Direito e Paraconsistência: uma interface entre a lógica discursiva e as lógicas de inconsistências formais para a descrição da interação entre ordenamentos jurídicos positivos e entendimentos jurisprudenciais majoritários.

June 1, 2017 | Autor: V. Nascimento | Categoria: Direito, Lógica Jurídica, Lógica Modal, Lógica Paraconsistente
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D I R E I T O E PA R A C O N S I S T Ê N C I A : U M A I N T E R FA C E E N T R E A L Ó G I C A D I S C U R S I VA E AS LÓGICAS DE INCONSISTÊNCIAS FORMAIS PA R A A D E S C R I Ç Ã O D A I N T E R A Ç Ã O E N T R E ORDENAMENTOS JURÍDICOS POSITIVOS E ENTENDIMENTOS JURISPRUDENCIAIS M A J O R I TÁ R I O S ( M O N O G R A F I A PA R A ADMISSÃO NO MESTRADO/PUC-RIO EM LÓGICA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM)

Victor Luis Barroso Nascimento 29/09/2015 Resumo A presente monografia, elaborada para fins de admissão no programa de Mestrado em Filosofia da PUC-RIO (Área de concentração: Lógica e Filosofia da Linguagem), tem por finalidade demonstrar que a utilização da Lógica Discursiva de Stanisław Ja´skowski em conjunto com as Lógicas de inconsistências formais, em especial na formulação realizada pelo Prof. Newton da Costa, constitui um método promissor para a resolução de antinomias jurídicas, tanto em relação a contradições entre proposições jurídicas integradas, mas que compõem níves de normatividade distintos e autônomos (como é o caso dos entendimentos jurisprudenciais consolidados em diferentes tribunais de um mesmo sistema jurídico), quanto em relação a contradições entre proposições localizadas em um mesmo corpo ordenado de normas (como é o caso do direito positivo em si).

conteúdo 1 Antinomia e Direito 2 1.1 Descrição geral dos conceitos de antinomia e paraconsistência 2 1.2 A lógica discursiva (LD) como ferramenta para a descrição da "jurisprudência majoritária"dos tribunais e de sua variabilidade 3 1.3 A lógica de inconsistências formais do tipo C1 (LIF-C1) como ferramenta para a descrição de sistemas onde coexistem normas contraditórias 6 2 Utilização integrada da LD com a LIF-C1 7 2.1 A jurisprudencialização da norma e normativização da jurisprudência 7

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Limites lógicos da transposição: a metainconsis10 tência na lógica inconsistente 3 Uma proposta integradora: a possibilidade de uma Lógica Discursivo-inconsistente 11 4 Conclusão 11 2.2

1 antinomia e direito 1.1 Descrição geral dos conceitos de antinomia e paraconsistência Um dos problemas que até hoje mais assombram os teóricos do direito (especialmente aqueles com vocação lógica ou positivista) é o da coexistência de duas normas válidas e contraditórias dentro de um mesmo ordenamento jurídico. Objeto de controvérsias até no tocante à possibilidade lógica de sua existência, a antinomia jurídica, para aqueles que a reconhecem, constitui um dos maiores óbices à expressão das normas jurídicas vigentes em uma linguagem puramente formal. Na tentativa de conferir ao Direito um aspecto lógico e consistente, é tentador postular, como fazem diversos autores, que, sendo o ordenamento jurídico conceitualizado como uma entidade una e coesa, todo conflito de normas é meramente aparente, de tal modo que qualquer raciocínio jurídico que contenha em sua conclusão duas normas contraditórias está necessariamente errôneo ou incompleto. No entanto, como bem salientado por Hans Kelsen1 , não existe nenhuma contradição lógica na vigência concomitante de duas normas jurídicas com conteúdos opostos - muito embora, do ponto de vista político e pragmático, esta seja uma situação normativa extremamente indesejável. Tendo isto em mente, caso se reconheça que a antinomia se afigura como possibilidade concreta, uma descrição lógica eficaz do Direito necessariamente precisa enfrentar duas questões: 1. Como tomar por verdadeiras, em um mesmo sistema lógico, duas proposições (normas) com conteúdos contraditórios, sem que com isto o mesmo seja comprometido e condenado à trivialidade? 2. Como este sistema se aplica ao campo específico do Direito, e que tratamento é conferido por ele às antinomias jurídicas? 1 "Não

