Direito e linguagem: aspectos filosóficos

June 15, 2017 | Autor: Noel Struchiner | Categoria: Teoria do Direito, Filosofia do Direito
Share Embed


Descrição do Produto

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

Direito e linguagem: aspectos filosóficos Fábio P. Shecaira1 & Noel Struchiner2 RESUMO: Por razões práticas relativas à importância do texto jurídico escrito, estudiosos do direito sempre foram, no mínimo, estudiosos amadores da linguagem. Hoje, diante do legado que nos deixou a filosofia da linguagem do século XX, o estudioso do direito tem razões intelectuais para superar o amadorismo de outros tempos e fazer-se um estudioso sistemático da linguagem. Neste artigo, começamos por explicar o problema perene da interpretação de textos jurídicos e, em seguida, discutimos a importância da filosofia da linguagem para a filosofia do direito. Na segunda parte do artigo, a parte mais filosófica, recebe ênfase a obra de H.L.A. Hart. Palavras-chave: Interpretação jurídica; filosofia da linguagem; filosofia do direito. ABSTRACT: For practical reasons pertaining to the importance of written legal texts, jurists have always been at least amateur theorists of language. Today, given what he have learned from 20th century writings in the philosophy of language, jurists have acquired intellectual reasons to leave behind their traditional dilettantism and to engage in a systematic exploration of language. In this paper, we begin by explaining the perennial problem of the interpretation of legal texts, and then we discuss the importance of philosophy of language for philosophy of law. In the second, more philosophical part of the paper emphasis will be given to the work of H.L.A. Hart. Keywords: Legal interpretation; philosophy of language; philosophy of law.

Introdução Juristas são estudiosos da linguagem3. Eles sempre estudaram a linguagem por obrigação: isto é, porque a sua profissão exige a interpretação e aplicação de textos legais complexos. A preocupação dos juristas com a interpretação de textos resultou em um rico e sofisticado catálogo de regras e técnicas interpretativas cuja análise seria útil para estudiosos da linguagem em qualquer disciplina. O século XX trouxe motivos adicionais para que os juristas se interessassem pela linguagem (pelo menos os juristas acadêmicos, que têm gosto especial pela especulação filosófica). Juristas aproveitaram conquistas teóricas obtidas por filósofos da linguagem durante o século XX para renovar e esclarecer discussões filosóficas tradicionais sobre a natureza das regras jurídicas, a relação entre direito e moral e a relação entre direito e coerção. Neste artigo, pretendemos discutir esses dois aspectos da relação entre o estudo da linguagem e o estudo (e prática) do direito. Primeiro, discutiremos a importância do estudo da linguagem para a interpretação de textos legais, atividade indispensável para todos que trabalham com o direito e rotineiramente buscam orientação nos textos legais a que a comunidade jurídica atribui autoridade (leis, decretos, decisões judiciais etc.). Em seguida, trataremos de como a filosofia da linguagem tem-se mostrado útil para a discussão de questões teóricas que, por um                                                                                                                         1

Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito, UFRJ. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ. 2   Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio. Professor Colaborador do Programa de PósGraduação em Filosofia da PUC-Rio. Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.   3 Usamos o termo “jurista” de maneira ampla, para cobrir tanto os chamados “operadores” do direito (juízes, advogados, promotores etc.) quanto aqueles que realizam pesquisa acadêmica sobre o direito.

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

lado, têm relação mais remota com a rotina de trabalho dos profissionais do direito, mas, por outro lado, têm mobilizado os filósofos do direito há séculos. Deve ficar claro que este artigo foi escrito por autores que têm grande simpatia pela ideia de que o estudo do direito deve se servir das conquistas recentes da filosofia da linguagem. Numa tentativa de demonstrar isenção, discutiremos ao final do artigo algumas críticas importantes à abordagem (por assim dizer) linguística do estudo do direito. Sabemos, no entanto, que a perfeita isenção é impossível. A influência que tem sobre nós a abordagem linguística – sobretudo a abordagem linguística de H.L.A. Hart, autor cuja obra recebe destaque na segunda parte do artigo – molda fundamentalmente a nossa maneira de entender o direito. Até mesmo o que dizemos na primeira parte do artigo (a parte menos filosófica) é informado pelo que pensamos a respeito da linguagem. Por exemplo, a distinção que fazemos entre tipos de textos legais duvidosos agradaria muito mais a Hart e a hartianos contemporâneos do que a autores como Lon Fuller (um dos mais famosos rivais intelectuais de Hart). 1 Linguagem e interpretação legal A cultura jurídica é uma cultura formalista (SCHAUER, 2011). Ela presta muita deferência à autoridade e, portanto, aos documentos formais através dos quais a autoridade se manifesta (leis, decretos, sentenças judiciais etc.). Para o jurista, problemas legais se resolvem primariamente através do apelo a esses documentos formais, e apenas secundariamente através de reflexão sobre como lidar com os problemas de maneira política, moral, social ou economicamente eficiente. O profissional do direito que ousa recorrer à reflexão política, moral, social etc., a despeito do que dizem os documentos formais, arrisca-se a ser acusado de “ativista” – ofensa grave no mundo do direito. O uso de textos é um aspecto central do formalismo que caracteriza o pensamento jurídico. Quando textos legais são claros e precisos, o jurista é capaz de proceder de maneira relativamente mecânica. Mas muitas vezes os textos não são claros e precisos. Textos legais são frequentemente vagos, ambíguos e inconsistentes. Às vezes, textos legais não apresentam qualquer tipo de imprecisão linguística – isto é, são literalmente claros – mas ainda assim parecem prescrever soluções para problemas legais que “não fazem sentido” à luz do que se sabe sobre o mundo e sobre o próprio direito. Pense no exemplo clássico do cirurgião processado no século XVII por ter violado uma lei que proibia literalmente que se “derramasse sangue nas ruas” (SCHAUER, 2009, p.155-164). O cirurgião não participou de um duelo, não cometeu latrocínio, nem fez nada parecido. Ele simplesmente realizou uma cirurgia de emergência e acabou (apesar das suas boas intenções) derramando sangue na rua. Nesse caso, a aplicação literal da lei “não faz sentido”: isto é, ela contraria o que se assume seja o fim real da lei, ou seja, impedir o cometimento de atos violentos e injustos como o homicídio, latrocínio etc. Juristas, para repetir, lidam com textos e, frequentemente, com textos duvidosos. A dúvida às vezes deriva de imprecisão linguística (vagueza, ambiguidade, inconsistência), e outras vezes da falta de harmonia entre o sentido literal – convencional – do texto e o seu propósito presumido. Experimentados na arte de lidar com textos duvidosos, juristas desenvolveram ao longo dos séculos uma série de regras e técnicas interpretativas importantes. Essas regras e técnicas variam sutilmente de um sistema jurídico para o outro, mas há algumas tendências globais que merecem menção. As tendências globais são explicadas por preocupações técnicas e políticas que quase todo jurista experimenta, particularmente no mundo ocidental, onde se prezam valores como separação de poderes, segurança jurídica e democracia.

