Direito, Filosofia e Processo

June 15, 2017 | Autor: Thiago Jordace | Categoria: Direito Constitucional, Direito da Cidade, Infraestrutura
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Descrição do Produto

Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Vanderlei Martins Vânia Siciliano Aieta Coordenação Acadêmica Adriano Moura da Fonseca Pinto Carlos José de Souza Guimarães João Eduardo de Alves Pereira

Direito, Filosofia e Processo Estudos em Homenagem ao Professor Luis Carlos de Araújo Prefácio Solange Ferreira de Moura

Autores Adriano Moura da Fonseca Pinto Alexandre de Castro Catharina Alexandre Ribeiro da Silva Amanda Tostes Marini Ana Paula Caldeira Bianca Freire Ferreira Bruno dos Santos Vieira Camila Maria Simião Carlos Alberto Lima de Almeida Cláudio Carneiro Cleyson de Moraes Mello Cristiane Binoto Vidal Rodrigues Danielle Riegermann Ramos Damião Edmundo Gouvêa Freitas Eron Dino Leite Pereira Estefânia de Oliveira Gonçalves Felipe Mahfuz de Araújo Fernanda Duarte Fernando Chaim Guedes Farage Flávio de Almeida Souza Batista Glória Maria de Godoy Moreira Haroldo Lourenço Horácio Monteschio

Jéssica Cristine Zibetti José Flávio Barroso Madaleno José Maria Pinheiro Madeira Júlia Mara Rodrigues Pimentel Júlia Massadas Lorena Campos Vieira Lucas Tadeu Prado Rodrigues Maria Carolina Cancella de Amorim Marcelo Pereira de Almeida Maria de Fátima Alves São Pedro Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira Nivea Corcino Locatelli Braga Nivea Maria Dutra Pacheco Patrícia de Vasconcellos Knöller Rafael Mario Iorio Filho Raphael Villela Rodrigo Almeida Magalhães Ruchester Marreiros Barbosa Thiago Jordace Ubirajara da Fonseca Neto Valéria Juliana Tortato Monteschio Vanderlei Martins Vânia Aieta Wellington Trotta

Editar Juiz de Fora-MG 2015

Conselho Editorial Prof. Dr. Bruno Lacerda (Membro Externo – UFJF – MG) Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello Profa. Dra. Elena de Carvalho Gomes (Membro Externo - UFMG) Prof. Dr. Maurício Jorge Pereira da Mota (Membro Externo - UERJ) Profa. Ms. Marcia Ignácio R M Mello (Membro Externo - Colégio Pedro II) Prof. Dr. Nuno M. M. S. Coelho (Membro Externo - USP) Profa. Dra. Núria Belloso Martín (Membro Externo – Univ. Burgos - Espanha) Profa. Especialista Patrícia de Vasconcellos Knöller Profa. Ms. Patrícia Ignácio da Rosa (Membro Externo IBC) Profa. Dra. Theresa Calvet de Magalhães Profa. Dra. Vânia Siciliano Aieta (Membros Externo - UERJ) Prof. Dr. Vanderlei Martins (Membro Externo - UERJ) Coordenação Geral Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello Prof. Dr. Vanderlei Martins Profa. Dra. Vânia Siciliano Aieta Coordenação Acadêmica Prof. Especialista Adriano Moura da Fonseca Pinto Prof. Ms. Carlos José de Souza Guimarães Prof. Dr. João Eduardo de Alves Pereira

Dados internacionais de catalogação na publicação

Direito, Filosofia e Processo: estudos em homenagem ao professor Luis Carlos de Araújo, Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2015.

1. Direito – Fundamentos – Brasil.

ISBN: 978-85-7851-102-9

A editora e os coordenadores desta obra não se responsabilizam por informações e opiniões contidas nos artigos científicos, que são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas. Eles se fartarão da gordura da tua casa, e os farás beber da corrente das tuas delícias; Porque em ti está o manancial da vida; na tua luz veremos a luz. (Salmos 36: 7-9)

Luis Carlos de Araújo Procurador de Justiça Aposentado do Estado do Rio de Janeiro; Professor titular da disciplina de Processo Civil na Universidade Estácio de Sá, PósGraduação na Estácio em 2012; Professor de Processo Civil, Direito Empresarial e Técnicas de Sentença na Escola da Magistratura de 1985 até 2005. Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Estácio de Sá de 1995/1998; Diretor Geral do Campus João Uchoa de 1999/2001; Coordenador das Disciplinas de Processo Civil de 2001 até 2009 na Universidade Estácio de Sá, Coordenador Nacional das Disciplinas de Processo Civil e Direito Empresarial de 2009/2011 na Universidade Estácio de Sá; Coordenador do Curso de Direito do Campos João Uchôa de 1998/99 e Professor de Processo Civil na FEMPERJ em 1994. Autor de diversas obras de Processo Civil.

Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC - Juiz de Fora MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença - FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do Direito, Direito civil, filosofia do Direito, fundamento do Direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre – RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. Vanderlei Martins Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ (1985), Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991), Doutorado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1995), Coordenador Acadêmico do PPDIR/ Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Coordenador Executivo e Membro do Conselho Editorial do Cadernos de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Diretor do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula (1996/1999), Professor Adjunto da UNESA (1999/2008),  Professor Titular e Coordenador de Pesquisa da UNIESP/ SUESC (2000/2012), Coordenador de Pesquisa da UNIGRANRIO/Campus Silva Jardim (2000), atualmente Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas.

Vânia Siciliano Aieta Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UERJ, aprovada em primeiro lugar em concurso de provas e títulos. Pós-Doutorado em Direito Constitucional pela PUC-Rio (2014) em conclusão. Doutorado em Direito Constitucional pela PUC-SP (2003), Mestrado em Teoria Geral do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio (1997). Graduação em Direito pela UERJ (1991). Líder dos grupos de pesquisa no CNPQ Observatório do Direito Eleitoral, Hermenêutica Constitucional e Análise Transacional e Políticas Públicas e Direito da Infraestrutura; bem como do grupo de pesquisa internacional

CONSTITUTIONAL DIMENSIONS OF POLITICAL PARTIES AND POLITICAL RIGHTS. Presidente da Escola Superior de Direito Eleitoral (ESDEL). Editora da Revista BALLOT, especializada em Direito Eleitoral Internacional. Além da Faculdade de Direito da UERJ, leciona no IBMEC, na Escola da Magistratura, na Escola Judiciária Eleitoral, na Universidade Veiga de Almeida, na UNILASALLE, no Instituto de Direito da PUC-Rio e nas Faculdades Gama e Souza.

Coordenadores Acadêmicos Adriano Moura da Fonseca Pinto Doutorando em Direito pela Universidad de Burgos-Espanha. Advogado. Professor Universitário. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Estácio de Sá-campus Freguesia. Integrante da Coordenação Geral do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro-RJ. Carlos José de Souza Guimarães Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC,1992) e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ,1996). É Professor da Faculdade de Direito da UERJ e Professor da EMERJ. Desde o ano 2000, é Advogado da União (AGU - Categoria Especial) e Diretor Regional da Escola da Advocacia-Geral da União na 2ª Região (RJ/ES). João Eduardo de Alves Pereira Geógrafo, com o registro 2007131366, CREA-RJ.Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1986), Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). CREARJ. É Professor-Adjunto nas disciplinas Economia Política, Geografia Política e Economia do Petróleo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É Professor-conteudista e responsável pela disciplina Geografia da População Brasileira do Curso de Licenciatura em Geografia (EAD) do Consórcio CEDERJ-UERJ-UAB.

Autores Adriano Moura da Fonseca Pinto Doutorando em Direito pela Universidad de Burgos-Espanha. Advogado. Professor Universitário. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Estácio de Sá-campus Freguesia. Integrante da Coordenação Geral do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro-RJ.

Alexandre de Castro Catharina Doutor em Sociologia pelo IUPERJ/UCAM. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Advogado. Professor de Direito Processual Civil (Graduação e Pós-Graduação) da Universidade Estácio de Sá. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Coordenador do Curso de Direito do Campus Nova América, UNESA/RJ.

Alexandre Ribeiro da Silva Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC, Campus de Juiz de Fora e também mestrando no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa PósGraduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). É advogado e professor de literatura e português. Possui Pós-Graduação em Direito Processual pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011), Graduação em Direito pelo Instituto Vianna Júnior (2009) e Graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010).

Amanda Tostes Marini Graduada em Direito pela Unilasalle, graduada em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Advogada.

Ana Paula Caldeira Doutora em Direito Público na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS.). Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Extensão em Direitos Humanos pela Universidad de Burgos (UBU) e Universidad de Sevilla, ambas na Espanha. Especialistas em Direito Público, em Direito Civil e Direito Privado. Avaliadora Ad Hoc da Revista de Direito do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito da Escola Superior de Advocacia

da OAB/Barra. Membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Professora no Curso de Pós lato sensu do IBMEC. Atua profissionalmente como Oficial de Registro Civil Titular do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais da 3ª Zona Judiciária de Niterói/RJ.

Bianca Freire Ferreira Pós-Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela UNESA. Advogada.

Bruno dos Santos Vieira Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. PósGraduado em Direito Público pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antonio Carlos – UNIPAC

Camila Maria Simião Advogada, Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais, Especialista em Direito do Trabalho e em Direito Ambiental, Professora Universitária na cidade de Lucas do Rio Verde/MT – Faculdade La Salle.

Carlos Alberto Lima de Almeida Doutor em Política Social PPGPS-UFF. Professor Auxiliar I e Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso da Universidade Estácio de Sá – UNESA. E-mail: carlosalberto.limadealmeida@ gmail.com

Cláudio Carneiro Advogado Tributarista. Sócio-Fundador do Escritório Carneiro & Oliveira Advogados. Doutor em Direito pela UNESA. Mestre em Direito Tributário. Pós-Graduado em Direito Tributário e Legislação de Impostos. Avaliador Ad Hoc da Revista de Direito do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Editor Chefe da Revista de Direito da Escola Superior de Advocacia da OAB/Barra. Membro da International Fiscal Association. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário. Membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro. Professor de Direito Financeiro e Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá, PUC/RJ e UERJ. Autor de diversas obras jurídicas e dos livros: Manual de Direito Tributário; Curso de Direito Tributário & Financeiro; Processo Tributário (Administrativo e Judicial) e Impostos Federais, Estaduais e Municipais.

Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC - Juiz de Fora MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença - FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá.

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Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do Direito, direito civil, filosofia do Direito, fundamento do Direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre – RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas.

Cristiane Binoto Vidal Rodrigues Mestranda em Direito no curso de Hermenêutica e Direitos Fundamentais da Universidade Antonio Carlos - UNIPAC, possui especialização em Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá, Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá e Graduação em Administração pela Universidade Cândido Mendes (1996). Atualmente é Coordenadora do curso de Direito da UNESA, campus Freguesia, Professora Auxiliar I da Universidade Estácio de Sá além de advogada.

Danielle Riegermann Ramos Damião Doutoranda em Função Social do Direito - FADISP (2015). Mestrado em Direito pela Universidade de Marília (2012). Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá (2003). Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2002). Autora de obras jurídicas. Atualmente é professora da ESMARN (Escola da Magistratura do Estado do RN) e da Faculdade São Luís. É membro dos conselhos editoriais das revistas “Direito e Liberdade” e da “Atualidades Jurídicas”. Acumula vasta experiência na docência superior (Graduação e Pós-Graduação). Assessora Jurídica da FUNEP - Fundação de Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão. É advogada e consultora jurídica. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Empresarial, Civil e do Trabalho.

Edmundo Gouvêa Freitas Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais (Unipac-MG). Especialista em Direito Processual Contemporâneo (Unesa-MG). Bacharel em Direito (Universo-MG). Professor de Direito Processual Civil (FAA\ CESVA\FDV-RJ). Organizador e Autor de diversas obras jurídicas. Advogado Pleno e Consultor Jurídico

Eron Dino Leite Pereira Advogado inscrito na OABMG; Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho; Pós-Graduado em Direito Previdenciário; Formação em Docência de Ensino Superior; MBA Executivo em Petróleo e Gás; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais.

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Estefânia de Oliveira Gonçalves Advogada, docente da Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada em Direito Público pela Unesa e mestranda em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Unipac.

Felipe Mahfuz de Araújo Procurador do Município de Niterói (2015). Procurador do Estado de São Paulo (2010-2015).

Fernanda Duarte Doutora PUC/RJ. Professora Permanente do PPGD/UNESA. Professora Adjunta da FD/UFF. Pesquisadora Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/PPGD-UNESA e do LAFEP/INCT-InEAC/UFF. Membro do IBDP.

Fernando Chaim Guedes Farage Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC de Juiz de Fora- MG. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior de Juiz de Fora - MG. Advogado.

Flávio de Almeida Souza Batista Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil – Universidade Anhanguera-Uniderp

Glória Maria de Godoy Moreira Mestranda em Educação pela Universidad Internacional Iberoamericana UNINI.  Especialista em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pela Universidade Estácio de Sá (RJ). Professora de Direito Constitucional da Universidade Estácio de Sá - RJ (Graduação). Advogada. Arquiteta e Urbanista.

Haroldo Lourenço Doutorando e Mestre PPGD/UNESA. Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/PPGD-UNESA. Advogado. Membro do ICPC e ABDPC.

Horácio Monteschio Doutorando pela Faculdade Autônoma de São Paulo – FADISP. Mestre em Ciências Jurídicas pelo UNICESUMAR Maringá. Especialista em Direito Público e Direito Processual Civil pelo IBEJ; em Direito Tributário pela UFSC; em Direito Administrativo pelo IRFB; Direito contemporâneo pela Escola da

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Magistratura do Estado do Paraná; Integrante da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Estado do Paraná. Professor das Faculdades OPET, ex-Secretário de Estado da Indústria, Comércio e Assuntos do Mercosul do Paraná; ex-Secretário Municipal de Assuntos Metropolitanos de Curitiba. Advogado militante.

Jéssica Cristine Zibetti Graduada em Direito pela Faculdade São Luís – Jaboticabal (2014). Advogada com experiência na área de Direito Civil e do Trabalho.

José Flávio Barroso Madaleno Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor de Direito pela Faculdade Doctum de Manhuaçu e advogado.

José Maria Pinheiro Madeira Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Doutor Honoris Causa em Ciência Política e Administração Pública pela Emíll Brunner University e Pós-Graduado  no Exterior. Pós-Doutorado pela Cambridge International  University (Inglaterra).  Foi Procurador do Legislativo (aposentado).  Integrou diversas bancas de Concurso Público. Membro Titular da Banca Examinadora do Concurso de Delegado do Rio Janeiro.  Membro Integrante da Banca Examinadora de Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, Membro da Banca do DETRAN, do IBAMA e da Agência Nacional de Saúde. Membro de diversas associações de cultura jurídica, no Brasil e no Exterior.  Professor Emérito da Universidade da Filadélfia. Professorpalestrante da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro - EMERJ.  Professor Coordenador de Direito Administrativo da Universidade Estado de Sá. Professor da Fundação Getúlio Vargas. Professor integrante do Corpo Docente do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense.   Membro Titular do Instituto Ibero-Americano de Direito Público.  Membro Efetivo do Instituto Internacional de Direito Administrativo. Presidente da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores. 

Júlia Mara Rodrigues Pimentel Mestranda em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Ciências Penais pelas Faculdades Integradas de Caratinga; Especialista em Direito Público e em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhaguera-Uniderp. Advogada e Conselheira da “OAB Mulher” da 54ª Subseção da OAB. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade Doctum de Manhuaçu e Professora da Rede Doctum de Ensino.

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Júlia Massadas Graduanda em Direito na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Bolsista do programa “Jovem Pesquisador(a)” da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito Rio), realizando pesquisas no Centro de Justiça e Sociedade (CJUS). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ (PPGD/UFRJ) e do grupo de pesquisa: “Argumentação jurídica, instituições e aspectos constitucionais da regulação”, vinculado à Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito Rio). E-mail: [email protected]

Lorena Campos Vieira Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas Vianna Júnior; Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestranda em Direito da UNIPAC - Juiz de Fora.

Lucas Tadeu Prado Rodrigues Graduado em Direito pela PUC/MG, pesquisador, advogado.

Marcelo Pereira de Almeida Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Tributário pela Universidade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá, Professor Adjunto de Teoria Geral do Processo e Direito Processual da Universidade Federal Fluminense. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual da Universidade Federal Fluminense - UFF. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professor colaborador do PPGD (Mestrado e Doutorado) UNESA. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil - IBDP. Advogado. Autor do Livro Processo Coletivo – Teoria Geral; Cognição e Execução.

Maria Carolina Cancella de Amorim Graduada em Direito pela UFRJ. Pós-Graduada em Direito Público e Privado pela EMERJ. Mestranda em Direito pela UNESA, na linha de pesquisa Acesso à justiça e efetividade do processo. Professora de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UNESA. Professora da EMERJ.

Maria de Fátima Alves São Pedro Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Gestão Ambiental pela Universidade Estácio de Sá. Especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade

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Federal Fluminense. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá. Docente dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação lato sensu da Universidade Estácio de Sá e Docente da Pós-Graduação lato sensu da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira Jornalista e advogada. Possui Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010) e Graduação em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior (2013). É Mestre em Direito (Hermenêutica e Direitos Fundamentais) pela Universidade Presidente Antônio Carlos. Atualmente é mestranda no programa Direito e Inovação, na linha de pesquisa Direitos Humanos e Inovação, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa Pós-Graduação lato sensu em Direito Constitucional Aplicado no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associada ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI).

Nivea Corcino Locatelli Braga Coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação lato sensu da Universidade Estácio de Sá. Professora da Graduação da Universidade Estácio de Sá. Integrante da Equipe Editorial e Avaliadora da Littera Docente & Discente em Revista. Advogada. Conselheira da OAB/RJ - 9ª Subseção de Nova Friburgo, Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre “Democracia, Jurisdição Constitucional, Discurso e Administração de conflitos” do curso de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada em Processo Civil Contemporâneo pela Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Pós-Graduada em Docência do Ensino Superior pela Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

Nívea Maria Dutra Pacheco Mestre em Direito pela UNESA; Professora de Processo Civil da UNESA (PósGraduação lato sensu e Graduação); Professora de Prática Jurídica da UNESA (Graduação); Advogada; Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UNESA campus Nova Friburgo; Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da 9º Subseção da OAB/NF.

Patrícia de Vasconcellos Knöller Especialista em Direito Público. Professora de Direito Administrativo nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá. Professora da EMERJ. Advogada e Parecerista na área do Direito Administrativo. Membro Titular da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores.

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Rafael Mario Iorio Filho Pós-Doutor CEDEC. Doutor UGF. Douto UFRJ. Professor Permanente do PPGD. Pesquisadora Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/PPGD-UNESA e do LAFEP/INCT-InEAC/UFF. Coordenador de Área de Ciências Sociais. Membro do IBDP.

Raphael Villela Pós-graduando stricto sensu (Mestrado) em População, Território e Estatísticas Públicas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE). PósGraduando lato sensu (Especialização) em Análise Ambiental e Gestão do Território pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE). Geógrafo e Professor de Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected]

Rodrigo Almeida Magalhães Doutor e Mestre em Direito pela PUC/MG, professor da PUC/MG e UFMG. Professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG.

Ruchester Marreiros Barbosa Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, Doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Nacional Lomas de Zamora, Argentina. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Processo Penal da EMERJ, Professor de Direito Penal e Processual Penal da Graduação e Pós-Graduação da UNESA/RJ, professor de Penal e Processo Penal da PósGraduação da Universidade Cândido Mendes, professor conteundista do site www.atualidadesdodireito.com.br dos professores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Professor concursado da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos artigos jurídicos e científicos. Membro Titular da Association Internationale de Droit Pénal, Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Membro da Law Enforcement Law Enforcement Against Prohibition. Palestrante e Conferencista. email: [email protected]. Janeiro de 2015.

Thiago Jordace Doutorando do Programa de Pós-Graduação Stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na linha de Direito da Cidade.Email:[email protected]

Ubirajara da Fonseca Neto Mestre em Direito Processual (UNESA). Pós-Graduado (especialista) em Direito Civil e Processual Civil (UFF). Professor de Teoria Geral do

Processo e Direito Processual Civil da Universidade Estácio de Sá (Cursos de Graduação e Pós-Graduação) e do IBMEC (Curso de Graduação). Atuou como Professor (concursado) da UFRJ e UCAM/Centro. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil - IBDP. Advogado. Autor e Co-autor de obras jurídicas. Coordenador Adjunto de um dos Cursos de Direito da Unesa/RJ (Unidade Centro III/Menezes Cortes).

Valéria Juliana Tortato Monteschio Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Graduada em Pedagogia, Mestre em Políticas Públicas da Educação, especialista em Gestão Educacional, professora nas Faculdades OPET e FAEL, autora da obra Direito da Criança e do Adolescente, advogada militante.

Vanderlei Martins Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991) e Doutorado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1995). Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(Faculdade de Direito)com dedicação exclusiva Atua na área das Ciencias Sociais Aplicadas. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito.da UERJ na linha de pesquisa em Direito da Cidade. Parecerista da Revista Direito da Cidade do PPDIR da Faculdade de Direito da UERJ. Parecerista da Revista Questio Juris do PPDIR da Faculdade de Direito da UERJ. Membro externo do Conselho Editorial da Revista da Faculdade de Valença/ RJ. Membro do Conselho Editorial da Editora EDITAR de Juiz de Fora/ MG. Membro externo do Conselho Editorial da Revista Saber Digital da Faculdade de Direito de Valença/RJ. Membro externo do Conselho Editorial da Revista Legis Augustus da Universidade UNISUAM/RJ. Parecerista Ad Hoc da Revista de políticas Públicas do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Univ.Fed.do Maranhão. Coordenador Academico das Publicações da Faculdade de Direito de Valença/RJ. Membro do Conselho Editorial da Editora Freitas Bastos-RJ. Membro do Colegiado do Curso de Especialização em Direito Especial da Criança e do Adolescente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ. Coordenador Geral e Coordenador Acadêmico de várias publicações na área do Diireto. Autor de vários capítulos em livros na área do Direito.

Vânia Aieta Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na linha de Direito da Cidade. Email: [email protected]. & vaniaaieta@ yahoo.it

Wellington Trotta Graduação em Direito (UGF) e Filosofia (UERJ), Mestrado em Ciência Política (IFCS-UFRJ), Doutorado (IFCS-UFRJ) e Pós-Doc. (IFCS-UFRJ). Atualmente leciona Filosofia na UNESA, além de ser responsável pelo Núcleo de Pesquisa de Ciências Jurídicas e Sociais da UNESA de Cabo Frio e editor da Revista Transdisciplinar Logos e Veritas – www.revistalogoseveritas.inf.br.

Sumário Palavras da Coordenação

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Prefácio

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Solange Ferreira de Moura

Artigos

Il ruolo della biomassa come fonte di energia rinnovabile nella promozione dei diritti sociali in Brasile

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Vânia Aieta e Thiago Jordace

Do cumprimento de Sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública (arts. 534-535)e a Execução contra a Fazenda Pública (910) 37 Fernanda Duarte, Rafael Mario Iorio Filho e Haroldo Lourenço

A Perspectiva Democratizante do Direito Processo Civil Brasileiro e seus impactos na Cultura Jurídica Processual Estabelecida 49 Alexandre de Castro Catharina

A Competência nas Ações Coletivas e seus Reflexos na Conexão

61

Amanda Tostes Marini e Marcelo Pereira de Almeida

Incidentes no Processo de Falência

75

Lucas Tadeu Prado Rodrigues e Rodrigo Almeida Magalhães

A Força dos Precedentes nos Tribunais: da “Jurisprudência Dominante” até as Teses Vinculantes em 2ª Instância

89

Ubirajara da Fonseca Neto, Adriano Moura da Fonseca Pinto e Marcelo Pereira de Almeida

Dialogando com o Direito e a Economia para tomada de decisões pela Administração Ana Paula Caldeira e Claudio Carneiro

111

A Impossibilidade de se assumir um Cargo Público frente a uma Pretérita Condenação: Considerações acerca de uma dupla Estigmatização

125

José Maria Pinheiro Madeira e Patrícia de Vasconcellos Knöller

A Formação Jurídica na atualidade Brasileira: o Embate entre duas Tendências Pedagógicas

137

Vanderlei Martins e Cleyson de Moraes Mello

A Fazenda Pública e o Processo: As Inovações do Novo Código de Processo Civil

153

Felipe Mahfuz de Araujo

O Poder Legislativo em Hegel e a Refutação Marxiana a partir de sua Crítica de 1843

165

Wellington Trotta

O Imperativo da Responsabilidade de Hans Jones no amparo do Princípio ético da Sustentabilidade no Direito Ambiental 181 Maria de Fátima Alves São Pedro

Racismo: Percepções e Representações do Campo Jurídico, na Doutrina e na Jurisprudência do Estado do Rio de Janeiro

195

Carlos Alberto Lima de Almeida

O Trabalho a Céu Aberto como possível caracterizador da Insalubridade

205

Jéssica Cristine Zibetti e Danielle Riegermann Ramos Damião

O Novo Código de Processo Civil e da Uniformização de Precedentes como Garantia ao acesso à Ordem Jurídica Penal Justa 219 Ruchester Marreiros Barbosa

Mediação de Conflitos – Um Novo Paradigma

235

Nivea Maria Dutra Pacheco

Direito de Propriedade: Evolução Histórica, sua Função Social na Constituição Federal de 1988 e Legislação Correlata 247 Valéria Juliana Tortato Monteschio e Horácio Monteschio

O Dirisgimo Estatal como Impeditivo da Escolha do Regime de Bens pelos Septuagenários Nivea Corcino Locatelli Braga

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O Direito de Escolha ao uso do Processo, na Justiça do Trabalho

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Camila Maria Simião

Breve estudo sobre o Artigo 489, Parágrafo 2º, da Lei 13.105 de 2015 a partir da Teoria dos Princípios de Robert Alexy 279 Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira e Alexandre Ribeiro da Silva

Invertendo Valores: Entre a Lógica Mercadológica, a Moralidade e o Dever Cívico – Reflexões sobre o Princípio do Poluidor-pagador no Direito Ambiental

293

Raphael Villela e Júlia Massadas

A Compreensão do Conceito de Pessoa no Século XXI e sua importância para o Direito

307

Fernando Chaim Guedes Farage

O Ministério Público no Novo Código de Processo Civil

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Edmundo Gouvêa Freitas

Os Precedentes Judiciais no Direito Norte-americano e sua aplicação no Ordenamento Jurídico Brasileiro

323

Maria Carolina Cancella de Amorim

A Constituição e a Ordem Econômica

337

Glória Maria de Godoy Moreira

O Direito da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito de Recusa de Hemotransfusão nas Testemunhas de Jeová

351

Cristiane Binoto Vidal Rodrigues

Direito Fundamental e de Igualdade e os Direitos Previdenciários e Sucessórios do Casal Homoafetivo 363 Eron Dino Leite Pereira

A Discricionariedade do Juiz e o Princípio da Integridade proposto por Ronald Dworkin

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Lorena Campos Vieira

O Monitoramento da Correspondência Eletrônica Estefânia de Oliveira Gonçalves

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Limites da Autonomia Privada na Relação de Emprego

401

Júlia Mara Rodrigues Pimentel

A Validade do Testamento Vital em face do Direito à Morte Digna e da Autonomia da Vontade

421

José Flávio Barroso Madaleno

Possibilidades Democráticas no Estado de Direito

437

Bruno dos Santos Vieira

Aspectos da Violência Sexual na Relação Conjugal

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Bianca Freire Ferreira

Aplicação Prática dos Princípios Processuais: uma Visão Prática com base em uma Ação Civil ex delicto Flávio de Almeida Souza Batista

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Palavras da Coordenação É com grande satisfação que apresentamos à comunidade jurídica brasileira a obra Direito, Filosofia e Processo: Estudos em Homenagem ao Professor Luis Carlos de Araújo. A produção jusfilosófica que conforma esta obra coletiva tem como autores renomados juristas nacionais, bem como integrantes dos corpos docente e discente de diversas Instituições de Ensino Superior. A edição desta obra expressa a preocupação dos Coordenadores no sentido de oferecer um espaço para a discussão e o diálogo interdisciplinares, fato que permite ao leitor o contato com diferentes saberes e diferentes posições doutrinárias. Nessa linha, é importante salientar que os artigos agora publicados têm como finalidade homenagear o ilustre Professor Luis Carlos de Araújo. Convidamos todos à leitura. Rio de Janeiro, outubro de 2015. Coordenação Geral Cleyson de Moraes Mello Vanderlei Martins Vânia Siciliano Aieta Coordenação Acadêmica Adriano Moura da Fonseca Pinto Carlos José de Souza Guimarães João Eduardo de Alves Pereira

Prefácio O convite para apresentar a obra “DIREITO, FILOSOFIA E PROCESSO – Estudos em homenagem ao Prof. Luís Carlos de Araújo” representou grande honraria para mim, pois admiro imensamente o nobre professor, que, há quase vinte anos, contratou-me para trabalhar no Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá, provocando uma total guinada em minha vida profissional, até então, dedicada à Advocacia Empresarial. O Prof. Luís Carlos, membro emérito do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, é um educador de escol. Sua dedicação ao desenvolvimento e qualificação do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá tem sido notável. Assim como eu, diversos Colegas tornaram-se docentes sob a batuta do Prof. Luís Carlos, um regente firme e dedicado à causa da educação, além de grande estudioso do Direito Processual Civil, para o qual me atraiu, em uma conquista sem volta ao direito empresarial. Com ele aprendi que a vida é processo e que o sucesso depende de uma sequência lógica e organizada de atos, sem a qual, caímos na procrastinação e no engodo, que nos afastam da coerência e da justiça. A justa homenagem ora prestada reconhece a relevância do papel do Prof. Luís Carlos de Araújo na formação de inúmeros juristas no estado do Rio de Janeiro. É muito importante ressaltar seu papel como dirigente do Curso de Direito na construção de uma cultura de excelência e na busca constante de melhorias nas condições de oferta do Curso de Direito da Estácio. A criação e implementação dos Núcleos de Prática Jurídica, como espaço privilegiado para a formação de profissionais competentes e éticos só foi possível graças a ele que forneceu total apoio ao meu trabalho, a partir de 1996. Desde então, tenho presenciado sua atuação em diversos papéis dentro da Universidade, sempre com a costumeira competência e postura ética. Mais recentemente, vem liderando um grupo de excelentes professores na autoria de livros de direito processual civil, da maior qualidade acadêmica e didática. A presente obra reúne inúmeros docentes do Curso de Direito da Estácio, bem como Colegas de outras instituições, em um abraço coletivo ao grande Mestre, que continua atuando, ativamente, na docência, contribuindo fortemente, com sua experiência e dedicação, para com o ensino jurídico brasileiro. A obra prefaciada contém artigos com inúmeros sabores e matizes do universo jurídico contemporâneo, proporcionando visão atualizada sobre diversos temas controvertidos. Trata-se de leitura obrigatória para aqueles que desejam atualização e aprofundamento na abordagem dos temas. Por fim, trata-se de uma bela homenagem, à altura do grande homenageado. Boa leitura! Solange Ferreira de Moura. Diretora Nacional do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Rede Estácio de Educação Superior

Il ruolo della biomassa come fonte di energia rinnovabile nella promozione dei diritti sociali in Brasile1 Vânia Aieta2 Thiago Jordace3 Riassunto Il presente lavoro ha come obiettivo la realizzazione di un’analisi tecnica, sociale ed ambientale sulla biomassa qualefonte rinnovabile di energia per contribuire allo sviluppo sostenibile e alla tutela del paesaggio. Il lavoro analizza l’evoluzione della biomassa come fonte di energia in Brasile e i suoi possibili sfruttamenti, quali la combustione, l’estrazione di oli e la fabbricazione di combustibili come l’alcool, il biodiesel e il biogas. Sarà messa in evidenza la conoscenza del know-how che il Brasile ha acquisito in questo processo e i benefici che potrebbero essere ottenuti tramite il rimboschimento di aree degradate. Inoltre, illustreremo quali benefici sociali possono essere raggiunti con l’adozione della biomassa come fonte di energia alternativa in Brasile. La promozione e l’uso estensivo della biomassa ridurrebbe il fenomeno migratorio degli agricoltori verso i centri urbani. Le zone agricole verrebbero così non solo preservate ma anche sviluppate attraverso la creazione di nuovi posti di lavoro sostenibili e di qualità. Verrebbe, inoltre, salvaguardata la qualità della rete idrica, senza pericoli di contaminazione, grazie alla produzione di un combustibile di qualità senza zolfo. Tali benefici, risultanti dallo sviluppo di beni di capitale, possono ampliare l’inclusione sociale di quella fascia di brasiliani che è ancora in condizioni di indigenza. Il conseguimento dei diritti sociali sostenuti dalla Costituzione brasiliana del 1988 diventerebbe così possibile. Parole-chiavi: Biomassa; Sviluppo Sostenibile;Tutela del Paesaggio; Diritti Sociali.

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Trabalho apresentado no Convegno Internazionale “AMBIENTE, ENERGIA, ALIMENTAZIONE: Modelli giuridici comparati per lo sviluppo sostenible”, nos dias 5 e 6.10.2015, em Roma, na Camera dei Deputati e na Università Sapienza di Roma, e nos dias 7 e 8.10.2015, em Firenze, no Palazzo Incontri e na Sede Accademia dei Georgofili, no Loggiato degli Uffizi. Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na linha de Direito da Cidade. Email: [email protected]. & [email protected] Doutorando do Programa de Pós-Graduação Stricto sensu da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) na linha de Direito da Cidade. Email:[email protected]

Il ruolo della biomassa come fonte di energia rinnovabile nella promozione dei diritti sociali in Brasile

Introduzione Il Brasile ha il più grande potenziale energetico di biomassa del mondo perchè ha come un vantaggio una serie di fattori favorevoli per la produzione di questa modalità di energia alternativa: la grande disponibilità di campi coltivabili, le perfette condizioni per lo sviluppo delle coltivazione agricole e il knowhow aquisito per essere stato uno dei primi paesi a studiare lo sviluppo delle energie rinnovabili, come l’idroelettricità, l’etanolo e la biomassa. In un panorama di crisi di energia, sommato alla carenza delle risorse naturali, la ricerca di alternative appare come una questione contemporanea di evidente importanza, gistuficando gli studi che contemplano la ricerca di matrici di energia sotenibili nel piano ambientale ed economico. È preoccupante sotto l’ottica internazionale l’attuale calo del prezzo del barile del petrolio, dovuto a diversi fattori, tra quale: diminuzione della domanda di energia come riflesso della crisi economica; calo delle importazione nord americane di petrolio (gli Stati Uniti sono diventati grandi produttori, oltre ad avere varegato la sua matrice energetica); toleranza della Arabia Saudita (grande produttrice dell’OPEP) in sostenere i bassi costi della Commodity; problemi politici in Russia e Nigeria, entrambi paesi produttori di petrolio; strategie venezuelane di razionalizzazione delle spese pubbliche per la manutenzione delle sue entrate e proposte di licitazioni per l’esplorazione del Golfo del Messico. Cosi, diventa evidente la fragilità di una logica mondiale di supporto energetico basata nelle risorse non rinnovabili. Quindi, emergono i dibattiti e gli studi capaci di introdurre nuove logiche a questo sistema. La biomassa, è, in questo contesto, una possibilità diversa dei combustibili fossili (che non si rinnovano in un breve periodo di tempo). È una fonte rinnovabile ampia ed a basso costo, che lavora con il riutilizzo dei residui, oltre a portare ad una emissione di gas carbonico praticamente nula (anche se la sua combustione genera l’emissione, l’assorbimento vegetale iniziale la bilancia). Il pannello intergovernativo sui cambiamenti climatici, la biomassa e la bioelettricità sono alternative che possono stare tra le tre più grandi tecnologie fondamentali per l’ottenimento di un sistema energetico mondiale di base rinnovabile fino a 2050.

Evoluzione delle biomasse come fonti di energia in Brasile

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In Brasile, l’evoluzione delle biomasse come fonti di energia ha preso forza da due crisi mondiali del petrolio negli anni 70 (1973 e 1979, precisamente) e, per questo motivo, il paese ha scelto, a quel tempo, di intensificare l’esplorazione del petrolio, con lo scopo di diminuire la dipendenza delle importazioni, iniziando il processo di sviluppo tecnologico del settore. Con l’avvento del Programa Nacional do Alcool (programma nazionale dell’acool), l’obiettivo del governo brasiliano era quello di diminuire la

Vânia Aieta e Thiago Jordace

dipendenza del petrolio importato.Tale programma è stato considerato un’iniziativa di successo mondiale nella sostituzione dei derivati del petrolio per la biomassa nel settore automobilistico, ha incoraggiato la produzione dell’alcool nella industria dello zucchero e distillerie indipendenti, il finanziamento per lo sviluppo di mottori propri per l’industria automobilistica e la creazione di una ampia rete di distribuzione del combustibile. Però, con il calo del prezzo del petrolio, l’alcool è diventato poco competitivo, richiedendo sussidi per la manutenzione del Programma, i quali gradualmente sono stati elimitati. Con lo sccoppio della crisi finanziaria internazionale, nel 2008, il governo federale ha deciso un’altra volta di sussidiare la benzina. Il potere pubblico si è tirato indietro in riguardo alla politica di energia rinovabile quando è stata scoperta una significativa riserva di petrolio nello strato geologico del Pre-Sal. L’ annuncio del Pre-Sal nettamente in ragione dell’abrangenza dell’area e l’espetativa di volume di petrolio che si sperava estrarre, ha spinto ad un cambiamento sostanziale nella politica energetica brasiliana, diventando una opportunità per il Brasile, nel senso di, finalmente, riuscire a finanziare il suo sviluppo. Nel 2012, dal contesto della Conferenza Rio + 20, con la scelta di quell’anno come l’anno della “Energia sostenibile per tutti”, secondo la assemblea Generale delle Nazioni Unite, è stato ripreso il tema e il Brasile ha ricominciato a dare una visibilità più grande alle fonti rinnovabili. Come ho potuto brevemente esporre, lo storico energetico brasiliano è sempre stato voltato allo sviluppo di energie rinnovabili. Non è una cosa recente. Quindi, il knowhow brasiliano nella produzione delle biomasse mette il paese in una posizione di vantaggio per contribuire con l’evoluzione tecnologica mondiale in questo senso.

L’importanza della conoscenza del knowhow La biomassa è una fonte di energia rinnovabile, poco inquinante, di alta ricerca, basso costo e, in Brasile, la tecnologia necessaria per produrla è già molto sviluppata. La domanda per un piano normativo specifico per la produzione energetica a partire dalla biomassa è stata soddisfatta nel progetto di legge 3529/2012, in corso nel parlamento brasiliano. Questo progetto prevede una politica nazionale di produzione di energia elettrica a partire dalla biomassa, stabilendo anche l’obbligo di impiego di questa energia. Nel presente momento, il progetto aspetta il parere del Relatore della Comissione delle risorse minerarie ed energetiche. Istituzionalmente, il riparto responsabile è il Ministero delle Risorse Minerarie e Energetiche, organo dell’ammistrazione diretta che è lo sviluppatore delle politiche pubbliche di questo settore.

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Il ruolo della biomassa come fonte di energia rinnovabile nella promozione dei diritti sociali in Brasile

Nell’ambito del controllo dell’attività, la responsabilità è dell’Agenzia Nazionale dell’Energia Elettrica, autarchia sotto regime speciale connessa al Ministero delle Risorse Minerarie ed Energetiche, che ha come scopo la normatizazione e il monitoraggio della produzione, trasmissione e commercializzazione dell’energia elettrica, quale l’orientamento del Governo Federale. L’Azienda delle Ricerche Energetiche brasiliana (EPE) atribuisce una importanza significativa alla pianificazione delle ricerche che hanno lo scopo di sussidiare l’utilizzo delle fonti rinnovabili, come è il caso della biomassa. Specificamente per quanto riguarda alla biomassa, il knowhow brasiliano è, senza dubbi, uno dei attivi più importanti, perchè il paese ha a livelli nazionali il dominio della conoscenza specifica in questo settore. Il knowhow brasiliano si articola in quattro pilastri: – Coltivazione a scopo specifico; – Biocombustibili di prima generazione; – Bioenergia; e – Biocombustibili di seconda generazione. 1° Pilastro: Coltivazione a scopo specifico: lLe industrie di base biologica in scala sono un fenomeno relativamente nuovo. Anche in Brasile, dove l’industria dell’etanolo esiste da decenni, la maggior parte della sua crescita è avvenuta dagli anni 2000 in poi. Essendo nuove e ancora relativamente piccole, le industrie di base biologica hanno cominciato a lavorare con l’utilizzo dei residui (come la bagassa di canna) e coltivazioni previamente esistenti (come la canna da zucchero) sviluppate per altri fine. Queste materie prime non sono sviluppate apposta per queste industrie; tutte hanno dei limiti, sia geografici che riguardanti ai requisiti dei mezzi di produzione. Il Brasile ha un vantaggio nel consolidamento dello sviluppo tecnologico di queste coltivazioni perchè la sua storia converge intimamente con lo sviluppo della canna da zucchero, da quando il paese è stato scoperto dai portoghesi (in 1500). Cosi, questa materia prima fa parte della storia brasiliana.

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2° Pilastro: Biocumbustibili di prima generazione: Nei giorni d’oggi, la maggior parte dell’industria brasiliana di trasformazione dello zucchero in etanolo lavora soltanto durante il raccolto della canna da zucchero, alla fine del mese di marzo o aprile, fino alla fine di ottobre o novembre. Con la piantagione di sorgo saccarina in novembre e raccolta nella fine di febbraio e marzo, si può avere una “estensione della stagione” per produrre l’etanolo – un periodo di frantumazione più lungo usando lo stesso terreno e la stessa attrezzatura. Nelle aree dove le industrie non riescono ad ottenere forniture di canna da zucchero suficiente per lavorare con la sua massima capacità, il sorgo sacccarina può

Vânia Aieta e Thiago Jordace

anche essere piantato come una seconda coltivazione, dopo la soia, per fornire materiale aggiuntivo per la frantumazione nel periodo tradizionale della frantumazione della canna. Come il Brasile ha delle ampie e fertile aree di piantagione, questo tipo di alternanza di colture fa del paese un produttore di energia costante e inesauribile. 3° Pilastro: Bioenergia: Tradizionalmente, la bagassa di canna da zucchero è utilizzata da tempi come una fonte di energia per le industrie dello zucchero. Negli ultimi anni, però, alcune industrie hanno cominciato a trasformare la bagassa in un mezzo aggiuntivo di ricetta finanziera, sia per la creazione dell’energia rinnovabile, che può essere venduta, sia per via della creazione di energia in eccesso, che può essere utilizzata per altri processi industriali stabiliti nello stesso posto. Di fronte a questa nuova opportunità, le principale industrie hanno cominciato a lavorare per complementare la sua fornitura di biomassa tramite l’utilizzo di coltivazione a scopo specifico, tale quale il sorgo di alta biomassa, che, ottimizzato per la bioenergia, fornisce alti indici di reddito di biomassa legnocelulosica per ettaro, con livelli relativamente bassi di umità nella raccolta, riducendo i costi della raccolta e del trasporto, e migliorando la densità dell’energia della coltura. Questa biomassa immagazzinabile può essere utilizzata sia per fornire materie prime per la caldaia al di fuori del periodo di frantumazione, che per aumentare la produzione della caldaia durante tutto l’anno. 4° Pilastro: Biocombustibili di seconda generazione: Con il clima favorevole e la crescente sperienza aquisita con l’utilizzo della biomassa, il Brasile è diventato una località ideale anche per gli altri processi. Alcuni attributi del sorgo di alta biomassa che lo fanno diventare una materia prima attrativa per la bionergia, come costi ridotti di raccolta e di trasporto, fanno del sorgo una coltivazione attrativa anche per i biocombustibili di seconda generazione. La capacità di ottenere per anni coltivazioni diverse nello stesso terreno aiuta a farlo diventare una soluzione economicamente efficace. Contando con vantaggi come significativa disponibilità di campi coltivabili, infrastrutura esistente ed un’ampia sperienza aquisita con le caldaie di fornitura per le coltivazioni a scopo specifico, l’industria dello zucchero brasiliana ha l’opportunità di continuare ad avere il ruollo di lider nella sotisfazione delle necessità di energia in Brasile e di mettersi nella posizione di lider anche per lo sviluppo globale delle industrie di base biologica. Per permettere una efficienza operazionale più elevata, avere una portata geografica significativamente ampia e flussi adizionali di prodotti e ricette, le coltivazioni a scopo specifico, come sogro di alta biomassa, sono fondamentali per far diventare realtà questa opportunità.

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Il ruolo della biomassa come fonte di energia rinnovabile nella promozione dei diritti sociali in Brasile

Possibilità di rimboschimento di aree degradate (biomassa) Con l’uso della biomassa, si ha la possibilità di rimboschimento di aree degradate, portando a miglioramenti al livello del paesaggio. Secondo il Codice Forestale brasiliano (Legge Federale n° 12.651/12) è fondamentale la protezione della vegetazione in equilibrio con le possibilità di esplorazione delle risorse naturali, per ribadire l’importanza della funzione strategica di queste attività, sia per la sostenibilità ambientale che per la crescita economica. Uno dei punti più importanti è giustamente la bioenergia (Articolo 1°, I e II). In questo modo, diventa cruciale che lo sviluppo tecnologico di produzione energetica a partire dalla biomassa considere tale aspetto di bilancio tra la protezione e lo sviluppo. Un’ideale gestione delle foreste deve garantire la sicurezza ambientale necessaria all’espansione dell’utilizzo delle biomasse, contando, anche, con la riduzione dell’emissione dei gas inquinanti dell’effeto stufa.

Promozione dei benefici socilai raggiunti con l’utilizzo delle biomasse come fonti di energia Alla fine, siamo arrivati allo scopo principale del presente lavoro, o sia, la promozione dei benefici sociali raggiunti con le biomasse come fonti di energia. L’effettività dei diritti sociali (per l’appunto, educazione, sanità, alimentazione, lavoro, abitazione, sicurezza, tempo libero, previdenza sociale, protezione della maternità e dell’infanzia e assistenza ai bisognosi– articolo 6°, della Costituzione Federale del 1988) è correlata alla disponibilità energetica del paese perchè la sua fruizione è una condizione materiale basica allo sviluppo del paese. Una iniziativa in questo senso è stato il tentativo di includere il diritto all’energia nella lista dei diritti sociali. Si può menzionare anche l’esistenza di una comprensione dottrinaria che afferma che l’energia è fondamentale per la manutenzione di una vita degna. L’inclusione del diritto all’energia nella lista dei diritti sociali, prevista nella proposta di modifica costituzionale 218/2012, in archivio dal 31/01/2015, ha come una giustificativa, secondo i suoi autori - la parlamentare Jane Rocha Pietà, del partito PT/SP, e il parlamentare Mário Negromonte, del partito PP/BA - il fatto che “nello secolo XXI, ancora migliaia di brasiliani continuano a non avere l’approvvigionamento di energia elettrica nelle sue abitazioni e che, per questo motivo, la normatività costituzionale assicuratoria dell’abitazione degna resta molto compromessa”. Un’altra evidenza di questa preoccupazione con la sostenibilità dell’acesso è la creazione della Tariffa Sociale di Energia Elettrica , tramite la Legge Federale n° 10.438/2002 e regolamentata tramite la Legge Federale n° 12.212/2010, che stabiliscono parametri di riscossione diversificati per fasce di consumo,

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d’accordo ancora con le condizioni finanziarie dell’uttente. Sarebbe una misura di formalizzazione del servizio pubblico di appovvigionamento di energia. Oltre a questo, il Programa Luz Para Todos (Programma Luce per tutti), creato con il Decreto n° 4.783/2013, ha l’obiettivo di combattere l’esclusione energetica che tutt’ora colpisce il paese, a partire della destinazione delle risorse provenienti dai fondi settoriali di energia: Conta de Desenvolvimento Energetico (Conto dello Sviluppo Energetico) e Reserva Global de Reversão (Riserva Globale di Reversione). Questo programma comprende, atualmente, il “Plano Brasil sem Miséria” (Piano Brasile senza miserabilità) e il “Programa Território da Cidadania” (Programma Territorio della Citadinanza), entrambi stabiliti tramite il Decreto n° 7.520/2011, con lo scopo di aumentare l’area di abrangenza della politica pubblica. Nel contesto rurale, sembra evidente che l’arrivo dell’energia elettrica fa diventare più facile l’integrazione delle iniziative pubbliche, sia per i programmi sociali e gli azioni di attenzione ai servizi basici (educazione, sanità, fornitura di acqua), che per le politiche pubbliche di incentivo alla agricoltura familiare, ai piccoli produttori e commercianti locali, contribuendo allo sviluppo economico e sociale delle aree favorite. In speciale, per quanto riguarda alle biomasse, il cui utilizzo ocorre soppratutto nelle località rurali, il programma summenzionato rapresenta una grande possibilità di investimento, sempre che la sua attuazione stia collegata alle altre iniziative di incentivo a tali pratiche e non soltanto all’arrivo dell’energia dalle fonti tradizionali. Rapresenta, in questo modo, una via che si apre davanti un’ampia gamma di possibili azioni capaci di rafforzare la realtà regionale e valorizzare i suoi potenziali. Oltre a questo, la adeguata manipolazione delle risorse naturali è imperativa nella logica della preservazione ambientale e molte sono le alternative a questo scopo, come è il caso della ricoverazione delle aree degradate, dei rimboschimento, del riutilizzo dei residui e avanzi della produzione agricola. Secondo una ricerca dello Istituto Internazionale per l’Ambiente e lo Sviluppo (International Institute for Environment and Development – IIED), l’utilizzo delle biomasse può essere un importante strumento per la crescita economica e tecnologica delle nazioni in via di sviluppo, nettamente nella lotta contro la povertà e nella creazione di posti di lavoro, oltre a poter significare una indipendenza energetica adatta ai cambiamenti climatici e regionali, con l’utilizzo delle fonti non fossili e non inquinanti. Quindi, affrontare la sfida di amplificare la matrice energetica sembra strategico per riuscire a garantire il diritto all’energia. In questo modo, è necessario stimolare la creazione di energia tramite fonti alternative, in modo a far diventare più attraente il prezzo (per la realizzazione delle cosi dette aste competitive e chiamate pubbliche, entrambi processi di licitazione pubblica in Brasile, oltre alla concessione di incentivi fiscali), tale come prevede il progetto di legge che propone la normatizazione della produzione delle biomasse, un’alternativa pulita di produzione sufficientemente dimostrata realizzabile nel paese.

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Do cumprimento de Sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública (arts. 534-535)e a Execução contra a Fazenda Pública (910) Fernanda Duarte1 Rafael Mario Iorio Filho2 Haroldo Lourenço3 O cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa pelo Poder Público (Fazenda Pública) está disposto em um par de artigos (art. 534 e 535 do NCPC), além do previsto sobre a execução extrajudicial (art. 910 NCPC). Cumpre de início registrar que na expressão “Fazenda Pública” incluemse as pessoas jurídicas de direito público interno (art. 41 do Código Civil), ou seja, a União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios, autarquias e associações públicas, além das fundações públicas, criadas pelo Poder Público, por serem consideradas fundações autárquicas, bem como as agências reguladoras e executivas, excluindo-se as sociedades de economia mista e as empresas públicas, nos termos do art. 173 §2º da CR/88.4 Há quem sustente que as sociedades de economia mista quando desempenham atividades econômicas afetas a serviços públicos deveriam ter seus bens impenhoráveis, bem como deveriam observar o regime dos precatórios, contudo, o tema foi enfrentado pelo STF que não acolheu tal tese.5 1

Doutora PUC/RJ. Professora Permanente do PPGD/UNESA. Professora Adjunta da FD/ UFF. Pesquisadora Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/ PPGD-UNESA e do LAFEP/INCT-InEAC/UFF. Membro do IBDP. 2 Pós-Doutor CEDEC. Doutor UGF. Douto UFRJ. Professor Permanente do PPGD. Pesquisadora Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/PPGDUNESA e do LAFEP/INCT-InEAC/UFF. Coordenador de Área de Ciências Sociais. Membro do IBDP. 3 Doutorando e Mestre PPGD/UNESA. Pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso/PPGD-UNESA. Advogado. Membro do ICPC e ABDPC. 4 Nesse sentido: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 15. ed. inteiramente revista. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. v. 2, p. 309. 5 Esse é o entendimento que prevaleceu, por maioria, no STF (Informativo 628): RE 599.628/ DF, rel. orig. Min. Ayres Britto, red. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, j. 25.05.2011.

Do cumprimento de Sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública (arts. 534-535)e a Execução contra a Fazenda Pública (910)

Por outro lado, a jurisprudênciaentende que a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), por força do previsto no art. 12 do Decreto-Lei nº 509/69, apesar de constituída sob a forma de empresa pública, considerou relevante o fato de ser entidade voltada à prestação de serviço público da União (art. 21, X CR) para incluí-la no conceito de Fazenda Pública, de modo a atribuir-lhe o regime jurídico processual dos entes públicos.6 Observe-se que o novo diploma legal não tem o condão de alterar o “procedimento jurisdicional constitucionalmente diferenciado”7 que remete a forma de pagamento ao regime do precatório ou de requisição de pequeno valor, nos termos do art. 100,caput e §3º da Constituição de 1988. Tal procedimento diferenciado para a Fazenda Pública, segundo a doutrina, justifica-se por uma série de razões, tais como a inalienabilidade dos bens públicos,8 a continuidade do serviço público e, ainda, a isonomia no pagamento que será feito,9 em sua grande parte, por precatório. Assim, se no particular ainda persiste a prerrogativa Constitucional da Fazenda, nos perguntamos qual seria a inovação trazida? Com efeito, podemos pensar em uma alteração procedimental que explicita pelo menos três grandes ideias do processo civil brasileiro contemporâneo. Trata-se da alteração que submete a execução de obrigação da Fazenda de pagar quantia certa ao modelo geral da execução de títulos judiciais, isto é, ao procedimento do cumprimento de sentença – que confirma o sincretismo processual10. Há, assim, um esforço do Novo CPC em estabelecer limites mais rígidos no que toca à igualdade jurídica entre as partes litigantes, abraçando simetria de formas, com identidade de garantias processuais, já que estabelece o mesmo procedimento – cumprimento de sentença – para a cobrança de créditos oriundos de sentença, quer sejam devidos por particulares, quer sejam devidos pelo Poder Público. Há aqui uma regra igualitária que relativiza, nesse particular, a ideia de o Estado ser uma super-parte. 6

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STJ, 2ª T., AgRg no Ag 418.318/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 02/03/2004. STF, Pleno, ACO 765 QO, Rel. Min. Marco Aurélio, Relator para Acórdão: Min. Eros Grau, julgado em 01/06/2005. 7 BUENO, Cassio Scarpinella. Projetos de Novo Código de Processo Civil comparados e anotados. São Paulo: Saraiva, 2014, p 278. 8 Com esses argumentos: DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Execução. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 709; CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 15. ed. inteiramente revista. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. v. 2, p. 308. 9 Utilizando os três fundamentos: BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil 3: tutela jurisdicional executiva. São Paulo: Saraiva, 2008. t. I, p. 381. 10 Para José Carlos Barbosa Moreira, o sincretismo processual é a na junção das atividades jurisdicionais de cognição e execução, eliminando-se a diferenciação formal entre processo de conhecimento e processo de execução. (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Cumprimento” e “execução” de sentença: necessidade de esclarecimentos conceituais. In: Temas de direito processual: nona série. São Paulo: Saraiva, 2007).

Fernanda Duarte, Rafael Mario Iorio Filho e Haroldo Lourenço

Recorde-se que no regime do Código de 1973, disciplinado no art.73011, não se falava em cumprimento de sentença de quantia certa contra o Poder Público, sendo quase pacífico que,apesar da relativização da autonomia do processo de execução (no que toca ao título executivo judicial, trazida pela Lei nº 11.232/200512),esta não atingia a Fazenda quando parte sucumbente.13Prevalecia a necessidade de se ajuizar uma nova ação de execução, isto é, tratava-se de um processo de execução autônomo. Há ainda um reforço, uma ideia de harmonização procedimental, que levaria, como idealizado pelos juristas, a uma simplificação procedimental, que a seu turno traria mais celeridade. Nesse sentido, o novo código abole a dicotomia “condenação/execução” a que, apesar das reformas da Lei 11.232/2005, a Fazenda se submetia no regime do CPC/73. E no particular, reforça-se a concepção do processo sincrético como escolha legislativa para a execução de títulos judiciais, aprofundando a aposta em um processo mais simplificado e célere como a Reforma da Execução de 2005/2006 anunciava. Ainda assim, observe-se que algumas particularidades foram estabelecidas se comparado o disposto nos arts. 534 e 535 ao art. 523 (que trata do cumprimento definitivo de sentença que reconhece a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa contra particulares) – com o que o regime processual diferenciado da Fazenda Pública em juízo se mantém. No que se refere ao procedimento, o art. 534, desenhado no princípio da inércia, extrai-se que o cumprimento se dará medianteprovocação do exequente 11

CPC 73 – “Art. 730. Na execução por quantia certa contra a Fazenda Pública, citar-se-á a devedora para opor embargos em 10 (dez) dias; se esta não os opuser, no prazo legal, [..]” 12 Lembre-se que a Lei 11.232/2005 inovou o procedimento de execução por quantia certa fundada em titulo executivo judicial, determinando que esta seja feita dentro do processo principal, sem a necessidade de instauração de um processo autônomo. Tem-se aqui o chamado sincretismo da execução. 13 No particular, ensinavam então Ernani Fidelis dos Santos, Nelson Nery Júnior e Teresa Arruda Alvim Wambier: “O processo de execução de dividas pecuniárias contra a Fazenda Pública, entretanto, não foi atingido pelas reformas havidas no Código de Processo Civil. Muito pelo contrário, a estrutura do processo de execução de obrigação de pagar quantia certa, baseada na prévia inclusão da dívida no orçamento futuro da entidade devedora, decorrente de determinação judicial para tanto, e pagamento de acordo com a ordem cronológica de entrada dessa ordem, remonta à Constituição Federal de 1934. Desde então, as Constituições têm repetido o sistema de pagamento de dívidas em dinheiro da Fazenda Pública através desse procedimento”. (Execução Civil. Estudo em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 336/337). No mesmo sentido, afirmando não haver cumprimento de sentença para pagar quantia contra a Fazenda Pública: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011, p. 1080; DIDIER JR., Fredie.Curso de direito processual civil cit., v. 5, p. 710. Em sentido contrário, afirmando que deveria ser aplicável à Fazenda Pública o cumprimento de sentença: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil cit., 15. ed., v. 2, p. 311. LOURENÇO, Haroldo. Manual de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 873.

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interessado que já deverá apresentar demonstrativo discriminado e atualizado do crédito contendo a identificação do exequente (o nome completo e o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) e informações que permitam o exercício do contraditório sobre o valor exigido, a saber: o índice de correção monetária adotado;os juros aplicados e as respectivas taxas; o termo inicial e o termo final dos juros e da correção monetária utilizados;a periodicidade da capitalização dos juros, se for o caso; e especificação dos eventuais descontos obrigatórios realizados. Se houver pluralidade de exequentes, cada um deverá apresentar individualmente o seu próprio demonstrativo, aplicando-se à hipótese, se for o caso, o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 113 que dispõem sobre a gestão do litisconsórcio facultativo pelo juízo, na hipótese de ser multitudinário. O § 2º do art. 534,exclui a aplicação da multa prevista no art. 523 §1º, mostrando-se compatível com o regime Constitucional de precatório/RPV, vez que não há possibilidade normativa de pagamento imediato da dívida. Aliás, tal entendimento já se encontrava consolidado na jurisprudência14quando reconhecia a inaplicabilidade da multa do então art. 475-J do CPC/73, porém agora há norma expressa em lei. A defesa da Fazenda, após intimada pessoalmente (por carga, remessa ou meio eletrônico)se dará por meio de impugnação, nos próprios autos principais (art. 535 NCPC), superando-se em absoluto, nesse ponto, o sistema anterior (art. 730 CPC/73), que determinava a citação da Fazenda para opor ação de Embargos, contudo, no que se refere ao prazo, mantem-se a alteração que já havia sido realizada pelo art. 1º-B da Lei nº 9.494/97, que ampliou de 10 para 30 dias o prazo para a mencionada ação de defesa.15 Não obstante o silêncio do art. 535 do NCPC, o embargado deverá ser intimado para se manifestar por igual prazo, nos termos do art. 7º NCPC, 14

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Verifique-se: REsp 1201255 RJ 2010/0129823-1, Segunda Turma, Rel. Min. Mauro Campbell Marques. “[...]Não há que se falar em incidência da multa de 10% prevista no art. 475-J do CPC em sede de execução contra a Fazenda Pública, visto que não é possível exigir que Fisco pague o débito nos 15 dias de que trata o dispositivo supra, eis que o pagamento do débito alimentar será realizado na ordem preferencial de precatórios dessa natureza. [...]” 15 Cumpre registrar que sobre tal alteração há uma discussão sobre a sua constitucionalidade, pois deveria ser aplicado o prazo de 10 dias, previsto originalmente pelo art. 730 do CPC/73, por afronta à isonomia, visto que na execução fiscal, em que a Fazenda é exequente, o executado tem 30 dias para embargar, contudo, tal tratamento diferenciado se justificaria na circunstância do particular em situação de maior fragilidade, eis que o título executivo da execução fiscal é elaborado por ato unilateral do credor (CDA). Na execução contra a Fazenda, o título seria elaborado pelo Judiciário ou, se extrajudicial, com a participação da devedora: CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil cit., 15. ed., v. 2, p. 310-311. De igual modo, tramita no STF uma ADC, na qual se deferiu liminar determinando a suspensão de todos os processos em que se discuta a constitucionalidade do referido prazo (STF, Pleno, ADC-MC 11/DF, rel. Min. Cezar Peluso, j. 28.03.2007). Por fim, há, ainda, que se consignar que o art. 884 da CLT prevê o prazo de 5 dias.

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contudo, cremos que muitos autores afirmarão que, por se tratar de procedimento diferenciado, somente a Fazenda Pública teria prazo de 30 dias, ou seja, a Fazenda Pública apresentaria sua impugnação no prazo de 30 dias, porém os particulares deveriam respondê-la no prazo de 15 dias. No que toca ao efeito suspensivo da defesa interposta pela Fazenda, ainda sob a égide do Código de 73, não era objeto de regra específica, dando ensejo a posições divergentes sobre o tema16, conforme registrado por Felipe Wladeck17 e existir doutrina que se inclina a reconhecer um efeito suspensivo automático18 sendo certo que, por conta da sistemática do precatório não se admitia qualquer tipo de pagamento anterior ao trânsito em julgado (quer no processo principal, quer nos embargos), o que na prática implicava reconhecer efeito suspensivo. Com o NCPC, o §4º do art. 535 prescreve que, quando a impugnação da Fazenda Pública for parcial, a parte não questionada da execução terá imediato prosseguimento. O §3º, por sua vez, diz que, não impugnada a execução ou quando rejeitada a impugnação formulada, será expedido o precatório ou a requisição de pequeno valor. Nesse sentido, pode-se extrair que na parte em que impugnada pela Fazenda Pública, a execução será automaticamente suspensa – diversamente do que se passa nos casos de cumprimento de sentença condenatória ao pagamento de quantia certa contra devedores em geral, i.e., outros que não a Fazenda Pública e que a suspensão da execução perdurará até o momento do julgamento de improcedência da impugnação formulada, contudo, somente no que se refere à parte impugnada, permitindo-se o cumprimento de sentença da parcela incontroversa (art. 535 §4º NCPC), o que já era a posição da jurisprudência.19 Há, ainda, mais um ponto. O art. 535 §3º do NCPC afirma que não sendo impugnada a execução será expedido o precatório ou o RPV, superando a controvérsia que existia se, ainda assim, seria necessária a remessa dos autos ao contador. Majoritariamente, só haveria remessa ao contador se for manifesto o excesso de execução, do contrário, a não apresentação de embargos (com o NCPC será impugnação) reflete a interpretação que a Fazenda concorda com 16

O tema era divergente no próprio STJ, como se observam dos votos dos Min. Laurita Vaz, MS 6864/DF e Min. Humberto Martins, Ag RegREsp 1275883/PR. 17 WLADECK, Felipe Scripes. O novo CPC e a execução para pagamento de quantia certa contra a Fazenda Pública. Disponível em:< http://www.justen.com.br//informativo. php?&informativo=96&artigo=1202&l=pt >. Acesso em 20 abril 2015. 18 LUIZ, Daniela. A Prerrogativa Processual da Fazenda Pública de Obter Efeito Suspensivo Automático nos Embargos à Execução. Revista Jurídica da Procuradoria Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 1, p. 39-52, 2010. Disponível em:, Acesso 24 abril 2015. DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Execução cit., 2. ed., v. 5, p. 712. Não reconhecendo a atribuição de efeito suspensivo automático: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil cit., 3. ed., p. 1081; BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil 3: tutela jurisdicional executiva cit., p. 389. 19 STJ, 2ª T., AgRg nos EDcl no REsp 1.497.627/PR, rel. Min. Humberto Martins, julgado 14.04.2015.