pode naturalmente negar-se a possibilidade de os órgãos jurídicos efetivamente estabelecerem normas que entrem em conflito umas com as outras.(...). Um tal conflito de normas surge quando uma norma determina uma certa conduta como devida e outra norma determina também como devida uma outra conduta, inconciliável com aquela. Assim sucede, por exemplo, quando uma das normas determina que o adultério deve ser punido e a outra que o adultério não deve ser punido; ou quando uma determina que o furto deve ser punido com a morte e a outra determina que o furto deve ser punido com prisão (e, portanto, não é com a morte que deve ser punido". KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Martins Fontes, 1999. pg. 143

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O presente trabalho visa responder à segunda questão. A primeira questão, por sua vez, vem sendo solucionada ao longo do tempo de diversas formas diferentes pelos teorizadores das lógicas não-clássicas denominadas "paraconsistentes", que têm por objeto a criação de linguagens lógicas que, não obstante não possuírem como axioma o princípio da não-contradição, não resultam em explosão lógica. Com isto, tem-se que as lógicas paraconsistentes necessariamente rejeitam os seguintes axiomas: ⊢ ¬( a ∧ ¬a) ∀( x ), ∀(y)( x, ¬x ) ⊢ y Os procedimentos através dos quais cada uma destas lógicas refutam os princípios supracitadas sem renunciar à sua significância e expressividade são extremamente variados. Na presente monografia, será dada ênfase a duas lógicas paraconsistentes específicas: a Lógica Discursiva, de Stanisław Ja´skowski, e a Lógica de Inconsistências formais do tipo C1 (LIF-C1), de Newton da Costa.

1.2 A lógica discursiva (LD) como ferramenta para a descrição da "jurisprudência majoritária"dos tribunais e de sua variabilidade Em que pese não sejam tradicionalmente consideradas fontes do direito de per se nos ordenamentos jurídicos que seguem o modelo da Civil Law, as decisões judiciais cumprem um importante papel na determinação do conteúdo das obrigações jurídicas, uma vez que cabe ao Judiciário pacificar conflitos oriundos de discordâncias quanto ao exato conteúdo das leis e, neste processo, estabelecer de maneira objetiva o que normalmente se pode esperar daquele mesmo tribunal em matéria de decisões judiciais. Neste sentido, comumente se menciona no meio jurídico a existência de entendimentos "majoritários", "sedimentados"ou "consolidados"sobre determinados assuntos, que, à exceção de alguns precedentes compartilhados, variam de corte para corte, sendo os precedentes majoritários diferenciados dos demais tanto pela sua altíssima taxa de replicação em casos que obedecem a determinado parâmetros quanto por sua relativa resistência a tentativas de reforma do seu conteúdo. Conquanto não seja possível afirmar que se trata verdadeiramente de um conflito de normas, a divergência jurisprudencial entre as cortes é um fenômeno que deve ser levado em conta durante a descrição dos precedentes judiciais e de seus efeitos. Ademais, admitindo-se que estes precedentes possuem (ainda que indiretamente) algum caráter normativo e, ainda, que o sis-

