplicada ao comportamento humano, nos descreve apenas as rela¸co˜es de economia interna existentes no organismo (ou, especificamente, os eventos fisol´ogicos referentes `a atividade cerebral, no caso da neurociˆencia), enquanto as ciˆencias comportamentais, ao rev´es, mantˆem o seu foco na descri¸c˜ao das rela¸c˜oes de troca existentes entre o indiv´ıduo e seu meio. Em outras palavras: enquanto a fisiologia e a neurociˆencia indicam as rela¸co˜es existentes entre determinadas modifica¸c˜oes qu´ımicas ou f´ısicas que ocorrem no interior do organismo (podendo ou n˜ao indicar rela¸co˜es existentes entre estas e a observa¸ca˜o de certos comportamentos), o behaviorismo se preocupa com a indica¸ca˜o dos est´ımulos externos ao organismo que ocasionaram essas mudan¸cas fisiol´ogicas, dois quais o comportamento em an´alise ´e uma fun¸c˜ao. Portanto, enquanto os

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Outra alternativa seria renegar o nexo causal existente entre est´ımulo e comportamento em prol de uma causalidade direta entre substˆ ancias metaf´ısicas pressupostas no interior ou exterior do indiv´ıduo e o comportamento analisado, expediente utilizado em diversas teorias que visam a explicar o comportamento humano atrav´es do dualismo mente/corpo, onde uma for¸ca que n˜ao ´e causalmente determinada e n˜ ao se pode observar na natureza (como a “liberdade” no libertarianismo metaf´ısico, o ”livre-arb´ıtrio”determinado pela raz˜ ao pura e pelo arb´ıtrio animal no kantismo, a “vontade de Deus” na doutrina ocasionalista de Malebranche e, ainda, o conceito geral de “vontade” exposto em doutrinas como a de Husserl e Schopenhauer) ´e tida como causa e origem u ´ltima de todos os comportamentos humanos.

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Para uma an´ alise da rela¸c˜ ao existente entre behaviorismo, cognitivismo e fisiologia, com especial foco em eventos neurol´ ogicos, ver o artigo ”Sobre as cr´ıticas de Skinner ` a fisiologia: Indicadoras de orienta¸c˜ ao antifisiol´ ogica ou contribui¸c˜ oes relevantes? (ZILIO, 2015)

15 primeiros campos tˆem por objeto a varia¸c˜ao nos fatores orgˆanicos de um ser quando verificada a ocorrˆencia de determinado comportamento, o u ´ltimo se ocupa com a varia¸ca˜o no ambiente externo deste mesmo ser quando este comportamento ´e verificado, sendo estabelecida, ent˜ao, a rela¸ca˜o de causalidade existente entre esta mudan¸ca e o comportamento, o que explicita as rela¸co˜es de controle existentes entre o meio e o indiv´ıduo. Em um exemplo ilustrativo, imagine-se uma situa¸ca˜o onde um homem X ´e ofendido por outro homem Y e, em resposta, o agride. Neste caso, uma an´alise do fenˆomeno pela ´otica da fisiologia nos revelaria algo como “a agress˜ao foi causada pelo aumento na concentra¸c˜ao de adrenalina (ou outras substˆancias) no organismo de X e pela ativa¸c˜ao de determinadas a´reas de seu c´erebro”, enquanto uma an´alise do fenˆomeno pela o´tica comportamental determinaria, em linhas gerais, algo como “h´a uma correla¸ca˜o entre a agress˜ao e a ofensa”. N˜ao se pode negar que explica¸co˜es integradas (do tipo “a correla¸ca˜o entre um evento X e um comportamento Y est´a correlacionada a um estado/evento fisiol´ogico Z”) seriam ainda mais elucidativas durante a an´alise do comportamento humano do que as puramente comportamentais. No entanto, vale ressaltar que este modelo de an´alise integrada muitas vezes ´e contraproducente, justamente por ser significantemente mais complexo do que aquele estritamente necess´ario para o alcance dos fins pretendidos por estudos comportamentais. Inclusive, este modelo pode vir a se tornar um empecilho para o desenvolvimento regular de an´alises explicativas em fun¸c˜ao desta mesma complexidade, sendo importante que os estudiosos do comportamento procedam a uma separa¸ca˜o de entre o campo comportamental e o fisiol´ogico sempre que sua jun¸ca˜o fornecer algum obst´aculo para o desenvolvimento dos estudos cient´ıficos que visam a elucidar de forma espec´ıfica os fenˆomenos de car´ater comportamental8 .

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Uma defesa realizada por Skinner da necessidade de diferencia¸c˜ao entre as ciˆencias comportamentais e fisiol´ ogicas para que an´ alises mais complexas sejam poss´ıveis em ambos os campos pode ser encontrado no seguinte trecho, retirado do livro The Behavior of Organisms: “A pr´ atica atual de proceder de um fato comportamental para seu correlato neural ao inv´es de validar o fato como tal e ent˜ ao seguir para outros problemas comportamentais prejudica seriamente o desenvolvimento de uma ciˆencia do comportamento. O primeiro dos experimentos descritos neste livro foi sobre a mudan¸ca no ritmo de ingest˜ ao de comida. O curso “natural” teria sido volver `a identifica¸c˜ ao do processo fisiol´ ogico com o qual a mudan¸ca estava correlacionada. V´arias hip´oteses se sugeriram: a curva refletiu uma mudan¸ca na condi¸c˜ao do estˆomago, ou na concentra¸c˜ao de a¸cu ´car no sangue, ou na oxida¸c˜ ao do “hormˆ onio da fome”, dentre outros. Sem d´ uvida, esta seria uma linha de pesquisa produtiva, mas isto significaria renunciar a um interesse no comportamento em si. Para o prop´ osito de uma descri¸c˜ ao causal do comportamento a mudan¸ca quantitativa na for¸ca dos reflexos ingetivos era suficiente. Nenhuma detec¸c˜ ao de correlatos fisiol´ogicos teria aumentado a validez da lei, e ao nos virarmos para as outras leis ao n´ıvel do comportamento poderemos aprender mais sobre comportamentos. Enquanto isto o fisiologista recebeu um m´etodo de investiga¸c˜ao, para quando ele vier a desejar avan¸car o seu lado da correla¸c˜ ao.” (SKINNER, 1938, pg. 428)(tradu¸c˜ao nossa).

16 1.1.3 Cognitivismo e Behaviorismo A escolha do paradigma behaviorista em detrimento do cognitivista provavelmente ´e um dos procedimentos mais question´aveis e controversos adotados por este trabalho e, portanto, a ele merecem ser dedicados aten¸ca˜o especial e um esclarecimento mais complexo e aprofundado. Primeiramente, ´e importante ressaltar que ambas s˜ao pr´aticas tidas como cient´ıficas e que ainda hoje s˜ao desenvolvidas por comunidades dedicadas, n˜ao havendo que se falar, como pretendem alguns autores cognitivistas, em uma condena¸ca˜o contemporˆanea dos cientistas behavioristas ao ostracismo. Isto se mostra evidente principalmente na psicologia cl´ınica atual, onde a TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental), que mescla abordagens cognitivistas com behavioristas, ganha cada vez mais relevˆancia pr´atica e acadˆemica. Ademais, in´ umeros estudos ainda s˜ao conduzidos com base nos dois paradigmas 9 , existindo uma verdadeira coexistˆencia global entre os dois modelos. Como o paradigma adotado por este trabalho ´e o behaviorista, citemos, a t´ıtulo exemplificativo, a existˆencia contemporˆanea, a n´ıvel internacional, de entidades como o ABAI (“Association for Behavior Analysis International”)10 e o “Cambridge Center for Behavioral Studies”11 , que, al´em de possu´ırem foco espec´ıfico em an´alise behavioristas, mantˆem peri´odicos cient´ıficos destinados exclusivamente a tratar de temas relacionados a esta mat´eria. N˜ao obstante, no aˆmbito espec´ıfico da pesquisa cient´ıfica brasileira, podemos indicar que estudos baseados no paradigma behaviorista s˜ao conduzidos em universidades com hist´orico de excelˆencia educacional, como ´e o caso da Pontif´ıcia Universidade Cat´olica de S˜ao Paulo12 (que oferece cursos de p´os-gradua¸ca˜o em An´alise do Comportamento) e da Universidade de S˜ao Paulo (que oferece cursos de especializa¸c˜ao em Terapia Comportamental)13 . Ademais, ´e importante indicar que, infelizmente, grande parte das cr´ıticas atualmente feitas ao modelo Skinneriano por autores cognitivistas baseiam-se em claras imputa¸co˜es do framework te´orico utilizada por John B. Watson em seu Behaviorismo Me-

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Um exemplo not´ avel da utiliza¸c˜ ao do behaviorismo por pesquisadores nos dias de hoje ´e a ado¸c˜ ao do m´etodo de aprendizado por refor¸co (reinforcement learning) dentro de algoritmos de aprendizado profundo (deep learning) para a modelagem de abstra¸c˜oes de alto n´ıvel no campo da Inteligˆencia Artificial, com especial destaque para os sistemas recentemente criados pelo Google em parceria com a Deepmind. A forma como o m´etodo ´e introduzido na modelagem ´e exposta no artigo ”Human-level control through deep reinforcement learning”(MNIH et al., 2015), inicialmente publicado na revista Nature e atualmente disponibilizado ao publico no seguinte link: hhttps://storage.googleapis.com/ deepmind-data/assets/papers/DeepMindNature14236Paper.pdfi

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Site da institui¸c˜ ao: hhttps://www.abainternational.org/welcome.aspxi

11

Site do grupo de pesquisas: hhttp://www.behavior.org/i

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Detalhes sobre o programa: hhttp://www.pucsp.br/pos-graduacao/mestrado-e-doutorado/ psicologia-experimental-analise-do-comportamentoi

13

Detalhes sobre o programa: hhttp://www.ip.usp.br/terapiacomportamental/index.php/historicoi

17 todol´ogico a B. F. Skinner e seu Behaviorism Radical ou, simplesmente, em atribui¸ca˜o ao autor de ideias que o mesmo refutava expressamente. Estes expedientes s˜ao utilizados por autores t˜ao renomados quanto Steven Pinker14 e Noam Chomsky15 , e, muito embora tenham sido devidamente rebatidas por autores como Kenneth MacCorquodale e Henry D. Schlinger16 , continuam sendo propagadas (at´e mais do que as ideias que realmente pertencem ao behaviorismo radical) ainda hoje. Para ilustrar as diferen¸cas efetivamente existentes entre as duas abordagens, podemos esbo¸car um exemplo que utiliza a distin¸ca˜o entre ”mente”e c´erebro”, utilizada pelos pr´oprios cognitivistas:

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Isto fica claro quando comparamos os seguintes trechos, extra´ıdos de livros escritos por Skinner e Pinker: “Skinner e outros behavioristas asseveraram que toda conversa sobre eventos mentais era especula¸c˜ ao est´eril; somente as conex˜ oes est´ımulo-resposta poderiam ser estudadas no laborat´orio e em campo.” (PINKER, 1998, pg. 95) “Uma explica¸c˜ ao da inteligˆencia em termos de cren¸cas e desejos n˜ao ´e absolutamente uma conclus˜ ao inevit´ avel. A velha teoria do est´ımulo e resposta da escola behaviorista afirmava que cren¸cas e desejos n˜ ao tinham rela¸c˜ ao alguma com comportamento — de fato, que eram t˜ao n˜ao cient´ıficos quanto uma lenda folcl´ orica ou a magia negra.” (PINKER, 1998, pg. 73) “Eis, como exemplo, algumas das coisas comumente ditas sobre o Behaviorismo ou a ciˆencia do comportamento. Creio que s˜ ao todas falsas. 1 – O Behaviorismo ignora a consciˆencia, os sentimentos e os estados mentais. 2 – Negligencia os dons inatos e argumenta que todo comportamento ´e adquirido durante a vida do indiv´ıduo. 3 – Apresenta o comportamento simplesmente como um conjunto de resposta e est´ımulos, descrevendo a pessoa como um autˆ omato, um robˆ o, um fantoche ou uma m´ aquina. 4 – N˜ ao tenta explicar os processos cognitivos. 5 – N˜ ao considera as inten¸ c˜ oes ou prop´ ositos. 6 – N˜ ao consegue explicar as realiza¸c˜oes criativas – na Arte, por exemplo, ou na M´ usica, na Literatura, na Ciˆencia ou na Matem´atica. 7 – N˜ao atribui qualquer papel ao eu ou a consciˆencia do eu.” (SKINNER, 1995, pgs. 7-8)(grifos nossos) `

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Todos os pontos da principal cr´ıtica de Chomsky a Skinner, estabelecidos no artigo “A Review of B. F. Skinner’s Verbal Behavior” (CHOMSKY, 1959) e considerados at´e hoje por muitos como um dos maiores motivadores da “Revolu¸c˜ ao Cognitiva”, foram rebatidos por Kenneth MacCorquodale em seu artigo “On Chomsky’s review of Skinner’s Verbal Behavior” (MACCORQUODALE, 1970), que, ao final de sua an´ alise, chegou ` a seguinte conclus˜ao: “Eu concluo que a avalia¸c˜ ao de Chomsky n˜ao constituiu uma an´alise cr´ıtica do livro “O Comportamento Verbal de Skinner. A teoria criticada na avalia¸c˜ao era uma am´algama de alguns conhecimentos behavioristas um tanto quanto antiquados que inclu´ıa refor¸camento por redu¸c˜ao de impulso, o crit´erio de extin¸c˜ ao para medir for¸ca de respostas, uma pseudo-incompatibilidade da gen´etica com processos de refor¸co, e outras no¸c˜ oes que n˜ ao tem nenhuma rela¸c˜ao com a teoria de Skinner.” (MACCORQUODALE, 1970, pg. 98)(tradu¸c˜ ao nossa).

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“E o pior de tudo, Pinker est´ a simplesmente errado sobre a posi¸c˜ao de muitos daqueles que acusa de serem defensores da teoria da “lousa em branco”[tabula rasa , “blank slate”], especialmente John B. Watson e B. F. Skinner. Se Pinker se referisse a seus trabalhos de forma acertada, ele certamente encontraria posi¸c˜ oes que reconheciam tendˆencias inatas e atributos ou, em suas palavras, “natureza humana”. (. . . ) Em rela¸c˜ ao a Skinner, Pinker ´e especialmente ´aspero. Al´em de cham´a-lo de Maoista, Pinker representa erroneamente a posi¸c˜ao de Skinner sobre diversos assuntos e erra ao expor seus fatos. Devido ao status de Pinker, um observador n˜ao conseguiria evitar concluir que ele deve entender a teoria de Skinner, mas intencionalmente a distorce para beneficiar sua pr´opria posi¸c˜ao”. (SCHLINGER, 2002, pgs.76-77) (tradu¸c˜ ao nossa)

18 Imaginemos, por exemplo, dois computadores que foram criados para responder a inputs de maneiras diferentes: o primeiro utiliza um software intermediador para criar diferentes respostas a diferentes inputs, e o segundo oferece apenas uma resposta para cada input, mas tem o seu hardware modificado cada vez que um novo input ´e realizado. Ou seja, o primeiro computador usa um programa (o software) para processar os dados e enviar uma resposta, enquanto o segundo emite respostas autom´aticas por meio de seu pr´oprio hardware. No caso do primeiro computador, caso verifiquemos uma mudan¸ca nos outputs, precisaremos checar se esta ocorreu em fun¸ca˜o de uma mudan¸ca no hardware ou no software; no segundo, como n˜ao existe nenhum software, toda modifica¸ca˜o em outputs necessariamente ser´a atribu´ıvel a alguma modifica¸ca˜o no hardware 17 . Segundo as teorias cognitivistas, o c´erebro funcionaria como o primeiro computador, sendo a mente identificada com o “software” que processa os dados, o c´erebro com o “hardware” que roda este software, os est´ımulos externos com os “inputs” do comportamento e os comportamentos externamente observ´aveis com os “outputs” de cada input espec´ıfico. A distin¸c˜ao entre “mente” e “c´erebro”, portanto, seria similar a` distin¸ca˜o entre “software” e “hardware”. Adicionalmente, enquanto as teorias cognitivistas dualistas que s˜ao as que estamos criticando - entendem que software e hardware s˜ao totalmente independentes, as teorias monistas indicam que o primeiro sempre precisa possuir alguma esp´ecie de base no segundo. Por sua vez, a proposta behaviorista seria similar ao segundo computador, onde a fun¸ca˜o de “software” ´e exercida pelo pr´oprio “hardware”18 . Segundo esta vis˜ao, n˜ao ´e preciso que o c´erebro rode um programa para que observemos varia¸co˜es em seus outputs; o pr´oprio hardware cerebral se modifica com cada input (at´e mesmo aqueles fornecidos por ele mesmo), o que altera automaticamente os futuros outputs do mesmo sistema19 e, adicionalmente, permite que expliquemos estes em fun¸c˜ao do input espec´ıfico (contingˆencias ambientais), do “hardware” inicial (filogen´etica e varia¸co˜es individuais) e de todos os “inputs” realizados no mesmo “hardware” em momentos anteriores (ontogen´etica). Com isto, o “software” mental do cognitivismo (inobserv´avel por natureza20 ) d´a lugar ao “hardware”

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Com algumas modifica¸c˜ oes, caso tranpusessemos este racioc´ınio para o campo da inteligˆencia artificial, seria poss´ıvel tra¸car, grosso modo, tanto um paralelo tanto entre modelos computacionalistas e o primeiro computador quanto entre modelos conexionistas e o segundo computador.

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O que justificaria a alega¸c˜ ao de que “a mente ´e uma fic¸c˜ao explanat´oria”.

19

Este argumento de “mudan¸cas cerebrais” deve ser tomado apenas metaforicamente, j´a que os corpos dos organismos costumam ser conjuntos integrados e, por esta raz˜ao, seria mais correto falar em “mudan¸cas no organismo”, com um sentido mais amplo.

20

A menos que igualemos “mente” a “c´erebro”, ocasi˜ao na qual o “estudo da mente” ser´a sinˆ onimo de neurofisiologia. N˜ ao obstante, o estudo dos comportamentos atrav´es do “estudo da mente” seria incompleto, j´ a que, assim como n˜ ao podemos observar uma moeda e inferir a partir de suas propriedades f´ısicas de quem n´ os a recebemos, n˜ ao ´e poss´ıvel inferir qual est´ımulo ambiental foi respons´avel por uma mudan¸ca neurofisiol´ ogica a partir da mudan¸ca neurofisiol´ogica em si.

19 do organismo, no qual qualquer mudan¸ca pode ser verificada empiricamente por algu´em que possua os instrumentos adequados. De um ponto de vista cient´ıfico, esta distin¸ca˜o ´e absolutamente fundamental. Se observarmos uma pessoa se comportando de maneira X no momento T1 e de maneira Y no momento T2, segundo o modelo behaviorista, isto ´e um indicativo de que o “hardware” orgˆanico deste indiv´ıduo foi modificado, o que nos permitir´a decidir se preferimos investigar quais componentes foram modificados, em que estado eles se encontram agora, como esta modifica¸ca˜o ocorreu ou quais futuros efeitos poderemos esperar desta modifica¸ca˜o – sendo que os dois primeiros questionamentos possuem teor fisiol´ogico, e os dois u ´ltimos s˜ao eminentemente comportamentais. No entanto, segundo o modelo cognitivista dualista, esta mesma mudan¸ca pode se dar em raz˜ao de modifica¸c˜oes no software ou no hardware, e, a menos que identifiquemos o software com algo observ´avel (como o pr´oprio hardware 21 , o que, apesar de ser feito por alguns cognitivistas, faz com que a diferen¸ca conceitual entre cognitivismo e behaviorismo radical, neste aspecto, se torne apenas uma quest˜ao de semˆantica), toda mudan¸ca comportamental atribu´ıda ao software seria, por defini¸ca˜o, causada por algo metaf´ısico e inobserv´avel. Caso analisemos um modelo cognitivista monista que de fato identifique a mente como o c´erebro (ou alguma atividade deste), a grande diferen¸ca entre as duas abordagens deixar´a de ser a estrutura causal do comportamento e se tornar´a o ponto onde ambas interrompem o ciclo causal de eventos e consideram as informa¸co˜es obtidas como suficientes para uma explica¸ca˜o dos eventos observados. Enquanto os cognitivistas creem que os estados de coisas presentes no interior de um organismo deve, em regra, ser o ponto final de regress˜ao causal em an´alises e explica¸co˜es referentes `as causas de um comportamento, os behavioristas creem que a an´alise precisa regredir ainda mais, devendo alcan¸car os fatores externos atuantes sobre o organismo no momento imediatamente anterior ao comportamento. Ademais, enquanto os cognitivistas acreditam que tais estados s˜ao entidades psicol´ogicas com caracter´ısticas pr´oprias (os chamados “estados mentais”), os behavioristas afirmam estes ou s˜ao fic¸co˜es explicativas (ou seja, estados meramente putativos) ou s˜ao met´aforas correspondentes a mudan¸cas fisiol´ogicas22 . Disto decorre o

21

O que acontece com os pr´ oprios computadores que usamos em nosso dia-a-dia, j´a que, a despeito do desvirtuamento dos termos software e hardware pelos te´oricos que usam a met´afora para defender posi¸c˜ oes dualistas, todo software realiza alguma modifica¸c˜ao f´ısica no hardware onde ´e instalado.

22

”Apresentamos anteriormente alguns problemas inerentes aos construtos hipot´eticos. Por ser formado por construtos hipot´eticos, ´e de se esperar que o sistema nervoso conceitual seja suscet´ıvel a todas essas cr´ıticas. De fato, podemos encontrar na obra de Skinner passagens cr´ıticas aos construtos hipot´eticos exemplificados pelo sistema nervoso conceitual. Para Skinner (1974), os modelos hipot´eticos das teorias s˜ ao meramente “met´ aforas question´aveis” (p. 218). E mais: a ausˆencia de compromisso com o funcionamento do sistema nervoso real torna as teorias “termodinˆamicas” do sistema nervoso insens´ıveis ao teste experimental.”(ZILIO, 2015, pg. 471)

20 famoso dito behaviorista de que “a mente ´e uma fic¸c˜ao explanat´oria”; explica¸c˜oes mentalistas nem sempre tˆem correspondentes neurol´ogicos e, mesmo quando o possuem, uma vez que todas as fun¸c˜oes realizadas por o´rg˜aos ou outros componentes do corpo humano s˜ao comportamentos deste pr´oprio organismo 23 , utiliz´a-los para explicar outros comportamentos ´e explicar comportamentos em termos de comportamentos e, n˜ao obstante, deixar estes u ´ltimos sem explica¸ca˜o nenhuma, tornando a an´alise incompleta devido `a ausˆencia de referˆencia a fatores que n˜ao sejam puramente comportamentais (e que, com isto, n˜ao carecem de mais explica¸co˜es). Portanto, enquanto os cognitivistas atribuem a estados internos do organismo papel causal em rela¸ca˜o ao comportamento e uma rela¸c˜ao de protagonismo na explica¸c˜ao dos comportamentos, os behavioristas consideram eventuais atividades internas relevantes para a explica¸c˜ao do fenˆomeno comportamental como comportamentos propriamente ditos e, n˜ao obstante, postulam a necessidade de explicar rela¸co˜es funcionais eventualmente existentes entre comportamentos e est´ımulos ambientais. Isto porque na concep¸c˜ao do behaviorismo radical, comportamento ´e, por defini¸c˜ao, “tudo aquilo que os organismos fazem” 24 , abarcando, por exemplo, todos os atos “intencionais” de um organismo, comportamentos como “pensar” ou “se recordar de algo” e at´e mesmo comportamentos involunt´arios, como os movimentos digest´orios e respirat´orios realizados pelo organismo. ´ importante indicar tamb´em que, muito embora os sistemas explicativos cogniE tivista e behaviorista normalmente sejam apresentados como distintos e autˆonomos, em fun¸ca˜o das similitudes tanto de objeto quando de m´etodo que s˜ao ´ınsitas aos mesmos, temos que toda explica¸ca˜o behaviorista pode ser convertida em uma explica¸ca˜o cognitivista mediante supress˜ao de elementos funcionais e, ao rev´es, muitas explica¸co˜es cognitivistas - mas n˜ao todas - podem ser convertidas em explica¸co˜es behavioristas mediante a adi¸ca˜o do est´ımulo externo respons´avel pela causa do “estado mental” utilizado para explicar os comportamentos analisados. Portanto, todas as afirma¸co˜es realizadas neste trabalho

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Os comportamentos realizados pelos ´org˜aos do corpo humano s˜ao classificados por behavioristas como comportamentos “respondentes”, que ser˜ao melhor explicados em cap´ıtulo posterior. Na literatura n˜ ao-cient´ıfica, estes comportamentos s˜ao usualmente chamados de comportamentos “involunt´arios” do organismo, distinguindo-se de todos os comportamentos “volunt´arios” ou “intencionais” (que, em uma an´ alise funcional, s˜ ao denominados “comportamentos operantes”).

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Uma cr´ıtica frequente feita pelo cognitivismo ao behaviorismo radical ´e a de que o mesmo ignora completamente os eventos internos do organismo durante a explica¸c˜ao do comportamento. No entanto, tais cr´ıticas s˜ ao eficazes apenas contra o behaviorismo metodol´ogico de Watson, uma vez que Skinner jamais negou a existˆencia de tais eventos e, inclusive, busca explic´a-los no bojo de sua an´alise. A an´ alise de eventos particulares Skinneriana se diferencia da an´alise cognitivista na medida em que, enquanto na u ´ltima estes s˜ ao considerados estados ou processos mentais, na primeira s˜ao considerados comportamentos privados do indiv´ıduo, do que decorre que s˜ao regidos plenamente pela estrutura que determina os comportamentos em geral. Com isto, temos que a defini¸c˜ao de comportamento adotada pelo behaviorismo radical ´e mais branda do que a defini¸c˜ao leiga, onde apenas os comportamentos vis´ıveis e “volunt´ arios” s˜ ao considerados comportamentos propriamente ditos.

21 podem ser aproveitadas tanto por cognitivistas quanto por behavioristas, minorando em larga medida os preju´ızos eventualmente decorrentes da exclus˜ao met´odica do modelo cognitivista. Para tal, basta que se expliquem funcionalmente os comportamentos a que os cognitivistas atribuem eventos mentais, desta forma efetivamente eliminando entidades puramente conceituais, “desmentalizando” as causas que possuam correspondente emp´ırico e, por fim, posicionando-as corretamente em uma cadeia causal25 . Por fim, ainda em rela¸ca˜o aos ditos “eventos mentais”, ´e importante ressaltar mais uma vez que, de acordo com o que j´a foi exposto, o u ´ltimo elemento da cadeia causal dos comportamentos humanos, a despeito do que pretende o cognitivismo, jamais pode ser um estado de coisas ou substˆancia no interior do mesmo, eis que estes estados de coisas, quando efetivamente existentes no mundo f´ısico (ou seja, caso sejam estados putativos mentais que, de fato, possuem correspondentes biol´ogicos), por serem comportamentos do pr´oprio organismo, tamb´em devem ser explicados a partir de outros elementos para que a explica¸c˜ao do fenˆomeno comportamental seja satisfat´oria. As causas de um comportamento devem sempre ser identificadas no meio em que o organismo que os emite se insere e nas for¸cas que atuam sobre ele, eis que, como j´a visto, uma completa disjun¸ca˜o entre indiv´ıduo e meio ´e imposs´ıvel e, ainda, que as cadeias causais nunca podem ser completamente isoladas, do que decorre que todo “estado mental” em que o indiv´ıduo supostamente se encontre possui como causa um evento f´ısico cronologicamente anterior, cuja considera¸ca˜o ´e imprescind´ıvel para uma an´alise funcional eficiente. Portanto, toda fixa¸ca˜o de causas u ´ltimas no interior do individuo acaba por deixar parte de seu comportamento sem explica¸c˜ao alguma e, com isso, frustra o objetivo principal de qualquer ciˆencia que se preste a fornecer explica¸co˜es apuradas. Outro grande problema da an´alise cognitivista ´e o fato de que, muitas vezes, os “estados mentais” s˜ao derivados n˜ao de an´alises das condi¸co˜es fisiol´ogicas existentes no interior dos organismos, mas sim dos pr´oprios comportamentos analisados, o que gera uma inevit´avel circularidade explicativa. Como exemplo disto, imaginemos, retornando ao caso de agress˜ao entre o homem X e o homem Y, que, tempos ap´os a agress˜ao, o homem X avista o homem Y novamente e, logo ap´os, agride-o mais uma vez. Neste caso, uma explica¸ca˜o cognitivista aceit´avel para o fenˆomeno seria “X agrediu Y porque X estava com raiva de Y”. No entanto, tal explica¸c˜ao ´e tida como desprovida de car´ater explicativo e totalmente

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“Nosso conhecimento cada vez maior do controle exercido pelo meio ambiente torna poss´ıvel examinar o efeito do mundo dentro da pele e a natureza do autoconhecimento. Possibilita tamb´em interpretar uma ampla gama de express˜ oes mentalistas. Por exemplo, podemos considerar aqueles tra¸cos de comportamento que levaram as pessoas a falar de um ato de vontade, um senso de prop´osito, da experiˆencia como algo distinto da realidade, de ideias inatas ou adquiridas, de lembran¸cas, de significados, do conhecimento pessoal do cientista, e de centenas de outras coisas e acontecimentos mentalistas. Alguns podem ser “traduzidos em comportamento”; outros, descartados como desnecess´arios ou sem sentido” (SKINNER, 1995, pgs.19-20)

22 circular na o´tica behaviorista, uma vez que, neste caso, o comportamento agressivo ´e a u ´nica prova oferecida como indicativo de que X est´a no estado emocional “raiva” e, por sua vez, raiva ´e oferecida como explica¸c˜ao direta do comportamento agressivo. Em outras palavras, a afirma¸ca˜o “X agrediu Y porque X estava com raiva de Y” ´e circular porque “X est´a com raiva de Y” ´e extra´ıdo do fato de que houve um ato de agress˜ao e, por sua vez, “X agrediu Y” ´e explicado atrav´es da existˆencia do estado emocional de raiva. As explica¸co˜es cognitivistas deste tipo, portanto, extraem estados mentais fict´ıcios de comportamentos e, logo ap´os, utilizam estes mesmos estados para explicar o comportamento analisado. Tais entidades putativas, conforme j´a foi afirmado, n˜ao necessariamente correspondem a algum estado fisiol´ogico; no entanto, ante a necess´aria presen¸ca de uma altera¸ca˜o fisiol´ogica no organismo antes da pr´atica de qualquer comportamento, n˜ao h´a nenhum o´bice a` sua substitui¸ca˜o pelos “estados mentais” com correspondentes f´ısicos analisados anteriormente ou, ainda, por simples comportamentos do organismo. Uma an´alise behaviorista deste mesmo caso, por sua vez, seria obrigada a reconhecer que o estado emocional “raiva” ´e causado por fatores externos ao homem X e que, com isso, n˜ao pode ser utilizado por si s´o como explica¸c˜ao do comportamento de agress˜ao. Se X agrediu Y, algum est´ımulo ou evento anterior atuante sobre X determinou o comportamento agressivo e a predisposi¸ca˜o caracterizada pela emo¸c˜ao, sendo necess´ario, para que a ocorrˆencia do comportamento seja plenamente explicada, que todos os fatores externos relevantes sejam descritos e analisados26 . Neste caso, temos que a rela¸ca˜o funcional ´e estabelecida, em u ´ltima instˆancia, entre a agress˜ao de X (comportamento) e a ofensa de Y (est´ımulo externo), sendo que a explica¸c˜ao mais completa para o comportamento est´a exposta em proposi¸c˜oes similares a “X agrediu Y em fun¸c˜ao do comportamento verbal de Y a que se chama de ofensa ”27 Neste caso o estado fisiol´ogico que corresponde ao comportamento, muito embora possa ser representado na proposi¸c˜ao explicativa, ´e de pouca valia para a an´alise e pode, inclusive, ser suprimido na explica¸c˜ao final, uma vez que se mostra, na esfera comportamental, como um simples mediador entre o comportamento que se deseja analisar (agress˜ao) e o est´ımulo que, em u ´ltima instˆancia, lhe deu causa

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“Se o problema da emo¸c˜ ao for concebido apenas como quest˜ao de estados interiores, n˜ao ´e prov´ avel que se consiga progressos em tecnologia pr´atica. N˜ao ´e de qualquer aux´ılio, na solu¸c˜ao de um problema pr´ atico, dizer-se que algum aspecto do comportamento do homem se deve `a frustra¸c˜ao ou `a ansiedade: precisamos tamb´em saber como a frustra¸c˜ao ou a ansiedade foi induzida e como pode ser alterada. No final, encontramo-nos lidando com dois eventos – o comportamento emocional e as condi¸c˜oes manipul´ aveis das quais esse comportamento ´e fun¸c˜ao – que constituem o objeto pr´oprio do estudo da emo¸c˜ ao.” (SKINNER, 2003, pg. 184)

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“X agrediu Y em fun¸c˜ ao do comportamento verbal emitido por Y, que ´e um est´ımulo discriminativo verbal” seria uma descri¸c˜ ao mais apurada do comportamento em comento, mas, por encontrar-se ainda na introdu¸c˜ ao deste trabalho, o exemplo foi simplificado, permitindo assim uma melhor compreens˜ ao por parte do leitor.

23 (ofensa)28 , devendo an´alises mais aprofundadas a seu respeito serem feitas no campo da fisiologia. N˜ao obstante, caso desej´assemos analisar o comportamento de Y ao ofender X, tamb´em seria necess´aria uma an´alise independente dos est´ımulos sobre ele atuantes; todos os comportamentos humanos s˜ao realizados em uma cadeia causal que se protrai no passado, sendo imperativo o reconhecimento de que quaisquer isola¸co˜es de est´ımulos e interrup¸co˜es dos nexos causais s˜ao realizadas apenas pela conveniˆencia que tais expedientes proporcionam aos estudos realizados. As cr´ıticas do behaviorismo ao cognitivismo, em suma, costumam revolver em torno da incompletude das an´alises que identificam estados fisiol´ogicos com “estados mentais” (devido a` necessidade de explicar o que desencadeou o comportamento que lhe corresponde recorrendo a est´ımulos exteriores), da circularidade e da poss´ıvel n˜ao correspondˆencia a eventos comportamentais internos ou fisiol´ogicos de an´alises que derivam “estados mentais” diretamente de comportamentos observ´aveis (eis que o estado ´e criado a partir do comportamento e, logo ap´os, utilizado para explicar o mesmo). Com isto, temos que a utiliza¸c˜ao do paradigma behaviorista no presente trabalho visa unicamente a otimizar os resultados produzidos e descrevˆe-los da forma mais clara e completa poss´ıvel; todas as suas conclus˜oes poderiam ser apresentadas em termos cognitivistas, muito embora creia-se que isto n˜ao seria nem conveniente nem produtivo. Talvez ainda possam existir obje¸co˜es a esta escolha e talvez, ainda, elas n˜ao seja de todo injustificadas – no entanto, este trabalho n˜ao ser´a escrito de forma a excluir cabalmente a abordagem cognitivista, o que permitir´a, sem d´ uvidas, que uma gama ainda maior de pesquisadores possa utilizar seus resultados e se beneficiar da an´alise aqui realizada.

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Isto ´e feito unicamente em nome da economia explicativa. O estado emocional “sentir raiva” caracteriza-se por ser uma predisposi¸c˜ao do organismo a determinados comportamentos e, com isso, normalmente apresenta-se em conjunto com in´ umeros outros comportamentos que seriam, em tese, pass´ıveis de descri¸c˜ ao na an´ alise do caso (como altera¸c˜ao no funcionamento de glˆandulas, aumento da sudorese, acelera¸c˜ ao do pulso, poss´ıvel enrijecimento muscular, etc), mas nenhuma delas ´e realmente importante para o fornecimento de uma explica¸c˜ao simples do comportamento de agress˜ao neste caso, o que efetivamente nos autoriza a suprimir todos estes comportamentos na explica¸c˜ao final e, por conveniˆencia, estabelecer um nexo direto entre o est´ımulo ”ofensa”e o comportamento final ”agress˜ ao”.

24 ˆ 2 ELEMENTOS FUNDAMENTAIS DAS CIENCIAS COMPORTAMENTAIS

2.1 Categorias descritivas essenciais para uma an´ alise do comportamento Para que possamos realizar uma an´alise funcional dos fenˆomenos comportamentais, ´e necess´ario que procedamos a uma decomposi¸ca˜o do evento comportamental total para, subsequentemente, realizarmos uma classifica¸c˜ao dos elementos em que tais fenˆomenos se subdividem, de acordo com as propriedades que os definem. Desta forma, estabeleceremos uma s´erie de conceitos fundamentais nos termos dos quais os comportamentos poder˜ao vir a ser descritos e analisados. N˜ao obstante, as diferentes formas de comportamento precisam ser explicadas de acordo com suas especificidades, o que torna importante a realiza¸ca˜o de uma caracteriza¸ca˜o diferenciada para cada esp´ecie comportamental.

2.1.1 Comportamentos respondentes De menor importˆancia para este trabalho (mas, ainda assim, extremamente importante para a ciˆencia comportamental como um todo), os comportamentos respondentes s˜ao aqueles nos quais um organismo pronta e involuntariamente reage a um est´ımulo externo espec´ıfico, devendo tal rea¸ca˜o necessariamente acontecer sempre que o est´ımulo ´e apresentado a este mesmo organismo nas mesmas condi¸c˜oes (ou seja: dadas certas condi¸c˜oes pr´evias, n˜ao ´e poss´ıvel que o est´ımulo seja apresentado e a resposta n˜ao ocorra)29 . Tais comportamentos s˜ao considerados involunt´arios devido ao pr´oprio mecanismo biol´ogico empregado pelos organismos na media¸c˜ao entre est´ımulo e resposta (denominado arco reflexo), no qual os est´ımulos, ap´os entrarem em contato com o organismo, s˜ao transmitidos

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Outras regras comportamentais restringem e determinam ainda mais o funcionamento dos respondentes - como a Lei do Limiar, que indica a existˆencia de um n´ıvel de estimula¸c˜ao m´ınimo para que um comportamento seja elicitado por um est´ımulo. Skinner faz uma descri¸c˜ao precisa de boa parte delas (separando-as em leis dinˆ amicas e est´aticas do comportamento) em seu livro “The Behavior of Organisms (SKINNER, 1938)”. Estas regras n˜ao ser˜ao expostas em maiores detalhes aqui, tendo em vista a menor importˆ ancia dos respondentes para a presente an´alise, mas est˜ao transcritas no rodap´e no 31.

25 diretamente para um centro reflexo, n˜ao sofrendo nenhuma media¸ca˜o cerebral30 . Podemos citar, como exemplos de respondentes comuns em diversos organismos, a contra¸ca˜o das pupilas elicitada por contatos diretos dos olhos com a luz, bem como a saliva¸ca˜o, comumente elicitada pela apresenta¸ca˜o de comida a organismos com algum grau de priva¸c˜ao de alimentos. As principais e mais importantes categorias de an´alise dos comportamentos respondentes, desde os tempos de Ivan Pavlov, s˜ao as de est´ımulo elicitante (S) e resposta (R), sendo o epis´odio comportamental total composto pelos dois denominado reflexo. O esquema explicativo baseado nestes dois elementos usualmente ´e classificado pelos te´oricos do comportamento como S-R (est´ımulo-resposta) ou S-O-R (est´ımulo-organismoresposta). Define-se como est´ımulo elicitante todo evento ambiental que elicita (causa) uma resposta (comportamento) em determinado organismo imediatamente ap´os a sua atua¸ca˜o sobre o mesmo. Para que a rela¸c˜ao est´ımulo-resposta seja verificada, ´e necess´ario que se observe tanto a antecedˆencia do fenˆomeno (ou fenˆomenos) classificado como est´ımulo quanto a necess´aria ocorrˆencia posterior do fenˆomeno classificado como resposta. Devido a esta rela¸c˜ao de correspondˆencia, diz-se que o comportamento operante est´a sob o controle da vari´avel correspondente ao est´ımulo elicitante. S˜ao explicados pelo esquema S-R, al´em dos atos involunt´arios externos em geral, todos os comportamentos atinentes ao funcionamento interno dos organismos, como, por exemplo, os movimentos digest´orios e card´ıacos dos seres humanos. A u ´nica diferen¸ca significativa existente entre ambos os tipos de respondente ´e a estrutura dos arcos reflexos que exercem a rela¸c˜ao de controle; quando a estimula¸c˜ao est´a relacionada ao funcionamento de um ´org˜ao interno, trata-se de um arco reflexo denominado autonˆomico. Quando, ao rev´es, trata-se de estimula¸ca˜o relacionada a movimentos musculares do organismo, o arco reflexo ´e denominado som´atico. Claramente, muito embora sua base te´orica de sua explica¸ca˜o sirva como ponto de partida para a compreens˜ao do funcionamento de outros tipos de comportamento, o comportamento respondente normalmente interessa mais a m´edicos e fisiologistas do que a psic´ologos e juristas, raz˜ao pela qual ser´a estudado neste trabalho apenas de forma superficial.

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Neste ponto, ´e de extrema valia a defini¸c˜ao concisa de “arco reflexo” realizada pela p´agina em inglˆes da Wikip´edia, que a seguir transcrevo: “Um arco reflexo ´e um percurso neural que controla um reflexo de a¸c˜ ao. Em animais superiores, a maioria dos neurons sensoriais n˜ao passa diretamente pelo c´erebro, mas fazem sinapse na medula espinhal. Esta caracter´ıstica permite que a¸c˜oes reflexas ocorram de forma relativamente r´ apida ao ativar neuros espinhais motores sem a demora do roteamento de sinais pelo c´erebro, muito embora o c´erebrov´ a receber inputs sensoriais enquanto o reflexo ocorre. A an´alise do sinal acontece ap´ os a tomada da a¸c˜ ao.” (WIKIPEDIA, 2016b)(tradu¸c˜ao nossa

26 2.1.2 Comportamentos operantes Enquanto os comportamentos respondentes s˜ao caracterizados como verdadeiros “reflexos” dos est´ımulos elicitantes que atuam sobre o organismo, os comportamentos ditos operantes, muito embora tamb´em sejam controlados por fatores externos, n˜ao possuem esta rela¸c˜ao de estrita simetria com os est´ımulos que o determinam, sendo, ao rev´es, emitidos de forma aparentemente espontˆanea pelo organismo. Com isto, temos que a resposta operante n˜ao ´e elicitada diretamente pelos est´ımulos atuantes sobre o organismo, mas sim emitida pelo organismo enquanto este encontra-se sob a influˆencia destes. O estudo dos comportamentos operantes, apesar de constituir a parte mais importante das ciˆencias comportamentais na atualidade, afigura-se como uma conceito relativamente recente nas teorias behavioristas, uma vez que a existˆencia de comportamentos que fugiriam ao escopo do esquema S-R foi historicamente negada por behavioristas cl´assicos devido a`s implica¸co˜es que tal conjectura possivelmente traria para o polˆemico debate filos´ofico acerca da existˆencia ou n˜ao do livre-arb´ıtrio. Em geral, esta negativa era justificada com base em paradigmas e perspectivas para os quais o determinismo era de fundamental importˆancia, tendo a pr´opria possibilidade de existˆencia de comportamentos n˜ao determinados por est´ımulos diretamente atuantes sobre o organismo no momento de sua pr´atica historicamente relacionada a` existˆencia de algum grau de indetermina¸ca˜o comportamental (o que, no caso humano, presumivelmente implicaria no entendimento de que os indiv´ıduos seriam dotados de alguma medida de liberdade, seja qual for a origem desta). Por o´bvio, a indetermina¸ca˜o intr´ınseca do fenˆomeno analisado, ainda que parcial, imporia importantes ´obices a` possibilidade de organiza¸ca˜o dos seus estudos em uma disciplina cient´ıfica31 . A solu¸c˜ao dada por Skinner ao impasse dos cientistas comportamentais adeptos do behaviorismo frente a comportamentos que n˜ao pareciam se enquadrar no esquema S-R (ou seja, comportamentos emitidos por um organismo sem a presen¸ca de um est´ımulo elicitante claramente identific´avel) consistiu na elabora¸ca˜o um modelo te´orico que compatibilizava plenamente a existˆencia de comportamentos n˜ao respondentes com os pressupostos do determinismo cient´ıfico. Segundo este novo modelo, o comportamento operante seria emitido por um organismo em determinado ambiente e, ap´os produzir efeitos sobre este, modificaria determinadas propriedades em comportamentos futuros daquele mesmo tipo, sendo estas

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Prova maior disso ´e a problem´ atica atualmente existente na mecˆanica quˆantica, onde interpreta¸c˜ oes indetermin´ısticas (como a de Copenhague e a de Von Neumann) e determin´ısticas (como a De BroglieBohm e a IMM) coexistem, n˜ ao havendo consenso cient´ıfico (muito embora a teoria de Copenhague possua alguma predominˆ ancia) sobre a determina¸c˜ao ou indetermina¸c˜ao dos eventos f´ısicos, principalmente devido ` a ausˆencia de evidˆencias emp´ıricas que pesem em favor de uma ou outra teoria.

27 observ´aveis quando (ou se) estes vierem a ser emitidos por aquele mesmo organismo novamente em um momento posterior. Em outras palavras: ap´os “operar” sobre o ambiente, o organismo em si ´e modificado pelas consequˆencias de seu comportamento, sendo tais mudan¸cas prospectivamente mensur´aveis em termos de modifica¸co˜es nos aspectos relevantes de comportamentos similares que vierem a ser observados no mesmo organismo. A este processo de modifica¸ca˜o prospectiva dos comportamentos operantes se d´a o nome de condicionamento operante. As diferentes formas de condicionamento ser˜ao melhor analisadas por n´os no t´opico 2.1.4. Como afirmado anteriormente, a abdica¸ca˜o da pretens˜ao de explicar o comportamento dos organismos em fun¸ca˜o exclusivamente dos est´ımulos sobre ele atuantes levanta alguns questionamentos te´oricos, aos quais devemos dedicar alguma aten¸ca˜o. Em primeiro lugar, ´e importante ressaltar que o car´ater “espontˆaneo” do comportamento operante se d´a n˜ao em raz˜ao de indetermina¸c˜oes intr´ınsecas do fenˆomeno comportamental, mas sim em fun¸ca˜o dos elementos filogen´eticos (hist´oria evolutiva da esp´ecie a qual o organismo pertence, bem como padr˜oes comportamentais estabelecidos nesta via sele¸ca˜o natural), ontogen´eticos (hist´orico de condicionamentos realizados no organismo no passado ou, em termos leigos, a “experiˆencia de vida” do organismo) e culturais (contexto social no qual o organismo est´a inserido, bem como os est´ımulos aos quais o organismo est´a exposto neste) que concorrem para a determina¸ca˜o dos comportamentos emitidos. Portanto, para que determinada explica¸ca˜o comportamental se repute completa, ´e necess´aria a realiza¸c˜ao concomitante de uma an´alise biol´ogica (filogˆenica), psicol´ogica (ontogˆenica) e antropol´ogica (cultural) do organismo em an´alise. An´alises filogˆenicas e culturais obviamente demandam uma integra¸ca˜o entre campos cient´ıficos, mas o behaviorismo ´e capaz de explicar por si s´o os aspectos ontogˆenicos do comportamento. E ´e precisamente neste ponto em que s˜ao inseridos os aspectos operantes do comportamento, uma vez que os efeitos prospectivos do processo de condicionamento decorrem diretamente da influˆencia que comportamentos observados em determinado momento sofrem de eventos que ocorreram ap´os a sua emiss˜ao e de est´ımulos presentes no momento em que esta ocorreu. Tendo como objeto de an´alise um comportamento espec´ıfico (C) emitido em determinado ambiente ou na presen¸ca de determinado elemento/est´ımulo ambiental (A) e com efeitos pr´oprios (E), o esquema operante indica que a intera¸ca˜o entre os trˆes termos ocorre da seguinte forma: 1 – (C) ´e emitido na presen¸ca de (A) 2 – (E) ocorre em virtude de (C) 3 – (E) modificar´a prospectivamente as propriedades de (C) quando o organismo se encontrar novamente sob a influˆencia de (A) Este ´e o modelo explicativo denominado contingˆencia de trˆes termos ou con-

28 tingˆencia tr´ıplice 32 , e seus termos s˜ao usualmente representados pelas categorias est´ımulo discriminativo(correspondente ao termo “A” no exemplo, sendo denotado por “Sd ” na literatura pr´opria), resposta operante (“C” no exemplo, “R” na literatura) e est´ımulo refor¸cador, que pode ser positivo ou negativo (“E” no exemplo, “Sr ” para refor¸co em geral, “Sr +” para refor¸co positivo e “Sr −“ para refor¸co negativo na literatura). Com isto, temos que a f´ormula respondente (S-R) ´e suplantada pela f´ormula operante (Sd-R-Sr ) no contexto de respostas operantes. J´a analisamos o termo “R” quando conceituamos “comportamento” na teoria behaviorista, mas ainda precisamos definir com maior precis˜ao quais s˜ao as diferentes categorias de est´ımulos atuantes sobre as respostas operantes.