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

Várias regras de interpretação – também conhecidas como máximas ou cânones de interpretação – têm a função de resolver problemas relacionados à imprecisão linguística. A regra ejusdem generis, por exemplo, requer que termos vagos sejam entendidos como se abrangessem apenas objetos ou condutas similares àquelas explicitamente mencionadas no texto. Frederick Schauer descreve um caso hipotético e outro real do emprego dessa regra: Um dispositivo legal que exija inspeção governamental de “frutas, legumes, grãos e outros produtos” deve, de acordo com esse cânone, ser entendido como incluindo apenas alimentos entre “outros produtos”, e não veículos motorizados ou televisões. E assim, em Circuit City Stores, Inc. v. Adams, a Suprema Corte decidiu que um dispositivo na Lei Federal de Arbitragem que aplicava uma parte da lei a “marinheiros, ferroviários, ou qualquer outra classe de trabalhadores envolvidos em comércio internacional ou interestadual” devia ser interpretado como sendo aplicável apenas a trabalhadores de transporte, e não aos demais trabalhadores do comércio internacional e interestadual.4

Para dar outro exemplo, o direito penal de diversos países consagra a regra que diz que dispositivos penais ambíguos devem ser interpretados de maneira favorável ao réu. Essa regra pode ser entendida como um corolário do princípio liberal nullum crimen sine lege: seria injusto condenar um cidadão pelo cometimento de um crime cuja descrição legal é dúbia. Outras regras interessantes são expressio unius est exclusio alterius (a omissão deve ser interpretada como exclusão) e a regra que determina que dispositivos legais in pari materia (sobre o mesmo assunto) sejam interpretados de maneira sistemática e coerente. Esses e outros cânones – cujos nomes latinos sugerem história longa e pedigree nobre – são fruto da significativa experiência jurística com problemas de interpretação. Técnicas interpretativas não são exatamente o mesmo que regras de interpretação. Regras podem ser formuladas como prescrições concisas e claras; técnicas, por outro lado, consistem em métodos de interpretação relativamente complexos, receitas que incluem diferentes ingredientes a serem empregados em etapas sucessivas. Considere, por exemplo, o método comumente chamado de “histórico” ou “teleológico-subjetivo”. O método diz que leis devem ser interpretadas de acordo com as intenções do legislador; e as intenções do legislador devem ser identificadas através do estudo dos debates parlamentares que antecederam a promulgação da lei, assim como de eventuais pareceres de comissões legislativas especializadas, pronunciamentos do executivo em caso de tentativa de veto, e assim por diante. O método histórico não é simples e até mesmo juristas experientes às vezes o utilizam de maneira inadequada. Há um exemplo brasileiro famoso de recurso ao método histórico que, embora plausível, parece envolver uma tentativa amadora de realizar algo que exige muito mais cuidado e rigor. Discutia-se, no HC 82424/RS (2003), a aplicabilidade de uma cláusula constitucional sobre o “racismo” a um caso envolvendo (suposta) discriminação contra judeus. Um dos votos dos ministros do STF dizia o seguinte: O elemento histórico [...] converge para dar a “racismo” o significado de preconceito ou de discriminação racial, mais especificamente contra a raça negra. Com efeito, a Emenda Aditiva 2P00654-0 do Constituinte

                                                                                                                        4

Texto original: “A statutory provision requiring governmental inspection of ‘fruits, vegetables, grains, and other products’ should under this canon be understood to include only foodstuffs, not motor vehicles or televisions, within ‘other products.’ And thus in Circuit City Stores, Inc. v. Adams, the Supreme Court held that a provision in the Federal Arbitration Act applying a portion of that act to ‘seamen, railroad employees, or any other class of workers engaged in foreign or interstate commerce’ should be interpreted to apply only to transportation workers and not to all non-transportation employees working in interstate or foreign commerce.” (SCHAUER, 2009, p. 169)    

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).     Carlos Alberto Caó (“A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”), apresentada em 12.01.1988, a qual deu origem ao artigo 5º, XLII, da Constituição, tinha a seguinte justificação: “Passados praticamente cem anos da data da abolição, ainda não se completou a revolução política deflagrada e iniciada em 1988. Pois imperam no país diferentes formas de discriminação racial [...]”