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tema judiciário é um conjunto orgânico de normas e decisões2 , forçoso reconhecer que, muito embora as jurisprudências majoritárias se localizem em esferas normativas distintas e usualmente sejam dotadas de relativa autonomia em relação às demais, a existência de contradições entre duas ou mais delas implica na impossibilidade de descrição una do conjunto de entendimentos jurisprudenciais majoritários vigentes em um mesmo ordenamento jurídico sem a presença de contradições. Trata-se, portanto, de uma antinomia entre proposições existentes em esferas normativas (conjuntos de proposições) distintas, sendo que, muito embora seja admitida a existência de contradições na descrição do conjunto de todos estes conjuntos, caso sejam tomadas apenas as proposições existentes em qualquer um dos conjuntos de forma isolada, não subsiste contradição alguma. Em outras palavras: muito embora a contradição não seja permitida dentro de nenhuma destas esferas (as jurisprudências majoritárias de um tribunal são sempre consistentes entre si), não existe nenhum impedimento à contradição entre proposições de esferas diferentes (a jurisprudência majoritária de um tribunal pode ser diferente da jurisprudência majoritária de outro). Devido às peculiaridades desta forma heterotópica de contradição, a Lógica Discursiva (LD), criada pelo lógico polonês Stanisław Ja´skowski, parece adequar-se perfeitamente à resolução formal do problema apresentado. A LD é um sistema de representação que separa diferentes conjuntos de proposições em diferentes esferas de aplicação3 , estabelecendo que a vedação à contradição é válida apenas no interior de cada um desses âmbitos, sendo, no entanto, plenamente possível a existência de contradição entre elementos contidos em esferas de aplicação diferentes. Ou seja: dados dois conjuntos de normas (C1) e (C2), ambos regidos internamente pelas regras da lógica proposicional, o princípio da não-contradição é plenamente válido para as fórmulas criadas a partir exclusivamente do elementos de (C1) ou dos de (C2), mas isso não constitui óbice algum à presença simultânea do elemento ( a) em C1 e do elemento (¬a) em C2 (ou seja, da contradição entre elementos contidos em grupos diferentes). Originalmente, esta lógica foi criada para exprimir de forma não contraditória a validade simultânea de diferentes grupos de opiniões e/ou asserções pertencentes a diferentes indivíduos. É razoável esperar que o conjunto particular das crenças 2 Ou,

ainda nos dizerem de Kelsen, de "normas individuais"criadas pelos juízes na aplicação do Direito. 3 Neste contexto, os termos "âmbito de aplicação"e "esfera de aplicação"devem ser entendidos como um conjunto particular de proposições que se insere em um conjunto geral de proposições. Ou seja: se os conjuntos (C1) e (C2) são âmbitos de aplicação, o conjunto universo de proposições é composto pelos elementos { C1, C2 }