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o valor apresentado pelo exequente20, contudo, alguns autores sustentavam que sempre seria necessária a remessa ao contador, em nome do interesse público e da indisponibilidade do interesse público versado pela causa;21 Na impugnação poderão ser alegadas as matériaspresentes no art. 535 NCPC e, por se tratar de execução judicial, não se poderá voltar a discutir o direito já fixado na sentença, sob pena de ofensa à coisa julgada material, havendo, portanto, uma limitação da cognição horizontal.22 Tais matérias se mostram muito simétricas ao que já era previsto nos artigos 741 e 475-L do CPC/73. No NCPC, o art. 535 se mostra simétrico ao art. 525, onde se mantem a igualdade jurídica nas matérias alegáveis tanto pelo particular, como pela Fazenda Pública, nos seus respectivos cumprimentos de sentença.23 No inciso I, do art. 535 do NCPC, há a hipótese do denominado “vício transrescisório”, ou seja, o vício de citação que seria alegável até mesmo depois do transcurso do prazo de dois anos da ação rescisória, por meio de uma ação de querellanullitatis ou em sede exceção de não executividade. Trata-se da alegação da denominada exceptionullitatis da sentença24, para o reconhecimento do vício constante na sentença existente, mas inválida. Observe-se que o legislador enfatiza que tal hipótese somente poderá ser suscitada se o réu não comparecer ao processo, pois, do contrário, o seu comparecimento sana o vício citatório (art. 239 § 1º NCPC), além disso, com a formação da coisa julgada incide a eficácia preclusiva (art. 508 NCPC). Assim, por exemplo, se a citação da Fazenda Pública no processo de conhecimento for realizada pelos correios, atrelada à revelia (rectius, ausência ao processo), ocorrerá uma nulidade que pode ser apresentada na impugnação, por violação ao art. 247, III NCPC. Por óbvio, se houver comparecimento espontâneo não haverá prejuízo havendo, na verdade, a convalidação do ato de citação, já que a finalidade do ato foi atingida (art. 277 NCPC). Admite-se, ainda, a alegação de ilegitimidade de parte (inc. II do art. 535 NCPC), condição da ação disposta no art. 485, VI NCPC. No inciso IIIhá a hipótese da “inexequibilidade do título ou inexigibilidade da obrigação”. Primeiro ponto a se ressaltar foi a mudança redacional, onde se substituiu a expressão “inexigibilidade do título” por inexequibilidade, gerada por um vício constante do título, bem como deixou claro que também é possível se alegar a inexigibilidade da obrigação constante do título.25 20

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil cit., 3. ed., p. 1080. RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 640. 22 Nesse sentido: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015, p. 348. 23 Afirmado que a repetição se mostra inútil, pois bastaria uma remissão genérica determinando a aplicação do art. 525 do NCPC: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015 cit, p. 348. 24 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Execução cit., v. 5, p. 372. 25 Essa distinção já era clamada pela doutrina: DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Execução cit., v. 5, p. 375. LOURENÇO, Haroldo. Manual de Direito Processual Civil cit., p. 859. 21

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A técnica legislativa é digna de nota. Realmente o que o legislador sempre previu foi uma hipótese de inexequibilidade do próprio título, bem como agora deixa claro que título e obrigação são institutos que não se confundem. É possível se ter um título totalmente válido, contudo a sua obrigação não possui mais exigibilidade (art. 786 NCPC) pois, por exemplo, simplesmente, já ocorreu o pagamento. O §5º do art. 535 NCPC, afirma que se considera inexigível a obrigação reconhecida em título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal Federal como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, informando o §6º que os efeitos da decisão do STF poderão ser modulados no tempo, de modo a favorecer a segurança jurídica. Sobre tal modulação, cumpre registrar o Enunciado 176 do FPPC (Fórum Permanente de Processualistas Cíveis) (art. 525, § 13), onde se afirma que compete exclusivamente ao Supremo Tribunal Federal modular os efeitos da decisão prevista no § 13 do art. 525, o qual merece aplicação para o art. 535 §6º NCPC. O mencionado dispositivo consagra a denominada “coisa julgada inconstitucional”, que já estava prevista no art. 741, parágrafo único do CPC/73. Tem-se, a rigor, uma hipótese de rescisória de sentenças inconstitucionais, sem a necessidade de observância do prazo bienal, bem como sem ser da competência originária de um tribunal, tampouco a propositura de uma ação autônoma.26 Nesse sentido, cumpre consignar o Enunciado 58 do FPPC que afirma: (Art. 525, §§ 12 e 13; Art. 535, §§ 5º e 6º) As decisões de inconstitucionalidade a que se referem os art. 525, §§ 12 e 13 e art. 535 §§ 5º e 6º devem ser proferidas pelo plenário do STF. O §7º afirma que a decisão do STF referido no §5º deve ter sido proferida anteriormente ao trânsito em julgado da decisão exequenda, consagrando o que já era afirmado pela doutrina27 e pela jurisprudência (Súmula 487 do STJ), evitandose, que decisões posteriores tenham o condão de desfazer a coisa julgada material, violando a segurança jurídica preconizada pelo art. 5º, XXXVI da CR/88. Primando pela clareza, afirma o §8º que se a decisão do STF (prevista no §5º) tiver sido proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo (art. 975 NCPC) será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF, fortalecendo o papel do STF como corte constitucional. 26

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Execução cit., v. 5, p. 375; ZAWASCKI, Teori Albino. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único, do CPC. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2005. n. 125, p. 81-82. 27 LOURENÇO, Haroldo. Manual de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 876.

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Esse, inclusive, já vinha sendo a interpretação realizada pelo STF para os casos de violação à Constituição, afirmando que se os tribunais divergiam sobre a interpretação da Constituição, caberia rescisória para fazer prevalecer o entendimento da corte suprema. Assim, a jurisprudência já havia criado uma hipótese de distinguishing ao Enunciado 343 do STF, pois deixou de ter incidência em matéria constitucional, passando a rescisória a ser um instrumento de “controle de constitucionalidade”28, agora com previsão expressa em lei. Para se evitar um tratamento diferenciado, tal regra é repetida no art. 525 §15º onde, de igual modo, se admite o manejo da ação rescisória para a mencionada hipótese pelo particular. O inciso IV permite a alegação de “excesso de execução ou cumulação indevida de execuções”. No que se refere ao excesso de execução, cumpre se observar a definição prevista no art. 917 §2º NCPC, bem como se observar o art. 535 §2º, onde se afirma que se houver a alegação de que o exequente, em excesso de execução, pleiteia quantia superior a resultante do título, caberá à executada/impugnante informar de imediato o valor que entende correto, sob pena de não conhecimento da arguição. No particular, a regra se assemelha ao previsto no §5º do então art. 739-A e art. 475-J § 2º, ambos do CPC/73 (apresentação de memória de cálculo ou exceptiodeclinatoria quanti) e que já se aplicava também na execução prevista pelo art. 730 e seguintes29, não trazendo nenhuma inovação, o que reflete a aplicação do princípio da cooperação (art. 6º NCPC). No que se refere à cumulação indevida de execuções, deve ser observado o disposto no art. 780 do NCPC, que define tal instituto. O inciso V permite a alegação de incompetência absoluta ou relativa do juízo da execução na impugnação manejada pela Fazenda Pública, demonstrando uma sintonia fina com os arts. 337, II, 525, VI e 917, V do NCPC, eis que tanto a incompetência absoluta, como a relativa serão alegáveis sempre de maneira incidental, não havendo mais exceção de incompetência. De igual modo, para a alegação de incompetência na execução deverá ser observado o art. 516 NCPC, o qual estabelece as regras de competência no cumprimento de sentença. Por fim, o inciso VI permite que a Fazenda Pública suscite qualquer causa modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que supervenientes ao trânsito em julgado da sentença, o qual corresponde ao art. 741, VI do CPC/73, contudo, substituindo a expressão “sentença” por “trânsito em julgado”, o que já se afirmava em sede doutrinária, bem como saliente-se ser um rol exemplificativo, admitindo a alegação de, por exemplo, renúncia ao crédito, remissão, confusão etc.30 28

STF, Plenário, RE 328.812 ED/AM, rel. Gilmar Mendes, j. 06.03.2008. STJ, REsp 1.085.948/RS, 6ª T., rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 16.06.2009. 30 NEVES, Daniel Amorim Assumpção.Manual de direito processual civil cit., 3. ed., p. 1123. LOURENÇO, Haroldo. Manual de Direito Processual Civil cit., p. 560. 29

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Fernanda Duarte, Rafael Mario Iorio Filho e Haroldo Lourenço

Recorde-se aqui que a impugnação não tem, em regra, efeitos rescisórios, razão pela qual o legislador enumera as hipóteses de defesa e marca a superveniência das causas modificativas e extintivas da obrigação à sentença. Há regra expressa no que diz respeito à alegação de impedimento ou suspeição (art. 535 §1º), remetendo-se à disciplina ao disposto nos arts. 146 e 148, a saber: por petição específica (e não mais mediante exceção, como é o entendimento prevalecente no CPC de 1973), a ser protocolada em 15 dias da data da ciência do fato que supostamente atinge a imparcialidade do juiz. Alegada a suspeição ou impedimento, Wladeck31 afirma que “a execução ficará suspensa até segunda ordem – ex vi do §2º.do art. 146 e do art. 311, inciso III (se o juiz não acolher a alegação, o incidente será remetido ao tribunal, que decidirá se o processo deverá permanecer suspenso ou não até o seu julgamento).” Não concordamos com tal entendimento, eis que o efeito suspensivo ex lege não pode ser presumido, pelo contrário, o art. 146 §2º afirma que “distribuído o incidente, o relator deverá declarar os seus efeitos”, o que deixa claro se tratar de um efeito suspensivo opeiudicis, sendo ratificado pelo §3º do mesmo artigo, onde afirma que “enquanto não for declarado o efeito em que é recebido o incidente”. Cumpre registrar que o §1º do art. 535 do NCPC pôs fim a controvérsia que existia na interpretação do art. 741, VII e do art. 742 do CPC/73, os quais eram contraditórios. O §3º do art. 535 trata do efetivo pagamento da quantia fixada no título executivo judicial que tem por pressuposto a não impugnação da execução pela Fazenda ou a rejeição da defesa deduzida pela executada. O inciso I determina que expedir-se-á, por intermédio do presidente do tribunal competente, precatório em favor do exequente, observando-se o disposto na Constituição Federal, em cumprimento ao já mencionado art. 100. Diga-se, de passagem, que a regra não traz inovações, reproduzindo o expresso no inciso I, do então art. 730 do CPC/73. Por sua vez, o inciso II estabelece que por ordem do juiz da causa, dirigida à autoridade, na pessoa de quem o ente público foi citado para o processo, o pagamento de obrigação de pequeno valor – RPV – será realizado no prazo de 2 meses, contado da entrega da requisição, mediante depósito na agência de banco oficial mais próxima da residência do exequente. O procedimento inova em relação ao CPC de 1973, já que o mesmo não explicitava de que forma as requisições seriam expedidas. Tais previsões eram encontradas no art. 17 da Lei nº 10.259/01, tendo sido, posteriormente, melhor organizado pelo art. 13 da Lei 12.153/09. Percebe-se, assim, um esforço do legislador em uniformizar essa questão. No caso da Justiça Federal, por exemplo, a questão está disciplinada na Resolução 168/2011 do Conselho da Justiça Federal, que já determina o prazo de 60 dias para o pagamento, cabendo ao juiz expedir ofício requisitório ao presidente do tribunal regional federal correspondente, que tomará as providências necessárias para o eventual pagamento. 31

Idem ibidem.

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Do cumprimento de Sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública (arts. 534-535)e a Execução contra a Fazenda Pública (910)

No que se refere à execução baseada em título extrajudicial contra à Fazenda Pública, há o art. 910 do NCPC, de maneira mais organizada, regulamenta expressamente o seu cabimento, o que já era admitido pelo Enunciado 279 da Súmula do STJ32, afirmando que a mesma será citada, para no prazo de 30 dias, opor embargos. O previsto no artigo em comento é para o pagamento de quantia certa, eis que se a obrigação for de fazer, não fazer ou entregar coisa diversa de dinheiro, os procedimentos são os respectivos (art. 814 ao 826 NCPC), inexistente qualquer regra diferenciada para a Fazenda Pública, à falta de exigência constitucional.33 De igual modo, afirma o §1º que, não opostos os mencionados embargos, ou transitada em julgado a decisão que os rejeitar, expedir-se-á precatório ou requisição de pequeno valor em favor do exequente, observando-se o disposto no art. 100 da Constituição Federal. Por se tratar de execução extrajudicial contra a Fazenda Pública onde, portanto, não houve um processo de conhecimento anterior, o §2º afirma que a Fazenda Pública poderá alegar qualquer matéria que lhe seria lícito deduzir como defesa no processo de conhecimento, repetindo a regra constante do art. 745, V do CPC/73. Esse, inclusive, já era o entendimento que prevalecia em sede doutrinária, pois se afirmava que na execução extrajudicial contra a Fazenda não seria aplicável o art. 741 do CPC/73, mas o art. 745 do mesmo diploma.34 Afirma o §3º que se aplica, no que couber, o disposto nos artigos 534 e 535, ou seja, as normas inerentes ao cumprimento de sentença nas obrigações de pagar contra a Fazenda Pública. Nesse sentido, cremos ser aplicávelà execução extrajudicial contra a Fazenda o previsto nos §§ 1º ao 4º do art. 535, sendo incompatível os demais parágrafos, por tratarem de hipóteses específicas inerentes aos títulos judiciais, onde se admite a “revisão” da coisa julgada, sempre que fundada em decisão declarada inconstitucional pelo STF. No que se refere ao art. 534, o mesmo se mostra compatível, devendo ser aplicado à execução extrajudicial na sua inteireza, inclusive no que refere à impossibilidade de se aplicar a multa prevista no art. 523 §2º Por fim, o art. 85 §7º do NCPC afirma que não serão devidos honorários no cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública que enseje expedição de precatório, desde que não tenha sido impugnada. No entanto, tratando-se de execução extrajudicial, deve ser aplicado o art. 85 §1º, havendo incidência de honorários advocatícios nas execuções, resistidas ou não, o que é ratificado pelo Enunciado 240 do FPPC.35 32

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil cit., 15. ed., v. 2, p. 309. BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 554. 34 DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Execução. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p. 709. 35 (art. 85, § 3º; art. 910) São devidos honorários nas execuções fundadas em título executivo extrajudicial contra a Fazenda Pública, a serem arbitrados na forma do § 3º do art. 85. 33

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Fernanda Duarte, Rafael Mario Iorio Filho e Haroldo Lourenço

Por outro lado, o art. 1º-D da Lei 9.494/1997 afirma que não serão devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas execuções não embargadas restando, somente, os honorários fixados no processo de conhecimento. A constitucionalidade de tal dispositivo foi questionada no STF,36onde se afirmou, interpretando conforme a Constituição, que se o débito for pago mediante precatório que se aplica o dispositivo, de modo que não embargada a execução, não haverá a incidência de verba honorária, pois não é dado à Fazenda cumprir voluntariamente a obrigação, devendo a execução seguir o rito do precatório. Esse parecer ter sido o entendimento adotado pelo NCPC. Por outro lado, se o débito for pago mediante requisição de pequeno valor, a interpretação conforme a Constituição indicou que, mesmo não embargada a execução, haverá incidência de verba honorária. Ocorre que o STJ expediu o Enunciado 345, afirmando que são devidos honorários advocatícios pela Fazenda Pública nas execuções individuais de sentença proferida em ações coletivas, ainda que não embargadas. Nesse sentido, havendo sentença proferida em ação coletiva, com uma condenação genérica, cujos titulares procederão posteriormente à devida liquidação e execução individuais, mesmo que não embargadas, haverá a incidência de verba honorária. Nesse ponto, parecer estar superado tal Enunciado pelo art. 85 §7º do NCPC.

Referências bibliográficas BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “Cumprimento” e “execução” de sentença: necessidade de esclarecimentos conceituais. In: Temas de direito processual: nona série. São Paulo: Saraiva, 2007). BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil 3: tutela jurisdicional executiva. São Paulo: Saraiva, 2008. t. I. ________. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2015. ________. Projetos de Novo Código de Processo Civil comparados e anotados. São Paulo: Saraiva, 2014. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 15. ed. inteiramente revista. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2008. v. 2. DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. Execução. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. FIDELIS DOS SANTOS, Ernani; NERY JÚNIOR, Nelson; ALVIM WAMBIER, Teresa Arruda: Execução Civil. Estudo em homenagem ao Professor Humberto Theodoro Júnior. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. LOURENÇO, Haroldo. Manual de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2013. NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011. ________. Novo Código de Processo Civil – Lei 13.105/2015. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015. 36

STF, Pleno, RE 420.816 ED/PR, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 21.03.2007.

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Do cumprimento de Sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública (arts. 534-535)e a Execução contra a Fazenda Pública (910)

RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito processual civil. 4. ed. São Paulo: RT, 2008. WLADECK, Felipe Scripes. O novo CPC e a execução para pagamento de quantia certa contra a Fazenda Pública. Disponível em:< http://www.justen.com.br//informativo.php?& informativo=96&artigo=1202&l=pt >. Acesso em 20 abril 2015. ZAWASCKI, Teori Albino. Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único, do CPC. Revista de Processo. São Paulo: RT, 2005. n. 125.

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A Perspectiva Democratizante do Direito Processo Civil Brasileiro e seus impactos na Cultura Jurídica Processual Estabelecida Alexandre de Castro Catharina1 Resumo O Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu um novo paradigma processual com forte matiz democratizante. Neste sentido, objetiva-se analisar os institutos processuais que viabilizam a democratização do processo jurisdicional e identificar como a cultura jurídica processual brasileira absorverá esses novos institutos democratizantes. O artigo, portanto, pretende traçar, em linhas gerais, propostas para superação da cultura jurídica individualizante prevalecente nas instituições judiciárias e viabilizar a expansão e eficácia das dimensões democratizantes do processo jurisdicional. Palavras-chave: Reformas processuais; democratização do processo; cultura jurídica processual. Abstract The Civil Procedure Code of 2015 established a new process paradigm with strong democratizing hue. In this sense , the objective is to analyze the procedural institutes that enable the democratization of the judicial process and identify how the Brazilian procedural legal culture absorb these new democratizing institutions. The article therefore seeks to indicate , in general , proposals for overcoming individualizing prevailing legal culture in the judiciary and facilitate the expansion and effectiveness of democratizing dimensions of the legal proceedings. Keywords: Procedural reforms; democratization process; procedural legal culture.

Introdução O direito processual civil brasileiro foi objeto de diversas transformações com o escopo de redimensionar o acesso à justiça, racionalizar a administração da justiça e dar maior efetividade à própria atividade jurisdicional. Essas transformações foram condicionadas pela complexidade dos conflitos que emergiram da sociedade contemporânea como também pela necessidade de se administrar, de forma adequada, a multiplicidade de processos judiciais que tramitam no Poder Judiciário brasileiro. 1

Doutor em Sociologia pelo IUPERJ/UCAM. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá. Advogado. Professor de Direito Processual Civil (Graduação e Pós-Graduação) da Universidade Estácio de Sá. Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP. Coordenador do Curso de Direito do Campus Nova América, UNESA/RJ.

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Nessa linha de reflexão, o processo civil constitui um método de administração de conflitos, específico, que é determinado, em certa medida, pelas condicionantes sociais e políticas de um dado momento histórico. Considerada essa premissa, podemos identificar na história recente do Direito Processual Civil brasileiro alguns movimentos renovatórios cuja finalidade era adequar o método de administração de conflitos à complexidade e anseios sociais. O primeiro movimento renovatório2 foi influenciado pelo Projeto de Florença, coordenado por Cappelletti (1988) na década de 1970, cuja finalidade era aprimorar a processualística brasileira para contemplar tutela jurisdicional dos direitos coletivos, através da Lei nº 7.347/1985. Embora a ação civil pública tenha sido estabelecida antes da Constituição Federal de 1988, não há dúvidas de que representou certa mudança de perspectiva do Direito Processual, transformando, do ponto de vista teórico, um modelo elaborado para solução de conflitos individuais para abarcar, também, a solução de conflitos coletivos3. Com efeito, a tutela coletiva foi redimensionada no período posterior à promulgação da Carta Magna e aprimorada através do Código de Defesa do Consumidor. Na década de 1990, inicia-se o segundo movimento renovatório que se desenvolveu em três eixos distintos. O primeiro eixo buscou estabelecer microssistemas processuais com o objetivo de ampliar o acesso à justiça e dar maior celeridade no julgamento de demandas específicas. Sendo assim, a expansão dos Juizados Especiais Cíveis em todo território nacional, mediante aprovação da Lei nº 9.099/95, em atenção ao comando Constitucional (art. 98, I), e a instituição da arbitragem, através da Lei nº 9.307/1996, contribuindo para a normatização dos meios alternativos de solução de conflitos, representam reformas significativas nesse contexto. O segundo eixo teve como proposta estabelecer institutos processuais voltados para dar maior efetividade ao processo, como a antecipação de tutela (art.273 CPC/1973) e a tutela específica, caracterizada pelo aprimoramento das medidas de apoio nas obrigações de fazer (art.461 do CPC/1973), que foram inseridas em nosso ordenamento processual através da Lei nº 8.952/1994. O terceiro eixo contempla as reformas voltadas para racionalização da administração da justiça, com forte ênfase na ampliação dos poderes do relator no âmbito dos Tribunais. A Lei nº 9.756/1998 ampliou os poderes dos relatores ao permitir o julgamento monocrático do incidente de conflito de competência (art. 120, parágrafo único, CPC/1973) e possibilitar o julgamento monocrático de recursos cíveis nos termos do art. 557 do mesmo Diploma processual. 2

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Para melhor descrever o panorama das principais reformas processuais ocorridas no Brasil, estabelecemos um recorte histórico denominado de movimentos renovatórios. 3 Importante ressaltar que a Lei nº 4.717/1965, que instituiu a Ação Popular, também dispõe sobre a defesa dos direitos coletivos, mas o potencial desse instrumento processual foi redimensionado após a Constituição Federal de 1988.

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A Emenda Constitucional nº 45/2004, por seu turno, encaminhou o terceiro movimento renovatório caracterizado pela objetivação do processo e do estabelecimento das bases normativas para inserção do sistema de precedentes judiciais no processo civil brasileiro. O alto número de processos e a multiplicidade de recursos estimularam o legislador a promover a reforma do Poder Judiciário através da criação da Súmula Vinculante para o Supremo Tribunal Federal (art. 103-A da CF/1988), da repercussão geral nos recursos extraordinários através da Lei nº 11.418/2006 e do recurso especial repetitivo regido pela Lei nº 11.672/2008. O principal vetor desse movimento tem como propósito estabelecer um sistema recursal objetivo com a finalidade de obter maior segurança jurídica e isonomia no julgamento de demandas repetitivas, além de dar maior celeridade no julgamento dos processos que se avolumam diariamente no Poder Judiciário. O quarto e último movimento renovatório corresponde à perspectiva democratizante do processo civil brasileiro normatizado pela Lei nº 13.105/2015. A ampliação do próprio conceito de cidadania social (WERNECK VIANNA, 2002) e do redesenho institucional do Poder Judiciário como um locus da democracia brasileira (CATHARINA, 2015), contribuiu para o amadurecimento de certa dimensão democrática e participativa da construção da decisão judicial que repercutiu, de forma consistente, em diversos institutos do Código de Processo Civil de 2015. Nessa perspectiva, a nossa proposta nesse trabalho é, num primeiro momento, identificar os diversos instrumentos de democratização do processo judicial dispostos no CPC/2015, e, num segundo momento, refletir sobre os impactos que a inserção desses mesmos instrumentos pode causar na cultura jurídica processual brasileira.

Processo Judicial e Democracia no Brasil Para melhor compreender o processo histórico que influenciou a criação progressiva das bases normativas do processo jurisdicional democrático, importante se faz abordar, ainda que de forma panorâmica, as transformações institucionais e sociais conduzidas pela promulgação do texto constitucional. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um importante marco na consolidação dos novos direitos no Brasil e, principalmente, contribuiu de forma decisiva para o fortalecimento da cidadania. Ao assegurar os direitos coletivos e difusos e estabelecer o princípio da dignidade da pessoa humana como axioma fundamental, a Constituição possibilitou, com efeito, uma releitura da democracia brasileira expandindo o campo de atuação da sociedade civil organizada na formulação de políticas públicas e na gestão de interesses coletivos voltados para os direitos humanos e a proteção do meio ambiente. Neste contexto, é possível identificar em nossa cultura política nacional traços evidentes de uma democracia participativa, caracterizada por uma maior atuação da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais no debate

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público e no encaminhamento de questões concernentes a diversos segmentos da sociedade brasileira. Esse fenômeno é bem retratado na literatura sociológica especializada (AVRITZER, 2007 e DAGNINO, 2009). Esse novo horizonte da democracia brasileira também pode ser reconhecido no campo jurídico4. O deslocamento para o Supremo Tribunal Federal de questões com ampla repercussão social, veiculadas através de ações diretas de inconstitucionalidade e ações de descumprimento de preceito fundamental, possibilitou a intervenção estratégica da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais no processo de formação da decisão judicial, transformando o órgão de cúpula do Poder Judiciário numa arena de disputas sociais sobre setores da sociedade com interesses diversos. A ADPF 54, que tratou do aborto do feto anencefálico, é emblemática no sentido de demonstrar a ampla participação da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais na formação da decisão judicial. Participaram do processo decisório a Confederação Nacional dos Bispos Brasileiros como também diversos movimentos feministas, polarizando o debate acerca das dimensões morais e religiosas acerca do tema. Essa nova arquitetura institucional do Poder Judiciário, como um espaço público de debates, vem estimulando um novo arranjo na estratégia de atuação dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada que se apropriam dos instrumentos de democratização do processo, como amicus curiae e audiências públicas, como forma de intervenção nos processos decisórios encaminhados pelo Supremo Tribunal Federal (CATHARINA, 2015). É nesse contexto institucional, social e político que se estabeleceu as premissas para um processo jurisdicional democratizante, no âmbito da jurisdição constitucional, que se estendeu, do ponto de vista normativo, para o processo civil brasileiro através do tratamento de diversos instrumentos processuais de democratização do processo regulamentados no Código de Processo Civil de 2015. Denominamos de perspectiva democratizante do processo civil o estabelecimento de instrumentos processuais que viabilizam a participação da sociedade civil organizada na formação da decisão judicial, como amicus curiae e a realização de audiências públicas. Importante frisar que o Código de Processo Civil de 2015 rompeu com a estrutura processual do Código de 1973, ao dispor sobre procedimentos para solução de conflitos com ampla repercussão social e dos casos repetitivos garantindo, pelo menos do ponto de vista formal, maior participação dos atores sociais e dos representantes dos diversos segmentos sociais. Pode-se sustentar, e com razão, que os instrumentos de democratização do processo não são inovações trazidas pela Lei nº 13.105/2015, considerando que estes já são utilizados no controle da constitucionalidade levados a efeito pelo Supremo Tribunal Federal. No entanto, o que se analisa nesse artigo é apropriação desses instrumentos pelo Código de Processo Civil, tornando regra geral para a processualística brasileira, contemplando processos judiciais que não compõe a denominada jurisdição constitucional. 4

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O conceito de campo utilizado nesse trabalho foi apropriado da teoria sociológica de Bourdieu (2011).

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Instrumentos Processuais de Democratização no Código de Processo Civil de 2015 O Código de Processo Civil de 1973, aprovado em pleno regime militar, teve o mérito de fundar as bases científicas do Direito Processual brasileiro, incorporando os conceitos fundamentais do Direito alemão e italiano. No entanto, considerando as condicionantes sociais e políticos desse período histórico, o Código foi estruturado para solução de conflitos individuais admitindo a intervenção de terceiros somente nas hipóteses legais em que a decisão judicial iria afetar a esfera jurídica de outrem. A preocupação principal do legislador processual na década de 1970, portanto, era estabelecer um método de solução de conflitos, com autonomia e com aporte científico sólido, que fosse capaz de pacificar conflitos. De modo distinto, o Código de Processo Civil de 2015 sistematizou um ordenamento processual assentado em mecanismos de solução de conflitos de massa, assegurando, pelo menos em tese, maior segurança jurídica e isonomia através dos precedentes judiciais. Por outro lado, expandindo as hipóteses de democratização do debate judicial através da intervenção dos representantes da sociedade civil, ainda que estes não tenham sua esfera jurídica diretamente afetada pela decisão judicial, perfilando um sistema processual com matiz democratizante no que concerne à formação da decisão judicial. A primeira inovação nesse sentido concerne à ampliação da atuação do amicus curiae no processo civil brasileiro. A Lei nº 13.105/2015 regulamentou a atuação do amicus curiae, em seu art. 138, permitindo a atuação de pessoas, físicas ou jurídicas, com representatividade adequada, nos processos individuais ou coletivos, que tramitam no primeiro ou segundo graus de jurisdição sempre que a demanda tenha conteúdo específico ou forte repercussão social. A atuação do amicus curiae, com efeito, será definida pelo juiz ou relator (art. 138,§2º), não cabendo aos amigos da Corte interpor recursos, ressalvada as hipóteses de julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas (art. 138,§3º). Tratase, neste sentido, de normatização e generalização de um importante instrumento de democratização do processo judicial, que depende, para ter sua funcionalidade, da mudança da cultura jurídica processual brasileira fortemente influenciada pelo individualismo liberal, conforme será aprofundado mais adiante. A segunda inovação da nova legislação processual diz respeito à criação do incidente de resolução de demandas repetitivas. O Novo Código tem como um de seus princípios informadores a segurança jurídica que se materializa em diversos institutos jurídicos. Nesse sentido, o incidente de resolução de demandas repetitivas surge como meio de julgar diversas ações idênticas através de um único incidente. Em verdade, o julgamento coletivo ou objetivado não é novidade em nosso sistema processual, conforme se verifica na repercussão geral no recurso extraordinário e o julgamento de recursos repetitivo ou por amostragem no recurso especial. No entanto, o incidente de resolução de demandas repetitivas inaugura uma metodologia de julgamento padronizada no primeiro grau de jurisdição.

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Segundo o art. 976 do NCPC, o incidente poderá ser suscitado sempre que ocorrer, simultaneamente, efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão de direito e risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. O critério utilizado pelo código, portanto, teve como escopo unificar teses para julgamento coletivas de questões idênticas de direito. A legitimidade para instauração do incidente perante o Tribunal foi atribuída ao juiz ou relator do recurso, às partes, ao Ministério Público e à Defensoria Pública. Nesse sentido, identificando que a causa que contenha controvérsia sobre questão de direito é repetitiva e há o risco de ofensa à isonomia o incidente poderá instaurar perante o órgão do respectivo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal por qualquer um dos legitimados mencionados acima. Em regra o incidente deverá ser processado em julgado pelos Órgãos Especiais dos Tribunais de Justiça (art. 978). A publicidade do incidente instaurado será feita de forma eletrônica, nos termos do art. 979,§2º. Instaurado o procedimento e devidamente publicado, os processos individuais e coletivos que tratem da questão de direito ventilada no incidente serão suspensos nos termos do art. 982 do CPC/2015. Caso algum processo seja suspenso indevidamente ou que tese jurídica não corresponda à tese que será julgada no incidente as partes poderão impetrar Mandado de Segurança, considerando que não se admite a interposição de recurso de agravo de instrumento (art. 1.015). No julgamento do incidente será cabível sustentação oral das partes do processo paradigma, o Ministério Público, e os demais interessados. Importante observar que a Lei nº 13.105/2015 garantiu a democratização do debate ao permitir que os demais interessados, como os sujeitos processuais dos processos suspensos ou instituições, entidades ou movimentos sociais afetados pela decisão, participem do processo decisório do incidente, conforme dispõe o art. 984 do CPC/2015. Realizado o julgamento e fixada a tese jurídica esta terá eficácia em todo Estado ou região abrangida pelo Tribunal que julgou o incidente. Importante destacar que a tese fixada, após o trânsito em julgado, será aplicada em todos os processos individuais e coletivos suspensos, ou não, que tratem da mesma tese jurídica e aos casos futuros que versem sobre a mesma questão idêntica. Nesses casos a pretensão autoral formulada pelo autor será julgada improcedente liminarmente, nos termos do art. 332, III, do CPC/2015. Caso os legitimados, parte integrante dos processos suspensos ou afetados pela tese firmada no incidente, ou amicus curiae (art. 138,§3º) interpuserem recurso especial ou extraordinário (art. 982,§3º c/c 987) e estes sejam admitidos e conhecidos pelos respectivos Tribunais superiores, a tese jurídica fixada no incidente terá aplicabilidade em todo território nacional. A tese fixada no incidente poderá ser revista mediante requerimento do Ministério Público e da Defensoria Pública, conforme dispõe o art. 986 do CPC/2015. Esse dispositivo excluiu a possibilidade de a Ordem dos Advogados do Brasil formular requerimento de revisão de tese, o que nos parece contrariar o art. 133 da Constituição Federal de 1988.

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Percebe-se que o novo Código de Processo Civil privilegiou a segurança jurídica utilizando como método a estratégia de julgamento padronizado de questão de direito idênticas ou que possam ofender a segurança jurídica. A estruturação do incidente, no plano normativo, é interessante método de julgamento de demandas de massa e de democratização do processo jurisdicional, mas exige séria preparação das partes para atuarem, através de seus procuradores, adequadamente de forma a evitar violações do princípio do amplo acesso à justiça, devidamente reforçado no art. 3º do NCPC. A terceira inovação no sentido da democratização do processo concerne ao sistema de precedentes judiciais. Em conformidade com o art. 927,§2º, a alteração de um precedente judicial pode ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para rediscussão da tese. Percebe-se, portanto, que se trata de uma alteração substancial em nosso ordenamento processual no sentido de permitir que a sociedade civil organizada participe da discussão pública acerca da alteração de um precedente judicial. Na arquitetura institucional do Poder Judiciário no período anterior ao Código de Processo Civil de 2015, a mutação jurisprudencial ocorre mediante a mudança da composição de um determinado órgão fracionário ou da mudança no entendimento dos ministros de um determinado Tribunal Superior sem a participação direta e efetiva da sociedade civil. Esse protagonismo judicial gera déficits de legitimidade que inviabiliza a democratização do processo judicial (NUNES, 2012). Nessa linha de reflexão, a garantia de participação da sociedade civil na alteração da tese jurídica fixada em precedentes judiciais é uma importante transformação no modo de ser do processo civil brasileiro, contribuindo para a consolidação de uma metodologia de julgamento marcadamente democratizante e sem precedentes na cultura jurídica processual brasileira. A última inovação no sentido da democratização do processo judicial é a possibilidade de atuação efetiva da sociedade civil organizada no processamento do recurso, conforme dispõe o art. 1.038, I, como também a possibilidade de realização de audiência pública nos julgamento dos recursos extraordinário e recursos especiais repetitivos, conforme interpretação literal do art. 1.038, II, da Lei nº 13.105/2015. Embora a realização de audiência pública e a participação da sociedade civil organizada nos processos decisórios no âmbito do Supremo Tribunal não seja novidade, importante destacar que estes instrumentos de democratização do processo somente eram admitidos nos julgamentos de ação direta de inconstitucionalidade, ação de descumprimento de preceito fundamental e na ação declaratória de constitucionalidade, conforme dispõe o art. 9º, §1º da Lei nº 9.868/1999. O tratamento desses instrumentos, como regra geral no julgamento dos recursos extraordinários e recursos especiais repetitivos, constitui importante ampliação da perspectiva democratizante do processo judicial no âmbito dos Tribunais superiores responsáveis pela edição dos principais precedentes judiciais no regime estabelecido no Código de Processo Civil de 2015.

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Assim sendo, a inserção do amicus curiae, do incidente de resolução de demandas repetitivas, da legitimação da sociedade civil organizada para encaminhar propostas de alteração de precedentes judiciais e a realização de audiências públicas nos julgamentos dos recursos excepcionais objetivos, evidenciam a perspectiva democratizante do processo civil brasileiro incorporada ao novo Diploma processual. Essa metodologia, pelo menos do ponto de vista formal, destaca a dimensão do Poder Judiciário com um espaço público de exercício da cidadania e do debate público acerca das demandas das coletividades envolvidas nos julgamentos de massa e dos casos repetitivos. Esse redimensionamento institucional do Poder Judiciário em muito se aproxima, do ponto de vista formal e teórico, da proposta de Habermas (2003) acerca da importância da construção de um novo paradigma do Direito. Segundo essa perspectiva teórica, nas sociedades contemporâneas, marcadamente desiguais, se faz necessário a consolidação de um paradigma jurídico que promova uma intensa interação entre direito e democracia, caracterizado pela participação da sociedade civil na construção dos direitos. Essa participação, no contexto brasileiro, pode ser efetuada através da intervenção nos processos decisórios, o que representam uma situação ideal de fala para os atores sociais cujos interesses não são plenamente contemplados pelo legislador ou se tronam fragilizados quando julgados individualmente. No entanto, a reflexão que emerge desse quadro é no sentido de identificar em que medida a cultura jurídica processual brasileira é aderente aos instrumentos de democratização do processo assegurados no Código de Processo Civil de 2015.

Processo Democratizante e seus Impactos na Cultura Jurídica Hierárquica Brasileira

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O processo jurisdicional democrático (NUNES, 2012) estruturado no Código de Processo Civil de 2015 não possui estreita relação com a cultura jurídica processual brasileira, que é caudatária de um desenho institucional marcadamente conservador, liberal e hierarquizado. Essa compreensão é fundamental para que possamos, de forma crítica, atuar para que os novos instrumentos de democratização do processo tenham efetividade em nosso ordenamento processual. Em verdade, na cultura jurídica processual brasileira, desde o período colonial, o juiz detém o monopólio do saber jurídico no sentido de declarar o que é direito através da aplicação do processo de subsunção da norma ao caso concreto. Não há, portanto, entre nós uma cultura processual democrática em que a decisão judicial represente as dimensões participativas de diversos atores sociais ao longo de um determinado processo decisório. Essa análise da estrutura judiciária brasileira é imprescindível para que o paradigma processual democrático assegurado no Código de Processo Civil de 2015 tenha plena eficácia.

Alexandre de Castro Catharina

Para Lenio Streck (2009), ainda permanece nas instituições judiciárias brasileiras um paradigma liberal-individualista que inviabiliza a efetivação dos novos direitos. Há, portanto, uma crise no paradigma do Direito vigente que decorre da tensão entre os direitos e garantias assegurados no texto Constitucional e a estrutura individualista-liberal de diversos setores do Poder Judiciário nacional. Nessa mesma linha interpretativa Dierle Nunes (2012) sustenta a importância de se superar esse paradigma para que se possa, de forma efetiva, garantir o amplo desenvolvimento da cidadania participativa. Segundo o autor: “Percebe-se, assim, que a disputa entre uma matriz liberal, social ou mesmo, pseudo-social (neoliberalismo processual) do processo, fruto da ressonância dos paradigmas estatais, não pode mais solitariamente responder aos anseios de uma cidadania participativa, uma vez que tais modelos de concepção processual não conseguem atender ao pluralismo não solipsista e democrático do contexto normativo atual (2012, p. 41).”

Em um estudo empírico sobre a efetividade dos direitos coletivos no Brasil, concluímos que ainda permanece em nossa cultura jurídica processual um forte matiz individualizante, o que inviabiliza a plena eficácia das normas que tratam dos direitos coletivos e difusos no Judiciário brasileiro (CATHARINA, 2007). Essa constatação, observada em estudos diversos e a partir de referenciais teóricos díspares, como os apontados acima, tem como premissa maior propiciar uma reformulação da literatura processual no sentido de se estabelecer uma contracultura que englobe as dimensões democratizantes do processo civil brasileiro. O atual desenvolvimento doutrinário do Direito Processual nos permite compreender que a mudança na legislação, por si só, não conduz a mudanças estruturais na sociedade. Por essa razão, além da reforma legislativa encaminhada pela Lei nº 13.105/2015, outras reformas, institucionais e educacionais, devem ser formuladas para que se supere a cultura jurídica fundante da processualística brasileira. O primeiro conjunto de reformas institucionais necessárias concerne à própria formação da magistratura brasileira. Faz-se necessária uma formação permanente para que se estabeleça um perfil de magistrado sensível às dimensões democráticas do processo civil brasileiro para que conduza o procedimento admitindo a participação adequada da sociedade civil através dos instrumentos de democratização do processo. Sem essa formação, as normas avançadas acerca da democratização do processo não alcançarão a eficácia necessária. Embora as escolas de magistratura tenham um papel fundamental na formação dos quadros do Poder Judiciário outras variáveis, como a incorporação crescente de jovens (WERNNECK VIANNA, 1997), interferem na continuidade do solipsismo do julgador brasileiro inviabilização a plena difusão dos valores democratizantes do processo jurisdicional.

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A perspectiva democratizante do direito processo civil brasileiro e seus impactos na cultura jurídica processual estabelecida

O segundo conjunto de reformas institucionais está relacionado ao aprimoramento da advocacia brasileira para que possa operar de forma adequada os instrumentos de democratização do processo. A atuação da advocacia na defesa dos interesses do amicus curiae ainda é incipiente no Brasil, considerando diversos aspectos como cultural ou até mesmo econômicos. No entanto, a preparação da advocacia para manejar esses instrumentos é fundamental para que se impeçam arbitrariedades ou mesmo violações das garantias asseguradas na Constituição Federal de 1988. Com efeito, a realização de cursos de aperfeiçoamento como também auxílio aos advogados sem formação adequada para atuar em causas com ampla repercussão social é fundamental para superação da cultura jurídica individualizante. A reforma da educação jurídica, por sua vez, deve ter como escopo aprofundar o estudo prático e científico das dimensões democráticas do processo civil contemporâneo, com procedimentos simulados, permitindo aos alunos uma ampla formação para atuar na defesa dos interesses coletivos da sociedade civil organizada. Por outro lado, o aprofundamento teórico acerca dos instrumentos de democratização do processo, como amicus curiae, incidente de resolução de demandas repetitivas, entre outros, contribuirá efetivamente para a formação de gerações profissionais das carreiras jurídicas com sólida percepção das dimensões democráticas do processo jurisdicional contemporâneo. A conjugação desses esforços reformadores, no campo institucional, é decisiva para superação de uma cultura jurídica processual individualizante dos conflitos e solipsista fundante do Direito Processual Civil brasileiro, além de contribuir para estabelecer as bases para a efetivação dos institutos processuais que viabilizam a democratização jurisdição civil e constitucional.

Conclusão

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A tensão estabelecida, entre as propostas inovadoras do Código de Processo Civil de 2015 e a cultura jurídica de matiz liberal das instituições judiciárias brasileiras, enseja dois posicionamentos distintos e incompatíveis acerca do futuro da perspectiva democratizante do processo jurisdicional. O primeiro se limita a negar a possibilidade de efetividade das normas democratizantes do processo civil, considerando a neutralidade e o tecnicismo inerente ao Poder Judiciário. A segunda, a qual aderimos, admite a existência de condicionantes culturais que oferecem fortes resistência à ampla aplicação dos instrumentos de democratização do processo, mas a atuação intensa da sociedade civil organizada e dos movimentos sociais é capaz de superar o paradigma do Direito estabelecido e avançar na estruturação de um processo jurisdicional democrático em harmonia com os valores assegurados na Constituição Federal de 1988. Essa percepção contribui para a expansão da democracia participativa, no âmbito do Poder Judiciário, sobretudo na nos processos decisórios de formação dos precedentes judiciais, com forte natureza normativa, expressando uma nova dimensão da vida social contemporânea.

Alexandre de Castro Catharina

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A Competência nas Ações Coletivas e seus Reflexos na Conexão Amanda Tostes Marini1 Marcelo Pereira de Almeida2 Resumo O presente ensaio discute a problemática da competência nas ações coletivas e seus reflexos na conexão, entre elas e entre as ações coletivas e as individuais. Para alcançar o objetivo, analisou-se os elementos identificadores das demandas coletivas, bem como os diferentes posicionamentos sobre o tema consubstanciados na Lei da Ação Civil Pública, no Código de Processo Civil de 1973, bem como no Código de Defesa de Consumidor, na doutrina e na jurisprudência. Como resultado, concluiu-se que o tema, embora alvo de dissensos, é de grande importância para a economia processual e a eficácia da jurisdição, pois a conexão é meio capaz de evitar decisões contraditórias e a multiplicação de pronunciamentos judiciais sobre a mesma matéria. Palavras-chave: Competência; conexão; ações coletivas; demandas metaindividuais; elementos da demanda. Abstract This article has the goal of analyzing which judicial organs are capable of deciding class actions, since they are about widespread damages and cover vast jurisdictional territories, and the possibility of uniting these actions with others for a combined judgment. For that, we studied what elements identify a class action as unique and how this article’s thesis is portrayed in the Brazilian Class Action Law (7.347/1985), Code of Civil Procedure of 1973, and the Code of Consumer Protection, interpreted by scholars, and present in judicial precedents. As a result, we concluded that, even though combining actions and deciding which organs should be involved is the target of huge discussions, it is very important for judicial economy as well as its effectiveness, since uniting different class actions and/or individual suits can avoid contradictory decisions and the proliferation of redundant judicial acts relating to the same subject matter. Keywords: Capacity of judging class actions; class actions’ unification; diffuse rights; class actions’ elements. 1

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Graduada em Direito pela Unilasalle, graduada em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Advogada. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Tributário pela Universidade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá, Professor Adjunto de Teoria Geral do Processo e Direito Processual da Universidade Federal Fluminense. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual da Universidade Federal Fluminense – UFF. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professor colaborador do PPGD (Mestrado e Doutorado) UNESA. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil – IBDP. Advogado. Autor do Livro Processo Coletivo – Teoria Geral; Cognição e Execução.

A Competência nas Ações Coletivas e seus Reflexos na Conexão

Introdução Com a intensificação da judicialização dos conflitos sociais, é importante pensar em métodos que potencializem a economia processual, bem como a eficácia das decisões judiciais. Neste contexto, mostra-se relevante o estudo das ações coletivas, pois promovem a solução de conflitos que atingem grande parte da sociedade em uma só decisão, além de proporcionarem a tutela de direitos que no âmbito individual são incapazes de serem resguardados. Assim, o presente visa analisar a competência nas ações coletivas e seu reflexo na conexão entre si e entre elas e as ações individuais. Para isto, analisouse os elementos identificadores das demandas coletivas, bem como os diferentes posicionamentos sobre o tema consubstanciados na Lei da Ação Civil Pública, no Código de Processo Civil de 1973, bem como no Código de Defesa de Consumidor, na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Regionais Federais da 2a, 3a e 4a regiões. Como resultado, concluiu-se que o tema, embora alvo de dissensos, é de grande importância para a economia processual e a eficácia da jurisdição, pois a conexão é meio capaz de evitar decisões contraditórias e a multiplicação de pronunciamentos judiciais sobre a mesma matéria. Não há pretensão, porém, de se esgotar o tema, cuja complexidade é incontestável, mas trazer alguns disparadores para viabilizar discussões.

Necessária Análise dos Elementos da Demanda: Partes, Causa de Pedir e Pedido Para que seja possível o estudo da competência nas ações coletiva e seus reflexos na sua conexão, bem como delas com as ações individuais, faz-se mister analisar os elementos que as identificam e, como consequência, as diferenciam. Segundo a Teoria da Tríplice Identidade ou Tria Eadem, adotada parcialmente pelo art. 301, par. 2, CPC/1973, e subsidiariamente nas ações coletivas3, a demanda poderá ser identificada ao se observar seus elementos essenciais, as suas partes, o pedido e a causa de pedir, os quais, se forem idênticos, implicam em litispendência.4

Partes Autor e réu são as principais partes do processo, sem os quais não se completa a relação jurídica5. Segundo Cintra, Grinover e Dinamarco, o autor é o que deduz uma pretensão em juízo, já o réu, aquele contra quem essa pretensão é movida.6 3

LEONEL, Ricardo de Barros, Manual do Processo Coletivo, p. 241. SILVA, Edward Carlyle, Conexão de Causas, p. 31/33. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. 5 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. p. 319/320. 27a edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. 6 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo, p. 320. 4

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Como nas ações coletivas adotou-se um modelo de legitimação disjuntiva, concorrente e autônoma não é suficiente que se considere a identidade física ou institucional das entidades que figuram em seus polos para caracterizá-las como partes distintas, como ocorre nas demandas individuais, já que há diversos entes legitimados a ingressar com a ação coletiva de forma independente, representando o mesmo grupo e na defesa do mesmo interesse, seja em litisconsórcio ou não. Exceto nos casos dos direitos individuais homogêneos, estes entes defendem tanto interesses próprios como interesses alheios, sendo impossível, como há indeterminados ou indetermináveis titulares dos direitos meta-individuais, se falar em legitimação exclusiva de um7, em detrimento dos outros. Desta forma, para que se identifique as partes nas ações coletivas, é necessário analisar da sua condição na relação jurídica deduzida em juízo, a qual, se for a mesma, gerará litispendência, porquanto os entes legitimados, mesmo fisicamente distintos, serão considerados partes idênticas. 8

Causa de Pedir A causa de pedir, identificada como os fatos e fundamentos jurídicos em que se baseiam os pedidos formulados9, é objeto de diferentes posicionamentos doutrinários. Não obstante essas divergências, é possível perceber que a causa de pedir nas demandas coletivas é ligeiramente diferente da das demandas individuais. Na defesa dos interesses supraindividuais, não é necessário que a petição inicial traga os pormenores do fato, mas que descreva genericamente a conduta, o dano causado e o nexo que os conecta, demonstrando-se a situação fática mais amplamente. O mesmo ocorre com os fundamentos jurídicos, que, além de trazerem fundamentos axiológicos, serão delimitados de maneira menos nítida do que numa demanda individual.10

Pedido Assim como a causa de pedir, os pedidos nas demandas coletivas não diferem em grande escala dos das demandas individuais. O provimento jurisdicional pretendido e o bem da vida desejado que se configuram serão mais amplos, o que não desonera, porém, o autor coletivo de especificar os itens do pedido coletivo.11 7

LEONEL, Ricardo de Barros, Manual do Processo Coletivo, p. 160 Ibidem, p. 242. 9 SILVA, Edward Carlyle. Conexão de Causas. p. 38. 10 LEONEL, Ricardo de Barros, Manual do Processo Coletivo,, p. 246. 11 Ibidem, p. 248/249. 8

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A Competência nas Ações Coletivas e seus Reflexos na Conexão

Notas sobre Competência A competência pode ser relativa ou absoluta, cada caso gerando diferentes resultados. A competência absoluta, geralmente definida através do critério funcional ou da matéria, implicará em vício insanável, reconhecível a qualquer momento, de ofício ou a requerimento e não sujeito à preclusão. Já a competência relativa é em regra definida pelos critérios territorial e o valor da caso e, caso desrespeitada, implica em vício relativo, não reconhecível de ofício e sujeito à preclusão.12 A competência relativa, ainda, segundo Cintra, Grinover e Dinamarco, pode ser modificada pelo fenômeno da prorrogação de competência, seja ele legal, nos casos de continência ou conexão, ou voluntário, nos casos em que há acordo entre as partes sobre qual foro deverá ser utilizado para resolução do conflito (expressa) ou em que as partes deixam de alegar a incompetência relativa no momento oportuno (tácita).

A Competência nas Ações Coletivas Segundo Elton Venturi, com o artigo 2˚ da lei 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), fixou-se a competência para o processamento e julgamento das ações civis públicas pelo critério territorial-funcional13, buscando-se aproximar o processo do local em que se desenvolveram os fatos. Sobre o tema, afirma Leonel, que a competência territorial, embora inicialmente reflita somente o interesse das partes, no processo coletivo ganha um caráter funcional e de interesse público, tornando-se improrrogável e absoluta, uma vez que busca a maior facilidade de produção das provas e maior probabilidade de apuração efetiva dos fatos14. Didier Jr. e Zaneti Jr., por sua vez, defender não se poder falar em competência territorial-funcional, mas territorial absoluta, pois confiar o processamento e julgamento da causa ao magistrado que poderá atuar da melhor maneira possível é característica de todas as normas referentes à competência e não tão-somente às que se enquadram naquela mencionada categoria.15 Independentemente da classificação da competência adotada, os mencionados autores convergem no entendimento que ela é absoluta e, em casos de danos que ultrapassem os limites de uma comarca, pode ser concorrente, resolvendo-se o conflito pela prevenção, de acordo com aplicação do art. 2˚ da LACP.16 12

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WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil – Vol. 1 – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. p. 121/122. 13 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 267. 14 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. p. 227. 15 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 124. 16 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 267.

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Note-se que nas ações coletivas a prevenção ocorre no juízo para o qual a primeira demanda é distribuída, segundo o parágrafo único do art. 2˚, LACP.17 Com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, no art. 93, o legislador inovou ao trazer ao ordenamento jurídico brasileiro a categorização dos danos em de âmbito local, regional ou nacional18 19, mas não definiu os exatos contornos das expressões, o que provocou divergências doutrinárias. Elton Venturi afirma que o dano local é aquele cuja repercussão não ultrapassa uma comarca ou circunscrição federal, não gerando maiores dificuldades em relação à fixação de competência para julgamento da ação coletiva. No entanto, tal tarefa se complica nos casos que envolvem danos regionais ou nacionais, visto que pode ser utilizado tanto o critério geopolítico quando o da divisão jurisdicional para diferenciá-los. O autor, então, afirma que a jurisprudência indica que o fato de o dano afetar mais de uma comarca ou sessão judiciária seria suficiente para se fixar a competência de forma concorrente entre os juízos das capitais e o do Distrito Federal.20 Ricardo de Barros Leonel, utilizando o critério geopolítico, estabelece que dano regional tem o sentido aproximado de estadual, ou seja, pode ser caracterizado como tal o dano que atinge maior parte ou número grande de cidades em um estado ou que se espalha por ele, sendo o foro competente o da capital do respectivo ente federativo; por sua vez, o dano nacional é aquele que se manifesta por uma grande extensão territorial, atingindo diversos estados quase que completamente, sendo o foro competente os das capitais dos estados, bem como o do Distrito Federal.21 Não caracteriza, porém, para o referido autor, dano nacional aquele que atinge somente algumas cidades de dois ou três estados. Sobre o tema, Didier Jr. e Zaneti Jr. afirmam que a competência para as ações que envolvam danos nacionais deve ser apurada no caso concreto, verificando-se qual estado é o mais adequado para o julgamento da causa. No caso dos danos regionais, entendem que devem ser considerados competentes aqueles juízos das comarcas envolvidas, uma vez que os juízos das capitais ficam afastados de onde ocorreram os fatos, o que implica em um desconhecimento do contexto em que o dano ocorreu, além de maior dificuldade na produção de provas. Os autores ainda classificam os danos em estaduais, caso em que defendem serem competentes as capitais dos estados envolvidos.22 17

LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. p. 237. VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 270. 19 Sobre o tema: STJ, Segunda Turma, REsp 448.470/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, julgado em 28/10/2008, DJe 15/12/2009 20 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 275/276. 21 Tal posicionamento foi adotado pelo, no julgamento do CC 17533 (STJ, Segunda Seção, CC 17.533/DF, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, julgado em 13/09/2000, DJ 30/10/2000, p. 120) 22 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 128/129. 18

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Sobre o tema, afirma Marcelo Pereira de Almeida que é importante adequar os critérios clássicos da definição de competência às diretrizes da instrumentalidade e efetividade do processo, priorizando-se o foro do local do dano em razão da sua proximidade física com os fatos, da facilitação da colheita probatória ou da imediação do juízo com os sujeitos dos direitos metaindividuais discutidos23. Desta forma, a forma utilizada para a fixação de competência presente no art. 93 do CDC merece críticas. Ao declarar competente para o processamento e julgamento das ações coletivas as capitais dos estados e o Distrito Federal, o Código afasta a demanda do órgão mais próximo ao dano, o que é contrário ao disposto no art. 2˚, LACP. 24 Além disto, os juízes estaduais e federais não tem a competência territorial sobre aqueles que se situam no local do dano, muito menos a competência territorial nacional para julgar as causas que envolvem danos nacionais25. Conforme Venturi, se conferiu aos magistrados das capitais e Distrito Federal posição de superioridade que é injustificável, pois exercem a mesma função jurisdicional do que aqueles situados em outras comarcas.26

A Competência da Justiça Federal Embora por algum tempo tenha prevalecido a ideia de que a Justiça Estadual seria competente para processar e julgar ações coletivas de competência da Justiça Federal em locais em que esta não tem sede, por aplicação analógica do art. 109, par. 3˚, CF, com o julgamento do Recurso Extraordinário n˚ 228.955-927 e o advento do Código de Defesa do Consumidor, superou-se tal posicionamento, pois foi conferida expressamente à Justiça Federal a competência para julgar as ações coletivas, afastando-se a aplicação do mencionado preceito constitucional28.

A Competência como Limite da Eficácia das Decisões Após a entrada em vigor da Lei da Ação Civil Pública começou a se discutir a possibilidade de qualquer juízo proferir decisões que transcendessem os seus limites territoriais. Neste contexto, o STJ, ignorando a indivisibilidade dos direitos meta-individuais, começou a restringir a eficácia das decisões em ações coletivas aos limites territoriais da jurisdição do órgão julgador que as proferiu, 23

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ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Processo Coletivo: Teoria Geral, Cognição e Execução. p. 77. São Paulo: Editora LTr, 2012. 24 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 276. 25 Ibidem, p. 277 26 Ibidem, p. 278. 27 STF, Tribunal Pleno, RE 228955, Relator(a):  Min. ILMAR GALVÃO, Tribunal Pleno, julgado em 10/02/2000, DJ 24-03-2001. 28 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 126.

Amanda Tostes Marini e Marcelo Pereira de Almeida

já que somente os pronuncionamentos dele e do STF seriam capazes de surtir efeitos nacionalmente.29 Este entendimento ecoou na legislação, encontrando base no art. 16 da Lei da Ação Civil Pública e no art. 2˚-A da Lei 9.494/97.30 Didier Jr. e Zaneti Jr. se posicionam de maneira contrária a tais restrições, tendo em vista os princípios da ação coletiva, tais como o tratamento molecular do litígio e a indivisibilidade do bem tutelado. Os autores apontam cinco objeções ao tema: a) as restrições prejudicam a economia processual e incentivam o conflito lógico e prático entre os julgados; b) afrontam o princípio da igualdade e do acesso à jurisdição, dificultando a defesa dos direitos coletivos em juízo; c) os direitos coletivos são legalmente indivisíveis; d) há uma confusão na técnica legislativa utilizada, pois mistura os conceitos de competência com a imperatividade do comando jurisdicional; e) há ineficácia da regra de competência, já que a própria lei, ao definir a competência para julgamento dos ilícitos de âmbito regional ou nacional ampliou a jurisdição do órgão prolator. 31 Por isso, alguns doutrinadores chegaram até a afirmar que a alteração legislativa foi inócua32, além de defender que, caso aplicados os dispositivos em questão, causarão verdadeira fragmentação das decisões nas demandas coletivas, o que pode resultar em violação do princípio da igualdade, já que pessoas em igual situação podem ter como resultado decisões diferentes.33 Embora o STJ viesse adotando uma posição legalista,34 restringindo os efeitos dos julgados, no julgamento do Resp n˚ 1243386/RS35, entendeu que os limites da sentença se darão em relação à extensão do dano e à qualidade dos interesses meta-individuais levados a juízo, o que mostra avanços na sua interpretação.36

A Possível Revogação do art. 2˚ da LACP pelo art. 93 do CDC O Código de Defesa do Consumidor é aplicado de forma ampla, a tutelar todo o sistema das ações coletivas, assim como a Lei da Ação Civil Pública. Em razão disto, a doutrina começou a questionar se o art. 93, CDC, haveria revogado o art. 2˚ da LACP, por ter trazido ao ordenamento jurídico normatização mais ampla sobre a competência nas ações coletivas. 29

VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 268. 30 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 130. 31 Ibidem, p. 131. 32 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 133. 33 Ibidem, p. 133/134. 34 Ibidem, p. 136. 35 STJ, Terceira Turma, REsp 1243386/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, julgado em 12/06/2012, DJe 26/06/2012 36 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 137.

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A Competência nas Ações Coletivas e seus Reflexos na Conexão

Há autores, como Ada Pellegrini, que defendem somente a aplicação do art. 93, CDC, uma vez que abrange todo o microssistema coletivo. Já outros autores, como Rodolfo Camargo Mancuso37, Marcelo Pereira de Almeida38 e Elton Venturi39, se posicionam em favor da complementariedade das normas, que devem ser interpretadas conjuntamente. É perceptível, portanto, que o tema não atingiu pacificação doutrinária e jurisprudencial.

A Conexão nas Ações Coletivas No Código de Processo Civil, a conexão encontra-se definida dentro da seção referente à modificação de competência, no art. 103, CPC. Segundo o artigo, a conexão pressupõe demandas diferentes que mantém um certo vínculo de identidade entre os seus pedidos ou da causa de pedir. Tal conceito, porém, é demasiadamente restrito e incapaz de prever todos os casos em que a relação de conexão ocorre, como, por exemplo, a conexão das causas acessórias e principais, da denunciação à lide, da reconvenção ou da declaratória incidental.40 A conexão, assim, deve ter contornos mais amplos e pode ser definida como “uma relação de semelhança entre as demandas, que é considerada pelo direito positivo como apta para a produção de determinados efeitos processuais.”41 Com a reunião dessas causas, evita-se decisões contraditórias, bem como incentiva-se a economia processual, pois trabalho do Poder Judiciário é racionalizado. Segundo o Didier Jr, além das hipóteses previstas no artigo 103, há ainda a conexão por prejudicialidade ou preliminaridade, em que a reunião deve ocorrer, respeitando os limites impostos para as outras reuniões.42 Verificada a relação de conexão entre as causas, conforme o art. 105, CPC, é possível determinar, seja ex officio ou a requerimento das partes, a sua reunião em um juízo para o julgamento em conjunto. Uma outra consequência do vínculo de conexão, segundo Didier Jr. e Zaneti Jr., é a reunião sem que seja determinado o processamento em conjunto das ações.43 No entanto, se as causas em questão 37

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MANCUSO, Rodolfo de Camargo. apud VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 272 38 ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Processo Coletivo: Teoria Geral, Cognição e Execução. p. 77. 39 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 272. 40 BARPI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973) Volume 1 – Arts. 1˚ a 153. p. 348. 11a edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. 41 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 149. 42 DIDIER, Fredie Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 1 – Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. p. 174 43 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 150

Amanda Tostes Marini e Marcelo Pereira de Almeida

tramitarem em juízos cujas competências materiais ou procedimentos sejam distintos, a relação de conexão pode implicar na suspensão de uma das causas até a decisão da outra. A suspensão, porém, só deve ser determinada se impossível a reunião das causas44, porque, segundo Edward Carlyle Silva, a última tem na economia processual e no interesse do Estado de evitar decisões contraditórias os seus fundamentos primordiais. A economia processual se justifica pelo fato de que em uma sentença, o juiz resolverá duas ou mais demandas, aproveitandose provas e atos. Já o interesse do Estado em evitar decisões contraditórias é observado, pois une-se duas ou mais causas que envolvem semelhante matéria, decidindo-as da mesma maneira e uniformizando a decisão proferida.45 A reunião dos processos, na tutela coletiva, conforme afirma Elton Venturi, havendo identidade de pedidos ou causa de pedir, é obrigatória46, um dever do magistrado, o qual deve realizá-la mesmo se tiverem diferente nomenclatura. Contudo, tal reunião só deverá ser feita após se verificar a compatibilidade dos procedimentos e das competências materiais dos juízos envolvidos.47 Da mesma forma se posiciona a Lei de Ação Civil Pública, no seu art. 2˚, parágrafo único, definindo, ademais, que o juiz competente para julgar as causas reunidas será definido pela prevenção, entendida na tutela coletiva como aquele juízo para o qual foi distribuída a primeira demanda coletiva proposta.48 Cabe ressaltar, que Antônio Gidi, baseando-se no Anteprojeto Original do Código de Processos Coletivos, entende que a reunião de causas conexas não deve ocorrer, pois implicaria em maior gasto de dinheiro e tempo49, além de tornar o procedimento mais complexo, o que não reverberou na doutrina. O Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos trouxe o instituto da conexão50, limitando a reunião das causas àquelas constantes dentro da competência territorial do mesmo órgão julgador. 51 Tal limitação, porém, é criticada por Venturi, pois induz à conclusão equivocada que a conexão, assim como a litispendência, estariam condicionadas aos limites territoriais da eficácia do julgado.52 44

Ibidem, p. 150. SILVA, Edward Carlyle. Conexão de Causas. p. 64/65. 46 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 339/340. 47 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 150. 48 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 342. 49 GIDI, Antônio. Rumo a um Código Civil Coletivo – A codificação das Ações Coletivas no Brasil. p. 313. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. 50 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 342. 51 Ibidem, p. 336 52 Ibidem, p. 343. 45

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A Competência nas Ações Coletivas e seus Reflexos na Conexão

O estabelecido pelo Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivo aponta, ainda, para uma outra questão referente à conexão na tutela coletiva: a possibilidade de modificação da competência absoluta pelo instituto. O art. 103, CPC, o qual reputa à conexão somente a possibilidade da modificação de competência relativa, não foi repetido pelo parágrafo único do art. 2˚ da Lei 7347, o que indica a possibilidade do instituto modificar a competência absoluta. No entanto, o parágrafo único do art. 2˚, LACP é incompatível com o art. 16 da mesma lei, que limita a eficácia subjetiva da coisa julgada nas ações coletivas ao território em que exerce jurisdição o órgão que proferiu a decisão.53 Sobre o tema, afirmam Didier Jr. e Zaneti Jr. que a competência territorial pode ser modificada pela conexão, seja ela relativa ou absoluta54, posição que se mostra em consonância com o art. 102, CPC. Já o STJ, ao decidir o Conflito de Competência 126601 / MG, entendeu que a regra constante no art. 16, LACP, somente se aplica aos casos de danos regionais. Em relação aos danos nacionais, aplica-se o art. 2˚, parágrafo único, LACP55 56 57. Nota-se, portanto, que a conexão é tema controverso em relação às demandas coletivas e está longe de ser pacificado.