Moreira Alves, o autor desse voto, cita Caó, menciona brevemente as opiniões de mais um constituinte favorável à Emenda Aditiva e conclui que o propósito do legislador era coibir a discriminação racial contra o negro. Moreira Alves argumenta ainda que judeus não compõem realmente uma raça e que, portanto, não há que se falar em racismo contra judeus. Para nós, ficam as seguintes dúvidas. Como sabe Moreira Alves o que pensavam os demais parlamentares que aprovaram a Emenda (além dos dois constituintes mencionados)? Talvez eles tivessem em mente uma noção mais ampla de “racismo”, isto é, uma noção que englobasse a discriminação contra grupos que, como os judeus, sentem-se culturalmente vinculados e promovem a endogamia5. E se os demais parlamentares tivessem de fato uma noção ampla de racismo em mente, haveria razão para assumir que a noção mais estreita de Caó tem prioridade? Como promotor da Emenda, Caó presumivelmente gozava de uma certa influência; mas, no final das contas, a Emenda dependeu da aprovação de outros parlamentares, cuja opinião não poderia ser democraticamente ignorada. Na verdade, há uma dúvida ainda mais fundamental do que todas essas. O discurso de Caó sugere que ele estava particularmente preocupado com o racismo contra negros. Mas como saber se Caó também não tinha uma simpatia não divulgada pela causa judia, e se ele não gostaria que a discriminação contra judeus fosse igualmente proibida pela “sua” Emenda? Técnicas interpretativas foram desenvolvidas não só para lidar com problemas estritamente linguísticos (qual é o escopo de um termo relativamente impreciso como “racismo”?), mas também para dar conta daqueles textos que, apesar de literalmente claros, “não fazem sentido”. As técnicas são muitas, e o seu grande número evidencia uma preocupação quase obsessiva com a formulação de métodos que permitam a eventual flexibilização do sentido literal de textos legais sem que, com isso, a ordem jurídica seja subvertida. Um membro do nosso judiciário arriscou-se a formular o seguinte catálogo de métodos de interpretação: “[A]o lado dos métodos literal, histórico, comparado e lógico-sistemático, outros métodos de exegese, mais modernos, vêm se impondo nos arraiais da hermenêutica, tais como o teleológico, o evolutivo, o axiológico e o calcado na lógica do razoável”6. Boa parte desses métodos, sobretudo os supostamente “mais modernos”, envolve tentativas de discernir aquilo que os textos legais prescrevem implicitamente: seus fins tácitos, seus propósitos subjacentes, seu “espírito”. Por exemplo, o fim implícito da lei contra o derramamento de sangue nas ruas era reprimir atos violentos, categoria em que não se enquadra a conduta do cirurgião que realiza um procedimento de emergência. De forma análoga, vai contra o espírito de uma placa que proíbe “dormir na estação de trem” a atitude do policial que reprime um trabalhador por cair no sono enquanto espera o próximo trem (FULLER, 1958). O objetivo da placa – presume-se – é impedir que a estação seja usada como abrigo por moradores de rua. A aplicação literal da placa não faz sentido no caso do trabalhador.                                                                                                                         5

Durante o processo, o Ministro Maurício Corrêa expressou dúvidas parecidas com as nossas: “Será que todos os constituintes votaram a disposição tão-só com esse desiderato? Ou haveria elastério maior para incluir, como no caso, discriminações tidas como de racismo contra outros segmentos da sociedade brasileira?”. Alves ofereceu resposta a esses considerações; mas as respostas, na nossa opinião, são pouco convincentes. 6 REsp 35518 / SP (1993).

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

A existência de diversos métodos de interpretação é um sintoma do fato de que a busca do propósito implícito da lei é um procedimento delicado em uma cultura formalista onde o texto goza de autoridade. No século XVIII, Cesare Beccaria disse não haver “nada mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário consultar o espírito da lei. Adotar esse axioma é quebrar todos os diques e deixar que as leis voguem à torrente das opiniões” (BECCARIA, 2003, p. 22). Hoje, nem todos os juristas são tão zelosos quanto Beccaria, e o recurso ao espírito da lei é frequente. Mas, ainda assim, a maioria dos juristas parece proceder como se houvesse ao menos uma presunção em favor da aplicação da lei no seu sentido literal ou convencional (VOGENAUER, 2006, p. 684-685). Derruba-se a presunção apenas quando há razões fortes para isso, isto é, apenas quando o sentido literal ou convencional da lei está em flagrante conflito com o seu propósito subjacente. O nosso próprio juiz, mencionado há pouco, depois de listar as várias técnicas interpretativas “modernas” de que ele poderia ter-se valido, acaba por preferir uma postura mais tradicional: “Recordando [...] a lição de De Page, ‘o juiz, ao interpretar a lei, não pode tomar liberdades inadmissíveis com ela’.”7 Em síntese, a literatura jurídica oferece um rico repositório de regras e técnicas interpretativas, além de funcionar como uma valiosa antologia de casos reais e imaginários cuja resolução depende daquelas regras e técnicas. A tradicional preocupação dos juristas com a interpretação decorre do fato de que a prática do direito exige a leitura e aplicação rotineira de textos duvidosos; a prática jurídica exige ainda que os textos sejam manejados com cuidado e especial respeito em relação à autoridade dos seus autores. 2 Linguagem e filosofia do direito Mais recentemente, tem crescido a influência da filosofia da linguagem sobre o estudo do direito. No curto espaço que temos, dirigimos a atenção do leitor a um dos melhores exemplos dessa influência: a saber, a obra de Hart. Consideramos, em particular, “O Conceito de Direito”, recentemente descrito como o mais influente livro sobre filosofia do direito escrito em inglês (GREEN, 2012, p. xi). Antes de discutir Hart, no entanto, é importante oferecer alguns esclarecimentos gerais sobre o que entendemos por “filosofia da linguagem”. Hanna Pitkin disse que praticamente todo filósofo anglo-saxão de seu tempo é um filósofo da linguagem de algum tipo (PITKIN, 1993, p. 5). Destacam-se, entre os vários filósofos da linguagem de Pitkin, dois tipos principais, que variam em função da atitude tomada em relação à nossa linguagem corriqueira, do dia-a-dia. Uma primeira abordagem considera a maneira pela qual as pessoas comumente falam como sendo deficiente e descuidada, repleta de ambiguidades e proferimentos sem sentido. As pessoas valem-se de expressões e construções frasais cujos defeitos obscurecem a estrutura profunda da linguagem, estrutura cujo desvelamento exige conhecimentos técnicos de lógica formal. De acordo com essa abordagem, o papel da filosofia (e da lógica, sua principal aliada) seria corrigir ou, na medida do possível, substituir a linguagem comum ou ordinária por uma linguagem artificial mais precisa. Assim como a ciência corrige as concepções do senso comum, caberia à filosofia corrigir a linguagem comum ou ordinária. Essa é a orientação dos trabalhos de filósofos como Gottlob Frege, Bertrand Russel e o Wittgenstein do “Tractatus Logico-Philosophicus” (o “primeiro” Wittgenstein). A outra abordagem encara a linguagem ordinária não como algo a ser corrigido, mas sim como um objeto digno de estudo filosófico. A linguagem comum funciona sem que seja                                                                                                                         7

REsp 35518 / SP (1993).