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de um indivíduo guarde uma relação interna de consistência e não-contradição, mas, uma vez que as crenças sobre um mesmo tema podem ser divergentes, não se espera que este mesmo conjunto de crenças necessariamente encontre-se em um uma relação de não-contradição com conjuntos de crenças pertencentes a outros indivíduos. Quando uma descrição é feita utilizando variáveis simples (a,b,c), a sistemática da LD faz com que ela se refira a todas as instanciações daquele elemento em todos os âmbitos de aplicação ( a1 , a2 , b1 , b2 , c1 , c2 ). Na descrição dos elementos de algum âmbito de aplicação específico, é necessário que os elementos sejam diferenciados de acordo com o grupo no qual a sua afirmação ou negação está sendo verificada ( a1 , a2 , a3 , (...), an ). As operações entre proposições de um mesmo grupo são idênticas às operações da lógica proposicional clássica; no entanto, descrições que se refiram ao conjunto de todos os âmbitos de aplicação possuem regras próprias, mas que são "tradutíveis"em regras da lógica modal tipo S5. Caso afirme-se, por exemplo, que um elemento ( a) é válido para o conjunto (C) de todos os âmbitos de aplicação existentes, implica-se automaticamente (◇a) para a descrição do sistema total, e a primeira afirmação é considerada verdadeira apenas se ( a) for verdadeiro em pelo menos um dos âmbitos de aplicação. Ademais, como as afirmações gerais se referem a elementos de todos os grupos, algumas fórmulas discursivas possuem comportamentos anômalos, que, em um primeiro momento, se apresentam como contra-intuitivos; muito embora a fórmula ( a ⊧ a ∨ b) seja discursivamente verdadeira (já que a validade da disjunção é necessariamente verdadeira no âmbito que contém ( a), ainda que seja possível que (¬a, ¬b) seja verdadeiro em algum outro âmbito e, portanto, a disjunção não seja verdadeira no interior deste), a fórmula ( a, ¬a ⊧ ( a ∧ ¬a)) nunca é discursivamente verdadeira, posto que a existência simultânea de ( a) e (¬a) só ocorre quando ( a) é verdadeiro em um âmbito e (¬a) é verdadeiro em outro, sendo logicamente impossível a existência da fórmula ( a ∧ ¬a) - ou seja, a existência simultânea de ( a) e (¬a) - em qualquer dos âmbitos individualmente considerados. Em outras palavras: muito embora o sistema aceite contradições discursivas que sejam tradutíveis para a fórmula (◇a ∧ ◇¬a), contradições do tipo ( a1 ∧ ¬a1 ) não existem no sistema. Frente a todo o exposto, a esta altura já é possível determinar como a LD se aplicaria à descrição da antinomia jurisprudência. Trata-se, em verdade, de um expediente simples: basta considerar que cada tribunal ou corte é um âmbito de aplicação para a jurisprudência majoritária de sua própria criação,

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o que mantém a jurisprudência interna plenamente coerente 4 sem negar a possibilidade de existência de contradição entre as jurisprudências das diferentes cortes entre si. Por fim, indique-se que as pretensões de descrição global são plenamente atingidas por este modelo, já que é possível não só criar fórmulas referentes à jurisprudência dos tribunais individualmente considerados (como, por exemplo, ( a TRF−2 ⊃ b TRF−2 )) como também fórmulas que se refiram à jurisprudência de uma maneira generalizada (como a afirmação generalizada ( a) ou, simplesmente, (◇a), que é verdade se e somente se ( a) for verdade em {TRF-1}, {TRF-2},{TRF-3},{TRF-4}ou {TRF-5}, por exemplo).

1.3 A lógica de inconsistências formais do tipo C1 (LIF-C1) como ferramenta para a descrição de sistemas onde coexistem normas contraditórias Diferentemente da antinomia jurisprudencial, a antinomia consistente em um conflito de normas jurídicas válidas não pode ser solucionada por meio da aplicação da LD, eis que, por estarem as normas no mesmo ordenamento jurídico, os elementos contraditórios necessariamente estão concentrados em um mesmo plano lógico. Com isto, para a solução desta nova modalidade de contradição, mostra-se necessária a introdução de uma lógica capaz de codificar fórmulas consistentes e inconsistentes em um mesmo plano - como a Lógica de Inconsistências Formais do tipo C1, desenvolvida por Newton da Costa. Neste sistema, a consistência e a inconsistência das proposições (ou seja, a possibilidade ou não de elas se contradizerem) são considerados objetos lógicos próprios, e não axiomas do sistema. Com isto, a consistência passa a ser considerada não como princípio, mas sim como uma mera fórmula (que pode vir a ser utilizada ou não). Com efeito, Newton constrói a sua lógica C1 a partir de todos os axiomas normalmente aceitos na lógica clássica, mas com algumas distinções importante: 1. O princípio da nãocontradição não é adotado como axioma, do que se depreende 4 Ressalte-se,

no entanto, que a consistência só existe porque se está tratando exclusivamente do conceito de "jurisprudência majoritária". O próprio adjetivo "majoritário"já indica que existem entendimentos minoritários no interior da própria corte, de forma que, caso se pretendesse descrever o conjunto de jurisprudências minoritárias junto com o de majoritárias, seria necessário ou criar âmbitos diferenciados para as jurisprudências majoritárias e minoritárias de uma mesma corte (o que diminuiria a utilidade desta ferramenta, já que seríamos obrigados a descrever as jurisprudências de um mesmo tribunal utilizando dois ou mais grupos/âmbitos distintos e, assim, "setorizá-las") ou reescrever o âmbito de aplicação em uma linguagem que tolerasse contradições internas. Breves esboços de um possível modelo que viabilize esta segunda opção serão feitos ao final do presente trabalho.

