DIREITO E LITERATURA: QUANDO A VOZ DE SARUMAN ECOA NO RETÓRICA JURÍDICA

July 5, 2017 | Autor: Amanda Muniz | Categoria: Law and Literature, J.R.R. Tolkien, Direito e Literatura
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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015

FICHA CATALOGRÁFICA Revista Crítica do Direito nº 5, vol. 66 São Paulo, 2015 Quadrimestral ISSN 2236-5141 QUALIS B1 Vários editores 1. Teoria do Direito - produção científica CDD 341.1 Índice para catálogo sistemático 1. Teoria do direito 341

Fotos da capa: Marisa Mendonça (17.06.2013, Brasília).

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Expediente e Conselho Editorial 1. Gerência Editorial Vinícius Magalhães Pinheiro

2. Conselho Editorial Alexandre Marinho Pimenta Alysson Leandro Barbate Mascaro Celso Naoto Kashiura Jr. Clarissa Machado de Azevedo Vaz Daniel Francisco Nagao Menezes Edemilson Paraná Elcemir Paço Cunha Gabriel Tupinambá Irene Patrícia Nohara Joelton Nascimento José Luiz Quadros de Magalhães Júlio da Silveira Moreira Luiz Eduardo Motta Márcio Bilharinho Naves Willians Menezes da Silva Vinicius Magalhães Pinheiro

3. Traduções Carolina Viana de Barros

4. Contato Geral [email protected]

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 SUMÁRIO EDITORIAL .................................................................................................................................... 6 OS ANDAMENTOS PROCESSUAIS, A SENTENÇA, E SUAS REPERCUSSÕES DISCURSIVAS E SOCIAIS NO ACESSO À JUSTIÇA ............................................................................................ 7 A ATUAL CONJUNTURA DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA, MOVIMENTO SLOW SCIENCE E PRODUTIVISMO: uma forma contemporânea de trabalho escravo? ....................... 26 A LIBERTAÇÃO DA MULHER NAS TEORIAS SOCIALISTAS DOS SÉCULOS XVIII E XIX: CONTRIBUIÇÕES PARA A SUPERAÇÃO DAS RELAÇÕES HIERARQUIZADAS DE GÊNERO NA SOCIEDADE PATRIARCAL CAPITALISTA............................................................................ 40 JUSTIÇA SUSTENTÁVEL ............................................................................................................ 55 AS DEFICIÊNCIAS DA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA – UMA ANÁLISE DA RECEPÇÃO DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA NO DIREITO................................................... 69 DE COMO A NATUREZA FOI EXPULSA DA MODERNIDADE ................................................... 88 PROJETO DE HUMANIZAÇÃO DO BAIRRO SANTA TEREZA – GENTRIFICAÇÃO E ANTIJURIDICIDADE NO CENTRO ANTIGO DE SALVADOR ................................................... 106 DESNATURALIZANDO O CÁRCERE: A PENA DE PRISÃO COMO CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL ................................................................................................................. 121 CINEMA E DIREITO – ELEMENTOS CRÍTICOS PARA UMA REFLEXÃO ACERCA DAS POSSIBILIDADES DE CRÍTICA A PARTIR DO USO DO CINEMA COMO RECURSO PEDAGÓGICO NO ENSINO JURÍDICO .................................................................................... 138 DIREITO E LITERATURA: QUANDO A VOZ DE SARUMAN ECOA NO RETÓRICA JURÍDICA 153 CONSTITUCIONALISMO PLURINACIONAL E INTERCULTURAL DE TRANSICIÓN: ECUADOR Y BOLIVIA .................................................................................................................................. 165 REFLEXÕES ONTOLÓGICAS E EPISTEMOLÓGICAS SOBRE O CAMPO JURÍDICO ............ 179 ATIVISMO JUDICIAL NEGATIVO E O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL DE HOMOAFETIVOS....................................................................................................................... 193 DISQUISICIONES TEÓRICAS, DOCTRINALES Y EXEGÉTICAS SOBRE LA PRAXIS DE LA AUDITORÍA COMO FUNCIÓN PÚBLICA, DIRIGIDA A LA PROTECCIÓN DEL BIEN PÚBLICO AMBIENTAL PARA LA EMPRESA ECOLÓGICA EN EL DESARROLLO SOSTENIBLE. .......... 204 DOSSIÊ SOBRE TERCEIRIZAÇÃO DOS CONTRATOS DE TRABALHO ................................. 233 TERCEIRIZAÇÃO E PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NO CONTEXTO DA REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA NO SÉCULO XXI ........................................................... 233 PRECARIZAÇÃO DO DIREITO DE TRABALHO E SUBCIDADANIA NO BRASIL: A REALIDADE SOCIAL E JURÍDICA DOS OPERARIOS DA INDÚSTRIA FRIGORÍFICA. ........ 258 O GÊNERO DA TERCEIRIZAÇÃO ......................................................................................... 273