2.1.3 Est´ımulos e suas propriedades Tanto em rela¸c˜ao a operantes quanto a respondentes, os est´ımulos ambientais possuem propriedades empiricamente verific´aveis que afetam diretamente os comportamentos que elicitam ou condicionam, exercendo influˆencia, ainda, sobre outras vari´aveis diversas.

2.1.3.1 Est´ımulos aversivos e refor¸cadores Diz-se que um est´ımulo ´e refor¸cador para um organismo quando ele tende a gerar (ou aumentar a probabilidade de) comportamentos que buscam ativamente a sua implementa¸c˜ao ou o aumento da sua incidˆencia. Em geral, est˜ao relacionados a comportamentos do organismo que visam a` obten¸c˜ao de algum bem material ou efeito positivo, sendo normalmente33 percebidos como “bons” ou “positivos” pelos organismos que a ele s˜ao submetidos. Como exemplo de intera¸ca˜o entre est´ımulo refor¸cador e comportamento, podemos citar a rela¸ca˜o existente entre o bom atendimento recebido pelo cliente de um restaurante e o subsequente aumento na quantidade de visitas que este faz ao mesmo estabelecimento.

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Atualmente, alguns te´ oricos ampliaram este esquema e criaram o esquema de contingˆencia de quatro termos, onde um fator adicional (est´ımulo condicional) ´e levado em conta no momento representado pelo ponto “1” do exemplo dado. Este quarto termo seria utilizado para denotar explicitamente a utiliza¸c˜ ao de fatores que j´ a eram considerados pela pr´atica behaviorista tradicional, como, por exemplo, condi¸c˜ oes de priva¸c˜ ao e sacia¸c˜ ao do organismo, fatores emocionais e fatores “motivacionais”.

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Dizemos “normalmente” porque este elemento n˜ao est´a incluso na defini¸c˜ao de “refor¸cador”, sendo apenas um elemento acidental comumente observado. Para que um est´ımulo seja considerado refor¸cador, basta que se observe um aumento na frequˆencia do comportamento ap´os a contingencia¸c˜ao do est´ımulo a resposta. `

29 Diz-se que um est´ımulo ´e aversivo para um organismo quando ele tende a gerar (ou aumentar a probabilidade de) comportamentos que fa¸cam cessar ou diminuir os efeitos do pr´oprio est´ımulo. Em geral, est˜ao relacionados a comportamentos de escapat´oria, sendo normalmente34 percebidos como “ruins” ou “negativos” pelos organismos que sofrem seus efeitos. Como exemplo de rela¸ca˜o entre est´ımulo aversivo e comportamento, podemos citar a rela¸ca˜o existente entre a sa´ıda de um homem de uma biblioteca e ru´ıdos que estavam sendo emitidos por outras pessoas naquele ambiente e o incomodavam. ´ importante ressaltar que o car´ater aversivo ou refor¸cador de um est´ımulo deve E sempre ser aferido em concreto, uma vez que o que ´e aversivo ou refor¸cado para um organismo n˜ao necessariamente o ´e para outro. A classifica¸ca˜o, em regra35 , deve ser feita de acordo com os efeitos observados em rela¸c˜ao a determinado organismo. O terceiro termo do esquema Sd-R-Sr ´e composto, como j´a vimos, por uma consequˆencia que refor¸ca a resposta R. No entanto, este efeito n˜ao necessariamente ´e um est´ımulo refor¸cador positivo (Sr +), consistente na apresenta¸ca˜o de um est´ımulo refor¸cador, tamb´em podendo ser um est´ımulo refor¸cador negativo (Sr −), que consiste na remo¸c˜ao de um est´ımulo aversivo do ambiente em que se encontra o organismo. Estas duas consequˆencias possuem um mesmo resultado pr´atico, qual seja, o efeito de refor¸co/aumento da probabilidade de ocorrˆencia do comportamento, muito embora n˜ao sejam completamente idˆenticas em seus efeitos. Podemos oferecer como exemplo ilustrativo da diferen¸ca, v.g. o caso de um leitor que sai de um ambiente barulhento (ou seja, onde o est´ımulo aversivo “barulho” est´a presente) e, ap´os ir a` biblioteca, encontra um ambiente silencioso e prop´ıcio a` leitura. Neste caso, idas `a biblioteca ser˜ao negativamente refor¸cadas em rela¸ca˜o ao est´ımulo discriminativo “leitura em ambiente barulhento”, se tornando mais prov´aveis nas pr´oximas ocasies em que o indiv´ıduo se encontrar em uma situa¸ca˜o similar. Caso o leitor, no entanto, fosse para a biblioteca apenas para ter acesso a determinado livro e, ao chegar, o encontrasse l´a, suas idas a` biblioteca se tornariam mais prov´aveis devido a` presen¸ca do livro naquele ambiente (ou seja, de um est´ımulo refor¸cador). Com isto, temos que tanto a apresenta¸c˜ao de um est´ımulo refor¸cador quanto a supress˜ao de um est´ımulo aversivo s˜ao eventos refor¸cadores, sendo importante termos em mente que o voc´abulo “negativo”, neste contexto, em nada est´a relacionado com decr´escimos na frequˆencia do comportamento. Estas rela¸co˜es de refor¸co ser˜ao melhor estudadas no t´opico 2.1.4, ocasi˜ao em que

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Mais uma vez, temos que este aspecto, apesar de ser observado com frequˆencia neste tipo de est´ımulo, n˜ ao est´ a incluso na defini¸c˜ ao de ”aversivo”. Para que um est´ımulo seja considerado aversivo, basta que se observe uma diminui¸c˜ ao na frequˆencia do comportamento ap´os a contingencia¸c˜ao do est´ımulo ` a resposta.

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Devido ` a origem filogen´etica de parte significativa destes efeitos, ´e poss´ıvel que se fa¸ca um estudo dos efeitos comuns de determinado est´ımulo sobre os organismos que s˜ao membros de determinada esp´ecie.

30 dedicaremos mais aten¸ca˜o a` an´alise dos processos de condicionamento respondente e operante.

2.1.3.2 Est´ımulos incondicionados e condicionados Com rela¸c˜ao a` origem de seus efeitos refor¸cadores ou aversivos, os estimulos podem ser incondicionados ou condicionados. Est´ımulos incondicionados s˜ao aquele cujos efeitos prim´arios independem da pr´evia realiza¸ca˜o de condicionamento sobre o organismo no qual operam – ou seja, que exercem sua influˆencia mesmo que o organismo nunca tenha entrado em contato com est´ımulos similares em per´ıodos anteriores. Com isto, um est´ımulo ser´a considerado incondicionado em rela¸ca˜o a determinado organismo sempre que verificarmos independˆencia entre algumas das propriedades refor¸cadoras ou aversivas do est´ımulo e o hist´orico de refor¸co (ontogenia) do indiv´ıduo. Por vezes, os est´ımulos incondicionados tamb´em s˜ao chamados de est´ımulos prim´arios. A existˆencia de efeitos incondicionados ´e determinada por fatores filogen´eticos presentes no organismo e, por esta raz˜ao, estes sofrempouca ou nenhuma influˆencia de fatores ontogen´eticos. A determina¸ca˜o do que ´e incondicionalmente aversivo ou refor¸cador cabe ao hist´orico evolutivo de cada esp´ecie ou filo, o que importa dizer que o surgimento ou a manuten¸ca˜o de novos est´ımulos incondicionados ´e determinado essencialmente pelo processo de sele¸ca˜o natural. A t´ıtulo de exemplo, indiquemos que um organismo humano n˜ao precisa de condicionamento pr´evio para sentir dor quando alguma parte de seu corpo entra em contato com fogo, se sentir incomodado em ambientes onde est˜ao sendo tocados sons agudos em volume excessivamente alto ou se sentir saciado ap´os uma refei¸ca˜o farta. Uma vez que a efetividade destes est´ımulos depende em larga medida da configura¸c˜ao biol´ogica do organismo afetado, suas propriedades principais s´o poder˜ao deixar de existir caso esta seja alterada de forma a modificar totalmente a intera¸ca˜o do organismo com o est´ımulo (como seria o caso, por exemplo, de uma pessoa que se torne surda ou nas¸ca com altera¸c˜oes gen´eticas que a impe¸cam de sentir dor). Por sua vez, um est´ımulo dever´a ser considerado condicionado sempre que seus efeitos, ao inv´es de operarem modifica¸c˜oes no organismo independentemente de seu hist´orico de refor¸camento, forem estritamente dependentes da realiza¸ca˜o de condicionamento pr´evio naquele mesmo organismo. Estes efeitos condicionados, por meio dos processos de condicionamento, ser˜ao “adquiridos” por est´ımulos que n˜ao possuiam tais propriedades antes da realiza¸ca˜o do processo de condicionamento. Em estrita oposi¸c˜ao aos est´ımulos incondicionados, os est´ımulos condicionados, por serem frutos diretos dos processos de condicionamento, devem ter suas origens explica-

31 das preferencialmente em termos ontogen´eticos ou culturais. Isto porque, muito embora fatores gen´eticos de fato contribuam para a forma¸ca˜o do est´ımulo (j´a que, ainda que se possa transferir as propriedades de um est´ımulo condicionado para um est´ımulo neutro, os primeiros processos de condicionamento em organismo utilizar˜ao, necessariamente, refor¸cadores prim´arios), o subs´ıdio fornecido por vari´aveis deste tipo n˜ao ser´a imprescind´ıvel para uma an´alise a n´ıvel comportamental. Para exemplificar o ilustrado, indiquemos que, caso um indiv´ıduos completamente alheio a` tecnologia atual avistasse pela primeira vez uma s´erie de objetos modernos (como carros, dinheiro, armas de fogo e multas de trˆansito), sua rea¸ca˜o, a menos que um destes est´ımulos seja similar em algum aspecto a outros est´ımulos efetivamente presentes em seu ambiente original (fenˆomeno que ser´a estudado no ponto 2.5.1.1), ser´a neutra – ao menos at´e que o indiv´ıduo, assim como n´os, venha a experimentar algumas das propriedades refor¸cadores ou aversivas destes est´ımulos. O car´ater refor¸cador do dinheiro e do transporte, assim como o car´ater aversivo de armas de fogo ou das multas de trˆansito, s´o existe porque pessoas que convivem diariamente com estes objetos, ap´os serem expostas a determinadas informa¸co˜es ou experiˆencias (como fazer sua primeira compra ou ouvir sobre a letalidade de armas), aprenderem a responder de maneira apropriada a estes objetos e “associ´a-los” comportamentalmente a eventos positivos ou negativos.

2.1.3.3 Est´ımulo discriminativo, est´ımulo delta e est´ımulo discriminativo punitivo O primeiro termo da rela¸ca˜o Sd-R-Sr, como apontado anteriormente, ´e composto por um est´ımulo discriminativo. A este est´ımulo se contrap˜oem o est´ımulo delta e o est´ımulo discriminativo punitivo. Ap´os ser emitida em um contexto espec´ıfico, uma resposta operante qualquer de um organismo determinado produzir´a ou n˜ao efeitos em seu ambiente. Caso a resposta seja efetiva e produza algum resultado, o comportamento do organismo ser´a prospectivamente alterado por este resultado. As consequˆencias produzidas pela resposta repercutem em futuras emiss˜oes deste mesmo tipo de comportamento, de tal forma que passa a ser estabelecida uma rela¸c˜ao de “controle” entre o contexto em que a resposta foi emitida (Sd ), a resposta em si (R) e as consequˆencias da que a resposta produziu (Sr ou Sp). Desta forma, quando o est´ımulo ambiental controlador estiver presente novamente em situa¸co˜es futuras, a resposta tender´a a ser emitida com maior frequˆencia caso tenha sido acompanhada de refor¸co em rela¸c˜oes passadas, e com menor frequˆencia caso n˜ao tenha produzido consequˆencias ou, ainda, tenha sido punida. N˜ao obstante, os efeitos destas rela¸co˜es s˜ao cumulativos com outras rela¸c˜oes do mesmo tipo; quanto mais determinada resposta for refor¸cada ou punida na presen¸ca de certo est´ımulo, mais forte se tornar´a a rela¸ca˜o de controle entre est´ımulo e resposta.

32 Na defini¸c˜ao original de Skinner, no tocante especificamente a`s rela¸co˜es de refor¸co, um est´ımulo dever´a ser chamado de discriminativo sempre que “estabelecer a ocasi˜ao” para a ocorrˆencia de determinado comportamento36 ao tornar contingˆencias de refor¸co dispon´ıveis ap´os sua emiss˜ao. Isto significa que, quando uma resposta R for refor¸cada com Sr na presen¸ca de Sd, futuras apresenta¸co˜es de Sd ao mesmo organismo aumentar˜ao a probabilidade de ocorrˆencia de R 37 . Para exemplificar esta rela¸c˜ao, imaginemos uma fam´ılia hipot´etica que guarde dois potes com formato idˆentico em sua despensa: um contendo a¸cu ´car, o outro contendo sal. Um visitante que desconhece este fato, querendo ado¸car seu caf´e, pega um dos potes aleatoriamente, imaginando que os dois continham a¸cu ´car. No entanto, para sua infelicidade, o pote escolhido continha sal, e seu caf´e se torna impalat´avel ap´os receber duas colheres da substˆancia. Dias depois, em uma nova visita `a residˆencia, o visitante precisa novamente colocar a¸cu ´car em seu caf´e; por´em, ciente de que um dos potes cont´em sal, o visitante tem a ideia de provar o conte´ udo dos potes antes de colocar o conte´ udo em sua x´ıcara. Ap´os sentir o gosto doce do a¸cu ´car contido no pote correto, visitante o coloca em seu caf´e, sendo posteriormente refor¸cado por uma vers˜ao doce de sua bebida favorita. Com isto, temos que o comportamento de provar o conte´ udo daqueles dois potes antes de utiliz´a-los, ap´os surgir a partir da aversividade da primeira experiˆencia, foi refor¸cado naquele visitante ap´os o acerto, o que tornar´a mais prov´avel que, quando visitar aquela residˆencia novamente, visitante experimente o conte´ udo dos pontes antes de colocar o conte´ udo em seu caf´e. E, como se n˜ao bastasse, quanto mais vezes a prova¸ca˜o for seguida de caf´e adocicado ou a n˜ao prova¸ca˜o for seguida de caf´e salgado, mas prov´avel se tornar´a este comportamento na mesma situa¸ca˜o (e, possivelmente, em outras situa¸c˜oes similares, por meio de um processo denominado generaliza¸ca˜o). ´ importante observar que est´ımulos discriminativos s˜ao importantes n˜ao s´o para E a descri¸c˜ao de comportamentos, mas tamb´em para t´ecnicas que tenham por objetivo manipul´a-los e mold´a-los. A associa¸c˜ao de um comportamento desejado a um est´ımulo facilmente acess´ıvel torna a ocorrˆencia deste altamente mais prov´avel. Um estudante que se sinta motivado para estudar quando toma caf´e ter´a mais oportunidades de ver este

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“Descrevemos a contingˆencia dizendo que um est´ımulo (a luz) ´e a ocasi˜ao na qual uma resposta (estirar o pesco¸co) ´e seguida por um refor¸co (com alimento). Precisamos especificar os trˆes termos. O efeito sobre o pombo ´e que finalmente a resposta ter´a maior probabilidade de ocorrˆencia quando a luz estiver acesa. O processo atrav´es do qual isso acontece denomina-se discrimina¸c˜ao. Sua importˆ ancia em uma an´ alise te´ orica, assim como no controle pr´atico do comportamento, ´e ´obvio: quando uma discrimina¸c˜ ao j´ a foi estabelecida, podemos alterar a probabilidade de uma resposta instantaneamente pela apresenta¸c˜ ao do est´ımulo discriminativo.” (SKINNER, 2003, pg. 119)

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O refor¸co tamb´em pode modificar outras propriedades comportamentais, como intensidade ou dura¸c˜ ao da resposta. No entanto, por motivos de simplifica¸c˜ao, apenas as mudan¸cas na frequˆencia ser˜ao analisadas a fundo neste trabalho.

33 efeito caso compre uma cafeteira, assim como uma pessoa que s´o consiga falar sobre assuntos ´ıntimos em ambientes familiares ter´a mais facilidade em trazer estas conversas para ambientes com os quais n˜ao est´a acostumada caso modifique estes u ´ltimos para replicar (ainda que parcialmente) as condi¸co˜es espec´ıficas do ambiente familiar respons´aveis pela sensa¸ca˜o de seguran¸ca e conforto. Contrapondo-se `a rela¸ca˜o de controle positivo do est´ımulo discriminativo, como j´a afirmado, encontramos a rela¸ca˜o de controle extintivo exercido pelo est´ımulo delta e do controle negativo exercido pelo est´ımulo discriminativo punitivo 38 , que, muito embora n˜ao tenham recebido de Skinner a mesma aten¸c˜ao conferida ao est´ımulo discriminativo, foram devidamente aprofundadas pela literatura que o seguiu. Enquanto o est´ımulo discriminativo estabelece uma ocasi˜ao onde a ocorrˆencia de determinado comportamento se tornar´a mais prov´avel em virtude de refor¸co pr´evio, o est´ımulo delta e o est´ımulo discriminativo punitivo estabelecem ocasi˜oes onde, ao rev´es, a ocorrˆencia de um comportamento se tornar´a menos prov´avel, seja por atrelar uma rela¸c˜ao de controle entre est´ımulos ambientais, resposta e contingˆencias punitivas (no caso do est´ımulo discriminativo punitivo) ou por n˜ao estabelecer nenhuma rela¸ca˜o de controle com est´ımulos posteriores, o que ocorre quando o ato n˜ao ´e seguido de nenhuma mudan¸ca no ambiente (no caso do est´ımulo delta). Como exemplo de est´ımulo discriminativo punitivo, podemos retomar o exemplo do visitante que prova potes com a¸cu ´car e sal. Da mesma forma que o gosto adocicado estabelece um est´ımulo discriminativo para a resposta de colocar a¸cu ´car no caf´e, o gosto salgado estabelece um est´ımulo discriminativo punitivo, que diminui a probabilidade de que o visitante coloque sal em seu caf´e. Ao provar o conte´ udo dos dois potes, o visitante poder´a ser submetido ao est´ımulo discriminativo “gosto doce”, que aumentar´a a probabilidade de que o visitante ponha a substˆancia em sua bebida, ou ao est´ımulo discriminativo punitivo “gosto salgado”, que, sob pena de mais um caf´e salgado, ser´a interpretado pelo visitante como um sinal para n˜ao utilizar a substˆancia em sua bebida. Estendendo o exemplo para ilustrar o que seria um est´ımulo delta, podemos imaginar que, ao inv´es de conter a¸cu ´car ou sal, os potes contˆem ou a¸cu ´car ou um p´o branco que, apesar de possuir a mesma consistˆencia que o a¸cu ´car, n˜ao ado¸ca a bebida em que ´e colocado e n˜ao produz nenhum outro efeito. Caso nosso visitante despeje a substˆancia

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Parte relevante da literatura utiliza S∆ para denotar tanto est´ımulos na presen¸ca dos quais nenhum refor¸co ser´ a apresentado quanto est´ımulos na presen¸ca dos quais puni¸c˜oes ser˜ao introduzidas. Como veremos mais tarde, o primeiro est´ımulo est´a associado `a diminui¸c˜ao na frequˆencia de respostas por meio do fenˆ omeno de extin¸c˜ ao (n˜ ao oferecimento de refor¸co ou puni¸c˜ao ap´os a resposta), enquanto o segundo a diminui¸c˜ ` ao da frequˆencia por meio de contingˆencias punitivas. Neste trabalho, adotaremos a u ´til nomenclatura proposta por Jennifer O’Donnel no artigo “The Discriminative Stimulus for Punishment or SDp” (O’DONNEL, 2001), que trata os dois est´ımulos como categorias distintas e, com isto, nos permite uma maior precis˜ ao conceitual.

34 ins´ıpida em seu caf´e, prove a bebida para saber se est´a adocicada e, n˜ao notando nenhum efeito, despeje ainda mais desta mesma substˆancia, a ausˆencia de efeitos do ato de despejar eventualmente far´a com que a resposta se torne menos prov´avel, ainda que mais lentamente do que no caso em que foi utilizada uma contingˆencia punitiva.

2.1.4 Formas de condicionamento Ap´os estudar os est´ımulos e suas propriedades, parece conveniente que comecemos a analisar os processos de condicionamento, que nada mais s˜ao do que os meios pelos quais os organismos tˆem seus comportamentos modificados pela a¸ca˜o do ambiente e de fatores externos.

2.1.4.1 Condicionamento cl´assico, respondente ou Pavloviano O experimento de condicionamento respondnete dos reflexos salivat´orios de cachorros, realizado pelo fisiologista russo Ivan Pavlov no s´eculo 19, se tornou um dos experimentos mais c´elebres da hist´oria da psicologia, bem como a mais proeminente demonstra¸ca˜o da possibilidade de condicionamento de reflexos simples em organismos vivos. O procedimento adotado por Pavlov foi o de documentar as rela¸c˜oes entre um est´ımulo neutro (som de um sino), um est´ımulo incondicionado (alimento) e um reflexo incondicionado usualmente presente em cachorros (saliva¸ca˜o) antes e depois da realiza¸ca˜o de um processo simples de condicionamento. Em um primeiro momento, a rela¸ca˜o observada foi a seguinte: 1 - Apresenta¸ca˜o de est´ımulo incondicionado (comida) leva os cachorros a elicitarem o reflexo incondicionado (saliva¸ca˜o). 2 – Apresenta¸ca˜o de est´ımulo neutro (som de um sino) n˜ao produz qualquer resposta digna de nota nos cachorros. Ap´os estas observa¸co˜es iniciais, Pavlov fez um pareamento de est´ımulos, apresentando para os cachorros a comida e o som dos sinos em r´apida sucess˜ao. Devido a` presen¸ca do est´ımulo incondicionado, o reflexo salivat´orio, como esperado, foi observado nos cachorros. No entanto, ap´os ser repetido determinado n´ umero de vezes, este processo ocasionou um novo efeito: a apresenta¸c˜ao do est´ımulo inicialmente neutro (som) sem a apresenta¸ca˜o do est´ımulo incondicionado (comida) produziu exatamente a mesma resposta que este nos cachorros (saliva¸ca˜o). Em termos leigos, poderia-se dizer que as propriedades do est´ımulo “comida” foram “associadas” ao est´ımulo neutro “som de sino”, se tornando, para aqueles cachorros, um est´ımulo condicionado para a elicita¸ca˜o da resposta

35 “saliva¸c˜ao”39 . Ademais, ap´os este processo, uma vez que o sino havia adquirido propriedades condicionadas, a apresenta¸c˜ao deste novo est´ımulo condicionado (som) juntamente com um novo est´ımulo neutro (luz) fez com que este u ´ltimo adquirisse propriedades similares `as do primeiro – ou seja, tamb´em produzisse respostas similares a` apresenta¸ca˜o de comida para os cachorros40 . Em um primeiro momento, o processo pode parecer trivial para o leitor que deseja apenas se aprofundar em comportamentos humanos mais complexos. Qual seria, afinal, a importˆancia do condicionamento de meros respondentes para a an´alise de um fenˆomeno t˜ao complexo como, por exemplo, o direito? No entanto, o condicionamento respondente possui mais fun¸co˜es no nosso dia-adia do que podemos imaginar, j´a que parte significativa dos refor¸cos utilizados com maior frequˆencia em nossa sociedade possui claro aspecto condicionado. Funcion´arios p´ ublicos s˜ao incentivados a trabalhar mediante o recebimento de sal´arios; em alguns tribunais, o testemunho deve ser precedido de um juramento, por vezes inclusive na presen¸ca de algum objeto religioso; ju´ızes s˜ao incentivados a decidir de acordo com leis ou precedentes, e podem se sentir orgulhosos quando fazem prevalecer a “justi¸ca” ou a “Lei”; advogados podem recorrer a conceitos como “dignidade” ou “Estado de Direito” em suas argumenta¸c˜oes, dentre in´ umeros outros exemplos. Obviamente, objetos de valor eminentemente social como dinheiro, juramentos, objetos religiosos, leis, precedentes e conceitos - s´o podem agir como refor¸cadores para indiv´ıduos que est˜ao inseridos em determinada economia, determinada cultura jur´ıdica, determinada religi˜ao ou determinada tradi¸ca˜o de pensamento; nenhum destes itens possuiria efeito refor¸cador sobre, por exemplo, o comportamento de uma crian¸ca que ainda est´a sendo educada. Portanto, muito embora os comportamentos respondentes em si n˜ao sejam muito u ´teis para os fenˆomenos que pretendemos analisar neste trabalho, uma correta compreens˜ao do condicionamento respondente ´e fundamental para o devido entendimento dos comportamentos humanos (inclusive operantes de maior complexidade) em um n´ıvel mais

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“A LEI DO CONDICIONAMENTO DO TIPO S. A apresenta¸c˜ao aproximadamente simultˆanea de dois est´ımulos, um dos quais (o est´ımulo “refor¸cador”) pertence a um reflexo existente no momento com alguma for¸ca, poder´ a produzir um aumento na for¸ca de um terceiro reflexo composto pela resposta do reflexo refor¸cador e o outro est´ımulo”. (SKINNER, 1938, pg. 18)(tradu¸c˜ao nossa) ´ importante ressaltar que a nomenclatura “Condicionamento do tipo S”, utilizada em The Behavior E of Organisms (o primeiro livro de Skinner), caiu em desuso dentro da pr´atica behaviorista com o passar do tempo, assim como diversas outras nomenclaturas (e at´e mesmo conceitos) levantadas pelo autor no livro.

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A separa¸c˜ ao entre est´ımulo condicionado e incondicionado, no entanto, faz com que o est´ımulo condicionado gradualmente perca suas propriedades (extin¸c˜ao), a menos que novos eventos intervenham para a manuten¸c˜ ao (ou modifica¸c˜ ao) de seus efeitos. Alguns est´ımulos, no entanto, tˆem seu valor refor¸cador mantido por pr´ aticas sociais reiteradas – como as compras e vendas (dinheiro) ou as pr´aticas religiosas (objetos e conceitos religiosos).

36 basilar.

2.1.4.2 Condicionamento operante, extin¸ca˜o e contingˆencias punitivas A f´ormula geral de refor¸co Sd-R-Sr 41 j´a foi introduzida ao leitor durante a exposi¸ca˜o sobre os comportamentos operantes e as diferentes propriedades atinentes aos est´ımulos ambientais. No entanto, antes de prosseguir, ´e necess´ario que realizemos alguns aprofundamentos conceituais nas no¸c˜oes j´a apresentadas. Como j´a foi afirmado anteriormente, uma resposta pode operar efeitos positivos sobre o ambiente e refor¸car o organismo, ser emitida sem operar nenhum efeito e ocasionar extin¸ca˜o ou, ainda, ocasionar a atua¸c˜ao de efeitos punitivos sobre o organismo. Refor¸co e puni¸ca˜o s˜ao opera¸co˜es sim´etricas, no sentido de que uma ´e o inverso funcional da outra; enquanto o primeiro evento aumenta a probabilidade de ocorrˆencias futuras do comportamento, o segundo a diminui42 . Al´em destas duas possibilidades, o comportamento pode ser submetido `a extin¸ca˜o, ocasi˜ao na qual ser´a observada um gradual decl´ınio em sua frequˆencia de emiss˜ao43 . A aposi¸ca˜o de sinal positivo ou negativo, utilizada anteriormente para processos distintos de refor¸co, tamb´em poder´a ser realizada em rela¸ca˜o a` puni¸c˜ao. A contingˆencia punitiva Sp, assim como a contingˆencia refor¸cadora Sr, poder´a ser acompanhada de um sinal positivo (Sp +), caso a puni¸ca˜o consista na apresenta¸c˜ao de um est´ımulo aversivo, ou de um sinal negativo (Sp −), caso consista na remo¸ca˜o de um est´ımulo refor¸cador. Com isto, conjugando esta nova informa¸ca˜o com o que foi apresentado anteriormente, temos que as contingˆencias modificadoras do comportamento podem ser de quatro

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A LEI DO CONDICIONAMENTO DO TIPO R. Se a ocorrˆencia deum operante for seguida da apresenta¸c˜ ao deum est´ımulo refor¸cador, a orca ´e aumentada.” (SKINNER, 1938, pg. 21)(tradu¸c˜ao nossa)

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Utilizamos aqui a defini¸c˜ ao “sim´etrica” (ou funcional) de puni¸c˜ao, proposta por Azrin e Holz (1966), em detrimento da defini¸c˜ ao “assim´etrica” proposta por Skinner. Segundo esta primeira, a puni¸c˜ao seria caracterizada principalmente pelo efeito de diminui¸c˜ao na frequˆencia comportamental ap´os a emiss˜ ao de uma resposta e a subsequente apresenta¸c˜ao de contingˆencias punitivas ao organismo, tendo efeitos simetricamente opostos ao refor¸co. A teoria Skinneriana, por sua vez, afirma que a puni¸c˜ao deve ser definida em fun¸c˜ ao do refor¸co, por meio da pr´opria puni¸c˜ao, de comportamentos incompat´ıveis com o comportamento punido (que s˜ ao negativamente refor¸cados justamente por afastarem as contingˆencias punitivas), bem como da subsequente diminui¸c˜ao na frequˆencia do comportamento punido - que seria ”assim´etrica”em rela¸c˜ ao ao refor¸co por envolver um processo bem mais complexo. No entanto, apesar de conceitualmente diferentes, as duas teorias s˜ao plenamente compat´ıveis, j´a que ambas reportam os mesmos resultados funcionais (redu¸c˜ao da frequˆencia do comportamento alvo) e utilizam o mesmo esquema explicativo.

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A resposta extinta, muito embora possa adquirir uma probabilidade extremamente baixa de emiss˜ ao, n˜ ao desaparece completamente do repert´orio comportamental do organismo, podendo, inclusive, ser objeto do fenˆ omeno chamado “recupera¸c˜ao espontˆanea”, no qual a mesma resposta ressurge espontaneamente com algum grau (ainda que m´ınimo) de for¸ca.

37 tipos diferentes: Refor¸co positivo (Sr +) – Apresenta¸c˜ao de um est´ımulo refor¸cador no ambiente ap´os a emiss˜ao da resposta. Puni¸c˜ao positiva (Sp +) – Apresenta¸c˜ao de um est´ımulo aversivo no ambiente ap´os a emiss˜ao da resposta. Refor¸co negativo (Sr −) – Remo¸c˜ao de um est´ımulo aversivo do ambiente ap´os a emiss˜ao da resposta. Puni¸c˜ao negativa (Sp −) – Remo¸ca˜o de um est´ımulo refor¸cador do ambiente ap´os a emiss˜ao da resposta44 . Para ilustrar a aplica¸ca˜o destes quatro est´ımulos (dentro de seus respectivos trinˆomios) e do processo de extin¸c˜ao a` vida real, analisemos os seguintes casos hipot´eticos: 1 – Um advogado resolve seguir uma linha de racioc´ınio inovadora em uma corte e, ap´os o julgamento, percebe que sua forma de raciocinar foi bem aceita pelos ju´ızes ou jurados. A aceita¸ca˜o do argumento foi um refor¸co positivo (Sr +) para a apresenta¸ca˜o deste tipo de argumento (R) durante julgamentos similares (Sd )45 . 2 - Ao chegar em casa, o mesmo advogado, fatigado ap´os trabalhar em um dia excessivamente quente, remove seu terno, que o estava incomodando. A cessa¸ca˜o do incˆomodo gerado pela vestimenta foi um refor¸co negativo (Sr −) para o ato de retirar o terno (R) ao chegar em casa (Sd ). 3 – No dia seguinte, o advogado recebe um novo caso, completamente diferente do primeiro. Sem conseguir pensar em nenhum argumento convincente, ele resolve apresentar uma prova falsa em ju´ızo, mas acaba sendo descoberto e, apesar de se safar das consequˆencias legais, recebe uma severa repreens˜ao pelo ju´ızo. A advertˆencia ´e uma puni¸ca˜o positiva (Sp +) para a resposta de apresentar uma prova falsa (R) em ju´ızo (Sdp). 4 – Tomando conhecimento da apresenta¸c˜ao de prova falsa em ju´ızo, os advogados que atuavam na mesma jurisdi¸ca˜o, sempre prezando pela honestidade e justi¸ca, come¸cam a se afastar do primeiro advogado, o que acaba diminuindo o seu prest´ıgio profissional. A diminui¸c˜ao do prest´ıgio foi uma puni¸ca˜o negativa (Sp −) para a mesma situa¸ca˜o de apresentar uma prova falsa (R) em ju´ızo (Sdp). 5 – Para recuperar sua credibilidade, o advogado tenta enviar cartas explicativas

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Nesta categoria est˜ ao inclusas tamb´em as apresenta¸c˜oes de est´ımulos delta em ambientes onde as respostas eram refor¸cada anteriormente (AXELROD; APSCHE, 1983, pg. 29)

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A depender da rela¸c˜ ao discriminativa efetivamente estabelecida pelo advogado, a similitude de casos pode ser determinada por uma mir´ıade de fatpres como, por exemplo, o tipo de caso ou o temperamento apresentado pelos ju´ızes ou jurados.

38 para seus companheiros de profiss˜ao, afirmando em todas elas que sua conduta, naquelas circunstˆancias, foi completamente justific´avel. No entanto, nenhum dos destinat´arios responde. Com o tempo, o advogado percebe que o envio de cartas a seus colegas (R) durante a permanˆencia de sua situa¸c˜ao de desprest´ıgio (S∆) ´e completamente in´ util. Assim, ap´os desesperadamente enviar in´ umeras cartas, o advogado desiste de tentar convencer os outros (Extin¸c˜ao de R). Uma vez que o presente trabalho se destina especificamente `a revis˜ao de parte da literatura jur´ıdica e, ainda, devido `a evidente importˆancia das san¸co˜es (ou seja, das imposi¸co˜es de contingˆencias punitivas) para o direito, faremos maiores considera¸c˜oes sobre o fenˆomeno punitivo em momento posterior.

2.1.5 Outras vari´aveis importantes Infelizmente, a complexidade inerente ao fenˆomeno comportamental e a vastid˜ao da literatura sobre o modelo behaviorista impossibilitam que absolutamente todas as vari´aveis relevantes para a pr´atica cient´ıfica venham a receber o devido tratamento neste trabalho, cujo escopo ´e a an´alise espec´ıfica dos comportamentos relevantes para a pr´atica jur´ıdica. Tendo isto em mente, este subcap´ıtulo se destina `a apresenta¸ca˜o de conceitos que, muito embora n˜ao integrem diretamente o binˆomio respondente S-R, os trinˆomios operantes Sd-R-Sr, Sdp-R-Sp e o binˆomio operante S∆-R, possuem importantes efeitos sobre o comportamento e, n˜ao obstante, se mostram essenciais para as an´alises jur´ıdicas que realizaremos posteriormente, devendo ser abordadas mais fundo para que nossas pre-

39 tens˜oes integrativas possam ser realmente frut´ıferas46 .

2.1.5.1 Generaliza¸c˜ao e refor¸co diferencial Pela forma como construimos nosso texto at´e este ponto, o condicionamento comportamental talvez soe para o leitor como um processo completamente mecˆanico onde, na presen¸ca de determinado est´ımulo elicitante ou discriminador, um comportamento espec´ıfico ser´a elicitado ou poder´a ser emitido pelo organismo, formando um ciclo comportamental completamente linear e preciso que reduz o comportamento a apenas duas ou trˆes vari´aveis. No entanto, devemos indicar que este modelo simplificada n˜ao capta todos os determinantes do (extremamente complexo) fenˆomeno comportamental, mas sim algumas propriedades fundamentais deste. Os cientistas comportamentais levam outras vari´aveis em considera¸ca˜o ao realizar an´alises, e analisaremos alguma delas a seguir. Em primeiro lugar, para eliminar a aparente simplicidade do esquema apresentado, indiquemos que, caso consider´assemos que cada comportamento ou est´ımulo ´e completamente u ´nico e que as rela¸co˜es funcionais s˜ao estabelecidas entre est´ımulos singulares e comportamentos singulares, eliminar´ıamos de nossa teoria, por consequˆencia, a pr´opria possibilidade de condicionamento comportamental. J´a que muitos dos diferentes est´ımulos que afetam o organismo compartilham diversas propriedades, caso algum comportamento tenha sido refor¸cado anteriormente na presen¸ca de determinado est´ımulo, observaremos que este mesmo comportamento tender´a a ser emitido com uma for¸ca maior na presen¸ca de um est´ımulo com not´aveis semelhan¸cas ao primeiro, o que sugere que as rela¸co˜es discriminativas fixadas entre est´ımulo e resposta n˜ao s˜ao t˜ao precisas quanto se poderia

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ara o leitor que desejar se aprofundar um pouco mais, enunciamos, a t´ıtulo exemplificativo, algumas das propriedades mais b´ asicas que n˜ ao ser˜ao diretamente abordadas por n´os, expostas sinteticamente por Skinner em The Behavior of Organisms: ”A LEI DO LIMITE. A intensidade do est´ımulo deve alcan¸car ou exceder certo valor cr´ıtico (chamado ˆ de limite) para elicitar uma resposta. (. . . ) A LEI DA LATENCIA. Um intervalo de tempo (chamado de latˆencia) transcorre entre o come¸co do est´ımulo e o come¸co da resposta. (. . . ) A LEI DA MAGNITUDE DA RESPOSTA. A magnitude da resposta ´e uma fun¸c˜ao da intensidade do est´ımulo. (. . . ) A LEI DO DESCARREGAMENTO. A resposta pode persistir por algum tempo ap´os a cessa¸c˜ ao do est´ımulo. (. . . ) A LEI DA SOMA TEMPORAL. Prolonga¸c˜ao de um est´ımulo ou apresenta¸c˜ oes repetidas dentro de certos ritmos limitadores possuem os mesmos efeitos que o aumento da intensidade. ´ (. . . ) A LEI DA FASE REFRATORIA. Imediatamente ap´os a elicita¸c˜ao a for¸ca de alguns reflexos existem em um valor baixo, ou talvez nulo. Eles retornam a seu estado anterior durante a inatividade subsequente. (...) A LEI DA FADIGA DOS REFLEXOS. A for¸ca de um reflexo diminui durante elicita¸c˜ ao repetida e retorna a seu valor anterior durante a inatividade subsequente. (. . . ) A LEI DA ˜ FACILITAC ¸ AO. A for¸ca de um reflexo pode ser aumentada por meio da apresenta¸c˜ao de um segundo ˜ est´ımulo incapaz de elicitar a resposta por si s´o. (. . . ) A LEI DA INIBIC ¸ AO. A for¸ca de um reflexo pode ser diminu´ıda atrav´es da apresenta¸c˜ao de um segundo est´ımulo que n˜ao possui nenhuma outra rela¸c˜ ao com o efetor envolvido.” (SKINNER, 1938, pg. 12-17)(tradu¸c˜ao nossa)

40 imaginar. Ademais, ´e extremamente improv´avel (se n˜ao imposs´ıvel) que um organismo responda a dois est´ımulos completamente iguais ou emita dois comportamentos idˆenticos, j´a que tanto o est´ımulo quanto o comportamento poder˜ao ter suas propriedades alteradas em fun¸ca˜o do tempo, das condi¸c˜oes ambientais e de outras vari´aveis. A aceita¸c˜ao de certo grau de generalidade ´e necess´aria caso desejemos analisar rela¸c˜oes repeti¸co˜es de padr˜oes verificados na rela¸c˜ao entre est´ımulos e comportamentos do passado e est´ımulos e comportamentos semelhantes (mas n˜ao idˆenticos) do presente e do futuro. A generalidade existente nas rela¸c˜oes de controle entre ambiente e resposta se apresenta a n´os em duas formas distintas, a saber: generaliza¸c˜ao de est´ımulos e generaliza¸c˜ ao de respostas. Denomina-se generaliza¸c˜ao de est´ımulos a tendˆencia comportamental, possu´ıda pelos organismos em geral, a responder a est´ımulos diversos de uma mesma forma. Para que isto ocorra, no entanto, os est´ımulos, apesar de diversos, precisam guardar alguma rela¸ca˜o de semelhan¸ca entre si, como propriedades em comum ou formas de apresenta¸ca˜o similares. Como exemplo deste fenˆomeno, podemos citar a interpreta¸ca˜o convencional47 do polˆemico experimento realizado por John B. Watson no pequeno Albert, onde o psic´ologo condicionou o bebˆe de 9 meses a ter medo de um pequeno rato e, por generaliza¸c˜ao de est´ımulos, este medo se estendeu a objetos peludos em geral, como cachorros, coelhos, casacos de pele e at´e mesmo m´ascaras de Papai Noel. Por sua vez, denominamos generaliza¸c˜ao de respostas a tendˆencia comportamental dos organismos a responder de maneiras diversas a um mesmo est´ımulo ou, em uma defini¸ca˜o mais precisa, ao fenˆomeno de extens˜ao dos efeitos de determinado condicionamento a operantes que, muito embora n˜ao tenham sido emitidos na ocasi˜ao do refor¸co, guardam uma rela¸c˜ao de pertinˆencia com o comportamento refor¸cado. Isto normalmente ocorre quando os comportamentos possuem a mesma fun¸c˜ao para o organismo. Como exemplo, podemos citar ocasi˜oes onde uma pessoa ´e refor¸cada ap´os se comunicar com outra pessoa por determinado meio (como enviar uma carta) e esse refor¸co se estende ao ato de se comunicar com a mesma pessoa por outros meios (como e-mais ou outras modalidades de mensagens virtuais). Muito embora a generaliza¸ca˜o de est´ımulos e respostas fa¸ca com que um u ´nico condicionamento possa acarretar in´ umeras modifica¸co˜es comportamentais em um u ´nico organismo, um grau maior de precis˜ao nas rela¸c˜oes funcionais de controle pode ser obtido atrav´es do chamado refor¸co diferencial. Um comportamento est´a submetido a refor¸co diferencial quando apenas comportamentos com propriedades espec´ıficas s˜ao refor¸cados, sendo todas as respostas similares

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Muito embora o estudo tenha sido documentado em v´ıdeo, sua interpreta¸c˜ao n˜ao ´e incontroversa – possivelmente devido ` as limita¸c˜ oes t´ecnicas e cient´ıficas das pesquisas emp´ıricas realizadas `a ´epoca.

41 que n˜ao compartilham estas mesmas propriedades sujeitas ou a` extin¸c˜ao ou `a puni¸ca˜o. O estabelecimento de uma rela¸ca˜o funcional entre o refor¸co e as respostas espec´ıficas, na medida em que leva o organismo a discriminar respostas com e sem estas propriedades, faz com que os efeitos do condicionamento generalizado gradualmente desapare¸cam, aumentando as possibilidades de controle da emiss˜ao daquele comportamento espec´ıfico. Como exemplo do funcionamento deste processo, podemos imaginar o processo por meio do qual um estudante de m´ usica aprende a tocar uma m´ usica complexa em um violino, ou o processo por meio do qual um estudante de idiomas aprende a pron´ uncia correta de uma palavra em uma l´ıngua estrangeira. Tanto o estudante de m´ usica quanto o de idiomas provavelmente emitir˜ao respostas errˆoneas durante o seu aprendizado, o que acarretar´a uma corre¸c˜ao por parte de seu professor (seja por meio de reprimendas diretas ou pela simples indica¸ca˜o de que aquele som n˜ao ´e o correto). Quando este procedimento ´e realizado diversas vezes, a repetida puni¸ca˜o ou extin¸c˜ao de respostas errˆoneas, em conjun¸ca˜o com o refor¸co de respostas corretas, faz com que a probabilidade de emiss˜ao das respostas espec´ıficas com as propriedades desejadas (pron´ uncia correta e notas corretas) se torne cada vez maior. Com condicionamento suficiente, a probabilidade de emiss˜ao das respostas desejadas se tornar´a extremamente alta e a probabilidade de emiss˜ao das respostas indesejadas se tornar´a baix´ıssima, o que permitir´a que o estudante de violino toque a m´ usica impecavelmente, ou com uma quantidade m´ınima de erros (neste u ´ltimo caso, o professor perfeccionista poder´a realizar ainda mais condicionamentos diferenciais) e que o estudante de idiomas pronuncie a palavra possivelmente t˜ao bem quanto um falante nativo.

2.1.5.2 Prepotˆencia Outro fator que exemplifica a complexidade do fenˆomeno comportamental ´e a simples existˆencia da possibilidade de conflito entre mais de um operante quando estes, em um dado momento, se encontrarem com altas probabilidades individuais de emiss˜ao por um mesmo organismo e forem mutuamente exclusivos. Isto normalmente ocorre quando o ambiente ´e propicio para a emiss˜ao de mais de um comportamento, como quando est´ımulos discriminativos diferentes estabelecerem ao mesmo tempo a ocasi˜ao para diferentes respostas, ou, ainda, quando um mesmo est´ımulo discriminativo presente no ambiente estabelecer a ocasi˜ao para o refor¸co de mais de uma resposta. Como exemplo de respostas mutuamente exclusivas, podemos citar, por exemplo, a impossibilidade de se levantar e abaixar a m˜ao ao mesmo tempo – ou, em um exemplo mais tang´ıvel, a impossibilidade de se viajar para dois destinos diferentes durante as f´erias. Quando isto ocorre, apenas a resposta com maior for¸ca ser´a emitida, e diz-se que o comportamento emitido foi prepotente ao comportamento n˜ao emitido. A rela¸ca˜o de

42 prepotˆencia ´e extremamente simples em sua conceitualiza¸ca˜o, mas relativamente complexa no tocante a seus efeitos, uma vez que a emiss˜ao da resposta prepotente poder´a, por exemplo, alterar a probabilidade de emiss˜ao da resposta n˜ao emitida atrav´es de diversos mecanismos diferentes 48 ou induzir o organismo a um estado de “d´ uvida” ou “incerteza”. ´ importante ressaltar que, por defini¸ca˜o, para que a prepotˆencia ocorra, ´e neE cess´ario que os dois comportamentos incompat´ıveis existam em for¸ca suficiente no organismo para que a emiss˜ao de ambos seja prov´avel. Isto ser´a de extrema importˆancia em cap´ıtulos posteriores, onde veremos que este fenˆomeno ´e um complemento extremamente u ´til `a teoriza¸c˜ao sobre o papel causal das leis e do direito em rela¸ca˜o ao comportamento humano.

2.1.5.3 Priva¸c˜ao e sacia¸ca˜o Quando somos incapacitados de relizar opera¸c˜oes t˜ao b´asicas quanto nos alimentar ou hidratar por per´ıodos prolongados de tempo, nosso corpo invariavelmente come¸ca a responder a estas ausˆencias de forma bastante t´ıpica. N˜ao ingerir alimentos por um longo per´ıodo de tempo invariavelmente nos leva a ficar com fome, assim como n˜ao ingerir l´ıquidos nos faz ficar com sede. Como se n˜ao bastasse, os efeitos parecem se agravar com o tempo: excessiva fome pode causar dores no estˆomago, assim como excessiva sede pode causar secura na garganta e na boca. Os efeitos aversivos destes fenˆomenos orgˆanicos aparentemente s´o desaparecem quando nos alimentamos ou ingerimos l´ıquido, saciando a necessidade que desencadeou todo o processo. No entanto, ainda sejamos capazes de sentir fome e sede, nossa capacidade de ingest˜ao n˜ao ´e ilimitada; ap´os realizarmos uma farta refei¸c˜ao ou ingerirmos muito l´ıquido, nossa tendˆencia a comer ou beber diminui drasticamente. Dependendo do nosso efetivo consumo, poderemos at´e mesmo sentir novos efeitos aversivos caso tentemos comer ou

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“A resposta prepotente n˜ ao altera meramente, em virtude de ter sido emitida, a probabilidade de emiss˜ ao da resposta incompatibilizada. Pode, entretanto, alterar algumas das vari´aveis que controlam essa resposta, e ent˜ ao pode surgir uma oscila¸c˜ao. Isto ´e o mais prov´avel porque a execu¸c˜ao da resposta prepotente geralmente a enfraquece - atrav´es de sacia¸c˜ao parcial, por exemplo. Uma instˆ ancia simples ´e a escolha de uma gravata. A sacia¸c˜ao que se segue quando uma gravata ´e usada mostra-se claramente quando chega o momento em que estamos “cansados da gravata”, mas devemos supor que ocorrer´ a um grau menor de sacia¸c˜ ao em um tempo menor. Ao escolher entre duas gravatas, pode surgir uma oscila¸c˜ ao desde que pˆ or uma gravata aumente a probabilidade relativa de usar a outra. A oscila¸c˜ ao sob certas circunstˆ ancias, pode vir a ser patol´ogica, como na folie du doute. Exemplos mais importantes s˜ ao frequentemente tratados em obras liter´arias. Um exemplo antigo ´e o conflito entre o comportamento refor¸cado pelo “amor” e o comportamento devido `a press˜ao da ´etica, que chamamos “dever” (cap´ıtulo XXI). A execu¸c˜ ao do comportamento apropriado `as vari´aveis muda a probabilidade relativa do comportamento oposto, que ent˜ao se toma momentaneamente prepotente.” (SKINNER, 2003, pg. 240)

43 beber mais do que conseguimos. A partir deste quadro, podemos inferir, generalizando os exemplos da a´gua e dos alimentos, que a probabilidade de emiss˜ao de comportamentos cuja fun¸ca˜o ´e a obten¸c˜ao de determinado refor¸co ser´a aumentada caso o organismo seja privado deste mesmo refor¸cador e, posteriormente, ele venha a se tornar dispon´ıvel no ambiente. Da mesma forma, o efeito refor¸cador de um est´ımulo livremente dispon´ıvel no ambiente ser´a reduzido ap´os determinado n´ umero de refor¸camentos, fazendo com que sua utilidade para o organismo decres¸ca. Estes dois efeitos s˜ao, no entanto, temporalmente limitados: o organismo em situa¸ca˜o de fartura poder´a ser privado no futuro, assim como o organismo em estado de priva¸c˜ao poder´a saciar-se em outras ocasi˜oes. A existˆencia de uma rela¸c˜ao funcional entre os fenˆomenos de priva¸c˜ao e sacia¸c˜ ao ´e intuitiva quando adentramos o campo da fisiologia e analisamos comportamentos respondentes (como dores de estˆomago ou garganta e boca seca), mas estas rela¸co˜es tamb´em se encontram presentes no estudo dos comportamentos de car´ater operante. Um leitor voraz que viajar sem levar livro nenhum consigo ser´a privado de sua leitura, assim como um artista passional poder´a ficar satisfeito ap´os pintar algumas obras que julgue boas e, logo em seguida, preferir realizar um breve descanso antes de voltar a pintar. A simples existˆencia continuada de uma alta probabilidade de emiss˜ao em rela¸c˜ao a um comportamento que momentaneamente n˜ao pode ser emitido (ou que n˜ao ser´a refor¸cado se emitido neste momento) poder´a ocasionar um aumento ainda maior na probabilidade de emiss˜ao quando o fator impeditivo deixar de existir, assim como a pr´atica reiterada de um comportamento, ainda que em um ambiente onde este ´e frequentemente refor¸cado, poder´a reduzir temporariamente a probabilidade de sua pr´opria emiss˜ao devido `a sacia¸c˜ao tempor´aria do organismo que o emite.