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que as proposições, em regra, são inconsistentes; 2. Para que uma proposição seja consistente, ela deve estar acompanhada de outra proposição que indique a sua consistência (simbolizada por Newton como ( a○ )); 3. Nenhuma proposição pode ser derivada de duas proposições contraditórias. Como se pode notar, o ponto 1 introduz a possibilidade de contradições dentro do sistema, enquanto o ponto 3, por tornar as proposições contraditórias "estéreis"quando tomadas em conjunto, elimina completamente a possibilidade de explosão lógica a partir da contradição. Este sistema, portanto, nos permite descrever sistemas com proposições inconsistentes nos exatos moldes da lógica proposicional clássica, com a ressalva de que a aplicação das regras desta só é integralmente válida para proposições consistentes. Ou seja: as proposições consistentes em nada diferem das proposições escritas em lógica clássica5 , mas o sistema em si é não é clássico porque admite a existência de proposições inconsistentes em seu interior. Portanto, esta lógica nos permite explicar perfeitamente a existência de um ordenamento jurídico onde, ainda que seja correto afirmar que a permissão de fazer algo implica na nãoproibição de fazer este mesmo algo e que, portanto, a existência simultânea de permissão e proibição é contraditória ( Per (n) ≡ ¬Pro (n)), exista uma norma afirmando que ( a) é permitido e outra norma afirmando que ( a) é proibido, sendo ambas consideradas vigentes ao mesmo tempo. Para isto, basta que estabeleçamos que trata-se de uma inconsistência no sistema, podendo serem consideradas como simultaneamente vigentes as normas ( Per ( a), Pro ( a), ¬Per ( a), ¬Pro ( a)). No entanto, um efeito indesejável deste tipo de raciocínio, como já visto, é a total impossibilidade de manipular proposições normativas em conjunto quando elas são inconsistentes. Mais considerações a esse respeito serão tecidas no ponto 2.2. 2 utilização integrada da ld com a lif-c1 2.1 A jurisprudencialização da norma e normativização da jurisprudência Muito embora sejam aplicadas para fins distintos, possuam especificidades próprias e até mesmo utilizem axiomas diversos, existe um ponto de contato importantíssimo entre a LD e a LIF-C1, a saber: ambas contém uma "esfera isolada"no interior da qual as únicas regras vigentes são aquelas que compõem 5 "Teorema

4. Se a C1 juntarmos o princípio da não-contradição, obtemos o cálculo proposicional clássico."DA COSTA, Newton. Sistemas Formais Inconsistentes. Ed. da UFPR, 1993. pg. 39