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DIREITO E LITERATURA: QUANDO A VOZ DE SARUMAN ECOA NO RETÓRICA JURÍDICA Amanda Muniz Oliveira1

Resumo: A retórica, conforme proposta por Perelman e Olbrecht-Tyteca, é vista como uma forma de ampliar o campo racional para além dos raciocínios dedutivos e indutivos. Visando o convencimento das partes e dos juristas, ela deveria ser utilizada no intuito de justificar e fundamentar decisões judiciais, no intuito de se evitar arbitrariedades. Todavia, a retórica foi desvirtuada de seu uso no intuito de coibir reflexões aprofundadas e críticas sobre o papel e utilização do Direito. A retórica passa a ser vista como forma de deturpar verdades e destruir a credibilidade de conceitos. Utilizada unicamente para persuadir, em âmbito jurídico, ela perde a sua razão de ser inicial. Neste sentido, no intuito de revelar este desvio de finalidade, será realizada uma análise do personagem Saruman, da obra O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien, aos moldes dos estudos interdisciplinares entre Direito e Literatura. Tal personagem nos permite refletir e analisar de que forma a retórica, por vezes, é utilizada para legitimar injustiças ao pretexto da paz social. Palavras-Chave: Direito, Literatura, Retórica.

1. Introdução Após a segunda guerra mundial, a utilização do silogismo jurídico como forma de aplicação do Direito mostrou-se ineficaz, posto que legitimou a aplicação de leis injustas. Assim, foi necessário buscar uma nova forma de aplicação normativa, que não fosse puramente formal e permitisse a flexibilização de leis e princípios em prol de um Direito mais justo. Neste contexto, Perelman e Olbrecht-Tyteca propõe a retomada da retórica aristotélica como forma de ampliar o campo racional para além dos raciocínios dedutivos e indutivos. Assim, os autores concebem a chamada Nova Retórica. Para a utilização da retórica na aplicação do Direito, seria necessário convencer as partes de que a decisão não foi proferida de forma arbitrária, bem como torná-la convincente o bastante para juristas e tribunais superiores. Independentemente do que motivou determinada decisão, ela deve ser justificada e juridicamente fundamentada a fim de que se evitem arbitrariedades. Todavia, a retórica foi desvirtuada de seu uso no intuito de coibir reflexões aprofundadas e críticas sobre o papel e utilização do Direito. Criam-se dogmas normativos e neles se acreditam, posto que a Lei parece sempre agir em nome de um “bem maior”. A retórica passa a ser utilizada de forma leviana, sendo vista como forma de deturpar verdades e destruir a credibilidade de

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Mestranda em Direito Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Bolsista CAPES. Foi Pesquisadora Bolsista do Programa Gestão em Ciência e Tecnologia, desenvolvido pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) no Instituto Federal do Norte de Minas Gerais (IFNMG). Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer Direito (NECODI).

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 conceitos. Utilizada unicamente para persuadir, a retórica em âmbito jurídico perde a sua razão de ser inicial. Neste sentido, no intuito de revelar este desvio de finalidade, será realizada uma análise do personagem Saruman, da obra O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien, aos moldes dos estudos interdisciplinares entre Direito e Literatura. Ocorre que a literatura, por transportar o leitor a uma realidade completamente distinta de sua própria, tem o condão de despertar o senso crítico do leitor, se direcionada na perspectiva adequada. Neste sentido, pretende-se demonstrar a ambição e os discursos enganadores do personagem Saruman, explicitando as reais intenções deste, para então identificar paralelos similares no mundo real primário, especificamente no que se refere a retórica em âmbito jurídico. Saruman era um sábio e bondoso mago, que ao estudar profundamente sobre o maligno Anel forjado pelo vilão Sauron, verdadeira arma de destruição, se corrompe e passa a desejar o Anel para si próprio. O objetivo oculto do personagem é se tornar o novo vilão, retirando Sauron do poder e colocando a si mesmo como novo Mestre do Anel. Porém, Saruman não assume este objetivo abertamente, alegando que deseja possuir o Anel apenas para derrotar o vilão e instituir a paz social pelo bem comum de todos. Percebe-se que o Direito, por vezes, serve aos mesmos propósitos, disfarçados pelo uso da retórica. Assim, ao utilizar a literatura como instrumento de análise e interpretação da realidade social, pode-se traçar nítidas semelhanças com as situações vividas no cotidiano social, fazendo com que seja possível uma reflexão equidistante, realizada sob um novo olhar daquilo que já se tornou trivial e comum no ambiente social. 2. Direito e Literatura A utilização de metáforas para se explicar uma regra de conduta, seja moral ou jurídica, não é um fenômeno inédito. Rorty (1991) afirma que para compreender os problemas que permeiam o século XX, faz-se necessário a leitura das obras de Heidegger, Dewey e Davidson simultaneamente às obras de Nabokov, Kafka e Orwell. Ward (2008), por sua vez, relembra Aristóteles e a sua metáfora do justo-meio2, ainda utilizada no meio jurídico, bem como o uso de metáforas, fábulas e contos fantásticos em textos de diversas religiões, pregados como exemplo de regra de conduta. Desta forma, infere-se que a utilização de obras literárias para estudar e compreender questões pertinentes ao Direito é, na verdade, algo que remonta aos tempos antigos. Porém, segundo Siqueira (2011), com o advento do Positivismo Jurídico3 procurou-se esvair do Direito as matérias que não fossem estritamente jurídicas, inclusive as questões relativas à literatura, metáfora e parábolas. Assim, a reaproximação do Direito e da Literatura apenas tornou-se possível com o surgimento do pós-positivismo4, sendo tal reaproximação marcada notadamente pela emergência 2