2.1.5.4 Motiva¸c˜ao Nas conversas n˜ao t´ecnicas sobre fenˆomenos psicol´ogicos que travamos em nosso dia-a-dia, frequentemente nos deparamos com explica¸c˜oes comportamentais que envolvem “motiva¸co˜es”, “desejos” e “vontades”, onde estes termos s˜ao geralmente tratados como causas diretas dos comportamentos explicados e tidos como suficientes para uma explica¸ca˜o psicol´ogica completa. Afirmamos, por exemplo, que um leitor voraz devora livros por ser muito motivado, ou que n´os comemos muito sorvete depois do almo¸co simplesmente porque est´avamos com vontade. Nestas explica¸co˜es, deixamos de fora vari´aveis como o hist´orico de refor¸camento positivo do leitor por este h´abito (contrast´avel, como

44 bem indica Sidman49 , ao hist´orico de refor¸camento negativo presente em leitores que, no passado, leram apenas para evitar repreens˜oes de professores ou notas baixas em aulas de Literatura, para os quais a leitura ser´a uma atividade penosa) ou vari´aves de refor¸co ou priva¸c˜ao relacionadas ao sorvete. Muito embora o behaviorismo radical n˜ao rechace completamente a influˆencia da motiva¸c˜ao no comportamento, a introdu¸ca˜o de vari´aveis ambientais na an´alise diminui significativamente o seu poder explicativo, j´a que o estudo dos fatores externos que determinam o comportamento do organismo inegavelmente atenua a influˆencia de vari´aveis internas para a determina¸ca˜o do comportamento (apesar de nunca a eliminar). Portanto, a principal diferen¸ca entre os modelos explicativos “leigos” e os modelos t´ecnicos behavioristas ´e a maior distribui¸ca˜o do peso determinante em rela¸c˜ao a cada vari´avel envolvida no comportamento, onde o controle funcional das respostas deixa de pertencer quase que integralmente ao organismo e passa estar contida tanto neste quanto em seu meio. Muito embora fatores motivacionais n˜ao sejam representados nos trinˆomios de refor¸co e puni¸ca˜o50 , eles s˜ao tidos como fatores extremamente relevantes na pr´atica cient´ıfica comportamental. Vari´aveis motivacionais atuam diretamente sobre a for¸ca momentˆanea dos comportamentos, alterando as probabilidades instantˆaneas de emiss˜ao e facilitando processos de condicionamento – o que, por sua vez, fornece uma clara possibilidade de amplia¸ca˜o do repert´orio comportamental individual (j´a que a amplia¸ca˜o no n´ umero de condutas emitidas implica na existˆencia de maiores possibilidades de estabelecimento de

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“Embora a jovem agrad´ avel diante de n´os n˜ao tenha todas as habilidades que o trabalho exige, suas boas notas escolares provam sua habilidade para aprender. Mas ela aprender´a? Boas notas nem sempre predizem desempenho futuro. Uma raz˜ao ´e que as habilidades necess´arias para se sair bem em cursos podem ter sido mantidas por coer¸c˜ ao. A candidata obteve suas notas altas por meio de refor¸camento positivo — talvez o novo conhecimento que levou `a obten¸c˜ao de honras acadˆemicas e elogios familiares e abriu op¸c˜ oes de emprego? Ou suas notas altas foram o produto de refor¸camento negativo — esquiva de desaprova¸c˜ ao familiar, humilha¸ca˜o pessoal ou conseq¨ uˆencias econˆomicas futuras de um hist´ orico escolar pobre? Se contingˆencias positivas tiverem prevalecido, ent˜ao poderemos esperar que a jovem continue aprendendo porque o emprego tornaria os mesmos refor¸cadores — novos conhecimentos e habilidades — dispon´ıveis para ela. Por outro lado, se ela foi coagida na escola, poderemos esperar que ela aprenda somente na medida em que necessite evitar perder o emprego. Claramente, ´e necess´ ario mais informa¸c˜ ao sobre a candidata, mas n˜ao podemos fazer um experimento. O rato de laborat´ orio documentou a realidade dos dois tipos de refor¸camento, mas ao fazer tais distin¸c˜oes fora do laborat´ orio, freq¨ uentemente temos de usar toda e qualquer informa¸c˜ao que esteja dispon´ıvel, apostando na sorte e ent˜ ao esperando para ver o que acontece.” (SIDMAN, 2009, pgs.57-58)

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Ressaltemos novamente que, conforme salientado por n´os em coment´ario atinente `a representa¸c˜ ao esquem´ atica do condicionamento operante, isto s´o ´e verdadeiro para o esquema da contingˆencia de trˆes termos. O esquema de quatro termos, muito embora ainda n˜ao seja t˜ao utilizado quanto o trinˆ omio (possivelmente devido ` a discuss˜ ao, ainda existente, sobre sua caracteriza¸c˜ao exata), inclui explicitamente fatores motivacionais em seu c´alculo. Segundo os defensores desta linha, a quarta contingˆencia (est´ımulo condicional) serviria para representar mudan¸cas situacionais na for¸ca de determinados comportamentos (motivational operators, ou MO), que seriam relevantes tanto para denotar todas as vari´ aveis envolvidas em um comportamento qualquer quanto para indicar mudan¸cas tempor´arias na for¸ca do comportamento e na efic´ acia dos refor¸cos ou puni¸c˜oes contingenciados a este.

45 rela¸co˜es funcionais com o ambiente). Vale ressaltar ainda que, muito embora efeitos motivacionais inicialmente nos pare¸cam ser produto apenas de vari´aveis internas, a motiva¸c˜ao tamb´em ´e fortemente determinada por contingˆencias ambientais. Afirmar que a motiva¸ca˜o possui componentes internos n˜ao ´e o mesmo que afirmar que sua gˆenese ´e exclusivamente interna. Deparamosnos com este fenˆomeno rotineiramente: restaurantes utilizam propagandas com imagens que nos incentivam a comer; comportamentos sexuais s˜ao frequentemente refreados por controles religiosos ou incentivados em festas destinadas a jovens; exerc´ıcios f´ısicos podem ser incentivados por m´ usicas “motivacionais” e refor¸co fornecido por amigos, dentre outros in´ umeros exemplos. Por aumentarem a frequˆencia dos comportamentos a que s˜ao contingenciados, est´ımulos refor¸cadores frequentemente est˜ao associados a modifica¸co˜es positivas em vari´aveis motivacionais, assim como contingˆencias punitivas e fenˆomenos extintivos s˜ao decisivos para a “desmotiva¸ca˜o” de um organismo em rela¸c˜ao `a pr´atica de determinado tipo de comportamento.

2.1.5.5 Emo¸ca˜o Talvez de forma ainda mais acentuada que a motiva¸ca˜o, as emo¸co˜es s˜ao frequentemente indicadas como importantes causas de comportamentos em nosso cotidiano. Afirmamos que um homem agrediu outro porque estava com raiva (como no exemplo fornecido no ponto 1.1.3), que est´a chorando por estar triste ou que est´a sorrindo por estar feliz. Muito embora estas explica¸c˜oes pare¸cam satisfat´orias, elas neglicenciam dois fatos importantes: I) N´os s´o sabemos que o sujeito descrito est´a raivoso, triste ou feliz porque observamos os comportamentos que atribu´ımos a este estado; II) Quando descrevemos a emo¸ca˜o como causa do comportamento, frequentemente negligenciamos o contexto em que ela est´a inserida e deixamos de observar rela¸c˜oes funcionais entre o estado emocional e est´ımulos ambientais (ou seja, explica¸co˜es emocionais puras n˜ao explicam como as emo¸co˜es em si apareceram). Uma vez que n˜ao temos acesso direto a`s emo¸co˜es de outros organismos, n´os s´o saberemos que um indiv´ıduo est´a raivoso, triste ou feliz quando este expressar o fato verbalmente ou quando o virmos agir de maneira agressiva, depressiva ou contente. Em ambos os casos, a informa¸c˜ao do estado emocional ser´a u ´til para prever tendˆencias comportamentais; no entanto, quando nas voltamos especificamente para explica¸c˜oes causais envolvendo emo¸co˜es, lidamos com um problema. Se o indiv´ıduo se tornou agressivo no exato instante em que se sentiu raivoso (j´a que definimos uma emo¸c˜ao por seus efeitos), como estabeleceremos qual ´e o antecedente e o consequente da rela¸ca˜o causal? Se passamos a nos sentir bem no exato instante em que ficamos felizes, por que podemos afirmar que “a felicidade ´e a raz˜ao de nosso sorriso”, mas n˜ao que “nosso sorriso ´e a raz˜ao de

46 nossa felicidade”51 . Ou ser´a que haveria um breve momento no qual estamos felizes mas n˜ao nos sentimos felizes – um momento onde a emo¸ca˜o existe sem produzir nenhum efeito, que ´e o antecedente causal de nosso sentimento de alegria? Tentar explicar o fenˆomeno observado (comportamento) tendo por ponto de partida um estado (emocional) que foi inferido a partir da pr´opria observa¸ca˜o do primeiro fenˆomeno (comportamento) ´e o mesmo que postular uma entidade conceitual apenas para realizar uma explica¸c˜ao ad hoc ou, ainda, tentar explicar as causas do fenˆomeno levando em conta apenas o fenˆomeno em si (ou seja, realizar um racioc´ınio perfeitamente circular). Durante este procedimento, n´os negligenciamos completamente as verdadeiras causas dos comportamentos que estamos tentamos explicar. Podemos omitir, por exemplo, o fato de que um homem est´a raivoso porque foi ofendido, est´a triste porque perdeu um ente querido ou est´a feliz porque acabou de iniciar um novo relacionamento amoroso. Por outro lado, n˜ao se pode razoavelmente negar que mudan¸cas f´ısicas importantes acontecem no organismo que afirmamos estar em um estado emocional espec´ıfico. Ainda que rejeitemos a vis˜ao tradicional sobre o campo das emo¸co˜es, precisamos oferecer uma explica¸ca˜o alternativa para estes eventos. No paradigma behaviorista, os estados emocionais s˜ao relacionados tanto a comportamentos operantes quanto a respondentes. A rela¸ca˜o com comportamentos respondentes explica tanto o surgimento da emo¸ca˜o em si quanto as rea¸c˜oes fisiol´ogicas que lhe s˜ao comuns; a apresenta¸c˜ao de um est´ımulo aversivo pode elicitar no organismo emo¸c˜oes (e sensa¸co˜es52 ) normalmente tidas como “negativas”, como raiva, tristeza e nojo, bem como as rea¸co˜es fisiol´ogicas que lhes correspondem (como aumento na frequˆencia card´ıaca, lacrimeja¸ca˜o e aˆnsias), enquanto a apresenta¸ca˜o de um est´ımulo refor¸cador pode elicitar emo¸co˜es (e sensa¸co˜es) normalmente tidas como “positivas”, como felicidade e excita¸c˜ao, bem como rea¸co˜es fisiol´ogicas correlatas (como contra¸ca˜o dos m´ usculos da face ou ruboriza¸ca˜o). Por sua vez, em rela¸c˜ao aos operantes, as emo¸c˜oes s˜ao caracterizadas tipicamente pelo aumento na probabilidade de emiss˜ao de comportamentos que lhe s˜ao correlatos, como comportamentos agressivos (raiva), comportamentos let´argicos (tristeza) ou demonstra¸co˜es de amor (paix˜ao). Ou seja: em rela¸ca˜o aos comportamentos operantes, a emo¸c˜ao nada mais ´e do que uma altera¸c˜ao na for¸ca dos comportamentos normalmente emitidos durante aquele estado emocional espec´ıfico. Uma vez que os comportamentos praticados durante estados emocinais ainda as-

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Trata-se da fal´ acia “cum hoc, ergo propter hoc”, ou “Junto com isto; logo, por causa disto”. ´ E importante indicar que n˜ ao existe distin¸c˜ao clara entre “emo¸c˜oes” e “motiva¸c˜oes” nos usos que estes termos comumente possuem dentro da linguagem comum, de forma que muitos eventos que consideramos pertencentes a um campo podem receber tratamento idˆentico aos eventos de outro.

47 sim est˜ao sujeitos a processos de condicionamento e discrimina¸ca˜o operante, boa parte das diferen¸cas individuais entre diferen¸cas formas de express˜ao pode ser explicada por este conceito. Caso atribu´ıssemos todos os comportamentos agressivos `a raiva pura e simples, ser´ıamos obrigados a afirmar que, quando um indiv´ıduo golpeia, grita ou aju´ıza um processo criminal infundado contra outro, os trˆes comportamentos possuem a exata mesma causa – o estado emocional “raiva”. Caso, ao rev´es, entendamos que a raiva aumenta a probabilidade de emiss˜ao de comportamentos destes tipos (sem, no entanto, ger´a-los), podemos afirmar que o indiv´ıduo golpeia, ofende ou processa porque estes comportamentos (e n˜ao outros) possuem um hist´orico pr´oprio de refor¸co no seu repert´orio comportamental (o primeiro talvez seja observado em indiv´ıduos com hist´orico de agress˜oes f´ısicas; o segundo talvez seja observado em indiv´ıduos onde agress˜oes f´ısicas passadas foram punidas, e o terceiro obviamente seria observado em indiv´ıduos que possuem certa familiariedade com o direito ou, ao menos, alguma outra esp´ecie de contato com o meio jur´ıdico) e o estado emocional em que o indiv´ıduo se encontra torna a emiss˜ao da resposta “raivosa”, seja ela qual for, mais prov´avel.

2.2 S´ıntese At´e este ponto, realizamos uma exposi¸ca˜o conceitual que permite ao leitor se aproximar um pouco mais dos esquemas behavioristas e, consequentemente, da pr´atica emp´ırica realizada pelas ciˆencias comportamentais. No entanto, nossa exposi¸ca˜o caracterizou cada uma das vari´aveis relevantes apresentadas de forma relativamente “atˆomica” e independente, de tal modo que o leitor provavelmente captou os conceitos de maneira isolada, mas n˜ao seus posicionamentos no esquema global do comportamento. Tendo isto em mente, realizaremos agora, brevemente, uma recapitula¸c˜ao sistem´atica e compreensiva de tudo aquilo que j´a foi exposto. Os est´ımulos ambientais podem ser de trˆes tipos: aversivos (tendem a ser evitados pelos organismos), refor¸cadores (tendem a ser buscados pelos organismos) e neutros (n˜ao possuem efeitos relevantes sobre o comportamento). Estes est´ımulos, por sua vez, podem ser condicionados ou incondicionados. Um est´ımulo ´e considerado incondicionado sempre que seu efeito sobre o organismo independer de condicionamento pr´evio, sendo considerado condicionado quando seus efeitos s´o forem produzidos ap´os o condicionamento pr´evio do organismo. Diz-se que um comportamento ´e respondente quando, apresentado um est´ımulo espec´ıfico para o organismo, o comportamento ´e elicitado, de acordo com o esquema S-R, ilustrado a seguir:

48 Em rela¸c˜ao aos comportamentos respondentes, o condicionamento se d´a por meio da apresenta¸ca˜o, em um primeiro momento, de est´ımulos neutros juntamente com est´ımulos incondicionados ou condicionados para o organismo. Ap´os este primeiro expediente, os est´ımulos neutros passar˜ao a possuir as propriedades aversivas ou refor¸cadoras dos est´ımulos incondicionados ou condicionados apresentados. Caso analis´assemos em termos t´ecnicos, por exemplo, o condicionamento realizado por Pavlov em seus cachorros, obter´ıamos o esquema demonstrado pelo quadro a seguir:

´ importante ressaltar que, muito embora o gr´afico contenha apenas os momentos E T1, T2, T3 e T4, o est´ımulo neutro n˜ao necessariamente adquirir´a as propriedades do est´ımulo incondicionado ou condicionado ap´os apenas um u ´nico condicionamento. A divis˜ao foi feita desta forma apenas para efeitos ilustrativos. Em contrapartida aos respondentes, os comportamentos operantes caracterizamse por guardar uma rela¸ca˜o menos direta com os est´ımulos ambientais atuantes sobre o organismo no momento de emiss˜ao da resposta. Ao inv´es de serem elicitados por est´ımulos, os comportamentos operantes s˜ao emitidos pelo pr´oprio organismo e, logo em seguida, alterados pelas consequˆencias que possu´ırem sobre o ambiente. A emiss˜ao de comportamentos operantes ´e descrita pelos mesmos esquemas que descrevem o seu processo de refor¸co, puni¸c˜ao e extin¸ca˜o, qual sejam, os trinˆomios Sd-R-Sr e Sdp-R-Sp e o binˆomio S∆-R, respectivamente. Isto porque os resultados da opera¸ca˜o do comportamento sobre o ambiente afetam o organismo que o emite, o que faz com que cada evento comportamental contribua para a modifica¸ca˜o de eventos comportamentais futuros. Ademais, estes eventos comportamentais tamb´em est˜ao sujeitos aos fenˆomenos de generaliza¸ca˜o (tanto de respostas quanto de est´ımulos) e prepotˆencia.

49 Sd, Sdp e S∆ s˜ao est´ımulos que estabelecem, respectivamente, ocasi˜oes onde determinados comportamentos ser˜ao refor¸cados, punidos ou n˜ao produzir˜ao consequˆencias refor¸cadoras nem punitivas, tendo por resultado, respectivamente, o aumento, a diminui¸ca˜o ou a degrada¸ca˜o da probabilidade de emiss˜ao de determinadas respostas. R ´e o comportamento emitido pelo organismo. Sr e Sp s˜ao, respectivamente, contingˆencias refor¸cadoras e punitivas. Estas se subdividem em quatro categorias, conforme consistam na apresenta¸ca˜o de est´ımulos (Sr + e Sp +) ou na remo¸ca˜o de est´ımulos (Sr − e Sp −) do ambiente em que se encontra o organismo. O refor¸co positivo (Sr +) consiste na simples apresenta¸ca˜o de um est´ımulo refor¸cador ao organismo. O refor¸co negativo (Sr −) consiste na remo¸ca˜o de um est´ımulo aversivo atuante sobre o organismo. A puni¸c˜ao positiva (Sp +) consiste na apresenta¸ca˜o de um est´ımulo aversivo ao organismo. A puni¸c˜ao negativa (Sp -) consiste na remo¸ca˜o de um est´ımulo refor¸cador atuante sobre o organismo. O refor¸camento positivo e o negativo aumentam a probabilidade de futura emiss˜ao dos comportamentos refor¸cados, enquanto a puni¸ca˜o positiva e a negativa diminui esta mesma probabilidade. Ao condicionamento operado mediante refor¸co de respostas com determinadas propriedades e extin¸ca˜o ou puni¸ca˜o de respostas sem estas propriedades se denomina refor¸co diferencial. Al´em do hist´orico de refor¸co, puni¸ca˜o ou extin¸c˜ao da resposta no organismo em contextos similares (sendo o contexto sinalizado por Sd, Sdp ou S∆), outras vari´aveis contribuem para a probabilidade de emiss˜ao dos comportamentos operantes, dentre as quais podemos citar a motiva¸c˜ao, o estado de priva¸c˜ao ou sacia¸c˜ao e o estado emocional do organismo 53 . Juntando todas as informa¸co˜es que acabamos de expor sobre os comportamentos operantes, chegamos ao seguinte esquema explicativo:

53

Estes fatores atuam diretamente sobre os efeitos de contingˆencias de refor¸co ou puni¸c˜ao, modificando momentaneamente as suas propriedades em rela¸c˜ao ao organismo. Priva¸c˜ao de ´agua aumenta momentaneamente a intensidade da propriedade refor¸cadora do est´ımulo “´agua”, o que indiretamente aumenta a probabilidade de emiss˜ ao de comportamentos por meio dos quais o organismo normalmente obt´em ´ agua.

50

E, de maneira simplificada, podemos explicar o funcionamento do fenˆomeno da extin¸ca˜o da seguinte forma54 :

Ap´os entender todos estes conceitos, o leitor estar´a devidamente equipado para prosseguir `a an´alise de alguns comportamentos significativamente mais complexos, que ser´a feita no pr´oximo cap´ıtulo.

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As vari´ aveis adicionais foram suprimidas apenas para evitar a repeti¸c˜ao.

51 3 COMPORTAMENTOS VERBAIS

3.1 Defini¸c˜ ao No cap´ıtulo anterior, direcionamos nossa aten¸c˜ao para o estudo das regularidades funcionais que s˜ao observadas nos comportamentos em geral, mencionando apenas brevemente a existˆencia de diferentes n´ıveis de complexidade comportamental ou outros fatores que tornam esta disciplina cient´ıfica ainda mais rica, como as intera¸co˜es entre o contexto sociocultural e o comportamento individual ou discrepˆancias comportamentais entre os organismos pertencentes a diferentes esp´ecies. E, uma vez que este trabalho se dedica ao estudo de comportamentos verificados nos meios que costumamos chamar de “jur´ıdicos”, onde s´o observamos comportamentos humanos, precisamos aperfei¸coar a estrutura apresentada a fim de torn´a-la mais adequada para a an´alise de comportamentos especificamente humanos. O comportamento humano diverge do comportamento de outras esp´ecies em in´ umeros pontos55 , mas os te´oricos e pensadores que procuram caracterizar estas diferen¸cas parecem conceder aten¸ca˜o especial a fenˆomenos relacionados `a comunica¸c˜ao e ao pensamento, baseados tanto na constata¸c˜ao de que humanos s˜ao capazes de utilizar formas extremamente complexas e avan¸cadas de linguagem quanto na milenar observa¸ca˜o de que a esp´ecie humana ´e capaz de elaborar complexas cadeias de racioc´ınio, o que supostamente a caracterizaria como uma esp´ecie de seres racionais por natureza. Posturas filos´oficas que advogam por estas linhas costumam ser populares tanto entre acadˆemicos e pensadores quanto entre leigos, mas ´e digno de nota que n˜ao existe consenso nem em rela¸c˜ao a` defini¸ca˜o de racionalidade56 nem em rela¸c˜ao a` defini¸ca˜o precisa do que seria a linguagem57 . Caso desejemos utilizar estes conceitos (ou parte deles) sem

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De algumas mais do que outras, no entanto. Comportamentos humanos s˜ao significativamente parecidos com o de outros mam´ıferos, especialmente primatas.

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O soci´ ologo Max Weber (WEBER, 1922) estudou extensivamente os modelos de racionalidade presentes nas sociedades ocidentais a seu tempo. S˜ao algumas das defini¸c˜oes poss´ıveis indicadas pelo autor: I) Racionalidade instrumental, que consiste na determina¸c˜ao dos meios mais aptos a atingir os fins desejados pelo agente (este ´e o conceito de racionalidade utilizado nos modelos de Economia Cl´ assica); II) Racionalidade afetiva, determinada por fatores emocionais; III) Racionalidade orientada por cren¸cas (ou racionalidade substantiva), de natureza intrinsecamente valorativa e idiossincr´ atica; IV) Racionalidade tradicional, que utiliza como guia os h´abitos j´a fixados em uma sociedade.

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Existem controv´ersias, por exemplo, sobre se a linguagem seria uma forma de representar a realidade por meio de um sistema de regras (teoria especialmente acolhida pelo Positivismo L´ogico e pelo “primeiro Wittgenstein”) ou se, ao rev´es, seria apenas uma forma de comunica¸c˜ao utilizada por seres humanos, possuindo fun¸c˜ ao eminentemente social (como preconizam Austin, Paul Grice e o “segundo Wittgenstein”).

52 condenar nossa an´alise te´orica `a ambiguidade, devemos prover defini¸c˜oes adequadas destes dos conceitos por meio da estrutura at´e ent˜ao apresentada. Em primeiro lugar, devemos estabelecer alguns limites te´oricos deste processo definitivo. Tendo em vista o necess´ario car´ater descritivo do behaviorismo (assim como de toda disciplina que pretenda se apresentar como ciˆencia), defini¸c˜oes normativas de “racionalidade” ou “linguagem” se encontram, por defini¸c˜ao, fora de nosso escopo. Isto quer dizer que devemos nos ater ao que efetivamente ´e observado empiricamente quando algo que possamos considerar um “racioc´ınio” ou um “uso da linguagem” ocorre, o que nos impede de atrelar a defini¸c˜ao de “racionalidade” ao conte´ udo dos racioc´ınios ou a de “linguagem” a` corre¸ca˜o ou incorre¸ca˜o, em termos semˆanticos ou sint´aticos, do que foi expresso. Em segundo lugar, devemos indicar que, por ser o behaviorismo uma teoria funcionalista, nossas defini¸co˜es devem, necessariamente, ser funcionais. Isto implica em dizer, grosso modo, que devemos determinar as causas e efeitos (ou as vari´aveis independentes e dependentes) dos racioc´ınios e usos da linguagem, identificando tanto os est´ımulos que originam estes fenˆomenos quanto os efeitos que estes produzem sobre o ambiente. Em terceiro lugar, devemos indicar que, uma vez que tanto a utiliza¸ca˜o da linguagem (falada ou escrita) quanto a produ¸ca˜o de racioc´ınios s˜ao fenˆomenos de car´ater comportamental, todos os processos elencados no Cap´ıtulo 2 s˜ao a eles aplic´aveis, ainda que se tratem de modalidades comportamentais notoriamente complexas. Para demonstrar a terceira alega¸ca˜o (ou, ao menos, sua plausibilidade), esbocemos brevemente um exemplo ilustrativo. Abaixo, encontram-se escritas cinco frases, todas em idiomas diferentes:

Para compreender ao menos uma destas frases, o leitor precisar´a ter sido previamente exposto a uma s´erie de processos de condicionamento, seja durante a sua infˆancia (uma crian¸ca aprendendo a ler, usualmente na l´ıngua falada por seus pais) ou em momento posterior (uma crian¸ca, adulto ou adolescente fazendo um curso de idiomas, onde a

53 cada aula novos elementos poder˜ao ser incorporados a seu repert´orio de comportamentos lingu´ısticos). Ou, de forma ainda mais espec´ıfica: para compreender a primeira frase, espera-se que o leitor tenha sido condicionado a compreender ao menos um pouco de portuguˆes, assim como se espera que o leitor tenha sido condicionado, respectivamente, a aprender ao menos parcialmente os idiomas “espanhol”, “inglˆes”, “´arabe”, “grego” e “russo” para compreender as demais frases. No entanto, dois eventos curiosos poder˜ao acontecer durante a leitura do exemplo acima, e a an´alise de ambos nos fornecer´a alguns esclarecimentos sobre o mecanismo de funcionamento dos comportamentos lingu´ısticos. Para que este tenha mais chances de ser o caso (ou seja, para aumentar a probabilidade de que o par´agrafo a seguir descreva o comportamento do leitor), sugerimos que, antes de prosseguir, vocˆe leia todas as frases acima destacadas e se esforce para deduzir o significado de cada uma delas. O primeiro (e menos curioso) dos eventos ´e a total ou parcial ininteligibilidade das frases para aqueles que n˜ao receberam um m´ınimo de condicionamento nos alfabetos em que eles est˜ao expressos. Devido a` utiliza¸c˜ao do mesmo alfabeto nas duas primeiras frases (latino), de um alfabeto derivado deste na terceira (inglˆes) e de um alfabeto com alguns caracteres similares na quinta (grego), os leitores com condicionamento pr´evio referente a este poder˜ao reconhecer os s´ımbolos utilizados (ou ao menos alguns deles), ainda que n˜ao possam conectar imediatamente nenhum dos s´ımbolos (ou conjuntos) a nenhum “significado” espec´ıfico. Ademais, a menos que o leitor tenha experimentado um contato m´ınimo com s´ımbolos similares aos utilizadas na quarta, quinta ou sexta frase, ele sequer ser´a capaz de reconhecer que elas est˜ao escritas, respectivamente, em ´arabe, grego e russo, assim como, a menos que tenha recebido condicionamento espec´ıfico referente aos sons que correspondem aos s´ımbolos utilizados na escrita a´rabe, grega ou russa, o leitor n˜ao ter´a nenhuma pista sobre como estas frases dever˜ao ser pronunciadas ou lidas. O segundo (e mais curioso) dos eventos ´e a observa¸c˜ao de que, ainda que n˜ao possuam nenhum conhecimento sobre os idiomas em que algumas destas frases est˜ao escritas, alguns leitores poder˜ao “generalizar” a leitura das frases inicias para as frases posteriores e, assim, compreenderem (ou acreditar que compreenderam) o seu conte´ udo, muito embora n˜ao falem o idioma nos quais elas est˜ao expressas. Ao ler a frase “Esta ´e a frase em portuguˆes” e se deparar com a frase “Esta es la frase en espa˜ nol”58 , o leitor possivelmente encontrar´a a estrutura “Esta ´e a frase em X”,

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No caso dos falantes de portuguˆes, esta frase possuir´a maiores chances de ser compreendida do que as outras, tanto pela semelhan¸ca na escrita quanto pela not´avel similitude geral que existe entre o portuguˆes e o espanhol.

54 onde a vari´avel ser´a substitu´ıda pelo idioma em que a frase aparentemente est´a escrita59 . A partir deste processo, ainda que n˜ao fale inglˆes, a´rabe, grego ou russo, o leitor poder´a atribuir a`s frases citadas, respectivamente, conte´ udos idˆenticos ou similares a “Esta ´e a frase em inglˆes”, “Esta ´e a frase em a´rabe”, “Esta ´e a frase em grego” e “Esta ´e a frase em russo”. Utilizando a estrutura do Cap´ıtulo 2, a explica¸ca˜o deste fenˆomeno em um n´ıvel mais b´asico ´e relativamente simples. A disposi¸ca˜o de frases em sequˆencia pode ser compreendida como um est´ımulo discriminativo para a sua compreens˜ao em conjunto, e a frase “Esta ´e a frase em portuguˆes” por si s´o poder´a ocasionar a generaliza¸ca˜o da f´ormula citada anteriormente a todas as demais frases em alguns leitores (para estes, a disposi¸ca˜o em conjunto e a primeira frase comp˜oem um est´ımulo discriminativo na presen¸ca do qual a emiss˜ao de respostas como “Esta ´e a frase em inglˆes” ou “Esta ´e a frase em russo” poder˜ao ser refor¸cadas pela aparente compreens˜ao das frases)60 . Ademais, a frase “Esta es la frase en espa˜ nol”, se tamb´em for compreendida pelo leitor, refor¸car´a a tendˆencia de generaliza¸ca˜o daquele formato, fazendo com que a probabilidade de tentativa de compreens˜ao das demais frases por meio da mesma generaliza¸ca˜o aumente. Como se isto n˜ao bastasse, o fato de que cada “compreens˜ao” ´e um refor¸co faz com que o efeito possa se tornar cumulativo: o leitor que efetivamente compreender as trˆes primeiras frases ter´a mais chances de generalizar do que o leitor que compreende apenas a primeira e a se-

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A similitude da f´ ormula utilizada no exemplo com aquelas apresentadas por Noam Chomsky para exemplifica¸c˜ ao do car´ ater “generativo” da linguagem ´e proposital. Visamos demonstrar aqui que a variabilidade interna das estruturas lingu´ısticas ´e plenamente compat´ıvel com o paradigma behaviorista, uma vez que poderia ser explicada pela submiss˜ao de diferentes palavras, frases e outras unidades lingu´ısticas a diferentes processos de condicionamento. Neste exemplo, indicamos que a estrutura “Esta ´e a frase em X” foi refor¸cada como um todo e que os algarismos ar´abicos poder˜ao servir como um est´ımulo discriminativo para a palavra “´arabe” para alguns leitores - e que, por isso, a compreens˜ ao da quarta frase como “Esta ´e a frase em ´arabe” ´e extremamente mais prov´avel do que a compreens˜ ao como, por exemplo, “Esta ´e a frase em francˆes” ou “O tempo est´a agrad´avel”. Caso a substitui¸c˜ ao efetivamente ocorra, a utiliza¸c˜ ao do termo “´arabe” ser´a refor¸cada pela aparente compreens˜ao do texto neste contexto espec´ıfico. Ou seja: a utiliza¸c˜ao dos termos “espanhol”, “inglˆes”, “´arabe”, “grego” e “russo”, ainda que previamente refor¸cados de forma diferente no organismo, podem ser evocadas por diferentes contextos e compor frases como a inicialmente indicada. Seria at´e mesmo poss´ıvel – muito embora este n˜ ao seja necessariamente o caso – que todos os termos de estruturas como as apresentadas (“Esta”, “´e”, “a”, “frase”, “em”, “portuguˆes”, “X”) tivessem sido individualmente refor¸cados em um organismo que a emita e fossem comportamentalmente combinados apenas no momento de sua escrita ou fala, o que nos leva ` a conclus˜ao de que a linguagem pode ser considerada “generativa” apenas na medida em que sua composi¸c˜ao, na pr´atica, pode ser fruto da emiss˜ao de respostas que s˜ ao determinadas por um n´ umero absurdamente grande de vari´aveis ambientais pregressas.

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A possibilidade de substitui¸c˜ ao da vari´avel, no entanto, depende do car´ater discriminativo atribu´ıdo (ou n˜ ao) ` a forma possu´ıda pelas frases n˜ao compreendidas. Isto implica em dizer que o contato pr´evio do leitor com alguma instˆ ancia do uso destes alfabetos (ou de alfabetos similares) pode ser considerado um pr´e-requisito para que os idiomas indicados sejam espontaneamente utilizados no preenchimento da lacuna presente na estrutura “Esta ´e a frase em X”. Caso o leitor “reconhe¸ca” que se trata do alfabeto ar´ abico, grego ou cir´ılico, a u ´ltima vari´avel poder´a ser determinada; caso n˜ao reconhe¸ca, ele ainda poder´ a aplicar a f´ ormula, mas n˜ao saber´a como preencher “corretamente” a lacuna.

55 gunda - que, por sua vez, ter´a menos chances de generalizar do que o leitor que apenas compreenda a primeira, sendo a generaliza¸ca˜o sido observada com menor for¸ca naqueles que compreendem apenas uma das quatro primeiras e a u ´ltima, para os quais o esquema 61 simplesmente aparentar´a n˜ao ser v´alido . Estabelecidas tanto as nossas trˆes primeiras ressalvas quanto esta tentativa de convencer o leitor de que at´e mesmo fenˆomenos lingu´ısticos est˜ao sujeitos a`s regras atinentes ao condicionamento de comportamentos em geral, retornemos, enfim, ao ponto principal. O uso da linguagem, embora dinˆamico e mut´avel, pode ser caracterizado como um fenˆomeno predominantemente interpessoal ou social. Ainda que de fato existam instˆancias comportamentais at´ıpicas onde a linguagem ´e dirigida, por exemplo, a objetos inanimados (como quando uma pessoa grita “Funcione!” ap´os repetidas vezes tentar ligar uma m´aquina e n˜ao conseguir), estes s´o ocorrem por for¸ca da generaliza¸c˜ao dos comportamentos sociais a situa¸c˜oes n˜ao sociais. A pessoa que fala “Venha c´a!” para um gato ou cachorro que encontrou na rua s´o o faz porque “Venha c´a!” produz determinados efeitos em rela¸co˜es de cunho social – o que pode, inclusive, ter a influenciado a condicionar (ainda que involuntariamente) animais de estima¸c˜ao a se aproximarem quando ouvem “Venha c´a!”62 . Este comportamento possui alguma probabilidade de emiss˜ao em situa¸c˜oes que, apesar de n˜ao serem sociais, possuam semelhan¸cas com rela¸co˜es sociais onde aquele comportamento foi refor¸cado anteriormente, sendo controladas por vari´aveis si miliares (no caso, o fato de que a aproxima¸ca˜o do interlocutor, animal ou humano, ´e “desejada” pelo indiv´ıduo, ou seja, ser´a refor¸cadora para ele)63 . Portanto, nossa defini¸c˜ao de linguagem, para se reputar completa, necessariamente dever´a observar o papel que esta desempenha durante a comunica¸ca˜o entre seres humanos. A conjuga¸ca˜o de sua natureza interpessoal com sua natureza comportamental d´a ao comportamento lingu´ıstico uma caracter´ıstica u ´nica: a de ser um comportamento cujos

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Para os leitores que a este ponto estejam se perguntando se sua compreens˜ao foi v´alida, as tradu¸c˜oes das frases citadas (come¸cando da segunda) s˜ao, respectivamente: “Esta ´e a frase em espanhol” (tradu¸c˜ ao nossa), “Esta ´e a frase em inglˆes” (tradu¸c˜ao nossa), “Esta ´e a frase em ´arabe” (Google translator), “Esta ´e a frase em grego” (Google translator) e “A indu¸c˜ao ´e imposs´ıvel” (Google translator). A u ´ltima frase pode ser considerada um equivalente lingu´ıstico do “Cisne Negro” de Popper.

62

O fato de que a pessoa possui um animal que tenha sido condicionado a se aproximar ao ouvir “Venha c´ a!” n˜ ao exclui o fato de que a frase escolhida para o condicionamento provavelmente foi fruto de generaliza¸c˜ ao. O animal poderia ter sido condicionado a se aproximar ao ouvir a palavra ”batatas”, por exemplo.

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Este tipo espec´ıfico de comportamento ´e denominado “Mando supersticioso”, e, al´em de ser ocasionado por generaliza¸c˜ ao, ´e mantido no organismo por meio de esquemas de refor¸co intermitente (n˜ao-cont´ınuo ou em intervalos). Algumas vezes, o carro funcionar´a ap´os o grito de “Funcione!” - e seremos refor¸cados por isto, o que aumentar´ a as chances de que comandemos nosso carro a funcionar em ocasi˜oes similares. Caso este refor¸co acidental ocorra diversas vezes ou com frequˆencia, poderemos at´e mesmo ter a impress˜ ao de que o carro nos “compreende” ou obedece a nossos comandos, o que possivelmente explica por que raz˜ ao algumas pessoas acreditam em sua pr´opria capacidade de modificar o mundo f´ısico atrav´es de pensamentos ou comandos verbais.

56 efeitos ocorrem, em regra, pela intermedia¸c˜ao de outro organismo, e n˜ao pelos efeitos produzidos por este diretamente sobre o ambiente f´ısico. Seja por meio da realiza¸c˜ao de altera¸c˜oes f´ısicas por interm´edio do interlocutor (como ´e o caso de comportamentos como “Por favor, ligue o ar-condicionado” ou “Vocˆe poderia me dar um copo d’´agua?”) ou por meio de altera¸c˜oes no pr´oprio interlocutor, o refor¸co, a puni¸c˜ao e a extin¸c˜ao de comportamentos lingu´ısticos, em regra, est˜ao associados aos efeitos do comportamento sobre o interlocutor. A primeira vista, a utiliza¸c˜ao da linguagem de maneira privada (“falar consigo mesmo”) poder´a parecer, para o c´etico, uma exce¸c˜ao tanto a` regra da produ¸ca˜o intermediada de efeitos quanto ao pr´oprio controle por vari´aveis ambientais. Como devem, afinal, ser descritas as rela¸co˜es funcionais dos comportamentos quando estes aparentam n˜ao produzir efeitos fora do organismo? Que est´ımulos nos refor¸cariam ou puniriam quando falamos com n´os mesmos? E, se a linguagem ´e utilizada para modificar o ambiente pelo interm´edio de outros, quem seria o “outro” e qual seria o “ambiente” quando n´os estamos apenas pensando? Muito embora comportamentos lingu´ısticos normalmente tenham por fun¸c˜ao a produ¸ca˜o de efeitos em outros organismos, isto n˜ao significa que a distin¸ca˜o entre emissor e destinat´ario seja um aspecto inevit´avel da comunica¸ca˜o humana. O estudante que faz uma anota¸ca˜o em aula com a finalidade de estudar o mesmo t´opico mais tarde tem a si mesmo como destinat´ario, assim como uma pessoa que mora sozinha pode lembrar a si mesma de ir fazer compras colando uma mensagem na porta de sua pr´opria geladeira. E isto ´e precisamente o que parece ocorrer com comportamentos lingu´ısticos “internos”, na medida em que estes ‘ possuem o pr´oprio emissor do comportamento como destinat´ario e intermediador dos efeitos e podem ser refor¸cados ou punidos tanto internamente (como por sentimentos de excita¸c˜ao ou culpa) quanto externamente (como ´e o caso de ideias e o resultado de suas aplica¸co˜es pr´aticas). Esse poder de relativa auto-influˆencia, autocontrole ou autodetermina¸ca˜o do indiv´ıduo possivelmente n˜ao vir´a como surpresa para os leitores. Devemos ressaltar, no entanto, que a possibilidade de exerc´ıcio de influˆencia sobre si mesmo n˜ao deve ser confundida com a confirma¸ca˜o da existˆencia de uma necess´aria indetermina¸ca˜o comportamental (ou, em outras palavras, da existˆencia do livre-arb´ıtrio). Ainda que o comportamento de um organismo possa servir de est´ımulo para outros comportamentos do mesmo organismo, este primeiro comportamento tamb´em ocorre em um contexto ambiental, que n˜ao necessariamente conter´a em si est´ımulos de car´ater verbal. Uma biblioteca pode nos levar a pensar algo como “O silˆencio daqui me agrada”, assim como ver um livro escrito por B. F. Skinner na vitrine de uma livraria pode desencadear uma s´erie de pensamentos (ou seja, pensamentos que estimulam outros pensamentos, em uma rede cont´ınua) sobre behaviorismo ou, o que ´e mais prov´avel no caso de profissionais jur´ıdicos, avistar uma pessoa de terno poder´a levar o indiv´ıduo a pensar em cortes, processos e ju´ızes.

57 Quando analisamos a rela¸c˜ao entre um comportamento “gerador” e comportamento “gerado”64 , precisamos ter em mente que a internalidade do antecedente do segundo n˜ao necessariamente implica na internalidade do antecedente do primeiro. O ser humano est´a inserido em um contexto ambiental durante a emiss˜ao de todos os seus comportamentos, e, ainda que pud´essemos pressupor uma cadeia ininterrupta de pensamentos na vida de um u ´nico indiv´ıduo, eventualmente chegar´ıamos a um ponto onde n˜ao seria poss´ıvel encontrar antecedentes internos para o comportamento observado (ou seja, chegar´ıamos ao primeiro pensamento emitido pelo indiv´ıduo), o que nos faria concluir que o antecedente (o ambiente em que o indiv´ıduo emitiu seu primeiro pensamento) foi, necessariamente, externo. A defini¸c˜ao que apresentamos at´e aqui poder´a ser aplicada a todos os comportamentos onde um indiv´ıduo humano influencia outro, mas ´e importante observarmos que a comunica¸c˜ao por meio da linguagem n˜ao ´e a u ´nica forma de intera¸ca˜o que satisfaz estas condi¸co˜es. Os pais de um adolescente que n˜ao quer sair de seu computador podem tanto ordenar “Saia deste computador!” quanto simplesmente puxar a tomada. Ainda que o efeito dos dois comportamentos sobre o adolescente seja o mesmo, a afirma¸ca˜o de que o u ´ltimo evento possui car´ater lingu´ıstico seria controversa. Quando come¸cou a estudar rela¸co˜es interpessoais, Skinner parece ter percebido estas sutilezas da intera¸ca˜o humana e, para evitar ambiguidades e especificar da melhor forma poss´ıvel o fenˆomeno a ser estudado, criou uma categoria espec´ıfica para comportamentos que dependem do comportamento do interlocutor para operar efeitos sobre o ambiente: a de “comportamentos verbais”65 . A an´alise Skinneriana ´e bastante extensa, o que faz com que, muito embora a descri¸ca˜o das peculiaridades dos comportamentos verbais seja inegavelmente u ´til `a presente an´alise, sua an´alise pormenorizada alongaria desnecessariamente o presente trabalho, uma

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Tendo sempre em mente que outras vari´aveis est˜ao em a¸c˜ao. O fato de nossos pensamentos poderem ser influenciados por pensamentos anteriores n˜ao implica no fato de que as u ´nicas vari´aveis em a¸c˜ ao s˜ ao estes mesmos pensamentos.

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“Os comportamentos que s´ o s˜ ao eficientes atrav´es da media¸c˜ao de outras pessoas possuem tantas propriedades topogr´ aficas distintas que se justifica um tratamento especial e, at´e mesmo, se exige tal tratamento. Problemas colocados por esse modo especial de a¸c˜ao usualmente s˜ao atribu´ıdos ao campo da linguagem ou da fala. Infelizmente, o termo “fala” destaca o comportamento vocal e dificilmente pode ser aplicado a situa¸c˜ oes em que a pessoa mediadora ´e afetada de forma visual, como ao escrever um bilhete. A palavra “linguagem” est´ a agora satisfatoriamente afastada de suas liga¸c˜oes originais com o comportamento vocal, mas, por outro lado, acabou por se referir mais `as pr´aticas de uma comunidade lingu´ıstica do que ao comportamento de um de seus membros. O adjetivo “lingu´ıstico” sofre das mesmas desvantagens. O termo “comportamento verbal” tem muitas vantagens, que recomendam-lhe o uso. Sua san¸c˜ ao etimol´ ogica n˜ ao ´e excessivamente poderosa, mas destaca o falante .individual e, quer seja reconhecido ou n˜ ao por quem o usa, especifica o comportamento modelado e mantido pelas consequˆencias mediatas. Tem tamb´em a vantagem de ser relativamente pouco familiar aos modos tradicionais de explica¸c˜ ao.” (SKINNER, 2003, pg. 16)

58 vez que nossa posterior an´alise jur´ıdica n˜ao demandar´a a utiliza¸ca˜o de absolutamente todas as vari´aveis envolvidas no fenˆomeno. Por esta raz˜ao, repetiremos o expediente adotado no Cap´ıtulo 2, apresentando aqui apenas a estrutura b´asica dos comportamentos verbais mais u ´teis para a an´alise do direito. O leitor dever´a atentar, no entanto, para o fato de que a realiza¸ca˜o de um estudo separado para cada categoria verbal se d´a apenas para facilitar a nossa an´alise dos diferentes comportamentos verbais; frequentemente observaremos que nossos comportamentos verbais exercem mais de uma fun¸ca˜o no nosso ambiente e, em fun¸ca˜o disto, pertencem a mais de uma das categorias que analisaremos a seguir.

3.2 Mandos Na utiliza¸ca˜o corriqueira da linguagem, muitas vezes n´os nos valemos de express˜oes nas quais n˜ao apenas interagimos com nosso interlocutor, mas tamb´em influenciamos a ´ o caso, por exemplo, ado¸ca˜o por este de comportamentos em um ou outro sentido. E de frases que normalmente classificamos como requisi¸co˜es (“Vocˆe poderia me dar um copo d’´agua?”), sugest˜oes (“Talvez vocˆe devesse me oferecer um copo d’´agua”), ordens (“Eu ordeno que vocˆe me dˆe algo para beber!”) ou formas sutis de exerc´ıcio de influˆencia (“O dia est´a bastante quente, um copo d’´agua certamente viria a calhar”), onde o efeito que pretendemos gerar no ambiente ´e precisamente a ado¸ca˜o de um comportamento por parte de outra pessoa. De acordo com nossa experiˆencia, a emiss˜ao destes comportamentos em determinados contextos resultar´a na obten¸ca˜o do est´ımulo refor¸cador a que a requisi¸ca˜o, sugest˜ao, ordem ou influˆencia se refere (no caso de “Vocˆe poderia me dar um copo d’´agua?”, um copo d’´agua), o que faz com que a utiliza¸ca˜o de alguma destas formas (a depender do hist´orico de cada indiv´ıduo) seja especialmente prov´avel quando desejamos o est´ımulo em quest˜ao e n˜ao podemos ou queremos obter diretamente do ambiente. Na an´alise Skinneriana, comportamentos deste tipo s˜ao denominados mandos 66 , e seu estudo ´e de fundamental importˆancia para uma compreens˜ao comportamental do fenˆomeno jur´ıdico.