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

necessária uma revisão geral, tradução ou substituição. Pelo contrário, as peculiaridades da linguagem ordinária – até mesmo as suas características superficiais e supostamente não-lógicas – oferecem pistas importantes para o esclarecimento de questões filosóficas. Dentro dessa corrente, que leva a linguagem natural a sério, é possível destacar o “segundo” Wittgenstein, que rejeita o “Tractatus” explicitamente, e seus discípulos de Cambridge, como G. E. M. Anscombe, Norman Malcom, John Wisdom e Stanley Cavell. Ainda na mesma linha, encontram-se os filósofos de Oxford, J. L. Austin, Gilbert Ryle e o próprio Hart. “O Conceito de Direito”, o livro de Hart, adota a segunda abordagem. O livro deixa transparecer as influências de Wittgenstein, J. L. Austin, Peter Winch, entre outros nomes do movimento da filosofia da linguagem ordinária. Logo no prefácio, Hart explica que, para entender determinados conceitos e fenômenos, às vezes é preciso fazer uma análise cuidadosa da forma como as pessoas inseridas em uma determinada prática utilizam algum termo correspondente. Pergunta-se: Quando e em quais contextos o uso do termo é considerado apropriado? Por que optar por aquela palavra, naquele contexto, e não por alguma palavra similar? Quem pensa que esse método esclarece apenas palavras, e nada mais, está errado: Muitas distinções importantes, que não são imediatamente óbvias, entre tipos de situação ou relação social podem ser esclarecidas da melhor maneira através de um exame dos usos convencionais das expressões pertinentes e da forma como esses usos dependem do contexto social, frequentemente tácito. Particularmente nessa área de pesquisa, é verdade que nós podemos usar, como disse o Professor J. L. Austin, “uma percepção afiada das palavras para afiar a nossa percepção dos fenômenos”.8

Um bom exemplo do emprego desse método é a distinção feita por Hart entre “ser obrigado” (being obliged) e “ter uma obrigação” (having an obligation). O objetivo de Hart era criticar uma teoria influente na Inglaterra até meados do século XX (associada aos nomes de Jeremy Bentham e, principalmente, John Austin9), segundo a qual o direito é composto de ordens acompanhadas de ameaças de sanção emanadas do soberano político e endereçadas aos governados. De acordo com essa teoria, uma obrigação jurídica existe sempre que há uma ordem do soberano e alguma probabilidade de que a sanção correspondente será aplicada em caso de desobediência. Hart argumentou que a plausibilidade dessa teoria depende, em parte, da ambiguidade da noção de obrigação: Recordemos a situação do assaltante. A ordena que B lhe entregue seu dinheiro e o ameaça com um tiro em caso de desobediência. De acordo com a teoria das ordens coercitivas, essa situação ilustra a noção geral de obrigação ou dever. A obrigação jurídica surge quando a situação do assaltante ganha uma dimensão mais ampla; A precisa ser o soberano habitualmente obedecido e as suas ordens precisam ser gerais, prescrevendo tipos de condutas, não ações singulares. A plausibilidade da afirmação de que a situação do assaltante manifesta o sentido do conceito de obrigação repousa sobre o fato de que é certamente um caso em que diríamos que B, caso obedecesse, foi “obrigado” a entregar seu dinheiro. É, no entanto, igualmente certo que nós descreveríamos mal a situação se disséssemos, com base nesses fatos, que B “tinha uma obrigação” ou um “dever” de entregar o dinheiro. Desde o início, portanto, está claro que precisamos de

                                                                                                                        8

Texto original: “Many important distinctions, which are not immediately obvious, between types of social situation or relationships may best be brought to light by an examination of the standard uses of the relevant expressions and of the way in which these depend on social context, itself often left unstated. In this field of study it is particularly true that we may use, as Professor J. L. Austin said, ‘a sharpened awareness of words to sharpen our awareness of the phenomena.’” (HART, 2012, p. vi) 9 Trata-se do jurista vitoriano. Não confundir com J. L. Austin, o filósofo da linguagem do século XX.

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).     alguma outra coisa para a compreensão da ideia de obrigação. Há uma diferença, a ser explicada, entre a afirmação de que alguém foi obrigado a fazer algo e a afirmação de alguém tinha a obrigação de fazê-lo.10

O soberano (concebido por Bentham e Austin como uma espécie de assaltante institucionalizado) pode nos obrigar por meio de ameaças, mas ele não consegue gerar, apenas com isso, qualquer obrigação. Hart defende essa conclusão dizendo que nós nunca admitiríamos ter a obrigação de acolher a ordem de um assaltante; somos apenas obrigados a fazê-lo. Mais tarde, Hart desenvolve sua própria teoria da obrigação jurídica e a oferece como alternativa à teoria de Bentham e Austin. Para Hart, em síntese, só dizemos que temos obrigações jurídicas quando aceitamos (tática ou explicitamente) uma regra geral que atribua autoridade legislativa ao soberano ou a algum agente político equivalente. Se não aceitarmos essa regra, as eventuais ordens e ameaças dos agentes políticos não gerarão genuínas obrigações (ainda que elas nos “obriguem” a agir por medo). Quais são os potenciais e os limites do método de Hart? Até que ponto é possível valer-se do estudo da linguagem ordinária para esclarecer problemas de filosofia do direito? Alguns dos limites mais óbvios foram apontados por John Finnis nos seguintes termos: […] são bastante variadas as concepções de direito (e jus, lex, droit, nomos…) que têm sido consideradas pelas pessoas e usadas para orientar sua conduta. O objeto da descrição do teórico não vem claramente demarcado em relação a outras características da vida e prática social. Além disso, a vida e a prática social têm rótulos em muitas línguas. As línguas podem ser assimiladas por falantes de outras línguas, mas os princípios por trás da adoção e aplicação dos rótulos – i.e. as preocupações práticas e as auto-interpretações das pessoas cuja conduta e disposições são estudadas pelo teórico – não são uniformes. Pode, portanto, o teórico fazer algo além de listar essas variadas concepões e práticas e seus rótulos correspondentes? Até mesmo uma lista exige algum princípio de seleção de itens para inclusão na lista. E a teoria do direito, assim como outras ciências sociais, pretende ser mais do que a combinação de lexicografia com história local, mais até do que uma justaposição de todas as lexicografias combinadas com todas as histórias locais.11