Segundo Boto (2001, p. 127), “Aristóteles, ao reportar-se ao ideal do justo meio, enfatiza a moderação como virtude capaz de entrelaçar prudência e o discernimento na ação: a medida exata entre dois extremos. O ser virtuoso adquire, ao agir, a propensão do caráter educado para a moderação.” 3 Galuppo (2002, p. 02) afirma que positivismo jurídico consiste “numa epistemologia e numa ideologia de leitura do direito positivo, essencialmente metafísica, que crê, de uma forma um tanto quanto contraditória com a ideia de mudança inerente ao fenômeno da positivação, na autoexistência do objeto criado pelo homem, notadamente da lei, razão pela qual o Positivismo pretende converter o conhecimento jurídico em ciência”. 4 De acordo com Galuppo (2002, p. 07), “O Pós-Positivismo pressupõe que, apenas com a atividade do legislador, o sentido das normas jurídicas é incompleto: o aplicador deve realizar um juízo de adequabilidade da norma ao caso

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 do movimento americano conhecido como Law and Literature, o qual ganhou notória repercussão após a publicação do livro The legal imagination, de James Boyd White. White (1980) acredita que os tanto os textos jurídicos quanto os literários são fundamentados pelas identidades de seus personagens e pelos significados de seus conceitos. Desta forma, a literatura possibilitava ao jurista uma nova abordagem da ordem legal estabelecida, bem como uma nova visão a respeito do ordenamento jurídico vigente. O movimento Law and Literature apresenta diversas propostas de estudos cruzados entre estas áreas do conhecimento 5, dentre as quais o estudo do Direito na literatura, que resgata e renova a utilização da literatura como ferramenta analítica do Direito. Segundo Olivo, (2012, p. 14) A vertente do Direito na Literatura estuda as formas sob as quais o Direito é representado na Literatura. Não se trata somente de procurar representações jurídicas nos textos literários, mas, sobretudo, utiliza-se das múltiplas perspectivas que a literatura é capaz de oferecer, para fazer desse material uma possibilidade de multiplicar as possibilidades de se pensar, interpretar, criticar e debater o Direito.

Desta forma, pretende-se utilizar a proposta de estudo do Direito na Literatura, para se demonstrar vestígios da voz de Saruman presente na retórica jurídica. Saruman, personagem da obra O Senhor dos Anéis, possui uma voz inebriante que persuade e subjuga aqueles que ouvem, seja por meio de argumentos aparentemente válidos, seja a esdrúxulas apelações à argumentos de autoridade. Tal escolha justifica-se, pois, segundo Dunlop (1991) a literatura permite o entendimento das relações sociais a partir da ótica de um terceiro, seja autor ou personagem do enredo, permitindo assim uma verdadeira troca de visões sociais em diversas épocas e contextos. Weisberg (1988, p.54), afirma que romances relativos a temas jurídicos são “o caminho para a compreensão humana6.” West (1988), por sua vez, acredita que as obras literárias devem ser exploradas no intuito de realizar uma crítica ao poder e as instituições políticas, sustentadas pelo Direito. Para Ward (2008, p.23), os estudos de direito e literatura proporcionam uma melhor forma de aprendizado, já que grande virtude dessa perspectiva é o seu caráter simples, descomplicado. Sobre isto, o Autor escreve: “Essa qualidade, acima de todas, não deve ser perdida. Uma grande quantidade de palavras longas é algo perigoso. E como Dunlop sugere, o Direito já está obstruído com muitas palavras que na verdade não significam nada, nem para os advogados nem para ninguém7”. O que se busca, portanto, é utilizar a

concreto, verificando se as condições de aplicação de uma determinada norma se dão no caso concreto. Em poucas palavras, o Pós-Positivismo recusa ao Direito o estatuto de uma ciência. Nosso saber não é científico. Não precisa sê-lo. Sobretudo não pode sê-lo, se estiver a serviço da emancipação”. 5