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“Ser´ a conveniente dar um nome para o tipo de operante verbal no qual a resposta de uma forma dada ´e caracteristicamente seguida por uma consequˆencia dada numa comunidade verbal. A rela¸c˜ ao b´ asica tem sido reconhecida nas an´ alises gramaticais e sint´aticas (express˜oes como “modo imperativo” e “ordens e s´ uplicas” sugerem a si mesmas), mas nenhum termo tradicional pode ser usado aqui com seguran¸ca. O termo mando tem certo valor mnemˆonico derivado de comando, desmando, etc., e possui tamb´em a conveniˆencia de ser breve. Definiremos, pois, o mando como um operante verbal no qual a resposta ´e refor¸cada por uma consequˆencia caracter´ıstica e est´a, portanto, sob o controle funcional de condi¸c˜ oes relevantes de priva¸c˜ ao ou est´ımulo aversivo. O uso adjetivo e verbal do termo s˜ao autoexplicativos. Particularmente, e em contraste com outros tipos de operantes verbais a serem discutidos posteriormente, a resposta n˜ ao tem uma rela¸c˜ao espec´ıfica com um est´ımulo anterior.” (SKINNER, 1978, pgs. 55-56)

59 A utiliza¸ca˜o de figuras lingu´ısticas que se assemelham a mandos (em especial aqueles que denominamos “ordens”) ´e extremamente comum no direito, posto que um dos aspectos mais marcantes da linguagem usada em regras jur´ıdicas, sem d´ uvida alguma, ´e o car´ater imperativo da maior parte suas disposi¸co˜es. O direito ´e considerado um sistema de normas justamente porque seus dispositivos nos obrigam a fazer X ou nos pro´ıbem de fazer Y, e n˜ao porque sugerem que fa¸camos X ou simplesmente nos informam que a conduta ou o fato Y existem67 . As normas especificam padr˜oes de conduta e demandam obediˆencia daqueles que a ela est˜ao sujeitos, imputando aos infratores san¸co˜es que normalmente tamb´em s˜ao especificadas pela lei. Tanto a especifica¸c˜ao das condutas que s˜ao legalmente exig´ıveis quanto a indica¸ca˜o de que a ado¸c˜ao ou n˜ao destas possuir´a determinadas consequˆencias, n˜ao s´o em rela¸ca˜o ao organismo que se comporta, mas tamb´em em rela¸c˜ao a outros indiv´ıduos (no caso do direito, os agentes estatais - que, ao verificarem o descumprimento de algum dever legal, poder˜ao impor uma puni¸ca˜o ao transgressor), possuem, em fun¸c˜ao das condi¸co˜es necess´arias para a sua emiss˜ao, duas propriedades espec´ıficas: I – A existˆencia de uma rela¸c˜ao funcional entre o comportamento e um estado de priva¸ca˜o, sacia¸ca˜o ou estimula¸ca˜o aversiva no organismo que o emite (as pessoas tendem a s´o pedir copos d’´agua quando est˜ao com sede68 ), e II – A existˆencia de uma contingenciamento de est´ımulo(s) refor¸cador(es) a` emiss˜ao do mando em quest˜ao, ou seja, o car´ater discriminativo do contexto em rela¸ca˜o ao mando (as pessoas tendem a n˜ao emitir mandos quando est´a claro que eles n˜ao produzir˜ao efeitos refor¸cadores ou, ainda, que ser˜ao punidos). Desta forma, podemos dizer que a probabilidade de um organismo requisitar algo ´e diretamente dependente ou das propriedades refor¸cadoras que este mesmo algo possui no momento de emiss˜ao do comportamento (ou seja, ´e uma fun¸ca˜o da priva¸c˜ao e da sacia¸ca˜o do organismo em rela¸ca˜o a este refor¸cador espec´ıfico e, consequentemente, do seu potencial de refor¸co) ou das propriedades aversivas atuantes sobre o organismo naquele mesmo momento (o comportamento de requisitar rem´edios costuma estar ligado a estimula¸co˜es aversivas referentes a dores ou doen¸cas69 ). Ademais, os mandos, assim como os comportamentos operantes em geral, est˜ao sujeitos ao aumento de probabilidade de

67

A vis˜ ao do direito como um sistema de obriga¸c˜oes possui car´ater geral, ou seja, inclui apenas suas caracter´ısticas mais comuns e mais salientes (que n˜ao podem ser confundidas com suas caracter´ısticas essenciais). O ponto ser´ a aprofundado quando analisarmos a obra The Force of Law - em especial, quando abordarmos as considera¸c˜ oes de Schauer sobre o “homem intrigado”.

68

Exce¸c˜ oes poderiam ser observadas no comportamento de pessoas que chamamos de “manipuladoras” , “mimadas” ou “caprichosas”, onde a emiss˜ao de mandos como “Me traga um copo d’´agua agora, subordinado!” em ocasi˜ oes onde a priva¸c˜ao de ´agua n˜ao existe estaria funcionalmente ligado `a priva¸c˜ ao ou sacia¸c˜ ao espec´ıfica do comportamento de dar ordens e ao refor¸co providenciado pela obediˆencia do interlocutor, e n˜ ao propriamente ao est´ımulo f´ısico “´agua”.

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Exceto no caso de pessoas hipocondr´ıacas, onde, mais uma vez, o comportamento poderia estar funcionalmente ligado apenas ` a priva¸c˜ ao ou sacia¸c˜ao referentes ao pr´oprio comportamento de tomar rem´edios.

60 emiss˜ao em fun¸c˜ao da modifica¸ca˜o de vari´aveis ambientais, com a diferen¸ca de que os mandos costumam guardar uma rela¸ca˜o consideravelmente mais direta com o est´ımulo refor¸cador contingenciado a` sua emiss˜ao (os pedidos “Um copo d’´agua, por favor”, “Vocˆe poderia me dar um refrigerante?” e “Por favor, me dˆe qualquer coisa para beber” ser˜ao refor¸cados de formas diferentes em ocasi˜oes diferentes, j´a que suas emiss˜oes est˜ao ligadas a vari´aveis diferentes). No entanto, muito embora os mandos comumente “especifiquem” ou “descrevam” as condi¸c˜oes aversivas na presen¸ca das quais est˜ao sendo emitidos (“Eu estou com sede”) ou o est´ımulo refor¸cador contingenciado a` sua emiss˜ao (“Me dˆe algo para beber”), precisamos ressaltar que este nem sempre ´e o caso. Comportamentos verbais que n˜ao usem diretamente a linguagem, por exemplo, n˜ao precisam especificar um refor¸co para serem efetivos. Um policial que vˆe um crime ocorrendo pode atirar para o alto ao inv´es de gritar “Pare!”, assim como, ao visitar a casa de algu´em, podemos simplesmente bater algumas vezes na porta ou apertar a campainha ao inv´es de falar “Abra a porta, por favor”. Devido ao escopo limitado deste trabalho, n˜ao estudaremos mais a fundo as propriedades dinˆamicas70 dos mandos ou os diferentes tipos de mandos analisados por Skinner71 , tanto porque as vari´aveis que alteram as propriedades dinˆamicas do mando, em regra, n˜ao s˜ao relevantes para a pr´atica jur´ıdica (ou, ao menos, tˆem seus efeitos drasticamente reduzidos, j´a que at´e mesmo as intera¸co˜es jur´ıdicas realizadas entre apenas duas pessoas usualmente s˜ao padronizadas e burocratizadas), quanto porque realizaremos uma caracteriza¸ca˜o pr´opria dos mandos jur´ıdicos no tempo apropriado.

3.3 Tatos Os comportamentos verbais denominados “tatos”, correspondentes behavioristas das senten¸cas consideradas “descritivas” na pr´atica social, s˜ao caracterizados n˜ao por suas capacidades modificativas ou fun¸co˜es concretizadores de resultados, mas sim pela rela¸ca˜o existente entre estes comportamentos e est´ımulos n˜ao verbais presentes no ambiente. Ap´os ser refor¸cado na presen¸ca de determinado est´ımulo, o tato pode permitir que outro organismo “fa¸ca contato” com os mesmos est´ımulos n˜ao verbais por meio da “representa¸c˜ao”

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Relativas a diversas vari´ aveis que alteram a forma de emiss˜ao do comportamento e sua rela¸c˜ao com o ambiente, como intensidade da resposta emitida (gritos ou sussurros), velocidade da emiss˜ao (fala r´ apida ou devagar), intensidade da priva¸c˜ao que controla o comportamento (o qu˜ao sedenta est´ a a pessoa que pede um copo d’´ agua) e etc.

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Um exemplo claro de categoria diferenciada de mando ´e a dos chamados “mandos prolongados”, dentre os quais se destacam o mando m´ agico (“Que todas as gera¸c˜oes daquela fam´ılia sejam amaldi¸coadas!”) e o mando supersticioso (“Funcione, m´aquina!”).

61 lingu´ısitica72 . Quando respondemos “Verde” a` pergunta/mando “Que cor vocˆe enxerga nesta imagem?”, n´os o fazemos n˜ao porque a resposta “Verde” tende a ser emitida quando nos ´e feita esta pergunta, mas sim porque a pergunta fez com que o organismo respondesse a outro est´ımulo do ambiente – a cor apresentada – e emitisse uma resposta que tenha sido previamente refor¸cada na presen¸ca deste. As vantagens sociais na manuten¸ca˜o deste tipo de comportamento tornam-se evidentes quando indicamos que, caso a pessoa que respondeu “Verde” no exemplo anterior seja posteriormente sujeita ao mando “Que cor vocˆe enxergou na hora do teste?”, a resposta “Verde” existir´a no organismo com alta probabilidade de emiss˜ao e, caso efetivamente seja emitida73 , tender´a a refor¸car tanto o organismo que emitiu o mando e obteve o refor¸co especificado quanto o organismo que emitiu o tato e foi refor¸cado pelo emissor do mando, podendo este u ´ltimo refor¸co ocorrer ou de forma expl´ıcita (como pela emiss˜ao de um “Muito obrigado!”) ou de formas mais sutis (como um leve aceno com a cabe¸ca, um sorriso ou, simplesmente, o mero fato de a pergunta ter sido respondida74 ). De maneira mais clara e t´ecnica, podemos definir como tatos os comportamentos nos quais uma resposta verbal espec´ıfica guarda uma rela¸ca˜o funcional com um est´ımulo n˜ao verbal presente no ambiente (ou propriedades deste), sendo esta rela¸ca˜o mantida por refor¸cadores sociais de car´ater gen´erico (como a compreens˜ao geral do termo pela comunidade lingu´ıstica ou, de maneira mais vis´ıvel, a aprova¸ca˜o social pelo uso de certo

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“A dependˆencia em trˆes termos, nesse tipo de operante, ´e exemplificada quando, na presen¸ca de uma boneca, uma crian¸ca freq¨ uentemente adquire um refor¸co generalizado dizendo boneca; ou quando um peixe tele´ osteo ou sua imagem constitui ocasi˜ao na qual o estudante de zoologia ´e refor¸cado quando diz peixe tele´ osteo. N˜ ao h´ a um termo adequado para esse tipo de operante. “Sinal”, “S´ımbolo” e outros termos mais t´ecnicos da l´ ogica e da semˆantica nos comprometem com esquemas especiais de referˆencia e destacam a pr´ opria resposta verbal mais do que as rela¸c˜oes de controle. O termo tacto que inventei ser´ a usado aqui. Esse termo traz consigo certa sugest˜ao mnem´onica do comportamento que estabelece “contacto” com o mundo f´ısico. Um tacto pode. ser definido como um operante verbal, no qual uma resposta de certa forma ´e evocada (ou pelo menos refor¸cada) por um objeto particular ou um acontecimento ou propriedade de objeto ou acontecimento.” (SKINNER, 1978, pgs.107-108)

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Caso estejam em efeito contingˆencias punitivas sobre a emiss˜ao deste comportamento, respostas como “Vermelho”, “Azul” ou “Nenhuma” poder˜ao ser prepotentes `a resposta “Verde”, o que n˜ao significa ´ poss´ıvel (e, dizer que esta u ´ltima n˜ ao existir´ a ou n˜ao possuir´a nenhuma possibilidade de emiss˜ao. E para a maioria dos humanos, prov´ avel) que a existˆencia desta rela¸c˜ao de prepotˆencia ocasione efeitos caracter´ısticos no comportamento do organismo – a resposta “Verde” pode estar “na ponta da l´ıngua” do indiv´ıduo que mente e precisar ser “conscientemente reprimida”, e pessoas que algum dia j´a foram punidas ao mentir poder˜ ao ficar “nervosas” com a possibilidade de descoberta e da aplica¸c˜ao de uma nova puni¸c˜ ao.

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Somos condicionados a responder boa parte das perguntas que nos s˜ao feitas, j´a que perguntas n˜ ao respondidas normalmente s˜ ao repetidas (possivelmente com maior intensidade vocal) e, caso sejam emitidas mais de uma vez pelo mesmo organismo sem a obten¸c˜ao de nenhuma resposta, podem ocasionar comportamentos no organismo perguntador que s˜ao aversivos para o organismo que deveria emitir a resposta, como raiva, frustra¸c˜ ao ou desaprova¸c˜ao. Portanto, ´e comum que perguntas possuam efeitos aversivos sobre n´ os, na medida em que estabelecem a ocasi˜ao onde a n˜ao emiss˜ao de nenhuma resposta (ou a emiss˜ ao de respostas errˆ oneas) poder´a ser punida.

62 termo). Um importante corol´ario desta defini¸c˜ao ´e o fato de que o “conte´ udo”, “significado” ou “sentido” de uma proposi¸c˜ao descritiva (ou seja, de um tato) ´e determinado n˜ao pelas propriedades do tato ou de seu referencial, mas sim pelo simples fato de que o comportamento em quest˜ao foi refor¸cado na presen¸ca de seu referencial. Em outras palavras: o “significado” de um termo n˜ao deve ser buscado no objeto descrito pelo termo, no termo em si, na intera¸c˜ao do termo com outros termos ou em similitudes existentes entre o termo e o objeto descrito, mas sim no contexto situacional onde o termo ´e utilizado pelos organismos e refor¸cado socialmente. E isto implica em um necess´ario anti-essencialismo semˆantico, uma vez que, caso palavras, termos e conceitos passem a ser refor¸cados em ocasi˜oes diferentes daquelas onde eram refor¸cados anteriormente ou, de forma mais acentuada, sejam refor¸cados em novas ocasi˜oes e deixem de ser refor¸cados (ou sejam punidos) nas ocasi˜oes de refor¸co originais, seu “sentido” ser´a inequivocamente alterado75 . Comportamentos t´ateis s˜ao bastante u ´teis nas pr´aticas acadˆemicas, especialmente dentro do m´etodo cient´ıfico. A composi¸ca˜o de tatos cient´ıficos (guiados por regras metodol´ogicas que reforcem ou punam determinados voc´abulos) e seu refor¸co, puni¸c˜ao ou extin¸ca˜o dentro da pr´atica laboratorial (ou seja, o refor¸co atrav´es da obten¸c˜ao de resultados positivos e a puni¸ca˜o ou extin¸ca˜o pela n˜ao obten¸ca˜o dos resultados esperados) constituem o cerne do que chamamos de investiga¸ca˜o emp´ırica. Ademais, muito embora tatos n˜ao sejam t˜ao essenciais para atividades predominantemente normativas (como o direito) como o s˜ao para atividades essencialmente descritivas (como as ciˆencias naturais), sua relevˆancia para a primeira categoria continua sendo bastante acentuada, uma vez que a eficiˆencia das pr´aticas controladoras depende em larga medida da capacidade do controlador de descriminar quais comportamentos ser˜ao sujeitos a controle e quais n˜ao ser˜ao. E isto ´e especialmente verdadeiro no caso das normas jur´ıdicas, onde a imprecis˜ao na determina¸ca˜o de quais comportamentos tender˜ao ou n˜ao a refor¸car a emiss˜ao de certos tatos por parte de ju´ızes e agentes estatais (quando n˜ao se sabe, por exemplo, se os ju´ızes tender˜ao ou n˜ao a emitir o tato “conduta criminosa” ap´os assistirem um v´ıdeo ou verem uma prova onde o r´eu esteja fazendo algo espec´ıfico) possui como efeito not´orio a

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´ poss´ıvel, no entanto, que os “tatos substitu´ıdos” sejam refor¸cados em outros contextos, de forma a E preservar seu “significado hist´ orico” ainda que o uso original pere¸ca. Muito embora Colombo e diversos outros antigos navegadores pudessem ter empregado a palavra “sereia” sempre que ouvissem cantos agudos em alto mar, que avistassem a cauda de uma criatura marinha de tamanho m´edio ou escutassem relatos de um ser que ´e metade criatura marinha e metade mulher (esta u ´ltima caracter´ıstica possivelmente extra´ıda da agudez de seu canto e da maior frequˆencia de voz aguda em mulheres, sugerindo a ocorrˆencia de uma generaliza¸c˜ ao de est´ımulo), o tato “sereia” s´o ´e utilizado na atualidade para representa¸c˜ oes mitol´ ogicas, uma vez que, caso navegadores contemporˆaneos destas mesmas regi˜oes avistem a cauda de um mam´ıfero ou ou¸cam um cantoagudo e posteriormente precisem fazer um relato sobre a experiˆencia, muito provavelmente imaginar˜ao se tratar de um peixe-boi, e usar˜ao tatos usualmente refor¸cados na presen¸ca deste animal.

63 produ¸ca˜o da temida inseguran¸ca jur´ıdica.

3.4 Intraverbais Enquanto os tatos s˜ao caracterizados como comportamentos que guardam rela¸c˜oes funcionais com est´ımulos n˜ao verbais, os comportamentos chamados intraverbais s˜ao definidos como aqueles que est˜ao sob o controle funcional de est´ımulos verbais, possuindo como est´ımulo discriminativo um ou mais est´ımulos verbais. Estes est´ımulos discriminativos verbais podem ter sido emitidos tanto por outros organismos (como em uma conversa, onde a maioria das respostas ´e emitida em fun¸ca˜o de respostas previamente emitidas por um dos participantes) quanto pelo pr´oprio organismo que emite o comportamento intraverbal (como uma pessoa que observa a anota¸ca˜o “Enviar mensagem de texto”, escrita de pr´oprio punho em sua lista de lembretes, e come¸ca a digitar a mensagem a ser enviada). Ademais, muito embora n˜ao tenhamos redigido um t´opico espec´ıfico para comportamentos verbais imitativos neste trabalho em fun¸c˜ao de sua relevˆancia reduzida para o fenˆomeno jur´ıdico, precisamos destacar que os comportamentos intraverbais n˜ao possuem correspondˆencia formal com os est´ımulos discriminativos verbais na presen¸ca dos quais s˜ao emitidos – ou seja, n˜ao s˜ao “c´opias” da integralidade ou de partes destes76 . Al´em de estarem presentes em conversas e demais tipos de intera¸co˜es humanas comuns, os comportamentos intraverbais possivelmente permeiam todas as disciplinas acadˆemicas atualmente existentes, tanto por meio do controle exercido por coletividades de pesquisadores ou estudiosos sobre a produ¸c˜ao individual de seus membros, como parece ser o caso das ciˆencias naturais, quanto por meio do estabelecimento de autores e pensadores “cl´assicos”, cˆanones te´oricos ou obras tradicionais cuja referencia¸c˜ao em trabalhos ´e considerada quase indispens´avel para a pr´atica acadˆemica, como parece ser o caso do direito, de outras disciplinas normativas e de disciplinas cuja produ¸ca˜o independe da verifica¸ca˜o ou n˜ao de fatos emp´ıricos. O modus operandi das ciˆencias naturais (o m´etodo cient´ıfico), muitas vezes identificado como mais constitutivo da pr´atica cient´ıfica do que as pr´oprias descobertas cient´ıficas

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Comportamentos sob o controle functional de est´ımulos verbais e que possuem correspondˆencia pontoa-ponto com seu est´ımulo discriminativo (ou parte deste) s˜ao chamados de “ecoicos”. Um exemplo claro de ec´ oico ocorre quando uma crian¸ca diz “Verde” ap´os ouvir o mando “Diga verde”.

64 emp´ıricas77 , ´e composto primariamente por comportamentos verbais que estabelecem o refor¸co ou a puni¸c˜ao de determinadas pr´aticas durante, por exemplo, a condu¸c˜ao de pesquisas, a revis˜ao por peers ou a utiliza¸ca˜o ou n˜ao de certas t´ecnicas matem´aticas ou estat´ısticas para interpretar resultados obtidos. Estas “regras” da ciˆencia, ao serem ressoadas internamente por meio do comportamento verbal intraverbal de outros cientistas (e das demais pessoas atuantes na pr´atica cient´ıfica), acabam por permitir e incentivar a perpetua¸ca˜o do m´etodo cient´ıfico (assim como o seu refinamento ou eventual modifica¸ca˜o) no interior da pr´opria comunidade cient´ıfica. O mesmo racioc´ınio se aplica, mutatis mutandi, `as disciplinas normativas e `as de teor n˜ao-emp´ırico, onde a comunidade acadˆemica controla a produ¸c˜ao de conte´ udo por seus membros individuais - com a diferen¸ca de que, n˜ao havendo um conjunto de tatos emp´ıricos nos quais a disciplina pode se ancorar, o controle, em regra, ser´a puramente intraverbal. Um cientista que afirma “A Terra ´e plana” poder´a ver seu tato sofrer puni¸ca˜o ou extin¸c˜ao ap´os a observa¸ca˜o telesc´opica do efetivo formato da terra (ocasi˜ao ap´os a qual tatos como “A Terra ´e redonda” passar˜ao a ser refor¸cados), mas fil´osofos que afirmam ´ “O mundo das ideias ´e perfeito” ou “O Complexo de Edipo ´e real” s´o poder˜ao ver suas afirma¸co˜es punidas ou extintas por outros est´ımulos verbais, j´a que nenhum est´ımulo n˜ao verbal poderia causar a extin¸ca˜o ou puni¸c˜ao do conceito de “Mundo das ideias” e, o que ´e pior, todas as observa¸c˜oes emp´ıricas de est´ımulos n˜ao verbais considerados relevantes, n˜ao importando o seu sentido, ter˜ao o potencial de refor¸car a emiss˜ao do tato “Complexo

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”A ideia de Popper ´e que a ciˆencia n˜ao deve ser tomada t˜ao a s´erio quanto soa (Popper quando se encontrou com Einstein n˜ ao o considerou o semideus que ele se considerava). Existem apenas dois tipos de teorias: 1. Teorias que s˜ao conhecidamente falsas, pois foram testadas e adequadamente rejeitadas (ele as chama de falsificadas). 2. Teorias que ainda n˜ao s˜ao conhecidamente falsas, n˜ao foram falsificadas, mas est˜ ao expostas ` a possibilidade de serem provadas erradas. Por que uma teoria nunca est´ a certa? Porque n´ os nunca saberemos se todos os cisnes s˜ao brancos (Popper pegou emprestado a ideia Kantiana sobre as falhas em nossos mecanismos de percep¸c˜ao). O mecanismo que testa pode ter falhas. No entanto, a afirma¸c˜ ao de que existe um cisne negro pode ser feita. [...] Ela s´o pode ser aceita provisoriamente. Uma teoria que n˜ao se enquadra nestas duas categorias n˜ao ´e uma teoria. [...] Este ponto est´ a na base da demarca¸c˜ao entre ciˆencia e bobagem (chamado de ”o problema da demarca¸c˜ ao”).”(TALEB, 2005, pgs.106-107)Pgs. 106-107.) (tradu¸c˜ao nossa)

65 78 ´ de Edipo” - o que torna a ideia trivial, mas extremamente atrativa para te´oricos, j´a que toda e qualquer observa¸c˜ao emp´ırica automaticamente refor¸car´a a emiss˜ao do tato79 . Em rela¸ca˜o aos comportamentos intraverbais de cunho lingu´ıstico (onde tanto o est´ımulo quanto a resposta utilizam linguagem escrita ou falada), quatro combina¸c˜oes de diferentes rela¸c˜oes Sd-R s˜ao poss´ıvels, a saber: Sd vocal, R vocal (Pergunta: “Quantos anos vocˆe tem?”, resposta: “Seis!”); Sd vocal, R textual (“Escrevam, em suas pr´oprias palavras, como foram as f´erias”, dito pelo professor ou professora aos alunos, como orienta¸ca˜o para a escrita de uma reda¸c˜ao); Sd textual, R vocal (Texto lido: “O homic´ıdio ser´a punido com reclus˜ao”, resposta vocal: “Ent˜ao, para o direito brasileiro, o homic´ıdio ´e considerado um crime”) e Sd textual, R textual (Texto lido: “Na pressuposi¸ca˜o da norma fundamental n˜ao ´e afirmado qualquer valor transcendente ao direito positivo”(KELSEN, 1998, pg. 141), anota¸ca˜o em caderno: “A norma fundamental kelseniana n˜ao possui car´ater valorativo”). Os comportamentos intraverbais, em especial os de cunho lingu´ıstico, al´em de importantes para a condu¸c˜ao de estudos jur´ıdicos, s˜ao de suma importˆancia para o pr´oprio funcionamento do direito, j´a que toda modifica¸ca˜o comportamental realizada por meios de normas ´e intraverbal por defini¸c˜ao e, como se n˜ao bastasse, intraverbais menos vis´ıveis

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”Eu descobri que os meus amigos que eram admiradores de Marx, Freud, e Adler, estavam impressionados com um n´ umero de pontos em comum entre estas teorias, e especialmente por seu aparente poder explanat´ orio. Estas teorias pareciam ser capazes de explicar praticamente tudo que acontecia dentro dos campos a que se referiam. O estudo de qualquer uma delas parecia ter o efeito de uma convers˜ ao intelectual ou revela¸c˜ ao, abrindo seus olhos para uma nova verdade escondida daqueles que ainda n˜ ao foram iniciados. Quando seus olhos eram desta forma abertos vocˆe via instˆancias confirmadoras em todos os lugares: o mundo estava cheio de verifica¸c˜oes da teoria. Qualquer coisa que acontecia sempre a confirmava. Ent˜ ao sua verdade parecia manifesta; e incr´edulos eram claramente pessoas que n˜ ao desejavam ver a verdade manifesta; que se recusavam a vˆe-la, ou porque era contra o seu interesse de classe, ou por causa de suas repress˜ oes que ainda n˜ao estavam analisadas e clamavam por tratamento. O elemento mais caracter´ıstico nesta situa¸c˜ao me parecia a incessante torrente de confirma¸c˜oes, de observa¸c˜ oes que ”verificavam”as teorias em quest˜ao; e este ponto era constantemente enfatizado por seus aderentes. (...). Eu posso ilustrar isto com dois exemplos bastantes diferentes de comportamento humano: aquele do homem que empurra uma crian¸ca na ´agua com a inten¸c˜ao de afog´a-la; e aquele do homem que sacrifica sua vida em uma tentativa de salvar a crian¸ca. Cada um destes dois casos pode ser explicado com igual facilidade em termos Freudianos e Adlerianos. De acordo com Freud o primeiro ´ homem sofria alguma tipo de repress˜ao (digamos, de algum componente de seu Complexo de Edipo), enquanto o segundo homem havia alcan¸cado a sublima¸c˜ao. De acordo com Adler o primeiro homem sofria de sentimentos de inferioridade (produzindo talvez a necessidade de provar a si mesmo que ele ousou cometer algum crime), assim como o segundo homem (cuja necessidade era provar a sim mesmo que ele ousou resgatar a crian¸ca). Eu n˜ao consigo pensar em nenhum comportamento humano que n˜ ao consiga ser interpretado nos termos de qualquer uma das duas teorias. Foi precisamente este fato - que elas sempre se encaixavam, que eram sempre confirmadas - que nos olhos de seus admiradores constituiu o mais forte argumento em favor destas teorias. Come¸cou a me ocorrer que esta aparante for¸ca fosse de fato sua fraqueza.”(POPPER, 1962, pgs.34-35)(tradu¸c˜ao nossa)

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Caso isto ocorra, a redu¸c˜ ao da for¸ca do tato s´o poderia ocorrer em contextos pouco observados na academia de hoje, como a puni¸c˜ ao deste mesmo tato ou a introdu¸c˜ao de teorias que, apesar de serem ainda mais refor¸cadoras, s˜ ao incompat´ıveis com a primeira.

66 comp˜oem a principal ferramenta do Estado para a promo¸ca˜o da pr´atica de “comportamentos jur´ıdicos” em seus pr´oprios funcion´arios p´ ublicos. As leis “O homic´ıdio ser´a punido com a pris˜ao” e “Contratos sem assinatura ser˜ao considerados nulos para fins legais” n˜ao possuir˜ao nenhum efeito concreto caso inexistam policiais dispostos a punir homicidas ou ju´ızes que apenas aceitar˜ao contratos nos quais conste assinatura. Por isso, a emiss˜ao de comportamentos vocais como “Vocˆe est´a preso pela pr´atica de homic´ıdio” e “Este contrato n˜ao possui validade legal” ou, ainda, de comportamentos textuais como a expedi¸ca˜o de um mandado de pris˜ao ou a prola¸ca˜o de uma senten¸ca que decide pela nulidade de um contrato estar˜ao, em regra, sobre o controle funcional de est´ımulos verbais, como o recebimento de ordens pelo policial (que ser´a refor¸cado por fatores como o pagamento regular de um sal´ario, bem como negativamente punido pela demiss˜ao e cessa¸c˜ao desses mesmos pagamentos em caso de descumprimento) ou o regramento da atividade jurisdicional (onde poder˜ao ser estabelecidos refor¸cos para os ju´ızes que decidirem de acordo com a lei ou puni¸co˜es para os ju´ızes que flagrantemente a desobedecerem, a depender do sistema jur´ıdico em quest˜ao e da forma como o Estado prefere regular a tomada de decis˜oes jur´ıdicas).

3.5 Autocl´ıticos Quando tentamos imaginar, de maneira abstrata, as composi¸co˜es lingu´ısticas mais apropriadas para a transmiss˜ao de determinados conte´ udos aos nossos interlocutores, n˜ao temos problema algum em indicar com precis˜ao as formas mais simples, claras, econˆomicas e diretas para o desempenho de determinada fun¸ca˜o verbal (“Pare com isto”, “A porta ´e azul”, “Fale mais alto”, “Repita o que acabou de dizer”). No entanto, nossos comportamentos concretos costumam ser vers˜oes adaptadas destas vers˜oes. A depender do contexto em que cada resposta ´e emitida, poderemos observar tanto varia¸co˜es topogr´aficas em sua emiss˜ao (como o aumento ou diminui¸ca˜o da velocidade ou intensidade da pron´ uncia, que pode resultar em falas r´apidas ou lentas, gritos ou sussurros) quanto varia¸co˜es formais em sua composi¸ca˜o, o que faz com que exista uma grande varia¸ca˜o entre as formas espec´ıficas utilizadas por um ou outro organismo (ou pelo mesmo organismo, quando o contexto ambiental for suficientemente distinto) para o desempenho de determinada fun¸ca˜o, ou a “express˜ao de determinado conte´ udo”. Os trˆes comportamentos indicados anteriormente, por exemplo, poderiam ser editados a fim de adotar as seguintes formas: “Pare com isto agora!” (aumento da aversividade do mando original e, possivelmente, de seus efeitos); “Eu acho que a porta ´e azul” ou “Eu tenho certeza de que a porta ´e azul” (indicativo de que a resposta “A porta ´e azul” existe no organismo com for¸ca baixa ou alta); “Fale mais alto quando estivermos em um ambiente t˜ao barulhento quanto este” (estabelecimento de rela¸c˜ao discriminadora entre

67 barulho e intensidade da resposta vocal, com subsequente refor¸co) ou “Por favor, vocˆe poderia repetir o que acabou de dizer?” (diminui¸c˜ao da aversividade do mando). Os comportamentos verbais que modificam a fun¸ca˜o de outros comportamentos verbais do mesmo organismo s˜ao chamados de autocl´ıticos, sendo caracterizados pelo exerc´ıcio de controle sobre aspectos espec´ıficos do comportamento “editado” pelo comportamento que ´e considerado “editor”. Para fins de simplifica¸c˜ao, passaremos a nos referir aos comportamentos “editados” por autocl´ıticos como comportamentos prim´arios (“O c´eu ´e azul”) e aos autocl´ıticos em si como comportamentos secund´arios (“Eu acho que”), sendo o epis´odio verbal composto por comportamento prim´ario e secund´ario (“Eu acho que o c´eu ´e azul”) denominado “operante verbal composto” ou, simplesmente, “operante composto”. Ainda que ocorram ao mesmo tempo, os comportamentos prim´arios e secund´arios precisam ser descritos por esquemas funcionais diversos, j´a que as rela¸co˜es funcionais respons´aveis por determinar a emiss˜ao da resposta n˜ao s˜ao as mesmas respons´aveis por determinar sua edi¸c˜ao em um ou outro sentido80 . Quando queremos expressar nosso conhecimento sobre determinado fato, a emiss˜ao do tato apropriado depende de rela¸co˜es funcionais existentes entre o est´ımulo n˜ao-verbal e a resposta verbal (“Aquilo ´e uma cadeira”), mas a composi¸ca˜o do operante depender´a de fatores t˜ao variados quanto a for¸ca ou probabilidade de emiss˜ao do comportamento (“Eu acho que aquilo ´e uma cadeira”, “Aquilo certamente ´e uma cadeira”, “Talvez aquilo seja uma cadeira”, “Aquilo ´e uma cadeira, estou 100% certo disto”), a apropria¸ca˜o ou n˜ao da emiss˜ao do operante, que existe em certa for¸ca no organismo, naquela circunstˆancia ambiental espec´ıfica (“Aquilo ´e uma cadeira” ou “Aquilo n˜ao ´e uma cadeira”, sendo este u ´ltimo emitido quando existem no ambiente tanto est´ımulos que tornam adequada a emiss˜ao do operante “cadeira” quanto est´ımulos que tornem esta mesma emiss˜ao inadequada), a fonte espec´ıfica dos est´ımulos que determinam a emiss˜ao da resposta (“Os vendedores disseram que aquilo ´e uma cadeira”, “Aquilo ´e, tecnicamente, uma cadeira”), dentre in´ umeras outras poss´ıveis vari´aveis

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“As propriedades importantes do comportamento verbal que ainda devem ser estudadas referem-se aos arranjos especiais das respostas. Parte do comportamento de um organismo toma-se, por sua vez, uma das vari´ aveis que controla a outra parte. H´a pelo menos dois sistemas de respostas, um baseado no outro. O n´ıvel superior s´ o pode ser compreendido em termos de suas rela¸c˜oes com o inferior. A no¸c˜ ao de um eu interior constitui um esfor¸co para representar o fato de que, quando o comportamento ´e composto desta forma, o sistema superior parece guiar ou alterar o inferior. Mas o sistema de controle tamb´em ´e em si mesmo comportamento. O falante pode “saber o que est´a dizendo” no sentido de que “conhece” qualquer parte ou tra¸co do ambiente. Parte de seu conhecimento (o “conhecido” ) serve como vari´ avel no controle das outras partes (“conhecendo” ). Tais “atitudes propositivas”, como a asser¸c˜ ao, a nega¸c˜ ao, a quantifica¸c˜ao, o plano obtido por meio da revis˜ao, da rejei¸c˜ao ou da emiss˜ ao de respostas, a gera¸c˜ ao de certa quantidade de comportamento verbal apenas enquanto tal e as manipula¸c˜ oes altamente complexas do pensamento verbal podem, todas elas, como veremos, ser analisadas em termos de comportamento, que ´e evocado por outro comportamento do falante ou atua sobre ele.” (SKINNER, 1978, pg. 375)

68 interventoras. ´ poss´ıvel, ainda, que alguns comportamentos secund´arios sejam refor¸cados globalE mente, se tornando entidades comportamentais que aparentam ser autˆonomas (“Retiro o que disse”, “Reitero minhas alega¸co˜es”, “Eu estava errado”, “Eu estava certo”). O operante composto n˜ao necessariamente possui um u ´nico comportamento em sua base, e a jun¸ca˜o do comportamento prim´ario com o secund´ario em uma mesma senten¸ca ou emiss˜ao n˜ao ´e um requisito l´ogico para a existˆencia de uma rela¸ca˜o autocl´ıtica.

69 4 DIREITO COMO COMPORTAMENTO

4.1 As vantagens de uma an´ alise comportamental do direito At´e este ponto, constru´ımos uma base de conceitos comportamentais que comp˜oem o behaviorismo radical e s˜ao utilizados como na pr´atica ep´ırica das Ciˆencias Comportamentais, e fornecemos nossas justificativas para a ado¸ca˜o desta abordagem no t´opico 1.1.1. No entanto, devemos ressaltar que as vantagens relativas a` ado¸ca˜o de m´etodos e princ´ıpios cient´ıficos durante a busca por novos conhecimentos n˜ao s˜ao espec´ıficas da psicologia, sendo plenamente transpon´ıveis a muitas outras disciplinas acadˆemicas. Como estamos nos dispondo a estudar os fenˆomenos tipicamente jur´ıdicos, algumas perguntas se mostram praticamente inevit´aveis. Haveria, afinal, alguma vantagem espec´ıfica na aplica¸c˜ao de m´etodos cient´ıficos aos estudos jur´ıdicos, em detrimento dos m´etodos mais tradicionais deste campo? Poderia uma “ciˆencia jur´ıdica” esclarecer a “natureza” do direito, bem como o seu modo de funcionamento? Seria esta disciplina um meio verdadeiramente adequado para a avalia¸ca˜o e o aperfei¸coamento de nossas institui¸c˜oes? Primeiramente, precisamos esclarecer o que entendemos por “ciˆencia jur´ıdica”, j´a que o termo ´e utilizado com acep¸co˜es completamente diferentes por in´ umeros autores. Por um lado, sendo as normas legais e os precedentes normativos as formas mais comuns de express˜ao dos conte´ udos jur´ıdicos na atualidade, precisaremos resgatar, ainda que parcialmente, a ideia avan¸cada por Kelsen acerca de uma ciˆencia de normas81 . No entanto, muito embora reconhe¸camos que as normas s˜ao fatos que devem ser estudados em uma teoria com pretens˜oes emp´ıricas, n˜ao nos preocuparemos com fatores como a estrutura l´ogica e te´orica dos sistemas jur´ıdicos ou das prescri¸c˜oes jur´ıdicas em si, mas sim com as efetivas bases emp´ıricas sobre as quais a pr´atica jur´ıdica se constr´oi. Contraporemos, portanto, uma “ciˆencia dos fatos jur´ıdicos” `a “ciˆencia das normas jur´ıdicas” kelseniana, ressaltando que a rela¸c˜ao entre as duas ´e de contingˆencia (a ciˆencia dos fatos jur´ıdicos engloba a ciˆencia das normas jur´ıdicas, j´a que as normas jur´ıdicas s˜ao fatos jur´ıdicos), e n˜ao de oposi¸ca˜o.

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“Na afirma¸c˜ ao evidente de que o objeto da ciˆencia jur´ıdica ´e o Direito, est´a contida a afirma¸c˜ ao menos evidente - de que s˜ ao as normas jur´ıdicas o objeto da ciˆencia jur´ıdica, e a conduta humana s´ o o ´e na medida em que ´e determinada nas normas jur´ıdicas como pressuposto ou consequˆencia, ou por outras palavras - na medida em que constitui conte´ udo de normas jur´ıdicas. Pelo que respeita ` a quest˜ ao de saber se as rela¸c˜ oes inter-humanas s˜ao objeto da ciˆencia jur´ıdica, importa dizer que elas tamb´em s´ o s˜ ao objeto de um conhecimento jur´ıdico enquanto rela¸c˜oes jur´ıdicas, isto ´e, como rela¸c˜ oes que s˜ ao constitu´ıdas atrav´es de normas jur´ıdicas . A ciˆencia jur´ıdica procura apreender o seu objeto “juridicamente”, isto ´e, do ponto de vista do Direito. Apreender algo juridicamente n˜ao pode, por´em, significar sen˜ ao apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jur´ıdica ou conte´ udo de uma norma jur´ıdica, como determinado atrav´es de uma norma jur´ıdica.” (KELSEN, 1998, pg. 50)

70 Um poss´ıvel nome para o estudo espec´ıfico das normas jur´ıdicas e de seus respectivos conte´ udos – ou seja, das normas sob a perspectiva normativa, ou sob a ´otica interna do direito – seria o de “Dogm´atica Jur´ıdica”, que j´a ´e utilizada por alguns autores para denominar a pr´atica normativa realizada pelos juristas no interior do direito. Talvez se possa questionar a utilidade de chamar de “ciˆencia” um campo que possui um objeto de estudo como o direito positivo, que ´e inteiramente artificial e pode ser modificado por meio da atividade legislativa, mas n˜ao se pode negar que inexistem o´bices `a realiza¸ca˜o de uma atividade puramente descritiva que tenha por escopo o conte´ udo das normas prescritivas. As cr´ıticas a` proposta kelseniana82 se resumem a` adequa¸c˜ao da nomenclatura do campo: poder-se-ia questionar se se trata de uma verdadeira “ciˆencia”, no sentido tradicional do termo, mas n˜ao a possibilidade da empreitada jur´ıdica descritiva. No entanto, embora este campo seja extremamente u ´til para juristas e demais estudiosos dos sistemas jur´ıdicos positivos, sua importˆancia para aqueles que desejam saber mais sobre o funcionamento emp´ırico do direito ´e limitada. As normas da dogm´atica n˜ao surgem espontaneamente nas sociedades humanas; elas s˜ao fruto de um contexto sociol´ogico, econˆomico, pol´ıtico e hist´orico espec´ıfico. Cada uma destas ´areas possui uma disciplina espec´ıfica e, por isso, devemos entregar o estudo de cada tipo de fenˆomeno a` sua ´area pr´opria. A agrega¸ca˜o de fenˆomenos comportamentais (ou seja, a emiss˜ao de diversos comportamentos que exercem influˆencia uns sobre os outros dentro de uma mesma cadeia ou contexto83 ) em massa no contexto global ou no interior de determinada sociedade, bem como resultados provenientes deste processo e tidos como de especial relevˆancia para o direito, constituem o objeto de estudo da disciplinha que podemos chamar de “sociologia jur´ıdica”84 . Inclusos no escopo da sociologia jur´ıdica est˜ao a “economia jur´ıdica”85 , que estuda a agrega¸c˜ao de comportamentos com conte´ udo econˆomico e seu efeito sistˆemico; a “pol´ıtica jur´ıdica”, que estuda a agrega¸c˜ao de comportamentos das autoridades de determinada comunidade e, possivelmente, a in-

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Temos em mente aqui apenas a proposta de descri¸c˜ao do direito positivo em si, e n˜ao a maneira espec´ıfica como sua base foi teorizada por Kelsen. Poder-se-ia falar de uma “ciˆencia das normas” conduzida em uma base te´ orica Hartiana, por exemplo.

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Exemplos poss´ıveis seriam, por exemplo, todos os comportamentos negociais subjacentes a um acordo, ou todos os comportamentos que foram emitidos por pol´ıticos durante o processo legislativo e culminaram na cria¸c˜ ao de uma norma jur´ıdica.

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A sociologia cient´ıfica, infelizmente, ainda enfrenta diversas dificuldades metodol´ogicas em seus estudos, o que sem d´ uvida alguma pode ser atribu´ıdo `a extrema dificuldade de analisar comportamentos humanos em larga escala – o que amplifica todas as dificuldades de estudo do j´a complexo fenˆomeno comportamental.

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Temos em mente aqui uma disciplina que descreva comportamentos econˆomicos empiricamente, como pretende a nova tradi¸c˜ ao chamada “Behavioral Economics”, e n˜ao as teorias econˆomicas de car´ ater eminentemente prescritivo (ainda que estas possam ser u ´teis na formula¸c˜ao de pol´ıticas econˆomicojur´ıdicas a serem implementadas por meio do direito positivo).

71 tera¸ca˜o destas com autoridades de outras comunidades, e, por fim, a “hist´oria do direito”, que estuda agrega¸c˜oes de comportamentos praticados por organismos n˜ao mais existentes, bem como seus poss´ıveis efeitos transitivos86 sobre o comportamento de organismos que ainda existe. Todos os fenˆomenos jur´ıdicos, no entanto, devem possuir como base te´orica a “psicologia jur´ıdica” ou “jurisprudˆencia comportamental”, que se encarregar´a de estudar os comportamentos individualizados dos organismos humanos, um requisito necess´ario para a existˆencia dos efeitos complexos e sistˆemicos que comp˜oem a dogm´atica, a sociologia, a economia, a pol´ıtica e a hist´oria. Ainda que teoricamente se possa conceber uma relativa independˆencia entre o estudo dos agregados comportamentais e dos comportamentos que se agregam para form´a-los, a obten¸ca˜o de informa¸co˜es corretas sobre a segunda categoria inevitavelmente nos levaria a um maior conhecimento sobre a primeira87 - e, portanto, a utilidade de um isolamento total poderia ser questionada. Isto porque a rela¸c˜ao destas disciplinas com a ciˆencia comportamental ´e an´aloga `aquela existente, por exemplo, entre a biologia, a qu´ımica e a f´ısica, onde fenˆomenos biol´ogicos nada mais s˜ao do que in´ umeros fenˆomenos qu´ımicos agregados – sendo os fenˆomenos qu´ımicos, por sua vez, in´ umeros fenˆomenos f´ısicos agregados. Os estudos biol´ogicos podem ser conduzidos de forma separada dos estudos f´ısicos ou qu´ımicos, mas o aproveitamento por este campo de descobertas feitas nos outros dois poderia ser extremamente frut´ıfero. A partir desta perspectiva, a possibilidade de transposi¸ca˜o do conhecimento comportamental para o conhecimento jur´ıdico se torna evidente. N˜ao s´o o direito pode ser decomposto nos in´ umeros “comportamentos jur´ıdicos” que o integram como estes comportamentos podem ser sujeitos aos modelos emp´ıricos da an´alise funcional, o que permitir´a que realizemos uma an´alise mais minuciosa de suas propriedades. Uma lei determinando que “O homic´ıdio ser´a punido com a pris˜ao”, por exemplo, poderia ser caracterizada como um comportamento verbal similar a` enuncia¸ca˜o da frase “O homic´ıdio ser´a punido com a pris˜ao” por um organismo humano qualquer, com algumas diferen¸cas espec´ıficas – como, por exemplo, a de que este comportamento possui uma fun¸c˜ao espec´ıfica (a de servir como regra jur´ıdica), tem os seus efeitos amplificados pelo seu status de norma jur´ıdica (as normas s˜ao publicizadas de diversas maneiras, o que amplia o n´ umero de organismos sob sua influˆencia) e possivelmente tem a sua forma inicial modificada diversas vezes antes da primeira emiss˜ao em sua forma canˆonica (na maioria dos sistemas atuais, as leis

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Ou seja, os efeitos dos comportamentos de gera¸c˜oes passadas sobre os indiv´ıduos existentes hoje, como a permanˆencia de institui¸c˜ oes jur´ıdicas na pr´atica intraverbal judici´aria mesmo ap´os a morte de todos os seus criadores originais.

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Caso tiv´essemos informa¸c˜ oes completas sobre todos os comportamentos praticados a qualquer tempo no interior de uma sociedade, n´ os trivialmente ter´ıamos informa¸c˜oes completas sobre todos os fatos sociol´ ogicos, jur´ıdicos, hist´ oricos, pol´ıticos e econˆomicos desta mesma sociedade.

72 passam por um controle legislativo antes de atingirem sua forma final, de maneira que a emiss˜ao original de um legislador poderia ter sido, por exemplo, “Eu acho que devemos punir assassinos com o c´arcere”, tendo este comportamento agido como “Sd ” para outros comportamentos, como “Concordo” ou “Discordo”, e sido influenciado em alguma medida por comportamentos emitidos previamente, como leis constitucionais criadas antes da delibera¸c˜ao e que influenciaram o processo de delibera¸ca˜o legislativa, apenas ao final de todo este processo tendo a forma canˆonica da lei sido escrita e promulgada por algum funcion´ario p´ ublico).