                                                                                                                        10

Texto original: “Let us recall the gunman situation. A orders B to hand over his money and threatens to shoot him if he does not comply. According to the theory of coercive orders this situation illustrates the notion of obligation or duty in general. Legal obligation is to be found in this situation writ large; A must be the sovereign habitually obeyed and the orders must be general, prescribing courses of conduct not single actions. The plausibility of the claim that the gunman situation displays the meaning of obligation lies in the fact that it is certainly one in which we would say that B, if he obeyed, was ‘obliged’ to hand over his money. It is, however, equally certain that we should misdescribe the situation if we said, on these facts, that B ‘had an obligation’ or a ‘duty’ to hand over the money. So from the start it is clear that we need something else for an understanding of the idea of obligation. There is a difference, yet to be explained, between the assertion that someone was obliged to do something and the assertion that he had an obligation to do it.” (HART, 2012, p. 82) 11 Texto original: “[…] the conceptions of law (and of jus, lex, droit, nomos,…) which people have entertained, and have used to shape their own conduct, are quite varied. The subject-matter of the theorist’s description does not come neatly demarcated from other features of social life and practice. Moreover, this social life and practice bears labels in many languages. The languages can be learned by speakers of other languages, but the principles on which labels are adopted and applied – i.e. the practical concerns and the self-interpretations of the people whose conduct and dispositions go to make up the theorist’s subject-matter – are not uniform. Can the theorist do more, then, than list these varying conceptions and practices and their corresponding labels? Even a list requires some principle of selection of items for inclusion in the list. And jurisprudence, like other social sciences, aspires to be more than a conjunction of lexicography with local history, or even than a juxtaposition of all lexicographies conjoined with all local histories.” (FINNIS, 2011, p. 4)  

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

Não há uma concepção uniforme de direito (nem um uso uniforme da palavra “direito”) que permita esclarecer as questões centrais da filosofia do direito – por exemplo: O que é o direito? Como ele se relaciona com a moral? Como ele se relaciona com a coerção? Algumas pessoas entendem o direito de maneira fria e pessimista, como uma instituição complexa, alienadora e repressiva. Outras pessoas carregam a palavra de sentido moral, e usam “direito” de maneira elogiosa: direito é algo bom, um arranjo institucional que tende à justiça ou ao bem comum. Um terceiro grupo de pessoas fica no meio do caminho: isto é, adota concepções de direito que são mais sóbrias, nem tão pessimistas nem tão otimistas. Diante da falta de uniformidade terminológica, o método linguístico se mostra carente de algum tipo de complemento. O próprio Hart reconhecia as limitações do seu método. Ele disse claramente que a mera análise da linguagem ordinária não responderia a perene pergunta “O que é o direito?” (HART 2012, p. 5); e admitiu também que a análise linguística é insuficiente para justificar qualquer concepção precisa acerca da relação entre direito e moral: Embora um positivista possa apontar para o peso do uso linguístico inglês [...] seus oponentes dificilmente tratariam isso como um argumento definitivo. [...] O que realmente está em questão é o mérito comparado de conceitos mais ou menos amplos de regras que pertencem a sistemas de regras geralmente eficazes na vida social. Se o nosso objetivo é fazer uma escolha fundamentada entre esses conceitos, devemos fazê-la porque um conceito é superior ao outro pela forma como vai assistir nossas indagações teóricas ou esclarecer nossas deliberações, ou as duas coisas.12

Apesar disso, Hart já foi acusado de superestimar o potencial do seu método, como se acreditasse que o conceito de direito (lembre-se do ambicioso título do seu livro) pudesse ser inteiramente decifrado por meio da análise linguística13. Apesar do título, o livro de Hart simplesmente não oferece evidências textuais que corroborem a acusação. E se, por um lado, já houve autores que exagerassem a importância do método linguístico na obra de Hart, por outro lado, há hoje quem cometa o erro oposto de subestimá-la: Hart foi influenciado pela “virada linguística” na filosofia e entendia-se como um dos seus defensores. [...] Sendo assim, o mais surpreendente, dada a sua safra e procedência, é notar como é pequena a quantidade de análise linguística em O Conceito de Direito. Somos lembrados de que a linguagem tem várias funções, e que algumas teorias podem ser entendidas como fornecendo critérios para o uso de conceitos. Algumas teses são corroboradas com distinções linguísticas (Hart diz que há uma diferença entre ser “obrigado” a fazer algo e ter a “obrigação” de fazê-lo, e entre fazer algo por “via de regra” e “seguir uma regra”). É basicamente isso.14

                                                                                                                        12

Texto original: “So, though the positivist might point to a weight of English usage […] their opponents would hardly regard this as disposing of the case. […] For what really is at stake is the comparative merit of a wider and a narrower concept or way of classifying rules, which belong to a system of rules generally effective in social life. If we are to make a reasoned choice between these concepts, it must be because one is superior to the other in the way in which it will assist our theoretical inquiries, or advance and clarify our moral deliberations, or both.” (HART, 2012, p. 209) Hart era um defensor do positivismo jurídico, uma teoria “sóbria” que afirma que o conteúdo e a existência do direito independem dos seu méritos morais. O direito, para Hart, pode ser bom, mas não o é necessariamente. 13 Até mesmo autores sofisticados como Ronald Dworkin parecem ter incorrido nesse erro (HART, 2012, p. 244248). 14 Texto original: “Hart was influenced by, and saw himself as an advocate of, the ‘linguistic turn’ in philosophy. [...] For all that, what is most striking, given its vintage and provenance, is how little linguistic analysis there is in The Concept of Law. We are reminded that language has various functions, that sentences have contexts, and that some theories can be understood as giving criteria for use of concepts. A few points are reinforced with linguistic