Segundo Siqueira (2011), diversos foram os estudos acerca da interseção entre Direito e Literatura: o direito como literatura, a literatura como instrumento de mudança do direito, hermenêutica, direito da literatura, direito e narrativa e muitos outros. 6 Traduziu-se do original “the path to human understanding”. 7 Traduziu-se do original: “That quality, above all, must not be lost. Too many long words are dangerous. As Dunlop suggests, law is already beset by far too many words that do not really mean anything, either to lawyers or to anyone else”.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 literatura como instrumento de análise, visando desenvolver nos estudantes de direito a capacidade de enfrentar temas complexos, relativos não só ao Direito, mas à condição humana, como um todo. Para Vieira e Morais (2013, p. 46) os estudos de Direito e Literatura constroem uma dialética rica e pouco explorada, vez que “assim como o Direito repercute na Literatura, esta contribui para aguçar as percepções sobre as emoções, os sentimentos, as relações e (…) compreender um pouco da sociedade e do Direito.” Neste mesmo sentido, Tolkien (2010a, p.66) ao analisar a importância dos contos fantásticos na modernidade, conclui que tais narrativas proporcionam certa capacidade de reflexão crítica, pois causam no leitor certa “estranheza de coisas que se tornaram banais, quando elas são vistas repentinamente de um novo ângulo.” Isto porque tais narrativas distanciam-se da rigidez técnico-científica proporcionando uma maior liberdade, não apenas de interpretação como de reflexão propriamente dita, já que, segundo Olivo (2011, p. 19) “o próprio discurso literário (é) uma tentativa de interpretar a realidade.”. Vislumbra-se aqui o mesmo caráter pedagógico da análise do Direito na Literatura defendido por Ward, pois ao tratar de temas fantasiosos como dragões e fadas, o leitor é transportado a um Universo completamente diferenciado do seu próprio, habitado por povos distintos, com costumes e tradições diferentes, mas ainda assim similares. Ademais, Segundo Streck (2013, p. 229) “não há livro que não seja útil nessa relação direito-literatura.” Partindo desta afirmativa, propõe-se a utilização do personagem Saruman, presente na obra fantástica de J.R.R. Tolkien, para realizar análises referentes à retórica e ao Direito. 3. Saruman, o Mago

Saruman, o branco, também conhecido como Curunír, é um personagem criado por Tolkien, citado nos livros O Hobbit, Contos Inacabados e Silmarillion. Todavia, é na história do Senhor dos Anéis que Saruman mais se destaca. Acontece que os espíritos superiores, no intuito de auxiliar os povos livres da Terra-Média na luta contra o vilão Sauron, escolhem 5 magos (ou Istaris), dos quais Saruman é o líder, e os enviam à Terra, no intuito de, segundo Tolkien (2011, p.427) “aconselhar e persuadir os homens e os elfos para o bem, e procurar unir no amor e na compreensão todos aqueles que Sauron (…) tentaria dominar e corromper”. Saruman é apresentado em dois momentos distintos na obra de Tolkien; em Contos Inacabados, o referido autor (2011, p. 427) o descreve como um homem idoso, dotado de “ nobre semblante e porte, com cabelos negros e uma bela voz” trajando branco. “Tinha grande habilidade nos trabalhos das mãos, e era considerado (…) o chefe da Ordem.” Nesta apresentação, temos o Saruman não corrompido pelo poder, disposto a lutar pela paz social, pelo bem da Terra-Média e cumprir sua missão. Todavia, em O Senhor dos Anéis, Saruman é apresentado de forma diferente. Pesquisando sobre os Anéis de Poder e o Um Anel do vilão Sauron, objetos malignos capazes de dotar seus portadores de poderes inimagináveis, o mago Saruman fica fascinado pelo objeto e passa a desejá-lo para si. Desta forma, cria seu próprio exército, destrói florestas e corrompe humanos, no intuito de obter o poderoso Anel e se tornar o novo Mestre do Anel. Após ser revelado como um traidor, Saruman nos é descrito por Tolkien (2010a, p. 184) como