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a lógica proposicional clássica (no caso da LD, o interior de qualquer âmbito de aplicação considerado individualmente; no caso da LIF-C1, qualquer conjunto que contenha apenas proposições consistentes). Ademais, muito embora a existência de contradições seja impossível dentro dos âmbitos da LD, ela não o é no conjunto único da LIF-C1, o que nos permite concluir que a transposição simultânea de âmbitos com elementos contraditórios entre si da LD para a LIF-C1 é plenamente possível, bastando apenas que eles sejam denotados como inconsistentes nesta última. Por fim, não existe nenhum óbice para que proposições inconsistentes sejam transpostas da LIF-C1 para a LD, bastando apenas que elementos contraditórios entre si sejam atribuídos a âmbitos diferentes e que, com isso, nenhum âmbito contenha contradições internas. Em suma, a conversão entre sistemas é regida por estes quatro princípios: 1- Toda proposição existente no interior de um âmbito de aplicação qualquer na LD pode ser reformulada como uma proposições consistente na LIF-C1; 2 -Toda proposição consistente existente na LIF-C1 pode ser transposta para um âmbito de aplicação qualquer na LD; 3- Caso dois ou mais âmbitos de aplicação da LD que contenham proposições contraditórias entre si sejam transpostos simultaneamente para a LIF-C1, todas as proposições contraditórias se tornarão proposições inconsistentes; 4- Caso proposições inconsistentes sejam transpostas da LIFC1 para a LD, a afirmação e a negação de uma mesma proposição devem necessariamente ser atribuídas a âmbitos de aplicação diferentes, evitando-se, assim, a criação de inconsistências internas nos mesmos. Respeitados estes limites, a transposição de elementos de um plano lógico para outro é totalmente livre. A partir deste esquema, podemos concluir que, quando um tribunal pacifica um dissídio resultante do conflito entre duas normas, esta ação decisional pode ser descrita logicamente como uma transposição das normas inconsistentes do ordenamento para dois âmbitos de aplicação diferentes, sendo as normas de um deles consideradas aplicáveis e as normas de outro consideradas não-aplicáveis6 . 6 Isto

também é válido para a aplicação dos critérios de solução dos "conflitos aparentes de normas"no Direito Brasileiro, como os da hierarquia, cronologia e especialidade. Bastaria que, neste caso, se criassem âmbitos capazes de discriminar duas ou mais normas com base nestes critério (como, por exemplo, (normas criadas antes de 2002) e (normas criadas após 2002)) e só se considerassem acatadas pela jurisprudência as normas de determinada categoria.

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Como exemplo desta situação, imagine-se que, em um mesmo ordenamento, existem as normas contraditórias ( Pro ( a), ¬Pro ( a)). Caso os juízes entendam, com base em alguma razão metajurídica, que a norma (¬Pro ( a)) deve ser aplicada ao caso e que a outra deve ser ignorada, pode-se considerar que eles estão apenas criando um âmbito denominado (normas aplicáveis) e outro denominado (normas não-aplicáveis) e, no processo, atribuindo (¬Pro ( a)) ao primeiro e ( Pro ( a)) ao segundo. Ainda que se trate apenas de adoção da norma ( Pro ( a)) de forma minoritária (e não da sua total derrogação), bastaria indicar que as normas estão sendo distribuídas entre os âmbitos (jurisprudência majoritária) e (jurisprudência minoritária). Superada a questão da transposição de normas para a jurisprudência, analisemos agora a possibilidade de transposição dos entendimentos jurisprudenciais para o conjunto de normas, dando especial ênfase para os efeitos que as diferentes formas de realização deste expediente ocasionam. Caso se pretenda transpor entendimentos jurisprudenciais majoritários de determinado tribunal (digamos, do TRF-2) para o ordenamento jurídico, uma vez que estes entendimentos são regidos pela lógica clássica (âmbito interno da LD), todas as proposições-entendimentos transpostas serão necessariamente coerentes entre si, do que se depreende que a criação de uma inconsistência só é possível caso algum dos entendimentos seja contrário à lei. Considerando que o Direito Brasileiro (bem como muitos outros) tende a repudiar entendimentos contra legem e a considerá-los indesejáveis ou até mesmo inválidos, o nível de contradições que a transposição ocasionaria, em teoria, tenderia a ser bem reduzido. No entanto, este quadro de simplicidade teórica muda quando consideramos a possibilidade de normativização dos entendimentos jurisprudenciais majoritários de mais de uma corte ao mesmo tempo. Não obstante a permanência da possibilidade de contradição em casos de entendimentos jurisprudenciais contra legem, a tranposição de dois ou mais âmbitos inevitavelmente gera a possibilidade de transposição de dois entendimentos contraditórios entre si que estavam presentes em tribunais diferentes (criando, assim, uma inconsistência que inexistia anteriormente no ordenamento jurídico). Portanto, ao contrário da transposição de jurisprudências a partir de um único âmbito/tribunal, a transposição múltipla tenderia a gerar um número grande de inconsistências, sendo o número destas proporcional tanto à quantidade de divergências existentes entre os tribunais quanto à quantidade de entendimentos contra legem que todos eles possuem.