Conexão entre Ações Coletivas Conforme observado no tópico acima, é possível ocorrer a relação de conexão entre ações coletivas. Caso identificada, há que se verificar a possibilidade de se reunir as causas, o que não poderá ocorrer se uma das causas for de competência da Justiça Federal e outra da Justiça Estadual58 ou se uma delas já foi julgada59. Além disto, há que se observar a amplitude do dano discutido. Em casos de danos regionais ou locais, somente poderão ser reunidas as causas que tramitarem dentro dos limites da jurisdição do mesmo órgão, pois a conexão, excepcionando-se o caso dos danos nacionais, não alterará a competência absoluta definida em razão do território, conforme o art. 16 da LACP. É assim 53

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DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 153. 54 Ibidem, p. 154. 55 Posição reiterada pela Terceira Turma do TRF4 no julgamento do Agravo de Instrumento interposto no processo 5027909-89.2014.404.0000, julgado dia 07.11.2014. 56 STJ, Primeira Seção, CC 126.601/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, julgado em 27/11/2013, DJe 05/12/2013 57 O mesmo é reiterado pelo STJ no julgamento do CC 115.532/MA, Relator Ministro HAMILTON CARVALHIDO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/03/2011, DJe 09/05/2011. 58 TRF4, Quarta Turma, AG no processo n˚ 0001270-61.2010.404.0000, Relator: Jorge Antonio Maurique, DJe: 07/07/2010 59 TRF 3ª Região, QUINTA TURMA, AC 0308346-11.1996.4.03.6102, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL ANTONIO CEDENHO, julgado em 29/10/2012.

Amanda Tostes Marini e Marcelo Pereira de Almeida

que decide o TRF4, no julgamento do Agravo interposto no processo de n˚ 5027909-89.2014.404.0000, julgado dia 07.11.201460. É importante observar que há casos em que as ações podem ser reunidas em um mesmo juízo sem que sejam julgadas conjuntamente e em que um processo será sobrestado, aguardando o julgamento do outro com que guarda a relação de semelhança, conforme Didier Jr. e Zaneti Jr.61

Conexão entre Ações Coletivas e Ações Individuais A identidade parcial entre pedidos e causa de pedir pode se dar, também, entre ações coletivas e individuais. O art. 104, lei 8.078/90 define que não há litispendência entre as ações individuais e as ações coletivas62 e que os efeitos da coisa julgada das últimas somente aproveitarão os autores das primeiras caso estes requeiram a suspensão da ação em trinta dias, contados a partir da ciência do ajuizamento da ação coletiva. Kazuo Watanabe defende ser possível a concomitância entre as ações coletivas e as ações individuais63, desde que uma relativa aos direitos coletivos outra aos danos individualmente sofridos. Se completamente idênticas, resultam no bis in idem, o que é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro64. O art. 104 do CDC, embora faça apontamentos sobre a litispendência entre as ações coletivas e as individuais, é silente em relação ao instituto da conexão. Venturi, então afirma que, mesmo sem expressa previsão legal, se houver a relação de conexão, as causas deverão ser reunidas no juízo prevento, entendido como aquele para o qual foi distribuída a primeira ação coletiva. Isto se dá em virtude da natureza absoluta das regras acerca da competência para julgamento das ações coletivas em contraste àquelas de natureza relativa que definem a competência para o processamento e julgamento das ações individuais.65 66 O autor ainda defende que, se a reunião das causas conexas não for realizada, também não poderão ser suspensas as demandas individuais em razão da relação de prejudicialidade havida entre elas e a ação coletiva.67 60

TRF4, Terceira Turma, AG no processo n˚ 5027909-89.2014.404.0000, relator Carlos Eduardo Thompson Flores Lens, DJe: 07/11/2014. 61 DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. p. 149/150. 62 Sobre o tema: STJ, Quarta Turma, AgRg no AREsp 254.866/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, julgado em 17/10/2013, DJe 24/10/2013. 63 WATANABE, Kazuo. Relacão entre Demanda Coletiva e Demandas Individuais. In GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo. Direito Processual Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, p. 156. 64 Ibidem, p. 156/157. 65 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. p. 360/262. 66 Ibidem, p. 362. 67 VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos, p. 363.

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A Competência nas Ações Coletivas e seus Reflexos na Conexão

Ricardo de Barros Leonel, porém, posiciona-se contrariamente à reunião das ações individuais e coletivas que apresentem relação de conexão. Entende o autor que a ação coletiva já tem o objetivo de resolver a lide coletiva, prevendo mecanismos para que as ações individuais sejam suspensas e seus autores beneficiados pelo resultado da ação de âmbito coletivo. Ademais, o autor defende que a reunião das demandas individuais com as coletivas traria mais prejuízos do que benefícios, como, por exemplo, a maior demora, vide a maior complexidade das demandas coletivas frente as individuais. 68 Já a jurisprudência do TRF2 demonstra-se favorável à reunião de processos individuais e coletivos, caso apresentem a relação de conexão.69 Porém, no caso dos direitos individuais homogêneos, o mesmo TRF da 2a região entendeu que a reunião dos processos não deverá ser efetuada, em prol do amplo acesso à justiça.70 Segundo precedente do STJ, a reunião de causas individuais e coletivas conexas não pode implicar na modificação de competência absoluta.71 Pela jurisprudência do TRF4, infere-se que é possível a reunião em razão da conexão de demandas individuais e coletivas, desde que não impliquem a reunião de ações de competência da Justiça Federal e da Estadual72. Observa-se, portanto, que tanto doutrinária quanto jurisprudencialmente, não há um consenso sobre a reunião das demandas individuais e coletivas que apresentem relação de conexão.

Conclusão As ações coletivas e os institutos que elas envolvem são, muitas vezes, alvo de dissenso doutrinário e jurisprudencial. Não há definição exata sobre os contornos da competência para apreciar e processar estas ações, o que causa discussões acerca da possibilidade de reunião das ações coletivas conexas e se esta conexão seria capaz de modificar a competência estabelecida, seja ela entendida como territorial ou territorial-funcional. Diante do que foi abordado, pode-se inferir que as ações coletivas promovem economia processual, pois permitem uma prestação jurisdicional mais eficinente, diante da dimensão dos bens jurídicos tutelados. Ademais, pode-se dizer que a conexão é capaz de promover maior efetividade das ações coletivas. Isto porque, se propostas diversas demandas que guardem entre si semelhança, serão reunidas, de modo a proporcionar ao magistrado uma visão mais ampla do dano e das suas consequências, sejam elas 68

LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. p. 278. TRF2, Sétima Turma Especializada, AG 170844, Relator Desembargador Federal REIS FRIEDE, DJU – Data:: 26/06/2009 70 TRF2, Terceira Turma, AC 279058, Relator Desembargador Federal FREDERICO GUEIROS, DJU 25/03/2004 71 STJ, Primeira Seção, CC 41.953/PR, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, julgado em 25/08/2004, DJ 13/09/2004 72 TRF4, Quarta Turma, AG no processo n˚ 2009.04.00.044138-0, Relatora MARGA INGE BARTH TESSLER, DJu 14/04/2010. 69

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Amanda Tostes Marini e Marcelo Pereira de Almeida

sentidas pela coletividade não identificada ou não identificável ou pelos diversos indivíduos que buscam a tutela dos seus direitos individuais homogêneos. Além disto, a conexão proporciona meio capaz de evitar a prolação de decisões contraditórias, pois permite a união em um juízo as causas que guardam semelhanças entre si para o julgamento conjunto. Em suma, conclui-se que a reunião das ações coletivas deve, cada vez mais, ser alvo de uma interpretação ampliativa, sempre atenta à compatibilidade dos procedimentos e à competência material dos órgãos envolvidos, pois é capaz de promover a eficácia da defesa dos direitos transindividuais em juízo.

Referências bibliográficas ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Processo Coletivo:Teoria Geral, Cognição e Execução. São Paulo: Editora LTr, 2012. BARPI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973) Volume 1 – Arts. 1˚ a 153. 11a edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. BRASIL. Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=432485. Acesso dia 26.11.2014, às 12:18h. BRASIL. Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L5869compilada.htm. Acesso em 26.11.2014, às 19:41h. BRASIL. Lei 7.347 de 24 de julho de 1985. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/L7347orig.htm, acesso no dia 26.11. 2014, às 19:22h. BRASIL. Lei 8.078, de 11 de setembro 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/LEIS/L8078.htm. Acesso dia 26.11.2014, às 19:26h. CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27a edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. DIDIER, Fredie Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 1 – Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 16a edição. Salvador: Editora Juspodium, 2014. DIDIER, Fredie Jr.; ZANETI, Hermes Jr. Curso de Direito Processual Civil – Volume 4 – Processo Coletivo. 9a edição. Salvador: Editora Juspodium, 2014. GIDI, Antônio. A Class Action Como Instrumento de Tutela Coletiva dos Direitos – As ações coletivas em uma perspectiva Comparada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 GIDI, Antônio. Rumo a um Código Civil Coletivo – A codificação das Ações Coletivas no Brasil. GRINOVER, Ada Pellegrini, Direito Processual Coletivo In GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coordenadores). Direito Processual Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. 3a edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. MENDES, Aluísio Golçalves de Castro. Ações Coletivas e Meios de Resolução Coletiva de Conflitos no Direito Comparado e Nacional. 3a edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6a edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2011. SILVA, Edward Carlyle. Conexão de Causas. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. THAMAY, Rennan Faria, Princípios do Processo Coletivo. In: ASSIS, Araken de; MOLINARO, Carlos Alberto; GOMES, Luiz Manoel Junior; MILHORANZA, Mariângela Guerreiro

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A Competência nas Ações Coletivas e seus Reflexos na Conexão

(organizadores). Processo Coletivo e Outros Temas de Direito Processual – Homenagem 50 anos de docência do Professor José Maria Rosa Tesheiner 30 anos de docência do Professor Gilberto Porto. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012. VENTURI, Elton. Processo Civil Coletivo – A tutela jurisdicional dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Brasil. Perspectivas de um Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil – Volume 1 – Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 11a edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. WATANABE, Kazuo. Relacão entre Demanda Coletiva e Demandas Individuais. In GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo (coordenadores). Direito Processual Coletivo e o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007

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Incidentes no Processo de Falência Lucas Tadeu Prado Rodrigues1 Rodrigo Almeida Magalhães2

Introdução A atual lei de falência e recuperações de empresa (LFRE), Lei 11.101/05, trouxe uma nova sistemática para a empresa em crise. Deu uma maior chance para o empresário sair da crise econômica e financeira ao possibilitar o empresário adotar as mais diversas formas de recuperação. Apesar dos avanços em relação a legislação anterior, a LFRE entrou em vigor em 2005 e ainda muitas questões não foram respondidas. A doutrina e a jurisprudência estão em constante pesquisa para melhorar sua aplicação e entendimento. Dentre as muitas questões que estão em discussão, a prescrição dos créditos tributários ainda é pouco discutida. O presente artigo analisará a possibilidade da aplicação da prescrição intercorrente de créditos tributários que ocorreram em outros processos na falência. Sua adoção gerará a exclusão do crédito tributário da falência e causará o pagamento de outros credores na falência.

Hipótese Fático-processual de Estudo Para a análise e desenvolvimento das ideias aqui discutidas, será considerada a seguinte hipótese fático-processual, em suas variáveis: a Fazenda ajuíza ação de execução fiscal em face de determinada sociedade empresária. A espécie de tributo aqui cobrada não vem ao caso, partindo do pressuposto, é claro, que a Certidão de Dívida Ativa (CDA) que embasa a execução fiscal é válida. No decorrer do processo executório, por falta de bens da sociedade, a Fazenda, com base no art. 135, III, do CTN, pede o redirecionamento da execução fiscal em face do sócio-gerente, o que é deferido, incluindo este no polo passivo da demanda executiva. Ato seguido, a sociedade empresária executada tem sua falência declarada, de forma que o administrador judicial informa na execução fiscal a nova situação jurídica da devedora primeva, pedindo sua substituição pela massa falida (MF). A Fazenda, tendo ciência desse fato, pode adotar as seguintes atitudes: i) faz o pedido de reserva do crédito exequendo na MF, ao passo que pede a 1 2

Graduado em Direito pela PUC/MG, pesquisador, advogado. Doutor e Mestre em Direito pela PUC/MG, professor da PUC/MG e UFMG. Professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG.

Incidentes no Processo de Falência

suspensão da execução para aguardar o pagamento de crédito no processo de falência; ii) faz o pedido de reserva na MF, mas não faz pedido de suspensão do processo executório, ou, por fim, iii) não faz pedido de suspensão na MF, e não faz pedido de suspensão do processo executório. Em todos esses casos, leva-se em consideração que após o redirecionamento foram mantidos no polo passivo tanto a sociedade empresária (falida) quanto sócio gerente/representante legal. Nos casos “ii” e “iii”, por algum motivo, a Fazenda deixa de dar ao processo executório o devido impulsionamento pelo prazo necessário para o acontecimento da prescrição intercorrente prevista na Lei de Execução Fiscal (LEF), o que vem a ser reconhecida por sentença prolatada de ofício ou mediante provocação, esta última hipótese a mais comum. Por sua vez, no que tange ao caso “i”, o processo de execução ficará suspenso por longos anos, muito mais do que o suficiente para a caracterização da prescrição intercorrente, aguardando o deslinde do processo falimentar, pois é comum os processos falimentares tramitarem por longos anos. Assim sendo, sabendo que a prescrição em matéria tributária tem o mesmo efeito da decadência, ex vi do art. 156, V, do CTN, e que, por isso, extingue o próprio crédito tributário, e considerando, ainda, que a sentença que reconheceu a prescrição foi prolatada por meio de provocação do sócio representante legal, incluído no polo passivo por meio da aplicação do art. 135, III, do CTN, como citado acima, indaga-se acerca dos efeitos dessa sentença frente à massa falida, frente ao enunciado no art. 6º3, da Lei 11.101/05 (LFRE)4, que dispõe que a declaração da falência suspende o curso da prescrição em face do devedor. Ou seja, o reconhecimento da prescrição intercorrente, interpretada como fenômeno extintivo do credito tributário, nos termos do art. 156, V, do CTN, extinguiria o crédito apenas em face do sócio gerente/executado, ou o extinguiria também em face da massa falida? Com relação ao caso “i”, o processo de execução ficaria mesmo suspenso por anos, de forma que o sócio gerente executado permaneceria no polo passivo por tempo indeterminado? Tentar responder a essas perguntas impõe saber e analisar a relação entre o CTN, Lei Complementar que é, frente às Leis Infraconstitucionais, no caso a LFRE e a LEF, em especial por meio da intepretação dos arts. 135, III, e 156, V, do CTN, do art. 40, §4º, da LEF (que regular a prescrição intercorrente), e do art. 6º, da LFRE, além de outros dispositivos correlatos dentro de uma perspectiva que considera o Direito como sistema (CANARIS, 2002, p. 77), sem olvidar, claro, da análise jurisprudencial pertinente ao julgamento de casos concretos semelhantes, cujos tópicos serão tratados a seguir. 3

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Art. 6o  A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (...) Equivalente ao art. 47, do Decreto-Lei n. 7.661/1945, revogado pela Lei 11.101/05, que assim dispunha: Art. 47. Durante o processo de falência fica suspenso o curso de prescrição relativa a obrigações de responsabilidade do falido.

Lucas Tadeu Prado Rodrigues e Rodrigo Almeida Magalhães

Antes, no entanto, faz-se necessário situar o crédito tributário frente à MF, para após tratar de cada uma dos temas correlatos e necessários para possibilitar responder às questões acima colocadas.

Os Efeitos da Declaração da Falência sobre o Crédito Tributário Decretada a falência da sociedade empresária, seja pelos motivos do art. 94, ou pela convolação da recuperação judicial em falência, a que alude o art. 73, ambos da Lei 11.101/05 – LFRE (BRASIL, 2005) dá-se início ao concurso universal de credores, remetendo todos eles ao juízo falimentar, único e indivisível, sendo este o competente para conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas não reguladas pela LFRE em que o falido figurar como autor ou litisconsorte ativo, ex vi dos artigos 76 e 115, ambos da LFRE5. Esses últimos artigos positivam, respectivamente, os princípios da i) unicidade do juízo falimentar e ii) do juízo universal falimentar, princípios que são complementares entre si, e essenciais à consecução dos objetivos da lei falimentar, dentre eles o da preservação da empresa, previsto nos artigos 47 e 75 da LFRE. Isso porque, por força desses princípios, em regra, fica excluída a possibilidade de execuções individuais contra o falido; isto é, quaisquer credores, independentemente dos privilégios que ostentem, deverão exibir seus direitos creditórios no juízo único e universal da falência, respeitando o procedimento de verificação e habilitação de crédito (art. 7º, da LFRE), para fins de concretização da ordem final prevista no art. 149, caput6. Permite-se, assim, que seja observada a aplicação do princípio par conditio creditorum, que, segundo Coelho (2005, ps. 215/216), faz conferir à comunidade de credores, admitida pelo procedimento de habilitação de crédito, tratamento paritário, que, se de um lado assegura a isonomia entre credores de mesma natureza, de outro, impõe a desigualdade no estabelecimento de hierarquias e preferências (vide art. 83, da LFRE) para o caso de credores cujos créditos possuem natureza diversa. 5

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Art. 76. O juízo da falência é indivisível e competente para conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido, ressalvadas as causas trabalhistas, fiscais e aquelas não reguladas nesta Lei em que o falido figurar como autor ou litisconsorte ativo. Parágrafo único. Todas as ações, inclusive as excetuadas no caput deste artigo, terão prosseguimento com o administrador judicial, que deverá ser intimado para representar a massa falida, sob pena de nulidade do processo. Art. 115. A decretação da falência sujeita todos os credores, que somente poderão exercer os seus direitos sobre os bens do falido e do sócio ilimitadamente responsável na forma que esta Lei prescrever. Direito anterior: DecretoLei n. 7.661/1945 – art. 7º, §§ 2º e 3º e art. 23, respectivamente. Art. 149. Realizadas as restituições, pagos os créditos extraconcursais, na forma do art. 84 desta Lei, e consolidado o quadro-geral de credores, as importâncias recebidas com a realização do ativo serão destinadas ao pagamento dos credores, atendendo à classificação prevista no art. 83 desta Lei, respeitados os demais dispositivos desta Lei e as decisões judiciais que determinam reserva de importâncias.

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Incidentes no Processo de Falência

Os princípios da unicidade e universalidade falimentares são comumente explicados pela doutrina (MEDONÇA, 1960; ABRÃO, 1980) por meio da expressão latina vis attractiva. Segundo Mendonça (1960, p. 259), “tendo a falência por escopo a liquidação do patrimônio integral do devedor e o pagamento de todos os credores, forçoso é que o juízo, onde ela se processa, possua essa vis attractiva, tornando-se único e universal”. O mesmo autor, em passagem célebre, exemplifica o juízo único, indivisível e universal da falência com sua força atrativa por meio da seguinte metáfora: “o juízo da falência é um mar onde se precipitam todos os rios”. Os efeitos gerados pelos princípios em tela são tão fortes que somente podem ser afastados em situações excepcionais, previstas pela própria LFRE. Tais situações excepcionais, por sua vez, possuem ainda, e de forma coerente com a LFRE, diplomas legais que reforçam as exceções. É o caso do Código Tributário Nacional – CTN, Lei n. 5.172/66 (BRASIL, 1966) que em seu art. 187, cuja redação encontra-se alterada pela Lei Complementar n. 118/2005 (BRASIL, 2005), determina que a cobrança judicial dos créditos tributários seja excetuada da vis attractiva da falência, efeito esse corroborado pelo art. 5º da Lei n. 6.830/80 (BRASIL, 1980) e pelo art. 2º do Decreto-Lei n. 858/69 (BRASIL, 1969) . Por esses artigos, o crédito tributário não estaria afeto ao procedimento de habilitação alhures citado, podendo ser exigido de forma autônoma, em juízo alheio ao do falimentar. Assim, as ações que visam à cobrança de crédito tributário (execuções fiscais) ajuizadas antes da sentença declaratória de falência, ou mesmo as ações ajuizadas após esta podem tramitar nos seus respectivos juízos, estando afetas as todas as vicissitudes que um processo executório oferece. Aliás, essa é a interpretação sistemática possível a partir da análise do art. 76, da LFRE, combinado com o art. 187, do CTN.

O art. 135, III do CTN, e sua Intepretação: Impactos no Quadro Geral de Credores

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Com o processo executório tramitando regularmente, e sabendo que o processo de falência poderá demorar anos (e demora) sem que os credores consigam ser pagos por não sobrar muitas vezes ativo suficiente que ultrapasse nem mesmo os créditos trabalhistas, prioritários frente ao crédito fiscal, a Fazenda requer, incidentalmente à execução, a aplicação do art. 135, inciso III, do CTN, com o fito de redirecionar a execução fiscal contra o sócio gerente/ administrador da sociedade empresária falida (relembre-se a hipótese delineada no tópico retro), o que é deferido na grande maioria dos casos, de forma que seu patrimônio passa a responder pela dívida fiscal. Tal pedido de redirecionamento é feito, na prática, por meio de uma petição simples, sem que haja a comprovação cabal, mediante prova pré-constituída, da existência de hipóteses fáticas previstas nos art. 135, III, do CTN.

Lucas Tadeu Prado Rodrigues e Rodrigo Almeida Magalhães

E as decisões que seguem, quase sempre deferindo o requerimento, são destituídas de qualquer decisão nesse sentido, como se perceber, v.g., nos autos de processo ns. 0767655-05.2001.8.13.0024, 0418637-69.1993.8.13.00247, ambos em trâmite nas 4ª Vara Varas de Feitos Tributários do Estado de Minas Gerais, comarca de Belo Horizonte/MG. Nesse ínterim, a partir do momento que se aplica o art. 135, III, do CTN, faz-se necessário saber qual das orientações doutrinárias e jurisprudencial que se deve levar em conta, para fins de análise do caso aqui estudado, o que dependerá, é claro, do posicionamento do órgão julgador. É que sabe-se que o referido artigo possui três correntes de interpretação doutrinária, cada uma delas impactando de forma direta na análise da questão aqui debatida. Pois bem. O art. 135, III, do CTN, dispõe que são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos (...) os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado”. A partir deste enunciado, tem-se a inauguração de três correntes doutrinárias, acompanhadas pelas respectivas jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça (STJ). São elas, de forma resumida, as seguintes: A que define que o art. 135, do CTN, trata de (i)responsabilidade tributária pessoal do administrador, ou seja, após o redirecionamento da execução fiscal, a sociedade empresária ficaria exonerada da dívida fiscal, devendo apenas responder por este a pessoa do sócio gerente/administrador. Cita-se aqui, como exemplo de doutrina, o ensinamento de Sacha Calmon Navarro Coelho (2009, p. 668/669), explicando que “a responsabilidade se transfere inteiramente para os terceiros, liberando os seus dependentes e representados. A responsabilidade passa a ser pessoal, plena e exclusiva desses terceiros”. A jurisprudência afeta a esta corrente pode ser representada pelo seguinte julgado: REsp 110464/RS8. A seu turno, existe ainda a corrente doutrinária que defende ser a (ii) responsabilidade subsidiária de terceiros aquela inaugurada quando da aplicação do art. 135, do CTN. Seu defensor, dentre outros, é Hugo de Brito Machado (2010, p. 170), que rebate os argumentos acima, aduzindo que o art. 135, do CTN, preceitua que os sócios-gerentes são pessoalmente responsáveis, mas não os únicos. E que, por força do art. 128, do CTN, a exclusão da sociedade empresária nesses casos (seja falida ou não) deveria vir expressa em texto de Lei. Por este corrente, a Fazenda se certificaria que não teria condições de receber da sociedade empresária falida (contribuinte), e, assim, tentaria receber do sócio gerente/administrador (responsável tributário). Para esta corrente doutrinária também existe posicionamento no STJ, conforme se verifica no julgamento do REsp 1101728/SP.9 7

Nos quais o segundo autor deste artigo atuou e ainda atua até a data de sua publicação. STJ – REsp 1104064/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/12/2010, DJe 14/12/2010. 9 STJ – REsp 1101728/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, 1ª SEÇÃO, julgado em 11/03/2009, DJe 23/03/2009 8

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E, por fim, há doutrina que preceitua que para o art. 135, do CTN, pressupõe a (iii)responsabilidade solidária entre o sócio e a sociedade empresária, e, por óbvio, esta não estaria liberada da obrigação pelo débito tributário. Tal posicionamento pode ser encontrado na doutrina de Leandro Pulsen (2006, p. 1.044), e a jurisprudência correspondente pode ser vista no julgamento do REsp 1017732/RS10. Sem querer adentrar em mais especificadas sobre as referidas correntes, considerando a hipótese fática citada no tópico 2 acima, se aplicada a primeira corrente, o crédito fiscal não deveria ser mais computado no quadro geral de credores, uma vez que houve a exoneração, por meio do redirecionamento, da sociedade empresária falida. No entanto, se for aplicada a segunda corrente (responsabilidade subsidiária), presume-se que a Fazenda, ao requerer o redirecionamento da execução fiscal, teve o cuidado de verificar que a massa falida não teria bens suficientes para adimplir com o débito fiscal em seu nome11, e, por isso, volta-se naquele momento, por meio da execução fiscal, em face do sócio gerente. Mas repare, não há exoneração da sociedade empresária falida neste caso, como já dito, de forma que nada impede, caso ocorra, posteriormente, a realização de ativo suficiente para oferecer recursos, que a Fazenda venha a receber seu crédito como credora constante no quadro geral de credores. Isso autoriza dizer que a Fazenda poderia receber tanto do sócio redirecionado quanto da massa falida da sociedade devedora, dependendo de quem e em qual momento terá recursos cada um terá recursos. E sem nenhuma dificuldade, aplicando a terceira corrente (responsabilidade solidária), conclui-se que independente de a Fazenda diligenciar para saber se a massa falida tem ou não recursos para arcar com o débito, este será cobrado de forma simultânea dos devedores – sociedade empresária falida, in casu, e do sócio redirecionado. Parece ser este o caso mais comum, na prática, uma vez que, como já alertado alhures, a o requerimento de redirecionamento é feito por meio de petição simples, e as decisões que seguem quase sempre com fundamentação inadequada, insuficiente mesmo. Foge do objetivo deste artigo descer ainda mais em minúcias quanto a este ponto, como, por exemplo, fazer considerações quanto à possibilidade de o sócio gerente/administrador coobrigado, que vir a pagar o débito fiscal na circunstância, poder habilitar seu respectivo crédito na massa falida. O que compete aqui demonstrar, para fins de fixação da premissa de argumentação que deverá ser usada para se chegar à sugestão de solução do problema aqui exposto, é a demonstração do alcance do at. 135, III, do CTN, por meio da análise de seus efeitos, sendo constado que somente as duas 10

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STJ – REsp 1017732/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, 2ª turma, julgado em 25/03/2008, DJe 07/04/2008 11 Nesse sentido, é nossa posição de que, seguindo o órgão julgador essa corrente, necessariamente a Fazenda deve requerer a aplicação do art. 135, III, do CTN, fazendo prova dos fatos (pré-constituída), dentre outros, de que a massa falida realmente não possui bens suficientes para o pagamento do crédito.

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últimas correntes (responsabilidade subsidiária e solidária) importam ao tema proposto, haja vista que fazem com que o crédito tributário persista na massa falida em seu quadro geral de credores (QGC), e assim sobre elas deverá recair a argumentação. Colocados os referidos argumentos, passa-se a analisar uma dos fenômenos citados na hipótese processual estudada, qual seja, a prescrição intercorrente e sua relação direta, em matéria tributária, com a extinção do crédito tributário.

A Prescrição Intercorrente na Execução Fiscal A Fazenda, por motivos dos mais variados, deixa de requerer o impulsionamento do feito executório, de forma que não é incomum o fato de que em muitas vezes os atos constritivos ou mesmo meros atos ordinatórios afetos às ações de execução fiscal deixam de ser requeridos por inércia da Fazenda, ficando os autos de processos sem nenhuma movimentação por longos anos. Quando, por decorrência dessa inércia da exequente Fazenda Pública, os autos ficam inertes por mais de 5 anos, após um ano de seu arquivamento, acontece a prescrição intercorrente, fenômeno jurídico possível por meio da aplicação de um plano normativo constituído através da interpretação sistemática dos seguintes dispositivos legais: art. 40, especificamente o §4º, da Lei 6.830/8012 (BRASIL, 1980), e art. 17413, caput, do CTN. Tal fenômeno é disciplinado pela súmula n. 314 do STJ14 que dispõe, in verbis, que “em execução fiscal, não localizados bens penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, fundo o qual se inicial o prazo da prescrição quinquenal intercorrente”. Tal enunciado deve ser lido de acordo com os seguintes precedentes originários, conforme se encontra no sítio eletrônico do STJ15: 12

Art. 40 – O Juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição. § 1º – Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao representante judicial da Fazenda Pública. § 2º – Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis, o Juiz ordenará o arquivamento dos autos.

§ 3º – Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens, serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução. § 4o Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato. (Incluído pela Lei nº 11.051, de 2004) § 5o  A manifestação prévia da Fazenda Pública prevista no § 4o deste artigo será dispensada no caso de cobranças judiciais cujo valor seja inferior ao mínimo fixado por ato do Ministro de Estado da Fazenda. (Incluído pela Lei nº 11.960, de 2009) 13 Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua Constituição definitiva. [...] 14 Primeira Seção, julgado em 12/12/2005, Dj. 08/02/2006, p. 258. 15 http://www.stj.jus.br/SCON/sumanot/toc.jsp?livre=(sumula%20adj1%20 %27314%27).sub. Acesso em 01/08/2014, às 16h46min.

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“O artigo 40 da Lei nº 6.830/80 não pode se sobrepor ao CTN e sua aplicação sofre limites impostos pelo artigo 174 do referido Código. Assim, após o transcurso de determinado tempo sem a manifestação da Fazenda Municipal, deve ser decretada a prescrição intercorrente. Essa exegese impede que seja eternizada no judiciário uma demanda que não consegue concluir-se por ausência dos devedores ou de bens capazes de garantir a execução. Deveras, a suspensão decretada com suporte no art. 40 da Lei de Execuções Fiscais não pode perdurar por mais de 05(cinco) anos, porque a ação para cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua Constituição definitiva (art. 174, caput, do CTN)[...]”. (AgRg no Ag 621340 MG, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/03/2005, DJ 30/05/2005, p. 299) “Pacificou-se no STJ o entendimento de que o artigo 40 da Lei de Execução Fiscal deve ser interpretado harmonicamente com o disposto no artigo 174 do CTN, que deve prevalecer em caso de colidência entre as referidas leis. Isto porque é princípio de Direito Público que a prescrição e a decadência tributárias são matérias reservadas à lei complementar, segundo prescreve o artigo 146, III, “b” da CF. 2. Em consequência, o artigo 40 da Lei nº 6.830/80 por não prevalecer sobre o CTN sofre os limites impostos pelo artigo 174 do referido Ordenamento Tributário. [...] a suspensão decretada com suporte no art. 40 da Lei de Execuções Fiscais não pode perdurar por mais de 05 (cinco) anos porque a ação para cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua Constituição definitiva (art. 174, caput, do CTN) [...]. Assim, após o transcurso de um quinquênio, marcado pela contumácia fazendária, impõe-se a decretação da prescrição intercorrente, consoante entendimento sumulado.” (AgRg no REsp 418162 RO, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/10/2002, DJ 11/11/2002, p. 156). Como se percebe, foi levada em consideração, para a edição da súmula 314, do STJ, a superioridade da Lei Complementar (LC), in casu, o CTN, frente à Lei Ordinária, a LEF. É que, pelo fenômeno da recepção, previsto art. 34, §5º, do ADCT, o CTN foi absorvido com o status de LC pelo sistema jurídico inaugurado pela CR/88, haja vista que em seus arts. 150, § único, 156, V, 173 e 174, cumpriu ele [CTN] a função prevista para este tipo de diploma, regulando a prescrição e a decadência. Interessante notar que, de acordo a jurisprudência do STJ16, produzida levando em consideração a súmula n. 314, o prazo de um ano de suspensão para que seja localizado o devedor ou encontrados bens penhoráveis começa automaticamente, ou seja, o arquivamento do processo executório é automático, independente de despacho para tanto. Assim, resta autorizado dizer que, para o acontecimento da prescrição intercorrente, faz-se necessário, ao total, o lapso de tempo de 6 (seis) anos, assim divididos: 1 (um) anos de suspensão, mais 5 (cinco) anos de paralização dos atos executivos. 16

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STJ – AgRg no AREsp 469106/SC. Rel. Ministro Napoleão Nunes, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/05/2014, DJe. 19/05/2014.

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Ocorrendo a prescrição intercorrente, cuja hipótese legal foi acima delineada suscintamente, e reconhecida por sentença, deve-se aplicar, o art. 156, V, do CTN, localizado Capítulo IV (extinção do crédito tributário), na seção I (modalidades de extinção), que preconiza que extinguem o crédito tributário a prescrição e a decadência. As consequências desse momento processual serão tratadas abaixo.

A Extinção do Crédito Tributário pela Prescrição Intercorrente e sua Análise frente ao Art. 6º, da Lei 11.101/05 Neste momento, passa-se a discutir quais seriam os efeitos da declaração da prescrição intercorrente reconhecida por decisão judicial transitada em julgado no âmbito da execução fiscal, movida em face da a) sociedade empresária falida e do b) sócio gerente/representante legal redirecionado. Tal discussão se mostra adequada e necessária em relação ao sócio redirecionado, do ponto de vista jurídico, pois indaga-se se tal decisão deveria extinguir o crédito tão somente com relação ao sócio redirecionado, e não frente à massa falida, tendo em vista o disposto no art. 6º, caput, da LFRE, que estatui, in verbis: Art. 6o  A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.

Responder adequadamente essa pergunta visa a esclarecer ponto importante que diz respeito, em última momento, a própria ratio legis da LFRE, que acredita-se ser o de proporcionar o ambiente processual mais adequado possível para o concurso de credores, nunca esquecendo da ordem legal de pagamentos, conforme estabelecido no art. 149, da LFRE, pois a depender da resposta, o crédito tributário alvo da prescrição poderá ou não persistir no quadro geral de credores. Mas antes de adentrar na variável representada pelo art. 6º, da LFRE, faz-se necessário, com base nas correntes interpretativas do art. 135, III, do CTN, definir o liame obrigacional que se forma entre sociedade empresária falida e sócio redirecionado, e fazer uma ressalva para a discussão aqui proposta. Para tanto, revisita-se o art. 124, do CTN, que dispõe sobre a solidariedade passiva tributária, preconizando que são solidariamente obrigadas (I) as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação, e as (II) pessoas expressamente designadas por lei, sendo esta última hipótese a mais coesa com questão debatida, frente ao redirecionamento da execução fiscal em face do sócio gerente.

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Por sua vez, o § único deste artigo dispõe que a solidariedade ali tratada não comporta o benefício de ordem17, indo de encontro com a corrente doutrinária que preconiza a responsabilidade subsidiária (MACHADO, 2010) como efeito da aplicação do art. 135, do CTN. Nesse sentido, se, quando do redirecionamento da execução fiscal, a base for a corrente doutrinária que estabelece ser a responsabilidade subsidiária (que prevê o benefício de ordem), ter-se-á o afastamento do art. 124, do CTN. Por outro norte, se a corrente a ser seguida for a que prevê a responsabilidade solidária, aplicar-se-á o art. 124, do CTN. Portanto, aparentemente, frente ao disposto no art. 124, CTN, a priori parece ser impossível juridicamente a existência a possibilidade responsabilidade secundária, o que faz surgir questão merecedora de estudo apartado, não havendo espaço para tal discussão neste. Aqui, o que vale a pena levar em consideração, é que, independente da corrente interpretativa dada ao art. 135, do CTN, com exceção da corrente que defende a responsabilidade pessoal do sócio (COELHO, 2010), é que ambos os executados na execução fiscal continuarão a responder pela mesa dívida, pelo mesmo débito tributário. No entanto, in casu, uma é a sociedade empresária falida, e o outro sócio representante legal. Pois bem. O art. 6º, da LFRE, parece ir de encontro ao disposto no art. 156, V, do CTN, que iguala os efeitos da prescrição ao da decadência, extinguindo o próprio crédito. E então, como ficaria a situação frente sociedade empresária falida do crédito tributário declaro extinto por força de decisão judicial transitado em julgado que reconhece e declara a prescrição intercorrente do crédito? Tal decisão valeria apenas face ao sócio gerente, por força do art. 6º, da LFRE, que prevê que o curso da prescrição face ao devedor falido? A resposta parece ser a de que, nesta situação, o crédito seria mesmo extinto em face te todos os envolvidos, inclusive em face da devedora falida, de forma que o art. 6º da LFRE não teria aplicação. Isso porque, trata-se de Lei Ordinária (Lei 11.101/05), que é inferior a Lei Complementar (CTN), sendo que esta tratou, de forma direta e sem dificuldade interpretação no seu art. 156, V, que o crédito tributário é extinto tanto pela prescrição quanto pela decadência. Ademais, a suspensão da prescrição tratada pelo art. 6º, da LFRE, não pode se referir à prescrição em matéria tributária, isso por imperativo constitucional, ex vi do art. 146, III, “a”, da CR/88, que preconiza que cabe à Lei Complementar estabelecer normas gerais em matéria tributária, especialmente, dentre outros, sobre prescrição e decadência. Ou seja, a prescrição citada no art. 6º, da LFRE, pode fazer alusão a obrigações outras, que não as de natureza tributária, pois estas devem ser tratadas por Lei Complementar. 17

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Algo defendido pela corrente interpretativa representado aqui pelo renomado professor Hugo de Brito Machado (2010), que dispõe sobre a responsabilidade subsidiária, que comporta o benefício de ordem.

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Por fim, a aplicação do art. 135, III, do CTN, faz como que o redirecionado responda, juntamente com a sociedade empresária falida (coobrigados) pelo mesmo débito tributário, pela mesma dívida, portanto; logo, seria ilógico pensar que o mesmo débito deixou de existir para um coobrigado, e não para o outro: lembre-se, trata-se da mesma obrigação. A propósito, dispõe o art. 125, I, do CTN, que o pagamento efetuado por um dos obrigados aproveita aos demais. Ora, o pagamento, como se sabe, é a forma por excelência de extinção do crédito tributário (COELHO, 2010, p. 706). Se o pagamento, que pode ser ato voluntário ou não (v.g., penhora de numerários), tem o efeito de liberar o coobrigado da dívida, com muito mais razão o tem a declaração judicial de extinção do crédito.

Conclusão O reconhecimento e declaração, por meio de decisão judicial, da prescrição intercorrente no âmbito das execuções fiscais, que figuram como devedores coobrigados, por força do ar. 135, III, do CTN, sociedade empresária falida e sócio gerente/responsável implica, necessariamente, em extinção do crédito tributário que foi, ou que deveria ser reservado na massa falida, deixando-o de fazer parte do QGC. O art. 6º, da LFRE, não teria aplicação, in casu, como visto, graças ao plano normativo definido pelos seguintes dispositivos legais: Não sujeição do crédito tributário ao regimento falimentar: art. 76, da LFRE, combinado com o art. 187, do CTN – Declaração da prescrição intercorrente: art. 40, §4, da LEF – Efeitos de extinção do próprio crédito tributário: art. 156, V, do CTN – Inaplicabilidade do art. 6º, da LFRE: art. 146, III, “a”, da CR/88. Com isso, a partir do momento do trânsito em julgado da decisão acerca da prescrição intercorrente na execução fiscal (art. 156, X, do CTN), dever-se-ia ser baixado na massa falido, em seu QGC, o respectivo crédito, o que inexoravelmente minimizaria de forma direta o passivo, e maximizaria indiretamente os ativos, possibilitando mais chances aos credores de posição menos privilegiada na ordem prevista no art. 83, da LFRE, de receber.

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A Força dos Precedentes nos Tribunais: da “Jurisprudência Dominante” até as Teses Vinculantes em 2ª Instância Ubirajara da Fonseca Neto1 Adriano Moura da Fonseca Pinto2 Marcelo Pereira de Almeida3 Resumo Este ensaio tem por escopo apresentar algumas notas sobre a evolução dos precedentes como orientação jurisprudencial, no Direito brasileiro. Procura-se identificar o caminho traçado desde a “jurisprudência dominante” como mera orientação aos órgãos jurisdicionais, até a força impositiva, praticamente intrasponível, das teses vinculantes, tal como previsto no Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, fazendo-se uma crítica, em especial, a este instituto, apresentado como uma solução a todos os obstáculos hoje enfrentados à isonomia, segurança jurídica e tempestividade. Palavras-chave: Precedentes jurisdicionais; mera orientação jurisprudencial; força vinculante; incidente de resolução de demandas repetitivas.

Introdução 1

Mestre em Direito Processual (UNESA). Pós-Graduado (especialista) em Direito Civil e Processual Civil (UFF). Professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual Civil da Universidade Estácio de Sá (Cursos de Graduação e Pós-Graduação) e do IBMEC (Curso de Graduação). Atuou como Professor (concursado) da UFRJ e UCAM/Centro. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil – IBDP. Advogado. Autor e Co-autor de obras jurídicas. Coordenador Adjunto de um dos Cursos de Direito da Unesa/RJ (Unidade Centro III/Menezes Cortes). 2 Doutorando em Direito pela Universidad de Burgos-Espanha. Advogado. Professor Universitário. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Estácio de Sá-campus Freguesia. Integrante da Coordenação Geral do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá no Rio de Janeiro-RJ. 3 Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Tributário pela Universidade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá, Professor Adjunto de Teoria Geral do Processo e Direito Processual da Universidade Federal Fluminense. Professor do Curso de Pós-Graduação em Direito Processual da Universidade Federal Fluminense - UFF. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professor colaborador do PPGD (Mestrado e Doutorado) UNESA. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil - IBDP. Advogado. Autor do Livro Processo Coletivo – Teoria Geral; Cognição e Execução.

A Força dos Precedentes nos Tribunais: da “Jurisprudência Dominante” até as Teses Vinculantes em 2ª Instância

O objetivo deste ensaio é apresentar algumas notas sobre a evolução dos precedentes até a criação de teses vinculantes, já na 2ª instância, por parte do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), direcionadas a ela própria (Tribunal em que forem criadas) assim como à primeira instância a ela vinculada, provocando alterações significativas na cognição exercida pelos órgãos jurisdicionais brasileiros. Em primeiro lugar, fragmenta-se, claramente, a cognição, na medida em que a questão jurídica sobre a qual deva o Poder Judiciário manifestar-se será apreciada por um órgão segundo o Regimento Interno de cada Tribunal, enquanto os casos concretos (e matérias de fato consectárias) aos quais as referidas teses são prejudiciais serão analisadas pelos respectivos órgãos (naturalmente) competentes. Em seguida, é também preciso pensar na inauguração, no Direito processual civil brasileiro, de instrumentos cuja força vinculante apresenta-se como praticamente impassível de ser confrontada, exceto por meio de revisão propriamente criada para tanto. Ainda que, nas últimas duas décadas (em especial), a força dos precedentes jurisdicionais tenha se elevado significativamente, jamais havia chegado a tal grau de limitação das instâncias inferiores, senão por meio das súmulas vinculantes, cujo alcance, porém, como se sabe, é suficientemente restrito a ponto não influenciar, de forma genérica e excessivamente ampla, o livre convencimento motivado do Estado-juiz. A análise crítica desses instrumentos, assim como a própria compreensão precisa do que ocorreu até se chegar a eles no Direito brasileiro, deve se difundir ainda na vacatio do novo Código, a ponto de se tentar identificar possíveis obstáculos às garantias fundamentais do processo, a partir desses novos mecanismos, como também para, desde logo, apresentar sugestões às eventuais fragilidades de um sistema com o qual o Poder Judiciário brasileiro ainda não se havia deparado.

A Molecularização Jurisdicional como Solução ao Crescimento (supostamente) Exacerbado das chamadas “Lides de Massa”

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Não se nega a criação de sistemas de coletivização de processos, implementados, em especial, nos últimos 20 (vinte) anos, no Direito brasileiro. É o que se pode denominar de “molecularização” jurisdicional, tida como reunião (ou, no mínimo, sobrestamento) de lides aparentemente a respeito da mesma questão jurídica, em julgamentos concentrados ou definições de teses a partir de julgamentos sequenciais, com sua simples repetição aos demais processos (inclusive futuros), especialmente nas chamadas lides de massa Não é difícil identificar instrumentos que demonstrem a evolução desses sistemas: a sentença liminar de improcedência, a súmula impeditiva de recursos, o incentivo aos julgamentos monocráticos nos Tribunais, a reunião de recursos repetitivos em torno de um “caso-piloto” e, mais recentemente, já no novo Código

Ubirajara da Fonseca Neto, Adriano Moura da Fonseca Pinto e Marcelo Pereira de Almeida

de Processo Civil, o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) e a assunção de competência (valorizada na Lei 13.105/2015, como substituta da uniformização de jurisprudência, do Código de Processo Civil de 1973). É parte das respostas que se tem dado à (eventual) crise judicial e jurisdicional, principalmente no tratamento das chamadas lides de massa, cabendo à comunidade acadêmica, em primeiro lugar, investigar em que termos esse sistema deve realmente avançar ou mesmo retroagir a um conjunto de regras menos aglutinador, com mais obediência às garantias fundamentais do processo e, por conseguinte, mais preocupado em não comprometer o verdadeiro acesso à ordem jurídica justa, entedido como tal o acesso ao efetivo devido processo legal, do qual faz parte essencial a segurança jurídica alcançada por uma cognição adequada e não indevidamente forçada a partir da imposição de teses construídas por instrumentos possivelmente falhos. Instrumentos como o referido incidente (IRDR) e assunção de competência, na sequência de reformas por que passou a ordem processual, consagram um ciclo com claro objetivo de que os precedentes (teses) por meio deles construídos vinculem, de forma praticamente absoluta, casos futuros, desde a 1ª instância, valendo-se de procedimentos talvez não suficientemente rígidos, que serão instaurados já na 2ª instância, sem nem mesmo permitir uma possível maturidade do tema, nas próprias vias jurisdicionais. É verdade que, como noticiado por Greco4, existe uma crise da justiça civil contemporânea, que tem provocado, em vários países do mundo, a busca de soluções heróicas, para enfrentar o volume avassalador de processos e acelarar a prestação jurisdicional, principalmente em lides de massa. Mas, muito bem lembra o doutrinador que, se não se pode ignorar que algumas dessas soluções aliviam, ainda que temporariamente, a pressão social sobre o judiciário, também é forçoso reconhecer que, em muitos casos, atacam apenas sintomas e não as causas da referida crise. Principalmente em nome da segurança jurídica e da isonomia, instrumentos como os anteriormente mencionados foram sendo fortalecidos nas últimas décadas, até se chegar à vinculação quase intransponível das formas de julgamento por amostragem que aqui são tratados. A questão que se ronda, portanto, é que, se os incidentes possuem procedimentos não suficientemente rígidos, a ponto de (não) haver a adequada identificação dos casos supostamente semelhantes, não se atingirá isonomia alguma, porque, inexistindo um padrão racional apto a identificar as questões comuns entre os casos de suposta matéria idêntica, não se conseguirá chegar a uma decisão capaz de atingir, legitimamente, os processos abrangidos pelo “caso-piloto”. Cumpre-nos indagar: como se chegou a um modelo processual tão vinculante? A partir de uma concepção publicista do processo, com uma força 4

GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual, In: SOUZA, Marcia Cristina Xavier de (Coord.). O novo Código de Processo Civil – o projeto do CPC e o desafio das garantias fundamentais. Rio de Janeiro: Campus jurídico, 2013, p. 1 e 7.

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estatal (Estado-juiz) representada por decisões construídas por um sistema de eficiência questionável cujo poder vinculante somente pode ser ultrapassado por instrumentos de revisão taxativamente previstos em Lei e capazes (as referidas teses) de suspender processos cujas matérias sequer mereceram uma primeira análise em grau de jurisdição primário, tampouco tiveram a chance de um debate preliminar nas instâncias originárias, até chegar as superiores. Trata-se de uma concepção publicista do processo, responsável, por exemplo, por uma sensível limitação do sistema recursal pelo uso de precedentes, com a inserção de filtros sobrepostos destinados a restringir seu uso (dos recursos), apontados como os grandes vilões da morosidade na atividade jurisdicional. Nos últimos anos, verifica-se que a legislação brasileira cada vez mais se afasta das tendências garantistas, o que se constata pela análise do conteúdo das constantes reformas da legislação processual, que ampliam consideravelmente os poderes dos juízes, prestigiando cláusulas abertas, condução da instrução probatória de modo oficioso, controle de adaptação dos procedimentos e principalmente limita o acesso ao sistema recursal, com o aumento da força da jurisprudência, sem, contudo traçar diretrizes para construir de modo legítimo as decisões judiciais que servirão de paradigma. O que se está frisando é que o Direito brasileiro, por meio de uma sequência inédita de reformas5, valorizou os precedentes por uma série de instrumentos. Podemos defini-los (os precedentes) como uma decisão tomada por órgão jurisdicional frente a um ou mais casos concretos deduzidos em juízo, cujo núcleo essencial tem o potencial de servir como paradigma para julgamentos posteriores em causas análogas6. Cruz e Tucci7, por exemplo, ensina-nos que todo procedente é composto de duas partes distintas: a) as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório. Tal distinção se mostra fundamental, uma vez que, como dito, o precedente judicial se forma a partir da análise de um ou mais casos concretos, que podem ou não apresentar questões de fato distintas, mas que, em sua essência, demandam uma única reflexão jurídica sobre a aplicação do Direito8. 5

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Podemos afirmar que o marco dessa evolução foi a criação da “súmula da jurisprudência predominante do STF”, em 1963 (com previsão no Regimento Interno do referido Tribunal). 6 BARBOSA, Anderia Carla. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Projeto de Código de Processo civil.In: FUX, Luiz (Coord.), O novo processo civil brasileiro – direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011.p. 481-482. 7 TUCCI, José Rogerio Cruz e. Precedente judicial como fonte de direito. São Paulo: RT 2004, p. 12. 8 Neste entido: BARBOSA, Anderia Carla. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Projeto de Código de Processo civil.In: FUX, Luiz (Coord.), O novo processo civil brasileiro – direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011.p. 481482, que ainda assim defende: “O Termo ratio decidendi, utilizado na Ingalterra, ou holding, mais comum nos EUA, simboliza então a fundamentação jurídica declinada pelo órgão jurisdicional como sustentáculo de sua decisão. O porquê de pronunciar-se em um sentido e não em outro. Segundo aponta a doutrina, a ratio decidendi é composta: (a)

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Em busca do que se vem chamando de “unidade do Direito”, a ordem jurídica brasileira teve a seguinte evolução: (a) Art. 38 da Lei 8.038/90: concedeu competência ao Ministro Relator para negar seguimento a recursos, no STF e no STJ, que contrariar súmula do respectivo Tribunal9; (b) Art. 557 do CPC, alterado pelas Leis 9.139/95 e 9.756/98: admite que o Relator de recurso em qualquer tribunal negue seguimento a recurso em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF ou de Tribunal Superior, bem como dê provimento ao recurso, monocraticamente, se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do STF, ou de Tribunal Superior10; (c) Art. 544, parágrafos 3º e 4º do CPC, instituídos pela mesma lei acima, passou a autorizar que se desse provimento a agravo de decisão denegatória de recurso extraordinário ou de recurso especial, se o acórdão recorrido estiver em confronto com a súmula ou jurisprudência dominante do tribunal; (d) Emenda Constitucional n. 45/04 (art. 103-A da Constituição/1988): criou a súmula vinculante Lei 11.276/06, que acrescentou um parágrafo 1º ao art. 518 do CPC: determinou que o juiz de primeiro grau (e primeira instância) não receba o recurso de apelação caso a sentença estiver em conformidade com súmula do STJ ou STF; (e) Lei 11.418/06 (art. 543-A, parágrafo 3º do CPC): instituiu a repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, a qual estará presente sempre que o recurso impugnar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal; (f ) Lei 11.672/08 (art. 543-C, do CPC): estabeleceu que, quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo, cabendo ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça. Esta sequência de reformas culminou em incidentes do novo Código de Processo Civil, como o Incidente de Resolução de demandas repetitivas (inédito, na ordem jurídica brasileira) e a assunção de competência (já existente da indicação dos fatos relevantes da causa (statement of material facts), b) do raciocínio lógico jurídico da decisão (legal reasoning) e c) do juízo decisório (judgment).” 9 Vemos, neste dispositivo, praticamente, o início da era dos julgamentos por “referência”, a qual, no caso, era, somente, súmula, e, também, (inicio) da possibilidade de julgamentos monocráticos, que se tornaria, ao longo dos anos, uma prática habitual não apenas nos Tribunais superiores, como nos demais. Relevante pontuar as limitações, naquele momento (1990), do que se tinha como referencia: apenas “súmula” e o julgamento se dava somente nos referidos Tribunais Superiores. 10 Este dispositivo foi um grande marco no incremento de repetição de julgamentos e fortalecimento de precedentes. E como, a propósito, estes “precedentes” são criados? Pelas SÚMULAS e pelos “ENTENDIMENTOS DOMINANTES”, os quais, porém, são dotados de uma certa subjetividade, pelas momentâneas dificuldades de se definir quando a jurisprudência já teria se tornado “dominante”.

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no Código de 1973, porém agora valorizado, com a extinção da uniformização de jurisprudência. Sendo certo, porém, que se tratam de incidentes com forças vinculantes inéditas, o que eleva em muito o risco de teses construídas equivocadamente, seja quanto ao procedimento ou mesmo quanto à qualidade das teses definidas, o que influenciaria, de forma negativa, justamente naquilo que se quer favorecer: a isonomia e a segurança jurídica.

A Evolução da Força dos Precedentes no Direito Processual Brasileiro até o Novo Código de Processo Civil Foi, em especial, por meio da Lei 11.672/08 (art. 543-C, do CPC), acima citada, que se foi além da súmula vinculante para fortalecer o sistema de julgamento que tem por base casos-pilotos. Especificamente, por meio da identificação de uma multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, destacando um ou alguns deles (recurso especial), para ser processado e encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça.Esta alteração reflete já um outro plano de “aglutinação” de processos, porque não se limita a determinar a repetição de jurisprudência dominante (como o art. 285-A do CPC/73): impõe a suspensão de processos cuja “tese” seja a mesma até que o “caso piloto” (“o que melhor representar a controvérsia”) seja julgado pelo STJ. Revolucionou, sem dúvida, o sistema de precedentes, como defendido por FUX, abaixo:

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Um fenômeno moderno da sociedade de massa introjetou no sistema brasileiro de origem romano-germânica a técnica inerente ao sistema anglosaxônico, inspirado no princípio da isonomia, de aplicar-se o precedente judicial em caráter erga omnes. Nas causas que apresentam um interesse comum a uma multiplicidade identificável de jurisdicionados. (...) Ainda, está arraigado na tradição romanda de que o autor é dominus litis, o legislador brasileiro não eliminou a legitimação individual em detrimento da legitimação difusa deferida aos órgãos intermediários entre o cidadão e o Estado ou ao Ministério Público. A consequência dessa coexistência de legitimações, é a constatação de ações individuais idênticas quanto ao pedido e a causa de pedir, cujos julgamentos redundam em recursos repetitivos. É de sabença que acordem aos tribunais superiores inúmeras causas repetitivas e que por força do princípio da isonomia devem receber o mesmo tratamento meritório. Deveras essas causas decorrentes de megalesões, aborrotam os tribunais brasileiros, colocando-os no patamar de Corte com o maior número de recursos pendentes de julgamento O legislador brasileiro, no afã de exterminar com esses gravoso problema, a luz da novel concepção da duração razoável dos processos e da força da jurisprudência, esta capaz de uniformizar os resultados judiciais para causas idênticas, cumprindo o postulado da isonomia, fez sugir no cenário processual brasileiro os

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denominados “recursos repetitivos” cuja técnica de julgamento atende à necessidade de eficácia da decisão sob o enfoque transindividual, mercê de imprimir metodologia apta a esvaziar o acerto incalculável dos Tribunais Superiores.

Percebe-se, facilmente, a evolução do controle por meio da aplicação dos precedentes. Inicialmente, somente no STF, poderia se proferir um julgamento monocrático e, ainda assim, tendo como referência alguma súmula. Posteriormente, essa autorização “desceu” para instâncias inferiores, como antes dito, e a referência já não eram apenas as súmulas, mas também o que se começou a denominar de “jurisprudência dominante”. E a evolução, como se vê, prosseguiu até se “descer” à 1ª instância, permitindo-se que se vede o recebimento da apelação, já pelo juízo “a quo”, nas situações nele mencionadas (acima mencionado), prosseguindo-se até o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas e a Assunção de Competência, tal como previstos no novo Código de Processo Civil. Não podemos olvidar da força desses instrumentos como aplicadores (e, eventualmente, criadores) ferrenhos de precedentes, mesmo porque a prática com que as instâncias os repetem, deliberadamente, tem se perpetuado ao longo desses anos. A força jurisprudencial por meio da aplicação de precedentes, enfim, tornou-se, definitivamente, uma realidade da ordem jurídica brasileira, que a fez distanciar-se um pouco da positivação clássica do civil law, e aproximar-se common law, o que se reforça com as palavras abaixo: O papel da jurisprudência, tanto nos países da common law quanto nos países da civil law está sofrendo alterações. Nestes, há uma tendência de valorizar o papel da jurisprudência como instrumento de revelação e ordenamento dos usos e costumes da sociedade, em prejuízo da supremacia absoluta da lei. De outro lado, os países de tradição anglo-americana abandonaram este direito exclusivamente consuetudinário e passam a elaborar normas legislativas de caráter geral.11

O novo Código de Processo Civil, naturalmente, seguiu no mesmo sentido. Buscou fomentar a importância de precedentes, em prol de uma maior segurança jurídica, como é dito, a propósito, na exposição de motivos, de texto originário do STJ: Mas talvez as alterações mais expressivas do sistema processual, ligadas aos objetivo de harmonizá-lo com o espírito da Constituição Federal, sejam as que dizem respeito às regras que induzem à uniformidade e à estabilidade da jurisprudência. O novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, obviamente de índole constitucional, pois que se hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito e visa a proteger e a preservar as justas expectativas das pessoas. 11

FUX, Luiz. Revista de direito renovar. Rio de Janeiro: Renovar, n. 42, 2008, p. 3.

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Todas as normas jurídicas devem tender a dar efetividade às garantias constitucionais, tornando segura a vida dos jurisdicionais, de modo a que estes sejam poupados de surpresas, pondendo sempre prever, em alto grau, as consequências jurídicas de sua conduta. Se, por um lado, o princípio do livre convencimento motivado é garantia de julgamentos independentes e justos, e neste sentido mereceu ser prestigiado pelo novo Código, por outro, compreendido em seu mais estendido alcance, acaba por conduzir a distorções do princípio da ledalide e à própria ideia, antes mencionada, de Estado Democrática de direito. A dispersão excessiva da jurisprudência produz intranquilidade social e descrédito do Poder Judiciário. Se todos têm que agir em conformidade com a lei, ter-se-ia, ipso facto, respeitada a isonomia. Essa relação de causalidade, todavia, fica comprometida como decorrência da liberdade que tem o juiz de decidir com base em seu entendimento sobre o sentido real da norma.

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Percebe-se, facilmente, que a “liberdade” do juiz estará seriamente comprometida sempre que a matéria sobre a qual tenha de se manifestar já tenha sido alvo de decisões anteriores que, pelos instrumentos legalmente instituidos (como, por exemplo, as sumulas vinculantes, os recursos repetitivos, a súmula impeditiva de recurso etc), tenham formado o que antes já se denominou de precedentes, os quais, claramente, tornaram-se, como outros elementos, fontes regulares de direitos. Assim, aponta-se o artigo 926 do referido Código, já iniciado com a determinação de que os tribunais (em geral, portanto) devem buscar sempre a uniformização da jurisprudência em prol da estabilidade e coerência, deixando evidente que não apenas reforça toda a aplicação de precedentes do Código atual, como ainda trabalha para uma maior objetividade, substituindo, por exemplo, a “jurisprudência dominante” como referência, para sempre dar preferência por sistemas menos subjetivos, como as súmulas, os julgamentos de recursos repetitivos e o incidente de resolução de demandas repetitivas. É indubitável o empenho do legislador em incentivar a criação de precedentes e seu respeito contínuo como a melhor forma de atingir a segurança jurídica por meio de uma obediência constante à isonomia, na medida em que a coletividade envolvida em questões jurídicas semelhantes receberá, uniformemente, a mesma solução por parte do Judiciário. O sistema de construção e aplicação de precedentes, que se fará presente por meio de: Decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade – controle difuso ou concentrado, cujo julgamento dá-se pelo Pleno do Tribunal, cujos efeitos, mesmo no difuso, têm respeito praticamente obrigatório; Enunciados de súmulas (vinculantes ou não); Acórdãos proferidos em incidente de assunção de competência; Acórdãos proferidos em julgamento de casos repetitivos, quais sejam, aqueles proferidos em: I – Incidente de resolução de demandas repetitivas; II – Recursos especial e extraordinário repetitivos.

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Percebe-se que termos como “jurisprudência” ou “entendimento” “dominante” desapareceram. Ficaram em seu lugar “julgamentos repetitivos”, súmulas, assunção de competência e incidente de resolução de demandas repetitivas, a partir dos quais atingimos, certamente, uma objetividade infinitamente maior. Adicionalmente, a “força” objeto do título desse item é visualizada, por conta da imposição de respeito aos precedentes, inclusive por meio do cabimento do instituto da Reclamação (artigos 988 a 993 da Lei 13.105/2015). Quer-se ressaltar o art. 932 do novo Código, que determina aos Desembargadores e Ministros Relatores o seguimento fiel dos entendimentos e referências estabelecidos pelos aludidos instrumentos. É verdade, a propósito, que, no julgamento da ADI 2212-1, o STF autorizou que as Constituições Estaduais estabelecessem o instituto da Reclamação, não obstante o que, no Código de 1973, não se vê a regulamentação deste instituto, em capítulo autônomo, que traz o novo Código. Oportunamente, leia-se o julgado da referida ADI: A natureza jurídica da reclamação não é de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no âmbito do Direito Constitucional de petição previsto no art. 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal. Em consequência, a sua adoção pelo Estado-membro pela via legislativa local, não implica invasão de competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, I, CF).