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 um velho, vestido num grande manto, cuja cor era difícil de definir, pois mudava se eles mexessem os olhos, ou se ele se movimentasse. O rosto era longo, com uma fronte alta; tinha olhos profundos e escuros, difíceis de se penetrar embora a expressão que agora tinham fosse grave e benevolente, além de um pouco cansada. Os cabelos e a barba eram brancos, mas mechas negras ainda se mostravam na altura dos lábios e das orelhas. Interessante destacar a mudança de cores que se opera no personagem. Tolkien (2010b, p. 274) descreve um diálogo entre Saruman e Gandalf, o mago cinzento engajado na destruição do vilão Sauron. Gandalf, relatando o encontro, assim diz: - 'Eu gostava mais do branco', disse eu. - 'Branco'!, zombou ele. 'Serve para começar. O pano branco pode ser tingido. Pode-se escrever sobre a página em branco; a luz branca pode ser decomposta'. -'E nesse caso deixa de ser branca', disse eu. 'E aquele que quebra uma coisa para descobrir o que ela é deixou o caminho da sabedoria. Saruman se revela agora como um traidor. Não era um servo do vilão Sauron, sendo na verdade, um inimigo deste, pois desejava destruí-lo e tomar o seu lugar. Tolkien (2011, p. 428) nos diz que ele “decaiu da sua elevada missão, e, tornando-se orgulhoso, impaciente e apaixonado pelo poder, buscou fazer sua própria vontade pela força e desalojar Sauron.” (grifou-se). Em certa parte da obra, Saruman é derrotado e se vê encurralado na sua própria torre pelos protagonistas do enredo e pelo mago Gandalf. Esta é a primeira vez em que o mago branco aparece frente aos personagens principais da obra, com exceção de Gandalf, que os alerta: “Saruman tem poderes que você nem imagina. Cuidado com a voz dele!” (TOLKIEN, 2010c, p. 182). Leitores desavisados poderiam imaginar que o mago possuía habilidades fantásticas como feitiços orais, mas não é este o caso. Ocorre que Saruman é um exímio orador, sendo hábil em utilizar a linguagem a seu favor, tecendo argumentações aparentemente não falhas, e capaz de exercer um grande poder de convencimento em todos aqueles que o ouvem. Sobre o assunto, diz Tolkien (2006, p. 264): A Voz de Saruman não era hipnótica, mas persuasiva. Aqueles que o escutavam não corriam perigo de entrar em um transe, mas de concordar com seus argumentos, enquanto totalmente despertos. Estavam sempre abertas à rejeição, por livre vontade e entendimento, tanto a sua voz enquanto falava como suas impressões posteriores. Saruman corrompia os poderes de raciocínio. Percebe-se, portanto, que o maior poder do mago branco corrompido ao mal, não eram suas propriedades em magias e feitiços, mas a utilização da retórica. Shippey (2000) chega a considerar Saruman como o mais contemporâneo dos personagens criados por Tolkien, vez que ele em muito se assemelha aos políticos modernos. De fato, em certa passagem da obra de 157

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 Tolkien (2010b, p.274), na qual Saruman tenta convencer o mago Gandalf a se tornar seu aliado, a semelhança se evidencia: Podemos esperar nossa hora, podemos guardar o que pensamos em nossos corações, talvez deplorando as maldades feitas incidentalmente, mas aprovando o propósito final e mais alto: Conhecimento, Liderança, Ordem; todas as coisas que até agora lutamos em vão para conseguir, mais atrapalhados que ajudados por nossos amigos fracos e inúteis. Não precisaria haver, e não haveria, qualquer mudança em nossos propósitos, só em nossos meios. Shippey (2000, p.119) afirma que nesta fala encontra-se “muitas das coisas que o mundo moderno mais aprendeu a temer: a queda de aliados, a subordinação dos meios aos fins, a ‘aceitação consciente de culpa no assassinato necessário’8”. Ademais, Ruud (2009) aduz que os argumentos proferidos pelo mago branco lembram as lições de Maquiavel, nas quais os fins justificam os meios, bem como os argumentos dos sofistas, fazendo com que causas perversas pareçam legítimas através do uso de palavras bem empregadas. Em diversas outras passagens da obra O Senhor dos Anéis, o personagem Saruman exibe seus dotes retóricos. Ele tenta convencer diversos personagens a se tornarem seus aliados, obtendo êxito em algumas destas tentativas. Tal fato, se transportado à nossa sociedade, pode ser readaptado para analisar a retórica jurídica, desvirtuada de seu papel. Importante destacar que Tolkien era um estudioso de filologia, tendo desenvolvido importantes trabalhos em linguística na Universidade de Oxford. Segundo Ruud (2009), Tolkien se considerava um filólogo e amante das palavras, sendo versado nos estudos de retórica. Em razão deste fato, o Autor infere que o personagem Saruman fora criado como exímio orador versado em retórica, em razão da proximidade que Tolkien possuía para com a linguagem. Para Ruud (2009, p. 142), “É claro que Tolkien queria que os leitores tivessem por oco o uso que Saruman faz da linguagem, vez que ele intitula o capítulo em que Saruman finalmente aparece como ‘A Voz de Saruman’9”. Apresentado o personagem, tentará se demonstrar os ecos da voz de Saruman no mundo jurídico por meio da utilização da retórica.