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2.2 Limites lógicos da transposição: a metainconsistência na lógica inconsistente Como visto anteriormente, uma das características da lógica C1 é a total impossibilidade da derivação de qualquer proposição a partir de duas proposições contraditórias entre si. A adoção deste princípio resolve de maneira simples o problema da explosão lógica a partir do contraditório; no entanto, esta noção acaba gerando um problema prático na descrição de um grupo bem específico de normas. Imagine-se, por exemplo, que as seguintes regras sejam vigentes no interior de um mesmo ordenamento jurídico: 1- Se alguém é dono de um cachorro, este alguém é dono de um animal bonito e não-bonito ao mesmo tempo (c ⊃ (b ∧ ¬b)); 2 - Está instituído o Imposto sobre Animais Bonitos e Nãobonitos, que pode ser cobrado de qualquer pessoa que seja dona de um animal bonito e não-bonito ((b ∧ ¬b) ⊃ Per (cobrar )); Neste ordenamento, (c) aparenta ser consistente, mas, não obstante a inconsistência de (b), temos que a norma expressa em 2. é inválida em C1. Ainda assim, a estrutura da norma não parece nos indicar que a formulação de algo similar seja impossível na vida real. Como se não bastasse, nos parece ser intuitivo aplicar o axioma ( a ⊃ b, b ⊃ c ⊢ a ⊃ c) e afirmar que (c ⊃ Per (cobrar )), já que o dono de um cachorro necessariamente é dono de um animal bonito e não-bonito e que a norma é aplicável justamente a donos de animais bonitos e não-bonitos. Por fim, muito embora talvez se possa afirmar que "bonito e não-bonito"é uma qualidade singular neste caso e, portanto, deve ser representado por uma única proposição (c ⊃ x, x ⊃ Per (cobrar ) ⊢ c ⊃ Per (cobrar )), este tipo de resposta ignora a questão fundamental que foi colocada, além de pressupõer a criação de um objeto lógico que, em sua estrutura, simultaneamente possui e não possui determinada qualidade, constituindo verdadeira petição de princípio. A simples junção da LD com a LIF-C1 não nos permite resolver este impasse. Ainda que se decompusesse a fórmula (c ⊃ (b ∧ ¬b)) em (c ⊃ b) e (c ⊃ ¬b) e as duas fossem deslocadas para âmbitos diferentes da LD, a norma descrita em 2. não é passível de qualquer tipo de decomposição. Trata-se, de certa forma, de uma "metainconsistência"ou, simplesmente, de uma incompletude do sistema paraconsistente C1. Atualmente, não dispomos de ferramentas lógicas suficientes para descrever corretamente a situação supracitada sem incorrer em explosão lógica ou simples contradição paraconsistente.