A reclamação constitui instrumento que, aplicado no âmbito dos Estadosmembros, tem como objetivo evitar, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, o caminho tortuoso e demorado dos recursos previstos na legislação processual. Inegavelmente inconvenientes quando já tem a parte uma decisão definitiva. Visa, também, à preservação da competência dos Tribunais de Justiça estaduais, diante da eventual usurpação por parte de Juízo ou outro Tribunal local. Ainda assim, é fato que se manifestando também o STJ sobre o matéria, deixou claro não ser admitida a Reclamação para assegurar o respeito a entendimento jurisprudencial, ou seja “não caberia a reclamação em razão de mera contrariedade à orientação jurisprudencial do tribunal”, consoante decisão do Ministro Teori A. Zavascki, na reclamação 1.548SC, de abril de 2004. O novo Código, enfim, está buscando, justamente, atingir o contrário, isto é, permitir que os jurisdicionais possam insurgir-se contra entendimentos contrários aos precedentes regularmente instituídos. O que se está presentendo pelo presente é, exatamente, traçar tais distinções, desde a subjetividade ainda presente nos dias atuais (antes do novo Código de Processo Civil), até a objetividade de enunciados, praticamente, instransponíveis.

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O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas como Instrumento Vinculante Pevisto no Novo Código de Processo Civil Tomemos como exemplo da evolução traçada pela ordem jurídica brasileira processual, o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, cuja característica maior é a criação de teses, desde a 2ª instância, como um incidente a processos possivelmente ainda em curso na 1ª instância, cuja instauração suspende todos (os processos) em trâmite, de mesma questão jurídica, e cujo julgamento não apenas vincula a estes, como também aos casos futuros, de mesma natureza. Segundo o art. 976 do novo Código de Processo Civil, é cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: I – efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito; II – risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. O princípio da isonomia é um grande fator utilizado como justificativa para instrumentos como o que ora buscamos interpretar. A busca por uma igualdade entre jurisdicionados envolvidos em lides caracterizadas por questões jurídicas semelhantes (ou mesmo idênticas) tem norteado as últimas demandas legislativas, especialmente em seus aspectos processuais. Esta igualdade, presente na maioria das democracias ocidentais, não é apenas um direito individual, mas também organizacional, verdadeiro mecanismo regulador da atividade do Estado, inclusive da atuação jurisdicional, a impor aos juízes o dever de neutralizar, no processo, as desigualdades reais existentes entre os homens, em prol do equilíbrio de forças na relação processual, indispensável à justa composição da lide. Assim é defendido em doutrina, em obra organizada por um dos mentores do novo Código:

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Daí sua caracterização dúplice como Direito fundamental do jurisdicionado e dever institucional do juiz, encontrando na paridade de armas sua manifestação no processo civil. Esta é compreendida como componente autônomo da garantia de um processo justo, mas que está initimamente ligada a outras garantias, como o contraditório e o Direito de defesa. Apesar de sua ampla generalidade, pode-se definir a paridade de armas como a obrigação de proporcionar a qualquer parte a possibilidade razoável de apresentar sua causa em condições que não sejam de evidente desvantagem com relação à outra parte. Essa e a ideia que se pode extrair de inúmeros documentos humanitários, como a Convenção Europeia de Direitos do Homem e as Constituições das democracias ocidentais. A importância da paridade de armas reside no seu papel de conferir legitimidade ao sistema de resolução de conflitos estruturado em determinado Estado, pois elimina insatisfações através da possibilidade de todos os interessados influírem, com idênticas chances de êxito, na cognição do magistrado. Para nós, essa importância decorre da relevância da dignidade da pessoa humana e da concepção de que a atividade judiciante,

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como meio de resolução de conflitos, só se poderá legitimar na medida em que assegure a cada um aquilo que lhe pertence. Na medida em que assegure a cada um aquilo que lhe pertence. Na medida em que se outorgue tutela a quem efetivamente seja dela merecedor.12

José Carlos Barbosa Moreira, por sua vez, alertou para este cuidado, qual seja, atenção aos riscos de expansão das lides de massa e as formas com que venha o Judiciário a tratar da matéria13. Frisou14, pois, que a pluralidade de órgãos judicantes que podem ter (e com frequencia têm) de enfrentar iguais questões de direito, precisam tentar unificar teses jurídicas em idêntica matéria. Nasce daí a possibilidade de que, num mesmo instante histórico – sem variação das condições culturais, políticas, sociais, econômicas, que possa justificar a discrepância – a mesma regra de direito seja diferentemente entedida, e a espécies semelhantes se apliquem teses jurídicas divergentes ou até opostas. Assim, prossegue o jurista15, se compromete à unidade do Direito – que não seria posta em xeque, muito ao contrário, pela evolução homogêna da jurisprudência dos vários tribunais – e não raro se semeiam, entre os membros da comunidade, o descrédito e o cepticismo quanto à efetividade da garantia constitucional. Foi na Alemanha, que, em 2005, foi criado o Procedimento-Modelo (Musterverfahren) com o propósito de estabelecer uma esfera de decisão coletiva de questões comuns à finalidade de estabelecer uma esfera de decisão coletiva de questões comuns a litigios individuais, e assim proorcionar o esclarecimento unitário de características típicas a várias causas idênticas com a possibilidade de abrangência subjetiva para além das partes.16 Assim, o escopo do referido procedimento é firmar posicionamento sobre questões fáticas ou jurídicas de pretensões massificadas. Da mesma forma, no novo Código, direciona-se o pedido de instauração do incidente ao Presidente do Tribunal, mediante requerimeneto das partes, do Ministério Público, da Defensoria Pública ou de ofício pelo juiz ou relator, para a resolução de demandas repetitivas, verificandose evidente intenção do legislador de evitar que demandas que versem sobre teses jurídicas supostamente idênticas fiquem sendo tratadas de modo pulverizado. Canaliza-se, portanto, como dito no início, parte da cognição para um órgão específico. 12

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual, 9ª série, p. 93. BARBOSA, Andrea Carla e CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Projeto de Código de Processo Civil. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro – direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 436-525. 14 MOREIRA, José Carlos. Comentários ao CPC. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, arts. 476 a 565, p. 4 e 5. 15 MOREIRA, José Carlos. Comentários ao CPC. 15 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, arts. 476 a 565, p. 4 e 5. 16 ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Precedentes judiciais – análise crítica dos metodos empregrados no Brasil e solução de demandas de messa. Curitiba: Juruá, 2014, p. 179.

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Fala-se, no dispositivo sob análise em “efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito” e “risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica”. Algumas questões deverão ser enfrentadas: quantos processos seriam suficientes para se considerar uma “repetição” capaz de gerar risco à isonomia e à segurança? Questiona-se também a capacidade desses julgamentos de gerar, efetivamente, maior segurança jurídica. Se um julgamento será estendido para os demais processos a respeito da mesma matéria, sem dúvida todos serão atingidos por uma questão decidida uniformemente. Mas isso, necessariamente, eleva a segurança jurídica? Se houver uma onda de julgamentos de casos-pilotos de forma inadequada, por exemplo, estaríamos elevando a segurança jurídica? A ordem jurídica deve providenciar o necessário a reduzir (eliminar, se possível) os riscos de decisões inadequadas (que contrariem a ordem jurídica regularmente instalada). Um bom caminho para isso seria privilegiar o duplo grau de jurisdição, o que eleva o debate jurídico e, consequentemetne, a segurança e estabilidade que se esperam de seu julgamento. E não é que, justamente este incidente, que deveria zelar pela maior segurança jurídica, está com previsão de ser instaurado, diretamente, nos Tribunais (2ª instância), em prol de uma suposta aceleração da atividade jurisdicional? Essa é questão em que, no mínimo, devemos refletir: a competência originária para julgar o incidente que, uma vez admitido, faz suspender todos os processos em trâmite em 1ª instância; elimina-se, praticamente, todo o debate que poderia (e talvez, deveria) ter existido antes do Tribunal (2ª instância) manifestar-se e apresentar a questão pronta e resolvida, como se fosse a melhor solução para aquela matéria, a ser seguida pelos órgãos jurisdicionais submetidos àquele Tribunal, sem lhes dar a oportunidade nem ao menos de melhor se debruçar sobre a tese. A concentração, antes mencionada, tem sua utilidade, mas antes mesmo de se construir uma maturidade a respeito da matéria, pode gerar julgados vinculantes que seja considerado, posteriormente, inadequado, e, dessa forma, ensejador de danos a toda a coletividade atingida. Cita-se, outrossim, como um exemplo de instrumento semelhante, aquele que, em 2005, foi instituída por uma “Comissão de Especialistas”, pelo Conselho da Europa. Tal comissão, composta de profissionais independentes de notável saber, indicados por organizações não governamentais, foi nomeada para assegurar a transparência e adequadação das reformas da Corte Europeia de Direitos Humanos. No relatório final, ao opinar sobre essas alterações, a Comissão reconheceu ser o Pilot-Judgment Procedure a mais importante dentre as iniciativas para o incremento da celeridade dos julgamentos daquele Tribunal.17 Uma importante característica do “Julgamento-Piloto”, como o Incidente sob estudo, é a possibilidade de suspensão de todas as causas que versem sobre a mesma matéria 17

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BARBOSA, Andrea Carla e CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Projeto de Código de Processo Civil. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro – direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 476-478.

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por certo periodo de tempo. Tal medida, de acordo com a opinião institucional da Corte Europeia de Direitos Humanos, tem como objetivo encorajar as autoridades nacionais a encontrarem soluções satisfatórias nesse lapso temporal. Essa suspensão deve ser realizada por um período de tempo determinado, e sua efetivação depende da real atuação do Estado requerido no sentido de dar concretude às recomendações da demanda selecionada como piloto.18 A ideia central do Pilot-Judgment Procedure é proporcionar uma tutela mais célere dos direitos fundamentais dos requerentes nos casos em que há uma grande número de petições referentes à mesma questão. A espera seria muito se todos esses casos fossem apreciados individualmente. O procedimento para julgamento dos processos piloto pela Corte Europeia de Direitos Humanos vem recebendo diversas críticas da comunidade acadêmica e de outros setores da sociedade. 19 Um questionamento que tem sido feito é que a suspensão de casos em situações similares deixa os requerentes em uma situação vulnerável, em razão da necessidade de aguardar o julgamento do processo piloto. A Corte tem argumentado, em resposta, que caso não houvesse o julgamento-piloto os casos demorariam muito mais tempo para serem julgamentos individualmente, e por isso não prejuízo à celere prestação jurisdicional.20 Perceba, portanto, como se questiona esta imposição de suspensão, nos casos de julgamentos por casospilotos, como também se coloca a prova a segurança que deles possa advir. O Incidente de resolução de demandas repetitivas, do novo Código, gera suspensão e dever de obediência bastante característicos. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada: I – a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo estado ou região. II – aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 998. Não observada a tese adotada no incidente, caberá reclamação e se o incidente tiver por objeto questão relativa a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento será comunicado ao órgão ou à agência reguladora competente para fiscalização da efetiva aplicação, por parte dos entes sujeitos a regulação, da tese adotada. Tem-se colocado em dúvida, já na doutrina, o alcance desta decisão, ainda que reste claro algum efeito “erga omnes” do incidente. Leia-se: O Projeto de novo CPC não é explícito quanto ao alcance que poderá ter a decisão do incidente. (...) Surgem então duas possibilidades de interpretação para os dispositivos em foco. Afinal, a decisão tomada no incidente se aplicará tão somente aos processos pendentes à data de sua instauração ou, ao revés, valerá para todos os processos futuros que venham a reproduzir a mesma controvérsia jurídica já enfrentada e resolvida pelo Tribunal? 18

Idem. Ibidem. 20 Idem. 19

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(...) No Brasil, consoante pntuado pelo professor Leonardo Greco, se a decisão tiver eficácia restrita aos processos suspensos, ela não se assemelhará a uma tutela coletiva, porque essa eficácia será apenas inter partes. Nesse caso, a eficácia da decisão no incidente não configuraria coisa julgada, porque restrita à resolução da questão de direito. Poder-se-ia dizer que, a prevalecer esta interpretação, a disciplina do novel instituto se aproximaria daquela que rege o incidente de uniformização de jurisprudência do atual CPC (art. 476), com a particularidade de ser suscitado simultaneamente em todos os processos suspensos. Após julgamento pelo pelo tribunal, em cada processo, seguir-se-á o julgamento das demais questões de direito, assim como das questões de fato, aplicandose, quanto à questão objeto do incidente, a decisão comum.21

O que se enxerga é que aquilo que ficar resolvido a respeito da questão jurídica comum valerá para todos os demais processos, qualquer que seja o sentido em que se pronunciar o Tribunal. Inegavelmente, por tal perpectiva, a força do incidente revela-se muito maior do que a de uma ação coletiva, como também o é em relação à uniformização de jurisprudência, seja por conta da suspensão obrigatória não presente nestes, assim como ao dever de obediência inédito, quando lembrada sua presença já nas duas primeiras instâncias de entrada do Poder Judiciário.

Uma Análise Crítica das Teses Vinculantes em Grau de 2ª Instância O acesso à justiça que se tem propagado já algumas décadas no Direito brasileiro propõe um serviço jurisdicional adequado, que exige, além de um acesso formal, o respeito verdadeiro à necessidade de pacificação social, por meio do que se convencionou denominar de justo processo. Talvez, imposições jurisprudenciais, sem uma devida construção de tese abstrata a ser aplicada, generalizadamente, aos conflitos de massa não atenda a justo processo. Como dito por Leonardo Greco22, a expansão desses institutos (de padronização das decisões) tem sido apregoada como solução para o excesso de demandas e de recursos, sob o influco da equívoca e anacrônica noção de processo-objetivo, que também tem contribuído para a já criticada exaltação da força normativa da jurisprudência. Incidentes de resolução de recursos ou de demandas repetitivas florescem como a panaceia para enfrentar o crescimento incontrolável do volume de causas sem facultar a adequada colaboração dos 21

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BARBOSA, Andrea Carla e CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Projeto de Código de Processo Civil. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro – direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 478-480. 22 GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual, op. cit., p.4-5.

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interessados na escolha das questões e dos representantes do grupo, sem preocupação de assegurar que os casos-piloto sejam os mais representativos da controvérsia, sem uma análise efetivamente cuidadosa da identidade ou dessemelhança das questões envolvidas em causas que somente na aparência versão sobre os mesmos temas, e sem assegurar a todos os interessados em igualdade de condições, a possibilidade de influir no julgamento dos casospiloto. A ideia de processo-objetivo também sustenta a extensão das decisões a casos futuros, de litigantes que não tiveram possibilidade de influir no julgamento dos casos-piloto. Os princípios da isonomia e da segurança jurídica são grandes fatores utilizados como justificativa para instrumentos como o que ora buscamos investigar. A busca por uma igualdade entre jurisdicionados envolvidos em lides caracterizadas por questões jurídicas semelhantes (ou mesmo idênticas) tem norteado as últimas demandas legislativas, especialmente em seus aspectos processuais. Esta (eventual) igualdade, presente na maioria das democracias ocidentais, não é apenas um direito individual, mas também organizacional, como aqui já se disse. Justamente por isso, os sistemas de julgamentos por casos-pilotos devem ser muito bem sistematizados. Não desconhecemos a importância da isonomia. A questão é, propriamente, saber como melhor alcançar as garantias por esses instrumentos, já tidos como inevitáveis à ordem jurídica processual brasileira. Reconhecemos sua caracterização dúplice como Direito fundamental do jurisdicionado e dever institucional do juiz, encontrando na paridade de armas sua manifestação no processo civil, que é compreendida como componente autônomo da garantia de um processo justo, mas que está intimamente ligada a outras garantias, como o contraditório e o Direito de defesa.23 Essa é a ideia que se pode extrair de inúmeros documentos humanitários, como a Convenção Europeia de Direitos do Homem e as Constituições das democracias ocidentais. A importância da paridade de armas reside no seu papel de conferir legitimidade ao sistema de resolução de conflitos estruturado em determinado Estado, pois elimina insatisfações através da possibilidade de todos os interessados influirem, com idênticas chances de êxito, na cognição do magistrado.24 Pode-se recorrer às reflexões de Michael Walzer, quem, em sua teoria sobre a igualdade complexa, preocupa-se em evitar a tirania definindo limites de conversibilidade do bem de uma esfera da sociedade para a outra. E, nessa perspectiva, a tirania apontada seria essencialmente a conversão de um bem em outro quando não há conexão intrínseca entre os dois.25 23

BARBOSA, Andrea Carla e CANTOARIO, Diego Martinez Fervenza. O incidente de resolução de demandas repetitivas no Projeto de Código de Processo Civil. In: FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro – direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 436-525. 24 Idem. 25 WALZER, Michael. Esferas da Justiça. Uma defesa do pluralismo e da igualdade. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 90.

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Transportando essa concepção para as contendas judiciais e a formação dos precedentes, significa que falhas nas construções e decisões dos precedentes vinculativas gerarão, inexoravelmente, falta de isonomia e insegurança jurídica, justamente o que se pretendia salvaguardar com os instrumentos em estudo. O que se parece observar é uma eventual evolução do sistema do civil law, que representa a história da superação de uma ideia instituída para viabilizar a realização de um desejo revolucionário, que, paulatinamente, foi se descaracterizando com a força do constitucionalismo e a atuação judicial mediante a concretização das regras abertas, fazendo surgir um modelo de Estado-juiz completamente distinto do desejado pela tradição do civil law. Essa é uma crítica e preocupação a se revelar, na medida em que a característica legalista do civil law vem sendo sensivelmente modificada, no ordenamento brasileiro, com a presença cada vez maior de cláusulas abertas, o que exige dos órgãos jurisdicionais uma postura ativa na interpretação casuística. Na interpretação de cláusulas abertas, surge a inevitável discricionariedade jurisdicional no processo de concretização normativa gerando um risco de se desvirtuar em arbítrio, haja vista a possibilidade de se adotar escolhas subjetivas e arbitrárias, muitas vezes por influências externas de cunho econômico e político, por parte do julgador, o que torna a decisão judicial ilegítima.26 Observe-se, portanto, o risco que se pode estar correndo: quais seriam as consequências de uma discricionariedade exacerbada, fruto de um ordenamento demasiadamente aberto, que se vem construindo no Direito brasileiro, aliada a um sistema de construção de referências jurisprudenciais (o que o novo CPC denomina de “teses”) possivelmente falho (insuficientemente legítimo) que, de forma praticamente absoluta, vincule todos os demais órgãos, ao julgarem casos futuros, sejam em processos individuais ou coletivos, os quais, inclusive, já permanecem suspensos desde a 1ª instância, em determinadas circunstâncias. Seria adequado um poder vinculante de uma referência ilegitimamente construída, seja porque seu próprio procedimento de construção pode não estar calcado em uma identificação e seleção adequada dos casos semelhantes (ou mesmo uma apropriada identificação de um padrão racional necessário a tornar apta a referência que será seguida pelos demais julgadores), além da própria ordem jurídica em que se baseou o julgador permitir-lhe uma tirania jurisdicional aniquiladora da segurança jurídica por que aguarda a coletividade a que esta atividade jurisdicional é dirigida. Cada decisão judicial implica no exercício em grau maior ou menor de poderes discricionários por parte do juiz. Nos casos de normas com conteúdos 26

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mais definidos, esta discricionariedade se dá em menor proporção, ao passo que nas normas de estrutura particularmente abertas, o juiz será depositário de um grau mais elevado de discricionariedade, o que deve ser evitado com a adoção de critérios mais rígidos para elaboração das decisões. Diga-se, pois que, se não podemos fugir de uma nova realidade da ordem jurídica brasileira, abastecida por normas mais abertas, de que fazem parte princípios que, constantemente, servem de base a (ou mesmo se diz provocar) uma judicialização crescente em nosso país, com interferências das mais diversas no dia a dia da sociedade brasileira (e do próprio Estado) por parte dos órgãos jurisdicionais, devemos pensar em fazer uma abordagem crítica desta atividade jurisdicional, analisando a necessidade de impor-lhe a construção de referências fundamentadas em base sólidas, constituída por instrumentos capazes de estabelecer um padrão racional a se seguir. É preciso lembrar que que estes precedentes serão empregados na solução de demandas massa, em que o arbítrio pode causar prejuízos de proporções incalculáveis à sociedade. É preciso identificar boas formas de construção desses precedentes e aproximação do modelo de common law, bem como dos instrumentos destinados à sua efetivação, como o stare decisis, que consiste na obrigatoriedade da observância desses precedente. Como seria a melhor forma de preservação da segurança jurídica, e da utilização de instrumentos como o distinguishing, destinado a possibilitar o indivíduo à provocação do órgão jurisdicional alegando que determinado precedente não se ajusta ao seu caso devido a peculiaridades que apresenta, e do overruling que representa a forma de se provocar a revogação do precedente. Reputa-se como essencial estabelecer limites à suspensão e à vinculação das teses, redimensionar a possibilidade de revisão de tese e a participação da coletividade nestes incidentes, bem como a própria possibilidade de sua instauração eventualmente desmedida como está, já em 2ª instância. São alguns pontos críticos a serem levantados, relativa e mais detalhadamente tratados na conclusão abaixo.

Conclusão Afirma Carlos Alberto Alvaro de Oliveira27 que o formalismo processual pode ser caracterizado pela ideía de processo como organização da desordem, emprestando previsibilidade a todo o procedimento, significando que, se o processo não obedece a uma ordem determinada, o litígio desemboca numa disputa desordenada, sem limites ou garantias para as partes, prevalecendo ou podendo prevalecer a arbitrariedade e a parcialidade do órgão jurisdicional ou a chicana do adversário. 27

Do formalismo no processo civil. 2009, p.9.

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A influência que a sumarização da cognição causada por estes sistemas de precedentes exerce sobre o acesso à justiça deve ser apurada. Pisani28, por exemplo, frisa que, nos países de direito escrito, o acerto e justiça das decisões exigem uma ampla cognição no segundo grau de jurisdição, para aumentar a probabilidade de decisões melhores, que acresçam à cognição de 1º grau a sua crítica e até mesmo uma complementação dessa cognição.29 Parece que os sistemas de precedentes judiciais e, particularmente, o referido incidente de resolução de demandas repetitivas sumarizam a cognição de tal forma a afetar negativamente o acesso à ordem jurídica justa. É preciso questionar os valores baseados nos quais propostas como o incidente de resolução de demandas repetitivas vem sendo defendido. Como se sabe, mesmo na Alemanha, o modelo em questão foi criado de forma pontual e temporária, como salienta Andreia Carla Barbosa30. Seria adequado trazer para o Brasil um sistema tão inédito à nossa realidade? No mínimo, devemos precisar os limites de sua melhor aplicação. Evidentemente, sem a possibilidade de se esgotar a matéria por meio do presente, toma-se a liberdade de se concluir o ensaio, criticando/propondo em relação aos seguintes aspectos: Devem ser utilizados meios adequados à seleção das causas de “mesma questão jurídica”, cujo procedimento não está suficientemente claro nos artigos 976 e seguintes do novo Código de Processo Civil; o legislador deve ser mais objetivo e transparente, de forma a comunicar à sociedade/jurisdicionais quais serão os critérios, a fim de se estabelecer um padrão racional de escolha e suspensão dos processos envolvidos na matéria objeto do incidente; Propõe-se repensar a genarilidade absoluta de matérias que podem ser atingidas pelos incidentes. Pela previsão sob comentários, não há restrição alguma quanto às matérias que possam ser atingidas, o que torna o incidente excessivamente aberto e muito mais suscetível, por conseguinte, a desvios de sua finalidade de gerar maior isonomia e segurança jurídica. Para matérias processuais, direito tributário e algumas questões muito comuns em lides de massa (como fixação de índices remuneratórios, juros, dentre outros), vê-se 28

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PISANI, Andrea Proto, intervento sconsolato sulla crisi dei processi civili a cognizione piena. In: Giuliano Scarselli (coord.). Porteri del giudice a diritti delle parti nel processo civile – Atti del convegno di Siena del 23-24 novembre 2007.2010, p.50, apud Greco, op. cit, p. 19. 29 O jurisdicionado não pode ficar à mercê de um único julgamento de um único juiz, seja na apuração dos fatos, seja na apreciação das questões de direito. Além disso, há sempre omissões, esclarecimentos, observações, que podem ser mais bem apresentados, especialmente depois que as partes se deparam com os fundamentos de uma decisão desfavorável, levando o seu reexame à presença de juízes mais qualificados e experientes. 30 Op. cit, p. 427, que acrescenta: “No dia primeiro de novembro de 2005 entrou em vigor na Alemanha o Procedimento-Modelo (Musterverfahren), que não constitui (...) um instituto geral do Direito Processual, aplicável a todas as causas. Sua instituição deu-se no contexto de danos causados a milhares de investidores da bolsa de Frankfurt, e temia-se que o efeito multiplicador desse litígio abarrotasse o judiciário. Por esta razão, o legislador previo, em caráter expermental, tal procedimento, que possui prazo certo de vigência até 1º de novembro de 2010 (...)”.

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menos propensão a falhas, pela maior objetividade que lhes ronda. Para outras mais subjetivas, como direito de família e tantas outras cuja realidade do caso concreto é regularmente muito peculiar, vemos maiores dificuldades de implementação (e até mesmo respeito) aos instrumentos sob estudo; Propõe-se, por fim, repensar uma capacidade vinculativa tão absoluta, inclusive aos processos em 1ª instância, quanto a presente no novo Código de Processo Civil, reanalisando os instrumentos de revisão de teses previstos nesta mesma Lei (13.105/2015), assim como a própria forma eventualmente extemporânea de se atingir e suspender, desenfreadamente, os casos “possivelmente” semelhantes em todo o Estado ou mesmo o país, dependente da situação, muitas vezes sem ter dado sequer oportunidade de ser amadurecida a “idêntica questão de direito” objeto da tese. Este complexo método de construção da norma resultante do precedente deve ser cuidadosamente investiado, de forma a evitar as arbitrariedades judiciais identificadas atualmente na jurisdição pátria pela adoção do sistema de filtros superpostos e a jurisprudência defensiva. Concluimos, lembrando que, no Estado Democrático contemporâneo, a eficácia concreta dos Direitos Constitucional e legalmente assegurados depende da garantia da tutela jurisdicional efetiva, porque sem ela o titular do Direito, de cuja participação depende diretamente a própria existência deste Estado (democrático), não dispõe da proteção necessária do Estado ao seu pleno gozo. Como menciona Taruffo, nenhum direito existe de verdade se não está acompanhado pela respectiva tutela jurisdicional.31

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Dialogando com o Direito e a Economia para tomada de decisões pela Administração Ana Paula Caldeira1 Claudio Carneiro2

Possibilidades de Intercessão do Direito com a Economia na tomada de decisões pela Administração Pública Embora em um primeiro momento possa causar certa estranheza o diálogo entre duas disciplinas, em princípio, tão díspares, com maior acuidade se verá estas não podem ser estudadas de maneira dissociada, que são o Direito e a Economia, sobretudo para as decisões que envolvem os direitos sociais. O enfrentamento de questões e problemas sociais vistos sob a ótica dessas duas Ciências vem ganhando cada vez mais adeptos no mundo e revela um importante exercício de interdisciplinaridade na busca de soluções possíveis e adequadas. Em exórdio, já antecipando parcialmente o nosso pensamento, o que se defende é que se respostas hermeneuticamente adequadas existem3, estas não podem/devem ser buscadas tão somente no mundo jurídico sem que se analise o largo espectro de relações e consequências que advém das soluções encontradas no interior do Direito. 1

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Doutora em Direito Público na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá/RJ. Extensão em Direitos Humanos pela Universidad de Burgos (UBU) e Universidad de Sevilla, ambas na Espanha. Especialistas em Direito Público, em Direito Civil e Direito Privado. Avaliadora Ad Hoc da Revista de Direito do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito da Escola Superior de Advocacia da OAB/Barra. Membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Professora no Curso de Pós lato sensu do IBMEC. Atua profissionalmente como Oficial de Registro Civil Titular do Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais da 3a Zona Judiciária de Niterói/ RJ. Advogado Tributarista. Sócio-Fundador do Escritório Carneiro & Oliveira Advogados. Doutor em Direito pela UNESA. Mestre em Direito Tributário. Pós-Graduado em Direito Tributário e Legislação de Impostos. Avaliador Ad Hoc da Revista de Direito do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Editor Chefe da Revista de Direito da Escola Superior de Advocacia da OAB/Barra. Membro da International Fiscal Association. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário. Membro da Associação Brasileira de Direito Financeiro. Professor de Direito Financeiro e Tributário da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá, PUC/RJ e UERJ. Autor de diversas obras jurídicas e dos livros: Manual de Direito Tributário; Curso de Direito Tributário & Financeiro; Processo Tributário (Administrativo e Judicial) e Impostos Federais, Estaduais e Municipais. E acreditamos fielmente nisso em perfeito alinhamento à doutrina (por todos, Lenio Streck) esposada por aqueles que rebatem a multiplicidade de respostas possíveis sustentadas pelos defensores da Argumentação Jurídica de Alexy.

Dialogando com o Direito e a Economia para tomada de decisões pela Administração

Assim sendo, se, por um lado, o Direito tem como função regular o comportamento humano, objetivando uma coexistência social a mais pacífica possível, por outro lado a Economia objetiva precipuamente a análise das decisões diante do fato e da constatação de que os recursos existentes são escassos. Na confrontação dos elementos econômicos e jurídicos, temos que a Análise Econômica do Direito (AED) corresponde à utilização dos instrumentos normalmente usados pela Ciência Econômica na avaliação e na aplicação das normas jurídicas, mais precisamente no que concerne aos efeitos econômicos esperados em decorrência de uma norma jurídica, bem como o estudo em torno das principais consequências jurídicas em virtude de certas práticas econômicas. É também a linha de pensamento dos sociólogos Michel Crozier, Samuel P. Huntington e Jogi Watanuki4, ao ressaltarem a relevância da economia política para o centro das discussões acerca da governabilidade, inclusive no que tange à teoria da escolha pública5. Outrossim, é relevante sublinhar, a respeito da AED, que a mesma não se reduz às áreas do Direito que tradicionalmente guardam uma estreita relação com a Economia6, mas que atualmente quase todas as disciplinas do Direito vêm sendo contempladas com importantes trabalhos preparados sob a ótica da AED. As razões para que se proceda a tais tipos de estudos conjuntos foram muito bem sintetizadas na Apresentação da obra organizada por Decio Zylbersztajn e Rachel Sztajn7, assim determinadas, “Cada um de nós que atua individualmente nas respectivas áreas tende a desconhecer as contribuições das demais. A sentida necessidade de promover mudanças institucionais de fundo nos leva a repensar o isolamento, buscando estabelecer pontes conceituais e criar, por consequência, mecanismos de comunicação entre as áreas da especialidade...” O Direito ao dispor sobre regras de conduta que norteiam as relações pessoais deverá considerar os impactos econômicos que delas derivarão, os reflexos sobre a alocação de recursos e os “incentivos que influenciam o comportamento dos agentes econômicos privados”.8 Já a análise econômica deverá levar em conta a estrutura normativa em que estão situados os agentes, de maneira a não alcançar soluções imprecisas ou incorretas por não ponderar os possíveis embaraços impostos pela Ciência Jurídica aos agentes econômicos. À guisa de esclarecimento e reforço da ideia antes esposada sobre a multiplicidade de sentidos que se encerra quando nos referimos à AED, explicamos que a análise econômica pode se restringir à cognição dos efeitos de 4

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CROZIER, Michel; HUNTINGTON, Samuel P., WATANUKI Jogi. The crisis of Democracy. New York: New York University Press, 1975. p. 24. Versão eletrônica. Disponível em http://pt.scribd.com/doc/8317647/The-Crisis-of-Democracy-MichelCrozier-Samuel-Huntington-Joji-Watanuki. Acesso em 14 de novembro de 2011. 5 Explicada adiante quando especificarmos o conteúdo das quatro principais Escolas da AED. 6 Destacamos, à guisa de exemplificação, o Direito Empresarial e Direito da Regulação. 7 ZYLBERSZTAJN, Decio e SZTAJN, Rachel (Orgs.). Direito e Economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, 2ª reimpressão, p.VI. 8 ZYLBERSZTAJN, Decio e SZTAJN, Rachel. Op. Cit, p.3.

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uma tomada de decisão e de suas alternativas (quando, então, teríamos o que se costuma denominar de “economia positiva”), ou, em outro polo, pode buscar a decisão que se considera a mais apropriada para a resolução de um problema (quando se estará tratando da “economia normativa”). Tratando do tema, Jean-Paul Maréchal9 afirma que, em relação a essa cisão conceitual, “a primeira teria por função explicar os aspectos observáveis da realidade econômica enquanto a segunda emitiria juízos de valor sobre os sistemas econômicos, juízos que desembocam em recomendações de modificações pontuais ou estruturais do sistema em questão” 1011. Entretanto, para sermos fiéis ao debate, é imperioso trazer a lume as críticas corriqueiramente apresentadas em oposição aos adeptos da AED. Sustenta-se a importância da autonomia do Direito, enquanto arquétipo representativo da força normativa de um direito produzido democraticamente. De acordo com tal argumentação, não obstante as dimensões políticas e econômicas tenham forjado as características da dimensão jurídico-normativa, é importante a assunção da autonomia do Direito dentro do Estado Democrático Constitucional para que este não seja destruído pela moral, economia e política. Esta autonomia do Direito funcionaria como um escudo contra eventuais intromissões indevidas de um subsistema nos demais, sendo a sua própria condição de possibilidade. Em outras palavras, o Direito não poderia ser guiado apenas por interesses mercadológicos. Porém, sustentamos que, em alguns momentos, o intercâmbio entre esses campos de conhecimento é imprescindível, 9

MARÉCHAL, Jean-Paul. Éthique et économie, Presses Universitaires de Rennes, 2005, p.44. 10 Corroborando o aduzido acima trazemos o pensamento de Joseph Stigliz que sustenta, in verbis: “A economia positiva estuda o modo de funcionamento da economia. Os desacordos em matéria de economia positiva incidem essencialmente na escolha do modelo adequado da economia ou do mercado em questão e nas avaliações quantitativas relativas a este modelo. A economia normativa trata do caráter mais ou menos desejável de diferentes ações. Os desacordos em matéria de economia normativa incidem essencialmente nas diferenças nas escalas de valores, logo, sobre a importância a atribuir aos custos e vantagens que resultam de diferentes ações.” STIGLITZ, Joseph. Principes d’économie moderne, Bruxelas: De Boeck Université, 2000, p.22. 11 Necessário, pois, aduzir que não será o escopo desse trabalho o aprofundamento nos estudos da AED, mas a abordagem dessa teoria revela-se inexorável diante do fato de que a Economia não pode (mais!) ficar alheia a essa discussão, sobretudo por ser considerada, segundo Bruce Ackerman “o mais importante desenvolvimento na academia jurídica no século XX”. ACKERMAN, Bruce Law. Economics and the problem of legal culture. Duke Law Journal,Durham, v. 1986. n. 6, p. 929-934. Assim também se manifesta Bruno Salama ao sustentar que a AED é o “movimento de maior impacto na literatura jurídica da segunda metade do século passado”. SALAMA, Bruno Meyerhof. O que é “Direito e Economia”? In: TIMM, Luciano Beneti (Org.). Direito & Economia. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 50.

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não podendo haver, na Constituição (representação que é da força política e da superioridade axiológica), regras que não demonstrem também esse cariz dirigente e compromissório12. Se por um lado respeitamos tal linha de pensamento, que demonstra a preocupação em garantir e preservar a autonomia do Direito, em outra ponta não podemos assentir que o Direito seja uma disciplina autossuficiente, sem dialogar com outras Ciências, na busca de soluções de problemas comuns. As objeções são pertinentes e muito bem fundamentadas, mas, no entanto, não se pode perder de vista a realidade da escassez de recursos para o atendimento de todas as demandas sociais, em especial no que diz respeito ao direito à saúde, que talvez seja o direito de segunda dimensão que mais desemboque no Poder Judiciário bem como nos elementos comuns que tangenciam a Boa Governança e a Economia. Aliás, tais críticas, é bom que se revele, são rebatidas por Canotilho13 que traz para a discussão o que ele denomina de “paradoxia da autossuficência das normas jurídico-constitucionais”, especialmente no que tange ao “superdiscurso social em torno dos direitos fundamentais”. Para esse autor, é imperioso que se proceda a uma leitura crítica do constitucionalismo dirigente, e, para tanto, não se pode descartar a certeza de que o Direito é (também) política e economia. Conforme bem delineia Armando Castelar Pinheiro, “o Direito e a Economia, ao diluírem suas diferenças, tornam-se essenciais um para o outro14”. Especificamente em relação ao direito à saúde, Canotilho15 é expressamente receptivo à incorporação de outras fontes de saber para a compreensão do Direito. Oportuno, assim, é enriquecer a pauta de discussão e trazer, de maneira breve e incidental, os argumentos esposados pela linha de pensamento denominada de Análise Econômica de Direito. A AED é o movimento surgido de maneira embrionária na Universidade de Chicago na década de 1960, e que teve, por escopo principal, importar referenciais da Ciência Econômica para trazer contribuições no enfrentamento de problemas atinentes ao Direito. Entretanto, esclareça-se que tal movimento 12

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Tentaremos demonstrar no decorrer do presente trabalho que, ao contrário do que se argumenta, outros campos cognitivos (Economia e Filosofia) podem ser aliados ao Direito na busca de soluções para problemas que desembocam no cenário jurídico. No caso da Economia, que pelo instrumental técnico que abrange, pode contribuir para a análise econômica das decisões (subjetivas) que já vem sendo levantadas em diversos segmentos doutrinários, e que não obstante não se nomine tais estudos de AED, e ainda assim o são. 13 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Direito Constitucional como ciência de direcção – o núcleo essencial de prestações sociais ou a localização incerta da socialidade (contributo para a reabilitação da força normativa da “Constituição Social”). In: Direitos Fundamentais Sociais. (Coords. J.J Gomes Canotilho; Marcus Orione Gonçalves Correia, Érica Paula Barcha Correia). São Paulo: Saraiva, 2010. p. 13. 14 PINHEIRO, Armando Castelar. Direito, Economia e Mercado. Rio de Janeiro: Campus Elsevier, 2005. p. 32. 15 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O Direito Constitucional como ciência de direcção. Op.Cit. p. 29.

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não foi uníssono, surgindo, a partir da Escola de Chicago, outras correntes16, mesmo em sentidos opostos, para a tentativa de resolução do mesmo problema ou caso concreto17. Passemos, então, de uma maneira bastante breve, a mencionar as principais escolas da AED e as diversas formas de abordagem pelas quais estas se alinharam. Relativamente recente, e como decorrente do artigo publicado, há cinquenta anos, por Ronald Coase18, a AED possui quatro vertentes principais, a saber. Em primeiro lugar a Escola Neoinstitucional, assim denominada em razão de sua ligeira semelhança com o pensamento dos economistas “institucionalistas” (ou “institucionais”) do princípio do Século XX, tem como principal elemento definidor o estudo a respeito dos custos de transação e os custos da agência. Tendo sido deflagrado a partir dos escritos de Ronald Coase no que concerne aos custos de transação, os neoinstitucionalistas sustentam que todas as transações possuem um custo, uma vez que os participantes utilizam-se de tempo e de recursos os mais variados para os fins de alcançarem as informações necessárias para a formulação e o desenvolvimento dos seus planos, negociais ou não. Uma segunda linha de pensamento que se propõe a estudar essa temática é a Escola de Chicago, surgida na Universidade americana de mesmo nome, é considerada como a mais importante dentro da AED19, e que tem como um dos vetores mais relevantes de sua pesquisa a teoria da análise marginal às decisões jurídicas. Considerando-se, então, a relevância da análise marginal para a exata compreensão das ideias desenvolvidas pela Escola de Chicago, faz-se mister uma pequena explicação do que se trata a “análise marginal”20. Esta significa uma 16

Que pela proposta da Tese e para sermos fiéis à linha de pesquisa desta Instituição que ora representamos como discente, falaremos bem brevemente sobre as Escolas da AED. 17 Conforme Morais da Rosa e Aroso Linhares: “A Law and Economics procura analisar estes campos desde duas miradas: a) «positiva»: impacto das normas jurídicas no comportamento dos agentes econômicos, aferidos em face de suas decisões e «bem-estar», cujo critério é econômico de «maximização de riquezas»; e, b) «normativa»: quais as vantagens (ganhos) das normas jurídicas em face do «bem-estar social», cotejando as consequências. Dito de outra maneira, partindo da racionalidade individual e do «bem-estar social» - maximização de riqueza, - busca responder a dois questionamentos: a) quais os impactos das normas legais no comportamento dos sujeitos e Instituições; e b) quais as melhores normas.” ROSA, Alexandre Morais da; LINHARES, José Manuel Aroso. Diálogo com a Law & Economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. pp. 55 e 57. 18 COASE, Ronald H. The problem of Social Cost. In: 3.Journal Law & Economics. 1 (1960), no entanto publicado em 1961. 19 Até mesmo pela enorme produção científica e literária sobre o assunto. 20 Assim, por exemplo, no estudo para um concurso público, um candidato tem uma série de disciplinas e assuntos a pesquisar. Desta maneira, a escolha em estudar mais tempo (uma hora a mais) Direito Constitucional, em detrimento do Direito Administrativo (disciplina que passaria a estudar uma hora a menos em razão da mudança no ritmo de estudo do Direito Constitucional), corresponde ao que na Economia se denomina de decisão marginal.

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ponderação entre os custos comparados com os benefícios, relacionados a uma questão de quantificação. Paul Krugman21, em seus estudos a respeito do tema, menciona que as decisões marginais envolveriam um trade-off, isto é, as situações que necessariamente foram postas de lado a partir da eleição de um caminho (uma solução jurídica, a escolha de um bem etc.) em detrimento dos demais. Em terceiro lugar temos a Escola da Decisão Pública (ou da “Public Choice”, também denominada “Escola de Virgínia”), que teve como corifeu James Buchanan que centra suas atenções e a sua teoria da “maximização dos próprios interesses” na análise econômica aplicada à tomada de decisões fora do mercado (non market decision making). Sustenta-se aqui que cada ator toma suas decisões levando em conta a maximização dos seus próprios interesses, ainda que a conjugação de inúmeros interesses particulares possam atender a certas necessidades relacionadas a interesses coletivos. Entretanto diante da ciência de que os interesses coletivos não necessariamente estão alinhados aos interesses públicos, tem-se que a “public choice” sublinha justamente os embaraços encontrados para se comutar preferências privadas a preferências públicas, sobretudo pela dificuldade de eleição de um método de escolha (unanimidade ou maioria) legítimo22. Por fim23, citamos a Escola de Yale, cujo expoente é Guido Calabresi, sendo importante salientar que enquanto a Escola de Chicago defende abertamente a adoção da assim conhecida como “economia positiva”, a Escola de Yale segue uma linha de pensamento diversa, defendendo a aplicação de conceitos e valores ligados à “economia normativa”. Em decorrência disto, de acordo com os adeptos das ideias preconizadas pela Escola de Yale, ao invés de meramente traçar os efeitos de um programa, impende-se comparar o grau em que as várias propostas atendem aos objetivos pretendidos, assim como é preciso que seja realizada a valoração dos reflexos advindos da adoção de cada uma das possibilidades em questão, fazendo-se uso, para tanto, dos mais variados modelos econômicos24. 21

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O mencionado autor afirma o seguinte: “Elas envolvem um trade-off na margem; comparar custos e benefícios de um pouco mais em uma atividade versus um pouco menos. O estudo de tais decisões é conhecido como análise marginal”. KRUGMAN, Paul e WELLS, Robin. Introdução à economia / Helga Hoffmann (trad.). Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p.7. 22 Jean-Paul Maréchal, Op. Cit., p.28. 23 E para não nos estendermos demais nas minúcias da AED, apenas trazidas à baila pela relevância no desenvolvimento do tema. 24 Entretanto dentro desse espectro esclareça-se que, a rigor, não existe antagonismo entre a “economia normativa” e a “economia positiva”, mas, conforme oportunamente acentuado por Jean-Paul Maréchal, não se pode negar que “apesar da sua perfeita complementaridade, a economia positiva e a economia normativa não partilham o ensino e a investigação econômica em pé de igualdade”. Jean-Paul Maréchal, Op.Cit., p. 46. Na página seguinte, em interessante quadro comparativo, Maréchal refere-se à clássica categorização de Emmanuel Kant (In: Fundamentos da Metafísica dos Costumes) em imperativos hipotéticos e imperativos categóricos, para afirmar que estes pertencem respectivamente à categoria dos enunciados descritivos e àquela aos enunciados normativos, afirmando expressamente que, no “campo da análise econômica, os imperativos da economia positiva são imperativos hipotéticos (...), os da economia normativa são imperativos categóricos (...)”. 25 SALAMA, Bruno Meyerhof. Op. Cit. p. 49. 26 Isto porque enquanto o Direito é exclusivamente verbal, a Economia é também matemática; se o Direito é preponderantemente hermenêutico, a Economia é empírica; O Direito tem como elemento volitivo a Justiça, a Economia, pretende ser “científica”. O foco da Economia (e seus aspectos críticos) é o custo, e o Direito centra suas forças na legalidade. LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Sociais: Teoria e prática. São Paulo: Método, 2006. p. 271. Fato este também devidamente ressaltado no artigo de Salama, supracitado. SALAMA, Bruno Meyerhof. Op. Cit. p. 49. 27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição. Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Coimbra: Coimbra Ed., 1994 .p. 11 28 STRECK, Lenio Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan de. 5. ed. rev. e ampl. Ciência Política e Teoria do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 99. 29 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. São Paulo: RT, 1999. p. 114. 30 LOPES, José Reinaldo de Lima. Direitos Sociais: Teoria e Prática. São Paulo: Método, 2006. p. 271.

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Sendo assim, os critérios econômicos não podem isoladamente ser a prima ratio a conduzir o agir Administrativo, Estatal (Político, portanto) e Jurídico. Isto porque, conforme pontua José Reinaldo de Lima Lopes31, “pode ser que seja mais eficiente economicamente abandonar parte da população à própria sorte32, eliminar sujeitos não desejados, impedir acesso de etnias a certos lugares e assim por diante”. Tal raciocínio é corroborado pela doutrina de Kant33, que ensina que “no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade”. Necessário frisar que se deve desconstituir o senso comum de que a utilização da Economia no Direito está necessariamente dissociada de considerações éticas, o que não procede diante da multiplicidade de Linhas de pensamento dentro da AED34. Por tudo isso é que assume importância ímpar a discussão acerca do grau de interconexão possível entre esses universos, e, igualmente o grau de incerteza das decisões judiciais no campo econômico e o modo de reduzir a complexidade desse efeito temporal. Mas nem por isso pode-se descartar as contribuições que a Economia possa apresentar na solução dos vários problemas jurídicos como a má governança enquanto obstrutora dos direitos fundamentais-sociais, e, em especial, no que tange ao direito à saúde, o quanto de nocivo para a Democracia brasileira podem ser as decisões produzidas de maneira ad hoc que tratam sobre tal direito, sem avaliar os reflexos macroeconômicos destas para a própria (in)efetividade do direito à saúde, se enxergadas globalmente e não só nos estreitos limites de uma determinada decisão que esteja versando sobre um caso em particular. 31

Ibidem. p. 271/272. Raciocínio também defendido por Avelãs Nunes. AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Op. Cit. p. 84. 33 KANT, Immanuel. Op. Cit. p. 65. 34 Citando Posner, “(...) A análise econômica do Direito possui tantos aspectos positivos (isto é, descritivos) quanto aspectos normativos. Seu objetivo é tentar explicar e prever o comportamento dos grupos que participam do sistema jurídico, além de explicar a estrutura doutrinal, procedimental e institucional do sistema. Mas também busca aperfeiçoar o Direito, ao assinalar as consequências involuntárias ou indesejáveis das leis vigentes ou dos projetos de lei e propor reformas práticas. (...) as pessoas sem conhecimento de economia tendem a associar a economia a dinheiro, capitalismo e egoísmo, a uma concepção redutivista e irrealista das motivações e do comportamento do homem, bem como a um espantoso aparato matemático e uma queda por conclusões cínicas, pessimistas e conservadoras. A economia ganhou o apelido de ‘ciência maldita’ devido à tese de Thomas Malthus de que a fome, a guerra e a abstinência sexual eram os únicos meios de conter o crescimento da população e a falta de alimentos. A essência da economia, porém, não consiste em nada disso. É, em vez disso, algo extremamente simples, ainda que a simplicidade seja enganadora. O simples pode pode ser sutil e pouco intuitivo. Sua antítese é o ‘complexo’, não o ‘difícil’.” POSNER, Richard A. Fronteiras da Teoria do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 9. 32

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A Eficiência Econômica Prestados esses necessários esclarecimentos, pode-se afirmar, então, que a Escola de Chicago parte do suposto de que, antes de tomar uma determinada decisão, todo interessado fará uma análise (e cálculo) entre os benefícios que a decisão em certo sentido lhe proporcionará e os custos em que deverá incorrer para que possa obter o benefício esperado. Afirmando que a principal função do Direito, em uma perspectiva de possibilitar a maximização de benefícios, deve ser a de alterar os incentivos porventura existentes, a Escola de Chicago adota a ideia de eficiência segundo o critério de Hicks-Kaldor, também conhecida como da “maximização de riqueza ou do bem-estar”. Seguindo-se a teoria desenvolvida por Hicks-Kaldor, uma mudança jurídica será eficiente, e portanto justificável, sempre que as vantagens obtidas, pelos que saíram ganhando da situação, for superior às desvantagens suportadas pelos “perdedores”.35 Dentro da Escola Econômica Neoclássica, três são os pilares de sustentação, a saber: a escolha racional, o equilíbrio e a eficiência. Assim sendo, a principal relevância dos estudos da AED é, em grande parte, o de refletir sobre as consequências que podem ser razoavelmente esperadas diante de uma determinada escolha feita. Amartya Sen36 é contundente ao afirmar que a eficiência (econômica) não pode ser analisada sem igualmente estar conglobada com a equidade, valor tão caro ao Direito. Ressalte-se, por oportuno, que a eficiência não deve ser assimilada tão somente à maximização de lucros, mas sim como o caminho que ultimará na persecução dos fins colimados pelo Estado37. O conceito de eficiência, sob esse prisma, está indiscutivelmente impregnado dos valores finalísticos que estão descritos no dispositivo legal. 38 35

Cf. Richard A. Posner, ao tratar do tema, cuida da utilização deste tipo de eficiência como um critério para estabelecer as regras dos precedentes nas decisões judiciais, ligando a ideia de consentimento ao que denominou de “compensação ex ante”. Baseando-se no argumento de que será maior a maximização de riqueza em sociedades com mercados abertos e livres, comparativamente com as sociedades fechadas, o autor mencionado afirma que o Direito que envolve os precedentes judiciais representa um mecanismo de preços designado para estabelecer uma designação eficiente de recursos no sentido de Hicks-Kaldor. POSNER, Richard. A. Economic analysis of Law, 5. ed., Harvard University Press, 2001. p. 99 et al. Este entendimento parece ser também o adotado, no Brasil, pelo Supremo Tribunal Federal, mormente nas atuais questões que envolvem repercussão geral, súmulas vinculantes, entre outras. 36 SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 161. 37 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Interpretação Consequencialista e Análise Econômica do Direito Público à luz dos princípios constitucionais da eficiência e economicidade. In: Vinte anos da Constituição Federal de 1988 (Coord. Daniel Sarmento, Cláudio Pereira Souza Neto e Gustavo Binembojm) Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 297. 38 Conforme Alexandre Aragão, “as necessidades da eficiência, na qual está contida, como veremos, a economicidade, não devem ser solucionadas pelo menosprezo à lei (aqui,

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A legalidade abandona seu caráter meramente formal merecendo um redimensionamento que, do mesmo modo, valorize os objetivos que devem ser perseguidos pela Administração Pública no Estado Democrático de Direito39, que não só deve buscar a realização dos fins coletivos, mas também o desempenho de tais atividades de maneira que se revele menos onerosa para o Estado, situação expressa como economicidade. O caráter da economicidade, conforme salienta Diogo Figueiredo Moreira Neto, não obstante tenha sido engendrado para utilização na fiscalização contábil, financeira e orçamentária40, deve ser entendido como verdadeiro princípio geral do Direito Administrativo, tendo em vista o seu grau de importância para a gestão interna da Administração Pública41. Na verdade, o que tal posicionamento sustenta é a releitura do princípio da legalidade, que seria, além de formal, finalística e material. No que tange ao estudo dos direitos sociais mais que em qualquer outro segmento do Direito, é imprescindível a discussão sobre o grau de interferência da Economia no Direito, propiciando uma abertura metodológica quanto às formas de lidar com a escassez de recursos, bem como no plano jurisdicional, com o modo de produção de respostas dos juízes quando tais direitos são judicializados. Enfatizando o que já foi exposto anteriormente, essa opção não deriva da (inexistente) sobrevalorização da Economia sobre o Direito (ou vice-versa), mas sim da imperiosa tomada de consciência dos operadores do Direito que devem proceder a uma hermenêutica que considere os aspectos econômicos, o que possibilita fomentar justamente os ditames prelecionados na Constituição. Apesar das críticas ferrenhas formuladas por autores de peso, como é exemplo o Dworkin42, que repelem o consequencialismo como ferramenta

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naturalmente, entendida como “bloco de juridicidade”), mas sim pela valorização dos seus elementos finalísticos. É sob este prisma que as regras legais devem ser interpretadas e aplicadas, ou seja, todo ato, normativo ou concreto, só será válido ou validamente aplicado, se, ex vi do Princípio da Eficiência (art. 37, caput, CF), for a maneira mais eficiente ou, na impossibilidade de se definir esta, se for pelo menos uma maneira razoavelmente eficiente de realização dos objetivos fixados pelo ordenamento jurídico”. Idem, ibidem. p. 300. 39 Economicidade que, para parcela da doutrina, é erigido inclusive a subprincípio da eficiência. Idem, ibidem. p. 297. 40 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Art. 70, caput: “A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.” (grifo nosso) 41 Idem, ibidem. p. 301. 42 Para o autor, trata-se de decorrência de outra corrente denominada de “pragmatismo jurídico” e que seria capitaneada pelo seu maior adversário, Richard Posner, a quem ele inclusive chama de “cínico dogmático”. DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 120.

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importante a ser utilizada na resolução dos casos concretos, ainda assim fazse necessário buscar os elos entre a eficiência econômica e a eficiência jurídica. Criticando a utilização da eficiência econômica como critério a ser utilizado, o autor argumenta que a eficiência econômica nem sempre está associada à compreensão de bem-estar43. Porém rebatendo as críticas de Dworkin com Richard Posner (seu maior antagonista), e ainda defendendo – ainda que circunstancialmente – a utilização de elementos de eficiência econômica, argumenta-se que: (...) o trabalho do economista no que se refere às políticas e práticas acerca do interesse público, tanto as vigentes quanto aquelas que se propõem, consiste essencialmente em advertir-nos sobre as consequências que os nãoeconomistas tendem a negligenciar e que, frequentemente, embora nem sempre, são adversas ou no mínimo onerosas. Essa aplicação da economia deve ser bem-vinda pelos advogados que julguem importante descobrir quais são as consequências reais das doutrinas e instituições jurídicas, inclusive aquelas que os profissionais do Direito consideram intocáveis44.

Porém, antes de tudo, é preciso que se verifique como a Constituição Federal trata sobre a eficiência econômica, ou se ao revés, e se é possível extrairse, do seu próprio texto, conteúdos semânticos que amparem interpretação que privilegie também a eficiência econômica.

A Eficiência Jurídica Como se sabe, a Constituição Federal prevê, no seu art. 3745, caput, mandamento expresso para que a Administração Pública, em todas as esferas da Federação e dentro dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), observe os princípios norteadores da atividade pública, entre eles o da eficiência. O princípio da eficiência não foi albergado na Constituição por obra do constituinte originário, mas foi introduzido no sistema jurídico Constitucional por força da Emenda nº19/98, e que, segundo a doutrina, “consubstancia a exigência de que 43

“Uma descrição mais fácil e geral do pragmatismo consiste em apresentá-lo como uma teoria da decisão judicial: seus postulados sustentam que, para decidir os casos que se lhes apresentam, os juízes devem recorrer a um estilo consequencialista e voltado para o futuro. Eles devem tomar qualquer decisão que seja melhor para o futuro da comunidade sem levar em consideração as práticas do passado enquanto tais. Qualquer versão mais precisa de pragmatismo deve especificar uma concepção particular de consequencialismo:deve especificar o modo de decidir quais seriam as melhores consequências de uma decisão.” Idem, ibidem. p. 32. 44 POSNER, Richard A. Fronteiras da Teoria do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 33. 45 Constituição da República de 88, art. 37, caput - A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da união, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

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os gestores da coisa pública não economizem esforços no desempenho dos seus encargos, de modo a otimizar o emprego dos recursos que a sociedade destina para a satisfação das suas múltiplas necessidades; numa palavra; que pratiquem a ‘boa administração’, de que falam os publicistas italianos”.46 Há que se questionar, então, a partir dessas breves definições, se é possível encontrar “espaços de convivência” entre os critérios de eficiência econômica, ou se, ao contrário, tais conceitos são absolutamente inconciliáveis. Para encontrarmos resposta a essa questão, inevitável recorrer-se às lições de Gadamer e sua contribuição à guinada interpretativa (ou virada hermenêutica) cuja premissa principal se escora na ideia da onipresença da interpretação. É a partir da hermenêutica filosófica de Gadamer que a reflexão do Direito sob a direção da interpretação enquanto estrutura ‘fundamental da existência finita e inscrita na história’47. Assim sendo, todo conceito e definição do Direito deve estar indissociavelmente vinculado ao elo da interpretação (elemento hermenêutico) que entenda que tal momento não é algo dado e realizado externamente. Impende recordar que o próprio exercício hermenêutico exige do intérprete um esforço de traduzir os signos da linguagem, conferindo-lhes um sentido específico (Sinngebung)48. Este sentido que não pode ser atribuído de modo arbitrário pelo intérprete, como se texto e norma estivessem dissociados, já que o movimento de viragem hermenêutica funda como seu principal pilar, justamente, a superação do paradigma da filosofia de consciência.49 A interpretação, pois, que dentro desse novo prisma hermenêutico só se revela após a compreensão, que exige como condição de possibilidade a précompreensão, esmiuçada sobre a tríade da posição prévia, visão prévia e concepção prévia50, formando então uma unidade inseparável.51 46

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MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 834. 47 Idem, ibidem. p. 396. 48 STRECK, Lenio Luiz. Verbete sobre “Hermenêutica Jurídica” In: Dicionário de Filosofia do Direito. Coord. BARRETO, Vicente de Paulo. Porto Alegre: Unisinos, 2006. p. 430. 49 Idem, ibidem. pp. 431-432. 50 Idem, ibidem. p. 431. 51 Gadamer define: “A interpretação não é um ato posterior e ocasionalmente complementar à compreensão. Antes, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a forma explícita da compreensão. Relacionado com isto está também o fato de que a linguagem e a concpetualidade da interpretação forma reconhecidas como um momento estrutural interno da compreensão; com isso o problema da linguagem que ocupava uma posição ocasional e marginal passa a ocupar o centro da filosofia.” GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 406. Também em Duque-Estrada:“Essa é, segundo Gadamer, a estrutura universal da experiência hermenêutica. Será sempre uma ilusão supor que a lei, esteja, em si mesma, já disponível para todos, antes de toda e qualquer aplicação que se faça dela.” DUQUE-ESTRADA, Paulo César. Verbete sobre “Hans-Georg Gadamer”. In: Dicionário de Filosofia do Direito. Coord. BARRETO, Vicente de Paulo. Porto Alegre: Unisinos, 2006. p. 373.

Ana Paula Caldeira e Claudio Carneiro

Contudo, é imperioso aduzir que a pré-compreensão (ou pré-conceito) identifica-se como avaliação que precede à decisão, mas não exprime “falso juízo”, consubstanciando na perfeita integração do intérprete ao texto, como aliás adverte o próprio Gadamer52. A partir desse trajeto hermenêutico, onde se busca não a vontade do legislador (muitas vezes impossível de ser alcançada), mas ao menos o ambiente no qual foi projetada a norma em comento, é que se deve trazer ao debate as condições nas quais foi elaborada a Emenda Constitucional nº 19, datada de 04 de junho de 1998. A Emenda em comento, que inseriu a eficiência como um dos vetores interpretativos a partir dos quais a Administração Pública deve ser analisada, surgiu sob a égide do Governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, que procurou instituir modelo público de administração com feitio mais gerencial53. Tal emenda (também denominada de “Reforma Administrativa”) surge com a busca de uma gestão administrativa comprometida com a modernização e o enxugamento da máquina pública54 e com modelo que indicava mudança política que intentava modelos de gestão mais ágeis e eficientes. Paralelamente a esse processo político, cabe à Administração Pública dar cumprimento às metas que conduzam a esse novo perfil estatal55, necessitando, para tanto, de alterações legislativas e mesmo constitucionais. A busca, pois, era pela modernização da Administração e melhoria do funcionamento visando a resultados de eficiência, transparência e rapidez da organização estatal. Não obstante outros temas tenham sido objeto de tal norma, o grande contributo da Emenda foi a incorporação expressa do princípio da eficiência (que traz ínsita a noção de economicidade) para o ambiente da Administração Pública, sendo a pedra de toque desse novo modelo estatal. Muito embora parte significativa da doutrina56 entenda que o princípio da eficiência “determina que a Administração deve agir de modo rápido e preciso para introduzir resultados que satisfaçam as necessidades da população” contrapondo-se às ideias de lassidão, omissão e apatia institucional, é importante mencionar que já começa a surgir entendimento57 que associa a eficiência não somente a um dever de agir, mas 52

GADAMER, Hans-Georg. Op. Cit. p. 407. E frise-se, que a autora não está, com isso, se alinhando às posições políticas do exPresidente, mas sim trazendo as premissas nas quais a Reforma Administrativa fora implementada. 54 Para muitos identificada como o (mau) presságio do modelo “neoliberal”. 55 Que ainda sofria com o rescaldo da má gestão do Presidente Collor. 56 Por todos, citamos Odete Medauar. MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.145. 57 VITTA, Heraldo Garcia, et alii. Apontamentos da Reforma Administrativa. In: Boletim de Direito Administrativo, fev.-1999, pp. 106-117. 53

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Dialogando com o Direito e a Economia para tomada de decisões pela Administração

sobretudo que a atividade estatal esteja associada a elementos de economicidade e que esteja alinhada ao denominado “custo-benefício” da atividade administrativa58. Conforme Dworkin59 adverte, é preciso antes de tudo, realizar uma “interpretação construtiva”, o que significaria atribuir o melhor sentido possível ao texto a partir do evento em que o mesmo se deu. Segundo o autor60, há que se fazer uma distinção entre intenção semântica e expectativa política. E, a partir dessa interpretação, é perfeitamente possível conciliar os conceitos de eficiência econômica e jurídica dentro do ordenamento constitucional, especialmente se for considerada a Ementa61 resultado da alteração do texto, em que se verificou que o cenário do novel dispositivo surgiu sob a égide de política que procurou conferir contornos alinhados com a gestão pública. Ainda mais porque conglobar os critérios de eficiência econômica com o de eficiência jurídica, quando a atividade for desempenhada judicialmente, seria justamente concretizar aquilo que caracterizaria um “bom Judiciário”62: independência, a força (meios hábeis a implementar as decisões), e a eficiência gerencial, que implica não só a boa administração dos seus próprios órgãos (atividade-meio), mas também a eficiência conteudística das soluções apresentadas (atividade-fim).

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Incluídas aqui as acepções de qualidade do serviço e produtividade, lembrando que (conforme o autor supramencionado) a análise da eficiência não deve ser encarada apenas pelo aspecto econômico ou pela via menos dispendiosa para o ente estatal. 59 DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. Op. Cit. p. 172. 60 Para essa distinção, considera-se como intenção semântica aquilo que os constituintes queriam dizer, enquanto a intenção política seria aquilo “que eles esperavam que seria a consequência de suas afirmações”. Idem, ibidem. p. 178. 61 Emenda Constitucional nº 19 de 1998 - EMENTA: Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública, servidores e agentes políticos e custeio de atividade a cargo do Distrito Federal, e dá outras providências. Disponível: http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/ emc%2019-1998?OpenDocument Acesso em 21 de fevereiro de 2012. 62 Segundo o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial apresentado pelo Banco Mundial em 1997. PINHEIRO, Armando Castelar. Direito e Economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto? In: Direito & Economia. TIMM, Luciano Benetti. (Org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 23.