4. A Retórica Jurídica: Quando a voz de Saruman ecoa no Direito Após a segunda guerra mundial, a utilização do mero silogismo jurídico como forma de aplicação do Direito mostrou-se ineficaz, posto que legitimou a aplicação de leis injustas, como as leis nazistas. Desta forma, foi necessário buscar uma nova forma de aplicação normativa, que não 8

Traduziu-se do original: “many of the things the modern world has learnt to dread most: the ditching of allies, the subordination of means to ends, the conscious acceptance of guilt in the necessary murder.” 9

Traduziu-se do original: “It is clear that Tolkien wanted readers to focus on Saruman’s use of language, since he entitles the chapter in which Saruman finally appears ‘The Voice of Saruman’”.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 fosse puramente formal e permitisse a flexibilização de leis e princípios em prol de um Direito mais justo. Neste contexto, Perelman e Olbrecht-Tyteca (1996) propõe a retomada da retórica aristotélica como forma de ampliar o campo racional para além dos raciocínios dedutivos e indutivos. Assim, os autores concebem a chamada Nova Retórica, que resgata a retórica de Aristóteles e a complementa. Para Aristóteles (2005, p. 95) a retórica poderia ser definida como “a capacidade de descobrir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir.” Para o referido Autor, a finalidade da retórica é fazer com que a verdade e a justiça prevaleçam, vez que determinados auditórios possuem dificuldades em compreender certas argumentações. Assim, a retórica deve ser utilizada de forma quase pedagógica, convencendo e ensinando o ouvinte a respeito de verdade e justiça. Complementando o pensamento de Aristóteles, Perelman e Olbrecht-Tyteca (1996) procuram identificar o argumento adequado a cada caso, no intuito de convencer seu ouvinte. Assim, para os referidos Autores, (1996, p.5), o objeto da retórica “é o estudo das técnicas discursivas que visam a provocar ou a aumentar a adesão das mentes às teses apresentadas a seu assentimento”. Importante ressaltar que para Perelman (2004), faz-se necessário o conhecimento prévio do auditório ao qual se reporta, pois um bom argumento é aquele capaz de convencer o maior número de ouvintes possível, independentemente de suas particularidades 10. É neste sentido que Perelman (2004, p. 223) defende a utilização da retórica na aplicação do Direito, pois faz-se necessário convencer11 as partes de que a decisão não foi proferida de forma arbitrária, bem como torná-la “aceitável por juristas e, principalmente, pelas instâncias superiores que teriam de conhecê-la.” Para tanto, os juízes podem se deixar convencer por silogismos, situações extrajurídicas, ou por ficções jurídicas. Todavia, Perelman (2004, p.220) afirma que independentemente do que motivou determinada decisão, ela deve ser justificada e juridicamente fundamentada a fim de que se evitem arbitrariedades: Nunca se deve perder de vista que o juiz, ao redigir uma sentença, não tem de exprimir uma opinião estritamente pessoal. Se sua íntima convicção lhe permite considerar como estabelecidos os fatos, estando conforme as prescrições da lei o procedimento concernente aos meios de provas – mais ainda, é necessário que essa convicção não pareça desarrazoada -, a qualificação dos fatos e as consequências jurídicas que deles extrai devem corresponder a uma opinião comum, de fato ou de direito. É necessário que a motivação da decisão demonstre suficientemente que esta é conforme ao direito em vigor, tal como é entendido pelas instâncias superiores e pela opinião de juristas qualificados.