4.2 O hom´ unculo jur´ıdico Ironicamente, caso tratemos os agregados de comportamentos jur´ıdicos que se apresentam a n´os com formato similar ao de um u ´nico comportamento verbal lingu´ıstico (tal qual a emiss˜ao da lei em sua forma canˆonica, que esconde por tr´as de si todo o processo legislativo da qual ela ´e fruto) como sendo, de fato, uma u ´nica instˆancia comportamental, a figura que se apresentar´a diante de n´os ser´a extremamente parecida com o hom´ unculo mentalista contra o qual os behavioristas tanto lutaram em sua tentativa de livrar a psicologia do v´ıcio das explica¸co˜es circulares ou infinitamente regressivas88 , talvez com a diferen¸ca de que os hom´ unculos do nosso caso seriam literalmente seres humanos e que corpos seguiriam algumas regras pr´oprias, como a substitui¸ca˜o perio´odica dos hom´ unculos de organismos democr´aticos (como se o corpo trocasse de personalidade a cada quatro ou cinco anos). Esta similitude, no entanto, n˜ao ´e motivo para alarme. Os comportamentos do nosso organismo jur´ıdico – que tende a ser identificado com o Estado – s˜ao aqui explicados como sendo o produto final de uma cadeia de comportamentos emitidos pelos nossos “hom´ unculos” legislativos, que produzem resultados espec´ıficos ao se agregarem e, n˜ao

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O argumento do hom´ unculo ´e uma fal´acia que surge mais comumente na teoria da vis˜ao. Algu´em pode explicar a vis˜ ao (humana) notando que a luz do mundo exterior forma uma imagem nas retinas que est˜ ao nos olhos e alguma coisa (ou algu´em) no c´erebro olha para essas imagens como se elas fossem imagens em uma tela de cinema (esta teoria da vis˜ao costuma ser chamada de teoria do Cinema Cartesiano: atualmente, ela ´e mais associada com o psic´ologo David Marr). Surge a quest˜ao sobre a natureza deste observador interno. A suposi¸ca˜o aqui ´e que h´a um ”pequeno homem”ou ”hom´ unculo”dentro do c´erebro ”olhando”o filme. A raz˜ ao disto ser uma fal´acia pode ser entendida ao perguntarmos como o hom´ unculo ”vˆe”o filme interno. A resposta ´obvia ´e que h´a outro homunc´ ulo dentro da ”cabe¸ca”ou ”c´erebro”do primeiro hom´ unculo olhando para o ”filme”. Mas como esse hom´ unculo vˆe o mundo externo? Para responder isto, somos for¸cados a supor outro hom´ unculo dentro da cabe¸ca deste outro hom´ unculo e da´ı em diante. Em outras palavras, estamos em uma situa¸c˜ao de regresso infinito. O problema com o argumento do hom´ unculo ´e que ele tenta explicar um fenˆomeno em termos do pr´ oprio fenˆ omeno que ele deveria explicar.”.” (WIKIPEDIA, 2016a)(tradu¸c˜ao nossa)

73 raramente, escolhem expor seu resultado a`queles que est˜ao fora do corpo do Estado por meio de uma forma canˆonica, como uma norma jur´ıdica. Estamos livres, portanto, do regresso infinito presente na fal´acia do hom´ unculo, j´a que, muito embora expliquemos os comportamentos do Estado em termos de comportamentos legislativos ou judiciais, s´o poderemos explicar o comportamento dos legisladores ou ju´ızes por meio da an´alise funcional tradicional. N˜ao existem hom´ unculos dentro dos nossos hom´ unculos. Muito embora talvez pare¸ca tentador estabelecer uma rela¸ca˜o funcional entre o comportamento deste Leviat˜a personificado e o ambiente pol´ıtico, econˆomico, hist´orico e sociol´ogico em que ele est´a inserido, precisamos ter em mente que uma an´alise nestes moldes, devido `a sua extrema simplifica¸ca˜o, seria necessariamente fr´agil. Quando estudamos eventos compostos por agrega¸co˜es, eventuais modifica¸co˜es nas vari´aveis que se agregam podem possuir efeitos sistˆemicos, o que faz com que fenˆomenos naturais mais complexos sejam, por defini¸ca˜o, mais vol´ateis do que os fenˆomenos mais simples. Isto pode, ali´as, ser indicado como uma poss´ıvel explica¸c˜ao para o fato de ainda n˜ao termos atingido nas “soft sciences” o mesmo grau de rigor cient´ıfico j´a obtido nas “hard sciences”; os eventos da primeira lidam com agrega¸c˜oes em escala significativamente superior e, por isso, s˜ao mais complexas, vol´ateis e incertas. No entanto, em que pese a sua fragilidade inerente, a utiliza¸ca˜o de esquemas semelhantes ao funcional para a explica¸ca˜o de eventos complexos certamente n˜ao seria sem precedentes. N˜ao precisamos procurar muito para descobrir algum livro de hist´oria no qual o surgimento de determinado regime pol´ıtico ´e tido como uma fun¸c˜ao de vari´aveis ambientais presentes naquela na¸ca˜o (ou no contexto global, o que tem se tornado cada vez mais frequente nos dias de hoje) em um momento espec´ıfico. Um historiador poderia explicar a Revolu¸ca˜o Russa de 1905 em fun¸c˜ao da mis´eria dos cidad˜aos russos, da opulˆencia do Czar Nicolau II e/ou das derrotas na Guerra Russo-Japonesa, assim como podemos indicar que um indiv´ıduo apresentou comportamento agressivo em rela¸ca˜o a outro porque estava submetido a severas priva¸co˜es de refor¸cadores prim´arios (como ´agua e comida) e a certos est´ımulos aversivos (como a riqueza e fartura aparentes do indiv´ıduo agredido), o que, ap´os a aplica¸ca˜o de um refor¸cador negativo (consistente na remo¸c˜ao da for¸ca f´ısica que o adulto agredido poderia aplicar ao agressor na realiza¸ca˜o de contra-controle caso o momento fosse outro) aumentou a probabilidade de ocorrˆencia de operantes agressivos no indiv´ıduo agressor. An´alises deste tipo n˜ao necessariamente estar˜ao erradas, mas n˜ao podemos nos esquivar de seus expedientes simplificadores ou seus poss´ıveis efeitos. Quando levadas `as suas u ´ltimas consequˆencias, simplifica¸co˜es funcionais possuem a incˆomoda capacidade de suprimir alguns elementos essenciais da an´alise e contrabalancear esta redu¸c˜ao mediante o enaltecimento do papel funcional de outros elementos. Um materialista hist´orico radical poderia, por exemplo, afirmar que a Revolu¸ca˜o Russa estava sob o controle funcional exclusivo do contexto econˆomico do imp´erio russo, assim como um franciscano ou est´oico

74 radical poderia clamar protagonismo funcional para a indesej´avel opulˆencia do Czar e um analista militar poderia fazer o mesmo para a desprestigiosa derrota das for¸cas russas na guerra. Portanto, por estarmos lidando, ao mesmo tempo, tanto com comportamentos jur´ıdicos unit´arios, emitidos por organismos que comp˜oem os o´rg˜aos legislativos e judiciais de um Estado, quanto com suas agrega¸co˜es jur´ıdicas, que frequentemente estabelecem a forma gramatical canˆonica de um comportamento verbal e determinam sua dissemina¸ca˜o pela sociedade mediante o refor¸co de pr´aticas (tamb´em unit´arias) que ampliem o seu alcance (seja conferindo publicidade a um texto, indicando a existˆencia da regra para a m´ıdia ou outra institui¸c˜ao que seja refor¸cada pela apresenta¸c˜ao de not´ıcias ou, simplesmente, anunciando p´ ublica e vocalmente a regra prescrita em um local p´ ublico), caso desejemos realizar uma an´alise verdadeiramente completa do direito, devemos indicar quais agrega¸co˜es autˆonomas s˜ao relevantes para o direito e quais comportamentos se agregam para determinar sua forma¸ca˜o.

4.3 Comportamentos verbais jur´ıdicos e legislativos Para iniciar nossa an´alise, realizaremos a seguir uma cataloga¸c˜ao dos principais comportamentos observados nos sistemas jur´ıdicos atuais, bem como poss´ıveis categoriza¸ca˜oes destes no ˆambito de uma an´alise funcional do direito. A fim de conferir maior precis˜ao ao nosso trabalho, passaremos a nos referir aos comportamentos singulares emitidos por agentes atuantes nos sistemas legislativos ou judiciais de um Estado (ou qualquer outro organismo cujos comportamentos sejam relevantes para o direito estatal) simplesmente como “comportamentos jur´ıdicos”, enquanto os agregados comportamentais que, apesar de terem sua emiss˜ao determinada pela efetiva agrega¸ca˜o dos comportamentos jur´ıdicos, se apresentam ao interlocutor por meio de formas lingu´ısticas simples89 passar˜ao a ser chamados de “agregados jur´ıdicos”.

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Ou seja, comportamentos verbais como ac´ord˜aos de desembargadores ou leis de regimes democr´aticos, que s´ o foram emitidos em sua forma final ap´os um longo processo de delibera¸c˜ao legislativa ou judicial e que, muito embora se apresentem na forma de comportamentos comuns – como formula¸c˜oes canˆonicas - que de fato poderiam ter sido emitidos em circunstˆancias normais por um organismo qualquer que dominasse a mesma linguagem, est˜ ao sob o controle de vari´aveis pr´oprias do mundo jur´ıdico, como os processos de tomada de decis˜ oes legislativas e judiciais.

75 4.3.1 Mandos jur´ıdicos Os comportamentos verbais mais frequentemente encontrados na forma de agregados verbais com car´ater jur´ıdico, sem sombra de d´ uvida, s˜ao os mandos imperativos que utilizam linguagem generalizada. Ainda que possamos considerar comportamentos que contingenciem ina¸ca˜o governamental (“permiss˜oes”) ou disponibiliza¸ca˜o de refor¸co (“incentivos”) a determinadas condutas como partes integrantes do direito, o que se observa com mais frequˆencia ´e a existˆencia de leis que promovem o contingenciamento de puni¸co˜es a condutas tidas como socialmente indesejadas aos cidad˜aos que est˜ao sujeitas a`quela jurisdi¸c˜ao. Quando um mando se apresenta na forma de agregado jur´ıdico, muito embora sua forma lingu´ıstica imperativa se mantenha, suas propriedades essenciais s˜ao significativamente alteradas. Em primeiro lugar, podemos observar que, exceto em casos limites90 , a emiss˜ao do agregado n˜ao ´e refor¸cada pelo est´ımulo que o comportamento verbal especifica ou descreve, mas sim pelo mecanismo governamental que refor¸ca a sua emiss˜ao. Caso um funcion´ario p´ ublico seja pago para observar o resultado de uma delibera¸c˜ao legislativa e criar a forma canˆonica de uma lei, esta emiss˜ao ser´a refor¸cada pelo pagamento do funcion´ario (ou pela pr´opria atividade, caso o funcion´ario sinta “orgulho” por trabalhar nesta fun¸ca˜o), n˜ao sendo necessariamente dependente do cumprimento do comando legal. Desta forma, este funcion´ario poderia emitir o agregado “Todos os cidad˜aos pagar˜ao seus impostos no u ´ltimo dia de cada mˆes, sob pena de multa” mesmo que julgue a data do pagamento dos impostos completamente irrelevante para si mesmo. E, como se n˜ao bastasse, o ambiente deste funcion´ario p´ ublico tamb´em seria fruto do mecanismo governamental onde este labora, o que ´e algo extremamente comum no direito. Por isso, devemos indicar que, em regra, o ambiente onde funcion´arios p´ ublicos emitem agregados jur´ıdicos (com especial destaque para os mandos jur´ıdicos) normalmente possuem est´ımulos controlados pelo pr´oprio governo. Em segundo lugar, podemos notar que os agregados usualmente s˜ao propagados no tempo e no espa¸co, tendo os seus efeitos ampliados dentro da comunidade a que se destina. Isto ´e possibilitado pela difus˜ao ampla de informa¸co˜es e pelo condicionamento de boa parte da popula¸c˜ao a` obediˆencia legal, onde se torna fato sociol´ogico a propriedade discriminativa (usualmente punitiva) dos comandos verbais apresentados como jur´ıdicos. Esta caracter´ıstica ´e frequente nos agregados jur´ıdicos em geral, mas ´e mais comum nos mandos porque, enquanto outras normas jur´ıdicas podem ser u ´teis apenas para advoga-

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Mais uma vez, colocamos aqui a figura do ditador cuja palavra ´e lei. Neste caso, n˜ao se trataria de um agregado, mas sim de um comportamentos comum – e, portanto, as exce¸c˜oes n˜ao se aplicariam.

76 dos, ju´ızes e litigantes, mandos jur´ıdicos generalizados costumam ter a pretens˜ao de ser conhecidos e obedecidos por toda a comunidade. Em terceiro, devemos indicar que os comportamentos jur´ıdicos legislativos (ou judiciais, no caso da Common Law ), que geralmente exercem o papel de protagonismo na cria¸ca˜o de normas, tendem a ser refor¸cados ou punidos n˜ao pelo conte´ udo da lei em debate ou por sua aplica¸ca˜o na pr´atica social, mas sim pelo fato deste conte´ udo se revestir com uma roupagem jur´ıdica. O legislador que emite a resposta “Chap´eus deveriam ser proibidos em todo o nosso pa´ıs” e vˆe sua sugest˜ao se tornar lei n˜ao ser´a refor¸cado imediatamente a cada vez que um cidad˜ao jogar fora o seu chap´eu. Neste caso, o comportamento do legislador tender´a a ser refor¸cado ou pela simples eleva¸c˜ao de seu comando ao n´ıvel de regra jur´ıdica (ou seja, o legislador se sentir´a satisfeito simplesmente por ver que seu comando virou norma) ou por refor¸cadores condicionados que acompanham a aprova¸ca˜o da lei (como prest´ıgio no ambiente legislativo). O fato de chap´eus n˜ao serem mais avistados em ambientes onde as pessoas costumavam us´a-los poder´a oferecer refor¸co suplementar, mas isto nem sempre acontece: nada impede que um legislador tente promover leis contra o canibalismo, o genoc´ıdio, o incesto e o homic´ıdio sem nunca ter presenciado nenhuma destas condutas – ou, ainda, que alguma destas jamais tenha sido praticada pelos cidad˜aos de seu pa´ıs. Por u ´ltimo, precisamos indicar que o mando jur´ıdico tamb´em poder´a ser um est´ımulo discriminativo para a observˆancia de outras normas jur´ıdicas (ainda que estas n˜ao sejam mandos). Uma norma indicando que “O homic´ıdio ´e proibido, exceto em caso de leg´ıtima defesa” poder´a nos levar a tentar descobrir o que ´e considerado leg´ıtima defesa para fins legais, e talvez n´os encontremos algo como “S´o ser´a considerada leg´ıtima defesa a agress˜ao que visar impedir dano iminente; caso a agress˜ao seja remota, as autoridades dever˜ao ser contatadas” entre as leis ou precedentes de uma corte. Esta tamb´em ´e uma propriedade que pode estar em outros agregados jur´ıdicos, mas que tende a ser observada com mais frequˆencia em mandos jur´ıdicos (j´a que os outros agregados tendem a agir no sentido de aperfei¸coar os mandos, e esta tarefa parece ser realizada de maneira mais eficiente por agregados que possam ser compreendidos por si s´o ou, ao menos, com um m´ınimo de referˆencias adicionais). Portanto, podemos conceituar os mandos jur´ıdicos como agregados verbais nos quais o est´ımulo discriminativo e os est´ımulos a serem utilizados como refor¸co de sua pr´atica (ou puni¸ca˜o de sua n˜ao-pr´atica) costumam ser determinados pelo pr´oprio mecanismo pol´ıtico subjacente ao agregado, e n˜ao pelos est´ımulos ou contingenciamentos nele especificados. Adicionalmente, as propriedades mais frequentemente observadas nestes agregados s˜ao sua ampla publicidade e sua costumeira utiliza¸c˜ao de referˆencias a outros agregados (agindo como Sd para a exposi¸c˜ao de alguns interlocutores a estes). Por fim, os comportamentos jur´ıdicos em sua composi¸c˜ao tendem a ser refor¸cados por est´ımulos generalizados, sendo a efic´acia do mando sobre o ambiente social, normalmente, apenas

77 um refor¸cador suplementar.

4.3.1.1 Normas, precedentes normativos e decis˜oes judiciais Enquanto as legisla¸co˜es que adotam o modelo da Civil Law adotam as normas positivas como sua principal forma de mando jur´ıdico, as legisla¸co˜es da Common Law oferecem esta posi¸ca˜o de protagonismo aos precedentes normativos. Para fins de an´alise, as duas categorias merecem o mesmo tratamento em rela¸ca˜o a seus efeitos, divergindo apenas em seu processo de forma¸ca˜o. Por esta raz˜ao, nos referiremos a ambas utilizando o termo “normas”. Com as normas, o Estado ´e capaz de controlar a conduta de seus s´ uditos por meio de comandos – e, uma vez que comandos puros e simples talvez n˜ao sejam suficientes para causar mudan¸cas comportamentais na escala desejada (ponto a que voltaremos no cap´ıtulo 5.2.1.2), contingenciar puni¸co˜es ao n˜ao cumprimento de certos comandos ou (ainda que com menos frequˆencia) contingenciar recompensas ao cumprimento destes. Os efeitos dos mandos que n˜ao realizam contingenciamentos decorrem da pr´opria defini¸ca˜o de mando jur´ıdico oferecida anteriormente, mas uma caracter´ıstica adicional interv´em quando tratamos de mandos que realizam este expediente, a saber: o estabelecimento simultˆaneo de um est´ımulo discriminativo para o refor¸co ou puni¸ca˜o da pr´atica (ou da n˜ao pr´atica) de condutas punitivas por agentes p´ ublicos. Dizer que uma norma penaliza determinado comportamento n˜ao ´e dizer apenas que o comportamento ´e juridicamente reprov´avel, mas tamb´em que sua pr´atica ser´a punida pelo Estado, nos termos estabelecidos pelo pr´oprio sistema jur´ıdico. Assim como as normas funcionam como est´ımulos discriminativos para que os cidad˜aos comuns pratiquem ou n˜ao pratiquem determinadas condutas, elas tamb´em funcionam como est´ımulos discriminativos para que os agentes p´ ublicos apliquem puni¸co˜es quando a norma for violada e n˜ao as apliquem quando as normas forem obedecidas. Estando a conduta exclu´ıda do rol de condutas proibidas (ou de condutas recompensadas), sua pr´atica n˜ao ser´a punida pelo Estado simplesmente porque sua ocorrˆencia n˜ao possui nenhuma relevˆancia jur´ıdica. Como se n˜ao bastasse, a maioria dos sistemas jur´ıdicos atuais estabelece que a puni¸ca˜o de condutas que n˜ao forem proibidas pelo pr´oprio ordenamento jur´ıdico efetivamente ser´a punida (ou seja, que os agentes p´ ublicos ser˜ao punidos se aplicarem puni¸co˜es jur´ıdicas fora das hip´oteses legais), o que apenas contribui para a efic´acia da t´ecnica jur´ıdica e a previsibilidade do comportamento dos agentes p´ ublicos. E o ciclo ´e aperfei¸coado por meio de um processo retro-alimentativo: uma vez que a pr´atica de condutas punitivas pelos agentes p´ ublicos tende a ser refor¸cada quando a lei for descumprida e punida sempre que for cumprida, a probabilidade de puni¸c˜ao ser´a reduzida caso a lei seja cumprida (ou caso

78 seja descumprida, mas este fato n˜ao chegue ao conhecimento das autoridades91 ) e se tornar´a alta caso a lei venha a ser descumprida. O efeito da puni¸c˜ao ou refor¸co de eventuais condutas punitivas repercute na conduta do agente e, com isso, provˆe ao mando jur´ıdico sua for¸ca normativa. As senten¸cas proferidas por ju´ızes pertencentes a` tradi¸c˜ao da Civil Law (ou seja, decis˜oes que produzem efeitos sobre casos concretos, mas que n˜ao possuem for¸ca normativa sobre a resolu¸ca˜o de outros casos), assim como qualquer decis˜ao baseada em regras explicitamente enunciadas, diferenciam-se das normas jur´ıdicas comuns n˜ao em fun¸ca˜o dos efeitos que exerce sobre seus destinat´arios, mas sim devido a` existˆencia de diferen¸cas significativas entre as vari´aveis que controlam a emiss˜ao do agregado normativo “norma” e do comportamento jur´ıdico “senten¸ca”. Enquanto o conte´ udo da norma ´e determinado pelas vari´aveis atuantes sobre os comportamentos que se agregam para produzi-la92 , o conte´ udo da senten¸ca ´e determinado apenas pelas vari´aveis atuantes durante a emiss˜ao do comportamento a que corresponde pelo juiz, o que normalmente inclui as pr´oprias normas que embasam a decis˜ao – mas n˜ao se limita a estas93 . Em outras palavras, as nor-

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A incorpora¸c˜ ao da probabilidade de descoberta se faz necess´aria porque, para que a conduta sirva como est´ımulo discriminativo em rela¸c˜ao aos agentes p´ ublicos, o conhecimento de sua pr´atica deve, obviamente, encontrar-se de alguma forma dispon´ıvel no ambiente destes. O mesmo racioc´ınio se aplica as condutas punitivas dos pr´ ` oprios agentes, j´a que os agentes p´ ublicos que punirem indevidamente e n˜ ao forem descobertos tender˜ ao a n˜ ao ser punidos por seus atos. Esta assimetria ´e respons´avel tanto pelo descumprimento sistˆemico da lei (onde h´a incentivos para a pr´atica de condutas criminosas e n˜ ao h´ a vigilˆ ancia policial suficiente) quanto pela pr´atica sistˆemica de abuso de autoridade (quando h´ a incentivos para sua pr´ atica e os agentes p´ ublicos n˜ao s˜ao devidamente monitorados).

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Esta distin¸c˜ ao entre mandos jur´ıdicos que se agregam e mandos jur´ıdicos agregados parece ter sido levantado pelo pr´ oprio Kelsen na ocasi˜ao em que o autor diferenciou o sentido subjetivo de deverser, possu´ıdo por todos os comandos verbais, do sentido objetivo de dever-ser, possu´ıdo apenas pelas normas jur´ıdicas. Neste sentido: “H´ a enunciados sobre o ato cujo sentido ´e o comando, a permiss˜ ao, a atribui¸c˜ ao de um poder ou competˆencia. O sentido dessas proposi¸c˜oes, por´em, n˜ao ´e o de um enunciado sobre um fato da ordem do ser, mas uma norma da ordem do dever-ser, quer dizer, uma ordem, uma permiss˜ ao, uma atribui¸c˜ ao de competˆencia. Uma lei penal pode conter a proposi¸c˜ao: o furto ser´ a punido com pena de pris˜ ao. O sentido desta proposi¸c˜ao n˜ao ´e, como o seu teor verbal parece sugerir, a enuncia¸c˜ ao de um acontecer f´ atico, mas uma norma: uma ordem ou uma atribui¸c˜ao de competˆencia para punir o furto com pena de pris˜ao. O processo legiferante ´e constitu´ıdo por uma s´erie de atos, que, na sua totalidade, possuem o sentido de normas. Quando dizemos que, por meio de um dos atos acima referidos ou atrav´es dos atos do procedimento legiferante, se “produz” ou “p˜oe” uma norma, isto ´e apenas uma express˜ ao figurada para traduzir que o sentido ou o significado do ato ou dos atos que constituem o procedimento legiferante ´e uma norma. No entanto, ´e preciso distinguir o sentido subjetivo do sentido objetivo. “Dever-ser” ´e o sentido subjetivo de todo o ato de vontade de um indiv´ıduo que intencionalmente visa a conduta de outro. Por´em, nem sempre um tal ato tem tamb´em objetivamente este sentido. Ora, somente quando esse ato tem tamb´em objetivamente o sentido de dever-ser ´e que designamos o dever-ser como “norma”. (KELSEN, 1998, pgs.5-6)

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A interven¸c˜ ao de vari´ aveis atuantes sobre comportamentos comuns na emiss˜ao de senten¸cas ´e analisada, por exemplo, no artigo “Extraneous factors in judicial decisions” (DANZIGER; LEVAV; AVNAIMPESSO, 2011), onde os pesquisadores descobriram que, surpreendentemente, existia uma correla¸c˜ ao entre a proximidade do hor´ ario de pausas para refei¸c˜oes e o conte´ udo das senten¸cas proferidas por alguns ju´ızes de Israel.

79 mas atuam como refor¸cadores para a decis˜ao dos ju´ızes (tamb´em podendo, na tentativa de produzir maior seguran¸ca jur´ıdica, contingenciar puni¸co˜es ou recompensas a senten¸cas com determinados conte´ udos) e aumentam a probabilidade de que a decis˜ao seja proferida de acordo com a lei, mas de forma alguma fazem com que o conte´ udo da senten¸ca necessariamente corresponda ao conte´ udo da norma. Se este esquema se mostrar correto, a probabilidade de correspondˆencia entre norma e senten¸ca tender´a a ser proporcional a` quantidade de refor¸co que os ju´ızes recebam para decidir de acordo com os comandos legais (ou de puni¸ca˜o que recebam por decidir de forma contr´aria a elas), fato este que poder´a ser u ´til tanto para os sistemas que desejam promover mais seguran¸ca jur´ıdica (onde uma boa solu¸c˜ao ser´a o contingenciamento de refor¸cos a decis˜oes que correspondem a normas e/ou a puni¸ca˜o de decis˜oes que n˜ao correspondem ou, caso isto j´a seja feito, o simples aumento da quantidade ou intensidade dos est´ımulos utilizados) quanto para sistemas que desejam promover uma maior flexibilidade em seus ordenamentos (onde uma boa solu¸c˜ao ser´a a remo¸ca˜o de contingenciamentos punitivos sobre a correspondˆencia das decis˜oes judiciais a`s normas e/ou o contingenciamento de refor¸cos a decis˜oes que n˜ao corresponde e, ainda assim, sejam consideradas adequadas).

4.3.2 Tatos jur´ıdicos Um n´ umero significativo de agregados jur´ıdicos s˜ao postos no sistema jur´ıdico n˜ao para exercer uma fun¸ca˜o normativa por si s´o, mas sim para auxiliar os mandos jur´ıdicos a produzirem seus efeitos da maneira mais eficiente poss´ıvel. Dentre estes, uma categoria de agregados bastante prol´ıfera – e que, apesar de n˜ao ser estudada frequˆencia por jusfil´osofos, ´e uma constante no exerc´ıcio profissional dos operadores do direito – ´e a dos tatos jur´ıdicos, encarregados de prover aos profissionais do direito sua linguagem t´ecnica pr´opria.

4.3.2.1 Predicados f´aticos Os agregados com car´ater t´atil mais pr´oximos dos leitores que n˜ao atuam como advogados, funcion´arios p´ ublicos ou estudantes do direito provavelmente ser˜ao aqueles que geralmente acompanham os pr´oprios mandos jur´ıdicos, j´a que estes s˜ao as normas mais propagadas pela sociedade. Chamaremos estes comportamentos t´ateis jur´ıdicos, que comp˜oem a estrutura dos mandos jur´ıdicos (funcionando essencialmente como “comportamentos t´ateis secund´arios”, j´a que exercem a fun¸ca˜o de verdadeiros autocl´ıticos dos mandos a que correspondem), de “predicados f´aticos”, utilizando a nomenclatura pro-

80 posta por Schauer94 . Indicamos anteriormente que, muito embora este nem sempre seja o caso, os mandos lingu´ısticos frequentemente “especificam” o est´ımulo que refor¸car˜ao o organismo que o emitiu, como ´e o caso do est´ımulo “´agua” na frase “Vocˆe poderia me dar um copo d’´agua?”. No entanto, para que o interlocutor “entenda” o nosso pedido, ´e necess´ario que a resposta verbal “´agua” ao est´ımulo n˜ao verbal “´agua” tenha sido previamente refor¸cada de alguma maneira em nosso interlocutor95 . Da mesma forma, para que possamos ser afetados pela lei “A inj´ uria ser´a punido com multa”, a resposta “inj´ uria” precisa existir em n´os com um m´ınimo de for¸ca – o que poder´a ocorrer caso, por exemplo, algu´em nos diga que inj´ uria ´e o mesmo que “xingamento”, hip´otese na qual a resposta “inj´ uria” passar´a a existir com algum grau (ainda que pequeno) de for¸ca em n´os, talvez podendo at´e vir a ser emitida quando ouvirmos um xingamento novamente. Por serem expressas em formatos generalizadores, as normas jur´ıdicas usualmente precisam recorrer aos predicados f´aticos para determinar exatamente qual conduta ´e punida ou recompensada por determinada regra jur´ıdica, e isto ´e realizado por meio da utiliza¸ca˜o, pelos legisladores, de voc´abulos jur´ıdicos que tendem a ser emitidos pelos juristas (em caso de normas mais t´ecnicas, u ´teis apenas para a pr´atica jur´ıdica) ou pelo p´ ublico em geral (em casos de normas que precisem de maior publicidade) quando determinadas circunstˆancias f´aticas est˜ao presentes. Isto explica a preferˆencia legislativa por conceitos t´ecnico-jur´ıdicos na elabora¸ca˜o de normas, assim como a tendˆencia a` apropria¸ca˜o da linguagem usual pelo direito durante a cria¸ca˜o de novas normas socialmente relevantes - at´e mesmo porque, caso esta “apropria¸ca˜o” n˜ao seja feita, a norma, se ainda assim for amplamente aplicada, tender´a a criar ou uma “populariza¸ca˜o” dos termos que utiliza ou uma vers˜ao “traduzida” da norma na linguagem popular. Um pouco dos dois fenˆomenos parece acontecer com a palavra “homic´ıdio”, por exemplo, que ´e empregada popularmente em alguns contextos, mas substitu´ıda por voc´abulos como “matar” ou “assassinar” nos outros.

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”Uma parte de qualquer regra, a qual alguns escritores se refere como a protasis e outros chamam de fatos operativos, especif´ıca o escopo da regra, as condi¸c˜oes f´aticas desencadeando a aplica¸c˜ao da regra. Este componente de uma regra, ao qual me referirei como o seu predicado f´ atico, pode ser entendido como sua hip´ otese, pois regras prescritivas podem ser formuladas de tal forma que comecem com ”Se x”, onde x ´e uma afirma¸c˜ ao descritiva cuja verdade ´e uma condi¸c˜ao tanto necess´aria quanto suficiente para a aplicabilidade da regra. Se uma pessoa dirigir acima de 55 milhas por hora, ent˜ao esta pessoa deve pagar uma multa de cinquenta d´olares. Se vocˆe continuar fora de casa ap´ os as dez horas, ent˜ ao seus pais n˜ ao mais deixar˜ ao que vocˆe use o carro.”(SCHAUER, 1991, pg. 23)(tradu¸c˜ao nossa) 95

A resposta ainda ser´ a efetiva, no entanto, caso o interlocutor tenha sido condicionado a entregar ´ agua para algu´em que fale esta frase, mesmo sem compreender o seu conte´ udo. Caso algu´em nos diga para oferecer ´ agua sempre que um turista nos falar alguma frase com a palavra “Water”, poderemos refor¸car o mando “Can you give me some water?” mesmo que n˜ao entendamos o que est´a sendo dito.

81 Ante a todo o exposto, temos que, ainda que as regras essencialmente exer¸cam o papel funcional de mandos, sua natureza frequentemente ser´a h´ıbrida. Normalmente poderemos encontrar nos agregados jur´ıdicos, ao mesmo tempo, comportamento que exer¸cam a fun¸ca˜o de mandos e tatos (e, n˜ao raramente, tamb´em intraverbais e autocl´ıticos). Isto equivale a dizer que um mando jur´ıdico n˜ao necessariamente exercer´a exclusivamente a fun¸ca˜o de mando e que, em geral, o que normalmente acontece ´e justamente o contr´ario: em sua estrutura, frequentemente encontraremos comportamentos que, estruturalmente, se assemelham a autocl´ıticos, tatos ou intraverbais.

4.3.2.2 Categorias e defini¸c˜oes Como todo operador do direito j´a sabe, o direito positivo possui uma terminologia pr´opria que precisa ser dominada por quem o pretende utilizar, raz˜ao pela qual o recurso a advogados costuma ser absolutamente necess´ario para aqueles que desejam operar a m´aquina jur´ıdica de maneira eficiente. Estes termos n˜ao s´o criam categorias abstratas nas quais encaixamos eventos especificamente jur´ıdicos – como os diferentes ritos processuais – mas tamb´em termos que qualificam est´ımulos (ou propriedades de est´ımulos) n˜ao verbais comuns de forma propriamente juridicamente, como “bem m´ovel”,“bem fung´ıvel” ou “danos materiais”. Um advogado ´e condicionado a qualificar um livro como “bem m´ovel”, “bem corp´oreo”, “bem n˜ao tribut´avel” ou “objeto l´ıcito de um contrato” da mesma forma que uma pessoa comum ´e condicionada a qualifica-lo com adjetivos como “port´atil” ou “feito de papel”. A diferen¸ca principal entre os dois processos ´e que, enquanto os primeiros termos podem ser u ´teis para determinadas demandas no ambiente dos tribunais, os u ´ltimos provavelmente ser˜ao irrelevantes para esta finalidade espec´ıfica. Esta “adequa¸c˜ao jur´ıdica” ou “inadequa¸ca˜o jur´ıdica” de determinados termos ocorre em virtude de uma mera sele¸ca˜o (ou cria¸ca˜o) legal de tatos cuja utiliza¸ca˜o ser´a refor¸cada especificamente no ambiente jur´ıdico. Em outras palavras: quando a lei afirma que um bem ´e “tribut´avel”, ela apenas est´a afirmando que a emiss˜ao de respostas como “Este bem ´e tribut´avel” na presen¸ca daquele tipo de objeto (contanto que no interior de algum contexto jur´ıdico) ser´a refor¸cada nos advogados, j´a que, uma vez que os ju´ızes daquele ordenamento tamb´em s˜ao condicionados a emitir tatos similares na presen¸ca do mesmo objeto no mesmo contexto96 , ocasionar´a maior probabilidade de vit´oria em demandas tribut´arias referentes a livros.

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E, adicionalmente, desembargadores ou julgadores que trabalham em cortes de apela¸c˜ao s˜ao condicionados a emitir o mesmo mando, o que fornecer´a a possibilidade de recurso e aumentar´a ainda mais a probabilidade de que a decis˜ ao final reforce o advogado que emitiu o mando.

82 Quando os tatos forem proferidos por pessoas do meio jur´ıdico ou estudantes do direito, poderemos indicar que se trata de um comportamento jur´ıdico. Da mesma forma, quando o tato for emitido por um colegiado de ju´ızes em uma decis˜ao, poderemos dizer que se trata de um agregado. No entanto, quando uma classifica¸ca˜o for estabecido por meio de uma norma jur´ıdica, o agregado que a estabelece possuir´a natureza h´ıbrida (mando jur´ıdico e tato jur´ıdico) j´a que se trata n˜ao de uma resposta a um est´ımulo n˜ao verbal, mas sim de uma simples ordem para que determinados est´ımulos n˜ao verbais sejam tratados como sendo possuidores das propriedades jur´ıdicas especificadas97 . Por fim, antes de terminar o t´opico e encerrar nossa an´alise dos tatos, precisamos fazer uma distin¸ca˜o importante. Ainda que muitas defini¸co˜es jur´ıdicas possuam natureza t´atil, diversas categorias igualmente importantes possuem clara natureza intraverbal. Quando indicamos que determinada fala pode ou n˜ao ser considerada “discurso de o´dio” ou “racismo” para fins legais, nossas respostas est˜ao, obviamente, sendo emitidas em fun¸c˜ao de est´ımulos verbais. As diferen¸cas, no entanto, terminam aqui; salvo a divergˆencia quanto a` natureza do est´ımulo originador, a fun¸ca˜o de um comportamento intraverbal descritivo ´e idˆentica a` de um tato jur´ıdico.

4.3.3 Autocl´ıticos jur´ıdicos Devido ao car´ater obrigat´orio comumente atribu´ıdo aos mandos jur´ıdicos, poderia parecer contradit´orio falar sobre a aplica¸c˜ao de autocl´ıticos para agravar, atenuar ou simplesmente modificar os comandos verbais contidos nestes. No entanto, ´e precisamente isto o que acontece quando as normas de determinado sistema jur´ıdico estabelecem ocasi˜oes nas quais a modifica¸c˜ao dos efeitos da norma, possivelmente com a utiliza¸c˜ao de alguns comportamentos autocl´ıticos espec´ıficos, ser´a refor¸cada nos aplicadorese regras. Estas normas permissivas, apesar de terem adotado novas formas no Dierito moderno, j´a existem na pr´atica jur´ıdica h´a tempos no formato de t´ecnicas interpretativas e crit´erios de interpreta¸c˜ao. Chamaremos de autocl´ıticos jur´ıdicos todos os comportamentos jur´ıdicos que editam agregados ou outros comportamentos jur´ıdicos a fim de alterar substancialmente o seu conte´ udo. Assim como no caso dos tatos jur´ıdicos, os autocl´ıticos s˜ao comportamentos jur´ıdicos, e sua emiss˜ao n˜ao se confunde com os agregados jur´ıdicos que estabelecem pr´aticas que

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A norma “Livros n˜ ao s˜ ao tribut´ aveis” n˜ao ´e uma resposta refor¸cada na presen¸ca de livros, mas sim a determina¸c˜ ao (mˆ andica) de que emiss˜oes de respostas como “Estes bens n˜ao s˜ao tribut´aveis” ser˜ ao refor¸cadas na presen¸ca de livros quando, por exemplo, a alfˆandega precisar determinar quais bens importados ser˜ ao tributados e quais ser˜ao liberados sem tributa¸c˜ao.

83 refor¸car˜ao estas mesmas emiss˜oes. As normas autorizativas possuem natureza de mando jur´ıdico, j´a que exercer˜ao a fun¸c˜ao de contingenciar (ou n˜ao) puni¸co˜es, recompensas ou a simples n˜ao interven¸ca˜o do poder p´ ublico caso as edi¸co˜es autocl´ıticas sejam realizadas nos termos e hip´oteses preconizados pela norma.

4.3.3.1 Crit´erios de interpreta¸c˜ao Durante muito tempo, fil´osofos e te´oricos do direito, partindo do pressuposto de que a atividade judicante n˜ao possui nenhuma faceta inovadora ou criativa, tentaram conciliar o aparente car´ater inovador das decis˜oes judiciais (que aplicam normas gerais a casos concretos e, com isto, as adaptam a suas especificidades) com os pressupostos te´oricos do Estado de autores como Montesquieu e Bentham, no qual o Poder Judici´ario seria uma “potˆencia nula” e n˜ao possuiria nenhuma legitimidade legislativa. Segundo alguns destes te´oricos, quando aplicam normas gerais a casos concretos que n˜ao estavam previstos na literalidade do texto legal, os ju´ızes estariam realizando uma atividade de descoberta do “verdadeiro sentido” da norma jur´ıdica, que se ancoraria na “vontade do legislador” que a criou. Esta vis˜ao determina que, quando um juiz extrapola os limites lingu´ısiticos da norma, esta extrapola¸c˜ao s´o ser´a v´alida caso encontre-se em estrita conformidade com a vontade que se esconde por tr´as do dispositivo normativo aplicado. No entanto, uma vez que o juiz aplicador da norma geralmente ´e o pr´oprio agente que explora esta suposta vontade legislativa, n˜ao existe nenhuma raz˜ao para que devamos supor que, quando um juiz prolata uma decis˜ao cujo conte´ udo n˜ao corresponde completamente ao conte´ udo da norma em que se baseia, a expans˜ao da literalidade lingu´ıstica da norma realmente guarde alguma rela¸ca˜o de correspondˆencia com a vontade putativa do legislador. A complementa¸ca˜o do comando legal, quando realizada desta forma, claramente parte dos pr´oprios organismos que realizaram a adequa¸ca˜o do mando jur´ıdico ao caso concreto e imputaram ao legislador a “vontade” que julgam lhe corresponder – ou seja, dos pr´oprios ju´ızes. Quando uma norma jur´ıdica indica que os ju´ızes devem interpretar as demais normas jur´ıdicas pautando-se em crit´erios como “a vontade original do legislador”, os “princ´ıpios universais da raz˜ao natural” ou “em conjunto com todas as demais normas jur´ıdicas”, ela est´a indicando que, caso o juiz, por meio de autocl´ıticos, defina que determinado comportamento verbal corresponde a` “vontade do legislador”, aos “princ´ıpios da reta raz˜ao” ou a uma “interpreta¸ca˜o sistem´atica do direito” e, adicionalmente, o pareamento espec´ıfico do autocl´ıtico com o comportamento seja refor¸cador para, por exemplo, os o´rg˜aos que revisam ou controlam a aplica¸ca˜o de normas judiciais, esta decis˜ao possuir´a

84 maior probabilidade de ser refor¸cada ou de n˜ao ser punida pelo meio jur´ıdico98 . Esta tendˆencia de acolhimento ser´a mais forte em alguns casos do que em outros, pois o grau de precis˜ao conceitual varia entre os diferentes tipos de autocl´ıticos jur´ıdicos. Um comportamento autocl´ıtico por meio do qual um juiz afirmasse que “A lei X n˜ao ser´a aplicada em seu sentido original porque a lei Y lhe alterou” teria altas chances de ser refor¸cado pelas instˆancias superiores caso se verificasse que a lei Y de fato modificou o texto original e esta modifica¸ca˜o fosse aplic´avel ao caso resolvido, mas um autocl´ıtico por meio do qual um juiz afirmasse que “A lei X n˜ao ser´a aplicada em seu sentido literal, pois este n˜ao se coaduna com o restante do ordenamento jur´ıdico” s´o seria refor¸cador para seus revisores caso o “entendimento” destes u ´tlmos acerca da rela¸c˜ao alegada fosse igual ao entendimento do revisado, o que nos indica que o referencial de refor¸co deixou de ser t´atil (promulga¸c˜ao de uma lei) e passou a ser intraverbal (opini˜ao dos demais ju´ızes). At´e mesmo crit´erios utilizados para resolver conflitos entre normas positivas (como o princ´ıpio de que uma lei hierarquicamente superior revoga uma lei hierarquicamente inferior, ou de que leis posteriores revogam leis anteriores no que lhe forem contr´arias) podem ser analisados a partir deste modelo, pois a “harmoniza¸ca˜o” das duas normas se d´a por meio da aplica¸ca˜o de modificadores autocl´ıticos sobre ao menos uma delas. Quando uma lei afirma que “Leis novas revogam leis antigas” ou que “Leis superiores prevalecem sobre leis inferiores”, seus efeitos pr´aticos ser˜ao, simplesmente, o de refor¸co comportamentos como “A lei X prevalece sobre a lei Y, posto que mais recente” ou “A lei Y prevalece sobre a lei X, posto que superior” nos ju´ızes que aplicam as normas. De maneira contraintuitiva (e possivelmente polˆemica), devemos indicar tamb´em que, apesar do foco concedido por juspositivistas a` importˆancia das normas para o ordenamento jur´ıdico, n˜ao existe raz˜ao plaus´ıvel para afirmarmos que a modifica¸c˜ao autocl´ıtica de normas sempre precisar´a ser precedida por autoriza¸c˜ao normativa (seja judicial ou legislativa). Isto implica em dizer que, caso um juiz alem˜ao atuasse nas cortes do Terceiro Reich durante os anos finais do regime nazista e, em oposi¸ca˜o frontal ao que estava disposto no ordenamento jur´ıdico positivo, decidisse n˜ao aplicar uma lei nazista a um grupo judeu, caso esta decis˜ao efetivamente produzisse efeitos jur´ıdicos, poder´ıamos considerar

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Os indiv´ıduos para quem o pareamente deve ser refor¸cador (ou para os quais, ao menos, n˜ao pode ser aversivo) dependem da configura¸c˜ ao concreta de cada sistema jur´ıdico, bem como do ´org˜ao que est´ a aplicando o autocl´ıtico. Pensemos, por exemplo, nas instˆancias judici´arias m´aximas de cada sistema. Caso uma decis˜ ao da Suprema Corte julgasse uma lei contr´aria `a Constitui¸c˜ao por violar certo princ´ıpio constitucional, a decis˜ ao tenderia a ser respeitada; no entanto, caso a Suprema Corte afirmasse que a modifica¸c˜ ao ocorreu porque os ju´ızes simplesmente queriam mudar a lei, as consequˆencias sociol´ ogicas desta decis˜ ao poderiam ser severas – talvez os outros poderes at´e mesmo interviessem na Corte tirˆanica e destitu´ısse seus ministros. Neste caso, diferentemente de hip´oteses onde ju´ızes apenas vˆeem a revis˜ ao de suas senten¸cas por instˆ ancias superiores e precisam refor¸car seus superiores para que isto n˜ao aconte¸ca, as rela¸c˜ oes de controle s˜ ao mais tˆenues, e o p´ ublico para quem a decis˜ao n˜ao pode ser excessivamente aversiva (ou para quem precisa ser ao m´ınimo um pouco refor¸cadora) ´e bem mais amplo.

85 que esta modifica¸c˜ao autocl´ıtica “ilegal” seria, por conseguinte, perfeitamente jur´ıdica. Caso um tribunal superior nazista esvaziasse esta decis˜ao e impedisse que esta produzisse efeito ou cessasse tal produ¸c˜ao, esta nova decis˜ao seria apenas uma altera¸c˜ao autocl´ıtica da altera¸c˜ao autocl´ıtica inicial, podendo corresponder ou n˜ao a` lei positiva original. Da mesma forma, caso, ao rev´es, a senten¸ca continuasse produzindo efeitos at´e o fim do regime nazista e, com a mudan¸ca de regime, a lei original fosse abolida (mas os efeitos da senten¸ca mantidos), seus efeitos continuariam sendo perfeitamente jur´ıdicos. Ou seja: ´e plenamente poss´ıvel que um fato jur´ıdico que n˜ao corresponda a` norma positiva seja constituinte do pr´oprio direito. Em um caso ainda mais extremo, poder´ıamos afirmar que, caso existisse um sistema jur´ıdico no qual os agentes p´ ublicos afirmassem a obrigatoriedade das normas positivas criadas pelo Estado leg´ıtimo e, apesar disso, verific´assemos em concreto que n˜ao existe absolutamente nenhuma correspondˆencia entre as normas individuais consideradas v´alidas por este governo e as normas gerais criadas por ele mesmo 99 , o direito deste povo possuiria um conjunto de fatos jur´ıdicos (os mandos) que a todo tempo s˜ao editados por autocl´ıticos (os comportamentos emitidos durante a edi¸c˜ao, ou simples negativa de aplica¸ca˜o, das normas positivas) sem autoriza¸c˜ao legislativa expressa, sendo a validade jur´ıdica das decis˜oes concretas t˜ao reconhecidas quanto a validade jur´ıdica das “normas de fachada” criadas pelo Estado. Neste caso extremo, estar´ıamos diante de uma hip´otese onde pouca ou nenhuma informa¸ca˜o sobre o direito daquele povo poderia ser extra´ıda do sistema de regras considerado internante v´alido segundo as regras daquele mesmo ordenamento - e onde, ironicamente, a teoria filos´ofica mais apropriada para uma descri¸c˜ao emp´ırica do sistema seria n˜ao a do positivismo jur´ıdico, mas sim a do jusrealismo.

4.3.3.2 Princ´ıpios Ainda mais antigo do que o debate anterior, o questionamento acerca da exata rela¸ca˜o existente entre o direito positivo e normas morais, exemplificado por meio da enuncia¸c˜ao de valores como a “dignidade”, a “justi¸ca” ou a “supremacia das leis dos deuses”100 e sua superioridade a` mundana e fal´ıvel lei dos homens, normalmente tamb´em acompanhadas dos crit´erios que dever˜ao ser utilizados para determinar quando a lei es-

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Por exemplo, caso fosse criada uma norma jur´ıdica v´alida segundo a qual “O homic´ıdio ser´a recompensado com dinheiro” e todos os ju´ızes efetivamente punissem homicidas, mas o governo continuasse a afirmar que tanto as senten¸cas quanto as leis s˜ao juridicamente v´alidas segundo suas regras internas. ´ Como Ant´ıgona, filha mitol´ ogica de Edipo e personagem principal da pe¸ca homˆonima de S´ofocles, que tentou sepultar seu irm˜ ao, Polinice, mesmo contra as ordens de Creonte, com a finalidade de evitar que a alma deste fosse condenada a vagar pelas margens do Rio Estige.