A Impossibilidade de se assumir um Cargo Público frente a uma Pretérita Condenação: Considerações acerca de uma dupla Estigmatização José Maria Pinheiro Madeira1 Patrícia de Vasconcellos Knöller2 Resumo Este trabalho tem por objetivo realizar uma breve reflexão acerca do instituto da investigação social como etapa de concurso público, em sede de algumas decisões dos Tribunais Superiores, enfrentando reprovações de candidatos em situações conflitantes com 1

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Procurador do Legislativo (aposentado). Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Doutor Honoris Causa em Ciência Política e Administração Pública pela Emíll Brunner University. Doutor em Filosofia da Administração Pública e Pós-Doutorado em Direito Público pela Cambridge International University (Inglaterra). Pós-Doutorado em Ciência da Educação pela Cambridge International University. Pós-Doutorado em Administração Pública pela Emil Brunner World University (Flórida/USA). Integrou diversas bancas de Concurso Público. Membro Titular da Banca Examinadora do Concurso de Delegado do Rio Janeiro. Membro Integrante da Banca Examinadora de Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro da Banca de Concursos Públicos do DETRAN, do IBAMA e da Agência Nacional de Saúde, da Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais (nível Superior), do Estado de Sergipe para o Cargo de Advogado, do Estado de Minas Gerais para o Cargo de Gestor Ambiental, no Concurso Público do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima (nível Superior), no Concurso Público para o cargo de Procurador do Estado do Espírito Santo, no Concurso Público da Agência Nacional de Saúde para o Cargo de Atividade Técnica de Suporte – Direito, no Concurso para os Cargos de Escrivão e Investigador de Polícia Civil do Estado de Mato Grosso, no Concurso Público da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe para o Cargo de Delegado, no Concurso Público da Polícia Rodoviária Federal, no Concurso Público do Estado do Espírito Santo para o Cargo de Advogado, no Concurso Público para o Estado da Bahia para o Cargo de Auditor Fiscal. Membro de diversas associações de cultura jurídica, no Brasil e no Exterior. Professor Emérito da Universidade da Filadélfia. Professorpalestrante da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro - EMERJ. Professor Coordenador de Direito Administrativo da Universidade Estado de Sá. Professor da Fundação Getúlio Vargas. Professor integrante do Corpo Docente do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense. Membro Titular do Instituto Ibero-Americano de Direito Público. Membro Efetivo do Instituto Internacional de Direito Administrativo. Presidente da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores. Advogada. Especialista em Direito Público. Professora Universitária de Direito Administrativo nos cursos de Graduação e Pós-Graduação da UNESA. ProfessoraPalestrante da EMERJ e Parecerista na área do Direito Administrativo. Membro da Academia Nacional de Juristas e Doutrinadores.

A Impossibilidade de se assumir um Cargo Público frente a uma Pretérita Condenação: Considerações acerca de uma dupla Estigmatização

determinados princípios jurídicos. A matéria não é pacífica, trazendo-se um contraponto de opiniões e entendimentos, demonstrando-se que a questão da estigmatização social do condenado é prevalente no sistema penal. Podendo-se falar numa certa tendência dos Tribunais Superiores para reconhecer a reprovação do candidato em face de situações que coloquem em xeque funções primordiais do Estado, como a Segurança Pública, e uma conduta desviante pretérita deste candidato, de modo a atuar na preservação dos interesses da Administração Pública e da sociedade. Palavras-chave: Investigação social; concurso público; conduta pretérita; estigmatização. Abstract This work brings a brief reflection about the institute of social research as public tender stage, in place of some decisions of the Superior Courts, facing disapproval of candidates in conflicting situations with certain legal principles. The question is not peaceful, bringing up a counterpoint of opinions and understandings, demonstrating that the question social of the stigmatization of the condemned is prevalent in the penal system. Being able to tell a certain trend of the Superior Courts to recognize the applicant’s disapproval in the face of situations that put in check main functions of the State, such as Public Security, and a past deviant conduct this candidate, in order to act in preserving the interests of the Public Administration and of the society. Keywords: Social research; public tender; past conduct; stigmatization.

Introdução Ao tratar do tema concurso público, verifica-se uma série de requisitos necessários para o ingresso a uma determinada instituição e a possibilidade de se assumir o cargo. Um deles é ausência de qualquer antecedente criminal, porém, tal exigência demonstra-se desarrazoada e preconiza uma grande estigmatização ao ex-presidiário. O Direito Penal possui uma dupla vertente que é exteriorizada através do nosso sistema jurídico criminal. Segundo Cezar Roberto Bitencourt, a pena tem o condão de “facilitar e regulamentar a convivência dos homens em sociedade” e “proteger de eventuais lesões determinados bens jurídicos, assim considerados, em uma organização socioeconômica específica” 3. Deste modo, há a existência de uma prevenção geral, que pode ser tanto positiva quanto negativa. Há também a possibilidade de tal prevenção ser especial, isto é, não atinge a toda a sociedade, mas apenas a determinado grupo. Ressalta-se que a prevenção especial positiva está relacionada à ressocialização do delinquente e a não estigmatização em virtude da pena que lhe foi cominada. É isto que ensina o referido autor e será tratado a seguir. Certo é que a prisão possui uma função também ressocializadora, porém, nas sabidas condições atuais, o sistema encontra-se falho e é preciso a complementação de um acolhimento social para que tal reinserção seja de fato 3

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BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. v. 1. 11 ed. São Paulo: Saraiva,2007.p.80.

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concretizada. Tal afirmação se desdobra em várias situações, uma destas pode ser verificada através do trabalho, uma vez que ao ingressar na prisão, após o cumprimento de pena, é quase inviável que o ex- presidiário consiga trabalho, pois a sociedade continua tendo uma visão estigmatizante e intrinsicamente punitiva. O trabalho é entendido como fonte de realização humana para Karl Marx, enquanto categoria fundante do ser social. Isto porque é através dele que o homem se exterioriza, através do trabalho o homem transforma a si mesmo e “quando se fala do trabalho, está-se tratando, imediatamente, do próprio homem” 4. Faz-se, para tanto, importante ressaltar o entendimento de Júlio Mirabete acerca do trabalho: “Exalta-se seu papel de fator ressocializador, afirmando-se serem notórios os benefícios que da atividade laborativa decorrem para a conservação da personalidade do delinquente e para a promoção do autodomínio físico e moral de que necessita e que lhe será imprescindível para o seu futuro na vida em liberdade” 5. Logo, em se tratando de um indivíduo ao qual seja atribuída uma pena, este sofrerá de um permanente rotulacionismo. Dessarte, explica Vera Malaguti que “os norte-americanos trabalharam um conceito chamado rotulacionismo, o sistema penal cria rótulos” 6. Assim, o status do delinquente seria produzido pelos efeitos estigmantizantes do sistema penal. Tal ideia surgiu com a criação de um novo paradigma criminológico conhecido como labeling approach. Este significa enfoque do etiquetamento, e tem como tese central a ideia de que a criminalidade é resultado de um processo de imputação, “a criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela Polícia, pelo Ministério Público e pelo Tribunal Penal, pelas instâncias formais de controle social” 7. Um dos modos de ser estigmatizado é o envolvimento em processos criminais como parte ré, mesmo que não tenha praticado um ato criminoso, ao que Becker afirma que “algumas pessoas podem ser rotuladas de desviantes sem ter de fato infringido uma regra” 8, entendimento que se pode aplicar aos antecedentes criminais, que estigmatizam o infrator, muitas vezes de forma perene e irremediável. A ideia, portanto, é que os indivíduos que já passaram por uma instituição prisional ficam marcados e praticamente inaptos a viverem em sociedade. É esta noção trazida por Goffman, quando demonstra o olhar da sociedade frente a um ex detento, pois “acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Com base nisso fazemos vários tipos de discriminação, 4

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7

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MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Bomtempo, 2004, p. 89. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p.87. MALAGUTI, Vera. A criminalização da pobreza Entrevista veiculada in Unisinos.br (revista On Line). Disponível em: . HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 101-102. BECKER, Howard. Outsiders – Estudos de Sociologia do Desvio, Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 22.

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através das quais efetivamente, e, muitas vezes, sem pensar, reduzimos suas chances de vida”9. Deste modo, o estigma carregado pelo ex-interno de uma instituição prisional torna-se sua segunda pena ou sentença, pois mesmo após sua soltura, convive-se com o rótulo que lhe é atribuído. As discriminações sofridas por tais indivíduos limitam suas possibilidades, bem como suas oportunidades sociais. Trata-se de uma busca por uma nova identidade, de uma frequente necessidade de ocultação de seu passado, uma vez que este indivíduo sofre constante negação social. Isto nada mais é do que uma dupla penalização, o ser humano é penalizado conforme regras legais e sancionado criminalmente, cumprindo a pena a ele cominada. Após sua libertação, este passa a ser olhado preconceituosamente pela sociedade que um dia pertenceu, sem que qualquer rejeição lhe fosse legalmente dirigida. A despeito de todas as argumentações acima expendidas, a possibilidade ou não de se assumir um cargo público em razão de uma anterior condenação penal não é uma questão legal. Ela esbarra em aspectos morais. Deve-se avaliar a natureza da infração e principalmente as atribuições do cargo pretendido. Outro detalhe que não se pode ignorar é a chamada “investigação social”, presente em determinados concursos públicos, como as carreiras policiais, a Magistratura e o Ministério Público. Para ser possível a eliminação do candidato, é necessário que esteja previsto em edital e na lei criadora do cargo. Impende ressaltar que a Sexta Turma apontou que a jurisprudência do STJ considera que a investigação social sobre candidato pode ir além da mera verificação de antecedentes criminais, incluindo também sua conduta moral e social no decorrer da vida. Para os ministros, as características da carreira policial exigem a retidão, lisura e probidade do agente público. Assim, é indispensável que o candidato a policial comprove procedimento irrepreensível, seja dotado de boa saúde psíquica e corporal e ter procedimento adequado para o cumprimento de tão dura e nobre missão, qual seja, de propiciar garantia ao cidadão. Sendo assim, nessa breve análise, cumpre registrar que a investigação social é legal e moralmente aceita, mormente para o exercício de cargos cujas atribuições exigem, acima de todas as outras, conduta moral ilibada. Diante das responsabilidades da função, a análise da vida pregressa e da idoneidade moral do indivíduo é fundamental em concursos públicos. A condenação criminal só deve servir de reprovação em concursos públicos, na fase de investigação social, dependendo da natureza do cargo público e da gravidade e repercussão da infração, levando-se em consideração questões morais incompatíveis com a função pública. 9

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GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar,1982, p. 15.

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Entendimento Jurisprudencial e Doutrinário Pátrio O edital de alguns concursos públicos prevê que os candidatos sejam submetidos à fase do certame denominada “sindicância da vida pregressa e investigação social”. Nessa etapa, a entidade ou órgão realizador do concurso coleta informações sobre a vida pregressa do candidato, bem como sobre sua conduta social e profissional. A finalidade é avaliar se o concorrente possui idoneidade moral para exercer o cargo em disputa. Em regra, a investigação social é feita mediante a análise das certidões de antecedentes criminais. Alguns concursos preveem também que se forneça o nome de autoridades a serem consultadas sobre a índole do candidato. Outros editais optam por exigir a apresentação de “atestado de boa conduta social e moral”. O documento deve ser subscrito por autoridade que declare desconhecer fatos desabonadores na vida do postulante ao cargo. A investigação social exigida em edital de concurso público não se resume a verificar se o candidato cometeu infrações penais, avaliando a idoneidade moral do candidato no âmbito social, administrativo, civil e criminal. Serve também para analisar a conduta moral e social ao longo da vida. Com esse fundamento, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou o recurso de candidato em concurso da Polícia Militar, que pretendia garantir sua participação no curso de formação.  O candidato recorreu contra decisão do Tribunal de Justiça de Rondônia, que considerou a eliminação cabível diante de certos comportamentos apresentados pelo candidato. Teria admitido no formulário de ingresso no curso, preenchido de próprio punho, que já havia usado entorpecentes (maconha). Também teria se envolvido em briga e prestara vinte horas de trabalho comunitário.  Há informações no processo de que o concursando teria ainda um mau relacionamento com seus vizinhos e estaria constantemente em companhia de pessoas de má índole. Por fim, ele afirmou ter trabalhado em empresa pública do município de Ariquemes, entretanto, há declaração de que ele nunca trabalhou na empresa. O Tribunal de Justiça destacou que o edital tem um item que determina a eliminação de candidato que presta informações falsas.  Para os ministros, as características da carreira policial “exigem a retidão, lisura e probidade do agente público”. Eles avaliaram que os comportamentos do candidato são incompatíveis com o que se espera de um policial militar, que tem a função de preservar a ordem pública e manter a paz social.  No recurso ao Superior Tribunal de Justiça, a defesa do candidato alegou que haveria direito líquido e certo para participação no curso de formação. Informou que foi apresentada certidão negativa de antecedentes criminais e que não havia registros de fatos criminosos que justificassem a eliminação. E quanto a uma acusação acerca de perseguição política, não há prova cabal de que o motivo da exclusão do curso seria exclusivamente político. 

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Ocorre que a Administração Pública não teria discricionariedade para manter no curso de formação candidato que não possui conduta moral e social compatível com o decoro exigido para o cargo de policial.   Face a esse primeiro entendimento é que traremos a seguir um caso concreto de muita repercussão nacional e de extrema pertinência com o tema em comento. Um caso de grande polêmica, amplamente noticiado na mídia, em seara de concursos públicos, diz respeito à investigação de vida pregressa de um candidato ao cargo de policial civil do Distrito Federal. O rapaz, aprovado em todas as fases do certame, incluindo as provas objetiva, física, médica, psicológica e toxicológica, foi reprovado precisamente na etapa de investigação social. Tendo ocorrido que, em 20 de abril de 1997, quando tinha quatorze anos de idade, ele participou do assassinato do índio Pataxó Galdino Jesus dos Santos. Aparentemente, o fato contou contra o candidato no concurso aberto no ano de 2013. A polêmica que envolve a questão decorre de aspectos jurídicos e da repercussão do crime, que chocou a sociedade brasileira na época em que aconteceu. A morte do índio Galdino foi consequência de uma ação impensada de cinco rapazes de classe média de Brasília, entre eles o candidato que agora tenta ingresso na Polícia Civil. Ele e quatro amigos puseram fogo nas cobertas em que Galdino dormia, em uma parada de ônibus de uma das principais vias da cidade. O homem não resistiu à gravidade das queimaduras e morreu no hospital dias depois. Uma testemunha do crime anotou a placa do carro em que os jovens estavam, e eles acabaram presos. Do grupo que participou do crime, o único menor de idade era justamente o hoje candidato a policial civil. Os outros participantes, já maiores de idade, foram julgados e condenados a quatorze anos de reclusão, em 2001, por homicídio qualificado. Como o menor de dezessete anos é inimputável penalmente, a ele foi aplicada a chamada “medida socioedutiva”, respondendo por ato infracional análogo ao crime de homicídio. Essa era a lei na época do crime, e ainda é assim hoje, apesar dos clamores cada vez maiores, no país, pela redução da maioridade penal para dezesseis anos. Anote-se também que dos outros participantes do episódio do assassinato do índio, um deles, já imputável à época, hoje é agente do DETRAN, tendo sido aprovado em concurso público após o cometimento do crime e, como os demais, não tem ficha criminal. Pela lei, o crime praticado só é resgatado caso a pessoa condenada cometa nova infração penal. Por isso, os cinco conseguem apresentar declarações de “nada consta” sem a informação de terem ateado fogo em Galdino, em 20 de abril de 1997. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), já existe o entendimento de que os editais de concursos públicos podem exigir a avaliação de conduta social como requisito essencial para aprovação do candidato. Pela Corte, a investigação não se resume a analisar a vida pregressa do candidato quanto às infrações penais que porventura tenha praticado. Mas deve também avaliar a conduta moral e social,

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visando aferir o comportamento frente aos deveres e às proibições impostos ao ocupante de cargo público da carreira policial. Uma visão minimamente garantista e moderna assegura a quem cumpriu pena o Direito de não passar o resto da vida sendo responsabilizado por um erro pelo qual foi punido. Afinal, não existem, em nosso sistema jurídico, penas perpétuas. Se a conduta social demonstrada quando menor de idade revela inaptidão para a posição de policial civil, que se fizesse uma nova avaliação para não cometer a injustiça de julgar uma pessoa no presente apenas pelo seu passado. Nesse sentido, seria feita uma verificação atual da compatibilidade entre a personalidade e o exercício do cargo, eis que já se passaram dezoito anos deste caso em comento. Ainda na visão garantista, se não formos capazes de acreditar na possibilidade de resgate do ser humano para a vida em sociedade, é melhor decretar-lhe a morte física, o que seria um absurdo, porque a pena perpétua é uma morte moral. Vejam-se os casos dos “fichas sujas” na política. A lei impede-lhes o exercício de cargo público por oito anos, mas um ficha suja “mata”, na verdade, uma geração inteira de seus próprios eleitores. A questão é relevante e complexa, e mesmo especialistas divergem quanto à possibilidade de um candidato, como o trazido à discussão, atuar como agente de polícia. Para o juiz da 5ª Vara de Fazenda Pública que concedeu uma liminar ao candidato para que este prosseguisse no certame, a banca violou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Segundo a decisão, “a presunção de irrecuperabilidade de quem já cometeu delito penal jogaria por terra toda a política criminal da reabilitação e reintegração do delinquente a seu meio social”. Seria como a instituição de uma pena perpétua, que não existe no Direito brasileiro; ou uma dupla punição para um delito, também não aceita pelas nossas leis, na medida em que ninguém pode ser condenado duas vezes pelo mesmo crime. Para alcançar o deferimento da medida liminar, a defesa do candidato alegou que a eliminação do concurso por causa do “ato infracional análogo ao crime de homicídio”, cometido aos dezessete anos, constitui ilegalidade, pois o fato está legalmente excluído da vida do seu cliente. Com efeito, com amparo no ECA, ao completar dezoito anos, a ficha criminal do rapaz ficou completamente limpa, como se uma nova vida tivesse começado para ele naquele momento. O próprio advogado comentou, ao falar à imprensa, que “não podemos pedir que a que a sociedade esqueça o que ele fez, mas o perdão a lei dá”. Porém, em contrapartida e posição divergente daqueles para quem é inadmissível que um dos autores de um crime cruel como o que vitimou o índio seja investido no cargo de agente de polícia, com atribuição de investigar e prender outras pessoas, ainda que se reconheça que o Estatuto da Criança e do Adolescente apaga o delito cometido quando o autor era menor de dezoito anos,  diante das responsabilidades da função em comento, a análise da vida pregressa e da idoneidade moral do indivíduo é fundamental.

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A promotora de Justiça aposentada Maria José Miranda esteve à frente da acusação durante a maior parte do processo – só não participou do júri de quatro dos cinco jovens por questões pessoais. Ela considera inadequada a aprovação de Galdino para os quadros da PCDF: “Não é certo isso. No meu entender, à época, o rapaz ficou impune, pois só cumpriu alguns meses de medida socioeducativa, e isso não foi proporcional à gravidade do crime cometido por ele e os demais. E ele já era uma pessoa que tinha pleno conhecimento do que fazia”, disse. Para Maria José, Galdino teria dificuldades em se tornar policial. “Ele teria problemas tanto com os colegas quanto com os criminosos. Que moral teria para cumprir a lei se ele mesmo não cumpriu a pena por um ato criminoso praticado? Na minha opinião, legalmente, ele até tem direito de ser policial, mas, moralmente, não” , acrescentou10. Então, legalmente, o candidato poderia ser considerado apto para o exercício do cargo, mas, na vida prática, assim não funciona. Diante das responsabilidades da função, a análise da vida pregressa e da idoneidade moral do indivíduo é fundamental em concursos públicos. No caso dele, fora aprovado nas duas fases, pois nada consta em sua ficha criminal11. No entanto, para alguns, ele não tem idoneidade moral para ocupar o cargo de agente. Dessa forma, o que se pode questionar é o aspecto moral e, no caso, trata-se de uma pena moral que a sociedade aplica pelo seu comportamento. A sociedade entende que moralmente este tipo de conduta não é compatível com o cargo público que envolve questões relacionadas à segurança pública e à própria violência. Mas do ponto de vista legal de dever algo para a sociedade, este não há se falar, pois, já tendo cumprido a pena, legalmente não haveria impedimento para que ele assumisse o cargo de policial civil. A decisão mais recente neste caso se refere ao recurso impetrado na 4ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, onde o candidato recorria contra a negativa de sua posse e ingresso na Polícia Civil, tendo sido seu recurso julgado improcedente por maioria de votos. A partir de agora, podendo ainda recorrer no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou no Supremo Tribunal Federal (STF). No acórdão consta que “o apelante aceitou as condições editalícias, entre elas a possibilidade de ter sua vida pregressa sindicada e sua vida social investigada, o que poderia, até mesmo – e isso ele também aceitou – resultar na possibilidade de ser eliminado do concurso por ter dado causa ou participado “de fato desabonador de sua conduta, incompatibilizando-o com o cargo de Agente de Polícia da carreira de Polícia Civil do Distrito Federal”, nos exatos termos do edital do certame, acrescentando ainda que não se trata de punição perpétua, pois a decisão apenas dá prestígio à “moralidade pública, levando em consideração fato trazido à tona em fase regular do concurso público, para cuja avaliação a autoridade pública está devidamente autorizada, não só por lei, 10

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Disponível em: . 11 Pelo ECA (Lei nº 8.069 de 13 de Julho de 1990), aplicado ao então menor de idade à época do crime: Art. 143. É vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional.

José Maria Pinheiro Madeira e Patrícia de Vasconcellos Knöller

mas também pelo princípio da moralidade constitucional, cabendo destacar, ainda, que o ato de não-recomendação, em si, se contém dentro dos limites da proporcionalidade e da razoabilidade, princípios que, igualmente, têm assento na Constituição da República”12. A par dessas duas visões, vale a pena conhecer também o entendimento das instâncias superiores da Justiça sobre outro aspecto polêmico dessa questão. Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), como já apontado, a exigência de investigação da vida pregressa e de avaliação da conduta social para aprovação final de candidato a concurso público é legal. Segundo essa visão, as duas situações estão relacionadas, e a investigação da vida pregressa não se limita às infrações penais eventualmente cometidas no passado, mas tem de levar em consideração a conduta moral e social do candidato, quando se trata da carreira policial. A maioria das leis regentes das carreiras prevê que um dos requisitos para que qualquer pessoa tome posse em cargo público é a idoneidade moral. Uma vez provada a ausência dessa condição, é juridicamente possível a eliminação do candidato. Outro fundamento que pode ser invocado para justificar tal medida é o princípio Constitucional da moralidade, previsto no artigo 37, caput, da CF/1988. Vale ressaltar, contudo, que a investigação social não pode ter caráter classificatório, ou seja, não deve interferir na pontuação dos candidatos. A jurisprudência entende, portanto, que o candidato indiciado em inquérito policial ou condenado em sentença penal – sem trânsito em julgado – não pode ser eliminado de concurso público com base nessas circunstâncias. Todavia, recentemente o STJ criou um precedente segundo o qual, em caso de cargos públicos de “maior envergadura”, cujos ocupantes agem stricto sensu em nome do Estado, é possível a eliminação do candidato que responde a Processo Penal acusado de crimes graves, mesmo que ainda não tenha havido trânsito em julgado. Conforme o ministro Ari Pargendler (atualmente aposentado): “acesso ao Cargo de Delegado de Polícia de alguém que responde ação penal pela prática dos crimes de formação de quadrilha e de corrupção ativa compromete uma das mais importantes instituições do Estado, e não pode ser tolerado” (STJ. 1ª Turma. RMS 43.172/MT, Rel. Min. Ari Pargendler, julgado em 12/11/2013).

Considerações Finais Para alguns países da Comunidade Europeia é lamentável e, sob todos os aspectos, condenável que, de acordo com as hipóteses narradas, o concursando assuma a função de policial, por exigência de decoro no exercício da função pública. A matéria é complexa, porém, a respeito da divergência, entendemos e concordamos com inúmeros juristas europeus que as penas de “caráter perpétuo” limitam-se ao Processo Penal. Especificamente sobre esse problema há que se fazer distinção substancial entre infrações e sanções administrativas e infrações e sanções penais. 12

APC 2014 01 1 064644-50015006-36.2014.807.0018 (Res.65 - CNJ).

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A Impossibilidade de se assumir um Cargo Público frente a uma Pretérita Condenação: Considerações acerca de uma dupla Estigmatização

Ainda aqueles que advogam posições contrárias, vale citar, a título de ilustração, por exemplo, o art. 37 da Lei nº 8.112/90 (estatuto do servidor público federal): Art. 137. A demissão ou a destituição de cargo em comissão, por infringência do art. 117, incisos IX e XI, incompatibiliza o ex-servidor para nova investidura em cargo público federal, pelo prazo de 5 (cinco) anos. Parágrafo único. Não poderá retornar ao serviço público federal o servidor que for demitido ou destituído do cargo em comissão por infringência do art. 132, incisos I, IV, VIII, X e XI (O grifo é nosso).

Percebe-se, pela literalidade do art. 132, que o concursado não poderá mais retornar ao serviço público, nos seguintes casos: I - crime contra a administração pública; IV - improbidade administrativa; VIII - aplicação irregular de dinheiros públicos; X - lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;

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Cabe ressaltar que, em face dos itens acima expostos, o legislador definiu que o agente afastado de suas funções carece de um essencial requisito moral para, estando definitivamente impedido para eventual reassunção, por meio de nova investidura, da função pública. Então, é importante acentuar que a lei enfocada, a rigor, além da aptidão intelectual, física e mental, exigiu mais um notável requisito para investidura e exercício; o que ocorre é a fixação – em lei – de mais requisitos para a investidura em função pública, ou seja, o concursado que tenho sido demitido por crime contra a administração pública, improbidade administrativa, aplicação irregular de dinheiros públicos e lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional, não reveste qualidade de ser servidor público, exatamente por ter praticado ato gravíssimo que tinha, acima de tudo, obrigação de resguardar. A maior parte dos princípios do Direito Administrativo encontra-se positivado, explicita ou implicitamente, na Constituição Federal. Possuem eficácia jurídica direta e imediata, vinculando a atuação dos operadores jurídicos na aplicação das normas ao respeito dos mesmos. Funcionam como diretrizes superiores do sistema, objetivando a correção das graves distorções que ocorrem no âmbito da Administração Pública, que impedem o efetivo exercício da cidadania. A função administrativa não pode ofender a moralidade e deve o agente público ser probo e pautar as suas tarefas administrativas no sentido de conferir uma maior concretude aos princípios e regras constitucionais, uma vez que estes não figuram como enunciados meramente retóricos. Jamais o servidor deve se comportar de modo a se enriquecer com a sua desonestidade, causando prejuízos à Administração Pública. Realmente, nessas hipóteses elencadas seria absurdo obter uma nova investidura.

José Maria Pinheiro Madeira e Patrícia de Vasconcellos Knöller

A proibição da prisão perpétua, prevista na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XLII, alínea b, é pertinente às penas aplicadas na esfera penal, não contaminando às penalidades administrativas, quando justificadas pela gravidade do crime praticado contra a Administração Pública. A matéria é complexa, porém, a respeito da divergência, concluímos com o entendimento de que não há incompatibilidade real entre à análise do critério da Administração Pública e a Constituição Brasileira, sendo esse conflito, com a máxima concessa vênia, meramente aparente. Portanto, é de suma importância que haja proporcionalidade entre a infração penal cometida e a função pública a ser exercida. Voltando à análise para preenchimento de cargos relativos ao exercício de poder de polícia, a idoneidade do candidato ganha um grau de importância ainda mais elevado. A seleção de candidatos mais capacitados envolve não só escolher aqueles candidatos que se mostram mais tecnicamente preparados e aprovados dentro do número de vagas do concurso público, como também aqueles que, de fato, estão aptos ao desempenho das funções públicas, o que envolve uma acurada análise da vida pregressa dos candidatos, a fim de se aferir a ilibada idoneidade e compromisso moral daqueles que visam o acesso a cargos públicos cujas atribuições justifiquem esta maior cautela, como é o caso em concreto. Podendo ocorrer a hipótese de um candidato reprovado administrativamente na etapa de sindicância da vida pregressa e investigação social. O antecedente dele é incompatível com o cargo a que se candidata. Que princípio de moralidade haveria de amparar um policial que praticou com pleno dolo um crime tão exemplarmente sádico e brutal? Se infelizmente já assistimos a um atuar administrativo moral e institucionalmente falido, isso tampouco justifica multiplicar a desmoralização. Daí, ser grande importância analisar, com acuidade, o tipo de atividade pública exigida no concurso em que o candidato foi aprovado (por exemplo, Polícia Civil), no qual se exija uma série de práticas que são absolutamente incompatíveis para uma pessoa que já teve aquele tipo de atitude (por exemplo, lesão corporal seguida de morte). O cerne da questão não gira em torno da pena cumprida e, sim, como requisito ao exercício de uma função que traz em sua natureza incompatibilidade com condutas praticadas. Nessas hipóteses, afigura-se pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial em países como a Espanha, Itália, França e Alemanha, após longos e exaustivos estudos que apontam no sentido de que pessoas com o perfil e histórico como os aqui debatidos, de que são legítimos à eliminação, em fase de investigação social, de candidatos de procedimento condenável e até mesmo psicopatas, de conduta incompatível e de procedimento repreensível e inaceitável, mormente quando pretendem ingressar, por concurso público, em carreira policial, que exige procedimento irrepreensível e idoneidade moral inatacável. Ademais, “na dúvida, em favor da sociedade”13. 13

Princípio do indubio pro societate.

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A Impossibilidade de se assumir um Cargo Público frente a uma Pretérita Condenação: Considerações acerca de uma dupla Estigmatização

Ainda na legislação brasileira, a posição sufragada na ideia de moralidade, no caso específico da magistratura, é reforçada pela Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979 (LOMAN) onde, no seu art. 5º, diz: Art. 5º - Os Juízes Federais serão nomeados pelo Presidente da República, escolhidos, sempre que possível, em lista tríplice, organizada pelo Tribunal Federal de Recursos, dentre os candidatos com idade superior a vinte e cinco anos, de reconhecida idoneidade moral, aprovados em concurso público de provas e títulos, além da satisfação de outros requisitos especificados em lei. (Grifo nosso).

Já no caso de policiais, o Decreto-Lei nº 2.320, de 26 de janeiro de1987, diz: Art. 8º - São requisitos para a matrícula em curso de formação profissional, apurados em processo seletivo, promovido pela Academia Nacional de Polícia: I - ter procedimento irrepreensível e idoneidade moral inatacável, avaliados segundo normas baixadas pela Direção-Geral do Departamento de Polícia Federal; (Grifo nosso).

Com a proposta da PEC  nº 284/2013, que exige ficha limpa do servidor, no momento aguardando o parecer de uma comissão especial para sua aprovação, a mesma norma passa a valer para quem foi aprovado em concurso público e como requisito para quem vai ocupar cargo comissionado ou função de confiança em órgão público da Administração Pública direta e indireta, em qualquer poder da União, dos estados, municípios ou do Distrito Federal. A aprovação da proposta é um passo importante para a moralidade na Administração  Pública, sendo um passo importante para termos agentes públicos necessariamente mais comprometidos com o múnus público que devem exercer. O que a sociedade espera e agradece.

Referências bibliográficas BECKER, Howard. Outsiders - Estudos de Sociologia do Desvio, Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, v. 1. 11 ed.,São Paulo: Saraiva, 2007. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar,1982. HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. MALAGUTI, VERA. A criminalização da pobreza. Entrevista veiculada in Unisinos.br (revista On Line). Disponível em: . MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.

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A Formação Jurídica na atualidade Brasileira: o Embate entre duas Tendências Pedagógicas Vanderlei Martins1 Cleyson de Moraes Mello2 Resumo O artigo aborda, de maneira conceitual, a formação jurídica nas faculdades de direito, partindo da tese de que existem duas concepções pedagógico-educativas atuando de maneira simultânea no cenário acadêmico brasileiro contemporâneo. Uma concepção de natureza idealista, que agrega filosofia e ciência, e outra, de natureza pragmática, que privilegia uma formação mais de caráter positivo e tecnicista. A partir dessa intenção analítica, o artigo discute o alcance das duas concepções pedagógico-educativas, bem como faz a devida confrontação crítica entre as duas ideias que se assumem como propostas ideais. O embate intelectual entre o ideal e o real é o cerne de discussão, ou seja, o artigo indaga sobre a possibilidade de adequação e diálogo entre duas concepções aparentemente tão distintas. Palavras-chave: Sociedade; universidade; direito; ensino Jurídico; idealismo; pragmatismo; ética. Abstract The article discusses, conceptually, legal training in law schools, based on the thesis that there are two pedagogical and educational concepts acting simultaneously in 1

Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (1985), Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991), Doutorado em Ciências pela COPPE/ UFRJ (1995), Coordenador Acadêmico do PPDIR/Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Coordenador Executivo e Membro do Conselho Editorial do Cadernos de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Diretor do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula (1996/1999), Professor Adjunto da UNESA (1999/2008), Professor Titular e Coordenador de Pesquisa da UNIESP/SUESC (2000/2012), Coordenador de Pesquisa da UNIGRANRIO/Campus Silva Jardim (2000), atualmente Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas. 2 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC – Juiz de Fora MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença – FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do direito, direito civil, filosofia do direito, fundamento do direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre – RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de ValençaRJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas.

A Formação Jurídica na atualidade Brasileira: o Embate entre duas Tendências Pedagógicas

the contemporary Brazilian academic setting. An idealistic conception of nature, that combines philosophy and science, and another, of a pragmatic nature, which favors a training over positive and technicist character. From this analytical intention, the paper discusses the reach of two pedagogical and educational concepts and makes the necessary critical confrontation between the two ideas which are seen as ideal proposals. The intellectual struggle between the ideal and the real is the core discussion, the article inquires about the possibility of adaptation and dialogue between two seemingly distinct concepts. Keywords: Society; university; law; legal education; idealism; pragmatism; ethics.

Introdução

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O marco histórico em nossa incursão crítica é o período compreendido entre o ano de 1964 e os dias atuais. Tal escolha prende-se ao fato de que é uma etapa, na trajetória da formação jurídica brasileira, onde se definiram, e se legitimaram, as duas tendências pedagógico-educativas que orbitam, simultaneamente, no espaço acadêmico das escolas de direito no Brasil nos dias atuais. Nesse sentido, o período tem dois grandes momentos, dentro daquilo que nos interessa de forma mais pontual como objeto de análise, o ano de 1964 e o ano de 1985, entendidos por nós como anos de afirmação das duas tendências aludidas acima. Em relação à 1964, podemos dizer que expressa um rompimento com o cenário institucional cristalizado a partir de 1945, logo após o fim da Segunda Grande Guerra Mundial. Na verdade, tal cenário começou a ser desenhado no início da década de 1920 com o surgimento de um movimento nacionalista, de caráter democrático, que pretendia forjar no Brasil a chamada identidade nacional, até então, definido pelo padrão cultural europeu, mais precisamente pela cultura francesa. A Semana de Arte Moderna de 1922, foi o grande marco desse movimento cultural nacionalista e democrático. No âmbito da educação brasileira, ocorreu, em 1928, a Reforma da Educação Nacional, promulgou-se o Estatuto da Universidade Brasileira em 1931, criou-se, no mesmo ano, o Ministério da Instrução Pública e, em 1932, o grande marco do movimento no contexto educacional, ocorreu a Conferência Brasileira da Educação, que ficou conhecida na história da nossa educação como ‘Manifesto dos Pioneiros’. Desse manifesto, pinçamos os intelectuais pioneiros Julio de Mesquita, Anisio Teixeira e o jesuíta Leonel Franca, responsáveis diretos pela criação de nossas primeiras universidades em 1934, a saber, a USP e a UDF. Alguns anos após, em 1940, surgiu a PUC/RJ, sob influência do Padre Leonel Franca. De forma tardia, é verdade, criou-se, finalmente, no Brasil, a universidade brasileira que, dentro do ideal civilizatório pretendido, seria elevada à condição de referência científica, cultural e humanista. Dentro desse raciocínio, podemos dizer que esse espírito idealista condutor da criação das primeiras universidades no Brasil, inaugurou aquilo que passamos a definir nos dias atuais como ‘ensino

Vanderlei Martins e Cleyson de Moraes Mello

público de qualidade’. Assim permanecendo nas décadas imediatamente seguintes. No período compreendido entre 1945 e 1964, pois, vivia o Brasil uma nova etapa em sua formação intelectual. O ambiente sócio-institucional brasileiro, nesse espaço de tempo, era, pode-se dizer, marcadamente diversificado ideologicamente, uma vez que, conviviam no mesmo cenário das grandes capitais, principalmente no Rio de Janeiro, diferentes ideologias, cada qual com seus próprios interesses ou ideais. A Universidade Brasileira, recém-criada, não estava fora dessa efervescência de ideias, assumia como discurso institucional o ideal de que, através do conhecimento, é possível a construção de uma civilização genuinamente brasileira. Apenas como ilustração é importante citar que nesse período foram criados o ITA (1947), a SBPC (1948), o CBPF (1949), a CAPES e o CNPq (1951) e a Universidade de Brasília em 1961. Infelizmente, tal período fértil intelectualmente, durou muito pouco. O choque de interesses ideológicos e principalmente o choque de interesses político-econômicos, acentuaram as diferenças, ampliaram os antagonismos que desembocaram em um movimento militar de natureza autoritária e que acabou por assumir o governo do país a partir de 1964. Tal movimento foi concebido e efetivado sob influência do governo americano que preferiam um cenário político local menos hostil aos seus interesses políticos e econômicos. Entendiam os americanos que o neocapitalismo pós-segunda guerra, conduzido pela ‘Águia Americana’, era o único sistema político-econômico confiável para os países ocidentais em desenvolvimento naquela época. Por conta dessa crença, financiaram e deram toda logística necessária para movimentos nacionais de adesão à sua política, como foi o caso do Brasil em 1964. Vitorioso o movimento de 1964, o Brasil inicia um período de exceção, nebuloso, excludente e antidemocrático por excelência e que pode ser tomado como uma espécie de retrocesso intelectual se tomarmos como referência o período anterior(1945/1964). Esse período, conduzido pelo lema de Segurança e Desenvolvimento, possui duas características marcantes, o isolamento das instituições sociais e a expansão vertiginosa do capitalismo privado, que, por derivação, vai colocar em segundo plano o espírito de natureza pública, expressivo no período anterior. No âmbito do ensino superior, inclusive, a partir de 1964 ocorre o ‘boom’ das instituições de ensino superior privado no Brasil. A partir de 1985, ocorreu aquilo que nossa história oficial chama de ‘reabertura democrática’ em todos os níveis institucionais. Iniciou-se, então, a rediscussão do Brasil, a reinserção do país na retomada da normalidade do Estado de Direito Democrático. Voltamos a discutir velhos conceitos, como cidadania, justiça, direitos sociais, participação política, educação, saúde, trabalho, emprego habitação, distribuição de renda, enfim, velhos princípios de natureza pública até então mal ou não resolvidos. Todas essas discussões se cristalizarão na Constituição Federal de 1988, marco da nova era, marco de uma nova etapa em nossa história.

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A Formação Jurídica na atualidade Brasileira: o Embate entre duas Tendências Pedagógicas

Naquilo que interessa mais diretamente ao artigo em questão, a partir de 1985 vão conviver de maneira simultânea no ambiente universitário brasileiro duas concepções pedagógicas derivadas dos dois períodos de tempo aludidos acima, ou seja, uma pedagogia tecnicista, típica do período compreendido entre 1964/1985 e uma concepção pedagógica, oriunda de 1945, de natureza mais humanista que se afirma a partir de 1985. A partir desse novo cenário, surge uma indagação de viés pedagógico que ainda não formou consenso, qual seja, sobre a devida função da universidade nesse momento, formar de maneira fechada para o mercado de trabalho ou formar de maneira aberta para o mundo que nos envolve exigindo respostas justas.

Formação Jurídica e Utilitarismo Profissional

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A realidade sócio-institucional contemporânea define como concepção de mundo prevalente uma cultura de natureza materialista onde prevalece a lógica da funcionalidade objetiva nas relações intersociais. Tal concepção de mundo é a expressão social do tecno-cientificismo fundante da era moderna que se impõe pretenciosamente como referência ideal na condução das diferentes formas de convivência social. Assim é que, a partir dessa ingerência, a Modernidade passa a ser a expressão de um Capitalismo pragmático, de um Estado pragmático, de uma Sociedade pragmática e, de uma Universidade que também adere à lógica da funcionalidade objetiva moderna, tornando-se, assim, uma instituição pragmática. Nessa transposição, a universidade moderna deixa de ser a morada onde o conhecimento se processa e se renova, para se atrelar à economia, à política e ao mercado de trabalho, passando a ser, assim, um instituto formador de mão de obra especializada para as demandas profissionais. De forma lenta e gradual, transfigura-se a formação acadêmica, que passa a ter um perfil muito mais de instrução técnica do que de formação plena. Especializa-se o conhecimento, compartimentam-se e se isolam as diferentes áreas do saber, apesar de ocuparem, geograficamente, o mesmo espaço territorial. Se a perspectiva passa a ser mercadológica, essa formação de natureza técnico-instrutiva é centrada apenas na atividade de ensino, ganhando contorno formalista, burocrático e imobilista, ou seja, ganha prestígio dentro do ambiente acadêmico, a chamada formação ‘manualesca’, onde o que passa a ser valorizado é o domínio técnico do conhecimento de utilidade objetiva para aplicação prática imediata e profissionalmente. A afirmação de tal paradigma, que privilegia a instrução em detrimento da formação plena, na verdade, prepara tão somente quadros especializados para cumprimento de tarefas e funções dentro dos sistemas institucionais formalmente estabelecidos. Aquilo que deveria ser uma formação mais abrangente e de caráter bacharelesco, se transforma em uma preparação especializada de viés marcadamente tecnicista. Os diferentes currículos dos diferentes cursos superiores de Direito no Brasil, apresentam, como idealização pedagógica,

Vanderlei Martins e Cleyson de Moraes Mello

um fluxograma que associa matérias humanistas e matérias técnicas, todavia, a prática educativa da sala de aula privilegia, dando maior status acadêmico aquelas disciplinas de matiz profissionalizante, transformando, assim, as matérias ditas humanistas ou sociais em adornos ou de valor secundário ao longo do processo de desenvolvimento da formação. “No caso específico da formação jurídica, a regra é mesma.Pontificam nos cursos de Direito as chamadas disciplinas profissionalizantes que são tratadas, salvo em raríssimasexceções, dentro de uma perspectiva pragmática e formalista. Dessa forma, o futuro bacharel motiva-se muito mais a aprender a operar o Direito em suas especificidades técnico-normativas do que propriamente em dar à esse aprendizado uma perspectiva mais humanista, mais comprometida com os desafios impostos pela convivência contemporânea, a exigir respostas ético-legais do Direito em um ambiente social repleto de interesses e conflitos. Nesse sentido, é papel fundamental dos cursos jurídicos formar juristas (aqueles que pensam e aplicam o Direito) enão operadores do Direito (aqueles que apenas aplicam o Direito), afinal de contas, no âmbito jurídico, nem sempre o legal é justo (MARTINS, 2015:71).

O fato é que a Universidade, hoje, transformou-se em local de ‘passagem’ para o mercado de trabalho, transformou-se em uma instituição onde o conhecimento é buscado a partir de uma visão meramente utilitária e funcional, voltada exclusivamente para atender à um interesse maior, qual seja, ingressar no mundo da competitividade profissional, técnica por excelência. O que fica, então, formalmente estabelecido é que o estímulo ao desenvolvimento do espírito crítico é categoricamente suplantado por uma prática educativa reprodutora de conceitos e princípios ideológicos atrelados ao poder constituído, sejam esses princípios ideológicos justos ou não, pois não é isso que se discute criticamente no espaço acadêmico brasileiro contemporâneo. Perdemos de vista a relação entre Universidade e Sociedade no que tange à primeira colocar-se de frente e aberta às necessidades básicas dos segmentos menos favorecidos da segunda. Nesse sentido, o conhecimento se democratiza com a globalização contemporânea, ganha maior amplitude, mas é uma propagação rasa, superficial e meramente informativa, sem o devido aprofundamento crítico, pois a dinâmica da vida globalizada atual não permite que se façam os devidos questionamentos à realidade circundante. O conhecimento dentro do espaço acadêmico não foge à regra pós-moderna, tornando a Universidade em espaço burocrático de instrução de saberes técnicos, utilitários e pragmáticos. É justamente por assumir essa postura de atrelamento ao status quo, que a Universidade contemporânea transformou-se em instituto superior fornecedor de mão de obra especializada para o sistema neocapitalista globalizado, ou seja, a Universidade burocratizada como instituição formadora de futuros burocratas cumpridores de tarefas e funções, e, repetimos, sejam essas tarefas e funções justas socialmente ou não, pois não é essa a preocupação maior dos futuros bacharéis-burocratas.

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A Formação Jurídica na atualidade Brasileira: o Embate entre duas Tendências Pedagógicas

“No que se refere à educação, cresce a sobrevalorização do pragmatismo, da eficiência meramente técnica e do conformismo. O mais importante é a formação profissional concebida como único meio de acesso ao mercado de trabalho. A ideia é a de que, com uma melhor qualificação técnica, se tenha maiores possibilidades de conseguir um emprego num mercado de trabalho em declínio. Em consequência a isso, a reflexão sobre os problemas da sociedade assume cada vez menos importância; e valores como engajamento, mobilização social, solidariedade e comunidade perdem seus significados. Importante é o luxo o lucro, o egocentrismo, a ‘liberdade do indivíduo’ e um lugar no ‘bem-estar de poucos’. Esses valores são difundidos pelos grandes meios de comunicação e os jovens são nisso os mais atingidos. A diminuição do sujeito/indivíduo surge como decorrência, pois o ser humano é cada vez mais encarado como coisa e estimulado a satisfazer prazeres supérfluos. Os excluídos são descartados sem perspectiva e encontram cada vez menos espaço na sociedade que, afinal de contas, está voltada aos consumidores, enquanto o acesso público é continuamente reduzido” (AMORIM SILVA, 2009:35).

Em nosso entendimento, a origem dessa nova ordem pós-moderna planetarizada reside nas origens do fenômeno da globalização, isto é, em sendo tal fenômeno decorrência direta do avanço tecnológico, a concepção de mundo que se impõe de maneira incontestável é a razão de natureza técnica derivada do próprio tecnologismo contemporâneo. Assim, essa razão de caráter instrumental e materialista por excelência, define a convivência sócio-institucional como uma espécie de interação entre ‘negócios’ interligados e sob a chancela do neocapitalismo mundializado. Com isso, viver nesse contexto transformou-se em uma busca incessante de afirmação em um sistema social excludente e seletivo. Portanto, se a vivência passa a ser de ‘negócios’, a vida passa a ser a expressão de ‘investimentos’ positivos, ou seja, investe-se no conhecimento como meio de acesso ao mundo do trabalho, que é visto também como um investimento para a felicidade maior da vida contemporânea globalizada, o consumo. Tal lógica, conta com a adesão da Universidade pós-moderna que legitima se entende e se assume como instituição atrelada à essa concepção de mundo. Dentro dessa perspectiva, a Universidade ao tratar o conhecimento como uma espécie de mercadoria utilitária, altera consideravelmente o conceito de cultura e obstrui a plenitude de uma formação intelectualmente virtuosa. O que temos, então, é um contingente altamente capacitado de conhecimentos técnicos, mas carente de sabedoria capaz de transformar toda essa capacidade técnica em um conhecimento virtuoso e de promoção humana. O fato é que a crise que se observa no mundo contemporâneo globalizado penetra em todas as instituições sociais, inclusive na Universidade. Tal crise deriva da concepção de mundo que nos conduz, que é privatista e excludente. O neocapitalismo imposto ao mundo ocidental como modelo econômico-político-social ideal, ao mesmo tempo que cria um mundo sem fronteiras para seus interesses, define também aquilo que é ‘global’ ou ‘periférico’, define de maneira explícita os ‘incluídos’ e os ‘excluídos’.

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Ao assumir a lógica imposta pelo neocapitalismo mundializado, a Universidade torna-se a responsável pela formação de profissionais capacitados tecnicamente às necessidades do mercado, negligenciando, todavia, pela opção por uma formação que vá além da instrução meramente técnica e conduza à uma formação também de tendência humanista. A nosso ver, simplesmente instruir o indivíduo é uma tarefa que compromete o princípio da formação bacharelesca, conforme definido pelos discursos pedagógicos universitários, mas que a rotina das salas de aula desmoraliza de forma corriqueira. Os currículos excessivamente técnico-profissionalizantes concentram ou reduzem a formação apenas à atividade de ensino e onde os alunos, ao longo dos períodos curriculares, estão muito mais propensos a se ‘livrarem’ das diferentes disciplinas ou matérias do que propriamente se ‘envolverem’ de forma comprometida e intensa com seus conteúdos. O que fica, portanto, latente é que, mesmo sendo apenas uma formação basicamente técnico-positiva, é uma formação de baixa consistência científica e intelectual. ‘Livrar-se’ ou ‘envolver-se’ com a própria formação, eis uma questão que precisa ser devidamente enfrentada e respondida pelos segmentos discente e docente da Universidade contemporânea, mas que, se devidamente enfrentada, pode alterar os paradigmas impostos à Universidade pela nova ordem pós-moderna. O que queremos dizer é que a expressão ‘envolverse’ subentende compromisso e reflexão, já a expressão ‘livrar-se’ subentende aceitação, conformismo e submissão. A lógica da funcionalidade objetiva que conduz a sociedade contemporânea, dentro da matriz neoliberal capitalista, impõe às universidade pós-modernas seu modelo pragmático fazendo com que essas instituições legitimem e amparem acadêmica e cientificamente tal modelo, não só formando quadros humanos, mas também produzindo inovações técnico-científicas, devidamente financiadas e que serão estrategicamente absorvidas pelos grandes conglomerados hegemônicos do capitalismo globalizado. O que, em última análise, compromete a independência, não só das universidades, como também do próprio conhecimento enquanto expressão livre do intelecto humano. Infelizmente, em países como o Brasil, o descaso com as universidades públicas só agrava o quadro nebuloso que envolve essas instituições de formação superior, tornando-as reféns da lógica do sistema dominante, sem qualquer prenúncio de reversão dessa submissão políticoideológico. Max Weber ao versar sobre educação, relacionando-a com a burocracia moderna, é preciso quando diz que ‘Por trás de todas as discussões atuais sobre as bases do sistema educacional, se oculta em algum aspecto mais decisivo a luta dos ‘especialistas’ contra o tipo mais antigo de ‘homem culto’. Essa luta é determinada pela expansão irresistível da burocratização de todas as relações públicas e privadas de autoridade e pela crescente importância dos peritos e do conhecimento especializado’. No caso pontual do Direito, mantém-se, ainda, uma tradição formalista de transmissão do conhecimento através daquela prática didática conhecida como ‘aula-conferência’, estilo coimbrã, onde são apresentados aos alunos de forma

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positiva e dogmática, os princípios jurídicos, reduzindo, dessa forma, o Direito à uma lógica formal, o que acaba por distanciá-lo de maneira corriqueira e inevitável do dinamismo social contemporâneo. Tal redução do Direito, acaba por contrariar a finalidade maior dos sistemas jurídicos, qual seja a de ser a instituição responsável pela normatização das relações sociais nas diferentes nuances das convivências sócioinstitucionais. O que queremos dizer é que o ensino jurídico, ambientado nas salas de aulas dos cursos jurídicos, não podem ignorar a lógica do ‘movimento’ dinâmico que conduz a convivência globalizada contemporânea, ao contrário, o ensino jurídico deve ser pautado a partir desse dinamismo social para não correr o risco de transformar-se em abstração, incompatibilizando, assim, os discursos jurídicos com os discursos sociais. Esse tipo de formação jurídica nas universidades brasileiras consagrou-se a partir de 1964 com mudança radical no regime político nacional. Com a imposição de uma ideologia restritiva em todos os níveis institucionais, a universidade de uma maneira geral e os cursos de direito de maneira particular, também foram atingidos por tal castração, limitando com isso, e consideravelmente, a livrecirculação de ideias no espaço acadêmico. Nesse cenário, ganha prestígio nas escolas de direito uma forma de ensino que valoriza a experiência prática dos professores, via de regra profissionais bem-sucedidos no mercado e que acabam por transformarem-se em referências importantes para o futuro bacharel. Como a motivação maior por parte dos futuros operadores do Direito é o mercado de trabalho, esses acabam por valorizar muito mais as disciplinas que conduzem a resultados práticos e diretamente ligadas ao mercado. Em tal sistemática educativa, ao longo dos cursos, a memória, como exigência maior, é muito mais exercitada e estimulada do que o raciocínio. Some-se a isso a busca, desde o ingresso nos cursos, por uma especialização pontual, e teremos, após cinco anos de aprendizado, um operador do Direito tecnicamente bem instruído, ou não, para aplicar de maneira positiva o Direito. “O especialista serve-nos para reduzir a espécie a sua essência e nos fazer ver todo o radicalismo de sua novidade Porque antes os homens podiam se dividir, simplesmente, em sábios e ignorantes, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser incluído em nenhuma dessas duas categorias. Não é um sábio, porque ignora formalmente tudo quanto não faz parte de sua especialização; mas tampouco é um ignorante, porque é um ‘homem da ciência’ e conhece muito bem sua porciúncula de universo”(GASSET, 1987:125).

Formação Jurídica e Idealismo Acadêmico

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A partir de 1985, com a reabertura do regime político brasileiro, a ideologia restritiva de isolamento das instituições sociais é progressivamente suplantada por uma nova forma de interação sócio-institucional, mais democrática e menos restritiva. É o momento de retomada, de rediscussão do Brasil e, por

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que não dizer, retomada do espírito democrático que pautou o país no período entre 1945/1964, em todos os níveis institucionais, inclusive na instituição universitária. Assim, essa nova fase acadêmica brasileira, que ora vivenciamos, rediscute o papel da universidade e, no caso específico desse artigo, rediscute a formação do bacharel em Direito. O modelo utilitário-tecnicista-profissionalizante, consagrado pelo período autoritário de 1964/1985, não desaparece, ao contrário, permanece inalterado, mas o fato novo é que, de forma paralela, surge ou resurge, no âmbito universitário, uma concepção pedagógica mais orgânica, mais antenada aos novos tempos, que privilegia a formação técnica, mas que não abre mão da formação cultural e humanista. O que queremos dizer é que a formação jurídica deve entender o Direito também como alta cultura, uma vez que é referência importante dentro do contexto contemporâneo global. O fato é que o idealismo acadêmico aqui apresentado entende que a formação jurídica não deve ser apenas fechada para o mercado, mas, principalmente, aberta para o mundo com suas contradições latentes a exigirem respostas justas para tais impasses ou crises. Dentro desse raciocínio, o idealismo acadêmico não é uma construção pedagógica abstrata ou desconectada da realidade institucional contemporânea, ao contrário, reconhece a concepção de mundo pragmática que conduz a pós-modernidade, mas apenas tenta dar-lhe um sentido mais ético e mais humano com intuito de proteger e preservar as sociedades e não submete-las e oprimí-las através de uma razão instrumental que não lhes pertence. Podemos definir, a grosso modo, o idealismo acadêmico através de uma palavra, que é ENVOLVIMENTO, ou seja, é preciso que o futuro bacharel se envolva com a Universidade, se envolva com o Direito enquanto ciência, se envolva com as diferentes áreas que envolvem o Direito, se envolva com as diferentes disciplinas que envolvem o Direito, construindo uma formação sólida, para, após esse intenso envolvimento estabelecido durante cinco anos, transforme-se em ‘concurseiro’ e vá competir profissionalmente no mercado de trabalho devidamente preparado intelectual e cientificamente. Quando nos referimos à preparação intelectual e científica, estamos nos referindo aos pilares que devem conduzir a universidade brasileira enquanto instituição acadêmica, isto é , como centro de formação plena que envolve cultura, especialização e ciência. O futuro bacharel deve ser, antes de qualquer outra capacitação, uma pessoa culta, que possua ‘visão periférica’ e plena consciência da realidade sócio-institucional que envolve o Direito contemporâneo. Além desse atributo de viés cultural e intelectual, deve construir, também, de forma paralela, formação técnica de domínio dos diferentes discursos, princípios e preceitos que definem o Direito enquanto instituto normatizador das relações sociais. Aderente à esses pressupostos, um terceiro tão importante quanto os dois já mencionados, é a construção de espírito crítico-investigativo desenvolvido através da atividade sistemática de pesquisa científico-jurídica ao longo da formação, pois é através da pesquisa que se desenvolve e aprimora o raciocínio jurídico, fundamental para

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análise criteriosa da relação entre o Direito e contexto. Isso é o que chamamos de ENVOLVIMENTO com a própria formação. Essa é a proposta metodológica que consideramos ideal para se fazer Universidade. Uma concepção que envolve comprometimento social, responsabilidade ética e envolvimento com a vida, com o mundo, com a Universidade e com o Direito. “É preciso instaurar uma ética da responsabilidade social que vincule os atores acadêmicos e os agentes da sociedade civil organizada às agendas públicas realmente voltadas ao atendimento das demandas das populações, e não à legitimação do mercantilismo da globalização neoliberal [...] Que a universidade não dê razão ao mercado se quando ele se impõe como razão da sociedade. Que a universidade não seja um motor da globalização da economia de mercado,mas sim da globalização da dignidade humana. Tudo isso desafiaa todos que somos responsáveis pela educação superior, e é assim que eu o apresento aqui, não como um já-dado, mas como tarefa projetada ao futuro, ao menos para pensar” (SOBRINHO, 2009:1).

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Foi dito acima que o idealismo acadêmico não é uma abstração da realidade universitária, ao contrário, é uma concepção pedagógica que tenta ir além do formalismo reprodutivo conduzido pelo ensino/instrução e efetivar um tipo de formação que neutralize a apatia, o conformismo e, principalmente, a vulnerabilidade intelectual dos futuros bacharéis em Direito. Nesse sentido, o que se projeta é um pragmatismo idealista, associado à um tecnicismo lúcido, através de uma funcionalidade objetiva consciente e ética. Em outras palavras, associando filosofia e ciência, é possível neutralizar a lógica formal prevalente nas escolas de direito brasileiras. Instrumentalizando tal idealismo, a prática educativa deve ser estabelecida mediante a inserção da ética como princípio, a valorização humana como regra, bem como a exposição da conjuntura históricopolítico-economico-social, através de itens pontuais e obrigatórios em TODOS os programas de TODAS as disciplinas curriculares, inclusive e, principalmente, nas chamadas disciplinas de cunho profissionalizante, garantindo-se, assim, a inserção cultural e intelectual na formação técnico-profissional. De forma paralela, mas também de forma curricular obrigatória para TODAS as disciplinas do fluxograma, a pesquisa também se inserir como atividade rotineira com intuito de sistematização do desenvolvimento do espírito crítico-investigativo e do chamado raciocínio jurídico, fundamentais no exercício profissional futuro. Entende o idealismo acadêmico que discutir ética, filosofia, sociologia, economia, política, história, metodologia e outras matérias não-profissionalizantes, mesmo que obrigatórias, de forma isolada através de disciplinas específicas, não tem sentido prático, pois a rotina educativa do ensino jurídico nas salas de aulas acaba por colocar em plano secundário ou desprezível tais disciplinas de cunho humanístico. Desse modo, com a devida associação entre instrução técnica e reflexão ético-humanista é possível efetivar e potencializar uma formação plena para o futuro bacharel em Direito, onde a interdisciplinaridade é pressuposto obrigatório, assim como professores devidamente preparados

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cultural e intelectualmente também o é,ou seja,ao idealizar-se uma formação acadêmica orgânica e abrangente, o corpo docente dos cursos jurídicos não deve ser composto por professores especialistas em disciplinas curriculares pontuais. Alguém já disse, com sabedoria, que, todos que orbitam no Direito, devem ler muito, sempre e de tudo, inclusive sobre o Direito. Dentro da corrente idealista no ensino jurídico, merece destaque San Thiago Dantas, tido como ‘pai do ensino jurídico moderno,’ jurista sempre lembrado quando o assunto envolve as escolas de direito brasileiras. Entende ele que o Direito deve ser tratado como alta cultura no ambiente acadêmico de nossas universidades, para daí se colocar como referência social confiável, justa e harmoniosa na adequação dos conflitos inerentes à convivência sócioinstitucional contemporânea. Evidentemente que, para atingir esse status, faz-se necessário uma formação de alto nível, realmente bacharelesca, abrangente e reflexiva. É famosa sua tese do Case System, que coloca a problematização do Direito no cerne da formação do futuro bacharel. Figura influente nas décadas de 1940/50/60, Dantas critica de maneira sistemática o formalismo do ensino jurídico no que diz respeito à sua exagerada mecanização manifesta na relação professor/aluno. Em tal crítica, considera que o aluno, não o professor, deva ser o sujeito principal no processo de aprendizagem. No case system, a sala de aula se transforma em um espaço democrático para análise de casos concretos, onde são esgotadas todas as possibilidades e alternativas possíveis que envolvem os casos escolhidos para serem problematizados. Vale dizer que nessas discussões o aluno é levado a buscar, através da pesquisa, elementos ou evidências na realidade sócio-jurídica para sustentação do raciocínio em construção. Problematização, realidade social, raciocínio jurídico e espírito crítico, esses são os conceitos principais que devem conduzir o ensino jurídico, dentro da idealização de San Thiago Dantas. Dentro desse pressuposto, a Portaria 1886/94 do MEC, que reformula o ensino jurídico no Brasil, vai de encontro à idealização acadêmica no que se refere ao modelo pedagógico considerado mais adequado às novas demandas sociais do contexto sócio-institucional brasileiro a partir de 1985 A redemocratização do país, efetivada nesse momento, introduziu novos atores sociais, novas formas de convivências, dentro de uma nova ordem já globalizada exigente por um novo Direito. É justamente essa nova realidade global, onde passa a prevalecer o estreitamento das relações institucionais, bem como o estreitamento do choque de interesses dentro dessas mesmas interações institucionais, que sinalizam pela necessidade de um novo Direito ou novos direitos. A Portaria 1886/94 é institucionalizada com intuito pontual de modernização do ensino jurídico e, por extensão, estabelecer a modernização da experiência jurídica nacional, uma vez que a atuação contextual do Direito é decorrência direta da formação institucional dos operadores do Direito. Nesse sentido, a portaria redefine a estrutura curricular do ensino jurídico

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estabelecendo diretrizes inovadoras, a saber, todo curso de direito deve contar, obrigatoriamente, com biblioteca própria com acervo de, pelo menos,10.000 volumes. Ter programa próprio de iniciação científica e a pesquisa institucional passa a ser, também, obrigatoriedade curricular. Disciplinas de caráter humanista ou social, antes opcionais, passam a ser disciplinas obrigatórias. É introduzida como disciplina, também obrigatória, Metodologia. A monografia como trabalho de conclusão de curso torna-se requisito acadêmico obrigatório para integralização da grade curricular. Essas são apenas algumas diretrizes definidas pela Portaria 1886/94, apontadas apenas como ilustração à concepção idealista do ensino jurídico. Assim sendo, o idealismo acadêmico defende a autonomia da Universidade, bem como a autonomia do ensino jurídico, desatrelando-o de qualquer vinculação utilitarista, estabelecida a priori, comprometedora da boa formação jurídico-intelectual. O desatrelamento do ensino jurídico ao poder constituído, através do mercado de trabalho, também é pressuposto importante que precisa ser superado, na leitura do idealismo acadêmico. Tal superação, permite ao futuro bacharel em Direito a construção de uma identidade própria e que será fundamental para sua autonomia decisória na vida profissional. Por conseguinte, essa personalidade jurídica construída de forma independente ao longo da formação, irá possibilitar uma justa adequação entre o legalismo formal e o dinamismo social contemporâneo globalizado. “Ao se questionar o papel do Direito face às complexidades impostas pelo ambiente global, não se pode esquecer que sua construção sempre estará intrinsecamente relacionada ao modo como os meios acadêmicos o repassam ao seus futuros operadores (juristas, advogados, juízes e novos professores) Sua percepção, imbuída nos ensinamentos das faculdades de direito, encontra-se atrelada ao dogma do normativismo racionalista que impera nas cátedras espalhadas país afora. O modelo imposto, então, tornase inadequado para resolver todas as crises que assolam nossa sociedade, o que torna ainda mais importante a releitura do Direito dentro do sistema de educação superior vigente” (AMORIM SILVA, 2009:70).