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O auditório universal é um conceito ideal proposto por Perelman, significando que um bom argumento é aquele capaz de convencer os mais diversos tipos particulares de pessoas concentrados em um mesmo auditório – ou seja, um argumento que supera as particularidades dos indivíduos e torna-se “universal”. 11

Convencer e persuadir são conceitos distintos. O primeiro significa conquistar a adesão do auditório universal, enquanto o segundo significa conquistar a adesão de um auditório específico.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 Note-se que Perelman (2004) preocupa-se com a capacidade de convencimento do auditório ao qual se destinam as decisões judiciais, pois para que estas não sejam consideradas arbitrárias, deveriam ser motivadas através de argumentos retóricos. Destarte, tais decisões passam a ser tidas como razoáveis. De fato, White (1985) afirma que o papel do jurista é convencer o ouvinte através de uma argumentação válida12. Todavia, segundo Atienza (2003) a proposta de Perelman merece ser analisada de forma mais crítica vez que, mesmo que o orador conquiste a adesão e o convencimento do auditório para o qual fala, isto não significa que a decisão proferida é perfeita. Neste mesmo sentido Oliveira (2011, p.31) acredita que Perelman desconsidera, de forma muito radical, que o fenômeno da adesão, em certos contextos político-sociais conflitivos, possa desviar deste ideal de razoabilidade aperfeiçoável, de consenso, na medida em que possa estar vinculado a relações de poder e dominação social, cujas relações de força são dissimuladas pelo próprio discurso retórico. Nesse sentido, a persuasão é bem-sucedida, na medida em que ela resulta de uma manipulação de conceitos e definições, que justamente visa encobrir os conflitos e as relações de força que estão na base da formação da sociedade. Segundo Bakhtin (1997, p. 47) “a classe dominante tende a conferir ao signo ideológico um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava”, tornando o signo monovalente. Desta forma, pode-se inferir que a retórica pode ser utilizada para ocultar as reais intenções de um orador, que através do discurso camufla seus objetivos, expondo argumentos aparentemente bons para convencer e persuadir o auditório. Eis aqui vestígios da voz de Saruman. No que se refere ao ambiente jurídico, observa-se que não raras vezes, a norma é aplicada de forma a defender interesses específicos em detrimento do próprio bem comum do povo, ao argumento de supremacia do interesse público, livre arbítrio do juiz, etc13. Tais argumentos retóricos assemelham-se muito as justificativas que o personagem Saruman apresenta para explicar suas ações condenáveis, feitas em nome de um pretenso propósito final e mais importante. Assim, conquista-se a adesão do auditório, mas não necessariamente aplica-se o Direito de uma forma imparcial, como se faz crer. No que se refere aos estudos de retórica no ambiente jurídico, Rossetti (2005, p. 134) afirma que estes são poucos justamente em razão do “temor pelo desmascaramento, (…) O temor de perder a força coercitiva de uma teoria imposta como ‘verdade’”. Neste sentido, o Autor prossegue:

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James Boyd White, estudioso da linha de Direito e Literatura, propõe uma teoria na qual compreende o próprio Direito como retórica. 13 Pode-se tomar como o polêmico caso da Usina de Belo Monte, que a despeito de diversas irregularidades apuradas, obteve decisões judiciais favoráveis à continuação da obra em duas oportunidades distintas, sendo que na primeira o argumento teve por base a defesa da economia nacional, e na segunda, o argumento utilizado foi de que a decisão guerreada (qual seja, decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que determinava a proibição de qualquer ato de licenciamento à Belo Monte, por parte do IBAMA – algo que geraria a paralisação da obra) afrontava a primeira decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Sobre o tema consultar o Voto da Ministra Ellen Grace, disponível em: < http://www.stf.jus.br/imprensa/pdf/sl125.pdf > (Acesso em 31 jul. 2013) e o Voto do Ministro Ayres Britto, disponível em < www.stj.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/rcl14404.pdf> (Acesso em 31 jul. 2013). No Superior Tribunal de Justiça, tem-se como exemplo os agravos regimentais números 279.889-AL e 319.997 - SC , nos quais os fundamentos das decisões tem por base a suposta sabedoria de juiz.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 a “retórica foi prostituída e a pretensa cientificidade do direito”, conforme uma tentativa filosófica analítica, “necrosou”. Muito do direito tornou-se mera ideologia imposta com mãos-de-ferro. A reflexão jurídica estancou e impediu o combate incisivo contra toda forma de imposição absolutista. Cedeu ao que lutou por destruir: os direitos deram passagem à força bruta e à arbitrariedade, perdendo legitimidade à medida que cerceavam, cada vez mais, o espaço relativista das discussões investigadoras. E isso não se deu com a norma e, a partir dela, em direção à academia, no universo da conjecturação, mas foi no sentido inverso, das “mentes pensantes”, à realização dos debates judiciários, no mundo concreto. (ROSSETTI, 2005, p.136) O Autor defende, portanto, que a retórica foi desvirtuada de seu uso no intuito de coibir reflexões aprofundadas e críticas sobre o papel e utilização do Direito. Criam-se dogmas normativos e neles se acreditam, posto que a Lei parece sempre agir em nome de um “bem maior”. Sobre o tema, Rossetti (2009, p. 139) afirma: quando a retórica aparece, ela é usada de maneira leviana, perniciosa e promíscua. E o pior é que a usam sem assumirem tal intento: tratada como uma prostituta, é marginalizada e forçada torpemente ao servil corriqueiro e sem valor magistral. No entanto, esse descaso com a retórica é a causa daquela necrose, pois, uma vez que ela não é ambientada para servir nobremente ao interesse das reflexões opinativas e axiológicas, a própria cientificidade do direito perece diante de um preconceito – pensar que a retórica é meio de deturpação da verdade e destruidora da credibilidade dos conceitos. Ao contrário, sustentamos que, se não há espaço para a livre discussão, o direito revela-se demasiadamente ideológico. Portanto, ele é morto no mundo real, rumo à sua própria vivisseção de sua condição elementar, que é a de fazer valer a própria liberdade individual. Observe-se mais sussurros da voz de Saruman. O mago também lança premissas aparentemente razoáveis e defensoras de um bem maior, mas que em diferentes ocasiões ocultam interesses diversos. Em certa parte da obra O Senhor dos Anéis, Saruman tenta convencer o Rei humano Théoden a tornar-se um aliado, utilizando-se do discurso de autoridade, “Vai ficar com minha paz e com toda a ajuda que meu conhecimento, fundado em longos anos, pode trazer? Faremos juntos nossos planos contra dias maléficos, e repararemos nossas ofensas com tamanha boa vontade que nossos estados poderão florescer mais belos que nunca?” (TOLKIEN, 2010c, p.185). No ambiente jurídico, observa-se o mesmo apelo à autoridade na tentativa de convencer a razoabilidade de determinada decisão: Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina 161

Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico - uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja14. Observe-se na citação acima a voz de Saruman que utiliza argumentos de autoridade para justificar sua decisão. Tal como o mago parece almejar a simpatia do Rei Théoden, ao argumento de que sua sabedoria é a única capaz de reerguer seus reinos, o magistrado na citação acima se coloca, como dono da verdade, capaz de emanar decisões nas quais a norma é aplicada de forma perfeita apenas pelo fato de que quem o faz é um juiz, detentor de notório saber jurídico. Neste sentido, vislumbra-se uma retórica completamente deturpada, que não contribui para discussões e reflexões jurídicas, mas antes para a manutenção do status quo, pois inviabiliza questionamentos. Partindo destas constatações, compreende-se que a retórica, da forma como é utilizada, auxilia não no pensamento crítico do Direito, mas antes em um estado de letargia no qual se aceitam as aplicações das normas de forma acrítica, sem questionamentos no sentido de ali haver eventuais interesses ocultos. A retórica jurídica parece estar ecoando a própria voz de Saruman, pois é utilizada para confundir e legitimar interesses específicos, além de contribuir para a formação de dogmas. Desta forma, é importante manter-se alerta a fim de evitar que qualquer mago habilidoso engane seus ouvintes e utilize a retórica de maneira deturpada. 5. Considerações Finais

A Retórica, pensada como uma nova forma de aplicação normativa, no intuito de ampliar o campo racional para além dos raciocínios dedutivos e indutivos, foi incialmente concebida como uma forma de se evitar arbitrariedades na aplicação do Direito. Todavia, a retórica foi desvirtuada. Utilizada de forma leviana, sendo vista como forma de deturpar verdades e destruir a credibilidade de conceitos, é manejada como forma de persuasão, perdendo a sua razão de ser inicial.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 319997-SC.. Relator: Min. Francisco Peçanha Martins. Brasília, 2001. Disponível em: Acesso em: 31 jul. 2013.

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Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 66, ago.dez. 2015 Com o objetivo de convocar uma reflexão crítica, vislumbrando a retórica a partir de uma ótica literária equidistante e, ao mesmo tempo, próxima à realidade jurídica, o presente ensaio procurou demonstrar que a retórica pode ser utilizada como instrumento de legitimação de injustiças – exatamente como o mago Saruman o faz. Propôs-se um afastamento da realidade cotidiana jurídica, para que, com o auxílio de uma obra fantástica, fosse possível vislumbrar situações corriqueiras sob o disfarce de Saruman e sua inebriante voz. O personagem em questão foi eleito pelo motivo de que seu discurso, lançado por meio de artifícios retóricos, encontra correspondência com a utilização deturpada que se faz da retórica em âmbito jurídico. Desta forma, identificou-se vestígios da voz de Saruman na forma como a retórica é utilizada; desvirtuada de sua proposta de uso inicial, ela passa a servir de instrumento para vozes tão persuasivas quanto à do próprio mago.

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