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

Há vários problemas com essa avaliação. Um deles é que a importância do método linguístico para Hart não se mede apenas pelo número de distinções linguísticas a que ele efetivamente apela. Note que a distinção entre ter obrigação e ser obrigado cumpriu um papel central na refutação de uma das mais influentes teorias jusfilosóficas da história. A noção de que o direito consiste em ordens e ameaças do soberano teve status de ortodoxia na Inglaterra durante a vida de Hart. Em segundo lugar, o apelo a observações sobre a linguagem ordinária não é tão infrequente assim em “O Conceito de Direito”. É possível mencionar pelo menos outros três exemplos importantes, além da distinção mencionada por Green: (i) Hart procurou explicar a relação especial entre autoridades e regras jurídicas (de segunda ordem) dizendo que a palavra “obediência” não serviria para descrevê-la; (ii) esclareceu a noção de justiça mostrando que as pessoas referem-se a ela como uma parte específica da moralidade; e (iii) também diferenciou a moralidade do direito mostrando que a primeira é descrita na linguagem comum como sendo imune à modificação deliberada. Em terceiro lugar, a influência da filosofia da linguagem sobre Hart não diz respeito apenas à frequência ou importância das suas observações sobre o emprego convencional de expressões ou palavras específicas. A abordagem linguística de Hart se manifesta ocasionalmente de maneira um pouco mais sutil. Considere dois exemplos: primeiro, a ideia da textura aberta da linguagem; segundo, a distinção entre enunciados jurídicos internos e externos. Segundo Friedrich Waismann, autor responsável por cunhar a expressão “textura aberta da linguagem” (WAISMANN, 1978), vários termos que utilizamos na nossa linguagem são potencialmente vagos. Hart foi responsável por fazer a transposição dessa discussão para a análise das regras jurídicas. Como as regras jurídicas contêm termos que possuem textura aberta, as próprias regras também podem ser consideradas potencialmente vagas. Sempre é possível surgir um caso que cai na região de “penumbra” do significado dos termos gerais que aparecem na regra. O exemplo clássico utilizado por Hart é: "É proibida a entrada de veículos no parque". A aplicação dessa regra exige saber se determinado objeto é ou não é um veículo (e se um determinado local é ou não um parque). Todos concordam que a regra foi criada para impedir a entrada de certos veículos no parque, como carros de passeio. Mas quando uma autoridade se depara, pela primeira vez, com um caso concreto no qual a discussão é sobre se um skate é ou não um veículo, o juiz está diante de um campo aberto. Ele pode ou não tratar o skate da mesma maneira que tratou o carro de passeio. Como o legislador não antecipou esse caso no momento da criação da regra, cabe ao juiz decidir se o caso em questão é suficientemente semelhante, nos aspectos relevantes, ao caso paradigmático do carro de passeio. Existem razões tanto para tratar os casos da mesma forma como para tratá-los de maneiras diferentes. Ao mesmo tempo em que o juiz faz a sua opção pela melhor forma de tratamento do caso, ele torna a regra mais clara para os casos futuros. Hart não enxerga a textura aberta da linguagem como um problema; ao contrário, para ele, a possibilidade de se definir gradualmente, ao longo do tempo, o exato alcance da regra é um aspecto positivo do modus operandi do direito. Afinal, as regras se tornam imprecisas diante de situações extraordinárias, que não foram antecipadas no momento em que foram criadas a regras.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               distinctions (Hart claims there is a difference between being ‘obliged’ to do something and being ‘obligated’ to do it, between doing something ‘as a rule’ and ‘having a rule’). That’s about it. (GREEN, 2012, p. xlvii)  

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

Como muitos outros filósofos do direito ao longo da história, Hart preocupou-se também em esclarecer a noção de validade jurídica. Para Hart, essa noção era mal compreendida e os frequentes equívocos talvez fossem evitados se se prestasse a devida atenção ao fato de que validade e noções análogas podem figurar em enunciados emitidos por falantes que ocupam perspectivas diferentes e se pronunciam em contextos diferentes. Tipicamente, o juiz que identifica uma norma como sendo válida não pretende descrever um fato, mas antes indicar a existência de uma obrigação jurídica (o próprio juiz tem a obrigação de aplicar a regra; cidadãos têm o dever de cumprir o que ela prescreve). Por outro lado, sociólogos e historiadores tipicamente falam sobre normas jurídicas, sobre a sua validade ou existência, com intenções descritivas. Eles indicam que as normas em questão são sistematicamente aplicadas e obedecidas por autoridades e cidadãos em uma dada região, em um dado momento histórico. Juízes emitem, portanto, afirmações internas; sociólogos e historiadores fazem afirmações externas. As primeiras são normativas; as outras, descritivas. A relação entre afirmações dos dois tipos é complexa e costuma levar o teórico incauto a fazer confusões. Por exemplo, enunciados internos tipicamente pressupõem enunciados externos, embora seja possível que os dois se destaquem em contextos especiais: Pode-se dizer que aquele que faz uma afirmação interna acerca da validade de uma certa regra de um sistema pressupõe a veracidade de um enunciado externo que diz que o sistema, em geral, é eficaz. Pois o uso normal de enunciados internos ocorre nesse contexto de eficácia geral. Seria um erro, por outro lado, dizer que enunciados sobre validade “significam” que o sistema é, em geral, eficaz. Embora normalmente seja despropositado ou vão falar da validade de uma regra de um sistema que nunca se estabeleceu ou foi abandonado, ainda assim não é sem sentido fazê-lo, e nem sempre é despropositado. Uma forma distinta de ensinar direito romano é falar como se o sistema ainda fosse eficaz, e discutir a validade de regras específicas resolvendo problemas com base nelas; e uma forma de nutrir esperanças pela restauração de uma ordem social destruída por uma revolução, e rejeitar a nova ordem, é agarrar-se aos critérios de validade do velho regime. Isso é feito implicitamente pelo russo “branco” que ainda reivindica direitos de propriedade com base em alguma regra de sucessão que era válida na Rússia czarista.15

A textura aberta da linguagem e a distinção entre tipos de enunciados jurídicos são exemplos da atenção que Hart dava à linguagem e da confiança que ele tinha na abordagem linguística como fonte de lições importantes para a filosofia do direito. Por um lado, o estudo do fenômeno linguístico da textura aberta permitiria que juristas percebessem como regras jurídicas são potencialmente vagas e como essa fonte de indeterminação é tão inevitável quanto o uso legislativo da linguagem natural (em oposição à linguagem artificial da lógica ou da matemática). Por outro lado, a distinção entre tipos de enunciados faz parte de uma tentativa de solucionar dúvidas teóricas antigas a respeito do controvertido conceito de validade jurídica. O que deve ficar claro é que, para Hart, a análise linguística cumpriu uma função importante na                                                                                                                         15