Considerações finais

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A partir do exposto, algumas observações finais podem ser estabelecidas. O paradigma pedagógico que predomina em nossas escolas de direito é o modelo por uma formação tecnicista voltada para o mercado de trabalho,ou seja, predomina, estando devidamente consagrada nos cursos de Direito no Brasil, uma prática educativa pragmática, utilitarista e de natureza profissionalizante. Essa realidade é incontestável e de difícil reversão, é fato. Entretanto, consideramos possível inserir nessa realidade educacional técnico-normativista, pressupostos idealistas de caráter filosófico e humanista que neutralizem e transformem tal instrução pontual em uma formação plena e mais abrangente. Acreditamos ser possível, a partir dessa adequação pedagógica

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entre profissionalização e academicismo, a superação do formalismo educativo manualesco profissionalizante por uma concepção educativa mais elevadora e comprometida socialmente. Acreditamos ainda que, a partir do desatrelamento radical da Universidade em relação à economia, à política e ao mercado, propiciando total independência ao conhecimento que se produz e reproduz no ambiente acadêmico, é possível formar bacharéis em Direito que atendam de maneira muito mais eficiente a economia (capitalismo), a política (Estado) e às demandas do mercado. Tal desatrelamento e independência da Universidade não a transforma em uma espécie de “ilha da fantasia”, desconectada da realidade que a circunda, ao contrário, apenas a desvincula de interesses específicos e nem sempre de caráter social. Nesse desatrelamento e independência da Universidade e do Conhecimento(jurídico) viabiliza-se a conjunção entre Modernidade e Tradição, isto é, a confluência entre ciência e reflexão, entre tecnicismo e cultura, entre mecanicismo e prudência, a conduzir um livre-pensar virtuoso voltado para proteção e promoção da sociedade em sua totalidade Como referência maior à essa idealização, recorremos à Grécia Clássica, reconhecidamente berço da Civilização Ocidental, ou mais precisamente, a filosofia socrática. A Grécia Clássica não é apenas local de nascimento da Filosofia, é também local de origem da Pedagogia enquanto reflexão sistemática da Educação. Dessa origem, extráímos a visão de Sócrates, pensador que via no prática educativo algo muito maior e mais nobre do que um simples ato mecânico de transmissão de conhecimento. Além de transformar-se em referência para a filosofia católica, também o foi para o Iluminismo e para a filosofia moderna. Segundo alguns autores, foi o ‘mais espantoso fenômeno pedagógico’ da história do mundo ocidental. Sócrates foi o primeiro pensador a definir o problema do conflito entre a velha e a nova educação grega, entre interesse social e interesse individual. Para ele, a base de toda ação virtuosa está no conhecimento e o caminho mais seguro de formação da virtude na alma humana é através do conhecimento, ou seja, a pedagogia socrática tinha como objetivo maior desenvolver na alma de cada indivíduo a plena capacidade dialética de apreensão da verdade universalmente válida que é a incessante busca da retidão moral através do conhecimento. Princípio esse que determinava para a educação a responsabilidade de deenvolver nos iniciados a capacidade de pensar, não podendo transformar-se em simples processo técnico de transmissão de saber, tal como faziam os sofistas. Em Sócrates, educação é ato de liberação e elevação do espírito, entendido como eixo divino do Homem. Nesse sentido, sua idealização pedagógica aponta uma hierarquia de valores que estabelece uma nova concepção de dons, a saber, a alma em primeiro plano, o corpo em segundo e, em plano inferior, a riqueza e o poder. Assim, a experiência da alma como morada dos valores humanos desloca a virtude e a felicidade para o interior do próprio homem para, a partir dessa

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ética internalizada, projetar toda sua grandeza e potencialidade moral através de manifestações do corpo na convivência social. É nesse novo ideal de vida que se assenta a pedagogia socrática. Platão, díscípulo mais ilustre de Sócrates, insere a Política na idealização socrática. Para ele, o Estado ideal é o Estado justo.Sendo a justiça um bem inerente ao Homem, cabe à educação cuidar da modelação de sua alma e fazê-lo esforçar-se para caminhar sempre para cima. Assim, a República, seu escrito mais famoso, é uma obra de formação humana, logo, pedagógica, e que põe a educação como fio condutor do processo de formação do homem justo dentro de um Estado justo. Estudar na Academia de Platão era algo honroso, onde o tipo de vida representado pelos filósofos era considerado superior ao do cidadão comum. Na verdade, os filósofos platônicos não se identificavam com a vida pública e, reunidos na Academia, formavam segmento distinto da vida da polis. A concepção pedagógica de Platão era extremamente rigorosa e estabelecia etapas a serem superadas pelos iniciados. Um primeiro segmento, que ia até aos 20 anos, onde, os mais aptos intelectualmente seguiam por mais 10 anos, quando ocorria nova seleção. Os mais capacitados que conseguiam avançar, eram formados para dialogar através da Filosofia e, quando atingiam 50 anos de idade, estariam preparados para comporem o corpo de magistrados e assumirem o poder devidamente preparados para tal, pois somente eles tinham o pleno domínio da Política. Talvez o mais ilustre discípulo de Platão tenha sido Aristóteles, ex-aluno da Academia e que superou o idealismo platônico desenvolvendo um princípio filosófico realista apoiado na observação e investigação científica. Apesar do rigor, a pedagogia de Aristóteles estava perfeitamente sintonizada ao Estado e aos costumes da antiga Grécia. Mesmo orientada para a Política e fundamentada na Filosofia, tal como em Platão, a concepção educativa aristotélica efetivada no Liceu, sua escola filosófica de formação educacional, se impôs de forma mais positiva e realista. Sua maior contribuição talvez tenha sido a prática da investigação particular mas privilegiando a essência filosófica da totalidade, mantendo, assim, o justo equilíbrio entre a Filosofia e as ciências particulares. Dentro dessa perspectiva, a pedagogia aristotélica é objetiva e aponta em direção à investigação científica, uma vez que, além de procurar a verdade na alma do Homem, também a busca nos fatos reais da natureza e da vida social. Por essa razão, seu pensamento se impôs universalmente e serviu de base para toda ação pedagógica da Idade Média ao ser devidamente adaptado ao Catolicismo e incorporado pela Escolástica. Assim, a síntese católica que daí vai derivar, foi, depois da educação socrática, a segunda grande revolução pedagógica da história da humanidade ocidental. Concluindo, podemos afirmar que, a partir de um olhar mais apurado nas concepções pedagógicas de Sócrates, Platão e Aristóteles, é possível vislumbrar que, a devida junção entre tais concepções, pode levar à uma formação que se aproxima do ideal. O que estamos querendo dizer é que na pedagogia socrática, a formação intelectual é a meta principal, na pedagogia platônica a formação política é a principal referência para formação do homem com espírito público

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e na pedagogia aristotélica a formação científica é pressuposto pedagógico fundamental para domínio do mundo real, assim, associando esses paradigmas pedagógicos, torna-se viável neutralizar o utilitarismo pedagógico reinante na contemporaneidade e forjar uma formação mais sólida, tornando o futuro bacharel apto a dar respostas justas à “teia social’ globalizada que nos envolve.

Referências bibliográficas AMORIM SILVA, Gisele. E Outros. Direito, Ensino Jurídico e Sociedade Globalizada. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito/UERJ, Trabalho de Conclusão de Curso, 2010. BASTOS, Aurélio Wander. Ensino Jurídico no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. BATISTA, Talita M. Acerca do Ensino Jurídico. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito/UERJ, Trabalho de Conclusão de Curso, 2008. CASPER, Gerhard. Um Mundo Sem Universidade? Rio de Janeiro: Eduerj, 2009. DEMO, Pedro. O Mais Importante da Educação Importante. São Paulo: Atlas, 2012. GASSET, Ortega Y. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 1987. JONES, Hans. Princípio Responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto, 2011. MARTINS, Vanderlei. Modernidade e Universidade. In: As Novas Fronteiras do Direito, Juiz de Fora: Editar, 2015, p.65-77. ______. Primórdios do Ensino Técnico e das Ciências no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: COPPE/UFRJ, 1995. ______. Direito e Globalização. Apontamentos de Aulas. Rio de Janeiro: Faculdade de Direito/UERJ, 2015. ROHDEN, Humberto. Novos Rumos Para A Educação. São Paulo: Martin Clare, 2005. SOBRINHO, Jose Dias. Educação Superior, Globalização e Democratização. In: Direito, Ensino Jurídico e Sociedade Globalizada, Rio de Janeiro: Fac.Dir./UERJ, 2010.

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A Fazenda Pública e o Processo: As Inovações do Novo Código de Processo Civil Felipe Mahfuz de Araujo1

Introdução Evolução e Conceito de Fazenda Pública Inicialmente, há que se destacar que o Novo Código de Processo Civil (Novo CPC), representado pela Lei 13.105/2015, reservou um capítulo apenas para a advocacia pública, sendo importante ter em mente o seu significado, bem como os antecedentes históricos que estabeleceram a sua atual função no Estado Democrático de Direito. Ainda para a compreensão da mens legis ao destacar Título próprio à advocacia pública, é imperioso ressaltar que a Defensoria Pública, órgão que também exerce a advocacia pública, teve a si reservada outra passagem, razão pela qual não será objeto deste ensaio. Quando imperava entre as sociedades o regime absolutista, a ideia que norteava os atos estatais era a de que o governante nunca cometia equívocos no exercício da administração pública, noção esta representada pela expressão “the king can do no wrong”, importante brocardo jurídico que sustentava a ausência de responsabilidade civil oriunda dos atos estatais. Dessa noção de intangibilidade dos atos estatais ao controle, os monarcas e seus agentes jamais respondiam pelos danos causados aos súditos. Ocorre, porém, que o estabelecimento do Direito Administrativo através da Revolução Francesa de 1.889, bem como a sua evolução sob diversas teorias, como a Teoria do Órgão de Otto Gierke, passaram a imputar ao Estado, como pessoa jurídica dotada de deveres e direitos, a autoridade de seus atos e a responsabilidade pelos resultados deles decorrentes. A partir do momento em que o Estado passa a figurar lado a lado com o particular, como sujeito de direitos e estabelecendo também relações de vinculação direta com seus administrados, passou a ser necessária a defesa de seus interesses no âmbito processual por corpos técnicos, especializados para a defesa dos interesses públicos primário e secundário, quando estabelecida uma relação processual em que figure o ente público. Dessa necessidade de defesa processual, bem como de velar pelo interesse público dentro da Administração Introversa, surgiu a noção de assessoramento jurídico da Administração Pública. 1 Procurador do Município de Niterói (2015) e do Estado de São Paulo (2010-2015)

A Fazenda Pública e o Processo: As Inovações do Novo Código de Processo Civil

A advocacia pública tem origem comum ao Ministério Público, a quem compete a advocacia da sociedade2, espécie do gênero advocacia pública. Por muito tempo, em entes nos quais não havia corpo técnico de assessoramento jurídico para a Administração Pública, o Ministério Público era o órgão que realizava a sua defesa processual. Com o advento da Constituição Federal de 1988, que trouxe uma Seção específica para a advocacia pública, inicialmente regulando a advocacia da União e, após a Emenda Constitucional nº 80 de 1998, a advocacia pública em geral, os entes federativos passaram a organizar seus corpos técnicos através de Procuradorias Gerais. A Constituição Federal de 1988 acrescentou às três funções tradicionais do Estado (função normativa, função jurisdicional e função administrativa) determinadas funções de fiscalização, controle, zeladoria, provocação e defesa isentas de comprometimento com aspectos político-partidários, dentre as quais se enquadra a advocacia pública. São entidades dotadas de especialização técnica, com autonomia de desempenho, que se materializam através das funções constitucionalmente independentes, representadas, além da Advocacia Pública, pelos tribunais de contas, pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública e pela OAB. O Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia Pública formam um bloco de funções públicas destacadas dos três Poderes do Estado, representando o conceito Constitucional de funções essenciais à justiça, com regulamentação nos artigos 127 a 135 da Constituição Federal. A essencialidade inerente a essas funções é explicada pelo magistério de Diogo de Figueiredo Moreira Neto3: “A essencialidade à justiça deve ser entendida no sentido mais amplo que se possa atribuir à expressão e não limitado, como poderia parecer à primeira vista, à justiça formal, entendida como aquela prestada pelo Poder Judiciário, estando compreendidas, assim, no conceito de essencialidade todas as atividades de orientação, de fiscalização, de promoção e de representação judicial necessárias à zeladoria, provocação e defesa de todas as categorias de interesses protegidos pelo ordenamento constitucional”.

Diferentemente do Ministério Público, que exerce a advocacia da sociedade, a advocacia pública é efetivada também pela advocacia de Estado, esta representada pela Advocacia-Geral da União, pelos Procuradores do Estado, bem como pelos Procuradores autárquicos e pelos Procuradores do Município submetidos ao regime estatutário de pessoal. A advocacia pública, como gênero, também é exercida pela advocacia dos hipossuficientes, representada pela Defensoria Pública (art. 134 da CF). Em que pese tal classificação ser a que melhor representa o conteúdo constitucional, o Novo CPC acabou por separar a Defensoria Pública do Título reservado à advocacia pública, bem como o Ministério Público em outro, motivo 2

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3

NETTO. Diogo de Figueiredo Moreira. Curso de Direito Administrativo, 16ª ed., 2014, p. 29. Ibidem.

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pelo qual ao se referir à advocacia pública sem se fazer qualquer distinção, por certo estaremos nos referindo à advocacia de Estado como acima conceituado. Frente às noções apresentadas podemos conceituar a advocacia pública como a função constitucionalmente prevista de estabelecer a comunicação entre o Direito e a Política, compatibilizando as políticas públicas, definidas pelos representantes legitimados democraticamente, aos princípios e preceitos do ordenamento jurídico, constituindo importante instrumento de aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito4. Veja-se que o conceito apresentado a define muito mais em atenção à sua missão Constitucional do que pelos deveres institucionais aos quais deve seguir o advogado público, com ênfase à sua função de viabilizar juridicamente as políticas públicas legítimas estabelecidas pelos agentes políticos democraticamente eleitos, na esteira do que defende Gustavo Binenbojm5 ao analisar sua importância para o Estado Democrático de Direito.

RegrasProcessuais Referentes à Advocacia Pública Vista a evolução da advocacia pública, sua missão Constitucional e conceito, passa-se ao objeto deste estudo, qual seja, o regramento processual dispensado ao ente público quando parte em uma relação processual e as inovações trazidas pelo Novo CPC. Ao se apreciar o regramento processual da advocacia pública, torna-se importante conceituar o que se entende por Fazenda Pública, que nada mais é do que o “cliente” ao qual a advocacia pública tem a missão de defender e proteger seus interesses. Para a compreensão do que seja a Fazenda Pública, é necessário, primeiro, entender o que se entende por Administração Pública. Segundo Hely Lopes Meirelles, Administração Pública significa todo o aparelhamento do Estado dedicado à realização de seus serviços, buscando a satisfação das necessidades coletivas6. Representa o complexo de entes públicos que têm suas vontades determinadas pela lei e pelo Direito em geral (juridicidade), que estabelecem a finalidade a ser perseguida pelos administradores. Com efeito, diversas são as classificações destinadas ao estudo da Administração Pública, sendo a mais importante, ante a estrutura constitucional, a que a subdivide em Administração Pública Direta e Administração Pública Indireta. A Administração Pública Direta é composta pelos “entes federativos em si, com suas divisões orgânicas internas, aí incluídos os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário”7. Estes entes representam as pessoas jurídicas federativas. Já a 4

5 6 7

BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do Direito administrativo no Brasil: um inventário de avanços e retrocessos. In: A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas. Coordenação Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. Ibidem. MEIRELES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000. ARAGÃO. Alexandre Santos de. Curso de Direito Administrativo, 2012, p. 113.

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A Fazenda Pública e o Processo: As Inovações do Novo Código de Processo Civil

Administração Pública Indireta é “constituída por entidades criadas pelas pessoas jurídicas federativas e a elas ligadas e utilizadas para a consecução dos seus fins, mas que com elas não se confundem, já que constituem de per se pessoas jurídicas dotadas de personalidade jurídica própria, não sendo meras divisões orgânicas internas dos entes federativos que as criaram”8. Cumpre esclarecer, para a melhor compreensão do regramento processual dedicado à Fazenda Pública, que a Administração Pública Indireta é composta também por pessoas jurídicas de direito privado, às quais não se aplicam especificidades processuais dedicadas à Fazenda Pública, em razão do regime jurídico dedicado a elas, na forma do que prescreve o artigo 173 da Constituição Federal quanto às empresas públicas e sociedades de economia mista. Salvo exceções inerentes aos casos em que prestam serviço público, o regramento processual dedicado às empresas estatais é o mesmo que se aplica às demais empresas. Dessa forma, quando a Administração Pública ingressa em juízo através de seus órgãos com capacidade processual, de suas autarquias, entidades estatais ou fundações públicas recebe a designação de Fazenda Pública, pois é o erário que suporta os encargos patrimoniais oriundos do resultado do processo9. É importante salientar que a evolução do Direito Administrativo pátrio acabou por gerar novas relações jurídicas estabelecidas pela Administração Pública com entes privados, fruto da crescente noção de consensualidade e de legitimação democrática dos atos estatais. Dessas relações jurídicas nasceu o conceito de Administração Associada, que não se confunde com a Administração Pública, e é representada por entes paraestatais (serviços sociais autônomos, por exemplo) e entes extraestatais por parceria ou por colaboração, tais como as organizações sociais e os autorizatários, respectivamente. No tocante às relações processuais que estabelecem, estes entes da Administração Associada não se configuram como Fazenda Pública em juízo, em que pese sofrerem certas restrições em seus regimes jurídicos, em função dos vínculos jurídicos que firmam com a Administração Pública. Dessa forma, o Novo CPC, ao destinar Título exclusivo para a advocacia pública, tem como finalidade destacar a sua atuação, bem como regular e deixar claro como a norma processual entende essa importante função constitucional: “Art. 94. Incumbe à Advocacia Pública, na forma da lei, defender e promover os interesses públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por meio da representação judicial, em todos os âmbitos federativos, das pessoas jurídicas de direito público que integram a Administração direta e indireta. Parágrafo único. No caso dos entes públicos desprovidos de procuradorias jurídicas, a Advocacia Pública poderá ser exercida por advogado com procuração”. 8

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9

Ibid., p. 114. MEIRELLES, op. cit., p. 590.

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Esclarecida a noção de quais entes podem ser classificados como Fazenda Pública, urge verificar como se dá o seu regramento processual, tendo em vista a sua função primordial de defesa do interesse público. Fruto desta defesa, especialidade importante na posição processual da Fazenda Pública é a não incidência do efeito material da revelia, qual seja, a presunção de que os fatos alegados pelo demandante são verdadeiros (art. 341 do Novo CPC), quando não apresentada contestação pelo ente público. Isto ocorre porque, enquanto não sobrevier pronunciamento judicial afastando-a, os atos administrativos têm a presunção de serem tidos como verazes, legais, legítimos e lícitos10. É a chamada presunção de validade ou juridicidade do ato administrativo. Importante assinalar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça fez importante diferenciação no REsp 1.084.745-MG, aplicando o efeito material da revelia ao ente público, em caso em que a relação jurídica estabelecida com o particular e deduzida no processo era de direito privado, não amparada pelas peculiaridades inerentes ao regime jurídico público aplicável à Fazenda Pública. Vale a transcrição do julgado pela sua importância (grifos nossos): “Incidem os efeitos materiais da revelia contra o Poder Público na hipótese em que, devidamente citado, deixa de contestar o pedido do autor, sempre que estiver em litígio uma obrigação de direito privado firmada pela Administração Pública, e não um contrato genuinamente administrativo. Segundo os arts. 319 e 320, II, ambos do CPC, se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão verdadeiros os fatos afirmados pelo autor, não induzindo a revelia esse efeito se o litígio versar sobre direitos indisponíveis. A Administração Pública celebra não só contratos regidos pelo direito público (contratos administrativos), mas também contratos de direito privado em que não se faz presente a superioridade do Poder Público frente ao particular (contratos da administração), embora em ambos o móvel da contratação seja o interesse público. A supremacia do interesse público ou sua indisponibilidade não justifica que a Administração não cumpra suas obrigações contratuais e, quando judicializadas, não conteste a ação sem que lhe sejam atribuídos os ônus ordinários de sua inércia, não sendo possível afastar os efeitos materiais da revelia sempre que estiver em debate contrato regido predominantemente pelo direito privado, situação na qual a Administração ocupa o mesmo degrau do outro contratante, sob pena de se permitir que a superioridade no âmbito processual acabe por desnaturar a própria relação jurídica contratual firmada. A inadimplência contratual do Estado atende apenas a uma ilegítima e deformada feição do interesse público secundário de conferir benefícios à Administração em detrimento dos interesses não menos legítimos dos particulares, circunstância não tutelada pela limitação dos efeitos da revelia prevista no art. 320, II, do CPC. Dessa forma, o reconhecimento da dívida contratual não significa disposição de direitos indisponíveis; pois, além de o cumprimento do contrato ser um dever que satisfaz o interesse público de não ter o Estado como inadimplente, se realmente o Direito fosse indisponível, não seria possível a renúncia tácita da prescrição com o pagamento administrativo da dívida fulminada pelo tempo”.  (REsp 1.084.745-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 6/11/2012). 10

NETTO. Op. cit., p. 157.

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A Fazenda Pública e o Processo: As Inovações do Novo Código de Processo Civil

Tal regime jurídico da Administração Pública também a afasta do ônus da impugnação específica dos fatos (artigo 341 e parágrafo do Novo CPC e artigo 320 do CPC/73), em razão da Fazenda Pública em juízo defender direito indisponível não passível de confissão, bem como pela presunção acima citada. Tal ônus é também conhecido como Revelia Substancial ou Material.

A Capacidade Postulatória dos Entes Públicos Com relação à capacidade postulatória da Administração Pública, inicialmente é importante lembrar que o advogado público é a própria Fazenda Pública em juízo, o que traz à lembrança a já clássica definição de Pontes de Miranda de que os advogados públicos presentam a Administração Pública em juízo, não sendo correto utilizar a expressão “representam”. Tal noção advém da Teoria do Órgão supracitada. No tocante à comprovação de sua capacidade postulatória, os advogados públicos não precisam efetuá-la, pois são dotados de mandato legal, ou seja, a sua capacidade de postular em juízo advém da própria lei que regula o órgão do qual fazem parte, qual seja, a Procuradoria do ente federativo, bem como da sua previsão constitucional. Há peculiaridades em relação aos municípios, pois estes entes não são obrigados a criar Procuradorias para defendê-los em juízo, como se pode ver do artigo 12, II, do CPC de 1973 (art. 75, III, do NCPC), que prevê sua “representação” por seu procurador ou pelo prefeito, em verdadeira legitimidade concorrente. Não havendo o órgão, as notificações processuais são feitas na pessoa do prefeito, que deverá outorgar mandato a algum advogado para postular no processo. Lembre-se que segundo o artigo 28, I, da Lei 8.906/94 não está autorizado o Chefe do Executivo a exercer a advocacia. Tal regra referente à representação processual do município não se alterou no Novo CPC, como se pode ver da proposição do seu artigo 182. Já em relação à “representação” processual das autarquias e fundações públicas, devem ser observadas as previsões da lei que as criou, podendo o órgão do ente federativo ao qual fazem parte assumir tal mister, noção doutrinária incorporada pelo art. 75, IV, do NCPC.

Dos Prazos para Manifestação da Fazenda Pública

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Norma de relevada importância no Código de 1973, o artigo 188 prevê que os prazos para a Fazenda Pública recorrer são contados em dobro e para contestar em quádruplo. Tal previsão sempre foi justificada pela máquina burocrática a qual se submetem os procuradores jurídicos destas entidades, bem como pelo volume da demanda a qual são submetidos, razão pela qual a concessão de prazos dilatados equilibraria as posições processuais das partes quando figurasse a Fazenda Pública como tal. Ocorre, porém, que o Novo CPC prevê, sem seu artigo 183, que os prazos para a Fazenda Pública se manifestar nos autos serão contados todos em dobro, acabando com o prazo em quádruplo para contestar. Eis o teor da norma:

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“Art. 183. A União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público gozarão de prazo em dobro para todas as suas manifestações processuais, cuja contagem terá início a partir da intimação pessoal”.

Em que pese a possível justificativa da extinção do prazo quádruplo pela busca da celeridade processual, o efeito da nova previsão pode ser, no mínimo, problemático. Diversos são os casos em que o Procurador do ente público depende de informações a serem fornecidas por outros órgãos da Administração Pública, que retardam a resposta à solicitação. Será necessária uma nova estruturação das administrações públicas, para que se evite o prejuízo à defesa do ente público, o que pode ser inviável em municípios de menor desenvolvimento estrutural. Importante inovação do artigo colacionado é a que garante a contagem dos prazos a partir da intimação pessoal, pois, à luz do CPC de 1973, os prazos processuais contavam-se da intimação do ente público pela regra geral dos artigos 236 a 239, salvo exceções expressas como as do artigo 25 da Lei 6.830/80, que trata das execuções fiscais, e da Lei 9.028/95, que em seu artigo 6º prevê a intimação pessoal da Advocacia-Geral da União. Tal previsão do Novo CPC vai ao encontro do que sempre foi sustentado pelos advogados públicos e por parte da doutrina, pois é instrumento importante na proteção dos princípios da eficiência e da celeridade processual, ambos de guarida constitucional. Além disso, inovação que certamente trará benefícios à celeridade processual é a que prevê a intimação pessoal através de carga, remessa ou meio eletrônico (art. 75, §1º). A experiência no uso da intimação eletrônica, nos moldes da Lei 11.419/2006, tem trazido importantes resultados, como na aceleração dos trâmites das execuções fiscais no Estado de São Paulo. A possibilidade de que o advogado público visualize diversos processos de igual providência processual a ser tomada, possibilita que a marcha processual não estacione, dando fluidez e celeridade ao procedimento. É importante destacar de modo sucinto, em respeito ao objeto deste trabalho, que nem todos os prazos processuais da Fazenda Pública estavam sob incidência do artigo 188 do CPC de 1973, o que foi inserido no novel artigo 183, §2º, do Novo CPC, incorporando o entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o tema. Primeiramente, cabe demonstrar que no procedimento sumário não se aplica o prazo dilatado do artigo 188, pois há previsão específica no artigo 277 do CPC/73. Tal prescrição não tem correspondente no Novo CPC, mantendose em relação aos processos já inaugurados e não sentenciados, na forma do artigo 1.046, §1º, do NCPC. Com a aparente extinção das peças de exceção de competência e de reconvenção, parece eliminada a discussão doutrinária acerca da aplicação do prazo diferenciado a estas manifestações, já que ambas devem ser apresentadas no corpo da contestação. Já em relação à resposta na ação rescisória, por ser

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A Fazenda Pública e o Processo: As Inovações do Novo Código de Processo Civil

a previsão do artigo 970 do Novo CPC bem semelhante a do artigo 491 do CPC/73, a controvérsia deve se manter, parecendo-nos mais coerente com a sistemática do Código e com a mens legis a concessão do prazo majorado para contestar a ação rescisória, na linha do que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ) no REsp 363.780/RS. Vale destacar a previsão de prazo em dobro para a Fazenda Pública constava também no artigo 186 do anteprojeto do novo CPC, que tratava do litisconsórcio. Cumpre esclarecer, que sempre foi entendimento consolidado que o prazo majorado para contestar não se acumula ao prazo em dobro para litisconsortes (artigo 191 do CPC/73) que têm procuradores diferentes. Ocorre que a versão final do Novo CPC acabou por excluir a Fazenda Pública da norma do artigo 229, mantendo-se, ao nosso sentir, o entendimento pela não cumulação do prazo em dobro para os litisconsortes com o prazo majorado para o ente público se manifestar. Já em relação ao prazo diferenciado para recorrer, não há aplicação dessa prerrogativa aos supedâneos recursais, tais como o pedido de reconsideração. Também não há aplicação às ações autônomas de impugnação, como a ação rescisória, o mandado de segurança contra ato judicial, os embargos de terceiro e a reclamação constitucional11. Não se aplica, ainda, o prazo privilegiado para as respostas a recurso ou contrarrazões, sendo objeto de discussão na doutrina se seria aplicável ao recurso adesivo. Para Leonardo José Carneiro da Cunha12, não se aplica, pois o prazo para o recurso adesivo seria o mesmo para contrarrazões que é simples. Há, porém, julgados dos Tribunais Superiores aplicando o prazo majorado por ser uma forma de interposição recursal (REsp 171.543/RS), posição que beneficia o ente público. Por fim, em relação aos embargos à execução da Fazenda Pública, em que pese não haver tal denominação no Novo CPC, o artigo 535 prevê a impugnação pelo ente público com prazo específico de 30 dias, razão pela qual não se aplica a previsão do artigo 183 pela especificidade do dispositivo do artigo 535, que trata de prazo próprio. Trata-se de aplicação da norma do artigo 183, § 2º, acima citado.

As Despesas do Processo e a Fazenda Pública Incialmente, é preciso diferenciar as despesas processuais das custas e emolumentos no tocante à sua natureza jurídica. Já se sedimentou nos tribunais superiores a natureza jurídica de tributo com relação às custas e aos emolumentos (ADI 1145), pois são espécies de taxa que remuneram os serviços públicos prestados pela máquina judiciária, tanto pela prestação jurisdicional, quanto pelos serventuários de cartório ou serventias não oficializadas. Dessa forma, não se deve exigir o pagamento de custas e emolumentos à Fazenda Pública, o que 11

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CUNHA. Leonardo carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo, 12. ed., passim. 66-68. Op. cit., p. 72.

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não a exime de ressarcir o valor das despesas feitas pela outra parte, quando vencida. Tal previsão já constava do artigo 27 do CPC/73, refletido no artigo 91 do Novo CPC. A noção que se deve ter em mente é a de que, ao pagar as custas e emolumentos antecipadamente, a Fazenda Pública estaria remunerando o mesmo ente do qual faz parte, o que ensejaria a confusão tratada no artigo 381 do Código Civil (AgRg no REsp 1.276.844-RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 5/2/2013). Já com relação às despesas processuais em sentido estrito, como remuneram pessoas estranhas aos quadros funcionais do Judiciário, devem ser recolhidas antecipadamente, quando requerido o labor pela Fazenda Pública. O artigo 27 do CPC/73 não estabelecia tal diferenciação, o que foi oportunamente corrigido pelo Novo CPC no parágrafo primeiro do artigo 91, absorvendo para a norma a previsão do Enunciado da Súmula nº 232 do STJ13 e, oportunamente, autorizando o uso de entidades públicas para realização da perícia. “As perícias requeridas pela Fazenda Pública, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública poderão ser realizadas por entidade pública ou, havendo previsão orçamentária, ter os valores adiantados por aquele que requerer a prova”. A grande novidade da norma supracitada é a previsão de que os valores destinados à perícia só serão adiantados pelo ente público quando houver previsão orçamentária. Há que se verificar como tal comprovação se dará na prática, se caberá a mera alegação ou se será necessária a apresentação de documento que comprove esta dotação. Possível solução é a realização de convênio com o Poder Judiciário demonstrando a dotação destinada às despesas do processo pelo ente público, quando do início do ano-exercício ou em período maior. O enunciado da Súmula nº. 190 do STJ14 também assenta o entendimento de que as despesas processuais devem ser adiantadas pela Fazenda Pública, ao tratar da antecipação dos valores para custeio das despesas com oficial de justiça nas execuções fiscais.

A Eficácia das Sentenças Proferidas contra a Fazenda Pública Para que tenha plena eficácia na produção de seus efeitos, as sentenças proferidas em processos em que figura a Fazenda Pública, contrárias aos interesses por ela defendidos, devem, como regra, submeter-se ao instituto do Reexame Necessário. Por reexame necessário entende-se a condição de eficácia das sentenças proferidas contra o ente público, em razão da natureza pública do interesse defendido em juízo por tais entidades. 13

“A Fazenda Pública, quando parte no processo, fica sujeita à exigência do depósito prévio dos honorários do perito”. 14 “Na execução fiscal, processada perante a justiça estadual, cumpre a Fazenda Pública antecipar o numerário destinado ao custeio das despesas com o transporte dos oficiais de justiça”.

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A Fazenda Pública e o Processo: As Inovações do Novo Código de Processo Civil

A natureza jurídica do reexame necessário já foi objeto de questionamentos na doutrina, havendo entendimentos no sentido de que seria um recurso interposto pelo juiz15, porém tendo sido sedimentada a tese de que não se trata de recurso por lhe faltar condições imprescindíveis para a configuração da natureza recursal, quais sejam: ausência de sua enumeração no rol taxativo dos recursos; ilegitimidade do magistrado para recorrer; inexistência de prazo para “interposição”; inexistência de pedido de reforma da decisão, dentre outras. Convém fazer breves esclarecimentos quanto às hipóteses em que deve incidir a norma que prevê o reexame necessário. Com efeito, as decisões interlocutórias, por não serem sentenças proferidas contra a Fazenda Pública, não estão submetidas ao reexame necessário para terem eficácia. Já em relação às decisões concessivas de tutela antecipatória, não são sentenças e, a princípio, não se sujeitam ao reexame necessário, como já decidiu inclusive o STJ (REsp 659.200/DF). Ocorre, porém, que muitas vezes as antecipações de tutela acabam por esgotar o resultado do processo, o que faz com que importantes vozes da doutrina entendam pela sua submissão ao reexame necessário16. Já em relação às sentenças terminativas, faz-se necessário apreciar se são enquadradas no conceito de sentenças proferidas contra a Fazenda Pública, representando decisões em desfavor como entendem Candido Rangel Dinamarco17 e Leonardo José Carneiro da Cunha18, ou se a expressão se referiria apenas às decisões que resolvem o mérito, entendimento adotado pelo STJ (REsp 927.624/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 02/10/2008, DJe 20/10/2008). Com relação à posição processual da Fazenda Pública, é importante salientar que o reexame necessário é garantido às hipóteses em que o ente público é parte da relação jurídica deduzida no processo, e não quando apenas figura como parte do processo (casos em que figura no processo sem defender seu direito diretamente). Por isso, quando figurar como assistente simples, por exemplo, não há reexame obrigatório da sentença que contrariar o interesse assistido pelo ente público, pois não assume a condição de parte da relação jurídica, mas de mero auxiliar que não se sujeita à coisa julgada. Não há sentença contra a Fazenda proferida. A previsão do reexame necessário no CPC/73 está contida no artigo 475, sendo que no artigo 496 do Novo CPC o instituto foi regulamentado com importantes inovações, tanto para a atualização e aperfeiçoamento da norma, quanto com o intuito de dar celeridade ao processo. 15

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Nesse sentido: BERMUDES, Sergio. Introdução ao processo civil. 4. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 174; e ASSIS. Araken de. Introdução aos sucedâneos recursais. In: Aspectos polêmicos e atuais dos recursos e de outros meios de impugnação. NERY JR. Nelson; WAMBIER; Teresa Arruda Alvim (coords). São Paulo: RT, 2002, p. 29. 16 Nesse sentido: DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Curso de direito processual civil, Vol. III, p. 483. 17 DINAMARCO. Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno, 3ª ed., p. 213. 18 CUNHA. Op. cit., p. 231.

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Dentre as inovações trazidas, destaca-se a diferenciação de valores (art. 496, §, 3º) entre os entes federativos na aplicação da não incidência do reexame necessário, medida que melhor observa a realidade administrativa e financeira da federação, já que nem todas as entidades federadas têm a mesma realidade estrutural e orçamentária. Além disso, houve ampliação dos casos em que a dispensa do reexame necessário tem fundamento em decisões anteriores dos tribunais, previsão que acompanha a evolução processual no sentido de se valorizar os precedentes e que aproxima o ordenamento jurídico do sistema da common law (art. 496, §4º).

A Questão dos Honorários Advocatícios em favor da Fazenda Pública Festejada alteração promovida pelo Novo CPC foi a destinação das verbas representadas pelos honorários de advogado aos advogados públicos, quando vencedora a Fazenda Pública na demanda. Durante muitos anos, algumas carreiras de advocacia pública tiveram que conviver com destinações das verbas de honorários advocatícios para usos outros que não a remuneração do seu próprio labor, uso que vai de encontro, inclusive, ao que prevê o Estatuto do Advogado (art. 22 da Lei 8.906/94), que assegura ao advogado atuante no processo o recebimento das verbas de sucumbência. O próprio Supremo Tribunal federal (ADI 1.194-4) tem entendimento no sentido de que as verbas de sucumbência são do advogado, e não para serem destinadas a outro órgão ou entidade como tem ocorrido. Veja-se o voto do eminente Min. Maurício Corrêa: “Ainda que se entenda que os honorários se destinavam a ressarcir a parte vencedora pelas despesas havidas com a contratação de profissional da advocacia e nessa perspectiva pertencessem ao litigante, segundo uma das exegeses admitidas do artigo 20 do CPC, restaria clara sua revogação pelos artigos 22 e 23 do superveniente estatuto da OAB (LICC, artigo 2º, §1º). (...)”.

Em sendo assim até então, o artigo 85, §19, do Novo CPC veio regulamentar e corrigir tal distorção, assegurando o recebimento pelos advogados públicos dos honorários de sucumbência, na forma da lei. Espera-se que a ressalva da norma à regulamentação legal não seja usada como manobra a limitar este importante dispositivo assegurador de direitos e princípios constitucionais do advogado público, tais como o princípio da isonomia e o direito ao trabalho remunerado. Espera-se que os poderes legiferantes não façam uso da previsão para retirar um direito assegurado pelo Novo CPC, em flagrante afronta à vedação do retrocesso. Por fim, em relação aos limites e valores nas condenações em honorários advocatícios exaradas contra a Fazenda Pública, os parágrafos do novel artigo 85 inovaram ao trazer faixas de percentuais em função do montante da condenação, bem como hipóteses de não condenação do ente público nas verbas de

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A Fazenda Pública e o Processo: As Inovações do Novo Código de Processo Civil

sucumbências, como nos casos de cumprimento de sentença que seja efetivado através de precatório (art. 85, § 7º). Manteve-se, corretamente, a previsão do artigo 20, §§3º e 4º, do CPC/73, no sentido da condenação da Fazenda Pública em honorários ter que considerar aspectos como o zelo profissional, dentre outros (art. 85, § 3º).

Conclusão Verifica-se, pelo exposto no presente ensaio, que o Novo Código de Processo Civil trouxe importantes inovações no regramento da atuação da Fazenda Pública em juízo. Destacou-se as mais importantes e que atingem diretamente os advogados públicos, sendo certo, ainda, que diversas outras alterações nos procedimentos normatizados pela nova codificação atingirão a Fazenda Pública, como a alteração das formas de resposta no procedimento ordinário, bem como a sincretização da fase executiva, o que merece um estudo mais aprofundado pelos profissionais do Direito. Em sendo assim, portanto, há que se verificar se o Novo CPC terá efeito benéfico ou não, não só para a Fazenda Pública, como para os administrados em geral. Acreditamos que as inovações buscam uma maior celeridade da marcha processual, o que se mostra positivo. Há, porém, dispositivos que só a prática forense dirá se serão eficazes, como se pode ver das ressalvas acima relatadas.

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O Poder Legislativo em Hegel e a Refutação Marxiana a partir de sua Crítica de 18431 Wellington Trotta2

Introdução Este texto tem dois escopos, a saber: primeiro, analisar a ideia de poder legislativo na Filosofia do direito de Hegel; segundo, refletir sobre as críticas elaboradas por Marx a Hegel na sua Crítica de 1843, isso no que tange ao legislativo em si e ao pensado pelo seu antigo Mestre. Assim, este trabalho ficou dividido em três tópicos e uma conclusão. No primeiro tópico, intitulado Os poderes estatais, segundo Hegel, conforme sua Filosofia do direito de 1821, aborda as concepções centrais de Hegel quanto ao conceito de Estado e como o filósofo justifica a desconcentração das funções do Estado a partir de outra estrutura lógica, diferente daquela pensada pela tradição inaugurada por Locke e Montesquieu. Vale lembrar que, para Hegel, não há divisão de poder, mas de funções. O Problema da representação, segundo Hegel, na Filosofia do direito é o título do segundo tópico deste artigo. Nele investigou-se a visão de Hegel sobre o legislativo e o critério de representação, elemento próprio dos sistemas políticos que consagram a ideia de parlamento como a casa dos indivíduos e suas corporações, isto é, frações do povo. O terceiro é último tópico recebeu o título de o Poder Legislativo, segundo Marx, na sua Crítica de 1843 ao pensamento de Hegel. Nesta etapa do artigo, pesquisaram-se não só as refutações que Marx faz a Hegel, como também a ideia que o jovem filósofo tem sobre o legislativo e sobre a representação política. Surpreende o fato de Marx tomar o Estado como um elemento negativo face à sociedade civil, entendimento que será acirrado no processo de sua investigação política quando descobrir a economia política. Por último, a conclusão ficou marcada por uma reflexão sobre o interesse geral como cerne do Estado, muito embora assim não o seja. 1

Este artigo foi extraído da minha dissertação do Mestrado em Ciência Política pelo IFCSUFRJ, cujo título é A gênese do pensamento político de Marx a partir da crítica à Filosofia do direito de Hegel, em 1843. Ressalto que este artigo é continuação ao anterior intitulado Elementos básicos do pensamento político de Marx a partir da Crítica de 1843. Não posso esquecer de mencionar que muitas partes deste artigo foram publicas pelos periódico www.achega.net e Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 17, n. 32, p. 195-213, fev. 2009. 2 O autor tem Graduação em Direito (UGF) e Filosofia (UERJ), Mestrado em Ciência Política (IFCS-UFRJ), Doutorado (IFCS-UFRJ) e Pós-Doc. (IFCS-UFRJ). Atualmente leciona Filosofia na UNESA, além de ser responsável pelo Núcleo de Pesquisa de Ciências Jurídicas e Sociais da UNESA de Cabo Frio e editor da Revista Transdisciplinar Logos e Veritas – www.revistalogoseveritas.inf.br

O Poder Legislativo em Hegel e a Refutação Marxiana a partir de sua Crítica de 1843

Os Poderes Estatais, segundo Hegel, conforme sua Filosofia do Direito de 1821 Divide-se o Estado político nas seguintes diferenças substanciais: a – Capacidade para definir e estabelecer o universal – poder legislativo; b – Integração no geral dos domínios particulares e dos casos individuais – poder de governo; c – A subjectividade como decisão suprema da vontade – poder do príncipe. Neste se reúnem os poderes separados numa unidade individual que é a cúpula e o começo do todo que constitui a monarquia Constitucional (HEGEL, 1990, p. 253).

A maneira como Hegel constrói a relação entre as diversas funções de poder de Estado passa, forçosamente, por sua lógica política, pela defesa da monarquia constitucional, tendo no monarca o instituto da soberania como a própria personificação do Estado, e a liderança prussiana à frente da unidade político-econômica da Alemanha. A argumentação hegeliana tem o sentido de validar sua construção lógica, ou seja, ao rejeitar a tese da independência entre os poderes, Hegel rechaça a ilogicidade com que ela é apresentada. O pensamento político do professor de Berlim se sustenta na sua lógica como um corolário da razão, por isso sua pretensão funda-se na perspectiva de que o Estado consiga manter-se na sua unicidade e, desse modo, pensa a monarquia como o elemento político consistente desse projeto. Hegel insiste que a tese da separação dos poderes, como é defendida, não difere, em si, daquelas representações que estabelecem no Estado uma verdadeira disputa entre os poderes, pois idealmente o que se deseja é que todas as atividades de poder tenham como princípio o conceito de Estado em cada momento em que ele atue como tal. Cada função deve representar a ideia de Estado e não sua fração (HEGEL, 1990, p. 252). Segundo Thadeu Weber “a interdependência dos poderes é apresentada como condição de possibilidade da organicidade do Estado. O conceito inclui em si a unidade da diversidade e a racionalidade da Constituição se dá, na medida em que essa integração se realizar” (1993, p. 151). Essa organicidade é a própria unidade do Estado que se apresenta como necessária relação entre as suas diversas atividades, que em si só pode ser reconhecido em sua totalidade e não pelas suas partes isoladas. O Estado sendo o todo, logo anterior às partes, tem sua integração relacionada à funcionalidade dessas partes como unidades ligadas pelo princípio da soberania. Assim, conforme Hegel: O poder do príncipe contém em si os três elementos da totalidade, a universalidade da Constituição e das leis, a deliberação como relação do particular ao universal, e o momento da decisão suprema como determinação de si de onde tudo o mais se deduz e onde reside o começo da realidade. Esta determinação absoluta de si constitui o princípio característico do poder do príncipe que nós vamos desenvolver em primeiro lugar (1990, p. 258).

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O poder soberano, chamado poder do príncipe, na verdade, constitui a própria soberania enquanto fundamento do Estado político. Nesse poder, Hegel procurou, por meio do monarca, centralizar toda a unidade do Estado, identificando na monarquia prussiana o motor da história alemã, capaz de levar adiante o seu processo de unificação político-jurídico-militar. O poder soberano seria, portanto, a síntese do poder público estatal, nele estando contidas as determinações necessárias à unidade de um Estado que tem na vida ética a tarefa de executar o plano da liberdade como autodesenvolvimento do conceito de direito. O poder soberano, enquanto sentido da universalidade do Estado, se dá em um sujeito específico, a pessoa do monarca, encarnando a soberania estatal por meio de sua unidade física como representação daquilo que comumente se chama de unidade política estatal, além de decidir, efetivamente, o controle político das diretrizes estatais. Nesse sentido, no parágrafo 277 da Filosofia do direito, há uma passagem significativa que demonstra uma preocupação quanto ao caráter universal do Estado, mesmo que depois Hegel se contradiga com sua tortuosa adequação do real ao racional como ideal. A contradição consiste no fato de que, mesmo não constituindo uma propriedade privada, o Estado e suas respectivas funções são tratados por Hegel como se assim o fossem, isso na medida em que destaca um sujeito específico, uma personalidade individual como representação da soberania estatal. Hegel delega ao monarca a representação da unidade do povo alemão, a condição de chefe eleito para fins de natureza orgânico-social. Nesse particular, Hegel faz lembrar a organização dos antigos germânicos que, em momentos difíceis, elegiam um líder para que este guiasse os guerreiros no intuito de guardar a paz, resolver contendas entre as tribos e combater os inimigos nas guerras externas (GIORDANI, 1970, p. 19). Observa-se, de imediato, a diferença de como Hegel separa as funções de Estado em franca oposição à clássica separação dos poderes dentro da tradição exposta por Locke e Montesquieu. O poder governativo é aquele que leva a contento as decisões tomadas pelo poder soberano na pessoa do monarca, e aquelas existentes no interior das leis. O poder governativo seria, portanto, o braço administrativo do poder soberano, subordinado à ideia de soberania existente nas determinações legais e ideais do Estado, organizado a partir de uma necessidade que está intimamente ligada à concretização do conceito de direito. Assim, os poderes administrativo e judiciário não são poderes em si mesmos constituídos como independentes e subordinados ao princípio norteador que rege internamente cada vontade particular. Para Hegel, a execução dos serviços administrativos e judiciários está centralizada nos interesses do universal e, dessa forma, vinculada diretamente à soberania como expressão máxima do Estado. A execução da justiça prende-se, politicamente, ao fato de que toda decisão, mesmo que tenha um caráter particular, deve, em princípio, estar em consonância com o espírito universal, que, sem dúvida, justifica o fim do Estado, a natureza do Estado e a existência do Estado como instância ideal na realização do direito.

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Aos olhos do pensamento político contemporâneo, qualquer subordinação de um poder a outro seria vista como um forte atentado ao Estado de direito, uma violenta ruptura dos princípios firmados pela democracia representativa, sobretudo no que concerne à justiça, que tem no poder judiciário uma espécie de corolário do liberalismo, uma salvaguarda dos direitos individuais. Importa ressaltar, porém, que Hegel atrela a administração da justiça ao poder governativo por considerar tal serviço um ato da administração pública e não um serviço privado destinado ao particular. A administração da justiça tem, para Hegel, um caráter público de máxima relevância, por isso está vinculado ao poder governativo sob orientação direta da universalidade do soberano, pois o seu conteúdo repousa na soberania do Estado. Nesse caso, a administração da justiça assume, no pensamento hegeliano, dimensão estatal primordial e não, como na afirmação de muitos, um dado conservador do seu pensamento político. Outrossim, no sistema político hegeliano, o poder legislativo não se determina em si como um poder soberano a partir daquilo que se convencionou chamar de autonomia dos poderes, pois o poder legislativo tem como figura a totalidade da sociedade civil. Nele imperam as relações de subjetividade, por isso que dele só podem emanar decisões que, mesmo gerais, não constituem em si a universalidade, o que só pode se dar na soberania do Estado, pela representação do soberano, do monarca. Sua eficácia enquanto momento do conceito de Estado atrela-se ao poder governativo porque é esse que tem por fim a consecução do serviço público por meio da burocracia, da classe estatal composta por indivíduos extraídos da classe média. Os três momentos do Estado pensado por Hegel estão intrinsecamente submetidos à ideia de direito, ao concreto plano de uma ordem ideal de se efetivar o Estado como totalidade da vida moderna. Nesse sentido, a preocupação de Hegel é ter, no universal poder soberano do monarca, a unidade indissolúvel da vida política alemã, pois o passado está marcado, historicamente, pela multiplicidade de ordens distintas.

O Problema da Representação, segundo Hegel, na Filosofia do Direito

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Não se pode olvidar que a associação entre liberalismo e democracia foi um processo em parte atribuído às lutas que os próprios liberais travaram contra os socialistas no século XIX (BOBBIO, 2000, p. 323). Isto porque entre liberalismo e democracia nunca houve uma relação natural como hoje se deseja passar. Embora, para os liberais, a democracia sempre tenha sido vista como uma forma governativa fundamentada na liberdade, seus receios estavam relacionados ao fato de que o preceito de liberdade estaria intimamente ligado a outro tão ou mais importante: a igualdade. Portanto, os liberais do século XIX ficavam receosos (como ficam até hoje) com o significado real da democracia: igualdade para a manifestação da liberdade, já que a liberdade não pode ser um pressuposto

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da igualdade. No sentido da lógica associativa, a igualdade é substantiva para que eu e o outro possamos externar sentimentos e opiniões no mínimo respeitadas.3 Os liberais do século XIX nunca defenderam a democracia como uma necessidade vital para uma ordem social justa. Preocupavam-se sobremaneira com a liberdade. Liberdade para negociar, possuir propriedade e poder contratar como ato de inteira disposição de si mesmo (vontade). Para um liberal clássico do século XIX, a igualdade era um postulado estranho ao liberalismo, que deveria ser combatido, pois indubitavelmente contrariava os interesses em essência da representação parlamentar da época, que se fundava no voto restrito àqueles que possuíam propriedade. Por ser um grande leitor dos clássicos, atento aos escritos políticos de sua época, e arguto observador dos homens em sociedade, Hegel não poderia ignorar a democracia como um elemento que, após a revolução francesa, tomou uma dimensão de ordem fundamental nos debates políticos de então. Aliás, Hegel sempre viu com reservas a democracia pensada única e exclusivamente como sistema de votos. Compreendia que uma democracia assim não daria conta das necessidades políticas de uma Alemanha dividida. Segundo Herbert Marcuse, em sua obra Razão e Revolução, Hegel escreveu sua Filosofia do direito em defesa do Estado porque considerava que muitos movimentos pseudodemocráticos alemães4 representavam ameaça maior à liberdade do que às próprias autoridades constituídas (1978, p. 171), já que, a exemplo do Terror instituído pelo Comitê de Salvação Pública na França revolucionária, invertia o universal pelo particular (ALVES, 1983, p. 156). Hegel não vislumbrou na democracia o que a monarquia lhe proporcionava: o princípio da unidade pela autoridade do monarca no projeto de efetivação do universal contra o particular, isso como razão histórica. Nesse sentido, segundo Hegel: Diz-se que todos os indivíduos isolados deverão participar nas deliberações e decisões sobre os assuntos gerais do Estado porque são membros do Estado, os assuntos do Estado a todos dizem respeito, todos têm o direito de se ocupar 3

Segundo Aristóteles, “um princípio fundamental da forma democrática de governo é a liberdade – a liberdade, segundo a opinião dominante, somente pode ser desfrutada nesta forma de governo, pois diz-se que ela é o objetivo de toda a democracia. Mas um princípio de liberdade é governar e ser governado alternadamente, pois o conceito popular de justiça é a observância da igualdade baseada no princípio da maioria, e não no do mérito, e se este é o conceito de justiça dominante, a maioria deve ser necessariamente soberana, e a decisão da maioria deve ser final e constituir a justiça, pois costuma-se dizer que cada cidadão deve ter uma participação igual” (Política, 1317b). 4 Burschenschaften (agremiações estudantis) e os Turnvereine (Clubes de ginástica) Em nome da liberdade e da igualdade entre os homens, o povo estadunidense constituiu-se livremente em uma república com representação pelo voto. Em nome de tais princípios, o povo francês derrubou a monarquia e instituiu uma república que pudesse racionalmente levar adiante os mais simples direitos dos homens. Paradoxalmente, em nome dos mesmos princípios, a pequena burguesia alemã, após a libertação dos estados alemães do jugo francês, através de argumentos liberais e democráticos, propunha ódio aos judeus, católicos, franceses, e fundava o progresso alemão num salvador do espírito germânico, etc.

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do que é o seu saber e o seu querer. Tal concepção, que pretende introduzir no organismo do Estado o elemento democrático sem qualquer forma racional – obliterando que o Estado só é Estado por uma forma racional –, afigura-se muito natural porque parte de uma determinada abstração: serem todos membros de um Estado, e porque o pensamento superficial não sai das abstrações [...] O membro do Estado é membro de tal ou tal ordem, e só com está determinação objetiva poderá ele ser considerado dentro do Estado (1990, p. 288).

Esta é uma passagem em que Hegel afirma claramente que a introdução do elemento democrático sem qualquer forma racional no interior do Estado não o transforma em algo melhor, e possivelmente o tornaria pior, porque o Estado só é Estado em razão de sua racionalidade, e, de alguma maneira, os defensores do elemento democrático esquecem ou ignoram esse detalhe. Hegel considera a democracia uma abstração que não tem realidade histórica, não tem relação de concretude para gerar instituições voltadas à satisfação dos interesses da universalidade anunciada pela ideia desenvolvida pelo Estado. Essa ideia, posta em processo pelo Estado, é o ingresso do homem em suas fileiras. Entretanto, para isso, Hegel julga que os membros do Estado são positivamente seus membros quando participam dele por meio de uma ordem (determinação objetiva), ou seja, membros enquanto espécie e não enquanto gênero, pois em sua corporação atinge o universal. Hegel julga verdadeiramente que a monarquia em si é uma determinação histórica germânica e, por fim, o elemento decisivo na unificação político-econômica da Alemanha, o que ocorrerá em 1871 por ação dessas mesmas forças. Em uma passagem da Filosofia do direito, Hegel aponta claramente que a opinião de muitos não significa necessariamente a detenção do universal, mas sim, em muitos casos, apenas o sentido de particularidade, o sentido de uma opinião sobre assuntos que pedem inteiro conhecimento e profundidade. Não são os indivíduos isolados com opiniões isoladas que dinamizam a sociedade civil, mas objetivamente a representação por meio dos mecanismos das ordens, das corporações, das classes, da delegação política. Segundo Rosenfield, não se trata de acusar Hegel de ser contra a democracia. Em seu entendimento, o que Hegel se nega a aceitar é ainda a forma não racional que apresenta a democracia, isto é, em generalidades abstratas. 5 Mais que isso, é a sua origem que repousa nas abstrações particulares, nos interesses puramente pessoais, ignorando que, em uma organicidade estatal, o que se determina é o universal, não como soma de partes, mas como estas no seio do todo, visto este logicamente preceder às partes. 5

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“O problema não é então afirmar que Hegel é contra a democracia, mas, pelo contrário, trata-se de assinalar que ele é adversário de sua forma ainda não racional. A democracia, instituída a partir da pessoa privada, só assegura para ele, portanto, os interesses particulares da particularidade, sendo incapaz de elevar-se firmemente e de um modo duradouro à prática do que é universal. A participação de todos nos assuntos públicos só tem lugar através de uma mediação que garanta efetivamente a expressão política das relações da sociedade civil-burguesa” (ROSENFIELD, 1983, 256).

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Segundo Hegel, a representação parlamentar se dá por competência dos interesses da particularidade dentro da universalidade, ou melhor, não se trata de uma representação a partir de sujeitos isolados, especificamente relacionados a interesses abstratos, mas pelo fato de se firmar como representação de interesses da sociedade no seu conjunto. A representação em Hegel se espelha, sobretudo, no interesse que se move em torno das necessidades da sociedade, por isso entende que a delegação política só pode ser pela inteligência e conhecimento do que constitui a particularidade. Por isso, é perigoso afirmar que Hegel é antidemocrático ou autoritário. Em sua época, a democracia estava longe de ser como a conhecemos. Sob os pontos de vista formal e material, a democracia que hoje conhecemos deu os seus primeiros passos no mundo moderno pela experiência concreta dos Estados Unidos da América do Norte que, por sua vez, no primeiro momento, ainda se via em debates tremendos para saber que tipo de democracia se queria e, por fim, descobrir o melhor caminho para sua institucionalização, apesar das tortuosas contingências. Vide o próprio Thomas Jefferson, um dos expoentes do pensamento democrático contemporâneo: ao mesmo tempo em que declara a igualdade natural dos homens se vê às turras com a escravidão de negros africanos nos Estados Unidos da América do Norte. É muito simples tomar as ideias dos seus titulares longe do tempo em que estão envolvidas. Um dos corolários da democracia representativa, o sufrágio universal, institui, por conseguinte, a representação política partidária que, aos olhos de Hegel, é vista como verdadeiro celeiro de interesses ligados à contingência e à particularidade (HEGEL, 1990, 293). A política partidária, para Hegel, é uma forma acidental e incongruente de participação nos negócios públicos, por não assegurar que todos realmente se assentem nos lugares, visando determinações realmente públicas. Como a democracia é um sistema que pressupõe disputa, e esta leva ao plano dos interesses particulares, em que um perde enquanto outro ganha, Hegel entende que tal forma de administração da coisa política em nada garantiria a concretização da liberdade como valor universal e muito menos levaria a Alemanha a lugar algum. Para entender o pensamento político de Hegel é preciso situá-lo dentro do espírito do seu tempo, considerando-se que esse filósofo é, antes de tudo, um metafísico. Devido a isso, ele não se preocupa em partir de um real específico como ponto determinado, mas sim de um real que seja compreendido pela idealidade de si mesmo. O legislativo, na concepção hegeliana, difere do construído pela contemporaneidade, foro de discussões por vezes intermináveis. Para Hegel, a casa legislativa apenas deveria se deter naquilo que for de competência da sociedade civil e não ultrapassar esses limites, cabendo ao poder soberano a tarefa de sustentar e promover o universal por meio do poder governativo, pelo seu pessoal devidamente qualificado, no interesse do Estado. Nessa relação entre o poder governativo e o legislativo, Hegel privilegia o primeiro por entender que sua natureza é universal e não particular. 6 6

Ao se ler o pensamento de Hegel dentro do critério de apatia, por força da observação, chega-se à conclusão de que seu pensamento parece retratar não só o Estado moderno,

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Para Hegel, o legislativo se configura em um poder auxiliar nas decisões de natureza pública; dele chegam informações sobre as particularidades da sociedade civil que, por sua vez, são elevadas à categoria de universal e, por fim, implementadas como prestação de serviços que o governo entende essenciais ao povo. Aventura-se dizer que o poder legislativo assume, para Hegel, apenas a função consultiva; funcionaria como um órgão consultor do poder soberano, quando não, dele partiriam algumas iniciativas que deveriam ser submetidas ao monarca na qualidade de se verificar o sentido universal do Estado. A representação para Hegel tinha um sentido de bem público e liberdade racional, constituía-se numa instituição, só que não tão importante quanto à soberania do monarca, o regime judiciário etc. Vale dizer que a representação parlamentar, para Hegel, possui importância secundária, pois não é o número que define a melhor ação do Estado, mas sim por quem é realizada esta mesma ação.

Poder Legislativo, segundo Marx na sua Crítica de 1843 ao Pensamento de Hegel Quando Marx, em 1843, elabora os rudimentos seu pensamento político em face de acontecimentos importantes como o endurecimento da censura prussiana e os graves problemas políticos pelos quais a Alemanha passava, por exemplo, toma como base crítica a Filosofia do direito de Hegel, e o faz depois de uma longa leitura sobre a revolução francesa de 1789, particularmente sob suas anotações quanto à Convenção que se dispunha a publicar, o que acabou não fazendo. Pela influência da história francesa, o Estado que Marx tinha em perspectiva política e crítica era o francês, que se desenvolveu a partir de condições materiais e com homens reais, e não como uma construção metafísica bem ao feitio do idealismo alemão (MARX, 1983, p. 88). Na Crítica de 1843, no tocante ao poder legislativo, Marx destaca que as grandes iniciativas de mudanças sempre partiram de tal poder, afirmando que a revolução de 1789 foi uma iniciativa desse poder, em razão do seu caráter geral, sua expressiva relação com a totalidade representada, o que sempre se deu de maneira contrária ao poder executivo para o qual todas as iniciativas de mudança sempre tiveram um sentido conservador, particular (Ibidem). 7 Como Hegel não esclarece quem são os construtores da Constituição do Estado, Marx aproveita para enfatizar sua diferença em relação ao professor da Universidade de Berlim, insistindo na participação dos sujeitos reais na

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mas também o contemporâneo, sobretudo nos últimos trinta anos, em que cada vez mais o poder legislativo perde, por motivos diversos, o seu papel de legislar em favor do poder executivo, cabendo a este o incremento do universal no seio das particularidades. Por isso, estando certo ou não, se constata perfeitamente que ao legislativo ficou reservado o papel de moldura constitucional. O executivo trouxe para si a tarefa de ser o grande poder no interior das instituições políticas, constituindo-se na própria representação da soberania, portanto nada mais hegeliano que a atualidade dos Estados nacionais. 7 Em O capital destaca-se a importância do legislativo no combate ao trabalho infantil na Inglaterra.

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elaboração da Constituição que regerá o Estado. Nesse momento de suas anotações, percebe-se, mais uma vez, no seu pensamento, os efeitos da revolução francesa e os fundamentos de uma democracia para além de uma simples representatividade. Marx aponta a Constituição como um fruto não só político, mas acima de tudo social. Mas a Constituição também não se fez sozinha; as leis ‘que necessitam de um desenvolvimento complementar’ exigem sempre que alguém as elabore. É preciso que exista ou tenha existido um poder legislativo anterior à Constituição e fora dela. É necessário que exista um poder legislativo fora do poder legislativo real, empírico, dado. Mas não pressupomos um Estado existente, responderia Hegel; o autor era apenas um filósofo do direito que desenvolvia a espécie Estado. Não podia medir a ideia com o que existe, mas sim medir o que existe com a ideia (Idem, p. 84).