86 tatal dever´a ser obedecida e quando deve ser violada para evitar resultados in´ıquos. Nos ordenamentos jur´ıdicos contemporˆaneos, racioc´ınios similares a estes foram incorporados a` pr´opria lei positiva por meio dos chamados “princ´ıpios”101 , cuja aplica¸ca˜o pr´atica tamb´em ´e concretizada por meio da emiss˜ao de autocl´ıticos jur´ıdicos. O funcionamento dos princ´ıpios ´e, em princ´ıpio, idˆentico ao dos crit´erios de interpreta¸ca˜o, na medida em que ambos modificam as normas especificadas para de alguma forma alterar parte do seu conte´ udo jur´ıdico. No entanto, os princ´ıpios costumam se diferenciar dos crit´erios de interpreta¸ca˜o por, em regra, possu´ırem car´ater geral e serem enunciados na forma de proposi¸c˜oes mais vagas, o que permite que o pr´oprio conte´ udo destes autocl´ıticos seja autocliticamente modificado (ou seja, interpretado de diferentes formas)102 e torna os princ´ıpios em si extremamente flex´ıveis. Quando um princ´ıpio autoriza os ju´ızes a afastar os efeitos de uma norma jur´ıdica positiva com base nos princ´ıpios da “justi¸ca”, “dignidade” ou “equidade”, diferentes interpreta¸co˜es de “justi¸ca”, “dignidade” e “equidade” poder˜ao ser utilizadas para modificar as normas em sentidos completamente diferentes. Um juiz poder´a, por exemplo, modificar a lei positiva “O aborto s´o ser´a permitido em caso de bebˆes anenc´efalos” com base no princ´ıpio ”justi¸ca” tanto no sentido de afirmar que “Muito embora o feto n˜ao seja anenc´efalo, o aborto ser´a permitido neste caso, pois a proibi¸c˜ao seria uma afronta `a liberdade feminina e, portanto, uma injusti¸ca” quanto no sentido de afirmar que “Muito embora o feto seja anenc´efalo, o aborto n˜ao ser´a permitido neste caso, pois isto seria uma afronta a` vida e, portanto, uma injusti¸ca”, com a diferen¸ca essencial de que os autocl´ıticos aplicados ao autocl´ıtico legalmente autorizado (“justi¸ca”) seriam refor¸cadores para p´ ublicos diferentes103 e, com isto, teriam mais chances de serem refor¸cadoras para algumas cortes superiores do que para outras104 . Em fun¸ca˜o de sua baix´ıssima densidade normativa, a defini¸ca˜o dos princ´ıpios contidos nos diferentes sistemas legais, a menos que ancorados em leis positivas com maior

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Temos em mente aqui a defini¸c˜ ao de Alexy, segundo a qual os princ´ıpios s˜ao mandados de otimiza¸c˜ ao das normas. Vis˜ oes que identificam princ´ıpios como “a base das normas positivas” se assemelhar˜ ao mais ao modelo Schaueriano de justifica¸c˜ao das normas, que ser´a analisado no ponto 5.2.2.2.

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Isto pode se dar por meio de manipula¸c˜ao expl´ıcita, onde os ju´ızes definem o que entendem por “justi¸ca” ou “razoabilidade”, ou apenas pelo emprego do voc´abulo principiol´ogico em contextos que refor¸cariam defini¸co˜es diferentes e possivelmente incompat´ıveis entre si. ´ pouco prov´ E avel que as duas frases sejam refor¸cadoras para um mesmo organismo e, ainda que o sejam, uma das duas ideias (a menos que outras vari´aveis intervenham, aquela que n˜ao for prepotente) poder´ a ser condicionada a ter efeitos aversivos por meio do processo chamado “dissonˆancia cognitiva”.

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Uma corte com orienta¸c˜ ao pr´ o-escolha tenderia a achar que apenas a primeiradefini¸c˜ao realmente faz jus ao nome de “justi¸ca”, assim como uma corte pr´o-vida tenderia a pensar o mesmo sobre a segunda. E ´e bem prov´ avel, ainda, que as duas considerassem a defini¸c˜ao que n˜ao lhes ´e refor¸cadora como uma total brutalidade, uma vez que estas, al´em de serem incompat´ıveis com a vers˜ao refor¸cadora, possuem efeitos aversivos sobre os julgadores.

87 densidade, se mostrar˜ao flex´ıveis e vol´ateis. Sua utiliza¸c˜ao ´e, em s´ıntese, um sacrif´ıcio parcial da seguran¸ca jur´ıdica em nome da maior flexibilidade normativa – o que parece ser uma dais melhores formas de se combater a supra e a infrainclus˜ao (t´opico 5.2.2.1.). No entanto, deve-se manter vigilˆancia no tocante `a possibilidade de invers˜ao do sentido normativo de determinada legislatura, j´a que esta mesma flexibilidade faz com que os princ´ıpios, por terem seu conte´ udo normativo atrelado aos comportamentos de seus aplicadores, possuam uma maior variabilidade e, ainda, uma maior vulnerabilidade a mudan¸cas em vari´aveis comportamentais e sociol´ogicas.

4.3.3.3 Revis˜ao por o´rg˜aos superiores Como afirmamos anteriormente, a revis˜ao decisional por ´org˜aos superiores ´e uma ferramente extremamente u ´til para a promo¸ca˜o de correspondˆencia entre decis˜oes judiciais e normas jur´ıdicas, e sua utiliza¸c˜ao tende a aumentar a probabilidade de que os comandos da lei sejam efetivamente aplicados na pr´atica judicial. Estas revis˜oes, por serem decis˜oes normativas que tomam por referencial outras decis˜oes tomadas por instˆancias inferiores, possuem natureza h´ıbrida, sendo, ao mesmo tempo, mandos e autocl´ıticos. Urge ressaltar, no entanto, que a revis˜ao tende a aumentar a probabilidade de conformidade apenas na medida em que o comportamento judicante efetivamente corresponde a` norma exista com altas probabilidades de emiss˜ao em v´arios ju´ızes do mesmo ordenamento, j´a que a revis˜ao de um entendimento contr´ario `a lei que possua ampla aceita¸c˜ao nos tribunais possuir´a chances significativamente menores de sucesso105 . Isto faz com que o efeito conformador da revis˜ao seja eficaz apenas quando o julgamento for “excepcional” em rela¸c˜ao a`s demais decis˜oes feitas com base na mesma regra, ou seja, quando a decis˜ao for contr´aria `a regra em um ordenamento onde os ju´ızes tendem a decidir conforme as regras – ou quando a decis˜ao for conforme a regra em um ordenamento onde os ju´ızes tendem a decidir contra as regras, como quando a jurisprudˆencia majorit´aria de uma corte se d´a de forma contr´aria `a lei. Quando a corte analisada for a instˆancia de julgamento mais alta de determinado sistema jur´ıdico, ainda que as decis˜oes de seus membros n˜ao possam ser refor¸cadas ou punidas por instˆancias superiores, elas o podem ser por vias obl´ıquas – como por meio da aprova¸ca˜o popular ou do descr´edito do tribunal perante o restante da m´aquina p´ ublica. No entanto, uma vez que puni¸c˜oes ou refor¸cos s˜ao mais raros (e bem mais dr´asticos)

105

Quanto mais os ju´ızes de determinado ordenamento forem condicionados a decidir de acordo com uma norma, maiores as chances de que a decis˜ao n˜ao correspondente, ap´os revis˜ao, corresponda `a regra. Da mesma form, quanto mais difusa for a desobediˆencia daquela mesma norma entre os ju´ızes, mais prov´ avel ser´ a a emiss˜ ao de uma decis˜ao final que tamb´em n˜ao corresponda `a norma.

88 nestes casos, ´e prov´avel que as rela¸c˜oes de controle existentes entre as decis˜oes judiciais e comportamentos verbais de outros membros da m´aquina p´ ublica (ou da popula¸ca˜o) seja bem mais tˆenues do que aquelas observadas entre ju´ızes de instˆancias inferiores.

4.3.4 Intraverbais jur´ıdicos A expans˜ao da categoria dos intraverbais merece ser tratada com especial rigor caso desejemos evitar ambiguidades e incompreens˜oes. Por defini¸ca˜o, todos os agregados jur´ıdicos possuem natureza intraverbal, e esta natureza certamente ´e compartilhada com parte significativa de todos os comportamentos jur´ıdicos, uma vez que estes costumam ser intraverbais com car´ater h´ıbrido. Portanto, simplesmente afirmar que um intraverbal jur´ıdico ´e um comportamento intraverbal emitido no aˆmbito jur´ıdico seria criar uma categoria que necessariamente engloba, por exemplo, os mandos e tatos jur´ıdicos de natureza agregada, o que possivelmente tornaria o conceito t˜ao abrangente que praticamente o despiria de qualquer utilidade anal´ıtica. Neste contexto, entenderemos intraverbais jur´ıdicos como os comportamentos ou agregados verbais que est˜ao sob o controle funcional de est´ımulos verbais e que, apesar de possu´ırem alguma relevˆancia para o direito, n˜ao possuem for¸ca normativa e n˜ao possuem sua emiss˜ao refor¸cada ou punida pela estrutura governamental. Estes u ´ltimos requisitos est˜ao sendo introduzidos porque desejamos analisar aqui apenas os intraverbais que n˜ao se enquadram nas categorias acima expostas, e a principal constante entre estas ´e o fato de que os comportamentos que as comp˜oem ou se enquadram na categoria ou serem produzidos diretamente pela ordem jur´ıdica (como os mandos jur´ıdicos agregados) ou de terem seu refor¸co ou puni¸c˜ao direta ou indiretamente estabelecidos por esta (como os tatos jur´ıdicos simples). Certamente existem in´ umeras vari´aveis verbais n˜ao jur´ıdicas com alguma capacidade de influenciar significativamente o conte´ udo do direito positivo106 , de modo que seu esgotamento aqui provavelmente n˜ao seria poss´ıvel. No entanto, esperamos que os dois exemplos a seguir sejam suficientemente ilustrativos dos mecanismos gerais deste tipo de comportamento, o que talvez permitir´a a extens˜ao deste tipo de an´alise a outras formas de comportamento que, apesar de diferentes, possuem fun¸c˜oes parecidas em dado sistema jur´ıdico.

106

Caso a leitura de algum livro ou a conversa com algum pensador modifique o entendimento adotado por determinado juiz em alguns casos jur´ıdicos, por exemplo, a conversa e o livro se encaixariam perfeitamente na categoria que acabamos de criar.

89 4.3.4.1 Jurisprudˆencia Em alguns sistemas da chamada Civil Law, os precedentes judiciais, muito embora n˜ao possuam for¸ca normativa, exercem um importante papel conformador sobre as decis˜oes judiciais, posto que fornecem aos julgadores refor¸cos suplementares que, se mantidos pela comunidade jur´ıdica, poder˜ao promover uma maior conformidade das decis˜oes judiciais com as demais decis˜oes judiciais. A jurisprudˆencia da Civil Law 107 diferencia-se da jurisprudˆencia da Common Law 108 na medida em que, muito embora a primeira efetivamente possa refor¸car a ado¸ca˜o de determinados entendimentos por ju´ızes em momentos futuros (o que efetivamente ocorre quando os ju´ızes decidem manter os precedentes espontaneamente), apenas a segunda aumenta este efeito por meio da normativiza¸c˜ao dos procedentes. Isto equivale a dizer que, muito embora na primeira tradi¸c˜ao os ju´ızes tamb´em possam manter precedentes vivos por meio de sua atua¸ca˜o, na segunda tradi¸c˜ao os ju´ızes vˆeem a obediˆencia ou desobediˆencia a precedentes ser efetivamente punida ou recompensada (seja por refor¸cadores gen´ericos, como o prest´ıgio dos bons ju´ızes ou a manuten¸ca˜o das decis˜oes devidamente fundamentadas por instˆancias superiores, seja por meio de refor¸cadores ou punidores prim´arios, como o oferecimento de sal´ario aos ju´ızes comuns ou a amea¸ca de exonera¸ca˜o do juiz que decidir como bem entender). Portanto, enquanto as jurisprudˆencias da primeira tradi¸c˜ao devem ser considerados meros intraverbais jur´ıdicos em rela¸ca˜o a decis˜oes jur´ıdicas futuras109 , as jurisprudˆencias da segunda exercem o papel de verdadeiros mandos jur´ıdicos, conforme j´a hav´ıamos apontado no t´opico 4.3.1.1. Apesar de exercerem a fun¸c˜ao de intraverbais quando avaliadas no contexto global do sistema jur´ıdico, estas jurisprudˆencias n˜ao normativas, por surgirem de decis˜oes judiciais, originalmente possuem natureza mˆandica. Esta mudan¸ca n˜ao viola nosso conceito de intraverbais jur´ıdicos (que explicitamente inclui a n˜ao normatividade em sua defini¸c˜ao) porque as rela¸co˜es funcionais sempre devem ser analisadas em termos de vari´aveis espec´ıficas e, neste caso, a natureza do comportamento s´o se modifica quando modificamos os sujeitos da rela¸ca˜o funcional. Com isto, a rela¸ca˜o funcional das senten¸cas ser´a mˆandica em rela¸c˜ao aos indiv´ıduos ao qual seu comando se dirige, mas intraverbal em rela¸ca˜o aos demais indiv´ıduos (dentre os quais os ju´ızes que observam o precedente), assim como a emiss˜ao do comportamento verbal “copo d’´agua” poder´a exercer a fun¸c˜ao de tato em

107

Exemplificada no Brasil pelas decis˜ oes de ´org˜aos como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justi¸ca (STJ).

108

Onde os precedentes exercem papel similar ao das leis da Civil Law.

109

O Brasil aparenta estar caminhando para um sistema de jurisprudˆencia mista, posto que o novo C´ odigo de Processo Civil (2015) estabelece situa¸c˜oes espec´ıficas onde decis˜oes jurisprudenciais possuir˜ ao alguma for¸ca normativa.

90 alguns contextos (como no de uma crian¸ca aprendendo a falar) e mando em outros (como no de um adulto requisitando bruscamente o refor¸cador “´agua”).

4.3.4.2 Doutrina Ainda que estejamos discorrendo sobre a doutrina no cap´ıtulo pr´oprio para comportamentos verbais sem for¸ca normativa, sua presen¸ca nesta lista ´e t˜ao contingente quanto o car´ater intraverbal das jurisprudˆencias de um sistema. De fato, a doutrina j´a chegou a ser considerada uma verdadeira fonte do direito em ordenamentos jur´ıdicos do passado110 , e, muito embora os sistemas jur´ıdicos de hoje prefiram conferir a prerrogativa de criar e editar leis a um corpo de legisladores, nada impede que algum ordenamento volte a adotar este mesmo modelo. No Brasil, a doutrina exerce um papel tanto descritivo quanto normativo, o que ´e evidenciado pelo fato de que, al´em de serem utilizados por estudantes de direito que objetivam conhecer mais sobre as leis positivas e entendimentos jurisprudenciais, os manuais doutrin´arios s˜ao utilizados tamb´em por operadores do direito para a obten¸c˜ao de opini˜oes111 sobre as diferentes formas poss´ıveis de se interpretar e aplicar o direito positivo. Frequentemente, doutrinas exp˜oem possibilidades normativas alcan¸cadas ap´os o manejo de autocl´ıticos efetivamente existentes no ordenamento jur´ıdico em sentidos espec´ıficos (como a escolha de um princ´ıpio X “`a luz do qual” dever´a ser interpretada a regra Y), mas os fatores que as doutrinas de fato podem considerar em suas pondera¸c˜oes s˜ao extremamente diversos - ainda que determinados tipos de racioc´ınio, como a compara¸ca˜o dos institutos jur´ıdicos nacionais com alguns institutos de outro pa´ıs ou a interpreta¸ca˜o das normas `a luz de algum ide´ario filos´ofico espec´ıfico, costumam se tornar lugares-comum.

110

A “Lei das Cita¸c˜ oes”, estabelecida em Roma no ano de 426, por exemplo, deu for¸ca de lei aos escritos dos jurisconsultos Papiniano, Ulpiano, Gaio, Paulo e Modestino.

111

Ou, em alguns casos, de meros argumentos de autoridade.

91 ´ 5 UMA ANALISE DA LITERATURA ESPEC´IFICA

Neste cap´ıtulo, tentaremos tra¸car um esbo¸co de algumas aplica¸co˜es poss´ıveis dos conceitos expostos anteriormente a` literatura filos´ofico-jur´ıdica contemporˆanea, na tentativa de fornecer argumentos em favor de sua utilidade para a pr´opria an´alise conceitual do direito. Abordaremos primariamente a obra de dois autores (Noel Struchiner e Frederick Schauer), mas manteremos tamb´em um di´alogo indireto com teorias formuladas por outros te´oricos do direito, da psicologia e da filosofia – como, por exemplo, Lawrence Kohlberg, Jonathan Haidt, Ludwig Wittgenstein e H. L. A. Hart.

5.1 Noel Struchiner 5.1.1 Direito e Linguagem Nesta obra (STRUCHINER, 2002), o autor brasileiro Noel Struchiner busca estabelecer o tipo de rela¸ca˜o existente entre a pr´atica jur´ıdica e a base lingu´ıstica na qual esta est´a ancorada, utilizando como guias tanto a filosofia da linguagem de Friedrich Waissman, que ampliou e aprofundou o conceito Wittgensteiniano de indetermina¸c˜ao da linguagem, quanto a filosofia jur´ıdica de L.H.A. Hart, que reconciliou os estudos te´orico-jur´ıdicos com os estudos fenˆomeno lingu´ısitico112 e inaugurou a corrente de pensamento atualmente conhecida como “jurisprudˆencia anal´ıtica”. O livro, portanto, mant´em seu foco sobre a an´alise das interse¸co˜es existentes entre os fenˆomenos do direito e da linguagem, indicando quais efeitos as propriedades do segundo imp˜oem sobre a pr´atica do primeiro.

112

Muito embora a tradi¸c˜ ao anal´ıtica seja recente na filosofia, a indica¸c˜ao da existˆencia de uma liga¸c˜ ao entre o Direito e linguagem (especialmente na forma de comandos) pode ser remontada ao menos at´e Austin e Bentham, conforme pontua Schauer: “Ao distinguir a existˆencia do direito da avalia¸c˜ao de seu valor moral, Austin tamb´em seguiu Bentham ao ver o comando apoiado na amea¸ca do uso de for¸ca em caso de desobediˆencia como o elemento central da lei. De fato, Austin, cujos compromissos normativos eram menos fervorosos que os de Bentham mas cujas inclina¸c˜ oes anal´ıticas (ou talvez obsess˜oes) eram mais fortes, incorporou a amea¸ca do uso de for¸ca em suas defini¸c˜ oes de lei e obriga¸c˜ao legal. Uma lei, para Austin, era simplesmente o comando do soberano apoiado pela amea¸ca de puni¸c˜ao em caso de descumprimento. E seguia disto, para ele, que estar sob uma obriga¸c˜ ao legal era, igualmente, simplesmente ser sujeitado a um comando suportado pela for¸ca. “ (SCHAUER, 2015, pg. 16) (tradu¸c˜ao nossa)

92 5.1.1.1 Uma defini¸c˜ao comportamental dos conceitos de textura aberta, semelhan¸ca de fam´ılia e jogo de linguagem Struchiner dedica o in´ıcio de seu livro a` explora¸ca˜o do conceito de “textura aberta da linguagem”, segundo o qual os termos que empregamos em nossa linguagem sempre s˜ao, efetiva ou potencialmente, indeterminados em rela¸ca˜o `a precisa extens˜ao de seu conte´ udo semˆantico. Em suma, o fenˆomeno pode ser conceitualizado da seguinte forma: “A textura aberta ´e a possibilidade permanente da existˆencia de uma regi˜ao de significado onde n˜ao conseguimos determinar com seguran¸ca se a palavra se aplica ou n˜ao.” (STRUCHINER, 2002, pg. 6) E ´e com este aparato que Struchiner, assim como Hart, explica a existˆencia de casos jur´ıdicos marginais nos quais, muito embora exista uma regra que pare¸ca tratar do assunto, n˜ao h´a consenso quanto a` forma correta de aplica¸ca˜o da norma – ou mesmo da sua pr´opria aplicabilidade113 . Apesar da existˆencia destas “zonas cinzentas” de incerteza semˆantica, afirmar que a linguagem possui textura aberta n˜ao ´e o mesmo que afirmar sua completa e inexor´avel ausˆencia de sentido. O fenˆomeno da textura aberta geralmente s´o se torna evidente para n´os durante os chamados “borderline cases” (em tradu¸c˜ao literal, “casos de fronteira”), onde a linguagem extrapola o seu sentido convencional e n´os precisamos determinar se a nova situa¸ca˜o ´e ou n˜ao abarcada (ou se poderia/deveria ser) no contexto lingu´ıstico original. Para conciliar a observa¸c˜ao de que a linguagem efetivamente ´e utilizada no cotidiano com a indetermina¸c˜ao que parece existir nos conceitos lingu´ısticos em si, o fil´osofo Ludwig Wittgenstein cunhou os conceitos de “semelhan¸ca de fam´ılia” e “jogos de linguagem”, segundo os quais os sentidos e usos da linguagem s˜ao determinados n˜ao em um plano abstrato de forma a priori, mas sim nos pr´oprios contextos em que ela ´e utilizada e, por meio da pr´opria utiliza¸ca˜o, ganha seu sentido. Wittgenstein demonstra estes dois processos atrav´es da an´alise do pr´oprio conceito de “jogo”. Segundo o autor, em trecho citado por Struchiner: “N˜ao diga: “Algo deve ser comum a todos eles sen˜ao n˜ao se chamariam jogos”, - mas veja se algo ´e comum a eles todos. – Pois, se vocˆe os contempla, n˜ao ver´a

113

O exemplo cl´ assico fornecido por Hart ´e o da interpreta¸c˜ao do voc´abulo “ve´ıculo” em diferentes normas jur´ıdicas. Caso uma norma proibisse “ve´ıculos” em determinado parque, saber´ıamos imediatamente que a regra ´e aplic´ avel a casos onde carros transitam pelo local. No entanto, a aplica¸c˜ao desta norma seria duvidosa caso lid´ assemos, por exemplo, com bicicletas motorizadas ou carros de brinquedo movidos a energia el´etrica e dirigidos por crian¸cas.

93 na verdade algo que fosse comum a todos, mas ver´a semelhan¸cas, parentescos, e at´e toda uma s´erie deles. Como disse: n˜ao pense, mas veja! – Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiros, com seus m´ ultiplos parentescos. Agora passe para os jogos de cartas: aqui vocˆe encontra muitas correspondˆencias com aqueles da primeira classe, mas muitos tra¸cos comuns desaparecem e outros surgem. Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa em comum se conserva, mas muitas se perdem. – S˜ao todos “recreativos”? Compare o xadrez com o jogo da amarelinha. Ou h´a em todos um ganhar e um perder; mas se uma crian¸ca atira a bola na parede e a apanha outra vez, este tra¸co desapareceu. Veja que pap´eis desempenham a habilidade e sorte. E como ´e diferente a habilidade no xadrez e no tˆenis. Pense agora nos brinquedos de roda: o elemento divertimento est´a presente, mas quantos dos outros tra¸cos caracter´ısticos desapareceram! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver semelhan¸cas surgirem e desaparecerem” (WITTGENSTEIN, 1996: 52).”(STRUCHINER, 2002, pg. 26) O que implica em dizer que, para Wittgenstein, a linguagem deve ser entendida n˜ao em fun¸ca˜o de suas “propriedades essenciais”, mas sim em rela¸ca˜o `as diferentes situa¸co˜es nas quais esta efetivamente pode ser (e ´e) aplicada. Caso realizemos uma transposi¸ca˜o dos conceitos de “textura aberta”, “jogos de linguagem” e “semelhan¸cas de fam´ılia” para o contexto comportamental, poderemos observar que, muito embora o pr´oprio fil´osofo tenha sido um cr´ıtico da teoria behaviorista de sua ´epoca114 , as indica¸c˜oes de Wittgenstein se harmonizam perfeitamente com a estrutura

114

Ainda que Wittgenstein mencione explicitamente o behaviorismo em seu livro “Investiga¸c˜oes Filos´ oficas”, n˜ ao est´ a claro precisamente a qual tradi¸c˜ao behaviorista o autor se refere. Inclusive, Wittgenstein parece se aproximar de certas correntes behavioristas justamente por meio de suas cr´ıticas a expedientes adotados por outras. Em seu artigo “On certain similarities between the Philosophical Investigations of Ludwig Wittgenstein and the operationism of B. F. Skinner ” (DAY, 1969), por exemplo, Willard F. Day indica dez semelhan¸cas entre o pensamento de Skinner e Wittgenstein, afirmando que estes pontos tamb´em afastam ambos de tradi¸c˜oes behavioristas como a de Hull ou Watson. No entanto, esta interpreta¸c˜ ao n˜ ao ´e incontroversa e, devido `a pr´opria escassez de referˆencias expl´ıcitas de Wittgenstein ao behaviorismo, ´e improv´avel que a quest˜ao algum dia venha a ser fechada em definitivo. Neste sentido, parece ser suficientemente representativo da controv´ersia o primeiro par´agrafo do artigo “Wittgenstein, Intentionality and Behaviorism”, que passamos a transcrever: “O livro “Investiga¸c˜ oes Filos´ oficas” de Wittgenstein j´a foi tomado por muitos, especialmente em rela¸c˜ ao ao argumento contra a linguagem privada, como uma express˜ao de alguma forma de behaviorismo. Comentadores n˜ ao concordam sobre como este behaviorismo deve ser chamado: Garth Hallet sugere que Wittgenstein ´e um behaviorista “metodol´ogico”, e n˜ao “substantivo”; C. W. K. Mundell argumenta que ele ´e mais bem visto como um behaviorista “linguistico”; C. S. Chihara e J. A. Fodor est˜ao convencidos de que o behaviorismo de Wittgenstein ´e “assustadoramente similar ao behaviorismo “l´ogico” de C. L. Hull”; e W. F. Day e Bruce Waller argumentam juntos que existem muitas similaridades entre Wittgenstein e B. F. Skinner.” (GIER, 1982, pg. 46)(tradu¸c˜ao nossa)

94 b´asica do behaviorismo radical115 . A “textura aberta” dos termos e conceitos, por exemplo, parece estar ligada aos processos funcionais de generaliza¸ca˜o de est´ımulo e resposta atuantes sobre a emiss˜ao de comportamentos verbais. Afirmar que o voc´abulo “ve´ıculo” possui textura aberta, segundo esta vis˜ao, nada mais seria do que afirmar que generalizamos a emiss˜ao do tato “ve´ıculo”, usualmente refor¸cado na presen¸ca de carros e motos, a casos onde existem similitudes entre os est´ımulos n˜ao verbais apresentados em momento anterior, como carros e motos, e novos est´ımulos, como bicicletas motorizadas ou carros de brinquedo. Como n˜ao temos como prever de antem˜ao todos os novos est´ımulos que ser˜ao suficientemente similares a est´ımulos j´a conhecidos e ocasionar˜ao o processo de generaliza¸ca˜o, n˜ao temos como prever em quais situa¸c˜oes o uso convencional da linguagem ser´a extrapolado por n´os mesmos – ou, em outras palavras, quais casos lingu´ısticos se apresentar˜ao para n´os como “casos de fronteira” que nos fa¸cam questionar o preciso alcance do que entendemos como o “sentido do termo”. A partir desta estrutura, podemos indicar que a defini¸ca˜o de uma “zona de certeza semˆantica” ou de um “n´ ucleo duro” do conceito aberto – ou seja, de um est´ımulo ao qual o termo claramente ´e aplic´avel – nada mais ´e do que a observa¸ca˜o de que, em dada sociedade, o termo ´e refor¸cado com alta frequˆencia na presen¸ca do est´ımulo em quest˜ao e passa a constituir um uso comum. Isto porque, muito embora o refor¸co direto ou indireto da emiss˜ao, por exemplo, do tato “ve´ıculo” na presen¸ca de carros de brinquedo ou bicicletas motorizadas possa ser raro, o mesmo n˜ao pode ser dito do refor¸co deste mesmo tato na presen¸ca de carros e motos, j´a que os indiv´ıduos que “compreendem” o significado da palavra “ve´ıculo”, ainda que n˜ao tenham adquirido o tato por meio de seu refor¸co na presen¸ca de carros e motos, j´a foram expostos a algum comportamento intraverbal com estes mesmos efeitos de refor¸co116 e, assim, “compreendem” o seu sentido”. E isto tamb´em significa que, ao rev´es, caso o tato fosse primariamente refor¸cado na presen¸ca de carros de brinquedo e s´o viesse a ser emitido na presen¸ca de carros comuns devido `as semelhan¸cas que estes guardam com os primeiros, os n´ ucleos semˆanticos do termo seriam invertidos, efetivamente invertendo o conte´ udo do n´ ucleo duro e da zona de incerteza do voc´abulo. Adicionalmente, se compreendermos o conceito de “semelhan¸cas de fam´ılia” como a observa¸ca˜o de que os termos aos quais o conceito se refere (os “familiares” da “fam´ılia”) possuem diversas semelhan¸cas entre si, ainda que n˜ao necessariamente exista algo que seja comum a absolutamente todos. Desta forma poderemos, mais uma vez, compreender

115

Infelizmente, o mesmo n˜ ao pode ser dito de Waissman, para quem , segundo Struchiner, proposi¸c˜ oes psicol´ ogicas – como “meu cachorro pensa” – n˜ao poderiam ser traduzidas em termos comportamentais.

116

Como a defini¸c˜ ao “Todo carro e toda moto ´e um ve´ıculo” ou a utiliza¸c˜ao do termo em contextos em que o termo parece se referir a carros e motos, como “Tome cuidado ao estacionar seu ve´ıculo”.

95 o fenˆomeno em termos de contextos onde o uso do termo ´e refor¸cado, j´a que tratariam-se apenas de sucessivas generaliza¸c˜oes com base em est´ımulos possivelmente diferentes. Para exemplificar esta u ´ltima afirma¸ca˜o, podemos tra¸car um paralelo com o pr´oprio trecho em que o autor exemplifica os usos de seu conceito. Caso estejamos tentando inferir o significado do conceito de “jogo” a partir dos jogos “amarelinha” e “cartas”, poderemos determinar, por exemplo, que a propriedade “essencial” que junta os dois elemento no mesmo conceito conceito ´e o fato de ambos serem compostos por elementos recreativos . Neste caso, a nossa defini¸ca˜o ´e feita por meio da observa¸c˜ao de que o elemento “recreativo”, representado na figura abaixo pelo ponto “r”, est´a presente na interse¸ca˜o das propriedades pertencentes aos jogos “amarelinha” (representadas pelo conjunto “A”) e “cartas” (representadas pelo conjunto “C”):

No entanto, esta propriedade n˜ao seria compartilhada por um conjunto X que representasse, por exemplo, o jogo de xadrez em uma sociedade onde as pessoas s´o o jogam para fins competitivos ou qualquer outro jogo n˜ao recreativo (como os jogos educativos). Caso desej´assemos aproveitar a ocasi˜ao e utilizar esta experiˆencia recalcitrante para emendar nossa defini¸c˜ao e, assim, pass´assemos a indicar que o conceito de “jogo” na verdade ´e definido pela propriedade “competitividade” (c), novamente encontrar´ıamos uma propriedade que ´e comum a todos os trˆes conjuntos:

Mas que, infelizmente, n˜ao inclui o jogo de atirar uma bola na parede – apesar deste u ´ltimo, curiosamente, tamb´em compartilhar a propriedade “recreativo” com os jogos

96 iniciais. E isto pode se repetir um n´ umero potencialmente infinito de vezes: ainda que possamos encontrar elementos, propriedades ou est´ımulos em comum entre os diferentes integrantes de um conceito que estabele¸cam, por si s´o, ocasi˜oes onde a classifica¸ca˜o com base nestes seja refor¸cadora, n˜ao necessariamente encontraremos uma propriedade (ou seja, um est´ımulo) que seja comum a absolutamente todo. Ademais, como bem ressaltado tanto por Struchiner quanto por Williamson117 , ainda que definamos o conceito de “jogo” em termo de propriedades alternativas (“jogo ´e tudo aquilo que for ou recreativo ou competitivo”) e incluamos ao menos uma propriedade de todos os jogos efetivamente existentes no momento de nossa defini¸ca˜o, nada impede que, pelo fenˆomeno da generaliza¸ca˜o da textura aberta da linguagem (ou seja, da generaliza¸ca˜o comportamental), passemos a conferir o nome “jogo” a um novo est´ımulo ou a um est´ımulo antigo que, por alguma raz˜ao, n˜ao era considerado um jogo no momento de nossa defini¸ca˜o. Assim, ainda que no tempo t1 seja aceit´avel afirmar que jogo ´e tudo aquilo que ou ´e recreativo ou ´e competitivo, nada impede que, no dia seguinte, sejam inventados os primeiros videojogos educativos (que n˜ao s˜ao nem recreativos nem competitivos) e estes passem a ser chamados de “jogos” por terem outras semelhan¸cas com os primeiros termos (como o fato de seguir regras expl´ıcitas, como o xadrez, ou de envover apenas um jogador, como o jogo de atirar a bola na parede). Por u ´ltimo, o conceito de “jogos de linguagem” pode ser definido como a pr´opria utiliza¸ca˜o contextual de algo que entendemos por “linguagem”, seja em sua modalidade de operantes com fun¸c˜ao social - como aquele que indicamos ao definir “comportamentos verbais” – ou na utiliza¸ca˜o da linguagem em casos completamente diversos – como no caso onde um comportamento lingu´ıstico ´e emitido, mas n˜ao possui car´ater verbal (como

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“Os termos que apresentam uma semelhan¸ca de fam´ılia (family resemblance terms) possuem uma qualidade dinˆ amica (Williamson, 1996 :85). Isso quer dizer que a extens˜ao da aplicabilidade, ou do uso desses termos pode ser legitimamente alterada com o tempo. Isso ´e esquematizado por Williamson: (...) suponha que num tempo t as atividades x0 , ..., xi s˜ao as u ´nicas coisas que tˆem sido chamadas de “jogos”, que cada uma das atividades y0 , ..., yi s˜ao suficientemente parecidas com x0 , ..., xi para serem legitimamente chamadas de “jogos”, mas ainda n˜ao tˆem sido chamadas assim, e que a atividade z n˜ ao ´e semelhante o suficiente ` as atividades x0 , ..., xi para esse prop´osito. Agora suponha que, num tempo mais tarde t∗ , as atividades y0 , ..., yi tˆem sido chamadas de jogos e – como ´e bem poss´ıvel – que x seja suficientemente semelhante `as atividades y0 , ..., yi para ser chamado de “jogo” se elas tˆem sido chamadas assim. Ent˜ ao, ´e leg´ıtimo, depois de t∗ chamar z de jogo, mas n˜ao era leg´ıtimo no tempo t (Williamson, 1996: 86)”. (STRUCHINER, 2002, pgs. 27-28). Nesta cita¸c˜ ao, Williamson parece se referir especificamente a casos onde um tato (“jogo”) inicialmente (t)´e refor¸cado na presen¸ca de certos est´ımulos (x0 , ..., xi ), mas n˜ao de outros (y0 , ..., yi ) e z ), passando a ser refor¸cado tamb´em na presen¸ca destes u ´ltimos em um momento posterior (t∗ ). No entanto, esta n˜ ao ´e a u ´nica forma poss´ıvel de generaliza¸c˜ao. Nada impede que as atividades y0 , ..., yi sejam t˜ ao similares ` as atividades x0 , ..., xi que a aplica¸c˜ao do voc´abulo “jogos” `a primeira categoria se dˆe imediatamente pelos usu´ arios do conceito, mas que a classe y0 , ..., yi s´o passe a existir empiricamente no momento t∗ (como quando novos jogos ou atividades s˜ao inventados). O esquema de Williamson deve ser tomado como um exemplo, e n˜ao como a “estrutura fundamental” do fenˆomeno.

97 interjei¸c˜oes de dor emitidas quando n˜ao h´a nenhum outro organismo no ambiente). Talvez n´os n˜ao possamos catalogar absolutamente todos os contextos em que a linguagem ´e utilizada com fun¸co˜es diferentes (ou, ainda que possamos, ainda n˜ao consigamos), mas isto n˜ao nos impede de indicar alguns exemplos de uso lingu´ıstico diferenciado da linguagem em nosso cotidiano. Basta indicarmos, por exemplo, que o uso do substantivo “´agua” por uma crian¸ca que acabou de ouvir um adulto falar “´agua” ´e funcionalmente diferente do uso deste mesmo termo por um adulto que, ao ser perguntado sobre o conte´ udo de um copo, responde “´agua”. Da mesma forma, as duas emiss˜oes se diferenciam daquela feita por um indiv´ıduo sedento que, ao avistar um mercador no meio do deserto, desesperadamente afirma “´agua, a´gua, a´gua!” antes de desmaiar de sede, e todas estas certamente se diferenciariam da emiss˜ao do som “´agua” em ocasi˜oes onde um organismo fosse ligado a uma m´aquina futurista que, controlando seus pulm˜oes, boca, cordas vocais e m´ usculos da garganta, fizesse com que “´agua” passasse a ser a u ´nica palavra no vocabul´ario do indiv´ıduo. N´os podemos dar a estes contextos nomes funcionais e classificar os comportamentos verbais que verificamos neles, mas nada nos impede de utilizar outros nomes para descrever a mesma varia¸c˜ao de contextos – como, por exemplo, “jogos de linguagem”. Neste sentido, a diferen¸ca entre a emiss˜ao de um “ecoico”, “tato”, “mando” ou “comportamento lingu´ıstico n˜ao verbal” ´e a mesma do que aquela existente na nossa participa¸ca˜o nos jogos da “imita¸c˜ao”, “descri¸ca˜o”, “s´ uplica desesperada” ou no (nov´ıssimo) jogo do “tentar expressar diferentes conte´ udos por meio unicamente da palavra “´agua””.

5.1.1.2 Casos f´aceis e dif´ıceis Um dos efeitos caracter´ısticos causados pela textura aberta da linguagem no ˆambito espec´ıfico das normas jur´ıdicas ´e o da cria¸c˜ao de uma distin¸c˜ao concreta entre casos de f´acil decis˜ao, nos quais as normas claramente se aplicam ou claramente n˜ao se aplicam e o direito parecer fornecer uma decis˜ao clara e incontroversa para o caso, e casos de dif´ıcil decis˜ao, onde existem d´ uvidas quanto `a aplicabilidade ou n˜ao de normas existentes (ou, quando h´a consenso de que certa norma deve ser aplicada, quanto `a forma ideal de aplica¸ca˜o desta) frente a`s peculiaridades do caso concreto e a` textura aberta da norma. Este fenˆomeno ocorre principalmente porque o legislador n˜ao tem como prever todos os casos concretos com as quais as regras ser˜ao contrastadas no momento da cria¸c˜ao da norma e, por isso, acaba empregando termos que podem se tornar amb´ıguos em algumas destas situa¸co˜es. Generalizando o modelo anteriormente apresentado para esta dicotomia, podemos explicar a distin¸ca˜o entre os dois tipos de casos por meio dos fenˆomenos de generaliza¸ca˜o de respostas e est´ımulos. No entanto, alguns elementos da textura aberta parecem se

98 tornar mais salientes quando a aplicamos `as normas jur´ıdicas, especialmente em fun¸ca˜o da frequente divergˆencia de opini˜oes pol´ıticas (e, por conseguinte, da desejabilidade ou n˜ao de certas prescri¸co˜es jur´ıdicas) no seio de uma mesma sociedade. Ao adotar esta defini¸c˜ao e conectar a distin¸ca˜o f´acil/dif´ıcil a`s tendˆencias de emiss˜ao de respostas dos organismos envolvidos, necessariamente relativizaremos o expediente classificat´orio, limitando cada divis˜ao classificat´oria espec´ıfica aos indiv´ıduos cujas probabilidades de emiss˜ao de resposta est˜ao em an´alise. N˜ao podemos afirmar que um caso est´a na no n´ ucleo de certeza ou na penumbra de incerteza de uma norma sem apontar quais vari´aveis est˜ao presentes ou ausentes na sua aplica¸ca˜o usual. Da mesma forma que a presen¸ca de carrinhos el´etricos poder´a constituir um caso dif´ıcil caso exista uma norma proibindo “ve´ıculos” no parque e “ve´ıculos” costume ser utilizado apenas para descrever carros de verdade, o caso se apresentar´a aos ju´ızes como f´acil caso o refor¸co do tato “ve´ıculos” na presen¸ca de carros de brinquedo – ou seja, a frequente categoriza¸ca˜o de carrinhos de brinquedo como ve´ıculos – seja amplamente praticado pela sociedade. Em outras palavras, n´os precisamos afirmar que um caso considerado “f´acil” em determinados contextos sociais ou jur´ıdicos poder´a ser considerado “dif´ıcil” em outros, e vice-versa. N˜ao precisamos elaborar exemplos extremos para indicar que a facilidade ou dificuldade dos casos jur´ıdicos depende da efetiva probabilidade de emiss˜ao de certos comportamentos por parte dos indiv´ıduos julgadores. Consideremos, por exemplo, os debates atualmente existentes sobre a quest˜ao do aborto, bem como os tratamentos que este recebe nos diferentes sistemas jur´ıdicos contemporˆaneos. Caso toda a popula¸ca˜o de determinada sociedade tenda a emitir comportamentos como “a vida come¸ca j´a na concep¸c˜ao”, tenha avers˜ao condicionada a termos como “aborto” ou “pr´o-escolha” ou seja condicionada a ser refor¸cada por argumentos como “a vida ´e sagrada, n˜ao importando em que est´agio se encontre”, a aplica¸ca˜o de uma lei que pro´ıba o homic´ıdio para penalizar a realiza¸ca˜o de abortos cir´ urgicos em mulheres ser´a considerada um caso f´acil pelo juiz – assumindo, ´e claro, que este seja parte da mesma sociedade na qual o julgamento ´e feito. Caso, ao rev´es, toda a popula¸ca˜o tenda a emitir comportamentos como “a vida s´o come¸ca com a forma¸c˜ao da estrutura cerebral do feto”, tenha avers˜ao condicionada a termos como “pr´o-vida” ou considere ideias sobre “poder de escolha da mulher” refor¸cadoras, a n˜ao aplicabilidade desta mesma lei aos mesmos casos de aborto cir´ urgico ser´a igualmente clara. Apesar da existˆencia de duas possibilidades te´oricas, esta quest˜ao s´o se tornar´a dif´ıcil caso as duas respostas sejam simultaneamente refor¸cadas e se encontrem igualmente presentes em uma mesma sociedade ou em um mesmo organismo, ainda que com distribui¸co˜es sociais ou probabilidades de emiss˜ao diferentes. E, ainda que as opini˜oes da sociedade divirjam no plano sociol´ogico, ainda assim ser´a prov´avel que o caso se apresente como f´acil para muitos indiv´ıduos no plano comportamental, j´a que indiv´ıduos com hist´orico de refor¸co de opini˜oes pr´o-vida (como, por exemplo, aqueles que professam f´e crist˜a, judaica ou islˆamica) continuar˜ao acreditando que o aborto ´e um ato de violˆencia, assim como in-

99 div´ıduos com hist´orico de refor¸co de opini˜oes pr´o-escolha (como, por exemplo, aqueles que possuem ideais feministas e progressistas) continuar˜ao achando que a verdadeira violˆencia ´e punir as mulheres que abortam118 . O caso s´o se tornar´a dif´ıcil caso um colegiado com diferentes opini˜oes precise tomar uma decis˜ao em conjunto, um u ´nico juiz tenha probabilidades pr´oximas de emitir argumentos nos dois sentidos (“indecis˜ao”) ou, simplesmente, um juiz com opini˜ao formada se encontre em uma estrutura jur´ıdica que o obrigue a enfrentar argumentos dos dois lados – o que n˜ao necessariamente ser´a efetivo, j´a que um juiz fortemente pr´o-vida ou pr´o-escolha poder´a ser t˜ao avesso a argumentos da corrente contr´aria que o resultado do julgamento, a despeito da apresenta¸c˜ao de argumentos para os dois lados, j´a esteja decidido antes da institui¸c˜ao deste.

5.1.2 Novas fronteiras do Direito Neste livro (STRUCHINER, 2015), Noel Struchiner e Rodrigo de Souza Tavares organizam uma coletˆanea de artigos e textos que tratam de diversos temas afetos `a filosofia moral e `a psicologia dos fenˆomenos morais, estabelecendo diversas conex˜oes entre pesquisas psicol´ogicas emp´ıricas conduzidas recentemente e alguns temas espec´ıficos presentes na literatura filos´ofica. Nossa analise recair´a sobre dois temas de especial importˆancia, abordados em artigos da coletˆanea que se dedicam a` realiza¸ca˜o da interface entre direito e psicologia, a saber: os efeitos das aplica¸co˜es de puni¸co˜es sobre o comportamento humano e a descri¸c˜ao de como os ju´ızes efetivamente decidem casos jur´ıdicos, com foco em por modelos que levem em conta n˜ao apenas os racioc´ınios verbais externalizados por estes, mas tamb´em as suas “intui¸c˜oes morais”.

5.1.2.1 Diferentes caracter´ısticas das contingˆencias punitivas No cap´ıtulo 6 do livro, ao descreverem diferentes efeitos observados durante a aplica¸ca˜o de puni¸co˜es em experimentos controlados, Struchiner e Chrismann indicam que, muito embora a puni¸ca˜o pare¸ca efetivamente contribuir para a efetividade de um

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´ prov´ E avel que, como os argumentos que s˜ao refor¸cadores para um grupo tendem a ser aversivos para o outro, os dois lados sofram do que alguns pesquisadores chama de “my side bias”, tendˆencia esta que ´e apontada, por exemplo, por Jonathan Haidt no artigo “The emotional dog and its rational tail” (HAIDT, 2001) e consiste no fato de que argumentos ou evidˆencias a favor da posi¸c˜ao contr´aria ` a que o indiv´ıduo j´ a possu´ıa desconsiderados em racioc´ınios posteriores, assim como evidˆencias a favor da posi¸c˜ ao j´ a mantida pelo indiv´ıduo tendem a receber posi¸c˜ao de destaque nestes mesmos momentos.

100 regra ou a promo¸ca˜o de coopera¸ca˜o social em alguns contextos (STRUCHINER, 2015, pg. 144), de maneira contra-intuitiva, o efeito parece ser precisamente o inverso em alguns contextos espec´ıficos, onde o contingenciamento de puni¸co˜es a determinadas condutas efetivamente aumenta a frequˆencia com que a conduta indesejada ´e praticada. Teceremos brevemente alguns coment´arios a este artigo, indicando alguns estudos complementares sobre o assunto. De fato, Azrin e Holz (AZRIN; HOLZ, 1966) j´a haviam indicado que, em determinadas circunstˆancias, puni¸co˜es poder˜ao ter seus efeitos modificados por outros est´ımulos, podendo at´e mesmo vir a adquirir propriedades discriminativas e, curiosamente, passar a aumentar a frequˆencia dos comportamentos punidos ao inv´es de diminu´ı-la (AZRIN; HOLZ, 1966, pg. 419-420). Isto ocorre porque, muito embora o est´ımulo em si seja aversivo, suas propriedades discriminativas fazem com que os efeitos associados ao est´ımulo se “acumulem” no est´ımulo inicial, o que pode tanto amplificar os efeitos aversivos j´a observados (como quando um est´ımulo punitivo ´e contingenciado a outro est´ımulo punitivo) quanto reduzir estes mesmos efeitos ou, a depender da magnitude dos est´ımulos utilizados ou da frequˆencia de administra¸ca˜o, revertˆe-los (como quando um est´ımulo refor¸cador ´e contingenciado a um est´ımulo punitivo, sendo a magnitude do primeiro significativamente superior a` do segundo119 ). Com isto, podemos indicar que, caso uma escola introduza uma multa pecuni´aria para pais que se atrasam na hora de buscar seus filhos - como no exemplo analisado por Gneezy e Rustichini e relatado por Struchiner -, este ato n˜ao necessariamente reduzir´a a frequˆencia de atrasos dos pais, j´a que a multa pecuni´aria em si, al´em de excluir poss´ıveis outras puni¸co˜es (que n˜ao estavam especificadas anteriormente), possui efeitos diferentes sobre diferentes pais. Se as conclus˜oes de Azrin e Holz puderem ser transpostas para este caso, podemos esperar que, caso a multa pecuni´aria possua mais efeitos aversivos sobre os pais do que a vaga possibilidade de reprimendas da escola ou puni¸co˜es indeterminadas (o que poder´a ser alcan¸cado, por exemplo, pelo estabelecimento de multas que tenham valor significativamente alto em rela¸c˜ao ao poder aquisitivo dos pais), a puni¸ca˜o funcionar´a como deve e a frequˆencia do comportamento efetivamente diminuir´a. No entanto, caso a multa estabelecida possua menos efeitos aversivos do que esta mesma possibilidade vaga (o que depender´a tanto do valor da multa quanto, por exemplo, dos tipos de contingˆencias atuantes sobre os pais antes do contingenciamento da penalidade), o estabelecimento da multa possivelmente far´a com que esta se torne um est´ımulo discriminativo para a ausˆencia de puni¸co˜es adicionais – ou seja, um indicador de que a u ´nica puni¸c˜ao para aquela conduta

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Os autores indicam que este efeito poderia ser relevante para e explica¸c˜ao, por exemplo, da aquisi¸c˜ ao de um “gosto por puni¸c˜ ao” ou de desejos masoquistas por alguns organismos, principalmente quando os efeitos refor¸cadores e punitivos s˜ ao administrados em intervalos diferenciados.