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3 uma proposta integradora: a possibilidade de uma lógica discursivo-inconsistente Levando em conta a já mencionada aproximação entre as duas linguagens, proporcionada pela ampla utilização por ambas da lógica proposicional clássica, é possível, ainda, que levantemos a seguinte questão: é possível a criação de uma Lógica Discursiva cujos âmbitos de aplicação sejam regidos pelas normas da LIF-C1? Ao que tudo indica, esta ainda é uma possibilidade em aberto. Sendo a lógica LIF-C1 nada mais que uma modalidade da lógica clássica que rejeita o princípio da não-contradição, inexistem impedimentos aparentes a que se criem âmbitos discursivos onde esse princípio também seja rejeitado. Ainda que se encontre alguma contradição entre os âmbitos paraconsistentes e as fórmulas modais descritivas do todo, é possível que um simples ajuste da lógica modal que descreve o sistema consiga conferir por si só um tratamento adequado à descrição da totalidade de âmbitos paraconsistentes. Já é possível afirmar, a priori, que não haveria uma identidade total entre os teoremas que possivelmente seriam válidos nesta nova lógica e os teoremas que já são válidos na LD. Como exemplo, indiquemos duas normas da LD expostas anteriormente que provavelmente deverão ser modificadas: 1. Uma vez que ( a ∧ ¬a) passará a ser uma fórmula possivelmente existente em algum dos âmbitos discursivos, a fórmula ( a, ¬a ⊧ ( a ∧ ¬a)), inválida na LD, passará a ser válida para todo ( a) inconsistente. 2. Ante a possibilidade de inconsistência, não mais se torna impossível a contradição interna do tipo ( a1 ∧ ¬a1 ). Caso uma lógica deste tipo venha a ser formulada de forma rigorosa no futuro, muito embora ainda seja mantida a manutenção da impossibilidade de se derivar qualquer proposição de uma contradição e, por conseguinte, não se possa solucionar o problema da descrição de normas que contenham derivações realizadas sobre duas proposições contraditórias (como é o caso do exemplo dado na subseção 2.2 desta monografia), será possibilitada a descrição de todas as jurisprudências de uma corte (majoritárias e minoritárias) em um mesmo âmbito discursivo, não mais subsistindo a necessidade de se ignorar as minoritárias (para manter a consistência lógica clássica das majoritárias) ou de relegá-las a um âmbito discursivo diferenciado. 4 conclusão Ainda que não providencie uma solução definitiva para todos os problemas descritivos do Direito, a interface LD/LIF-C1, por permitir a conciliação de um ambiente lógico que tolera a inconsistência com uma multiplicidade de outros ambientes ló-

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gicos que, muito embora não sejam tolerantes a inconsistências em seus interiores, toleram inconsistências heterotópicas, configura-se como uma ferramente adequada para a descrição lógica das relações existentes entre o Direito e as jurisprudências majoritárias dos tribunais. Ademais, foi demonstrado ao longo deste trabalho que, não obstante a impossibilidade de descrição e manipulação de normas que exigem derivações de duas proposições contraditórias, este sistema integrado se mostra útil para a descrição do funcionamento das normas e do sistema decisório em geral, constituindo assim uma possibilidade verdadeiramente viável de descrição dos ordenamentos jurídicos em si, ainda que estes encontrem-se permeados por normas inconsistentes e antinômicas. Por fim, foi levantada a possibilidade de que, caso se prove possível a criação de uma Lógica Discursivo-Inconsistente, não mais subsistirá a necessidade de se limitar a descrição jurisprudencial à "jurisprudencia majoritária", de forma que se tornará perfeitamente possível a concepção de dois entendimentos conflitantes dentro de um mesmo plano discursivo. Desta forma, espera-se que este trabalho possa contribuir de forma significante para o progresso da logicização ou da simples descrição lógica do Direito, bem como que o exposto facilite a persecução destes ideais para aqueles que trilharem por um caminho acadêmico semelhante.

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referências [1] Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito , 6. edição, 1999, Martins Fontes. [2] Newton da Costa, Sistemas Formais Inconsistentes, 1993, Editora da UFPR. [3] Graham Priest, Koji Tanaka e Zach Weber, Paraconsistent Logic, Spring 2015 Edition, Edward N. Zalta (ed.), url: http://plato.stanford.edu/archives/spr2015/entries/logicparaconsistent/ [4] Stanisław Ja´skowski, A Propositional Calculus for Inconsistent Deductive Systems, In: Logic and Logical Philosophy, Volume 7 (1999), 35 / 56.

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