Texto original: “One who makes an internal statement concerning the validity of a particular rule of a system may be said to presuppose the truth of the external statement of fact that the system is generally efficacious. For the normal use of internal statements is in such a context of general efficacy. It would however be wrong to say that statements of validity ‘mean’ that the system is generally efficacious. For though it is normally pointless or idle to talk of the validity of a rule of a system which has never established itself or has been discarded, none the less it is not meaningless nor is it always pointless. One vivid way of teaching Roman Law is to speak as if the system were efficacious still and to discuss the validity of particular rules and solve problems in their terms; and one way of nursing hopes for the restoration of an old social order destroyed by revolution, and rejecting the new, is to cling to the criteria of legal validity of the old regime. This is implicitly done by the White Russian who still claims property under some rule of descent which was a valid rule of Tsarist Russia.” (HART, 2012, p. 104)  

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

elucidação de uma série de conceitos jurídicos ou juridicamente relevantes – regra, obrigação, validade jurídica, justiça, moralidade. Todos esses conceitos tiveram algum papel na teoria hartiana do direito. O que Hart não fez, nem tentou fazer, foi definir o conceito de direito simples e diretamente através da observação do uso da palavra “direito” na linguagem ordinária. Até aqui temos tentado apenas esclarecer o papel que a análise da linguagem cumpre na obra de Hart. Cabe agora fazer alguns comentários sobre a forma como a metodologia hartiana tem sido avaliada por outros filósofos do direito. Uma fonte significativa de críticas a Hart diz respeito às suas pretensões descritivas: Meu objetivo neste livro [“O Conceito de Direito”] era oferecer uma teoria do direito que é tanto geral quanto descritiva. [...] Minha posição é descritiva na medida em que é moralmente neutra e não tem fins de justificação: ela não pretende justificar ou promover, seja por razões morais ou de outra natureza, as formas e estruturas que aparecem na minha teoria geral do direito, embora uma compreensão clara dessas formas e estruturas seja um passo preliminar importante para qualquer crítica moral útil do direito.16

Ao contrário de Hart, autores como Ronald Dworkin (1986) e John Finnis (2011) acreditam que a filosofia do direito não pode ser divorciada da filosofia política e da filosofia moral. Para eles, não é possível explicar adequadamente o que o direito é sem apelo a reflexão sobre os seus méritos político-morais: noutras palavras, não faz boa filosofia do direito quem se recusa a pensar sobre como o direito precisa operar para que seja bom do ponto de vista político e do ponto de vista moral. O debate que esse tipo de afirmação suscita é bastante complexo e não seria possível discuti-lo adequadamente no reduzido espaço que nos sobra17. Hart já sugeriu, por sinal, que o projeto filosófico de Dworkin é tão diferente do seu que sequer há motivo para considerá-los projetos rivais: A teoria do direito, concebida dessa maneira, como descritiva e geral, é um projeto radicalmente distinto da concepção que Dworkin tem da teoria do direito (ou “jurisprudência”, como ele costuma dizer) como parcialmente avaliativa e justificadora, e “direcionada a uma cultura jurídica particular” [...]. […] Não é óbvia a razão pela qual deveria ou poderia haver qualquer conflito significativo entre projetos tão diferentes quanto o meu e a forma como Dworkin concebe a teoria do direito.18

Achamos que os projetos de Hart e Dworkin (assim como os projetos de Hart e Finnis) são, sim, rivais comensuráveis; e acreditamos também na superioridade do projeto hartiano (SHECAIRA, 2012; STRUCHINER, 2008). De qualquer forma, neste contexto vale mais a pena considerar críticas formuladas por autores que não divergem de Hart de maneira tão profunda. Por melhores que fossem as eventuais respostas hartianas às críticas que seguem, elas dificilmente seriam capazes de mostrar que as críticas são impertinentes, irrelevantes ou que                                                                                                                         16

Texto original: “My aim in this book was to provide a theory of what law is which is both general and descriptive. […] My account is descriptive in that it is morally neutral and has no justificatory aims: it does not seek to justify or commend on moral or other grounds the forms and structures which appear in my general account of law, though a clear understanding of these is, I think, an important preliminary to any useful moral criticism of law.” (HART, 2012, p. 240) 17 Marmor (2006) apresenta uma defesa plausível da ideia de que é possível fazer filosofia do direito de maneira política e moralmente neutra.   18 Texto original: “Legal theory conceived in this manner as both descriptive and general is a radically different enterprise from Dworkin's conception of legal theory (or ‘jurisprudence’ as he often terms it) as in part evaluative and justificatory and as ‘addressed to a particular legal culture’ […]. […] It is not obvious why there should be or indeed could be any significant conflict between enterprises so different as my own and Dworkin’s conceptions of legal theory. (HART, 2012, p. 240-241)