Marx afirma, claramente, nessa passagem, que um Estado Constitucional é aquele que antes de tudo possui uma Constituição elaborada por homens, e não uma Constituição existente em e para si a partir da ideia. Sendo assim, Marx tem o poder legislativo como aquele capaz de pensar a vida Constitucional de uma população organizada politicamente dentro de um Estado, mas, para tanto, é preciso que os homens se constituam como verdadeiros artífices da vida política, e que esse poder estatal seja a representação daquilo que a sociedade deseja. Frisase, assim, que, para Marx, ainda em 1843, o político deveria ser determinado pelo social, isto é, a sociedade deveria organizar e comandar as instituições políticas, e não estas a sociedade, pois estas são sempre reflexos daquela e, desta forma, nada mais justo que o político seja determinado pelo social. Talvez essa excessiva crítica ao político venha do fato de todo pensamento político alemão se determinar pela ideia de que bastaria uma reforma no seio do Estado para que todos os problemas sociais fossem definitivamente resolvidos, o que Marx considerava uma ilusão. Na interrogação a Hegel, na relação entre poder legislativo e Constituição, sobretudo pelo fato desta não ser uma resultante daquele, segundo o autor da Fenomenologia do espírito, Marx não fica satisfeito com as explicações hegelianas, que sempre tergiversam, sem esclarecer em que medida a Constituição é posta e o real papel do legislativo no momento de sua elaboração. O que fica, para Marx, é que Hegel não sustenta um argumento político, mas uma desculpa lógica para salvaguardar o seu sistema interpretativo das coisas. Marx rejeita toda explicação idealista que desconsidera o papel dos homens na elaboração do mundo político, na construção e reconstrução dos Estados (Ibidem). Segundo a Crítica de 1843, “é certo que se modificaram constituições inteiras devido a terem surgido novas necessidades, a se ter esterilizado o estado de coisas existentes, etc.; mas foi sempre necessária uma revolução formal antes do aparecimento da nova Constituição” (MARX, 1983, p. 87). Assim, levando em consideração as lições apreendidas da revolução de 1789, Marx relaciona mudança estrutural ao advento das revoluções tipificadas como violentas que, para sua legitimação,

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obriga-se a mudar a Constituição que não mais atende aos novos interesses. Portanto, Marx compreende, ao contrário de Hegel, que as transformações sociais são sempre precedidas de transformações no mundo real, no mundo dos homens, ao passo que, na realidade ideal, as transformações se apresentam de forma tranquila. Marx faz lembrar que as mudanças realmente se efetivariam de forma tranquila caso o progresso fosse realmente o princípio, o movimento norteador das constituições, e o povo fosse de fato o grande princípio da Constituição. Entretanto, se um Estado se efetiva a partir de uma Constituição, se a existência do Estado moderno, portanto constitucional, está devidamente encarnada na ideia de uma ordem legal em que o próprio Estado se subordina para fins da liberdade, então essa Constituição não pode ser obra de um, de alguns ou de muitos, ou do autodesenvolvimento do conceito. Deve ser, isto sim, obra da vontade do povo expressa no legislativo, pois “a Constituição se converte em algo de ilusório quando deixa de ser a real expressão da vontade popular” (Idem, p. 89). É interessante salientar que o poder legislativo, para Marx, tem importância na medida em que a ele se atribui o caráter de vontade popular ou como ele afirma na Crítica, vontade geral,8 isso porque é fortemente influenciado pelas leituras do Contrato Social de Rousseau. Todavia, se percebe um Marx numa batalha teórica consigo mesmo, visto que, no momento de sua crítica ao liberalismo, não aceitando seus pressupostos estritamente políticos e atomizantes, toma a democracia (veremos mais adiante) como uma verdade política, só que levada para o seio da sociedade. Entretanto, não converte a democracia rousseauniana em credo específico na condução do seu raciocínio, sua análise funcional do poder legislativo destaca o dado de que sua função não se esgota na elaboração de uma Constituição, mas na mudança das condições objetivas da sociedade que expressa. Na passagem seguinte, Marx enfatiza que o poder “legislativo fez a Revolução Francesa: de um modo geral, fez grandes revoluções orgânicas genéricas em todos os lugares onde dominou em toda a sua particularidade. Não combateu a Constituição, mas sim uma Constituição particular e envelhecida, dado que o poder legislativo era o representante do povo, da vontade geral. (Idem, p. 88). Em si, o poder legislativo não é contrário à determinação da Constituição, mas tão somente àquela que não mais atende aos reclames do interesse geral. As relações tensas entre legislativo e Constituição são conflitos, segundo Marx, de natureza interna do conceito de Constituição. Este conceito não pode excluir de si a primordialidade do legislativo, visto que deste poder parte a própria Constituição enquanto certidão de existência do Estado moderno. Desse entendimento, pode-se concluir que o poder legislativo não é um simples ratificador do poder soberano, muito menos uma moldura decorativa de um 8

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“A primeira e mais importante consequência decorrente dos princípios até aqui estabelecidos é que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado de acordo com as finalidades de sua instituição, que é o bem comum [...] Ora somente com base nesse interesse comum é que a sociedade deve ser governada. Afirmo, pois, que a soberania não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. O poder pode transmitir-se; não, porém, a vontade” (ROUSSEAU, 1991, p. 43-44).

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suposto Estado Constitucional restrito à elaboração de normas secundárias, ou mesmo o espírito do povo sem o seu conteúdo. Para Marx, o poder legislativo tem a função de construir, enquanto vontade popular, a ordem político-normativa do Estado contra este privado Estado moderno. O legislativo, segundo Marx, parte de uma racionalidade especifica. Não é por dedução lógica que sua importância é compreendida como instrumento de mudança social, isso porque sua necessidade não é em si uma logicidade política que se sustenta como algo dado e posto antes mesmo de sua existência real entre os homens. O legislativo é uma construção desses mesmos homens para fim específico: a construção da ordem política que tenha por propósito o próprio povo e, por conseguinte, o seu progresso. O legislativo é o operador de mudanças, seja na lógica das transformações progressivas ou na das revolucionárias. Como contraposição ao executivo, o legislativo é o espelho desse caráter geral em si, expresso nas expectativas do maior número de indivíduos, ao passo que o poder governativo manifesta somente a vontade do Estado apartado do ser social. Esse poder governativo, que pretende levar o universal à sociedade, coloca-se fora dela na medida em que dela não tira seus elementos constitutivos, sendo apenas a ilusão da representação do Estado político, apenas uma instância burocrática. O poder legislativo, ao expressar as expectativas dos sujeitos reais (povo), assume, para Marx, um característico peculiar: a defesa da tese de que o interesse geral não pode existir em si como algo que antecede às próprias exigências humanas. O interesse em si só existe na medida em que o interesse para si, o formal, é construído pelos homens em sociedade. No entendimento de Marx, o interesse geral, que tanto Hegel apregoa como algo em si e para si, não tem nenhuma forma específica se não levar em consideração o empírico (real). Dessa forma, o poder constituinte existente no legislativo (os elementos de assembleia) só pode manifestar o interesse geral a partir daqueles que representa, e não tendo por ordem natural o que existe na ideia encarnada no Estado por meio de uma unidade singular constituída pelo monarca. Marx rejeita a qualidade constituinte do legislativo se não tomar por base o real interesse geral e, nesse aspecto, se coloca contra Hegel, que fraciona o interesse geral na sua equação do em si e para si, separando conteúdo e forma, afastando o povo da construção do interesse geral como se fosse possível um determinado interesse geral existir em si mesmo, como alguma coisa vinda dos céus. Segundo Marx, o misticismo abstrato separou o em si do para si e o interesse geral do povo. O interesse geral é elaborado mesmo sem ter em conta o interesse do povo. O interesse real forma-se sem a intervenção do Povo. O elemento constituinte é a existência ilusória dos assuntos do Estado como assuntos do povo, é a ilusão de que o interesse geral é de fato interesse geral, assunto público, a ilusão de que o interesse do povo é assunto geral. Nos nossos Estados, assim como na filosofia do direito de Hegel, as coisas chegaram a um ponto tal que a frase tautológica ‘o interesse geral é interesse geral’ só pode aparecer como ilusão da consciência prática (Idem, p. 96).

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Marx não se encanta com o discurso de que o interesse geral, tão apregoado pelos Estados modernos, seja realmente o interesse do povo, portanto interesse público. Marx parte da premissa de que os interesses do Estado são dados pela classe que o comanda, por isso o verdadeiro interesse geral não se determina pelo político, mas somente pelo interesse do social, o existente no interior da sociedade. Conforme citação supra, Marx está convencido de que as mudanças não partirão do Estado, mas sim do momento em que a sociedade tomar o Estado para si e o transformar como predicado de si mesma. Conclui-se que o poder legislativo e sua prerrogativa constituinte não estão a serviço do interesse geral, mas vinculados aos interesses particulares no interior do Estado privado. A análise de Marx é ímpar quando tomada em 1843 e posta nos dias de hoje. Mesmo considerando as mudanças ocorridas de uma sociedade para outra, observa-se, na contemporaneidade, mesmo não explicitamente, que a natureza do Estado se constitui como ente metafísico, algo que não parte da sociedade, existindo fora dela. O curioso é perceber o Estado com determinação própria; constatar que Hegel, mais do que seus contemporâneos, descreveu o Estado em sua complexidade quando pensava ter construído o Estado ideal nos limites do seu idealismo lógico. Esse Estado, curiosamente, é o em si de Hegel, uma realização instituída pelos elementos que o formam, outrossim são os elementos do judiciário, do legislativo e do executivo: burocracias do interesse de Estado que se maquiam de interesse geral; tornando privados os interesses públicos. Considerando a perda da ilusão política, a Crítica de 1843 representa no percurso teórico de Marx um momento decisivo da sua ruptura paulatina com as ilusões liberais na cena política alemã. Tanto é que “nos nossos Estados, assim como na filosofia do direito de Hegel, as coisas chegaram a um ponto tal que a frase tautológica ‘o interesse geral é interesse geral’ só pode aparecer como ilusão da consciência prática” (Ibidem). Isso porque Marx chega à conclusão de que: O elemento constituinte é a ilusão política da sociedade civil. A liberdade subjectiva surge em Hegel como liberdade formal (de facto, é justo que o que seja livre seja feito livremente, que a liberdade não reine como instinto natural inconsciente da sociedade), precisamente porque não representou a liberdade objectiva como realização, manifestação, da liberdade subjetiva. O sujeito real da liberdade adquire um significado formal porque o autor deu como conteúdo presumido ou real da liberdade um representante místico (Ibidem).

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Marx associa liberdade formal à liberdade material. Para ele, o poder legislativo deveria ser o próprio poder constituinte em suas determinações, isto é, função constituinte ao elaborar uma Constituição e consequentemente leis necessárias à sua implementação. Para Marx, liberdade objetiva ou concreta é aquela em que os indivíduos se articulam no poder legislativo e nele se fazem presentes nas decisões do interesse público. Nesse sentido, Marx, na Crítica de 1843, não pensa liberdade objetiva ignorando a subjetividade dos indivíduos. Liberdade só é possível quando todos se manifestam igualmente no escopo de

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fazer valer o interesse geral, tomando-o como interesse de todos. A liberdade material não é prerrogativa de um, do monarca. Não é o monarca livre que garante a liberdade objetiva das subjetividades, mas somente quando os sujeitos se expressam livremente na discussão da coisa pública, em torno dos interesses públicos. Marx entende que o homem genérico é aquele contemplado na sua privacidade e na sua ação com os indivíduos, dessa forma a liberdade é interação dentro da sociedade, e essa interação pode ser manifestada no legislativo se ele não for mais uma ilusão política. Marx ressalta que a liberdade formal,defendida por Hegel, pode ser tomada como passo decisivo, porém a descarta como autodesenvolvimento do conceito, sendo isso sim realização dos indivíduos. Após a derrocada do império napoleônico, no primeiro quartel do século XIX, o debate político em curso na Europa girou em torno do problema Estado. Nesse contexto, Hegel toma um caminho original, invertendo a ordem liberal ao vaticinar a supremacia do executivo sobre o legislativo por meio da burocracia, inspirado no soberano. Hegel, ao contrário de Benjamim Constant e dos liberais ingleses, cria um sistema de órgãos dentro do Estado de caráter estritamente técnico-corporativista em que o mais importante é a ação afirmativa do Estado por meio do serviço público. Ao comentar o destaque dado por Hegel às assembleias, levando em consideração o executivo-legislativo, Marx pondera que as mesmas são supérfluas, e que sua figuração é apenas formal, sem conteúdo. Em contrapartida, chama atenção para o fato de que Hegel, na descrição do Estado moderno, no momento em que trata da sua filosofia do direito, identifica a verdadeira realidade dos assuntos gerais: o verdadeiramente real é tratado como formal, e o formal como real (MARX, 1983, p. 98). Considerando que Marx deseja uma oposição consistente no cenário político alemão, ainda feudal em suas estruturas mais peculiares, não vislumbra, como Hegel, a racionalidade prussiana como real possível, até porque os momentos de um e de outro são diferentes entre si. Na época de Hegel havia diversas propostas para modernizar as estruturas políticas prussianas: de um lado, os liberais; de outro, os conservadores; e por fim, Hegel com seu sistema que não se posicionava nem como liberal e muito menos como conservador. Já Marx, em sua época, só tomou conhecimento de um Estado conservador, e pior, sem perspectiva de instituições políticas consoantes à modernização alemã, o que, de certa forma, pôs fim à ilusão de transformações reais a partir de transformações políticas. No entanto, apesar das ilusões perdidas, Marx, motivado pelo estudo minucioso da filosofia de Hegel e da realidade política do seu tempo, mesmo acusando o professor de Berlim de metafísico, percebeu que o autor da Filosofia do direito, mais do que seus contemporâneos, soube tratar da realidade política com profundidade, isso porque, em razão de relações lógicas, possibilitou a análise do real e do formal, muito embora tenha invertido essas relações com o auxílio do véu místico de suas conclusões. Ora, o que Marx assinala é que Hegel, ao tratar o legislativo com certa indiferença, relegando sua importância

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ao plano inferior no conjunto das instituições políticas, objetivamente, demonstrou que o Estado moderno, mesmo apregoando a crucial importância do sistema representativo, inspirado no constitucionalismo inglês, na verdade não representa o conteúdo do que aparenta ser. Em síntese, Marx, embora afirme que o legislativo fora crucial nas grandes mudanças no passado, tendo como exemplo a revolução francesa de 1789, reconhece, no entanto, que, em sua época, o legislativo repousa sobre um grande formalismo de Estado, numa grande ilusão democrática ao voltar as costas para o interesse geral. Mas, caso a representação política procure romper com a ilusão democrática, é necessário, segundo Marx, que o legislativo abra suas comportas à efetiva participação do povo enquanto vontade geral.

Conclusão O poder legislativo, que tanto marcou o Estado moderno com sua tipicidade, proporcionando novos contornos práticos, é visto pela Crítica de 1843 como uma grande barreira às transformações pelas quais a sociedade clama, ou pelo menos aqueles insatisfeitos com as estruturas de um Estado que contempla a representação política a partir do critério da propriedade privada. Desse modo, Marx considera que o elemento: Constituinte não é mais do que a mentira sancionada, legal, dos Estados constitucionais, pois afirma que o Estado é o interesse do povo ou que o povo é o interesse do Estado. Esta mentira torna-se patente quando se analisa o conteúdo. Estabeleceu-se como poder legislativo precisamente na medida em que o poder legislativo tem como conteúdo o universal, está muito mais relacionado com o saber do que com a vontade, é a força metafísica do Estado, enquanto que aquela mentira, como força governamental, etc., deveria resolver-se imediatamente ou então se transformar numa verdade (1983, p. 100).

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O poder legislativo tem sido um problema muito interessante para os cientistas políticos, ainda mais no tocante à sua natureza e relação com sua base existencial que, para Marx, no fundo, se estabelecia mais ao nível metafísico que concreto. E por quê? Porque, embora o poder legislativo se fundamente no interesse do povo e, por isso, sua razão de ser, ao longo de sua existência, se apresentou como alguma coisa desvinculada de sua própria identidade, visto que nem legisla e muito menos representa; por isso, não passa de uma instância metafísica, dimensão que se basta a si mesma numa realidade que nada tem a ver com o mundo concreto dos homens. Pensado enquanto instância capaz de representar os reclamos do povo, o poder legislativo se constituiu, ao longo de sua história, um verdadeiro exemplo de tipicidade ideal numa aparente realidade, falseando um suposto Estado vinculado ao interesse geral. Essa denúncia de Marx apresentada em 1843 ecoa ainda hoje. É que o poder legislativo na sua dimensão constituinte, travestido

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de legalidade, aos poucos perdeu o seu grande intento e se desvinculou dos interesses da vontade geral, passando a representar interesses particulares, tomando-os como geral, obstruindo por inteiro aquilo que o qualifica como universal. Nesse sentido, o elemento constituinte do poder legislativo não passa de uma maquilagem, escondendo as reais relações políticas que visam a excluir o povo da possibilidade de interferir no interior do Estado. O elemento constituinte se firma, assim, idealmente: uma formalidade para apresentar o Estado moderno ainda com a cabeça na Idade Média. Isto é o que pensa Marx estudando a Filosofia do direito de Hegel e sua proposta política para a Alemanha do século XIX. A ilusão que Marx, assinala na sua Crítica de 1843, vincula-se ao fato de que o poder legislativo não participa efetivamente dos negócios de Estado, se afasta e não interfere no processo legislativo voltado para o interesse geral como objeto natural de todo Estado que se tem por constitucional. O poder legislativo, nessas relações e condições de poder, se mostra como algo desprovido de si, negativo para si; o que não é fácil de perceber devido à idealidade metafísica de falsas representações que o pensamento idealista constrói como real, invertidamente. Nesse sentido, Marx, no momento em que analisa a natureza do sistema parlamentar e sua eficácia como forma de se obter uma maximização de soluções para o interesse público, percebe que esse interesse, visivelmente no caso alemão, não é sinônimo de interesse do povo. O interesse do povo só é interesse geral na medida em que o interesse do monarca se manifesta favoravelmente ao seu conteúdo, até porque o parlamento, na Alemanha, não existe como importância política e de longe não tem a mesma atuação que o parlamento inglês. Marx identifica no parlamento, e nisso não distingue a nacionalidade, a ilusão de que sua existência contemple o interesse geral. A simples existência do parlamento não confere ao Estado moderno o seu status de Estado constitucional, até porque um verdadeiro Estado Constitucional deve levar em consideração o interesse geral como verdadeiro interesse real do povo: fim último como ordem material do Estado real (MARX, 1983, p. 100). Marx afirma, destilando ironia sobre a tradição liberal, que o poder legislativo é ilusório na medida em que não exerce seu papel conforme o convencionado pelos próprios homens. O poder legislativo de fato tem sido a chancela moral-legal para que o Estado, como é, passe por ser um Estado que não é, ou seja, Estado constitucional, legal, moderno e de direito. Para a Crítica de 1843, não existe um Estado ideal com poderes estatais ideais, o que existe é a possibilidade de se construir uma ordem política calcada nos interesses daquele que, em última instância, é o próprio fim da existência do Estado, a vontade geral, mesmo que, por tal concepção, seja acusado por alguns de rousseauniano, o que não constitui nenhum demérito. Porém, na análise da Crítica de 1843, Marx, ao se valer de elementos teóricos de Rousseau, os usa como instância crítica ao monarquismo prussiano, às formalidades políticas conjeturais, e não como credo.

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O Poder Legislativo em Hegel e a Refutação Marxiana a partir de sua Crítica de 1843

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O Imperativo da Responsabilidade de Hans Jones no amparo do Princípio ético da Sustentabilidade no Direito Ambiental Maria de Fátima Alves São Pedro1 Resumo Este trabalho tem por objetivo analisar a pertinência de se investigar questões e preocupações fundadas na ética, com o fito de defender e de preservar o meio ambiente, para as atuais gerações e as futuras possíveis, por se tratar de uma ética que se vincula a todos os seres vivos, com vistas a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Neste prisma, adota-se, como referencial teórico, o imperativo da responsabilidade de Hans Jonas que postula uma avaliação crítica da ciência e da tecnologia moderna, e incentiva a ação humana a pautar-se pela prudência e pela responsabilidade diante do alto poder de transformação sofrido pelo meio ambiente. Atina-se, ainda, que os modelos éticos vigentes, que amparam o Direito Ambiental, são inconsistentes em decorrência dos novos conflitos ambientais. Perante esta posição, é necessário incorporar fundamentos éticos de responsabilidade e sustentabilidade para que o meio ambiente passe a adquirir a dimensão de objeto da responsabilidade humana. Palavras-chave: Ética ambiental; princípio responsabilidade; meio ambiente. Abstract This work objective to analyze the relevance to investigate the concerns based on ethics, in order to defend and preserve the environment for current and future generations as possible, because it is an ethic that binds all living beings, with a view to an ecologically balanced environment. In this light, adopts, as a theoretical framework, the imperative of responsibility in Hans Jonas that posits a critical assessment of science and modern technology, and encourages the human action guided by prudence and responsibility on the high processing power suffered by the environment. It is observed that the current ethical models that support the environmental law, are inconsistent as a result of new environmental conflicts. In his position necessary to incorporate ethical responsibility and sustainability for which the environment pass to acquire the object dimension of human responsibility. Keywords: Environmental ethics; principle responsibility; environment. 1

Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Gestão Ambiental pela Universidade Estácio de Sá. Especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá. Docente dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação lato sensu da Universidade Estácio de Sá e Docente da PósGraduação lato sensu da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

O Imperativo da Responsabilidade de Hans Jones no amparo do Princípio ético da Sustentabilidade no Direito Ambiental

Introdução Atualmente, chama atenção as diversas agendas de discussões da comunidade científica, que trazem à tona questões ambientais como grande desafio da sociedade. Esta segunda década do novo milênio é o momento de ressignificar os projetos de reestruturação do comportamento social, cujos novos rumos não podem se afastar de um modelo de equilíbrio entre sociedade e meio ambiente. A preocupação com o meio ambiente se dá em decorrência das crises ambientais cuja origem identifica-se nos processos histórico, social e políticoinstitucional posto pela humanidade ao longo do seu desenvolvimento com o modelo de crescimento econômico adotado desde o século XVIII, no qual a justificativa se norteava na concepção de natureza enquanto recursos infinitos, portanto, inesgotáveis. Consequentemente, a problemática ambiental2 decorre, essencialmente, do conflito existente entre a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento econômico, e toma uma relação histórica entre homem e natureza, assinalada pelo comando antropocêntrico que permite a conquista do homem pelo homem. Essa relação reflete-se sobre o meio ambiente, alcançando, neste momento, o ápice da sua destruição. Portanto, deve-se buscar, urgentemente, um ponto de sensatez entre a qualidade ambiental e os interesses socioeconômicos através de alterações de comportamento, como o grande desafio da sociedade contemporânea. O conceito de um desenvolvimento sustentável associado à solidariedade entre o direito ao desenvolvimento e o direito à qualidade ambiental, norteados por uma ética de responsabilidade permite a todos os seres viverem de forma digna e plena. Visto que, há pouco tempo, os direitos tutelados eram explicados de tal modo que seus titulares eram, exclusivamente, o homem. Neste diapasão, nasceu um interesse ou um direito, alcunhado difuso, que é indivisível e tem natureza metaindividual e, ainda, é indeterminável quanto ao sujeito. Esse novo interesse é indisponível, fugindo, em muito, às regras tradicionais e, como consequência, faz uma série de inquirições ao sistema jurídico e aos modelos éticos, que tentam se adequar para fazer face à sua efetiva proteção dada a relevância contemporânea dessa discussão. Nos últimos anos, o direito e a questão ambiental defrontam-se de maneira explícita. A realidade viva e mutante do Planeta requer e impõe novas normas de conduta aos homens e à sociedade e, é desta forma que se compreende o aparecimento do Direito Ambiental. O mesmo sucede com a Ética em relação a essa nova ordem planetária. Os agenciamentos ambientais alcançam, também, o comportamento humano em face do mundo natural e seus recursos, assim como do mundo dos homens e suas próprias realizações, pois a presença do homem é fator determinante na 2

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A problemática ambiental neste trabalho é abordada, de maneira multidisciplinar, na medida em que envolve todos os níveis da realidade, trazendo consequências de tipo econômico, político, social, tecnológico e jurídico.

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qualidade do Planeta. A Ética, na visão corrente, portanto, ampara os interesses da conduta humana susceptível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo absoluto. Neste contexto, surge uma série de questões, que centralizam a problemática deste trabalho. Portanto, em decorrência da crise ambiental, qual o centro da preocupação quanto à qualidade de vida, a espécie humana ou o Planeta como um todo? As discussões sobre as mudanças ambientais passam tanto pela ótica do modelo tecnológico empregado atualmente quanto pelo repensar da estrutura social e da qualidade ambiental resultantes do padrão de consumo da sociedade, portanto, compreende uma relação histórica entre o homem e a natureza, oriundo de um modelo de racionalidade, que no estágio atual, se mostra impotente. Neste contexto, como conciliar o desenvolvimento socioeconômico com a preservação do meio ambiente? A partir desses pleitos, outras inquietações são levantadas, como por exemplo, a questão do desenvolvimento e da manutenção dos recursos ambientais pensados em conjunto com a estrutura social vigente, como modelo de novos comportamentos. Consequentemente, onde se pode, então, encaixar a palavra ética no vocabulário ambiental? Diante do conjunto de problemas evidenciado, busca-se sustentar a hipótese de que a sociedade contemporânea necessita tomar para si o amparo das questões ambientais, vez que a ameaça ao meio ambiente é questão Ética e depende de uma alteração de conduta. Portanto, urge uma ética de responsabilidade para as gerações presentes e futuras, com vistas à sobrevivência planetária e no agir humano, em tempos, tecnocientífico. Assim sendo, para atingir o desígnio geral proposto, procura-se refletir sobre o princípio da responsabilidade de Hans Jonas (2006), analisando sua importância no cenário ambiental atual da Ética Ambiental e da Ética da Sustentabilidade, através do pensamento ditado no Princípio Responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica, do filósofo, alemão contemporâneo, Hans Jonas, com o objetivo de compreender a importância do valor da responsabilidade e da sustentabilidade como exigências essenciais para assegurar o futuro da vida no Planeta. Assim, refletindo e reanalisando os valores, as normas e as instituições que motivam e definem a forma da ação humana sobre o meio ambiente, o artigo finaliza com a apresentação da síntese das principais ideias decorrentes das análises efetivadas. No marco de referência exposto, o trabalho pretende ser uma contribuição para a reflexão do papel desempenhado de uma nova ordem tutelar para proteção do meio ambiente, como uma das possíveis respostas ao uso inconsiderado desse meio ambiente, e como instrumento para promover uma consciência ambiental que vise principalmente à responsabilidade de modo sustentável. Portanto, tem-se a pretensão de ser uma provocação, um chamamento para a discussão acadêmica do tema, com o intuito de tornar consciente a tutela do meio ambiente.

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O Princípio da Responsabilidade de Hans Jonas e a Ética da Sustentabilidade O Imperativo Categórico de Hans Jonas (2006) está fundado no dever do agir sensato. É a ética da responsabilidade que deve servir de critério do agir humano, como um preceito moral, conforme formulado no seu Imperativo Categórico, deve ter validade universal. Para ele, é preciso ampliar o formalismo da ética de Kant para uma ética do sentimento, da intuição, incluindo o respeito pela vida. No lugar de uma ética formal, Jonas apresenta uma ética de valores e sentimentos. A dimensão de uma responsabilidade pelo futuro, isto é, em uma perspectiva de tempo deve ter seu devido espaço no princípio categórico. Enquanto Kant prevê a contemporaneidade como horizonte da ética, numa relação de sujeitos, como viventes de um tempo e espaço próximos, Hans Jonas prevê as consequências, mesmo incertas, das ações de hoje para as futuras gerações. (JONAS, 2006) Jonas quer chamar a atenção para a insuficiência dos imperativos éticos tradicionais diante das novas dimensões do agir coletivo. A ética tradicional já não tem categorias consensualmente convincentes para sustentar um debate sobre a ação humana com o meio em que se vive. No entanto, é crucial considerar a emergência de uma ética que garanta a existência humana e de todas as formas de vida existentes na biosfera. Jonas propõe o Princípio Responsabilidade, como sendo um princípio ético para a civilização tecnológica. (HOSS, 2011-2012) Segundo Jonas, essa realidade faz nascer à necessidade de uma nova ética, agora mais pública e coletiva, já que o poder de intervenção do ser humano ultrapassou os limites anteriores. As mudanças partem do ponto de vista individual, mas só farão sentido se estiverem conjugadas a mudanças mais globais na forma de organização das sociedades e de gerenciamento e exercício dos poderes estabelecidos. Essa nova ética teria como primeira tarefa mostrar à humanidade o perigo do uso indevido da técnica humana. Neste sentido, Jonas questiona: Em que medida este homo faber se mostra capacitado para o exercício do poder que a técnica lhe concedeu? Em que medida ele tem consciência da responsabilidade, uma vez que todo o poder deve ser exercido de forma responsável? O Princípio Responsabilidade de Jonas, suscita uma reflexão que contemple o todo: “Age de modo que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a terra”. “O Imperativo Categórico propõe simplesmente que existam seres humanos, acentuando ao mesmo tempo o que é e o que deve existir.” Trata-se de uma ideia do ser e não do agir. Na ética prática, não se trata de uma reflexão metafísica sobre o existir e nãoexistir, mas a partir da constatação que existem, é necessário uma ética que questione a qualidade do existir. O primeiro princípio de uma “ética do futuro” não reside em primeiro lugar na ética do agir e, sim na metafísica como ensino do ser. Que existam

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seres humanos implica numa ética pelo meio em que ele pode existir e da convivência neste seu habitat. Pode o nãoser ser preferido ao ser? Aqui cabe a questão colocada por Leibniz: Por que alguma coisa é e não é nada? O ser-nomundo é independente de qualquer tese de sua própria origem, segundo Hoss (2011-2012). Ainda, para o autor, Jonas ao traçar o Princípio Responsabilidade é enfático ao mostrar que o homo faber (cerne da técnica, mas depois por ela de algum modo subjugado) se pôs muito acima do homo sapiens, do homem da inteligência e do bom senso. É como se o “feitiço virasse contra o feiticeiro”, na medida em que o agir individual no mundo técnico é quase apagado no coletivo; e o que passa a mover a humanidade emocionalmente é uma espécie de utopia paradoxal conservadora e dominadora. “Hoje a técnica se transformou em um infinito impulso para adiante da espécie [...], em cujo contínuo progresso que se supera a si mesmo para coisas cada vez maiores se tenta ver a missão da humanidade [...]” (JONAS, 2006, p. 43). Isto e, o homo faber adquiriu o primado sobre o homo sapiens. Nada é mais ameaçador do que este sucesso da tecnologia. O domínio da natureza pelas ciências e pelas tecnologias se transforma no projeto central das sociedades modernas. A técnica, antes um simples meio, passa a ser, como moderna tecnologia, a própria finalidade. O fato de o homem ter se tornado um contratempo não apenas para si, mas, para toda a biosfera o funda numa responsabilidade metafísica, tal que, mesmo se fosse possível que as gerações futuras, ainda que diante de um meio ambiente degradado, tivessem uma vida digna, ainda assim, a plenitude da vida, ou seja, a natureza que por si conserva a sua dignidade tem direito de rezingar a nossa proteção, segundo Jonas (2006, p. 47-48). O homem é um perigo a ele mesmo em razão do poder que o homem tem sobre a natureza. Nessa perspectiva, Hans Jonas fala do choque causado pelas bombas atômicas como o marco inicial do abuso do domínio do homem sobre a natureza causando sua destruição, apontando para o risco do progresso global em uso perverso. Para ele, o marco inicial desse abuso do homem sobre a natureza foi o ataque das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. O homem, depois de tais explosões, percebera o perigo que este poder pode proporcionar. A natureza ficara insignificante aos seus olhos; o medo de uma destruição ficou mais nítido. Ecologistas e a ética passaram a dar mais atenção a esses problemas, os quais põem em risco a humanidade e todas as outras formas de vida da terra. Para Siqueira (2000), seguindo o pensamento de Jonas, o homem tinha apenas relação de poder com a natureza, mas era necessária uma nova ética, que contemplasse não só o homem, mas a natureza. Ética que, para além da ética tradicional, será proposta por Jonas e denominada de ética da responsabilidade, contemplando as gerações futuras, a natureza extra-humana e tudo que abarque o bem estar de todos os que habitam e habitarão o planeta.

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Em Hans Jonas as Bases Éticas que justificam o Conceito de Sustentabilidade

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A questão da sustentabilidade, atualmente, assume um papel relevante na temática ambiental, social, econômica e cultural. A sustentabilidade, por tratarse de um conceito aberto assume inúmeros significados e diferentes valores, que modificam de acordo com a concepção adotada. Segundo Candiotto (2010, p.15) o conceito de sustentabilidade foi desenvolvido numa visão ética antropocêntrica, uma vez que “não estão incluídas outras formas de vida com as quais o ser humano interage continuamente”. A sustentabilidade se caracteriza como um princípio ladeado em uma vida humana digna. Portanto, trata-se de um conceito ético do homem para o homem em relação à vida em sociedade. Na explicação de Jonas (2006, p. 35), o homem se vê fora do meio ambiente e em condições de superioridade, sem atribuir qualquer significado ético aos objetos não humanos. O marco teórico para a compreensão do conceito de sustentabilidade, bem como a internacionalização da problemática ambiental, se dá a partir da Conferência de Estocolmo, de 1972. Para SILVA, M. (2010. p. 168), Estocolmo “marcou o ambientalismo mundial, foi convocada em razão da necessidade de discutir temas ambientais que poderiam gerar conflitos internacionais”. O referido marco teve sua importância também como um referencial para o Direito Internacional Ambiental e, ainda, consagrando o meio ambiente como um Direito Humano tanto das presentes quanto das futuras gerações, tendo o homem como o centro de todas as coisas. No entanto, o conceito de sustentabilidade surge inicialmente como um tema ligado tanto à economia quanto a ecologia, por esta razão se usa a expressão “desenvolvimento sustentável”. O conceito de “desenvolvimento sustentável” passou por várias concepções desde suas primeiras formulações surgidas na década de 1980. Sua mais conhecida definição é a de um desenvolvimento capaz de “suprir as necessidades da geração presente sem afetar a habilidade das gerações futuras de suprir as suas”. Difundida pela Comissão Mundial Sobre o Meio Ambiente em 1987, através do célebre documento intitulado “Nosso Futuro Comum”, também conhecido como Relatório Brundtland, esta concepção se baseou em dois conceitos-chave: o conceito de “necessidades”, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres no mundo, que devem receber a máxima prioridade e a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras. Assim, desenvolvimento sustentável não significa somente a conservação dos recursos naturais, mas, sobretudo um planejamento territorial, das áreas urbanas e rurais, um gerenciamento dos recursos naturais, um controle e estímulo às práticas culturais, à saúde, alimentação e, sobretudo, qualidade de vida com distribuição justa de renda per capita.

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O desenvolvimento sustentável requer o reconhecimento de uma igualdade entre as gerações que pressupõe, além do direito das gerações atuais de terem um ambiente saudável e ambientalmente equilibrado, que esse direito se estenda às próximas gerações. É evidente que a solução de problemas dessa natureza ultrapassa em muito alternativas simplistas de caráter apenas técnico e/ou econômico. É uma questão que só poderá ser solucionada pelo aprofundamento da reflexão ética. (ALENCASTRO; HEEMANN, 2007) Desse modo, na obra Princípio Responsabilidade, Hans Jonas identifica os caminhos que irão formular a consciência da sustentabilidade. Para tal concepção, a humanidade deverá compreender o mecanismo de uma nova responsabilidade, se ansiar preservar os direitos e as oportunidades de uma sobrevivência futura. Responsabilidade entendida como a possibilidade de prever os resultados do próprio comportamento e de corrigi-lo com base em tal previsão. Para estabelecer as bases filosóficas para uma ética da sustentabilidade, necessário se faz alicerçá-la no Princípio da Responsabilidade, norteador para o agir humano na era da civilização tecnocientífica, uma ética de responsabilidade para com as gerações futuras. Conforme já explicada acima é uma nova dimensão para a responsabilidade humana, que vai além da responsabilidade para com os semelhantes, já que deve englobar também a responsabilidade para com a natureza. Para ele, a vulnerabilidade da natureza sempre deve ser levada em conta. Não se trata de defender a natureza como autodefesa, para evitar apenas o sofrimento humano. É preciso pensar numa ética própria para a natureza. Neste momento de crise ambiental, todos são obrigados a ter uma nova posição sobre o papel do ser humano no planeta, repensando a responsabilidade que se deve ter para com tudo que existe e vive, mesmo para com aqueles que virão no futuro. Portanto, segundo Alencastro (2009), é uma situação que só se resolve pelo aprofundamento do conceito de responsabilidade. Nesse sentido, Hans Jonas, vê o homem como responsável pelo devir e pelo futuro. Ele não deprecia as tradicionais prescrições de caridade, honestidade, virtude e justiça, pois todas mantêm seu valor no dia a dia e nas relações pessoais. Mas, o predomínio crescente da ação coletiva, ou da soma das ações dos indivíduos, deve ter a sua natureza modificada, e todos os atos e feitos são, agora, passíveis de serem potencializados pelo imenso poderio tecnológico disponível. Há, portanto, a exigência de uma nova e radical responsabilidade. Para ele “as antigas prescrições da ética ‘do próximo’ – as prescrições da justiça, da misericórdia, da honradez etc. – ainda são válidas, em sua imediaticidade íntima, para a esfera mais próxima, quotidiana, da interação humana”. Ainda, essa esfera torna-se ensombrecida pelo crescente domínio do fazer coletivo, no qual ator, ação e efeito não são mais os mesmos da esfera próxima. Isso impõe à ética, pela enormidade de suas forças, uma nova dimensão, nunca antes sonhada, de responsabilidade (JONAS, 2006, p. 39). A responsabilidade em Hans Jonas refere-se ao futuro longínquo da humanidade, estendendo-se até descendentes muito afastados no tempo,

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abarcando um futuro ilimitado. Para esta proposta o autor coloca que toda a espécie de vida, intra e extra-humana, no centro das ações humanas, no qual o futuro da humanidade implica necessariamente o futuro da própria natureza como condição sine qua non. Portanto, para Jonas (2006 p. 229) uma vida humana autêntica é indissociável da natureza. Diante de conceitos tão próximos, porém, desenvolvidos em concepções tão distintas, pode-se entender que o núcleo de tais conceitos é a preservação e o desenvolvimento da vida, a qual é indissociável da natureza. Ainda que no antropocentrismo a vida em questão seja a do homem e na ontologia de Jonas toda espécie de vida, seja ela humana ou extra-humana, torna-se inconcebível uma vida humana digna e autêntica sem considerar a vida extra-humana, ou seja, o meio ambiente como condição para o desenvolvimento de toda espécie de vida. Se de um lado o Desenvolvimento Sustentável representa uma tentativa de oferecer respostas à problemática do meio ambiente como crítica às teorias desenvolvimentistas, hegemônicas no pós-guerra, porém sem inscrevêlas no contexto da crítica ao modelo capitalista de produção, o Princípio Responsabilidade tem por tese inicial uma crítica a tecnologia moderna que atualmente se constitui uma ameaça para a humanidade e a natureza como um todo. Nesse sentido, Jonas (2006, p. 21) traz a figura mitológica do “Prometeu definitivamente desacorrentado, ao qual a ciência confere forças antes inimagináveis”, demonstrando com isso a superação humana através da ciência e da técnica no domínio da natureza, e por esta razão propõe uma nova ética capaz de por freios ao poder dos homens a fim de evitar que estes se transformem em uma desgraça para eles mesmos. Com a “heurística do temor”, Hans Jonas coloca a questão da responsabilidade de uma forma radical, que ultrapassa em muito as teses de relatórios internacionais que colocam em questão a preocupação com as relações futuras. (JONAS, 2006, p. 71) Ante a possibilidade de morte substituindo a vida, compreende-se porque esse futuro distante é o lugar de um temor específico para o qual introduz a figura da “heurística do temor”. Temor esse que tem por objeto eventuais perigos que ameaçam a humanidade no plano de sua permanência e de sua sobrevivência, tais como as manipulações biológicas aplicadas a reprodução humana ou à identidade genética da espécie humana ou, ainda, a intervenção química ou cirúrgica sobre o comportamento do homem. Ou seja, através de seu aperfeiçoamento técnico o homem tornou-se perigoso para o homem, na medida em que põem em perigo grandes equilíbrios cósmicos e biológicos que constituem os alicerces vitais da humanidade. No seu radicalismo ele é imperativo, ontológico, ou seja, ou o ser humano assume a responsabilidade com seu modo de vida ou não terá muitas chances de sobrevivência no futuro. Sendo primordial aprender a viver, de maneira comedida, responsável e ética. Ética essa que significa a responsabilidade ilimitada por tudo aquilo que existe e vive.

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Essa crise  ambiental afeta todos os aspectos da vida humana – relações sociais, saúde, economia, tecnologia e política, e ainda em dimensões espirituais, intelectuais e morais, de tal forma que o ser humano pela primeira vez se depara com a real possibilidade de sua extinção e de toda vida no planeta. Neste sentido, não existe outro caminho para uma ética de sobrevivência planetária que não passe por uma incorporação da responsabilidade para com o futuro. A ética aqui significa a ilimitada responsabilidade por tudo que existe e vive. Comportamento ético é responsabilidade para com o mundo, num sentido agora muito mais amplo. Assim, a responsabilidade para com as gerações vindouras não admite pausas, é contínua e refere-se ao futuro. Só tendo como base uma responsabilidade construída desta forma, é que se pode afirmar, com segurança e coerência filosófica, as necessidades das gerações futuras. A manutenção da natureza é a condição de sobrevivência do homem e é no âmbito desse destino solidário que Jonas fala de dignidade própria da natureza. Preservar a natureza significa preservar o ser humano. Portanto, aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra; ou, expresso negativamente: aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para possibilidade futura de tal vida; ou simplesmente: não ponha em perigo a condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra; ou, em um uso novamente positivo: inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetivos do teu querer. (JONAS, 2006, p. 47-48). O que o imperativo de Jonas (2006) estabelece não é apenas que existam homens depois de nós, mas precisamente que sejam homens de acordo com a ideia vigente de humanidade e que habitem esse planeta com todo o meio ambiente preservado. Deve-se ter responsabilidade para com uma humanidade que ainda não existe, é ser responsável por outras pessoas que ainda estão por nascer e que, por conta disso, não podem reivindicar para si um ambiente saudável para viver. Não é uma relação de reciprocidade, tal como prescrito nas éticas tradicionais. O dever para com os descendentes é muito profundo e só pode ser entendido quando se compara com o que as éticas tradicionais sugerem no caso dos deveres dos pais para com os filhos, um dever de total entrega e não reciprocidade para com o outro (JONAS, 2006 p.83).

O Princípio Ético no Direito Ambiental O princípio da Responsabilidade de Jonas (2006) pretende um agir cauteloso, apontando o descompasso entre a factibilidade da destruição, inclusive ambiental, e a consciência ética das consequências imprevisíveis dos atos praticados no presente. Apoiando-se na possibilidade de danos, preocupa-se em evitar que as possibilidades técnicas e práticas levem os homens irresponsavelmente além dos limites da viabilidade da vida. A sustentabilidade

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acordada ao princípio de responsabilidade clama do homem por uma ação de tutela do meio ambiente, elemento vulnerável frente à capacidade de destruição desse mesmo homem. O grande objetivo de uma nova abordagem paradigmática, como o imperativo de Jonas, é de manter a existência da humanidade futura, em um futuro que existam pretendentes a um universo moral em um mundo concreto, o autêntico objetivo da responsabilidade. A preocupação ambiental é cada vez mais ressaltada, tendo em vista uma preocupação cada vez maior com a qualidade de vida, em razão da degradação que vem tomando conta de muitos ecossistemas. Infelizmente, não se pode afirmar que o Direito Ambiental, neste momento, está apto a conter esta degradação ambiental. Mas está apto sim, numa visão transdisciplinar a transformar os seus paradigmas e dogmas em pensamentos que interliguem o indivíduo cada vez mais com o ambiente que vive, inserindo-o em uma consciência solidária e responsável, já que sem ambiente ecologicamente equilibrado não há vida humana. O dia a dia na pós-modernidade apresenta uma tensão a ser vivida, com sabedoria e com equilíbrio, buscando uma moral ética que se coadune com o desenvolvimento de um Planeta sustentável, ora tão massacrado pelo próprio homem. É diante da difícil missão de mudar o viés das sociedades contemporâneas, que a Ética necessita tomar para si o amparo das questões ambientais, tornando assim, a ameaça ao meio ambiente em uma questão eminentemente Ética e dependente de uma alteração de conduta. Conforme traz no marco teórico apresentado neste trabalho, a ética existe para ordenar as ações dos seres humanos e para regular o seu poder de agir. Portanto, quanto maiores forem os poderes de agir que ela tem de regular, o princípio ordenador deve estar adaptado à sua magnitude, isto é, também adaptado ao tipo de ação que deve regular. Neste sentido, diante de circunstâncias que impõem novas capacidades de ação, exigem-se novas regras da ética. Isto significa dizer que se exigem novos valores e novos postulados éticos ambientais que possam guiar a ação humana de maneira mais sustentada. Portanto, esse amparo ético deve constituir o epicentro dos esforços jurídicos que pretendem perfilar as normas de proteção ambiental. A ética deverá ser um referencial necessário em qualquer debate político-jurídico que envolva problemas ambientais. O diálogo do direito com o saber da ética deve ser o ponto de partida de um processo que busque a conciliação entre o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental, como ferramenta ao serviço do viver bem da coletividade. O Direito deve caminhar seus valores para a prática de instrumentos jurídicos que movidos por novas agendas ético ambientais, oriente as condutas humanas com o intuito de estimular uma relação melodiosa com o meio ambiente, de maneira que gradualmente seja consolidada uma consciência ambiental que respeite os limites próprios da natureza.

Maria de Fátima Alves São Pedro

Conclusão Dos primórdios da humanidade até a época medieval, a Natureza aparece como duradoura e permanente, que sofria ciclos e alterações, mas era sempre capaz de recuperar sem dificuldade, inclusivamente das agressões que o homem lhe causava com as suas intervenções localizadas. Esta visão alterou radicalmente com a ciência moderna e a técnica dela derivada. O homem passou a constituir, de fato, uma ameaça para o prosseguimento da vida na Terra. A superação desse quadro de degradação e desconsideração promovida ao longo do tempo passa necessariamente, por alterações profundas na compreensão e conduta do homem. Surge então, a reciprocidade entre direito e dever, porquanto o desenvolver-se e usufruir de um Planeta plenamente habitável não é apenas direito, é dever precípuo das pessoas e da sociedade. Ao direito de usufruir corresponde o dever de cuidar. Portanto, a manutenção do meio ambiente saudável é fator integrante do processo de desenvolvimento sustentável. Neste sentido, o tema atualmente em tona, conforme apresentado ao longo do trabalho, foi explorado por Hans Jonas que recomenda ao pensamento e ao comportamento humano uma nova ética, um novo imperativo, um novo tipo de agir. Nessa perspectiva, o Princípio Responsabilidade, como foi chamado, “aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra”, significa uma quebra de paradigmas na medida em que se escolhe um novo modelo ético, uma ética estabelecida na ontologia do Ser imanente na natureza e não mais no antropocentrismo de modo que o futuro da humanidade acena fundamentalmente o futuro da própria natureza. A vulnerabilidade da natureza não fora reconhecida até não se conhecer os danos a ela produzidos. Isto é, até que o homem detentor da técnica não percebeu que suas ações de alguma forma estavam afetando todos os ciclos de vida, a natureza permanecia simples e exclusivamente a sua disposição. Essa descoberta levou ao que se chama ecologia, ou a ciência do meio ambiente. Por muito tempo, o homem achou que a natureza era infinita, ou que as suas ações e técnicas jamais a afetaria. Hoje, ele percebe que a natureza pede socorro. Portanto, o destino do homem é dependente da situação em que a natureza se encontrará. Manter a natureza é de interesse moral, mantendo assim a direção que visa ao bem do homem, ou seja, a ética tradicional ou antropocêntrica. Por isto, a consciência deste fato ainda é insuficiente para que de fato seja modificado o agir ético em relação à natureza. Dessa forma, ao formular o seu imperativo de responsabilidade, tornando-o princípio, Jonas está pensando menos no perigo da pura e simples destruição física da humanidade, e mais na sua morte essencial – e esse é o ponto de fundamental relevância na sua teoria. Ou seja, aquela destruição que advém da desconstrução e da aleatória reconstrução tecnológica do homem e do ambiente.

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O Imperativo da Responsabilidade de Hans Jones no amparo do Princípio ético da Sustentabilidade no Direito Ambiental

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A teoria da responsabilidade começa no Eu e no seu dever moral. Trata-se, sobretudo, de uma ética na perspectiva do coletivo e do futuro. Somente quem tem o “projeto futuro” enraizado em convicções morais, pode dizer que cumpre a máxima da responsabilidade em relação ao ser e ao vir a ser. O pressuposto para uma relação de responsabilidade é a constante crítica da razão. Ciente da impossibilidade de previsão certa é preciso reconhecer a ignorância e agir em vista de especulações, embora estas não ofereçam certezas. Uma possível irreversibilidade das consequências deve motivar o ser humano a buscar conhecimento científico para uma “ética informada”, mas ao mesmo tempo atentar para um paradigma que integre a vigilância dos seus superpoderes para agir com responsabilidade. Jonas amplia sua ética também no sentido vertical, isto é, o cosmo universal e o transcendente são horizonte de alcance da ética, considerando-se as consequências das ações dos seres humanos. Ele não se preocupa com a teoria da perfeição, da felicidade, da dignidade moral, mas com a possibilidade da existência em si em função do perigo que o mundo/cosmos avança. É preciso preocupar-se em primeiro lugar com a sustentabilidade do mundo no futuro. Vale salvar o mundo antes de salvar os indivíduos. A ética antropocêntrica dá lugar a um paradigma ético supraindividual. Este dá conta de um salto necessário para o ser-com-o-mundo, onde se estabelece uma verdadeira relação de valor igualitário, isto é, o respeito e encantos recíprocos não se estabelecem numa relação díspar centrada em algum elemento da Natureza, no caso do antropocentrismo, o ser humano. A consciência ambiental deve defender uma postura que enxergue a degradação ambiental como um problema de caráter ético que afeta de maneira dramática o bem-estar da vida no planeta, e que consequentemente tem uma transcendência política, social e econômica para a humanidade. Essa consciência deve estar fundamentada em raízes de caráter ético, articulando valores e modelos de conduta. Novos valores ambientais devem guiar as relações sociais contemporâneas, criando uma nova concepção ética que supere a postura antropocêntrica do meio ambiente. Neste sentido, o nexo do desenvolvimento precisa ser vassalo dos imperativos de uma modernidade ética, não apenas de uma modernidade técnica. A ética deve dar resposta a novos desafios. Diante deste diapasão, a relação entre a responsabilidade e a sustentabilidade é ofertada pela própria obrigação de sobrevivência do homem. Dentro dessa nova atitude, o valor da sustentabilidade e o princípio da responsabilidade são os postulados principais para asseverar o futuro da vida no planeta. A consciência ambiental, arraigada nas diversas esferas acadêmicas, representa um novo estado de amadurecimento de uma ética holística, que orienta as escolhas e as opções dos seres humanos na sua interação com o meio ambiente e que exige uma nova atitude na hora de analisar e resolver os problemas ambientais, considerando não apenas o bem comum da coletividade no presente, mas também o bem de toda a natureza, incluindo os seres vivos não humanos e as futuras gerações.

Maria de Fátima Alves São Pedro

Referências bibliográficas ALENCASTRO, Mario Sergio Cunha. Hans Jonas e a proposta de uma ética para a civilização tecnológica. In: Desenvolvimento e Meio Ambiente, n. 19, p. 13-27, jan./jun. 2009. Recife: Editora UFPR. 2009. ALENCASTRO, Mario Sergio Cunha; HEEMANN, Ademar. A responsabilidade como Substrato da Sustentabilidade: considerações a partir da obra de Hans Jonas. [2007]. Disponível em: Acesso em: 25 maio 2013. CANDIOTTO, Cesar (Org.). Ética: abordagens e perspectivas. Curitiba: Champagnat, 2010. COMISSÃO MUNDIAL Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991. HOSS, Geni Maria. Hans Jonas e o Princípio Ético da Responsabilidade Ambiental em Tempos de Crise Ecológica. Disponível em: . Acesso em: 11 nov.2013. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: Contraponto. Ed. PUC-Rio. 2006. SIQUEIRA, José Eduardo de. Hans Jonas e a ética da responsabilidade. Artigo publicado pela Revista Cultural Fonte. Universidade Norte do Paraná. V. 3. n.1, 2000. Disponível em: < http://www.unopar.br/portugues/revfonte/v3/artigos/artigos.html>. Acesso em: 03 out 2012. SILVA, Maria das Graças e. Questões ambientais e desenvolvimento sustentável: um desafio ético-político ao serviço social. São Paulo: Cortez, 2010.

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Racismo: Percepções e Representações do Campo Jurídico, na Doutrina e na Jurisprudência do Estado do Rio de Janeiro1 Carlos Alberto Lima de Almeida2 Resumo O presente artigo refere-se à pesquisa que busca identificar as percepções expressas no campo jurídico brasileiro, relacionadas à temática do racismo, a partir de uma análise da doutrina e da jurisprudência, no período 1988-2014. No que se refere à doutrina, esta pode ser entendida como as obras de autores renomados do Direito, que são utilizadas pelos operadores e estudantes na operacionalização de leis e regras; e por jurisprudência se entende aqui as decisões de órgãos colegiados do Poder Judiciário, situados no Rio de Janeiro, acerca da temática do racismo. A questão que se coloca é: como que categorias como “racismo” “injúria racial” “discriminação racial” “desigualdade racial”, dentre outras, são utilizadas no campo do Direito e na prática pelos Tribunais; para além da referência simplesmente normativa, assegurada pela Constituição de 1988 e na legislação infra-constitucional. Nossa hipótese é que a proteção normativa e o tratamento Constitucional relacionado ao racismo dependem, para sua efetivação, de serem percebidas na prática do campo jurídico no contexto da proteção social pretendida. Tendo em vista que essa prática se orienta pela produção bibliográfica de manuais e livros de Direito, ao lado das decisões judiciais, faz-se necessário investigar como e se estes conceitos são compreendidos e utilizados, bem como a partir do recorte encontrado e estes se relacionam, ou não, em harmonia com recortes advindos do campo das ciências sociais. A relevância desse estudo justifica-se a partir da necessidade de se investigar se as políticas sociais que vem sendo criadas para a diminuição da desigualdade racial têm sido concretizadas; bem se as ações políticas desenvolvidas a partir da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no plano Federal se revelam no campo do Direito, em situações concretas de conflitos submetidos ao Poder Judiciário e se já ocupam objeto de reflexões mais aprofundadas por parte daqueles que produzem a literatura especializada do campo. Palavras-chave: Direito; racismo; antirracismo; educação escolar. Abstract This article refers to research that seeks to identify the perceptions expressed in the Brazilian legal field, related to the theme of racism, from an analysis of doctrine and jurisprudence in the period 1988-2014. With regard to the doctrine, this can be understood as the works of renowned authors of the law, which are used by operators 1 2

Pesquisa vinculada ao Edital Pesquisa Produtividade 2015 – Universidade Estácio de Sá Doutor em Política Social PPGPS-UFF. Coordenador Adjunto da Área de Ciências Sociais, Professor Auxiliar I e Pesquisador integrante do Núcleo de Estudos sobre Direito, Cidadania, Processo e Discurso da Universidade Estácio de Sá – UNESA. E-mail: [email protected]

Racismo: Percepções e Representações do Campo Jurídico, na Doutrina e na Jurisprudência do Estado do Rio de Janeiro

and students in the implementation of laws and rules; and jurisprudence is understood here the collegiate bodies decisions of the Judiciary, located in Rio de Janeiro, on the theme of racism. The question that arises is how to categories such as “racism” “racial slur” “racial” “racial inequality”, among others, are used in the field of law and practice by the courts; beyond simply normative reference, guaranteed by the 1988 Constitution and the infra-constitutional legislation. Our hypothesis is that the normative protection and the constitutional treatment related to racism depend for their effectiveness, to be perceived in practice the legal field in the context of the intended social protection. Given that this practice is guided by the bibliographic production of textbooks and law books, along with the judicial decisions, it is necessary to investigate whether and how these concepts are understood and used, as well as from found cut and they relate or not in harmony with cuts arising from the social sciences. The relevance of this study is justified from the need to investigate whether the social policies that have been created for the reduction of racial inequality have been met; well if the political action developed from the Special Secretariat creation of Policies to Promote Racial Equality in the Federal plan are revealed in the law field, in concrete situations of conflict submitted to the courts and now take up the subject of in-depth reflections by those who produce the literature of the field. Keywords: Right; racism; antiracism; school education.

Introdução O presente artigo refere-se à pesquisa em andamento financiada pela Universidade Estácio de Sá, cuja seleção do pesquisador foi decorrente da submissão ao Edital de Concurso para Seleção de Docentes para auxílio financeiro de Pesquisa Produtividade 2015, por intermédio da qual, dando continuidade aos estudos realizados no Doutorado em Política Social (PPGPSUFF) e no Edital Pesquisa Produtividade 2014. Na referida Pesquisa Produtividade 20143 se discutiu, a partir de reflexões relacionadas à alteração instituída nas diretrizes e bases da educação nacional por intermédio da Lei 10.639/2003 (que alterou a Lei 9394/1996 para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”), a problemática das relações étnico-raciais no ambiente escolar, revelando a importância do tema no campo da política social brasileira. Num país marcado pelo denominado mito da democracia racial, sintetizado pela distância entre o discurso e a prática dos preconceitos, da discriminação entre brancos e negros no Brasil, o referido estudo partiu da problemática das relações raciais no ambiente escolar, as memórias dos alunos e a percepção deles sobre o conteúdo estudado ou a ser estudado no curso de Direito que guardassem relação com a questão racial no Brasil e/ou com políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar posturas preconceituosas de cunho étnico-racial. 3

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Os resultados da pesquisa foram apresentados de forma resumida sob o título “O curso de direito e a questão racial: racismo e relações étnico-raciais a partir de um estudo quantitativo com alunos do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá”. In: Diálogos Jurídicos da Contemporaneidade: estudos em homenagem ao professor José Maria Pinheiro Madeira. MELLO, Cleyson de Morais e GOES, Guilherme Sandoval (Coordenadores) Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda. 2015.

Carlos Alberto Lima de Almeida

Ao término da referida pesquisa, cuja coleta de dados se desenvolveu no segundo semestre letivo do ano de 20144, percebi que o resultado em relação aos dados obtidos por intermédio das respostas oferecidas pelos alunos ingressantes e concluintes do curso de Direito apontavam um caminho desafiador a seguir com muitas possibilidades e estratégias de enfrentamento da questão. O fato é que enquanto profissional da educação envolvido na formação de bacharéis em direito, identifiquei de forma clara a necessidade de dar continuidade aos meus estudos em relação a tais conteúdos, como forma de auxiliá-los a ampliar seus conhecimentos envolvendo o Direito e a questão racial brasileira.

A Pesquisa em Andamento: Seus Objetivos, Método e Metas A pesquisa em andamento tem por objetivo geral identificar as percepções expressas no campo jurídico brasileiro, relacionadas à temática do racismo, a partir de uma análise da doutrina e da jurisprudência, no período 1988-2014. Em relação aos objetivos específicos, foram traçados os seguintes: a) Identificar e compreender, a partir da doutrina – esta sendo entendida como as obras de autores renomados do Direito, que são utilizadas pelos operadores e estudantes na operacionalização de leis e regras – como que categorias como “racismo” “injúria racial” “discriminação racial” “desigualdade racial”, dentre outras, são utilizados no campo do Direito. b) Identificar e compreender, a partir da jurisprudência – que se entende para os efeitos dessa pesquisa como sendo as decisões de órgãos colegiados do Poder Judiciário, situados no Rio de Janeiro – qual o tratamento dispensado nos julgamentos acerca do racismo no âmbito dos diferentes tribunais situados no Estado do Rio de Janeiro. c) Investigar se as políticas sociais que vem sendo criadas para a promoção de uma mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras, a partir da disseminação da história e cultura africanas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que desconsiderou as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros, bem como se as ações políticas desenvolvidas a partir da criação da Secretaria 4

A metodologia que foi adotada pode ser sintetizada em pesquisa de campo efetivada com alunos do curso de Direito da Universidade Estácio de Sá, que no semestre letivo 2014.2 foi oferecido em 14 unidades no município do Rio de Janeiro, a saber: Unidade Barra World – Recreio, Unidade Dorival Caymmi, Unidade Freguesia, Unidade Ilha do Governador, Unidade João Uchoa, Unidade Madureira, Unidade Menezes Cortes (Centro III), Unidade Nova América, Unidade Santa Cruz, Unidade R9, Unidade Sulacap, Unidade Via Brasil, Unidade Tom Jobim e Unidade West Shopping. A pesquisa foi desenvolvida utilizando o método quantitativo e consistiu numa representação do alunado do Curso de Direito, cuja amostra tivesse por base a representação do aluno ingressante, com recorte específico nos alunos matriculados no 1º período em 2014.2, e a representação do aluno concluinte, com recorte específico nos alunos matriculados no 10º período em 2014.2. Participaram da pesquisa 1012 discentes, sendo validados os questionários referentes ao total de 995 alunos, sendo descartados 17 questionários por ausência ou não preenchimento correto do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

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Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no plano Federal, se revelam no campo do Direito, em situações concretas de conflito submetidos ao Poder Judiciário e se já ocupam objeto de reflexões mais aprofundadas por parte daqueles que produzem a literatura especializada do campo.

O desenvolvimento da pesquisa em curso tem sido realizado na perspectiva metodológica bibliográfico-documental. Na primeira parte do trabalho o foco está nas referências bibliográficas de modo a conhecer e aprofundar conhecimento em relação às categorias sob exame, a partir da doutrina específica da área do Direito. Na segunda parte, na pesquisa documental, o foco envolverá a análise da jurisprudência selecionada, trabalho em que a metodologia consistente em coletar as decisões sobre o tema racismo com o objetivo tanto de investigar as causas determinantes de cada conflito de interesses submetido ao exame do Poder Judiciário quanto o de revelar, a partir do contexto da decisão colegiada proferida, um retrato do “estado da arte” sobre o assunto. Para tanto, o foco recairá sobre a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região e do Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Para o recorte jurisprudencial serão considerados os acórdãos que expressem as decisões mais recentes de cada órgão jurisdicional. O presente estudo traz as seguintes hipóteses de trabalho: a) Como os autores da área do Direito Constitucional e do Direito Penal abordam o tema racismo, a partir da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988. b) Como os diferentes tribunais situados no Estado do Rio de Janeiro tratam a questão do racismo nos conflitos de interesse submetidos ao seu exame. c) Como as políticas sociais que vem sendo criadas para a promoção de uma mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras, a partir da disseminação da história e cultura africanas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que desconsiderou as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros, bem como se as ações políticas desenvolvidas a partir da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no plano Federal, se revelam no campo do Direito, em situações concretas de conflito submetidos ao Poder Judiciário e se já são objeto de reflexões mais aprofundadas por parte daqueles que produzem a literatura especializada do campo.