101 ser´a a pr´opria multa. Caso esta u ´ltima hip´otese efetivamente seja verificada em rela¸ca˜o a alguns pais, a substitui¸ca˜o da possibilidade de reprimendas diversas pela (menos aversiva) certeza de aplica¸ca˜o de uma pequena multa fixar´a um “pre¸co” para a transgress˜ao e, ironicamente, realizar´a um refor¸camento negativo do comportamento indesejado em rela¸ca˜o a todos aqueles que preferirem o pagamento da multa ao incˆomodo de buscar os filhos mais cedo120 . Portanto, ´e essencial que analisemos o m´aximo de vari´aveis poss´ıveis antes de tentar prever quais ser˜ao os efeitos de determinado contingenciamento, ainda que utilizemos um estimo que geralmente ´e considerado punitivo ou refor¸cador121 . Isto ´e especialmente v´alido no caso de contingenciamentos em massa (como o realizado por normas jur´ıdicas), onde estes efeitos adversos podem se acumular e ocasionar resultados extremamente indesej´aveis. Adicionalmente, devemos atentar para o fato de que, hoje em dia, os pr´oprios est´ımulos utilizados para punir condutas juridicamente indesej´aveis podem possuir efeitos extremamente diversos em rela¸ca˜o a diferentes indiv´ıduos, o que torna o mundo das san¸co˜es jur´ıdicas ainda mais complexo. Muito embora puni¸co˜es como multas e perdas monet´arias significativas apenas raramente sejam socialmente associadas a futuros ganhos122 ou de alguma outra forma aumentem a ocorrˆencia de comportamentos indesejados, puni¸co˜es consistentes na remo¸ca˜o do indiv´ıduo de determinado ambiente e na sua subsequente coloca¸c˜ao em um ambiente menos refor¸cador ou mais aversivo (como costuma

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Sob esta perspectiva, podemos considerar que a fixa¸c˜ao da multa foi uma esp´ecie de “redu¸c˜ao do pre¸co” da transgress˜ ao; uma baixa multa ´e menos custosa do que correr o risco de uma puni¸c˜ao indeterminada e possivelmente maior.

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Da mesma forma, caso um est´ımulo inicialmente refor¸cador se torne um est´ımulo discriminativo punitivo para determinado organismo (como comidas altamente cal´oricas para modelos com dietas r´ıgidas ou alguns est´ımulos de car´ ater er´ otico para indiv´ıduos religiosos), ´e poss´ıvel que a administra¸c˜ ao do est´ımulo possa efetivamente servir como contingˆencia punitiva ao inv´es de contingˆencia refor¸cadora.

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O que talvez explique a particular simplicidade e efetividade das puni¸c˜oes aplicadas durante os jogos de “bens p´ ublicos” (STRUCHINER, 2015, pgs. 144-145). Estas puni¸c˜oes s˜ao do tipo “custo de resposta”(response-cost)”, e costumam ser as mais efetivas e mais facilmente analis´aveis. Neste sentido: ´ socialmente aceit´avel, pr´atico, eficiente, “Custo de resposta ´e um procedimento punitivo atrativo. E especific´ avel e manipul´ avel, f´ acil de estudar, n˜ao ´e fisicamente abusivo e, o que ´e mais importante, reduz a ocorrˆencia de um comportamento espec´ıfico. Por outro lado, seu uso ´e normalmente limitado ´ a contextos onde economias com tokens j´a est˜ao estabelecidos ou onde s˜ao facilmente estabelecidas. E poss´ıvel, no entanto, estabelecer microeconomia de tokens – ou seja, uma aplica¸c˜ao limitada do custo de resposta a um problema e situa¸c˜ ao espec´ıficos, com destaque para considera¸c˜oes de praticidade (e.g. Axelrod, 1973). Outra limita¸c˜ ao parece ser a manuten¸c˜ao de um relativo aumento do refor¸co positivo ao longo do tempo a despeito do custo de resposta.” (AXELROD; APSCHE, 1983, pgs. 83-84)(tradu¸c˜ ao nossa)

102 ser o caso da pena de pris˜ao), estudados por behavioristas sob a alcunha de “time-out”123 , s˜ao extremamente mais complexas e, assim como a pena de multa no caso escolar, parecem possuir o indesejado inconveniente de terem seus efeitos revertidos em ocasi˜oes espec´ıficas124 . Como a pena de pris˜ao consiste em uma efetiva reconfigura¸ca˜o do ambiente em que o indiv´ıduo se encontra, seus efeitos sobre o comportamento apenado (e sobre os demais comportamentos do indiv´ıduo) s˜ao diretamente dependentes das diferen¸cas existentes entre o ambiente-base e o ambiente-puni¸ca˜o. O pressuposto b´asico da possibilidade de utiliza¸c˜ao da transposi¸c˜ao ambiental como pena ´e a presen¸ca de mais est´ımulos aversivos e/ou menos est´ımulos refor¸cadores no ambiente-puni¸c˜ao em rela¸c˜ao ao ambiente-base, e seus efeitos escalam precisamente com as discrepˆancias entre os dois ambientes. Desta forma, um ambiente prisional mais refor¸cador ou menos aversivo que o ambiente comum, ao inv´es de punir a pr´atica da conduta a que a transposi¸ca˜o ´e contingenciada, efetivamente refor¸ca sua pr´atica125 . Ainda que o ambiente-puni¸c˜ao efetivamente funcione como puni¸ca˜o para o indiv´ıduo analisado, n˜ao podemos deixar de incluir na nossa an´alise os diferentes est´ımulos

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“N´ os definimos TO como um per´ıodo de tempo em um ambiente menos refor¸cador contingenciado a comportamentos. Os trˆes principais tipos de TO – isolamento, exclus˜ao e n˜ao-exclus˜ao – est˜ao ao longo de um cont´ınuo de aversividade e restritividade, mas todos envolvem troca de est´ımulos. Em um n´ıvel conceitual, dois fatores s˜ ao respons´ aveis pela efetividade do TO: (a) remo¸c˜ao de um ambiente inicial “rico”; e/ou (b) aversividade do pr´ oprio TO. Com (a), os procedimentos s˜ao geralmente menos aversivos e mais socialmente aceit´ aveis. Estes procedimentos tamb´em d˜ao ˆenfase a uma aproxima¸c˜ao positiva em termos de enriquecimento do ambiente inicial.” (AXELROD; APSCHE, 1983, pgs. 123-124)(tradu¸c˜ ao nossa)

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Em experimentos com sujeitos infrahumanos (Azrin, I960; Hearst & Sidman, 1961; Thompson, 1964; Zimmerman & Ferster, 1964), o TO demonstrou propriedades refor¸cadoras em paradigmas de escape ou evas˜ ao. Em aplica¸c˜ oes a comportamentos humanos, o fato de que o TO pode funcionar como um refor¸cador negativo (Davis, Wallace, Liberman, & Finch, 1976; Solnick et al., 1977; Steeves, Martin, & Pear, 1970) em certas condi¸c˜ oes ou n˜ ao possuir efeitos demonstr´aveis no comportamento (Risley, 1968) ´e menos conhecido. Dadas as complexidades dos cronogramas [de refor¸co e puni¸c˜ao] e da obten¸c˜ ao de rela¸c˜ oes com est´ımulos em ambientes aplicados (Plummer et al.t 1977), n˜ao deveria ser surpreendente que TO procedimental pode, por vezes, funcionar tanto como um punidor quanto como um refor¸cador negativo.” (AXELROD; APSCHE, 1983, pg. 101)

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“Experimentos, aplica¸c˜ oes cl´ınicas e programas educacionais tˆem demonstrado repetidamente que o princ´ıpio de refor¸camento aplica-se ao comportamento de crian¸cas. A demonstra¸c˜ao de que conseq¨ uˆencias determinam comportamento adulto normal e com dist´ urbios estendeu o princ´ıpio ainda mais amplamente. Se pergun-tarmos a um paciente que tem gasto sua vida dentro e fora de hospitais psiqui´ atricos, ”o que vocˆe fez para ser internado desta vez?”, freq¨ uentemente obteremos uma resposta direta: ”Bem”, o paciente pode replicar, ”ano passado tudo que eu tive que fazer foi derrubar algumas latas de lixo na rua, mas isto n˜ ao funcionou mais; ent˜ao eles apenas me fizeram levant´a-las. Ent˜ ao, eu atirei uma pedra na vitrine de uma loja, mas meu velho amigo, o guarda da vizinhan¸ca, apenas me disse para n˜ ao fazer mais isto; eu poderia machucar algu´em, e ent˜ao eles teriam que me levar para a cadeia. Ent˜ ao eu fui para casa, peguei o martelo de carne e fui atr´as da minha mulher. Isto funcionou e aqui estou eu.”As contingˆencias n˜ao poderiam ser descritas mais vividamente; a hospitaliza¸c˜ ao ´e claramente um refor¸cador para algumas pessoas e elas fazem tudo que for necess´ario para chegar l´ a.” (SIDMAN, 2009, pg. 78)

103 em a¸ca˜o no interior do ambiente prisional. Muito embora o ambiente em si seja aversivo, novas oportunidades para a pr´atica de condutas indesejadas efetivamente podem surgir no interior do ambiente prisional – especialmente na figura de outros prisioneiros. Existem evidˆencias, por exemplo, de que o ambiente prisional tanto pode submergir ainda mais o apenado no mundo do crime (aumentando a possibilidade de pr´atica de outras condutas criminosas, seja no interior da pris˜ao ou ap´os sua libera¸ca˜o) quanto pode efetivamente aumentar a probabilidade de futuras ocorrˆencias do pr´oprio comportamento apenado, possivelmente at´e mais do que a aplica¸ca˜o da pena de pris˜ao o reduz126 . Portanto, ainda que a aplica¸ca˜o de puni¸c˜oes a transgressores pare¸ca ser um efetivo promotor de conformidade social em um primeiro momento, precisamos realizar uma an´alise cuidadosa e mais aprofundada dos eventos punitivos antes de concluir pela efic´acia do sistema prisional e das modernas san¸c˜oes jur´ıdicas, j´a que a complexidade inerente a este tipo de objeto faz com que conclus˜oes precipitadas possam acabar causando mais danos do que benef´ıcios a` sociedade.

5.1.2.2 O modelo s´ocio-intuicionista de Haidt Ao final do cap´ıtulo 7, Struchiner e Brando, ap´os realizarem uma extensa an´alise da contribui¸ca˜o de diferentes correntes jusfilos´oficas para a descri¸ca˜o emp´ırica do funcionamento do direito, introduzem o leitor ao modelo s´ocio-intuicionista, proposto por Jonathan Haidt no artigo “The emotional dog and its rational tail: a social intuitionist approach to moral judgement” (HAIDT, 2001). Logo em seguida, os autores demonstram a aplicabilidade deste modelo `a descri¸c˜ao do processo decisional jur´ıdico, afirmando que tal perspectiva ´e mais realista do que, por exemplo, a perspectiva de Bentham, segundo a qual os ju´ızes em nada contribuem para o conte´ udo das normas jur´ıdicas. O modelo s´ocio-intuicionista diferencia-se de outros modelos similares presentes no campo das ciˆencias cognitivas por promover uma modifica¸ca˜o no elemento que ´e considerado antecedente causal dos julgamentos morais, posto que at´e ent˜ao era ocupado primordialmente por racioc´ınios expl´ıcitos e conscientes realizados pelos agentes julgadores. Trata-se, portanto, de um retorno parcial `as perspectivas “intuicionistas” e “emotivistas”, que aparentemente perderam parte de sua importˆancia a partir do surgimento do modelo cognitivo-desenvolvimentista de Lawrence Kohlberg nas ciˆencias cognitivas.

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A pesquisa “Crime Pays: The Connection Between Time in Prison and Future Criminal Earnings” (HUTCHERSON, 2012), por exemplo, indica que alguns indiv´ıduos, ap´os sairem da pris˜ao, efetivamente vˆeem um aumento na renda ou nos diferentes benef´ıcios que podem auferir por meio da pr´ atica de atividades il´ıcitas, evento este que est´a correlacionado tanto com a obten¸c˜ao de novos contatos criminosos no interior da pris˜ ao quanto com a filia¸c˜ao a gangues presentes neste mesmo ambiente.

104 Segundo Haidt, o modelo realiza uma descri¸c˜ao do processo de julgamento moral (bem como de sua modifica¸c˜ao) a partir de seis elos, divididos em quatro principais (1-4) e dois suplementares (5-6). S˜ao eles: “1. O elo do julgamento intuitivo. O modelo prop˜oe que julgamentos morais aparecem na consciˆencia de forma autom´atica e sem nenhum esfor¸co, como o resultado de intui¸co˜es morais. [...] 2. O elo do racioc´ınio post hoc. O modelo prop˜oe que o racioc´ınio moral ´e um processo que demanda esfor¸co, realizado ap´os a realiza¸ca˜o de um julgamento moral, no qual uma pessoa procura por argumentos que v˜ao embasar um julgamento j´a feito. [...] 3. O elo da persuas˜ao racional. O modelo prop˜oe que o racioc´ınio moral ´e produzido e utilizado verbalmente para justificar um julgamento moral j´a realizado pelo indiv´ıduo perante outros. Este tipo de racioc´ınio por vezes pode afetar outras pessoas, apesar das discuss˜oes e argumentos morais serem not´orios pela raridade com a qual a persuas˜ao ocorre. Uma vez que posi¸co˜es morais sempre possuem um componente afetivo, ´e hipotetizado que a persuas˜ao racional funciona n˜ao por meio do oferecimento de argumento logicamente convincentes, mas por meio da ativa¸ca˜o de novas intui¸c˜oes com valor afetivo no ouvinte. [...] 4. O elo da persuas˜ao social. Uma vez que as pessoas s˜ao altamente sintonizadas com a emergˆencia de normas grupais, o modelo prop˜oe que o mero fato de que amigos, aliados e conhecidos realizaram um julgamento moral exerce uma influˆencia direta sobre outros, mesmo que nenhuma persuas˜ao racional seja usada. [. . . ] 5. O elo do julgamento racional. Pessoas podem, a`s vezes, raciocinar at´e chegarem a um julgamento por meio da pura for¸ca da l´ogica, sobrepondo este a` sua intui¸c˜ao inicial. Nestes casos, o racioc´ınio realmente ´e causal e n˜ao pode ser considerado como um “escravo das paix˜oes”. No entanto, este tipo de racioc´ınio ´e, hipoteticamente, considerado raro, ocorrendo primariamente em casos onde a intui¸ca˜o inicial ´e fraca e a capacidade de processamento ´e alta. [. . . ] 6. O elo da reflex˜ao privada. Enquanto pensa sobre uma situa¸c˜ao, uma pessoa pode ativar espontaneamente uma intui¸ca˜o que contradiz o julgamento intuitivo inicial. [. . . ] Uma pessoa passa a ver uma quest˜ao ou um dilema por mais de um lado e, com isso, experimenta m´ ultiplas intui¸co˜es que competem entre si. O julgamento final pode ser determinado ou pelo seguimento da intui¸ca˜o mais forte ou pela permiss˜ao de que a raz˜ao escolha entre as alternativas

105 com base na aplica¸ca˜o consciente de um princ´ıpio ou regra.” (HAIDT, 2001, pgs. 818-819)(tradu¸ca˜o nossa). Uma vez que o modelo de Haidt explicitamente prop˜oe um abandono parcial da teoria racionalista, predominante na an´alise cognitivista do fenˆomeno moral, em favor de teorias com um foco maior em “intui¸co˜es” e outros fatores “irracionais” atuantes sobre o comportamento humano, n˜ao ´e surpresa alguma que o modelo s´ocio-intuicionista se aproxime dos modelos behavioristas de comportamento127 . E as proximidades entre os dois modelos s˜ao ainda mais fortes do que este simples redirecionamento de foco poderia sugerir: parte significativa da teoria parece ser “tradut´ıvel” em termos puramente behavioristas, e as observa¸c˜oes feitas na seara comportamental parecem fornecer corrobora¸ca˜o suplementar para as teses aven¸cadas por Haidt. Caso “traduz´ıssemos” os conceitos cognitivistas de “racioc´ınio” ou “pensamento” como “comportamentos operantes verbais privados” e tent´assemos explicar o fenˆomeno do julgamento moral por meio da teoria cognitivo-desenvolvimentista (ou de outras teorias racionalistas), precisar´ıamos explicar o julgamento moral por meio do estabelecimento de uma rela¸c˜ao funcional que possui como est´ımulo discriminativo um comportamento verbal privado e como resposta o pr´oprio julgamento moral (ou seja, um pensamento que d´a lugar a um julgamento). Em outras palavras, caso esta teoria fosse correta, todo julgamento moral deveria ser precedido por um pensamento sobre o pr´oprio julgamento moral. No entanto, n´os necessariamente retomaremos um ponto importante do t´opico 1.1.3 caso desejemos utilizar esta an´alise para explicar o julgamento moral. Afinal, se o racioc´ınio ´e respons´avel pelo julgamento moral, qual seria o elemento respons´avel pelo racioc´ınio? Caso seja outro racioc´ınio, precisaremos estabelecer tamb´em quais s˜ao os elementos respons´aveis pela ocorrˆencia deste, e assim por diante. Desta forma, o estabelecimento de uma cadeia explicativa que possua como elementos apenas comportamentos do pr´oprio indiv´ıduo necessariamente ocasionar´a uma regress˜ao infinita de comportamentos do mesmo organismo. Caso, ao rev´es, expliquemos o racioc´ınio originador em fun¸ca˜o de termos externos ao organismo, resolveremos este problema te´orico e tornaremos o modelo logicamente plaus´ıvel. Resta saber se as vari´aveis pressupostas por este sistema efetivamente correspondem a`s vari´aveis em a¸ca˜o durante o julgamento moral e se estes sempre podem, como parecem indicar os racionalistas, ser modificados pela a¸c˜ao u ´nica e exclusiva de argumentos racionais particularmente fortes e convincentes. Contra a plausibilidade do modelo racionalista, Haidt apresenta diversas pesqui-

127

O pr´ oprio autor indica que sua perspectiva se aproxima, por exemplo, das teorias psicanal´ıticas freudianas, do behaviorismo radical de Skinner e de teorias filos´oficas explicativas que conferem maior poder explicativo ` as emo¸c˜ oes, como o emotivismo de Hume (HAIDT, 2001, pg. 816)

106 sas que parecem comprovar a implausibilidade do modelo cognitivo-desenvolvimentista e a maior adequa¸ca˜o do modelo s´ocio-intuicionista para a explica¸ca˜o das vari´aveis que efetivamente determinam a produ¸ca˜o de julgamentos morais. N˜ao replicaremos todos os estudos apontados pelo autor aqui, mas podemos citar, a t´ıtulo de exemplo, o argumento com o qual o autor abre seu artigo, que veio a ser traduzido no livro de Struchiner: “Julie e Mark s˜ao irm˜aos. Eles est˜ao viajando juntos na Fran¸ca, durante as f´erias de ver˜ao da faculdade. Uma noite, eles est˜ao hospedados sozinhos em uma cabana perto da praia. Eles decidem que seria interessante e divertido se eles tentassem fazer amor. No m´ınimo, seria uma nova experiˆencia para cada um deles. Julie j´a estava tomando p´ılula anticoncepcional, mas Mark tamb´em faz uso de um preservativo por seguran¸ca. Ambos curtem fazer amor, mas resolvem n˜ao fazer novamente. Eles resolvem manter aquela noite em segredo; um segredo especial que faz com que se sintam ainda mais pr´oximos um do outro. O que vocˆe pensa sobre isso? Vocˆe acha OK eles terem feito amor?“ (STRUCHINER, 2015, pg. 192) A maioria das pessoas expostas a este caso fict´ıticio condenam de imediato a conduta de Julie e Mark. Quando s˜ao perguntadas por qual raz˜ao as atitudes s˜ao conden´aveis, no entanto, quase todas fornecem argumentos que s˜ao refutados pelo pr´oprio texto - como, por exemplo, a possibilidade de filhos com problemas gen´eticos (os irm˜aos usaram duas formas de anticoncepcionais), a possibilidade de ambos se afastarem em fun¸c˜ao do evento (a hist´oria afirma que o acontecimento aproximou os dois) e a possibilidade de que julgamentos sociais negativos reca´ırem sobre ambos (os dois resolveram manter aquela noite em segredo, e s´o eles tˆem conhecimento do ocorrido). Ao ficar sem argumentos plaus´ıveis, a maioria das pessoas investigadas, ao inv´es de se convencerem de que o evento n˜ao era conden´avel, passaram a justificar suas posi¸co˜es iniciais com afirma¸c˜oes do tipo “Eu n˜ao sei. N˜ao posso explicar. Eu apenas sei que ´e errado” (HAIDT, 2001, pg. 814, citado e traduzido por STRUCHINER et al, 2015, pg. 193), o que parece levantar s´erias d´ uvidas quanto a` plausibilidade do argumento racionalista de que os julgamentos morais, por se basearem em racioc´ınios puros, podem ser modificados pela apresenta¸ca˜o de racioc´ınios convincentes em sentido contr´ario. Estabelecido este argumento inicial em favor do modelo de Haidt, passemos a analisar como cada elo do modelo s´ocio-intuicionista poderia ser representado dentro do modelo behaviorista que constru´ımos at´e aqui. A defini¸ca˜o de elo inicial do julgamento intuitivo (1) parece guardar em si um breve resqu´ıcio do cognitivismo, impl´ıcito na defini¸c˜ao de que o julgamento moral ´e “resultado

107 de intui¸co˜es morais”128 . No corpo de seu artigo, Haidt parece sugerir uma cadeia causal na qual as intui¸c˜oes morais s˜ao apenas os mecanismos corporais que involuntariamente intermediam a produ¸c˜ao do julgamento moral - ou seja, que a intui¸c˜ao moral ´e, simplesmente, o processo por meio do qual o julgamento moral surge instantaneamente ap´os o contato com certo est´ımulo elicitante129 . Mas, durante a defini¸ca˜o do elo 1, Haidt oferece um esquema explicativo similar a “Intui¸c˜oes morais -¿ Julgamentos morais”, efetivamente indicando o processo (e n˜ao os elementos que interagem neste) como o antecedente causal do produto. Este erro ´e similar a`queles apontados em nossa introdu¸ca˜o, no qual cognitivistas oferecem respostas mentalistas similares a “Carlos estava feliz” ou “J´ ulia ´e inteligente” para explicar comportamentos, omitindo quais condi¸co˜es ambientais efetivamente produziram a felicidade de Carlos ou a inteligˆencia de J´ ulia. A despeito deste pequeno problema, a defini¸c˜ao de Haidt nos parece irretoc´avel. Ap´os indicar que a “intui¸c˜ao moral” ´e um processo autom´atico, Haidt define o est´ımulo que deflagra o processo como um est´ımulo elicitante – o que sugere que o autor est´a utilizando a nomenclatura canˆonica da literatura sobre reflexos e condicionamento respondente. E, de fato, talvez a u ´nica caracter´ıstica essencial que podemos apontar nesses est´ımulos s˜ao seus efeitos elicitantes, j´a que sua ausˆencia efetivamente evitar´a que a “intui¸c˜ao moral” produza um julgamento moral de car´ater autom´atico. Alguns est´ımulos elicitantes efetivamente podem possuir car´ater discriminativo (ou discriminativo punitivo, ou discriminativo extintivo), mas este nem sempre ´e o caso. O segundo elo (racioc´ınio post hoc) ´e verbal por defini¸ca˜o, j´a que consiste na “justifica¸ca˜o” de um julgamento moral por meio do recurso a “argumentos”, “raz˜oes” ou “justificativas” de forma post hoc – ou seja, ap´os a intui¸c˜ao moral j´a ter sido estabelecida no indiv´ıduo que justifica o julgamento. O “esfor¸co” que as pessoas fazem para produzir julgamentos deste tipo talvez possa ser atribu´ıdo ao car´ater operante deste tipo de comportamento verbal130 . Ademais, as demais vari´aveis atuantes durante a emiss˜ao do julgamento (como as contingˆencias

128

Trecho contendo as express˜ oes originais em inglˆes: “1. The intuitive judgment link. The model proposes that moral judgments appear in consciousness automatically and effortlessly as the result of moral intuitions.” (HAIDT, 2001, pg. 818)

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“Seguindo a partir de (1982), Bruner (1960), Simon (1992), e outros, a intui¸c˜ao moral pode ser definida como a aparˆencia s´ ubita na consciˆencia de um julgamento moral, incluindo uma valˆencia afetiva (bom-mau, gosto-desgosto), sem nenhuma ciˆencia consciente de se ter passado pelas etapas de busca, avalia¸c˜ ao de evidˆencias, ou inferˆencia de conclus˜oes. Intui¸c˜ao moral ´e, portanto, o processo psicol´ ogico sobre o qual fil´ osofo escocˆes [Hume] falava, um processo similar ao julgamento est´etico: Algu´em vˆe ou ouve algo sobre um evento social e este mesmo algu´em instantaneamente sente aprova¸c˜ao ou desaprova¸c˜ ao.” (HAIDT, 2001, pg. 818)(tradu¸c˜ao nossa)

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O que n˜ ao significa dizer que todo comportamento operante requer “esfor¸co” ou “delibera¸c˜ao consciente”, mas sim que os comportamentos “esfor¸cados” tendem a ser operantes. O ato de girar uma ma¸caneta para abrir uma porta ´e operante, apesar da naturalidade com que o praticamos.

108 e os est´ımulos discriminativos em a¸ca˜o) podem variar, o que faz com que a produ¸ca˜o dos julgamentos em si precise ser observada casuisticamente para que suas determinantes possam ser devidamente analisadas O terceiro elo (persuas˜ao racional) denota o papel social do comportamento verbal emitido no elo 2. Quanto a isso, precisamos indicar que, muito embora Haidt pare¸ca sugerir que a fun¸ca˜o dos julgamentos ´e inerentemente persuasiva, uma vez que as contingˆencias atuantes sobre o elo 2 podem variar, este nem sempre ser´a o caso. Podemos imaginar, por exemplo, uma comunidade onde determinado julgamento moral seja t˜ao presente que os indiv´ıduos que n˜ao o reproduzam efetivamente sejam punidos pelos demais membros, o que talvez resulte em um refor¸co negativo da emiss˜ao do julgamento moral (por meio do afastamento da amea¸ca de reprova¸ca˜o social) ao inv´es do refor¸co positivo normalmente associado a` “persuas˜ao”131 . O quarto elo (persuas˜ao social) parece denotar algumas dos efeitos de contingˆencias verbais com car´ater moral que n˜ao s˜ao dirigidas ao indiv´ıduo, que passar˜ao a atuar durante futuras apresenta¸co˜es de est´ımulos que elicitem julgamentos morais similares. N˜ao h´a nexo de continuidade temporal entre o terceiro e o quarto elo: a persuas˜ao social pode ocorrer antes da racional, e vice-versa. O importante ´e ressaltar que os dois elos alterar˜ao prospectivamente as intui¸c˜oes morais que os invid´ıduos ter˜ao sobre o mesmo tema ou perante o mesmo est´ımulo. O quinto elo (julgamento racional) descreve o papel exercido pelos comportamentos verbais que s˜ao emitidos por um organismo e que tˆem o pr´oprio como emissor como destinat´ario (ou seja, comportamentos por meio dos quais o indiv´ıduo tenta modificar o pr´oprio comportamento por meio de estimula¸c˜ao verbal). ´ altamente question´avel o papel “racional” que Haidt parece atribuir a este tipo E de comportamento, ou que a atua¸c˜ao da “pura for¸ca da l´ogica” efetivamente possa ser observada em um indiv´ıduo reflexivo. Muito embora n˜ao seja fruto imediato do processo de “intui¸ca˜o moral”, o comportamento verbal “reflexivo” ainda assim depende de outras vari´aveis como, por exemplo, o hist´orico de refor¸co do indiv´ıduo ou a probabilidade de emiss˜ao de certos comportamentos, e estas efetivamente podem ocultar “intui¸co˜es” e “julgamentos autom´aticos” que moldaram o julgamento “puramente racional”132 . Desta forma, n˜ao h´a que se falar em total racionalidade, mas sim em intuicionismo indireto,

131

Este efeito consiste na “concordˆ ancia” do indiv´ıduo persuadido. Mas a persuas˜ao tamb´em poder´ a ser um refor¸co negativo, na medida em que a concordˆancia diminui a emiss˜ao de opini˜oes aversivas pelo mesmo indiv´ıduo.

132

Em sua defini¸c˜ ao, Haidt sugere que este tipo de mudan¸ca racional ´e mais prov´avel quando a “intui¸c˜ ao ´ poss´ıvel que, em fun¸c˜ao da baixa for¸ca inicial ´e fraca e a capacidade de processamento ´e alta”. E da “intui¸c˜ ao” inicial, uma nova “intui¸c˜ao” precise ser apenas ligeiramente mais forte para suplantar a anterior, o que pode gerar uma impress˜ao de “racionalidade” em um observador externo.

109 no qual conceitos intuitivamente modificados s˜ao utilizados de forma n˜ao intuitiva (ou seja, em um contexto onde aquela intui¸ca˜o espec´ıfica est´a ausente) para modificar outra intui¸ca˜o. O sexto elo (reflex˜ao privada) complementa a nossa cr´ıtica ao quinto elo ao prover ´ poss´ıvel que a uma forma de julgamento que, necessariamente, se baseia na intui¸ca˜o. E distin¸ca˜o entre o quinto e o sexto elo seja apenas fict´ıcia, e que o julgamento racional na verdade seja apenas uma reflex˜ao privada que, por ativar apenas intui¸c˜oes com baix´ıssimo grau de for¸ca, se apresente a n´os com roupagem puramente l´ogica ou racional. Por fim, devemos indicar que o trecho final que Haidt usa para descrever o trecho 6 tamb´em reproduz mais um erro diretamente atribu´ıvel ao modus operandi das teorias cognitivistas. Afirma o autor que: “O julgamento final pode ser determinado ou pelo seguimento da intui¸c˜ao mais forte ou pela permiss˜ao de que a raz˜ao escolha entre as alternativas com base na aplica¸c˜ao consciente de um princ´ıpio ou regra.” (HAIDT, 2001, pg. 819) (tradu¸ca˜o nossa). Ou seja, o comportamento “julgamento” passa a ser explicado em fun¸c˜ao de outros dois comportamentos conscientes (“seguimento da intui¸ca˜o mais forte” ou “permiss˜ao de que a raz˜ao escolha entre as alternativas com base na aplica¸c˜ao consciente de um princ´ıpio ou regra”), mas estes dois comportamentos n˜ao recebem nenhuma explica¸ca˜o adicional. Com isto, a explica¸ca˜o de Haidt n˜ao determina quais s˜ao as vari´aveis atuantes sobre o processo de solu¸ca˜o do dilema, j´a que o autor apenas est´a constatando o fato de que o dilema foi resolvido pelo pr´oprio indiv´ıduo por meio de outro comportamento. Traduzindo os conceitos de “seguimento de intui¸co˜es” e de “permiss˜ao de que a “raz˜ao” escolha” para a terminologia behaviorista, podemos indicar que Haidt parece sugerir que a escolha se d´a ou por meio de prepotˆencia de um dos comportamentos (o indiv´ıduo apenas “segue sua intui¸c˜ao mais forte”133 para escolher qual julgamento ser´a feito) ou por meio de auto-refor¸co de um comportamento fraco presente no organismo por

133

Neste caso, seria errˆ oneo afirmar que se trata de um processo consciente, j´a que a atua¸c˜ao da “for¸ca das intui¸c˜ oes” ´e dada ambientalmente e automaticamente, n˜ao sendo atribu´ıvel `a “vontade” do indiv´ıduo que a “segue”.

110 meio de estimula¸c˜ao verbal134 (nenhuma das duas respostas ´e prepotente, e o indiv´ıduo influencia a si mesmo verbalmente por meio da “aplica¸ca˜o da regra ou princ´ıpio” a fim de alterar a for¸ca de uma das intui¸c˜oes, o que o ocasionar´a a prepotˆencia). ´ poss´ıvel que esta distin¸ca˜o entre duas formas de decidir, assim como a disE tin¸ca˜o entre os elos 5 e 6, seja puramente fict´ıcia. Caso o indiv´ıduo utilize uma “regra ou princ´ıpio” para “decidir” qual das duas intui¸c˜oes seguir, o que observaremos ´e o aumento de for¸ca de uma das intui¸c˜oes e, subsequentemente, a emiss˜ao do julgamento que se tornou prepotente. A u ´nica diferen¸ca entre a decis˜ao “intuitiva” e a decis˜ao “ap´os a aplica¸ca˜o de um procedimento” ´e a suplementa¸c˜ao de uma estimula¸ca˜o verbal que provoque a prepotˆencia no segundo caso135 . Portanto, se desejarmos explicar como a quest˜ao foi resolvida, devemos ou identificar a intui¸c˜ao prepotente e estabelecer uma rela¸ca˜o entre esta e o est´ımulo elicitante ou identificar o est´ımulo suplementar e as vari´aveis respons´aveis por este. Ap´os todo exposto, devemos indicar que, apesar de ter sido produzida no seio da tradi¸ca˜o cognitivista, o modelo s´ocio-intuicionista de Haidt, por se reaproximar de conceitos, pr´aticas e observa¸c˜oes behavioristas, ´e amplamente suportado por estes – na medida em que a aproxima¸ca˜o sana alguns problemas da pr´opria teoria cognitivista mainstream. A principal cr´ıtica que podemos fazer a Haidt no contexto deste trabalho, portanto, n˜ao ´e atinente a seu conte´ udo, mas sim referente ao fato de que a reaproxima¸ca˜o dos dois modelos poderia ter sido ainda maior. Neste sentido, talvez possamos at´e mesmo afirmar que, possivelmente, o behaviorismo radical ´e um modelo ainda mais intuicionista – e explore de maneira mais completa tanto as “intui¸co˜es” quanto as demais for¸cas “irracionais” atuantes sobre os organismo humanos - do que o pr´oprio modelo o s´ocio-intuicionista.

134

135

“No processo de composi¸c˜ ao e corre¸c˜ao, o falante organiza, qualifica, ret´em ou libera um comportamento verbal j´ a existente e com certa for¸ca em seu repert´orio. Grande parte do comportamento emitido em qualquer ocasi˜ ao “apenas cresce”: ele brota das mudan¸cas comuns no ambiente e de outros comportamentos verbais em curso. Temos agora que considerar certas atividades espec´ıficas cujo efeito ´e o fortalecimento de respostas do comportamento do falante e, consequentemente, o aumento da provis˜ ao de comportamento a ser composto e corrigido. Por ora, limitar-nos-emos aos processos usados pelo falante para aumentar a disponibilidade do comportamento j´a existente com certa for¸ca. As t´ecnicas envolvem muitas das vari´aveis discutidas at´e aqui. Uma pessoa controla o pr´oprio comportamento verbal, ou de qualquer outro tipo, da mesma forma que controla o comportamento dos demais.” (SKINNER, 1978, pg. 481). ´ poss´ıvel, ali´ E as, que uma percep¸ca˜o de “m´ utua exclusividade” entre duas ideias fa¸ca com que a manuten¸c˜ ao das duas simultaneamente seja aversiva para o indiv´ıduo, o que efetivamente refor¸car´ a processos de estimula¸c˜ ao suplementar para a “tomada de decis˜ao”.

111 5.2 Frederick Schauer 5.2.1 The Force of Law Estabelecendo uma interface com autores t˜ao tradicionais quanto John Austin e Jeremy Bentham, Schauer dedica “The Force of Law ” (SCHAUER, 2015) a resgatar as san¸co˜es jur´ıdicas do limbo a que foram condenadas ap´os Hart indicar que estas n˜ao constituem propriedades essenciais do direito. Revertendo o foco anal´ıtico das propriedades essenciais para as propriedades mais comuns ou salientes do fenˆomeno jur´ıdico, Schauer tece considera¸co˜es sobre o direito que, por possu´ırem pouca ou nenhuma pretens˜ao universalista, acabam sendo de grande valia para os estudiosos do direito emp´ırico contemporˆaneo. Estabelecendo uma interface com autores t˜ao tradicionais quanto John Austin e Jeremy Bentham, Schauer dedica “The Force of Law ” a resgatar as san¸co˜es jur´ıdicas do limbo a que foram condenadas ap´os Hart indicar que estas n˜ao constituem propriedades essenciais do direito. Revertendo o foco anal´ıtico das propriedades essenciais para as propriedades mais comuns ou salientes do fenˆomeno jur´ıdico, Schauer tece considera¸c˜oes sobre o direito que, por possu´ırem pouca ou nenhuma pretens˜ao universalista, acabam sendo de grande valia para os estudiosos do direito emp´ırico contemporˆaneo.

5.2.1.1 Puni¸co˜es e recompensas Sem d´ uvida alguma, a discuss˜ao que assume o protagonismo do livro The Force of Law ´e a referente `a diferen¸ca de poder normativo geralmente existente entre leis que apenas “sugerem” condutas a serem adotadas por seus cidad˜aos – ou seja, leis cujo descumprimento n˜ao acarretar´a nenhum efeito negativo para o descumprido – de leis que efetivamente contingenciam puni¸c˜oes a` pr´atica de condutas contr´arias a`quelas que s˜ao prescritas ou proibidas pelo comando legal. De fato, o contingenciamento de consequˆencias pr´aticas136 a atos que est˜ao conforme ou em contradi¸c˜ao com a conduta prescrita pela lei, n˜ao obstante diferenciar a lei em sua manifesta¸ca˜o mais usual das hipot´eticas leis suges-

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Usamos o termo “contingˆencias pr´ aticas” porque o contingenciamento de consequˆencias abstratas – ou seja, comportamentos verbais condicionados – parece ser um instrumento importante da moralidade, especialmente em contextos religiosos. A condena¸c˜ao da alma pecadora a uma eternidade no inferno, a recompensa de fi´eis com a admiss˜ ao no para´ıso, a produ¸c˜ao de karma ruim ou bom a partir de condutas com boas ou m´ as inten¸c˜ oes e o contingenciamento da liberta¸c˜ao de ciclos de renascimento a partir do seguimento estrito do dharma s˜ ao diferentes formas de contingenciar um refor¸cador condicionado (c´eu, bom karma, liberta¸c˜ ao) ou um aversivo condicionado (inferno, karma ruim, continuidade do ciclo) a, respectivamente, condutas “desej´ aveis” e condutas “indesej´aveis”.

112 tivas, pode at´e mesmo ser considerado um dos principais fatores que diferenciam a lei de campos como, por exemplo, o da moralidade e o das normas de conduta137 - o que talvez sugira que estas leis estejam mais conceitualmente pr´oximas do que costumamos considerar como pertencentes a` esfera moral dos indiv´ıduos do que daquilo que costumamos considerar como pertencente ao socializado campo jur´ıdico. Apesar de focar os seus estudos nas san¸co˜es e puni¸c˜oes jur´ıdicas, Schauer ressalta que n˜ao existe nenhuma esp´ecie de o´bice ao contingenciamento de recompensas a certas condutas por meio de normas jur´ıdicas138 . O seu enfoque no fenˆomeno punitivo se d´a por raz˜oes emp´ıricas, e n˜ao conceituais – e, como ressalta o autor, o mesmo parece ter ocorrido tanto com Bentham quanto com Austin139 , o que possivelmente explicaria a aten¸ca˜o que os trˆes deram para o fenˆomeno punitivo. A lei pode recompensar os cidad˜aos por se comportarem bem, mas ela raramente o faz hoje em dia e raramente o fazia antigamente. N˜ao existe nenhum impedimento l´ogico para a futura publica¸c˜ao de um “The Grace of Law ” caso futuramente ocorra uma modifica¸c˜ao na nossa forma de conduzir o direito - e, ainda que isto ocorresse, “The Force of Law ” de forma alguma perderia o seu valor; os dois livros apenas estariam usando sistemas jur´ıdicos diferentes como paradigma descritivo e, portanto, se referindo a sociedades completamente distintas. A estrutura apresentada no cap´ıtulo 2, bem como sua forma espec´ıfica de funcionamento, tamb´em est´a sujeita a mudan¸cas decorrente da passagem do tempo, j´a que

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“Como veremos, pode at´e mesmo ser que san¸c˜oes e coer¸c˜ao – a for¸ca da lei – s˜ao o que distinguem a lei da moralidade, de sugest˜ oes, exorta¸c˜oes e importuna¸c˜oes de oficias p´ ublicos e in´ umeros outros; e das normas sociais que pervadem nossas vidas pessoais e profissionais.“ (SCHAUER, 2015, pg. 7)(tradu¸c˜ ao nossa)

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”Algumas vezes a lei faz isto garantindo imunidade de obriga¸c˜oes legais outrora aplic´aveis, como quando as leis tribut´ arias conferem isen¸c˜ ao de taxas para doa¸c˜oes `a caridade ou quando a lei de recrutamento garante imunidade a professores. E algumas vezes as recompensas da lei podem ser ainda mais diretas. A lei pode simplesmente proibir pessoas de dirigir de forma que n˜ao ´e segura, e ´e claro que ela faz isto de v´ arias maneiras. Mas se ao inv´es ou em adi¸c˜ao `as san¸c˜oes negativas padr˜ao, a lei conferir `aqueles com hist´ orico de dire¸c˜ ao limpo a oportunidade de renovar sua carteira de motorista com menos esfor¸co, a um custo mais baixo, ou com menos frequˆencia, ela estaria tentando alcan¸car os mesmos fins com recompensas positivas ao inv´es de puni¸c˜oes negativas.”(SCHAUER, 2015, pgs. 7- 8)(tradu¸c˜ao nossa)

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”A exclus˜ ao, feita por Bentham, das recompensas do rol de incentivos para o cumprimento da lei e, consequentemente, de uma explica¸c˜ao baseada em incentivos da lei em si foi, portanto, em parte conceitual, mas a exclus˜ ao conceitual, por sua vez, parece ter sido motivada substancialmente pela raridade emp´ırica de benef´ıcios oferecidos pelo governo cujo potencial uso para modifica¸c˜ao comportamental Bentham excluiu da ideia de legisla¸c˜ao, e portanto (para ele) de direito.”(SCHAUER, 2015, pg. 112)(tradu¸c˜ ao nossa) ”Austin explicitamente rejeitou a aplica¸c˜ao do termo san¸c˜ao ”para benef´ıcios condicionais al´em de malef´ıcios condicionais: para recompensas al´em de puni¸c˜oes.”Ele acreditava que tal extens˜ao seria um desvio muito grande do sentido estabelecido para termos como san¸c˜ao, dever, obriga¸c˜ao, e obediˆencia, e certamente para o que ele entendia como sendo o significado de comando. [...] O bi´ografo moderno de Austin, W. L. Morison, atribui a exclus˜ao de recompensas por Austin principalmente ao desejo do autor por ”asseio”, e portanto como parte do que essencialmente era um exerc´ıcio de nomea¸c˜ ao ou defini¸ca˜o.”(SCHAUER, 2015, pgs. 112-113)(tradu¸c˜ao nossa)

113 a evolu¸ca˜o natural das esp´ecies ainda est´a correndo o seu curso e suas mudan¸cas sempre poder˜ao repercutir na esfera comportamental. No entanto, de acordo com o nosso conhecimento atual sobre a evolu¸ca˜o, esta mudan¸cas biol´ogicas ocorrem em um ritmo completamente descompassadas em compara¸c˜ao com as mudan¸cas em estruturas como, por exemplo, a jur´ıdica. Os sistemas jur´ıdicos existentes durante a vida de Bentham e Austin se modificaram de tal forma que Schauer n˜ao enfrentou muitos problemas para encontrar exemplos de leis que concedem recompensas tang´ıveis a cidad˜aos, e nada impede as modifica¸c˜oes que observaremos em um per´ıodo de tempo relativamente pr´oximo comecem a lan¸car as bases de sistemas que justificariam a edi¸ca˜o de um futuro The Grace of Law. Por sua vez, a estrutura comportamental b´asica, por possuir uma s´olida base filogen´etica constru´ıda ao longo de milˆenios e mais milˆenios de evolu¸c˜ao, ´e t˜ao est´avel que poder´ıamos ver modelos jur´ıdicos inimagin´aveis nos dias de hoje surgirem e desaparecerem antes que alguma mudan¸ca significativa pudesse come¸casse a aparecer em nossa esp´ecie. Portanto, podemos aplicar estes conceitos b´asico a`s normas jur´ıdicas com relativa seguran¸ca da permanˆencia deste conceito (isto ´e, imunes a mudan¸cas, ainda que suscet´ıveis a` falsifica¸ca˜o). Dito isto, retomaremos a estrutura apresentada no cap´ıtulo 2 para descrever configura¸co˜es de normas jur´ıdicas que, al´em de nos parecem poss´ıveis nos dias de hoje, parecem ser amplamente empregadas pelos sistemas jur´ıdicos140 . De forma ligeiramente contra-intuitiva, as modalidades mais comuns de san¸c˜ao dos sistemas jur´ıdicos contemporˆaneos possuem a estrutura de puni¸c˜oes negativas (como penas de pris˜ao e de perda de valores financeiros), que costumam coexistir com um n´ umero relativamente menor de puni¸c˜oes positivas (como multas e, em alguns sistemas, puni¸co˜es f´ısicas)141 . At´e mesmo as puni¸c˜oes positivas costumam utilizar est´ımulos aversivos condicionados que, em regra, se referem a puni¸co˜es negativas – como a multa, que ´e um est´ımulo condicionado para a perda do refor¸cador “dinheiro”. Enquanto as puni¸c˜oes substanciais (sejam positivas ou negativas) usualmente s˜ao contingenciadas a condutas fortemente reprovadas pela sociedade e pela ordem jur´ıdica,

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Nada impede que a ciˆencia e as t´ecnicas administrativo-jur´ıdicas futuramente nos permitam aumentar ou diminuir as chances de que determinado tipo de comportamento ocorra por meio da manipula¸c˜ ao direta de outras vari´ aveis (como a motiva¸c˜ao, a emo¸c˜ao ou o pr´oprio hist´orico de refor¸co do indiv´ıduo), mas este tipo de ferramenta ainda n˜ao est´a dispon´ıvel para n´os. Descreveremos apenas formas de controle social que j´ a s˜ ao poss´ıveis com a tecnologia atual. ´ E poss´ıvel que isto ocorra porque puni¸c˜oes positivas tendem a ser vistas sob uma ´otica mais negativa ou a terem efeitos mais nocivos tanto sobre o punidor quanto sobre o punido, mas poucos estudos emp´ıricos espec´ıficos foram realizados nesta ´area. Isto parece ser sugerido, por exemplo, pelo estudo “Positive (But Not Negative) Punishment Predicts Anxiety and Depression Among Prostate Cancer Patients: An Exploration of the Behaviour Analytic Model of Depression” (BITSIKA; SHARPLEY; CHRISTIE, 2009), mas precisar´ıamos verificar se estas conclus˜oes s˜ao generaliz´aveis a grupos n˜ ao espec´ıficos.

114 “puni¸co˜es” mais leves podem ser aplicadas a condutas juridicamente indesejadas (mas com pouco ou nenhuma relevˆancia social) por meio do contingenciamento de est´ımulos delta (“contingˆencias extintivas”) a determinadas condutas. Este seria o caso, por exemplo, de uma lei determinando que certo benef´ıcio n˜ao ser´a concedido a cidad˜aos que n˜ao preencham determinado requisito (como “idade avan¸cada”), ocasi˜ao na qual, caso a lei efetivamente seja cumprida, a ausˆencia deste qualificador ocasionar´a a extin¸ca˜o (enquanto permanecer a ausˆencia) de eventuais comportamentos de requisi¸ca˜o por parte de indiv´ıduos que n˜ao se enquadram no perfil. No entanto, em fun¸c˜ao da imperfei¸ca˜o do sistema jur´ıdico e da necessidade de localiza¸ca˜o de ilegalidades concretas para que uma corte possa realizar o controle judicial de alguns atos, ´e poss´ıvel que normas que costumem contingenciar est´ımulos delta a determinados atos jur´ıdicos contingenciem tamb´em puni¸c˜oes a estes, a depender do tipo de contingenciamento realizado e da pr´opria estrutura da norma. Se a lei dispor, por exemplo, que a assinatura por uma testemunha ´e um requisito de validade de um contrato, esta requisi¸ca˜o poder´a consistir tanto na contingenciamento de um est´ımulo delta `a ausˆencia de assinatura (“Contratos p´ ublicos sem assinatura n˜ao ser˜ao registrados”, o que faz com que os contratos que cheguem ao poder p´ ublico sem assinatura nunca produzam efeitos) quanto na contingenciamento de uma puni¸ca˜o ao mesmo fato (“Contratos particulares que j´a tenham sido celebrados e n˜ao contenham assinatura ser˜ao considerados inv´alidos pela corte”, onde o contrato produz efeitos em um primeiro momento mas estes s˜ao cessados ap´os interven¸ca˜o judicial). No primeiro caso, o Estado est´a impossibilitando a obten¸ca˜o de um refor¸co (registro do contrato) pelo indiv´ıduo e, assim contingenciando apenas um est´ımulo delta; no segundo, o Estado pode realizar alguma esp´ecie de controle centralizado mas, quando n˜ao o exercer e posteriormente anular um contrato, estar´a retirando do indiv´ıduo um refor¸co j´a obtido (contrato celebrado) e contingenciando um punidor negativo `a conduta. As normas jur´ıdicas podem, ainda, contingenciar refor¸cadores a`s condutas dos indiv´ıduos142 - mas, ao contr´ario do que afirma Schauer, algumas destas “recompensas” possuem forte presen¸ca na pr´atica jur´ıdica usual. Podemos indicar, por exemplo, que muito embora refor¸cadores positivos raramente sejam utilizados para recompensar boas condutas praticadas pelos cidad˜aos, refor¸cadores negativos frequentemente s˜ao atrelados a situa¸c˜oes legais espec´ıficas e utilizados para mover a pr´opria m´aquina jur´ıdica.