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

partem de pessoas cujos pressupostos e ambições teóricas são simplesmente diferentes demais. As críticas que temos em mente poderiam ser descritas como “empiristas” ou “naturalistas”19. Essas críticas não atacam as pretensões descritivas de Hart; muito pelo contrário, elas exigem que Hart e outros adeptos de teorias filosóficas descritivas empreguem métodos de pesquisa empírica mais rigorosos, análogos àqueles desenvolvidos pelas ciências sociais. Hart propôs-se a esclarecer um fenômeno social – o direito –, mas o fez de maneira empiricamente despreocupada, sem sair da poltrona, por assim dizer20. Há dois aspectos preocupantes do apego hartiano à poltrona. Primeiro, Hart pretendeu valer-se de informações sobre as nossas convenções linguísticas (ou pelo menos sobre as convenções linguísticas dos ingleses da sua época) sem apoiar-se em pesquisas empíricas que visassem aferir com mínimo rigor como as pessoas de fato usam termos complexos como “obrigação”, “validade”, “moralidade”, “justiça” etc. É claro que as suposições de Hart eram todas plausíveis, mas isso não quer dizer que fossem certas. Por exemplo, Hart tratou a coerção como um aspecto importante mas não essencial do direito (HART, 2012, p. 39). Será, no entanto, que as práticas linguísticas correntes não têm um componente austiniano mais forte do que Hart supunha? Será que a maioria das pessoas não considera a ameaça de sanção um elemento essencial da noção de obrigação jurídica? É possível, enfim, que Hart tenha subestimado a importância que o falante comum da língua dá à coerção quando fala sobre o direito. Empiristas contemporâneos já mostraram que outros conceitos analisados por filósofos da linguagem ordinária não correspondem bem aos conceitos empregados pela população de maneira geral21. Assim como Hart, esses filósofos não cometeram erros crassos, mas demonstraram que, a partir da poltrona de uma sala abafada do departamento de filosofia, nem sempre é possível adquirir uma compreensão precisa da linguagem tal como ela funciona no mundo lá fora. Um segundo problema que o empirista pode identificar na metodologia hartiana diz respeito à sua falta de comunicação com o trabalho desenvolvido por cientistas sociais, por aqueles que estudam o direito empiricamente22. Em “O Conceito de Direito” não há muitas menções ao trabalho de antropólogos, sociólogos ou cientistas políticos. Isso é curioso: a filosofia do direito, diferentemente de disciplinas filosóficas que tratam de assuntos mais abstratos (metafísica, lógica, epistemologia etc.), tem como objeto de estudo um fenômeno empiricamente observável. Esse fenômeno é tradicional e cuidadosamente estudado por membros de disciplinas não filosóficas que, em princípio, poderiam instruir o filósofo. Filósofos que estudam assuntos como o tempo, a mente e a natureza humana cada vez menos ousam ignorar o que a física, a neurologia e a biologia evolutiva (respectivamente) têm a dizer sobre esses conceitos. As ciências naturais têm merecido a atenção dos filósofos que tratam de                                                                                                                         19

Naturalismo é um termo que Brian Leiter (2012) tem ajudado a disseminar. No início do novo movimento conhecido como “filosofia experimental”, o símbolo que foi muitas vezes utilizado para caracterizá-lo foi o de uma poltrona pegando fogo. Embora o símbolo tenha sido abandonado, parte da ideia que ele exprime permanece: a poltrona talvez não deva ser queimada, mas é certamente salutar que o filósofo saia de sua poltrona para testar se as intuições que assume como sendo “evidentemente” compartilhada por todos de fato o são (KNOBE e NICHOLS, 2008).   21 Temos em mente conceitos como livre arbítrio, intuição, conhecimento e responsabilidade (KNOBE e NICHOLS, 2008; DORIS, 2010). 22 Esse tem sido um tema central da obra de Leiter (2007). Leiter é um crítico enfático do divórcio entre filosofia do direito e ciências sociais: ele sugere (plausivelmente, na nossa opinião) que filósofos do direito deveriam se dedicar a explicitar e refinar não o conceito ordinário de direito, mas o conceito que figure nas melhores teorias socialcientíficas sobre o direito.   20

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

assuntos relativos a natureza do homem e do espaço. Por que é que cientistas sociais não recebem deferência análoga de filósofos que tratam de fenômenos sociais como o direito? Conclusão Tratamos neste artigo das relações entre o estudo (e prática) do direito e o estudo da linguagem. Dissemos, por um lado, que o jurista sempre se viu obrigado a estudar a linguagem para poder lidar com textos duvidosos a que a comunidade jurídica atribui autoridade. Por outro lado, a filosofia da linguagem do século XX trouxe novos motivos para que o jurista se interessasse pela linguagem. Para ilustrar a relação produtiva que pode existir entre filosofia do direito e filosofia da linguagem, concentramo-nos na obra de H.L.A. Hart. A abordagem linguística hartiana está sujeita a alguns equívocos exegéticos e também a algumas críticas importantes. Procuramos afastar os equívocos, mostrando como Hart deve ser interpretado, e mencionamos as críticas que nos parecem mais plausíveis. Essas críticas ainda não foram refutadas e continuam a merecer a atenção da comunidade jusfilosófica contemporânea. Referências APPIAH, Kwame. Experiments in Ethics, Cambridge: Harvard University Press, 2008. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas.Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Rideel, 2003. DORIS, John. The Moral Psychology Handbook. New York: Oxford University Press, 2010. DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. 2a edição. Oxford: Oxford University Press, 2011. FULLER, Lon. Positivism and Fidelity to Law – A Reply to Professor Hart. Harvard L aw Review, 71, 1958. GREEN, Leslie. Introduction. In: HART, H.L.A. The Concept of Law. 3a edição. Oxford: Clarendon Press, 2012. HART, H.L.A. The Concept of Law. 3a edição. Oxford: Oxford University Press, 2012. KNOBE, Joshua e NICHOLS, Shaun. Experimental Philosophy. New York: Oxford University Press, 2010. LEITER, Brian. Naturalizing Jurisprudence: Essays on American Legal Realism and Naturalism in Legal Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2007.

Versão  quase  final  de  capítulo  escrito  por  Fábio  Shecaira  e  Noel  Struchiner  para  o  livro:  Linguística  Aplicada  em   Contextos  Legais  (Paco  Editorial,  2015,  p.22-­‐46).    

LEITER, Brian. Naturalism in Legal Philosophy. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: . Acesso em: 8 jun. 2013. MARMOR, Andrei. Positivism: Still Descriptive and Morally Neutral. Oxford Journal of Legal Studies, 26, 2006. PITKIN, Hanna. Wittgenstein and Justice. California: University of California Press, 1993. SCHAUER, Frederick. Thinking Like a Lawyer. A New Introduction to Legal Reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2009. SCHAUER, Frederick. Formalismo. In: RODRIGUEZ, J.R. (Org.) A Justificação do Formalismo – Textos em Debate. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. SHECAIRA, Fábio. Dealing with Judicial Rhetoric: A Defence of Hartian Positivism. Australian Journal of Legal Philosophy, 37, 2012. STRUCHINER, Noel. A primazia do positivismo conceitual. In: DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto (Coord.). Teoria do direito neoconstitucional – Superação ou reconstrução do positivismo jurídico? São Paulo: Método, 2008. VOGENAUER, Stefan. Statutory Interpretation. In: SMITS, J. (Ed.) Elgar Encyclopedia of Comparative Law. Cheltenham: Edward Elgar, 2006. WAISMANN, Friedrich. Verifiability. In: FLEW. A. (Ed.) Logic and Language (First Series). Oxford: Basil Blackwell, p.177-144, 1978.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.