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Existem, no entanto, outros benef´ıcios governamentais que s˜ao providenciados sob a condi¸c˜ao de seu receptor se engajar em certas formas de comportamento desejado. E em fun¸c˜ao destes benef´ıcios serem condicionais desta forma, eles se encaixam melhor na categoria que Bentham e Austim descreveram como recompensas. Estes benef´ıcios s˜ao recompensas por comportamento desejado - em alguns casos se engajando em certas atividades e em outras se abstendo de certas atividades.”(SCHAUER, 2015, pg. 114)(tradu¸c˜ ao nossa)

115 Caso um indiv´ıduo esteja sofrendo amea¸cas de agress˜ao, o Estado poder´a, a requerimento do cidad˜ao, estabelecer medidas protetivas e efetivar medidas protetivas como, por exemplo, ordenar que o potencial agressor n˜ao se aproxime demais do potencial agredido ou fazer com que a pol´ıcia fique atenta a atividades envolvendo os dois sujeitos. Da mesma forma, uma lei processual que estabele¸ca o encerramento imediato das a¸co˜es penais que comprovadamente n˜ao tenham fundamento estabelece um claro refor¸co para o comportamento jur´ıdico de acionar os ´org˜aos jur´ıdicos respons´aveis pela aplica¸c˜ao da regra sempre que isto ocorrer. Nas duas hip´oteses, uma lei permitiu que os cidad˜aos a utilizassem para afastar algum mal que os assolava, refor¸cando estas mesmas a¸co˜es n˜ao pela concess˜ao de benef´ıcios aos cidad˜aos que requereram o cumprimento da lei, mas sim pelo afastamento dos malef´ıcios que amea¸cavam recair sobre estes. O caso em favor das recompensas parece ser ainda maior quando desviamos nossa aten¸ca˜o das normas que regulam a intera¸c˜ao entre o Estado e seus cidad˜aos e a voltamos para as normas estatais aplic´aveis a rela¸co˜es de cidad˜aos com outros cidad˜aos que s˜ao levadas a` corte. As normas jur´ıdicas refor¸cam positivamente os agentes que atuam em casos privados na medida em que aumentam a probabilidade de comportamentos que s˜ao recompensados pelos bens recebidos atrav´es das vit´orias legais, o que costuma implicar em uma puni¸c˜ao positiva ou negativa para a parte perdedora. Este tipo de legisla¸c˜ao, no entanto, parece n˜ao receber muita aten¸ca˜o dos fil´osofos do direito – possivelmente porque, apesar de fornecer recompensas para aqueles que se utilizam dele, o direito s´o possui o papel de “conformador social de condutas” em rela¸ca˜o a`queles que perdem estes casos e s˜ao obrigados a cumprir a determina¸ca˜o judicial. Nestes casos, o direito efetivamente objetiva modificar o comportamento dos cidad˜aos quando lhes confere a prerrogativa de buscar seus direitos – caso contr´ario, n˜ao haveria raz˜ao para se estipular quais a¸co˜es jur´ıdicas ser˜ao aceitas pela corte, bastando que os ju´ızes decidissem quais quest˜oes ser˜ao por eles analisadas. Uma norma afirmando que “Contratos ser˜ao cumpridos” serve para refor¸car comportamentos que buscam efetivar o cumprimento de contratos, e n˜ao seria necess´aria se pud´essemos afirmar com absoluta certeza que n˜ao modifica nem o comportamento do juiz (assim modificando indiretamente o das partes, j´a que a probabilidade de uma decis˜ao de acordo com o preceito normativo aumentar´a) nem o comportamento das partes (que tendem a buscar mais as cortes para resolver este tipo de quest˜ao por saberem que ju´ızes tender˜ao a seguir a regra). No entanto, estas decis˜oes geralmente s˜ao desprovidas de valor social por tenderem a n˜ao concretizar valores jur´ıdicos mais importantes, j´a que tendem a beneficiar apenas o indiv´ıduo que evoca a norma – o que, possivelmente, explica o descarte deste tipo de evento pelos fil´osofos, que tendem a focar mais nos aspectos sociais das normas jur´ıdicas. Portanto, caso desejemos apontar uma tendˆencia geral do condicionamento realizado pelo meio jur´ıdico com foco exclusivo nas normas privadas, devemos observar que estes se caracterizam n˜ao por privilegiar a puni¸c˜ao em detrimento da recompensa, mas por

116 privilegiar as formas negativas de condicionamento em detrimento das positivas. Possivelmente, a saliˆencia maior da puni¸ca˜o para os observadores externos se d´a apenas porque os conceitos leigos de “puni¸c˜ao” tendem a englobar tanto puni¸c˜oes positivas quanto negativas, mas apenas os refor¸camentos positivos s˜ao levados em conta durante a concep¸ca˜o dos conceitos mais comuns de “recompensa”. Sentir dor e perder dinheiro s˜ao consideradas duas puni¸c˜oes diferentes, mas ganhar dinheiro e deixar de perder dinheiro parecem ser dois eventos pertencentes a categorias completamente diferentes.

5.2.1.2 O homem intrigado Ainda que expliquemos como as leis contingenciadoras utilizam refor¸cos e puni¸co˜es para incentivar e punir indiv´ıduos que praticam certas condutas ou deixam de praticar outras, precisamos lidar com o problema do “homem intrigado” de Hart, no qual um indiv´ıduo hipot´etico (que verdadeiramente corresponde a alguns indiv´ıduos concretos) obedece a lei n˜ao porque esta contingencia uma puni¸c˜ao ou uma recompensa ao seu cumprimento ou descumprimento, mas simplesmente porque ela possui o status de regra jur´ıdica. Trata-se, portanto, do obedecimento de uma lei enquanto lei (“law qua law”). N˜ao enfrentaremos aqui aspectos sociol´ogicos dos “homens intrigados”; Schauer parece tratar o tema adequadamente no corpo de seu pr´oprio livro. Como estamos lidando com comportamentos, parece ser mais interessante determinar neste texto por meio de quais mecanismos a lei faz com que alguns indiv´ıduos obede¸cam seus comandos mesmo quando a obediˆencia e a desobediˆencia n˜ao possuem absolutamente nenhuma consequˆencia pr´atica. A resposta a esta quest˜ao talvez seja intuitiva para muitos cr´ıticos pol´ıticos: tratase de uma quest˜ao “cultural” (a n´ıvel sociol´ogico) e de “cria¸c˜ao” (a n´ıvel individual), e n˜ao de uma quest˜ao jur´ıdica143 . Para sabermos se um indiv´ıduo ´e um “homem intrigado”, precisamos observar as contingˆencias ambientais a que ele foi exposto durante a sua vida, e para saber se uma sociedade ´e composta por “homens intrigados”, precisamos observar as contingˆencias ambientais que ela perpetua por meio de sua cultura. Isto porque, se um indiv´ıduo obedece a uma lei s´o porque ela ´e lei, tal fenˆomeno ocorre porque este indiv´ıduo foi condicionado a

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“Europeus – especialmente alem˜ aes, austr´ıacos, su´ı¸cos, finlandeses e escandinavos – que viajam para os Estados Unidos normalmente ficam surpresos com o quanto motoristas e pedestres americanos ignoram v´ arios sinais que dizem a eles como dirigir e como ou onde atravessar a rua. E americanos que viajam ´ na Alemanh˜ a, Austria, Su´ı¸ca, Finlˆ andia, Normandia, Su´ecia e Dinamarca costumam ficar igualmente surpresos ao ver um finlandˆes, por exemplo, ficando obedientemente em p´e na cal¸cada quando em frente a um sinal de “N˜ ao atravesse” quando n˜ao h´a nenhum policial ou viatura por perto.” (SCHAUER, 2015, pg. 73)(tradu¸c˜ ao nossa)

117 ver o comando legal como refor¸cador ou punidor por si s´o, e esta propriedade condicionada s´o surge em condi¸co˜es ambientais que promovem este tipo de condicionamento espec´ıfico. Em outras palavras, indiv´ıduos “intrigados” nada mais s˜ao do que indiv´ıduos que, por meio de condicionamento, passam a reagir a comandos legais como se estes fossem aversivos ou refor¸cadores, ainda que nenhum outro est´ımulo esteja efetivamente contingenciado a este. As puni¸co˜es e recompensas que americanos e brasileiros precisam observar concretamente j´a forma “internalizadas” pelos homens intrigados, de forma que, assim como os cachorros de Pavlov s´o precisavam ouvir o som ou ver o brilho de uma luz para come¸car a salivar, finlandeses s´o precisam observar uma placa de “Pare” ou estarem conscientes da existˆencia de uma norma para se sentirem bem ou mal por estarem agindo conforme ou contra esta144 . Portanto, a u ´nica diferen¸ca entre brasileiros e finlandeses neste aspecto ´e que, enquanto finlandeses s˜ao culturalmente treinados para responder a leis como se estas fossem puni¸c˜oes ou refor¸cos por si s´o, brasileiros n˜ao recebem este treinamento e, por isso, s´o a obedecem em contextos onde outros elementos (como a presen¸ca de viaturas ou oficiais da pol´ıcia) estabele¸cam est´ımulos discriminativos para a efetiva aplica¸ca˜o da puni¸c˜ao ou da recompensa estabelecida na regra.

5.2.1.3 Rela¸co˜es causais entre leis e comportamentos O u ´ltimo dilema Schaueriano deste livro com que lidaremos ´e aquele pertinente a` rela¸ca˜o de causalidade existente (ou n˜ao) entre normas jur´ıdicas e condutas humanas. Afinal, se n´os estamos cumprindo as leis “n˜ao mate”, “n˜ao roube” e “n˜ao cometa crimes contra a ordem econˆomica” sempre que estamos fazendo qualquer outra coisa que n˜ao seja matar, roubar e cometer crimes contra a ordem econˆomica, quando podemos dizer que n´os efetivamente estamos cumprindo uma norma n˜ao porque ela coincidentemente se coaduna com a conduta que estamos praticando e nos faz agir em confiormidade com a lei 145 , mas sim em fun¸ca˜o da pr´opria prescri¸c˜ao legal ou por causa da pr´opria lei? Em um primeiro momento, podemos definir que haver´a uma rela¸ca˜o causal entre lei e comportamento sempre que o comando legal efetivamente providenciar um refor¸co ou uma puni¸c˜ao para a pr´atica da conduta a que se refere, aumentando ou diminuindo

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A depender da forma como o condicionamento efetivamente ´e realizado (possivelmente desde a infˆ ancia), a suplementa¸c˜ ao da for¸ca deste comportamento por outras pr´aticas culturais (como a reprova¸c˜ ao social de quem ocasionalmente descumpre normas legais sem san¸c˜ao) pode ser necess´aria ou n˜ ao para evitar a ocorrˆencia de extin¸c˜ao.

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“Ainda que rouvar um carro n˜ ao fosse ilegal, eu certamente n˜ao faria isso, e portanto, minhas a¸c˜ oes ao n˜ ao roubar o carro n˜ ao s˜ ao a¸c˜ oes que eu tomei por causa da lei. N´os podemos dizer que eu agi consistentemente com a leiu, mas eu n˜ao agi para obedecer a lei. (SCHAUER, 2015, pg. 49)(tradu¸c˜ ao nossa)

118 a probabilidade de emiss˜ao do comportamento nos indiv´ıduos afetados. Adicionalmente, um requisito espec´ıfico da causalidade proibitiva – ou seja, da rela¸c˜ao causal entre normas como “n˜ao mate” e o fato de que determinado indiv´ıduo n˜ao matou – ´e o da pr´evia existˆencia da resposta juridicamente proibida com alguma for¸ca no organismo alvo, j´a que, muito embora possamos incentivar organismos a praticar condutas que eles n˜ao praticariam sem o incentivo, n˜ao temos como desincentivar concretamente a pr´atica de uma conduta quando o indiv´ıduo jamais a praticaria por si s´o. Uma probabilidade de 0% de emiss˜ao pode ser aumentada, mas n˜ao diminu´ıda. Apesar da simplicidade e abrangˆencia aparente deste modelo, o problema da causalidade ´e bem mais complicado do que pode parecer a` primeira vista, principalmente em raz˜ao da discrepˆancia entre a m´etrica utilizada pelas ciˆencias comportamentais (probabil´ıstica) e a rela¸c˜ao comportamental “pr´atica/absten¸ca˜o” (bin´aria). Uma rela¸c˜ao causal simples e clara poderia ser estabelecida de maneira contrafatual caso a lei fosse, por si s´o, suficiente para causar a emiss˜ao ou supress˜ao do comportamento: caso uma lei X pro´ıba Z e uma lei Y recompense Z, se verificarmos que o comportamento s´o ´e praticado por certo organismo na presen¸ca de Y e s´o n˜ao ´e praticada por outro organismo na presen¸ca de X, h´a uma rela¸ca˜o causal clara entre a lei Y e a pr´atica de Z, assim como entre a lei X e a absten¸c˜ao de Z. Isto seria mais dif´ıcil caso imagin´assemos uma situa¸ca˜o onde efetivamente h´a refor¸co ou puni¸ca˜o, mas estes n˜ao s˜ao suficientes para causar a mudan¸ca por si s´o – ou seja, falham no teste de contrafatualidade. Ainda que observemos que a conduta Z ´e praticada tanto na presen¸ca quanto na ausˆencia de Y, ´e poss´ıvel que exista uma rela¸ca˜o causal entre ambas, o que pode ou n˜ao ser evidenciado pelas circunstˆancias do pr´oprio comportamento Talvez este seja praticado mais vezes ou com maior rapidez, por exemplo.. Da mesma forma, a absten¸c˜ao de Z pode ocorrer mesmo quando X n˜ao existe e quando a existˆencia de X efetivamente ´e aversiva para o indiv´ıduo, como quando um indiv´ıduo que deseja furtar e sabe das consequˆencias deste ato decide n˜ao praticar a conduta por raz˜oes predominante morais – o que, mais uma vez, poder´a ou n˜ao nos dar evidˆencias circunstanciais. Uma poss´ıvel forma de testar estas hip´oteses seria a apresenta¸c˜ao de um outro est´ımulo que n˜ao ´e suficiente por si s´o para induzir a emiss˜ao do comportamento mas que a induz quando apresentada juntamente com a norma, concretizando a Lei da Soma Temporal146 . Este procedimento, no entanto, imp˜oes o´bices adicionais aos pesquisadores, j´a que a determina¸ca˜o de qual outro est´ımulo possui as propriedades indicadas (e, ainda, em quantidade suficiente) certamente seria uma tarefa dif´ıcil e custosa.

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“A LEI DA SOMA TEMPORAL. Prolonga¸c˜ao de um est´ımulo ou apresenta¸c˜oes repetidas dentro de certos ritmos limitadores possuem os mesmos efeitos que o aumento da intensidade.” (SKINNER, 1938, pg. 13)(tradu¸c˜ ao nossa)

119 E, de forma ainda mais grave, podemos dizer que, com a defini¸ca˜o que indicamos, ´e poss´ıvel a existˆencia de uma rela¸ca˜o causal entre lei e comportamento mesmo que a lei efetivamente seja desobedecida. Caso Z n˜ao seja praticado mesmo quando Y exista, ´e poss´ıvel que Z tenha sido refor¸cado por Y, mas n˜ao at´e um patamar suficiente para a pr´atica efetiva, da mesma forma que a existˆencia de X poder´a diminuir a probabilidade de que um indiv´ıduo pratique Z, mas este poder´a praticar Z algumas vezes ainda assim. Os experimentos para comprovar hip´oteses deste tipo s˜ao similares a`s que comprovariam as rela¸co˜es indicadas no par´agrafo anterior, mas teriam o ˆonus de ser ainda mais custosas e problem´aticas.

5.2.2 Playing by the Rules Neste livro (SCHAUER, 1991), Schauer trata de alguns aspectos espec´ıficos das normas - jur´ıdicas ou n˜ao - e de suas aplica¸c˜oes em situa¸co˜es pr´aticas, indicando algumas propriedades que, apesar de estarem presentes em boa parte dos instrumentos normativos que encaramos em nosso dia-a-dia (como a tendˆencia `a suprainclus˜ao e `a infrainclus˜ao das normas em geral), n˜ao s˜ao constatadas ou levadas em conta por n´os. Al´em de indicar a existˆencia destes fenˆomenos, o livro tamb´em fornece explica¸co˜es sobre a forma de funcionamento destes elementos e, ainda, o porquˆe de muitos destes serem t˜ao comuns (ou mesmo inevit´aveis) em virtualmente todos os contextos normativos que podemos observar.

5.2.2.1 Suprainclus˜ao, infrainclus˜ao e justifica¸co˜es Ao analisar alguns efeitos negativos da estrutura aberta da linguagem sobre a atividade normativa, Schauer observou que o vocabul´ario a que n´os precisamos recorrer para a confec¸ca˜o de normas, apesar de passar a impress˜ao de definitividade, possui um claro car´ater probabil´ıstico - ou seja, tende a incluir apenas rela¸c˜oes probabil´ısticas em suas prescri¸co˜es universalizantes (como a express˜ao generalizadora “c˜aes s˜ao barulhentos”, que continua sendo usada mesmo ap´os notarmos que apenas a maioria dos c˜aes s˜ao barulhentos, e n˜ao absolutamente todos147 ) – ocasiona os fenˆomenos lingu´ısticos de suprainclus˜ ao (“over-inclusion”) e infrainclus˜ao (“under-inclusion”). Segundo o autor, uma norma dever´a ser considerada suprainclusiva sempre que os

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“N´ os dizemos que fumar causa cˆ ancer, que cachorros tˆem pulgas, que comida mexicana ´e apimentada e que escoceses s˜ ao pessimistas sem supor que ao dizer isto n´os estamos afirmando verdades universais e invari´ aveis. Ao inv´es disto, n´ os generalizamos de forma probabil´ıstica e n˜ao inexor´avel, permitindo (SCHAUER, 1991, pg. 31)(tradu¸c˜ ao nossa)

120 termos utilizados em seu corpo inclu´ırem elementos que, idealmente, n˜ao deveriam estar nela contidos (como a inclus˜ao dos homic´ıdios cometidos em leg´ıtima defesa na norma “N˜ao matar´as”148 ). Inversamente, uma norma ser´a considerada infrainclusiva sempre que os termos utilizados em seu corpo n˜ao contiverem elementos que, idealmente, deveriam estar inclusos nela (como a n˜ao inclus˜ao de ursos ou tigres no corpo da regra “Cachorros s˜ao proibidos neste restaurante”149 ). Tanto a suprainclus˜ao quanto a infrainclus˜ao, por constrastarem uma situa¸ca˜o f´atica (a norma) com uma situa¸ca˜o idealizada ou ´otima (o que a norma deveria ser), necessariamente precisam ser definidas em fun¸c˜ao da justifica¸c˜ ao que subjace o comando normativo, o que implica em dizer que s´o poderemos afirmar que uma norma ´e supra ou infra inclusiva quando podemos definir um padr˜ao normativo ideal segundo o qual a norma inclui casos que n˜ao deveria ou n˜ao inclui casos que deveria. Muito embora nem toda norma deixe sua justificativa clara no corpo de seu texto ou por meio de outras indica¸co˜es feitas por seu criador, caso n˜ao tenhamos d´ uvidas quanto a` justificativa de uma regra em particular, roupagem comportamental assumida pela hip´otese de Schauer ´e clara, conforme veremos a seguir. Uma regra ser´a suprainclusiv a sempre que, muito embora comportamentos como aplicar a norma ao caso ou afirmar “Esta norma ´e aplic´avel” sejam encontrados com alta ou m´edia probabilidade de emiss˜ao, algum aspecto da situa¸ca˜o f´atica – aquele que foi exclu´ıdo durante a generaliza¸ca˜o probabil´ıstica, mas que agora ´e relevante para a resolu¸ca˜o do caso – faz com que estes mesmos comportamentos se tornem aversivos para o pr´oprio organismo ou, em alguns casos, pun´ıveis, o que costuma implicar no refor¸co das (ou em um contingenciamento de refor¸co a`s) respostas contr´arias. Caso um cachorro profundamente sedado seja trazido para um restaurante e todos os funcion´arios tenham sido instru´ıdos que a norma “Proibida a entrada de cachorros” s´o existe porque cachorros costumam ser barulhentos, o funcion´ario que atendesse os donos do cachorro possivelmente observaria o conflito da justificativa com a regra, podendo (a depender tanto da for¸ca de comportamentos que aplicam a regra quanto da for¸ca de comportamentos que

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“O predicado fatual de uma norma prescritiva ´e comumente apenas este tipo de generaliza¸c˜ao probabil´ıstica. N˜ ao importando se for “Nenhum c˜ao ser´a permitido”, “Limite de velocidade: 55”, Ningu´em com menos de 21 anos dever´ a consumir bebidas alco´olicas “, ou “N˜ao matar´as”, o predicado fatual de uma regra ´e a generaliza¸c˜ ao probabil´ıstica em respeito a alguma (usualmente mas n˜ao necessariamente n˜ ao mencionada) justifica¸c˜ ao. Na medida em que alguns c˜aes n˜ao criariam perturba¸c˜oes irritantes, alguns motoristas dirigiriam acima de 55 milhas por hora de forma n˜ao perigosa, algumas pessoas com menos de 21 anos podem usar ´alcool responsavelmente, e lguns homic´ıdios podem ser moralmente justific´ aveis, a generaliza¸c˜ ao do predicado fatual da norma ´e suprainclusivo” (SCHAUER, 1991, pg. 32)(tradu¸c˜ ao nossa)

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“O exemplo de “Nenhum c˜ ao ser´ a permitido” nos permitiu ver que n˜ao apenas alguns c˜aes poderiam n˜ ao causar perturba¸c˜ oes irritantes, mas tamb´em que algumas perturba¸c˜oes irritantes poderiam ser causadas por agentes que n˜ ao fossem c˜aes. O predicado f´atico ´e, portanto,infrainclusivo al´em de suprainclusivo.” (SCHAUER, 1991, pg. 32)(tradu¸c˜ao nossa)

121 aplicam a justificativa) ficar em d´ uvida ou decidir a favor de algum dos dois preceitos. E, adicionalmente, caso o funcion´ario proibisse a entrada mesmo assim, estimula¸c˜ao suplementar poderia ser providenciada: os donos do cachorro poderiam tentar convencˆe-lo ou outros funcion´arios poderiam relembr´a-lo de que o dono do restaurante poderia ficar “insatisfeito” se soubesse do caso. Esta defini¸ca˜o, obviamente, exige como pr´e-requisito que tanto a aplica¸c˜ao da regra quanto algum comportamento que implique na n˜ao aplica¸c˜ao da regra (“Tudo bem, este cachorro pode entrar”) existam em alguma for¸ca no aplicador da regra que est´a “em d´ uvida”. Este n˜ao necessariamente ´e o caso, j´a que os funcion´arios podem apenas aplicar automaticamenteas regras a todo e qualquer caso – ou, ainda, serem refor¸cados diretamente quando aplicam a regra a casos de supra ou infrainclus˜ao150 . E isto se torna ainda mais complicado quando observamos que, muitas vezes, n˜ao h´a consenso sobre a justificativa de determinada norma, de modo que um funcion´ario que s´o tem como instru¸ca˜o “Proibida a entrada de cachorros” pode imaginar que a justifa¸c˜ao da norma ´e, por exemplo, “Podem existir pessoas al´ergicas a cachorros no ambiente” ou “O dono do restaurante n˜ao gosta de cachorros”, proibindo-a em casos onde o fato de cachorros serem barulhentos fosse, por exemplo, a justifica¸c˜ao pensada pelo dono do restaurante. A infrainclus˜ao, por sua vez, ´e determinada como sendo o inverso sim´etrico da suprainclus˜ao: esta ocorre sempre que, muito embora comportamentos como aplicar a norma ao caso ou afirmar “Esta norma ´e aplic´avel” sejam encontrados com baixa probabilidade de emiss˜ao, o implica em uma probabilidade alta ou m´edia de emiss˜ao de comportamentos incompat´ıveis com a aplica¸ca˜o de normas ou de emiss˜ao de afirma¸c˜oes como “Esta norma n˜ao ´e aplic´avel”, algum aspecto da situa¸ca˜o f´atica – mais uma vez, algum dos elementos que foi exclu´ıdo da generaliza¸ca˜o – tornam a emiss˜ao dos primeiros comportamentos refor¸cadora ou refor¸ca´vel e, a depender da situa¸ca˜o, poder´a tornar a emiss˜ao dos segundos (ou seja, a n˜ao aplica¸c˜ao da norma) aversiva ou pun´ıvel. Este seria, por exemplo, o caso de um juiz que, ao receber a ordem de “decidir justamente”, decide aplicar a norma “Empresas poder˜ao ser responsabilizadas pelos defeitos de seus produtos” a casos onde o vendedor ´e uma pessoa f´ısica e n˜ao constitui uma empresa, considerando que as circunstˆancias justifiquem que a norma, textualmente direcionada aos empres´arios, aplique-se tamb´em aos vendedores individuais. Como indicamos anteriormente, por contrastar a aplica¸ca˜o das regras positivas com a aplica¸c˜ao das regras alternativas, o racioc´ınio de Schauer pressup˜oe a aceita¸c˜ao (ou positiva¸c˜ao) de uma justificativa que, por ser refor¸cadora para o indiv´ıduo que aplica as regras ou analisa as normas, torna a aplica¸c˜ao da regra em situa¸co˜es incompat´ıveis com

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O que ´e uma poss´ıvel explica¸c˜ ao comportamental do fenˆomeno que Schauer chama de “Entrenchment” (entrincheiramento) em rela¸c˜ ao especificamente `as regras.

122 a justificativa (suprainclusivas ou infrainclusivas) aversiva. Portanto, antes de encerrar nossa an´alise, precisamos pontuar alguns elementos adicionais pertinentes aos conceitos de “justifica¸ca˜o” ou “justificativa” das regras. O problema da relatividade de justificativas no contexto espec´ıfico das regras jur´ıdicas costuma ser atenuado pelo emprego de termos vagos nas pr´oprias leis ou, ainda, pela autoriza¸c˜ao do uso de autocl´ıticos oficialmente sancionados (como a aplica¸ca˜o de “princ´ıpios” ou a possibilidade de interpreta¸ca˜o das normas). Adicionalmente, a textura aberta da justificativa ´e corretamente tratada por Schauer durante a indica¸ca˜o da que estas tamb´em podem ser justificadas151 , hip´otese na qual cada justifica¸c˜ao adicional “refinar´a” – ou seja, refor¸car´a diferencialmente – a justificativa inicial e, por consequˆencia, a aplica¸ca˜o da regra. Isto, no entanto, apenas fornece aos ju´ızes instrumentos para o manuseio da norma; a forma como isto efetivamente ser´a feito (e qual resultado concreto produzir´a a aplica¸ca˜o das normas em conjunto com as justificativas, ou a n˜ao aplica¸ca˜o de normas com base em justificativas) depender´a de vari´aveis atuantes sobre o juiz na decis˜ao do caso concreto. A modifica¸ca˜o, neste caso, ´e t˜ao vari´avel quanto a pr´opria aplica¸c˜ao de autocl´ıticos jur´ıdicos – e a possibilidade de justifica¸ca˜o das justificativas, ao inv´es de fixar o sentido destas ou lhes conferir benef´ıcios normativos adicionais, apenas serve para fornecer aos ju´ızes argumentos adicionais, possivelmente exercendo um efeito predominantemente ret´orico (quanto mais espec´ıfica for a u ´ltima justifica¸c˜ao de determinada cadeia, mas refor¸cadora ela tender´a a ser para aquele que concordar com sua aplica¸c˜ao). Por isto, a justifica¸ca˜o de justificativas no contexto especificamente jur´ıdico parece exercer mais uma fun¸ca˜o persuasiva (e, neste ponto, podemos fazer referˆencia aos elos 5 e 6 do modelo s´ocio-intuicionista) do que uma fun¸c˜ao normativa. Obviamente, este conceito ser´a bastante u ´til caso decidamos descrever como um juiz espec´ıfico decidiu em determinado caso concreto – mas, caso desejemos descrever quais justifica¸co˜es de justificativas utilizadas pelo juiz influenciaram causalmente na tomada de determinada decis˜ao jur´ıdica, podemos indicar que este elemento, por ser elaborado de maneira post hoc, possui pouqu´ıssima relevˆancia para a descri¸ca˜o que pretendemos fazer.

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“Mas a justifica¸c˜ ao da exclus˜ ao de agentes violentos ou irritantes tamb´em possui sua pr´opria justifica¸c˜ ao – digamos, aumentar o divertimento dos clientes no restaurante. E se ent˜ao n´os perguntamos por que essa justificativa deve ser levada em conta, a resposta ´e que algo ainda mais profundo existe e que ´e a justifica¸c˜ ao desta justifica¸c˜ ao, tal qual o aumento da rentabilidade do restaurante. Nos poder´ıamos ir al´em, perguntando porque a rentabilidade deve ser perseguida e etc, at´e chegarmos a um n´ıvel de justifica¸c˜ ao fundamental” (SCHAUER, 1991, pg. 73)(tradu¸c˜ao nossa)

123 5.2.2.2 Tipos de sistemas decisionais Explicando os sistemas que podem ser obtidos a partir de diferentes formas de aplica¸ca˜o de regras e justificativas, Schauer exemplifica trˆes modos de tomada de decis˜ao: o modelo particularista 152 , onde o decisor sempre privilegia as justifica¸co˜es quando estas entram em confronto com as regras; o modelo baseado em regras 153 , onde o decisor sempre privilegia as regras quando estas se encontram em confronto com suas justifica¸co˜es, e o modelo do particularismo sens´ıvel `as regras 154 , onde o decisor estabelece diferentes crit´erios de discrimina¸c˜ao para determinar quando seguir´a as regras e quando seguir´a as justifica¸co˜es. Cada um destes modelos possui suas vantagens e desvantagens, de forma que todos podem ser adotados por diferentes sistemas jur´ıdicos e produzir resultados u ´teis - a depender do que cada comunidade jur´ıdica desejar. Enquanto o modelo particularista gera uma total imprevisibilidade das decis˜oes a serem aplicadas em concreto para todos aqueles que conhecem as regras, mas desconhecem as justifica¸c˜oes substantivas a serem consideradas na decis˜ao (o que promove decis˜oes mais justas155 , mas pode gerar inseguran¸ca jur´ıdica), o modelo baseado em regras, ao rev´es, gera uma total previsibilidade destas mesmas decis˜oes, mas torna as justifica¸c˜oes substantivas completamente irrelevantes (o que promove seguran¸ca jur´ıdica, mas pode gerar decis˜oes injustas). ´ digno de nota, ainda, que as diferen¸cas de efeitos entre as trˆes teorias s´o existem E enquanto estas compartilharem o pressuposto de que, durante a tomada da decis˜ao, h´a algum grau de assimetria de informa¸c˜ao entre os o´rg˜aos decisores e os sujeitos aos quais a decis˜ao ser´a aplicada. Caso todos os agentes envolvidos no julgamento estejam plenamente

152

“A tomada de decis˜ ao particularista foca na situa¸c˜ao, caso ou ato particular e, com isso, engloba tudo sobre o evento espec´ıfico que catalisou a decis˜ao e que ´e relevante para a decis˜ao a ser feita.” (SCHAUER, 1991, pgs. 77-78)(tradu¸c˜ao nossa)

153

Em contrapartida, o segundo tipo de tomada de decis˜ao, deixando de levar em considera¸c˜ao algumas propriedades do evento particular que um procedimento de decis˜ao particularista reconheceria, ´e aquele ao qual me refiro como baseado em regras.” (SCHAUER, 1991, pg. 78)(tradu¸c˜ao nossa)

154

“Esta forma de tomada de decis˜ ao trata as regras como heur´ısticas no sentido de serem transparentes em rela¸c˜ ao ` as suas justifica¸c˜ oes substantivas, mas permite que suas pr´oprias existˆencias e efeitos enquanto heur´ısticas se tornem fatores na determina¸c˜ao sobre se as regras devem ser deixada de lado quando os resultados que estas indicam divergem dos resultados indicados pela aplica¸c˜ao direta da justifica¸c˜ ao substantiva.” (SCHAUER, 1991, pg. 97)(tradu¸c˜ao nossa)

155

A depender, ´e claro, do qu˜ ao justas consideramos as pr´oprias justifica¸c˜oes utilizadas pelos ju´ızes. Este modelo significa que o juiz poder´ a ignorar uma regra sempre que considerar seus efeitos concretos injustos, o que efetivamente pode evitar que decis˜oes in´ıquas ocorram – mas n˜ao h´a nada neste modelo indicando que estas decis˜ oes particularistas necessariamente ser˜ao mais “justas” do que as decis˜ oes baseadas em regras. O modelo particularista apenas afirma que as decis˜oes ser˜ao tomadas caso-a-caso com base nas justifica¸c˜ oes, e n˜ ao que seus resultados necessariamente ser˜ao otimizados.

124 cientes de todas as regras, todas as justificativas e todos os crit´erios de aplica¸ca˜o de regras e justificativas, tanto as regras quanto as justificativas exercer˜ao o mesmo papel normativo (a saber, indicar as normas que ser˜ao aplicadas de acordo com o crit´erio conhecido por todos), e a distin¸ca˜o quanto aos efeitos dos diferentes modelos, por conseguinte, colapsar´a. Neste caso, a distin¸c˜ao entre os trˆes tipos de modelo ser´a relevante apenas para fins conceituais e de determina¸ca˜o do conte´ udo das decis˜oes, j´a que, muito embora todos produzam os mesmos efeitos - previsibilidade perfeita das decis˜oes e estrita correla¸c˜ao entre o preceito normativo (seja norma ou justifica¸c˜ao) aplic´avel ao caso e a decis˜ao efetivamente tomada) – ainda poderemos dizer que as justifica¸co˜es “justificam” as regras e que, de acordo com o crit´erio pr´e-determinado, poderemos ignorar todas as justifica¸co˜es (no modelo baseado em regras), todas as regras (no modelo particularista) ou, em modelos sens´ıvel a regras, algumas regras e algumas justifica¸co˜es, a depender dos casos e dos crit´erios utilizados. Devido `a diversidade dos condicionamentos a que decisores s˜ao submetidos antes de efetivamente tomarem decis˜oes jur´ıdicas, ´e importante destacar que o modelo de particularismo sens´ıvel a`s regras n˜ao ´e um simples meio-termo ponderado entre o particularismo e o modelo baseado em regras. Em verdade, talvez nem seja poss´ıvel definir substantivamente todos os elementos que devem guiar as decis˜oes neste modelo, j´a que a concess˜ao de poder aos ju´ızes para que estes decidam se a regra deve ou n˜ao ser aplicada ao caso faz com que a aplica¸c˜ao ou n˜ao das regras seja determinada por uma gama de fatores extremamente complexa. Podemos imaginar, por exemplo, que um juiz deste modelo valorize os benef´ıcios das regras e s´o as afaste em casos verdadeiramente extremos, mantendo-as mesmo quando seu resultado ´e moderadamente injusto. Neste caso, o particularismo sens´ıvel a`s regras seria uma esp´ecie de modelo misto com vi´es (“bias”) pr´o-regras. Caso, ao rev´es, um juis deste modelo efetivamente reconhecesse os valores das normas positivas, mas s´o admitisse decis˜oes injustas quando as defasagens causadas pelas regras fossem m´ınimas, o resultado pr´atico que obter´ıamos seria uma esp´ecie modelo misto com vi´es pr´o-justifica¸c˜oes. Estas duas categorias s˜ao apenas duas demarca¸co˜es arbitr´arias feitas no interior de um mesmo espectro, e n˜ao novas polariza¸c˜oes no interior deste modelo: podemos imaginar dois hipot´eticos ju´ızes pr´o-regras, cada um com um vi´es diferente para diferentes regras ou com um mesmo vi´es, mas com for¸cas diferentes, em rela¸ca˜o uma mesma regra, assim como podemos imaginar ju´ızes pr´o-justifica¸co˜es que apliquem justifica¸co˜es diferentes, que apliquem as mesmas justifica¸co˜es com frequˆencias diferentes ou que est˜ao localizados mais pr´oximos do particularismo puro ou mais pr´oximo do modelo particularista com bias pr´oregras. Determinar qual seria o “ponto m´edio” (uma esp´ecie de modelo misto puro) deste espectro talvez seja o mesmo do que determinar em que ponto exato a adi¸c˜ao de um gr˜ao de areia a um pequeno monte faria com que este deixe de ser apenas um monte e passe a compor uma duna.

125 O particularismo e o modelo baseado em regras, por tratarem de dois casos limite (apenas aplica¸c˜ao de regras ou apenas aplica¸c˜ao de justifica¸c˜oes), possuem fronteiras bem delimitadas. O particularismo sens´ıvel a regras, por sua vez, ´e vol´atil, e pode se apresentar de diversas formas e com diversas inclina¸co˜es. Quando indicamos que o particularismo sens´ıvel pode ser pr´o-regras ou pr´o-justifica¸co˜es, portanto, n˜ao estamos tentando delimitar novas fronteiras no interior deste modelo, mas sim demonstrando que nossas possibilidades classificat´orias passam longe de capturar perfeitamente quantas combina¸c˜oes de particularismos sens´ıveis – que talvez sejam os modelos mais aptos a descrever o funcionamento de boa parte dos sistemas jur´ıdicos contemporˆaneos – s˜ao logicamente poss´ıveis e teoricamente aplic´aveis.

126 ˜ 6 CONCLUSAO

Ap´os um longo per´ıodo recheado de gl´orias, prest´ıgio e aten¸c˜ao cient´ıfica, o behaviorismo parece ter sido condenado a` obscuridade nos estudos contemporˆaneos, dado lugar ao cognitivismo no seio da academia cient´ıfica mainstream. Enquanto behavioristas se mant´em firmes em suas cren¸cas e se recusam a abandonar o funcionalismo em nome da cogni¸ca˜o (com algumas exce¸co˜es, j´a que nem mesmo cientistas comportamentais resistem facilmente aos charmes do mentalismo eventual), cognitivistas pregam a supera¸ca˜o do modelo behaviorista e o triunfo do estudo das opera¸co˜es mentais sobre o estudo das opera¸co˜es comportamentais, e estas diferen¸cas contribuem ainda mais para a exclus˜ao do modelo behaviorista das considera¸co˜es realizadas por te´oricos cognitivistas. Ainda assim, a tradi¸ca˜o behaviorista continua a se recusar a morrer e, ainda que longe do olhar acadˆemico m´edio, conduz suas pesquisas comportamentais com o mesmo zelo de antigamente, mas agora em paralelo `as pesquisas cognitivistas realizados pela maioria dos psic´ologos. Uma das poss´ıveis explica¸co˜es para esta persistˆencia behaviorista – n˜ao apenas como teoria acadˆemica, mas tamb´em como pr´atica cient´ıfica – reside no fato de que, muito embora este tenha sido, em um ju´ızo estat´ıstico, academicamente suplantado pelo cognitivismo, isto n˜ao ocorreu da mesma forma que costuma ocorrer outras disciplinas cient´ıficas. Tanto a astrologia quanto a frenologia fizeram predi¸co˜es emp´ıricas que vieram a ser falsificadas em per´ıodos posteriores, e sua queda se deu justamente devido a` cria¸ca˜o de teorias capazes de oferecer explica¸co˜es melhores. At´e mesmo teorias t˜ao robustas e elegantes quanto a lei da gravita¸ca˜o universal de Newton est˜ao sujeitas a` falsifica¸c˜ao, e ´e precisamente esta dose de ceticismo obrigat´orio que torna a ciˆencia t˜ao eficiente. Ainda que as teorias behavioristas de fato sejam falsas e este trabalho, apesar de tudo, tenha sido constru´ıdo em pilares de sal e terra, ´e ineg´avel que a morte tranquila e certa propiciada pela falsifica¸ca˜o te´orica foi negada pela academia psicol´ogica aos cientistas comportamentais. A revolu¸ca˜o cognitiva n˜ao foi uma falsifica¸c˜ao, ela foi um descr´edito; a produ¸ca˜o emp´ırica behaviorista simplesmente foi repatriada por alguns te´oricos e abandonada por outros. Cientificamente, o cognitivismo n˜ao matou o behaviorismo – ou, ao menos, n˜ao no mesmo sentido em que a astronomia matou a astrologia ou a qu´ımica matou a alquimia. E, ao que tudo indica, esta silenciosa supress˜ao ´e justamente o fator que permite a curiosa coexistˆencia de duas teorias e pr´aticas cient´ıficas que, apesar de potencialmente contradit´orias (a depender das defini¸co˜es adotadas por cada te´orico para cada uma), possuem pr´aticas cient´ıficas distintas que, ao menos at´e agora, parecem ser igualmente v´alidas. E ´e importante destacar que esta n˜ao foi a primeira revolu¸ca˜o “supressiva” da psicologia. De fato, a pr´opria febre behaviorista pr´e-1960 parece ter surgido de uma “revolu¸ca˜o”

127 deste tipo, que ocorreu quando te´oricos behavioristas depuseram lenta e silenciosamente modelos mentalistas anteriormente vigentes, processo este que foi detalhadamente exposto no artigo “The Mythical Revolutions of American Psychology”, de Thomas H. Leahey. Ao comentar sobre a “revolu¸ca˜o behaviorista”, o autor pontua: “A conclus˜ao mais suportada pela evidˆencia ´e que a psicologia n˜ao experienciou nenhuma revolu¸c˜ao behaviorista em 1913. A psicologia introspectiva n˜ao constitui um paradigma a ser derrotado, e muito embora a psicologia de fato tenha mudado nos anos antes de 1913, as mudan¸cas foram graduais e apenas vagamente percebidas e n˜ao ocorreram em resposta a anomalias emp´ıricas demandando solu¸c˜oes radicais. A psicologia behaviorista emergiu continuamente – e rapidamente – a partir da psicologia introspectiva, e a assim chamada revolu¸ca˜o constituiu reconhecimento de mudan¸cas ao inv´es de feitura de mudan¸cas. A u ´ltima pergunta, se o behaviorismo constituiu um novo paradigma, ´e a primeira pergunta para se perguntar sobre a “revolu¸ca˜o cognitiva.” (LEAHEY, 1992, pg. 313)(tradu¸c˜ao nossa) E, em rela¸c˜ao `a revolu¸c˜ao cognitivista: “A chegada da psicologia cognitiva ´e melhor considerada, n˜ao como a cria¸ca˜o revolucion´aria de um novo paradigma assassinando o mais antigo do behaviorismo, mas como o aparecimento de uma nova forma de behavioralismo156 baseado em uma nova tecnologia, o computador. Por volta dos anos 1950, behavioristas S-R mediacionais j´a estavam procurando por formas de representar o processamento interno de est´ımulos, e a met´afora do computador oferecia uma linguagem melhor do que a nota¸c˜ao S-R mediacional. Ademais, a existˆencia de inteligˆencia artificial – a manufatura de m´aquinas processadoras de informa¸c˜oes se comportando inteligentemente e intencionalmente – aumentaram a f´e em processos mentais mediadores mostrando que eles poderiam ser incorporados em aparatos materiais ao inv´es de almas imateriais (J. MILLER, 1983). A psicologia do processamento de informa¸ca˜o, n˜ao menos do que qualquer forma de behaviorismo hist´orico, mira na descri¸ca˜o, predi¸ca˜o, controle e explica¸ca˜o do comportamento, sem que nenhuma aten¸c˜ao especial seja dada a` experiˆencia consciente (TULVING, 1989). Talvez durante os dias febris dos

156

Nota do tradutor: o autor usa o termo “behavioralismo” (behavioralism) para descrever, de forma gen´erica, programas psicol´ ogicos que se dedicam `a explica¸c˜ao, predi¸c˜ao, descri¸c˜ao e controle de comportamentos, n˜ ao importando a sua vertente. O termpo ´e empregado com sentido diferente de “behaviorismo”, que se refere especificamente aos modelos de psicologia behavioralista que foram o foco da aten¸c˜ ao acadˆemica entre 1930 e 1960, dentre os quais podemos incluir o pr´oprio behaviorismo radical.

128 anos 1960, outra estrada, menos behaviorista, pudesse ter sido tomada – mas ela n˜ao foi tomada, ao menos n˜ao pelo corpo principal de psic´ologos experimentais. A psicologia mainstream de 1993 se mant´em t˜ao firmemente behavioralista quanto era em 1910.” (LEAHEY, 1992, pg. 316)(tradu¸ca˜o nossa) Al´em dos dissensos puramente conceituais e da ausˆencia de refuta¸c˜ao definitiva de teses exclusivamente behavioristas ou cognitivistas, que talvez sejam incˆomodos apenas para aqueles que acompanham o debate contemporˆaneo de perto, problemas ainda maiores parecem assolar a condu¸ca˜o da psicologia da forma como ela ´e feita atualmente. Segundo os pesquisadores do “Reproducibility Project”, uma iniciativa acadˆemica que teve por objetivo realizar uma an´alise da reprodutibilidade de artigos publicados em importantes jornais da psicologia (OPEN SCIENCE COLLABORATION, 2015), apenas 39% dos experimentos analisados efetivamente produziram os mesmos resultados durante a tentativa de replica¸c˜ao. Se estes dados realmente puderem ser tidos como representativos da literatura atual, isto significaria que 61% das publica¸c˜oes cient´ıficas psicol´ogicas contemporˆaneas com absolutamente nenhum valor cient´ıfico. Os dados parecem ser um pouco mais s´olidos em rela¸ca˜o especificamente a estudos cognitivistas, que possuem confiabilidade de 50%. No entanto, esta estimativa n˜ao ´e nem um pouco animadora – na pr´atica, as chances de vocˆe encontrar um artigo cognitivista que apresenta resultados falsos seriam as mesmas de vocˆe tirar “cara” em um jogo de “cara ou coroa”. Para que possamos reconstruir a nossa pr´atica cient´ıfica psicol´ogica e fincar as suas bases em evidˆencias s´olidas, precisamos abandonar as divis˜oes conceituas entre as diferentes abordagens cient´ıficas, revisar os m´etodos de pesquisa atualmente empregados por boa parte dos pesquisadores e promover uma unifica¸ca˜o dos dados coletados por ambas as abordagens ao longo de sua existˆencia. O momento pede por integra¸c˜ao de evidˆencias, e n˜ao por separa¸ca˜o te´orica. A literatura behaviorista precisa ser revista e comparada com a cognitivista, e o modelo que prevalecer – ou o modelo novo que surgir deste conflito – precisa integrar os pontos v´alidos de ambas as abordagens para revitalizar este campo cient´ıfico. Em sua exposi¸c˜ao de argumentos a favor do behaviorismo radical (ou de uma nova forma de behaviorismo), a Stanford Encyclopaedia of Phylosophy ressaltou o seguinte ponto: ”Seria a contenda contra o behaviorismo definitiva? Decisiva? Paul Meehl ressaltou d´ecadas atr´as que teorias na psicologia parecem desaparecer n˜ao devido a` for¸ca da refuta¸c˜ao decisiva, mas sim porque os pesquisadores perderam interesse em sua orienta¸c˜ao te´orica (Meehl 1978). Uma implica¸ca˜o da tese de Meehl ´e que um ”ismo”que j´a foi popular, n˜ao tendo sido decisivamente refutado, pode restaurar sua prominˆencia anterior caso se modifique ou transforme de forma a incorporar respostas a cr´ıticas. E qual o significado disto para o

129 behaviorismo? Isto pode significar que alguma vers˜ao da doutrina pode voltar a repercutir.”(GRAHAM, 2015)(tradu¸c˜ao nossa) E a partir disto n´os podemos concluir que, apesar da atual predominˆancia do cognitivismo na academia, o futuro das ciˆencias psicol´ogicas em si, devido `a pr´opria instabili´ poss´ıvel dade conceitual historicamente observada no campo, ´e potencialmente incerto. E que o cognitivismo continue seus avan¸cos e eventualmente falsifique teorias pr´oprias do behaviorismo, assim como ´e poss´ıvel que o interesse dos acadˆemicos pelo behaviorismo volte a aflorar e exatamente o oposto aconte¸ca. Independentemente dos resultados de ambas as empreitadas, podemos afirmar com alguma certeza que esfor¸cos neste sentido certamente revigorariam a literatura do campo e expandiriam os conhecimentos que atualmente temos dispon´ıveis. Talvez ainda n˜ao possamos indicar se algum dos dois campos se sagrar´a vencedor ao final desta “disputa”, mas n˜ao h´a d´ uvida alguma de que a verdadeira vencedora de empreendimentos deste tipo, n˜ao s´o na psicologia como em todos os campos do conhecimento, ´e a pr´opria ciˆencia. E, como uma disciplina que justificadamente privilegia o dogm´atico em desfavor do emp´ırico, talvez o direito tenha ainda mais raz˜oes para ser reescrito em termos essencialmente psicol´ogicos quando, enfim, conhecermos nossa realidade o suficiente para que a modula¸c˜ao de comportamentos de uma sociedade seja n˜ao apenas o desejo normativo expresso por meio de uma lei, mas tamb´em o resultado efetivamente obtido por meio do emprego de t´ecnicas que foram criadas como a maioria das t´ecnicas eficientes o s˜ao: por meio da integra¸ca˜o de esfor¸cos e da condu¸c˜ao de pesquisas com car´ater cient´ıfico.

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