A Relevância do tema na Formação dos Bacharéis em Direito

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A questão racial tem estado na agenda brasileira de forma intensa nos últimos anos. Em 2013, por exemplo, um aluno veterano do curso de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), segurava uma estudante acorrentada, com a pele pintada e com um cartaz escrito “caloura Chica da Silva”. Neste ano de 2014, a capa de uma das revistas de maior circulação no país, era ilustrada com o jogador de futebol Daniel Alves fazendo, com os braços,

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uma banana. No canto, do lado direito, estava escrito com letras amarelas em destaque: “AQUI, Ó!”, Logo abaixo, em letras brancas menores o texto explicativo: “Daniel Alves, da seleção brasileira e do Barcelona, comeu a banana, os racistas dos estádios escorregaram na casca e o preconceito quebrou a cara – talvez para sempre”. A atitude do jogador foi assunto em diversas partes do mundo. O racismo no futebol não é novidade, nem tão pouco a tentativa de associar jogadores negros e pardos aos macacos. A matéria fazia menção ao fato de que aquele era o oitavo caso de racismo nos gramados espanhóis somente naquela temporada. O jogo entre o Villareal e o Barcelona estava no segundo tempo. Aos trinta minutos, quando o brasileiro Daniel Alves se encaminhou para bater o escanteio, uma banana foi atirada em sua direção. A reação dele foi rápida e inesperada para o público que assistia à partida: pegou a fruta, descascoa-a e a pôs na boca, cobranco o escanteio em seguida, sem perder tempo. Mas talvez os mais apressados pudessem dizer que o caso do Daniel Alves ocorreu na Espanha e que no Brasil não acontecem situações assim e que o caso do trote da UFMG foi um fato isolado. Para esses, então, valeria a pena, antes de continuar e focar na pesquisa, recordar o caso ocorrido no dia 05/03/2014 com o árbitro Márcio Chagas da Silva, que também foi vítima de racismo em Bento Gonçalves, no Estado do Rio Grande do Sul, logo após a partida disputada por Esportivo e Veranópolis, na serra gaúcha. Os fatos, que também tomaram grande repercussão na mídia nacional, deram conta que o árbitro, desde o início da partida sofreu manifestações de torcedores que o chamavam de macaco, sugerindo que seu lugar seria na selva ou que ele deveria voltar para o circo. Ao término do jogo, ao se dirigir ao estacionamento privativo do clube, local cujo acesso seria reservado apenas para a equipe de arbitragem e funcionários do clube, encontrou seu carro com a lataria arranhada e bananas em cima do veículo. O caso do goleiro Aranha e os torcedores do Grêmio também foi outro que tomou conta do noticiário no meio esportivo. É razoável presumir que esses torcedores racistas, do Brasil ou do exterior, em algum momento de suas vidas estiveram nos bancos escolares. No Doutorado em Política Social, cursado na Universidade Federal Fluminense no período 2009-2012, e no Edital Pesquisa Produtividade 2014, a discussão se desenvolve a partir de reflexões relacionadas à alteração instituída nas diretrizes e bases da educação nacional destacando a problemática das relações étnico-raciais no ambiente escolar e revelando a importância do tema no campo da política social brasileira. No Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Estácio de Sá 2014-2015, o foco recaiu no tratamento dispensando pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro ao tema racismo, por intermédio do exame dos acórdãos inseridos na página da internet do referido órgão jurisdicional, disponíveis para consulta por qualquer pessoa interessada, tomando-se por marco inicial a primeira ementa de acórdão sobre o tema, identificada no momento da proposição

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do presente projeto, referente ao julgamento ocorrido em 15 de agosto de 1996 e tendo como marco final o dia 15 de agosto de 2014, perfazendo um período de 18 anos de acervo digital. A recorrência do tema racismo na agenda brasileira, especialmente por conta das já mencionadas situações ocorridas no esporte, associadas aos estudos realizados e em curso com o objetivo de contribuir para a produção de conhecimentos relativos à operação do racismo na sociedade brasileira, em especial no campo da política de educação, bem como a inserção do pesquisador na área do Direito, trouxe ao foco a problemática das relações étnico-raciais no ambiente escolar e na sociedade de uma forma geral, revelando a importância do tema no campo da política social brasileira. Nesta perspectiva de análise, o diálogo entre a educação, o Direito e a política social é desafiador e instigante na perspectiva das possíveis contribuições que possam resultar desse trabalho de proposta interdisciplinar. A emergência de políticas sociais afirmativas orientadas para a raça, especialmente no campo da educação, é provavelmente a causa principal da crescente importância dada aos estudos que unem os temas raça e educação nas Ciências Sociais brasileiras nas últimas décadas, tanto no ponto de vista político quanto social (BARBOSA, 2005).

Para não Concluir

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A presente pesquisa pretende trazer dois tipos de resultados: em primeiro lugar, a definição de um quadro conceitual acerca do racismo sobre o pensamento de que se valem os doutrinadores brasileiros nas áreas do Direito Constitucional e Direito Penal e como os magistrados que atuam nos órgãos do Poder Judiciário, situados no Estado do Rio de Janeiro, se apropriam das categorias apresentadas em seus julgados. O acesso ao banco de dados será disponibilizado e os resultados da pesquisa deverão ser divulgados em congressos e periódicos científicos na forma de comunicações e de artigos. A lei 9.394/1996 estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e já em seu artigo 1º define que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.” Se em relação à educação escolar é preciso entender que esta abrange os processos formativos que se desenvolvem nas instituições de ensino o fato é que o lugar do sistema educacional é a sociedade civil. É aqui que se implantam as leis. Se estas já representavam uma forma de materialização da concepção do mundo, a sua verdadeira concretização somente se dá quando for absorvida pelas instituições sociais que compõem a sociedade civil. Na pesquisa realizada no Doutorado em Política Social e na concluída por intermédio do Edital Pesquisa Produtividade 2014 buscou-se contribuir a partir de uma reflexão acadêmica norteada para o desenvolvimento de uma

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visão mais ampla, profunda e crítica da realidade educacional no contexto histórico-social do país, em que se pretende contribuir para a construção de um ambiente escolar democrático, compromissado com políticas educacionais e com estratégias pedagógicas que possam contribuir para a redução de situações de discriminação racial e preconceito no ambiente escolar, bem como para a formação de alunos que tenham a consciência da importância do respeito à diversidade. Se no campo das ciências sociais percebe-se que as políticas sociais vêm sendo criadas para a promoção de uma mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras, a partir da disseminação da história e cultura africanas, buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que desconsiderou as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros, bem como se as ações políticas desenvolvidas a partir da criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial no plano Federal, é preciso avançar na investigação no campo do Direito, tanto em situações concretas de conflito submetidos ao Poder Judiciário quanto ao indagar se tal temática já é objeto de reflexões mais aprofundadas por parte daqueles que produzem a literatura especializada do campo do Direito. Noutras palavras, como que categorias como “racismo” “injúria racial” “discriminação racial” “desigualdade racial”, dentre outras, são utilizados no campo do Direito e na prática pelos Tribunais; para além da referência simplesmente normativa, assegurada pela Constituição de 1988 e na legislação infra-constitucional? Encontrar respostas para tais indagações pode, num país marcado pelo denominado mito da democracia racial, sintetizado pela distância entre o discurso e a prática dos preconceitos, da discriminação entre brancos e negros no Brasil e auxiliar na formação desses alunos inseridos no ensino superior e também aos profissionais que necessitam lidar com conflitos de interesse que envolvem o racismo no Brasil, justifica e contextualiza o papel da pesquisa na universidade, visto esse espaço educacional e seu papel na reprodução (ou não) das desigualdades sociais, noção estruturada por NOGUEIRA e NOGUEIRA (2002) acerca dos limites e contribuições da Sociologia da Educação, por intermédio da qual, a partir da obra de Bourdieu, contextualiza a escola e seu papel na reprodução das desigualdades sociais. Para não concluir, portanto, o fato incontroverso é que o noticiário revela – a partir dos casos já mencionados envolvendo calouros, esporte e racismo – que ainda há muita controvérsia a respeito das categorias que envolvem a questão racial brasileira. Sendo assim, deseja-se que a presente pesquisa contribua para o desenvolvimento de percepções e representações do campo jurídico, na doutrina e na jurisprudência do Estado do Rio de Janeiro sobre o tema racismo.

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Racismo: percepções e representações do campo jurídico, na doutrina e na jurisprudência do Estado do Rio de Janeiro

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O Trabalho a Céu Aberto como possível caracterizador da Insalubridade Jéssica Cristine Zibetti1 Danielle Riegermann Ramos Damião2 Resumo Este artigo teve por objetivo abordar os caracterizadores do adicional de insalubridade visando superar o entendimento de que falta previsão legal e a garantia do Direito de receberem esse adicional os trabalhadores que laboram a céu aberto, expostos diariamente a agentes nocivos à saúde, sujeitos a ação do clima, tempo e temperatura. Com o suporte do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e dos direitos dos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, bem como ao direito de receber adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, com o foco deste trabalho somente para as atividades insalubres, tudo com base nos princípios fundamentais básicos expressos nos primeiros artigos da nossa Constituição Federal de 1988. E também o Princípio da Proteção como importante pilar para o Direito do Trabalho e demais princípios da seara trabalhista, presentes na Consolidação das Leis do Trabalho. Esse trabalho trouxe o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, com a inteligência da OJ 173 da SDI-1 e a análise de julgado dos Tribunais Regionais do Trabalho, que traz como alegação a falta de previsão legal. Em contrapartida, existe a Norma Regulamentar número 15 elaborada pelo órgão competente, Ministério do Trabalho, que prevê em seus anexos essas atividades como insalubres. Abordouse também, de forma geral, as patologias decorrentes da exposição do trabalhador ao campo aberto, sujeito as radiações solares e dos prejuízos a sua saúde e integridade física. Esse tema mostrou-se de grande importância para os estudos que defendem os trabalhadores, parte hipossuficiente da relação jurídica, pois é direito deste ser remunerado pelo desgaste sofrido no seu ambiente de trabalho. Palavras-chave: Adicional de insalubridade; trabalho a céu aberto. 1

Graduada em Direito pela Faculdade São Luís – Jaboticabal (2014). Advogada com experiência na área de Direito Civil e do Trabalho. 2 Doutoranda em Função Social do Direito – FADISP (2015). Mestrado em Direito pela Universidade de Marília (2012). Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá (2003). Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2002). Autora de obras jurídicas. Atualmente é professora da ESMARN (Escola da Magistratura do Estado do RN) e da Faculdade São Luís. É membro dos conselhos editoriais das revistas “Direito e Liberdade” e da “Atualidades Jurídicas”. Acumula vasta experiência na docência superior (Graduação e Pós-Graduação). Assessora Jurídica da FUNEP – Fundação de Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão. É advogada e consultora jurídica. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Empresarial, Civil e do Trabalho.

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Introdução Os trabalhos e pesquisas sobre Direito do Trabalho têm crescido muito no Brasil, principalmente após a Emenda Constitucional 45 de 2004, que ampliou a competência da justiça especializada, a Justiça do Trabalho. O tema do presente trabalho tem como interesse analisar como a doutrina e jurisprudência se posicionam em relação aos trabalhadores que desenvolvem suas atividades expostos às intempéries nos locais a céu aberto. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), nos artigos 189 a 197, em conjunto com as Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho e Emprego, tratam das atividades consideradas insalubres, fazendo um rol taxativo delas. Especificamente sobre a questão do trabalho a céu aberto exposto à radiação solar, trata a Norma Regulamentadora 15, no seu Anexo 3 e também no Anexo 7. Foi através desses Anexos que o Ministério do Trabalho e Emprego elaborou uma lista que contempla os agentes insalubres, os quais fornecem efetividade para a concessão do adicional devido aos trabalhadores, como forma de remunerar o desgaste e os danos a sua saúde e integridade física. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) publicou uma Orientação Jurisprudencial (OJ) da Seção de Dissídios Individuais I, de número 173, que serve exclusivamente para, como o próprio nome diz, orientar os operadores do Direito nas questões semelhantes, a qual dispõe acerca do tema do presente artigo. Porém, retira o direito do trabalhador de receber o adicional previsto para a atividade insalubre exercida a céu aberto, com a motivação de que é ausente a previsão legal. No entanto, como veremos adiante, esse entendimento é equivocado. Dessa forma, eclode o conflito entre os operadores do direito, já que a Orientação Jurisprudencial do TST já citada, a qual serve de base e fundamentação para as situações análogas, fere um dos princípios expressos da Constituição Federal 1988, qual seja: o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. E, por negar direito trazido no corpo do Diploma Trabalhista e regulamentado por norma técnica, fere outro princípio, o da Segurança Jurídica. Esse trabalho trará uma análise acerca do tema, buscando esclarecer a caracterização da insalubridade nos trabalhos a céu aberto, o equívoco e insegurança jurídica trazidos pela elaboração da OJ, mencionando também de forma sucinta as patologias decorrentes da exposição do trabalhador às intempéries climáticas, com foco na radiação solar.

Breves observações acerca dos Princípios e Direitos Constitucionais dos Trabalhadores

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Os princípios são ideais fundamentais vistos como valores a serem seguidos na organização jurídica. Possuem plena eficácia normativa, permitindo melhor entendimento da Constituição Federal para a aplicação efetiva de suas garantias. Enfim, os princípios são fontes do Direito, sendo assim tendem a nortear as decisões dos magistrados quando existir matéria divergente.

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A tutela jurisdicional com base na seara dos princípios em relação aos trabalhadores, parte hipossuficiente da relação jurídica comparada ao empregador, é imensa no nosso ordenamento jurídico vigente. No Direito do Trabalho, o princípio pilar de responsabilização da Justiça do Trabalho é o Princípio da Proteção, que encontra fundamento na subordinação exercida pelo empregador, limitando nessa relação à autonomia da vontade, como forma de corrigir as desigualdades, e ainda assim servindo de base para todos os institutos, regras e contextos que integram esse ramo jurídico especializado. Conforme entendimento doutrinador Maurício Godinho Delgado: [...] Informa este princípio que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção a parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro -, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. (DELGADO, 2013, p. 190).

A própria Lei Magna de 1988 traz em seus princípios fundamentais expressos os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, como título de informação com relação à questão divergente do presente artigo científico, o artigo 7º, in verbis: São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXII – redução dos riscos inerentes à saúde, higiene e segurança; XXIII – adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei. (BRASIL, 1988).

O artigo 170 também prescreve um direito relativo às relações trabalhistas, em seu inciso VI, que é ter um meio ambiente de trabalho equilibrado, conforme sua redação, in verbis: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI- defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. (BRASIL, 1988).

Não esquecendo que além dos princípios supracitados, temos um princípio basilar que serve não apenas para todos os ramos do Direito como também para todo o globo normativo brasileiro, que sem sombras de dúvidas deve ser respeitado por todos os cidadãos em todos os negócios e relações jurídicas, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. É um princípio norteador dos princípios constitucionais, que visa evitar abusos e tratamentos degradantes,

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e neste caso, visa prevenir esses danos ao trabalhador. Nas palavras da jurista Cíntia Maria da Fonseca Espada: A incidência do princípio da dignidade da pessoa humana no âmbito do trabalho implica a necessidade de se proteger o trabalhador contra qualquer ato atentatório a sua dignidade, de lhe garantir condições de labor saudáveis e dignas, e também de propiciar e promover a inclusão social. Constata-se, desta forma, que o núcleo do princípio protetor do empregado encontra fundamento do princípio da dignidade da pessoa humana. (ESPADA, 2008, p. 96). A imagem a seguir mostra um trabalhador exercendo suas atividades a céu aberto no campo, pelo observado seu semblante, esse empregado está exposto a agentes do tempo e suas intempéries, como exposição ao sol e ao calor, podendo até ocasionar danos ao seu sistema fisiológico, o que constitui claramente um ambiente insalubre. Não conceder o adicional de insalubridade a este homem é estar ferindo sua dignidade como pessoa humana.

Figura 1: Expressão sofrida e cansada do trabalhador a céu aberto Fonte: Autoras, 2013, Fazenda Santa Helena, cidade de Taiúva-SP

Conforme as observações feitas anteriormente sobre os direitos pertinentes a esses trabalhadores, a resposta a essas perguntas é claramente positiva, e será oportunamente desenvolvida ao longo deste artigo.

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As atividades laborais devem apresentar condições dignas para a garantia do exercício dos direitos fundamentais, e não em contrapartida negar esse direito e não garantir aos trabalhadores que trabalham a céu aberto o adicional de insalubridade. Isso fere a dignidade da pessoa humana, como vimos.

Conceito de Insalubridade e o Direito ao Respectivo Adicional A insalubridade, vem do latim insalubris e significa algo que traz malefícios à saúde humana, dano à integridade física ou capaz de provocar doenças. No Direito do Trabalho, as atividades quando não puderem ser superados os riscos à saúde, são consideradas atividades insalubres ou atividades perigosas e não são permitidas para os menores de 18 anos. Nosso país adotou o sistema de monetização do risco com o pagamento do respectivo adicional pelo trabalho exercido em condições adversas, que podem ser frio, umidade, calor como também lugar com muitos ruídos, com alteração de pressão hiperbárica, sujeito a vibrações, poeiras, entre outros. Como exemplificam as palavras de Sérgio Pinto Martins: Na insalubridade, o prejuízo é diário à saúde do trabalhador. A saúde do trabalhador é afetada diariamente. Ela causa doenças. Diz respeito à Medicina do Trabalho. Elementos: físicos: ruídos, vibrações, calor, frio, umidade, eletricidade, pressão, radiações; químicos: névoas, neblinas, poeiras, fumos, gases, vapores; biológicos: micro-organismos, como bactérias, fungos, parasitas, bacilos, vírus. (MARTINS, 2.013, p. 716).

Porém há de se observar os limites legais de tolerância em se tratando de atividades que trazem danos diários ao trabalhador, conceito expresso segundo o artigo 189 da Consolidação das Leis do Trabalho, in verbis: Art. 189 - Serão consideradas atividades ou operações insalubres aquelas que, por sua natureza, condições ou métodos de trabalho, exponham os em pregados a agentes nocivos à saúde, acima dos limites de tolerância fixados em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos. (BRASIL, 1943).

Sendo assim, é preciso para caracterizar a insalubridade que o trabalhador fique exposto a agentes nocivos a sua saúde e que essa exposição seja acima dos limites de tolerância fixados em razão da intensidade e da natureza e do tempo de exposição, pois não tem direito ao adicional se a exposição estiver nos limites toleráveis. Esses limites e padrões são definidos exclusivamente pelo Ministério do Trabalho, órgão administrativo do Poder Executivo, que possui a competência atribuída pelo decreto 5.063 de 3 de Maio de 2004 para se pronunciar sobre assuntos que lhe sejam submetidos pelo Ministro do Estado, nesse caso verificar as situações das atividades profissionais a serem consideradas insalubres ou perigosas dentro da matéria de Segurança e Medicina do Trabalho, através das Normas Regulamentadores (até hoje perfazem um total de 28).

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Através também dessas normas (NR) serão aprovados os quadros das atividades e operações insalubres, os meios de proteção, critérios de caracterização e o tempo máximo de exposição do empregado a esses agentes. No caso em tela no presente artigo, a Norma Regulamentadora 15 aborda o assunto, aprovada pela portaria 3.214 de 08 de junho de 1978 em consonância com Lei 6.514 de 22 de dezembro de 1977, que alterou o capítulo da Consolidação das Leis do Trabalho relativo à Segurança e Medicina do Trabalho, que trata das atividades insalubres, mais precisamente o Anexo 3 que trata da exposição ao calor, o Anexo 5 que trata da radiação ionizante e o Anexo 7 das radiações não ionizantes. A Consolidação das Leis do Trabalho traz expressamente em seus artigos 190 e 195 a obrigatoriedade de acumular dois requisitos para a percepção do adicional: o agente nocivo à saúde do trabalhador deve ser avaliado e constatado por meio de laudo pericial técnico emitido por perito registrado nos quadros do Ministério do Trabalho e Emprego e a atividade deverá estar inclusa na lista de atividades insalubres emitida pelo órgão do trabalho. O direito ao adicional se dá pelo fato do obreiro estar exposto diariamente às intempéries, embora seja devido também ao trabalho intermitente, aquele que é exercido de maneira não contínua com intervalos de descanso, conforme súmula nº 47 do TST “O trabalho executado em condições insalubres, em caráter intermitente, não afasta, só por essa circunstância, o direito à percepção do respectivo adicional”. Pode ocorrer que a empresa adote medidas que conservem o ambiente de trabalho dentro do padrão de segurança e tolerância observando as normas regulamentadoras através das portarias do Poder Executivo, adote e estipule a utilização de equipamentos de proteção individual e coletivo (EPI e EPC) para o grupo de empregados que fazem parte dos quadros da empresa. Os equipamentos serão considerados EPI ou EPC depois de serem submetidos a apreciação e terem um Certificado de Aprovação (C.A.) emitido pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), como especificado no Anexo 1 da NR 6 que trata precisamente dos Equipamentos de Proteção Individuais. Dessa maneira, somente passando pelo crivo do MTE, o produto poderá ser comercializado para as empresas e fornecido aos trabalhadores. A adoção desses equipamentos e a sua utilização serão feitas através de negociação coletiva, um acordo coletivo ou uma convenção coletiva, entre sindicato e empresas, como por exemplo, uma Usina de Açúcar e Álcool e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais. O uso desses equipamentos faz com que se diminua a intensidade do agente agressivo a limites toleráveis, para tanto, os trabalhadores são submetidos a cursos de capacitação que a própria empresa oferece para aprender o exercício do seu trabalho e suas atividades com maior segurança e menos riscos a sua integridade. A empresa adotando essa postura concorre à neutralização ou a eliminação da insalubridade.

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Decisões reiteradas do Tribunal Superior do Trabalho mostram por meio da súmula 80 que “A eliminação da insalubridade pelo fornecimento de aparelhos protetores aprovados pelo órgão competente do Poder Executivo exclui a percepção do adicional respectivo”, nesse caso ocorre a eliminação do agente insalubre. Já súmula 289 também do Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, evidencia a reiteração e esclarece que: O simples fornecimento do aparelho de proteção pelo empregador não o exime do pagamento do adicional de insalubridade. Cabe-lhe tomar as medidas que conduzam à diminuição ou eliminação da nocividade, entre as quais as relativas ao uso efetivo do equipamento pelo empregado.

Portanto, cessando e eliminando os riscos à saúde e integridade física do trabalhador o direito do empregado de receber o adicional cessará. Pode também ocorrer a descaracterização ou a reclassificação da atividade insalubre nos quadros e normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho. Se isso acontecer, o empregado poderá ter o valor reduzido ou até mesmo perder o direito ao adicional, que possui característica nitidamente salarial. Assim sendo, não há nenhuma incorporação ou direito adquirido a essa parcela salarial, portanto não se pode pleitear a existência de afrontamento ao princípio da irredutibilidade salarial no caso de sua redução ou supressão. Como bem aponta, de forma generalizada, Delgado: Embora sendo salário, os adicionais não se mantêm organicamente vinculados ao contrato, podendo ser suprimidos, caso desaparecida a circunstância tipificada ensejadora de sua percepção durante certo período contratual. São, desse modo, o exemplo mais transparente do chamado salário condição, acolhido reiteradamente pela jurisprudência. (DELGADO, 2013, p. 767)

Se esse adicional possui caráter salarial será recebido com habitualidade, contudo integrará e incidirá no salário do obreiro, no período de sua percepção, para fins de todos os efeitos legais. Desse modo, irá refletir no cálculo das férias com 1/3 constitucional, décimo terceiro salário, FGTS, aviso prévio e contribuições previdenciárias. Será calculado com base no salário mínimo e terá valor variado conforme o grau da insalubridade e porcentagem respectiva, à razão de 40% para grau máximo, 20% para o grau médio e 10% para grau mínimo. O grau e porcentagem devem ser avaliados por perito qualificado, médico ou engenheiro do trabalho especialista em segurança e medicina do trabalho registrado nos quadros do MTE, e quando houver reclamação trabalhista nesses casos o perito também deve ser habilitado e registrado.

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Possível equívoco da OJ 173 da Seção de Dissídios Individuais I e a Caracterização do Adicional de Insalubridade Diante do conceito de insalubridade ora exposto acima, podemos observar que de fato nem toda atividade insalubre é definida no nosso ordenamento jurídico. O conceito de insalubridade, como visto anteriormente, é dado pela Consolidação das Leis do Trabalho de forma genérica e abrangente e precisa de uma regulamentação específica pelo órgão competente a fim de serem criadas normas mais precisas acerca do tema, o que foi feito através da NR 15 do Ministério do Trabalho e Emprego. Porém o Tribunal Superior do Trabalho na Orientação Jurisprudencial 173 da Seção de Dissídios Individuais I, a qual teve sua redação recentemente modificada pela resolução número 186/2012 do Pleno do TST, serve de base para os operadores do direito, para as decisões dos Tribunais Regionais do Trabalho em segundo grau e a Justiça do Trabalho em primeiro grau, consolidou o entendimento de que é indevido o adicional ao trabalhador em atividade a céu aberto, como transcreve o corpo do texto da OJ: Adicional de Insalubridade. Atividade a céu aberto. Exposição ao sol e ao calor. I-Ausente previsão legal, indevido o adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto, por sujeição à radiação solar. (art.195 da CLT e Anexo 7 da NR 15 da Portaria n. 3214/78 do MTE). II-Tem direito ao adicional de insalubridade o trabalhador que exerce atividade exposto ao calor acima dos limites de tolerância, inclusive em ambiente externo com carga solar, nas condições previstas no Anexo 3 da NR15 da Portaria n.3214/78 do MTE. (Tribunal Superior do Trabalho, 2014).

A única intenção dessa Orientação foi de esclarecer que a radiação solar nas atividades a céu aberto não gera o direito ao adicional, somente é devido nos casos em que essa exposição supere os limites de tolerância em relação ao calor. A ausência de previsão legal segundo o que diz a OJ não é uma verdade uma vez que a mesma faz referência à norma. E mesmo que não existisse de fato uma norma, houvesse uma lacuna, a CLT diz ser possível utilizarmos as técnicas de integração para que se reconheça um direito ora explícito, segundo o seu artigo 8º: As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do Direito do Trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. (BRASIL, 1943).

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Para evidenciar ainda mais o deslize, não conceder o adicional ao trabalhador exposto à intensa radiação solar, que todos sabem ser altamente prejudicial à saúde, viola um dos princípios mais relevantes e importantes, se não o mais entre outros do nosso ordenamento jurídico, o princípio já citado no capítulo anterior, da Dignidade da Pessoa Humana. Além do mais, a função da orientação jurisprudencial é de nortear os operadores do Direito na aplicação das normas trabalhistas e nesse caso ocorre justamente o contrário, o que viola também o Princípio da Paz Social, trazendo insegurança jurídica, conforme a injustiça praticada contra o trabalhador brasileiro em trabalho a céu aberto.

Análise de Laudos Periciais e Recentes Julgados Através de pesquisa no acervo de processos na Justiça do Trabalho de Jaboticabal, dos quais figuram no polo ativo trabalhadores que exercem suas atividades em campo aberto, constatou-se que a maioria dos laudos periciais, feitos por peritos engenheiros de segurança do trabalho, não concedem o adicional de insalubridade aos trabalhos a céu aberto, por consequência da OJ 173 da SDI-1 do TST, mas concedem nos casos que ultrapassam o limite de tolerância de calor. Como exemplo, o laudo realizado pelo perito Roeni Benedito Michelon Pirolla, Engenheiro de Segurança do Trabalho, para o processo abaixo citado: O reclamante sempre laborou nas dependências da reclamada a céu aberto [...] levando-se em conta as normas técnicas vigentes, a insalubridade será caracterizada quando a exposição ocorrer de forma habitual ao calor [...]. (1ª Vara do Trabalho de Jaboticabal, processo nº 0015932013.0029).

O Acórdão, abaixo, proferido pelo Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais decidiu no mesmo sentido, pela não remuneração do adicional de insalubridade: TRABALHOS A CÉU ABERTO – ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. RAIOS SOLARES. AUSÊNCIA DE PREVISÃO NORMATIVA. Conforme se depreende do teor do Anexo 07 da NR 15 da Portaria nº 3.214/78 do MTE, não se inclui como fator insalutífero a exposição a raios solares decorrentes de atividades executadas a céu aberto. Embora a recente Resolução nº 186/2.012, divulgada no DEJT em 25, 26 e 27.09.2012, tenha alterado a redação da OJ nº 173 da SDI-1 do TST para reconhecer a insalubridade decorrente de exposição a calor acima dos limites de tolerância, manteve-se o entendimento, no seu item I, no sentido de que “Ausente previsão legal, indevido o adicional de insalubridade ao trabalhador em atividade a céu aberto, por sujeição

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à radiação solar (art.195 da CLT e Anexo 7 da NR 15 da Portaria nº 3214/78 do MTE). Portanto, forçoso admitir que as conclusões do laudo pericial são insuficientes para se garantir o direito à percepção do referido adicional, em decorrência da não subsunção do fato à norma. Inteligência do item I da OJ nº 4 da SDI-1 do Colendo TST. (TRT, Minas Gerais, 3ª Região. Segunda Turma. 0000111-17.2.012.5.03.0046 RO. Recurso Ordinário. Relator Desembargador Sebastião Geraldo de Oliveira. DEJT 15/02/2.013 P. 243).

O que o julgado traz é uma consequência diária em diversos outros pleitos com o mesmo objeto, utilizando como fundamento errôneo a inteligência da OJ 173 da SDI-1, a qual mesmo modificada não observou os princípios basilares do Direito do Trabalho, como o Princípio da Proteção já citado nos capítulos anteriores.

Trabalho a Céu Aberto como caracterizador da Insalubridade Como citado nos capítulos anteriores a expressão “céu aberto” relativa às atividades em local aberto e sujeito as intempéries, é adequada e utilizada pelo diploma trabalhista de 1943 em seu artigo 200, inciso V, in verbis: Cabe ao Ministério do Trabalho estabelecer disposições complementares às normas de que trata este Capítulo, tendo em vista as peculiaridades de cada atividade ou setor de trabalho, especial sobre: V – proteção contra insolação, calor, frio, umidade e ventos, sobretudo no trabalho a céu aberto (...). (BRASIL, 1943).

O próprio texto da Consolidação das Leis do Trabalho, como observado anteriormente, estabelece a proteção ao trabalhador sujeito as ações climáticas em locais abertos. Por isso, cumpre ressaltar que a NR 15 regulamentou em seu Anexo 7 as radiações não ionizantes, radiações essas que podem ser: as microondas, laser e ultravioletas. Porém, não estabelece limites de tolerância para a exposição a essas radiações: Anexo7. As operações ou atividades que exponham os trabalhadores às radiações não-ionizantes, sem a proteção adequada, serão consideradas insalubres, em decorrência de laudo de inspeção realizada no local de trabalho.

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O sol, estrela central do sistema solar, nos fornece sua energia que é fundamental para sustentar toda a vida na superfície terrestre, e é constituído por radiações de comprimentos de ondas diversas, quais sejam as ondas eletromagnéticas, sendo parte da luz visível e parte invisível, os raios ultravioletas. Essa última prevista na NR 15, como sendo atividade insalubre aquela que o trabalhador fica exposto a essas radiações sem a devida proteção.

Jéssica Cristine Zibetti e Danielle Riegermann Ramos Damião

Figura 2: Absorção dos raios solares na superfície terrestre Fonte: Site Sol amigo, 2014 (http://www.solamigo.org/)

A imagem acima mostra, a título de informação, a intensidade com que a radiação ultravioleta chega à superfície da Terra. Numa pesquisa realizada através do site Sol Amigo (http://www.solamigo.org/) verificamos que a radiação solar ultravioleta, parte invisível, ou seja, não podemos enxergar ou sentir os seus efeitos imediatos na pele e no organismo, é dividida em três: UVA, UVB e UVC. Esses raios UV são filtrados pela camada de ozônio, que é uma proteção ao redor do planeta. Qualquer alteração na quantidade de radiação UV que chega até a superfície da Terra pode causar danos à saúde, ocasionar desequilíbrios, causar prejuízos para a fauna e flora. Da mesma forma, a exposição humana prolongada a tal radiação é prejudicial à saúde. Analisaremos, a seguir, de forma objetiva e simples, os prejuízos causados ao trabalhador por cada tipo de radiação UV, dados trazidos também do site Sol Amigo: Radiação UVA: como ilustra a Figura 2, boa parte dos raios UVA atinge a atmosfera, conseguindo atravessar a camada de ozônio sofrendo pouca atenuação. Ao atingir a pele do trabalhador, o raio a penetra profundamente, conforme imagem ilustrativa a seguir:

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Figura 3: Raios UVB e UVA absorção profunda na pele. Site Sol amigo, 2014 (http://www.solamigo.org/)

Radiação UVB: já a radiação UVB é absorvida fortemente pela camada de ozônio, porém essas pequenas quantidades que atingem a superfície terrestre podem ser substancialmente danosas à saúde, mesmo que esses raios não penetrem profundamente na pele, conforme a ilustração acima. Radiação UVC: já os raios UVC, por sua vez, são absorvidos totalmente pelo oxigênio da camada de ozônio, não atingindo a superfície terrestre, até mesmo porque se a atingisse essa radiação é extremamente danosa e altamente penetrante, podendo causar sérios danos à saúde e a vida. Como exemplo, é utilizada de forma artificial para esterilizar instrumentos cirúrgicos. Daí a preocupação com a degradação à camada de ozônio provocada pela ação humana que libera gases tóxicos na atmosfera. Ainda de acordo com o site consultado, cada tipo de pele e organismo reage de uma forma diferente às radiações UVA e UVB. O objetivo desse trabalho é somente citar os prejuízos e doenças decorrentes da exposição a esses raios, como forma de conclusão jurídica para caracterizar a insalubridade nos trabalhos a céu aberto sujeitos à radiação solar. Senão vejamos: As doenças ocasionadas pelo excesso de exposição direta à radiação solar, sem as devidas proteções como o uso de equipamentos de proteção com o certificado de aprovação, são geralmente: redução de defesas imunológicas, fotoenvelhecimento, eritemas, catarata precoce, doenças pré-malignas e malignas como a neoplasia e melanoma cutâneo comumente chamado de câncer. O principal fator do surgimento de câncer de pele, é o contato constante da pele com os raios solares. Como prevenção da patologia, o site do Instituto 216 receita evitar a exposição ao Sol no horário das 10h às 16h, horários esses em

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que os trabalhadores estão em plena execução de suas atividades diárias a céu aberto. Diante de todo o exposto acerca da prejudicialidade causada à saúde pela exposição direta à radiação solar, pode-se observar que as atividades exercidas em local aberto em todo território brasileiro por trabalhadores como: os trabalhadores rurais ou os rurícolas incluídos os cortadores de cana, apanhadores de frutas, os garimpeiros, os pescadores e também marinheiros, os trabalhadores de pavimentação, que laboram em fábricas de blocos, os operários de construção civil (os pedreiros e ajudantes gerais), funcionários de carvoarias, os vendedores ambulantes (sorveteiros, vendedores de algodão doce, etc.), também os salvavidas, que trabalham muitas vezes em piscinas descobertas e nas praias sem guarda-sol, entre outros tipos de trabalhadores que exercem seu labor nessas condições de trabalho. A todos esses trabalhadores muitas vezes não são oferecidas as medidas de proteção adequada, equipamento de proteção individual sem o devido certificado de aprovação, e muito menos recebem uma remuneração a título de compensar o seu esforço e nocividade à sua saúde. Portanto, cabe uma análise dos riscos de cada atividade dessas em particular quanto ao tempo de exposição à radiação solar e essas atividades devem sim, ser adicionadas à lista oficial elaborada pelo Ministério do Trabalho como atividades insalubres.

Conclusão Diante dos estudos realizados acerca do tema, entende-se que a atividade a céu aberto pode ser considerada insalubre e ensejar o direito ao respectivo adicional de insalubridade. Os operadores do Direito ainda estão divididos quando o assunto a ser tratado é a caracterização da insalubridade nos trabalhos a céu aberto em razão de existir a divergência ora exposta nos capítulos acima, onde o direito ao adicional é negado pela Orientação Jurisprudencial da SDI-I 173 e favorecido positivamente na NR, norma técnica do MTE e na própria CLT. Apesar disso, ficou evidente a caracterização da insalubridade nas atividades laborais em local externo, haja vista todos os possíveis problemas de saúde elencados neste trabalho. Diante do exposto, a conclusão/orientação a que se chega é a de que sejam pelo menos fornecidos pelas empresas contratantes exclusivamente equipamentos de proteção individual, com o devido certificado de aprovação emitido pelo MTE, para amenizar os danos e doenças que cada vez mais estão atingidos os trabalhadores que laboram nessas condições. Conclui-se também que a Orientação Jurisprudencial da SDI-I 173 deve ser reformada ou cancelada, para gerar definitivamente segurança jurídica acerca do tema e, também, para que seja respeitado o princípio da Dignidade da Pessoa Humana em conformidade com o princípio da Proteção, que é princípio pilar do Direito do Trabalho.

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A Filosofia do Direito e a Filosofia Política: A Epistemologia do Acesso à Justiça Estamos em pleno século XXI, mas será que a mentalidade e as práticas daqueles que atuam no sistema de justiça criminal são deste século? Vem acompanhando as mudanças na filosofia do Direito, teoria do Direito e do constitucionalismo e consequentemente as conjugam com práticas realmente republicanas? Democráticas? Como disse Cançado Trindade ao criticar a resistência do poder judiciário em avançar na jurisprudência comparada alertou: “O problema não é de direito, mas sim de vontade, e para resolvê-lo, requerse sobretudo uma nova mentalidade”2, não adianta mudar a lei sem alteração da mentalidade. As alterações trazidas pela lei 13.105/15 introduzem no ordenamento mecanismos processuais que deverão refletir no Processo Penal, inclusive na investigação criminal, por traduzir o amadurecimento político e democrático do acesso a uma ordem jurídica justa. Realiza uma verdadeira materialização do devido processo legal em seu aspecto formal e substancial, tendo em vista que sua concepção eminentemente dialética se aplica no âmbito da autoridade administrativa, como leciona Adriano Moura da Fonseca Pinto et al, ao 1

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Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, Doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Nacional Lomas de Zamora, Argentina. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Processo Penal da EMERJ, Professor de Direito Penal e Processual Penal da Graduação e Pós-Graduação da UNESA/RJ, professor de Penal e Processo Penal da Pós-Graduação da Universidade Cândido Mendes, professor conteundista do site www.atualidadesdodireito.com.br dos professores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Professor concursado da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos artigos jurídicos e científicos. Membro Titular da Association Internationale de Droit Pénal, Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Membro da Law Enforcement Law Enforcement Against Prohibition. Palestrante e Conferencista. email: [email protected]. Janeiro de 2015. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. in: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, Brasília, nº 113/118, p.91, jan/dez. 1998.

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lecionarem sobre a Teoria Geral do Processo, na obra Curso do Novo Processo Civil3: “A observância do contraditório nessa dimensão está vinculada ao próprio respeito à dignidade da pessoa humana e, axiologicamente, aos ditames da democracia, que adquire melhor expressão e referencial, no âmbito processual(....)

E prossegue o festejado autor, citando o RMS 28517 AgR/DF, em 25/03/2014, voto do Min. Celso de Mello, na qual decidiu que4: à cláusula Constitucional do ‘due process of law’ a supressão, por exclusiva deliberação administrativa, do direito à prova, que, por compor o próprio estatuto Constitucional do direito de defesa, deve ter seu exercício plenamente respeitado pelas autoridades e agentes administrativos, que não podem impedir que o administrado produza os elementos de informação por ele considerado imprescindíveis e que estejam eventualmente capazes, até mesmo, de infirmar pretensão punitiva da Pública Administração.”

É nesta seara que afirmaremos como a evolução da filosofia do Direito e da Ciência Polícia na contemporaneidade não contempla mais o discurso de uma investigação criminal sem a incidência de um devido processo legal. Hodiernamente, prepondera no ceio midiático, o espetaculismo circense de atrações aberrantes, que transformam nosso sistema de justiça criminal em um palco de violações à diversas garantias fundamentais. Os dramas viraram mercadorias para consumo e as garantias constitucionais no processo, que deveriam ser efetivadas pelos órgãos que compõem aquele sistema, se transmudaram em obstáculos para a aquisição deste novo produto, diante do mercado de justiça midiática eminentemente de lógica utilitarista. Fruto da teoria da Análise Econômica do Direito, “que busca aplicar teorias da Ciência Econômica na interpretação e aplicação do Direito”, também conhecida como movimento Law and Economics, transformando garantias fundamentais em mercadorias de um grande “’shopping humano’, onde tudo é comprável, vendável e permutável.”5 Discorrendo sobre o “princípio da máxima felicidade/o utilitarismo” Sandel assevera que “a análise de custo e benefício para tentar trazer a racionalidade e o rigor para as escolhas complexas da sociedade, transformando todos os custos e benefícios em termos monetários – e, então, comparando-os”6, agrega valores distintos em uma 3

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ARAÚJO, Luis Carlos; e MELLO, Cleyson de Moraes (org). Curso do Novo Processo Civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015, p. 54. 4 Ibidem, 21 5 ROSA (2012), Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Alexandre de Morais Rosa [at al.], (org.) Luigi Ferrajoli, Lenio Luis Streck e André Karam Trindade, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 137 a 141 6 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 56

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escala única. Tanto Stuart Mill como Jeremy Bentham, os maiores defensores do utilitarismo, apesar de defenderem suas teses sem considerar os valores morais, para sustentarem o utilitarismo, no entanto, “o consegue apenas invocando um ideal moral da dignidade e da personalidade humana independente da própria utilidade.7 Kelsen8 tenta corrigir estas diferenças valorativas, asseverando que “do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito Positivo, uma norma jurídica pode ser considerada como válida ainda que contrarie a ordem moral.” Mas Geraldo Prado9 alerta ao contraponto de que “O positivismo cassa a historicidade das ciências sociais. (....) o positivismo se demite do contato com a dura realidade e joga o tema do Poder para escanteio.” Robert Alexy10, criticando o positivismo constrói um “constitucionalismo principialista”, na qual as regras e princípios são igualmente normas jurídicas, sendo que aquelas, “comandos definidos”, que têm baixa abstração e alta densidade normativa, enquanto os princípios, “comandos de otimização”, que possuem alta abstração e baixa densidade normativa, atendendo, respectivamente, a fórmulas de subsunção e de ponderação de valores. Porém, Habermas11 entende que “faltam critérios racionais para isso”, ao mesmo tempo que também afirma que “sob as condições da política socioestatal, o legislador democrático mais cuidadoso, não consegue, só e igualmente, ligar justiça e administração, mediante a forma semântica da lei;12” Enfim, como imergir, então, nas profundezas da complexidade das relações sociais atuais do século XXI, sem perdermos os valores humanísticos conquistados, principalmente no pós II guerra mundial, principalmente na transição de regimes autoritários para os democráticos? Segundo Maier13, “todo expositor de una rama jurídica, o de un problema particular de ella, comieza su estudio con un repaso del desarollo histórico de su disciplina o del instituto que lo preocupa, en procura de ubicarse en ese proceso cultural. Em outras palavras, entender o papel das garantias fundamentais na investigação criminal, ainda em discussão, em pleno no século XXI, depende de se compreender a evolução cultural e política desta instituição e suas funções de conectividade democrática. Este mencionado conteúdo político está presente em determinado momento histórico, quando o interesse das pessoas, ou seja, a questão humana 7

O. cit. p. 71 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado, 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 77 9 PRADO, Geraldo, MARTINS, Rui Cunha; CARVALHO, L.G. Grandinetti Castanho de. Decisão Judicial. A Cultura Jurídica Brasileira na Transição para a Democracia. Madrid, Barcelona, Buenos Aires, São Paulo: Marcial Pons, 2012, p. 39/40 10 ALEXY, Robert. Teoria Discursiva do Direito, Org. trad. e estudo introdutório Alexandre Travessoni Gomes Trivissonno, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014 ,p. 146. 11 apud ALEXY, Robert. Ob. Cit. p, 331 12 HABERMAS, Jürgen. Direito e Moral. Trad. Sandra Lippert, Lisboa: Piaget, 1992, p. 50 13 MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal, Tomo I, fundamentos. 2. ed. 2ª reimp. Buenso Aires: Ed. Del Puerto, 2012, p. 259 8

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passa a não ter mais relevância. A verdade de cada um14 é substituída pela verdade do Rei, a vere dicta (verdade real), conforme Cordero15, “La politica de los reyes exige un automatismo incompatible con las acusaciones privadas (....)”. Nasce no século XIII após o IV Concilio de Latrão a revolução inquisitorial, “un sistema legalmente amorfo (....): Lo que cuenta es el resultado.” Este estudo não passou desapercebido por Foucault16, ao estudar a justiça criminal e seu sistema de formas e estabelecimento das verdades, como um “fenômeno político complexo.” E segue aduzindo, “todo o grande movimento cultural que, depois do século XII, começa a preparar o Renascimento, pode ser definido em grande parte como o desenvolvimento, o florescimento do inquérito como forma geral de saber.” Nos dias atuais, a investigação criminal deve ser vista como filtro a acusações infundadas. Deve exercer a função de um dispositivo17 republicano, um poder para contenção de outro poder, no sistema processual, pois este, na visão de Rui Cunha Martins18: “é o microcosmo do Estado de Direito, (....) não é apenas o instrumento de composição do litígio, mas, sobretudo, um instrumento político de participação, com maior ou menor intensidade, conforme evolua o nível de democratização da sociedade, afigurando-se para tanto imprescindível a coordenação entre direito, processo e democracia, o que ocorre pelo desejável caminho da Constituição.”

Abrimos um parênteses para afirmar, que não obstante o Novo Código de Processo Civil se ater a composição de conflitos, neste aspecto filosófico, convergem ao mesmo ponto mencionado por Rui Cunha Martins, conforme vemos nos ensinamentos de Fredie Didier Jr19 ao explicar o devido processo legal, asseverando que o “Processo é método de exercício de poder normativo.” Torna-se portanto, imperioso contextualizar o acesso à justiça com a investigação criminal em suas funções no âmbito político-constitucional, perpassando a sua historicidade do regime militar ao democrático, seu cotejo político na tripartição dos poderes e das mutações quem vem sofrendo o Direito, sobre tudo nas novas fontes da norma jurídica, como por exemplo 14

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KANT, Immanuel. Para a paz perpétua. Trad. Bárbara Kristensen e Estudo introdutório de Joám Evans Pim, Rianxo: Instituto Galego de Estudos de Segurança Internacional e da Paz, 2006, p. 58. 15 CORDERO, Franco. Procedimiento penal. Tomo I. Santa Fe de Bogotá - Colombia: Temis, 2000, p. 18 e 19. 16 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas, 3. ed. Rio de Janeiro: Nau, 2003, p. 75 17 AGAMBEM, Giorgio. O amigo & O que é um dispositivo?. Trad. Vinícius Nicastro Honesko, Chapecó: Argos, 2014, p. 29 18 MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2013, p. 3 19 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual civil, parte geral e processo de conhecimento 17. ed. . Vol. 1. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 63

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as teses jurídicas impeditivas de demandas repetitivas, as jurisprudências constitucionalizantes, as jurisprudências da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como supremacia de aplicação do princípio pro homine. Partindo-se do conceito de um dos autores de referência sobre a justiça transicional, Jon Elser20 afirma que: “(....)la justicia de transición comprende los procesos de juicios, purgas y las reparaciones que se realizan en un período de transición de régimen político a otro.” Ainda neste jaez as nações unidas através do documento S/2004/61621 intitulado de “O Estado de Direito e a justiça de transição em sociedades em conflito ou pós-conflito, que conceitua a justiça de transição como sendo “o conjunto de processos e mecanismos judiciais e extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destituição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos.”

Pela delimitação ao tema focaremos, no âmbito da justiça de transição, no viés específico da reforma institucional e as necessárias garantias ao exercício das funções do Estado-investigação e sua transformação22 em órgão de justiça criminal. Durante regime militar, que se instaurou em 1964, todos os órgãos de justiça, guardadas as proporções de cada qual, foram manipulados pela política da época. Mudanças de competência jurisdicional foram realizadas para facilitar uma maior incidência da lei de segurança nacional, a polícia foi utilizada como instrumento de repressão aos subversivos “inimigos” e o Ministério Público, na qual não havia o princípio do promotor natural, era utilizado para realização das acusações direcionadas da ditadura. Como podemos havia uma sistematização hermeticamente orientada aos interesses da ditadura por intermédio do Processo Penal. Para compreendermos nosso sistema e como deveria ser a consolidação das reformas institucionais na transição, tomemos como exemplo uma sala de aula. Ela consiste em um conjunto de elementos animados e inanimados como: professor, alunos, cadeiras, quadro, caneta, data show, apagador, porta 20

ELSTER, Jon. Rendición de cuentas: la justicia transicional en perspectiva histórica. Buenos Aires: Katz, 2006, p. 16. 21 Revista Anistia Política e Justiça de Transição / Ministério da Justiça. – Nº 1 Disponível na internet: , acesso em 16/07/2015 22 AOLAIN, F.N., Campbell, C., “The Paradox of Transition in Conflicted Democracies”, Human Rights Quaterly vol. 27, no.1 (Fevereiro 2005), pp. 172-213. Referem-se à necessidade de uma certa mudança institucional: ‘No contexto pós-transição, as violações dos direitos humanos que antes eram negadas podem ser reconhecidas. Podese descrever esse processo como uma antinomia entre o reconhecimento e a negação. O reconhecimento dessas falências prepara o caminho para uma mudança institucional significativa ou “transformativa”.

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etc, no entanto, estes mesmos elementos dispostos de maneira desestruturada e em um ambiente desapropriado transforma-se em um depósito e as pessoas não poderão explorar suas funções, não obstante também estarem ali reunidos. Assim deve estar o sistema processual penal, a Polícia Judiciária, Ministério Público, Magistratura e Defesa funcionariam cada um em suas funções como um professor, cada um em sua sala de aula, exercendo a licenciatura de sua disciplina respectiva (funções típicas), de maneira autônoma, podendo até ser interdisciplinar (funções atípicas), mas nunca, substituir o conteúdo do professor titular da cadeira. Da mesma forma, o investigado, a vítima, os destinatários de suas atividades (funções típicas e atípicas), como os alunos o são e os recursos materiais estruturalmente dispostos e em funcionamento de acordo com valores éticos principiológicos definidos nas fontes da norma. Esta estrutura é coordenada por princípios, inclusive da autonomia institucional, e regras denominadas de ordenamento jurídico, em especial, o ordenamento aplicável ao sistema de justiça criminal. E qual a cartilha deste ordenamento? A fonte normativa, que por sua vez, como dito acima, dependerá do sistema cultural, político e histórico de um Estado. Já tivemos ordenamentos de cuja fonte estava nas mãos de um único professor. Ele cumulava todas as disciplinas da sala de aula. Um déspota. Posteriormente com o surgimento do Estado, no século XV, com os ideais de separação de poderes, primeiramente Aristóteles (Política), depois Lock (Dois Tratados sobre o Governo) e posteriormente de Montesquieu (O Espírito das Leis), se iniciou os primeiros passos rumo a um Estado Democrático. No processo de redemocratização e respectivos fortalecimentos institucionais ocorrem como forma de separar as funções de governo e de justiça criminal. Desta forma, se atribuiu garantias e prerrogativas à Magistratura, ao Ministério Público, a OAB e a Defensoria Pública, deixando enfraquecida a fase pré-processual, que não obstante ter acento Constitucional explícito de seus paradigmas, faltou atribuir ao seu presidente, como ocorre na instrução processual, pois a relação entre as salas de aula e seus professores, e entre estes e seus alunos são relações sociais de poder, e para tanto, podem sofrer ingerência de outros poderes (funções). Insta salientar, que a referida autonomia institucional é uma garantia fundamental para o investigado, conforme artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, pois o Processo Penal, consequentemente também o inquérito policial, é um dispositivo que se rege pelo elemento da verdade, constitucionalidade e democraticidade, portanto deve incindir todas as garantias fundamentais inerentes à teoria geral do processo. Assevera Rui Cunha Martins em seu artigo “O Mapeamento Processual da Verdade”23, que: 23 224 MARTIN (2012), Decisão Judicial. ob. cit. p. 80

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“o sistema processual de inspiração democrático-constitucional só pode conceber um e um só ‹‹princípio unificador››: a democraticidade; tal como só pode conceder um e um só modelo sistémico: o modelo democrático. Dizer ‹‹democrático›› é dizer contrário de ‹‹inquisitivo››, é dizer contrário de ‹‹misto›› e é dizer mais do que ‹‹acusatório››.

Em outras palavras, à teoria geral do processo, há de se incluir a fase préprocessual, ungido à trilogia jurisdição, ação e processo está a democraticidade, que vai muito mais além do que atividade estritamente jurisdicional. A democraticidade nos contornos de Rui Cunha é capaz, inclusive, de emancipar o procedimento da investigação criminal em verdadeira categoria autônoma, incidindo nela, características de judicialidade, face a necessidade premente de se estabelecer nesta fase (pré-processual) contornos de aplicação da lei ao caso concreto, como o direito à liberdade, seja por atipicidade ou como contracautela, dimensão de uma verdadeira garantia a uma ordem jurídica justa, posto que necessariamente democrática. Para entendermos o alcance aqui albergado, basta entendermos o conceito mais moderno de jurisdição, na visão de Didier24: “A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o Direito de modo imperativo (b) e criativo (reconstrutivo) (c), reconhecendo/ efetivando/protegendo situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão inuscetível de controle externo (f ) e com aptidão para tornar-se indiscutível (g).

E porque na prática atual esta realidade é tão distante e as decisões de política criminal não é garantido ao investigado acesso a esta ordem jurídica justa no Processo Penal? Parafraseando Geraldo Prado25, “o fato de vivermos em uma democracia política exige é claro o respeito a lei, mas também requisita a denúncia da presença e atualidade de elementos autoritários, mesmo em regimes democráticos, a contaminar de modo negativo a legitimidade invocada pelo Direito Penal e, consequentemente, o próprio Sistema Penal.” Com a evolução do pós positivismo, ou seja, do (Neo)Constitucionalismo e do Estado pós moderno, e para sofisticar o ideal democrático foi necessário transmudar a ideia original de tripartição de poderes, da mesma forma que ocorreu de Aristóteles para Lock e deste para Montesquieu, pois se tornou insuficiente para dar conta das necessidades de controle democrático do exercício do poder ou o método de exercício do poder normativo (Didier Jr, 2015, p. 63). 24 25

DIDIER JR, Fredie. Ob. cit., p. 153 PRADO, Geraldo. A transição democrática no Brasil e o Sistema de Justiça Criminal Disponível na internet: , acesso em 17/07/2015.

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Desta forma, o Constituinte de 1988 superou a ideia de três poderes para se chegar a uma organização de órgãos autônomos reunidos em mais funções, partindo-se da ideia de que o Estado é uno e seu poder também é único. O que se faz necessário para o desempenho democrático é a distribuição de funções por meio de seus órgãos. Neste diapasão, é uníssono na doutrina que o judiciário exerce função tipicamente jurisdicional, mas possui função atípica de administração e legislativa, bem como a existência de autonomia dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, exercendo funções tipicamente de custus legis somente comprova este avanço republicano. Por mais esforço que os teóricos tenham feito na tentativa de adequar desses órgãos em um dos três poderes restou absolutamente artificial e, mais, inadequado, o mesmo ocorre com a investigação criminal em sua função de historiar a verdade ao mesmo tempo que, como procedimento administrativo, também de garantir direitos e garantias fundamentais por decisões próprias em seus contornos de responsabilidade criminal, pelos elementos verdade, democraticidade e constitucionalidade, que compões o dispositivo inquérito policial como categoria autônoma. Afinal, que lógica seria essa de se permitir violações sem sanções na fase investigatória? Que lógica seria essa de se permitir fundamentar a prisão em flagrante em uma prova ilícita? Negar o acesso a provas produzidas na investigação criminal, diante da jurisprudência constitucionalizante contido no verbete da súmula vinculante 14? A lógica da inversão de valores. A lógica da prática autoritária porque é mais cômodo para o Estado, em sentido amplo (Executivo, Legislativo e Judiciário), permitir que o inquérito policial, instrumento de consagração da seletividade punitiva e da criminalização secundária26, seja banalizado porque ambiente de sala de aula dos menos favorecidos, estes, “criminosos”, pois para aqueles “elitizados”, estes, “cidadãos” há o foro por prerrogativa, quando não, investigados pelos próprios pares (Ministério Público e Magistratura), se parabolizou uma condição específica (inventada) de procedibilidade de “autorização” para instaurar inquérito nas ações penais originárias (Senador, Deputados Federais, Estaduais), além das imunidades Diplomáticas. Pegando emprestado as lições já citadas de Rui Cunha Martins de que o Processo Penal é o microcosmo do poder político de um Estado, de maneira que para entendermos em que ambiente escolar estamos, utilizando o exemplo da sala de aula acima, e sob que bases ele foi construído, que poderemos entender os motivos de tanta desigualdade e porque ela vem se perpetuando, como se o ordenamento jurídico Constitucional democrático não valesse para os “criminosos” e “maus”, vistos como inimigos no inquérito policial. O que vemos é a tentativa dos demais poderes tolherem a Polícia Judiciária, quando esta desenvolve interpretação normativa no âmbito do exercício de 26

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ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.52

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suas funções, realizando o papel de um dispositivo democrático, como por exemplo a incidência do princípio da insignificância, dispensa de fiança para detido pobre etc e ao revés do judiciário e Ministério Público respeitarem o exercício da função de Estado enveredam, nas palavras de Tzvetan Todorov, um messianismo político27 de perseguições idiocráticas, revelando-se alguns membros (quero acreditar que a minoria), verdadeiros adversários do sistema republicano de separação de funções, realizando controle ideológico das decisões dos Delegados de Polícia no exercício legítimo de Estado-investigação, revelando, na visão de Todorov uma emancipação da relação de um poder sobre outro, e diante de seus foros por prerrogativa, “escapam assim a qualquer tentativa de limitação e erigindo-se em único e absoluto, eles transformam-se em ameaças: populismo, ultraliberalismo, messianismo, enfim, esses inimigos íntimos da democracia.” Não há dúvidas que durante a fase da investigação criminal o Delegado de Polícia exerce verdadeiro poder decisório sobre os contornos da responsabilidade criminal, e para isso, após o processo de redemocratização, se tornou mais do que ultrapassada a ideia estanque de divisão de poderes, não se confundindo com funções do Estado. E está explicitamente disposta no artigo 2º da lei 12.830/13, que no microcosmo político democrático implica dizer possível a total possibilidade de exercer verdadeiro controle difuso de constitucionalidade e no plano internacional, para efetivação dos tratados de direitos humanos, controle de convencionalidade. Como protagonista da investigação criminal exercendo função essencial à justiça28, e portanto, um órgão de justiça criminal, o artigo 2º, caput e seus parágrafos 4º e 5º da lei 12.830/13, inauguram referências principiológicas garantidoras de direitos fundamentais do investigado, como a ideia do Delegado Natural, de conotação materialmente constitucional, consolidando a garantia de autonomia de decisão no feixe de atribuições necessárias ao exercício da função do Estado-investigação, função esta que serve, inclusive de contenção de outros poderes, como já ficou decidido em jurisprudência que o juiz não poderia determinar o indiciamento ao Delegado por invasão de funções, conforme a 2ª Turma do STF29. Do exposto, é forçoso concluir que a filosofia doDireito e a filosofia política fundamentam epistemologicamente a investigação criminal como dispositivo da democraticidade, categoria autônoma de efetivação de direitos fundamentais, norteadora do acesso à justiça na devida investigação criminal, corolário lógico do devido processo legal em seu aspecto substancial. 27

TZVETAN, Todorov. Os inimigos intimos da democracia, trad. Joana Angelica d’Avila Melo, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 18 28 NICOLITT, Manual de Processo Penal, 5. ed., São Paulo: RT, p. 172 29 HC 115.015/SP

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Os Precedentes Jurisprudenciais da lei 13.105/15 aplicável ao Processo Penal O novo Código de Processo Civil vem com diversas ferramentas para garantir um acesso a uma ordem jurídica justa, principalmente quando idealiza entre os diversos mecanismos processuais inovadores, a consolidação dos precedentes jurisprudenciais e as teses jurídicas neles contidos como ferramentas de controle de consolidação de entendimentos jurídicos, bem como, a manutenção de uma ordem jurídica segura diante do controle de controvérsias, como o incidente de resolução de demandas repetitivas, disposto no 976 ao 987 do NCPC. Após nossa exposição sobre a evolução política e filosófica do Direito, em especial a identificação de que a democraticidade seja um elemento político que deva açambarcar o sentido principiológico de uma teoria geral do processo e garantir o acesso à justiça, também na porta de entrada do sistema de justiça criminal, ou seja, na investigação criminal, os mecanismos de incidentes de uniformização passam a ser fonte normativa. As fontes normativas atualmente possuem diversos níveis, que vão de atos abaixo das leis, como a resolução 1805/06 que trata da ortotanásia e impede que esta prática seja considerada crime de homicídio, além das leis, dos tratados internacionais de direitos humanos, a Constituição e os tratados de direitos humanos aprovados como emenda constitucional, a jurisprudência constitucionalizante, como o aborto de anencéfalo, permitido através de jurisprudência, na forma da ADPF 54, a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como por exemplo a estipulação da súmula vinculante 25 que aplica o artigo 7, item 7 da Convenção Americana de Direitos Humanos, invalidando o art. 5º, LXVII da CR/88 Não devemos olvidar, que no sistema brasileiro, os tratados, pactos e convenções sobre direitos humanos, que já se encontravam incorporados ao nosso sistema jurídico-constitucional antes da EC 45/04, cujo tema ao ser analisado pelo STF no RE 466.343/2008, em votação final de seus Ministros, por 5 X 4, em favor da interpretação daquelas como normas formalmente supralegais e materialmente constitucionais.30 Os votos vencidos, que totalizaram em quatro eram a favor de que aquelas normas internacionais fossem recepcionadas, como a tendência em todo o mundo, de normas formal e materialmente constitucionais, ou seja, como emendas constitucionais sobre Direitos Humanos. Há na investigação criminal elementos de prova que por sua natureza, não podem ser refeitas e seu material não pode ser conservado para um verdadeiro contraditório diferido no tempo, emergindo verdadeira violação do devido processo legal em seu aspecto substancial, pois se torna falaciosa a alegação de existência de contraditório somente sobre o resultado da perícia, qual seja o laudo, mas não o contraditório do objeto material do crime, quando se trata de crime cujos vestígios desaparecem pela natural, desenfreada e incontrolável ação do tempo. 30

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FILHO, Napoleão Casado, coord. GOMES, Luiz Flávio e BIANCHINI, Alice, Direitos Humanos Fundamentais, Saraiva: 2012, p. 96 e 97.

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A investigação criminal deve ter como escopo a garantia de direitos humanos e garantias fundamentais, na qual se efetiva pela figura imparcial do Delegado, sendo este o principal garantidor da legalidade31 e dos direitos humanos num primeiro momento, sendo esta a melhor visão que o projeto pode apresentar diante dos escopos do devido processo legal, dignidade da pessoa humana e a isonomia com a consequente paridade de armas, entre acusação e defesa, garantida pelo Delegado de Polícia, como órgão imparcial na investigação criminal, pois totalmente desprovido de pretensão acusatória ou defensiva. É diante desse quadro pragmático, que não se sustenta mais um inquérito policial estritamente inquisitorial. A mini reforma do Código de Processo Penal veio e começou a mudança de paradigmas, mas ainda não foram suficientes. É necessário caminhar mais e o Novo Código de Processo Civil é a luz. O Delegado de Polícia é notadamente aquele que primeiro avalia o caso concreto e, por isso, é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça como já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal em 201232. O NCPC lança luz à hermenêutica da teoria geral do processo porque deixa imanente a adoção de um sistema nitidamente anglo-saxão, originário da common law, que prestigia os precedentes jurisprudenciais lhe conferindo densidade normativa e verniz diretivo na consolidação da segurança jurídica diante da diminuição dos conflitos de teses jurídicas. Neste sentido, leciona Didier33 sobre precedente judicial “é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.” Neste condão, os Tribunais ao fixarem as teses nas suas decisões para os casos repetitivos, prossegue Didier ao se referir à holding norte-americana é preciso investigar a ratio decidenci dos julgados anteriores, encontrável em sua fundamentação34. Ora, já não há a construção de precedentes pelos Tribunais no Brasil a apontar na direção da segurança jurídica atribuindo à casos idênticos as mesmas soluções? Na tradição da civil law estes precedentes não possuem eficácia vinculativa, sendo possível decisões monocráticas em razão da autonomia funcional dos julgadores, no entanto, quando adotamos como regra, no ordenamento atual, da eficácia vinculante dos precedentes, como enumerado no art. 927 do NCPC, como por exemplo à vinculação da tese resultado do incidente de resolução de demandas repetitivas, conforme art. 985, I e II do NCPC, em razão do risco à 31

Min. Celso de Melo, STF, em sede do HC 84548/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 21/6/2012. 32 Min. Celso de Melo, STF, em sede do HC 84548/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 21/6/2012. 33 DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paulo Sarno e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 10. ed. . Vol. 2. Salvador: Jus Podivm, 2015, p. 441 34 Ibidem, p. 446

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segurança jurídica, conforme art. 976, II do NCPC, estamos diante da adoção de tradição nitidamente do common law. Diante deste viés consagradamente de conectividade democrática, conforme já dispusemos acima, verifica Didier que “trata-se de regra que deve ser interpretada extensivamente para concluir-se que é omissa a decisão que se furte em considerar qualquer dos precedentes obrigatórios nos termos do art. 927 do CPC.”35 Em outras palavras, vimos que na omissão do Processo Penal de um procedimento de uniformização de jurisprudência, é forçoso concluir, que em razão do art. 3º do CPP a mesma segurança jurídica que se busca nas relações civis, por mais razão ainda devem ser buscadas nas relações que tutelam o Direito de liberdade, intimamente relacionados ao status dignitatis do investigado ou réu. Neste espeque, não nos restam dúvidas de que no Processo Penal os precedentes jurisprudenciais de eficácia vinculativa servirão de bússola norteadora de acesso a ordem jurídica justa, principalmente se entendermos que pela mesma razão principiológica da segurança jurídica, consagrada na Constituição, fundamento do dever dos tribunais de uniformizarem jurisprudência36, bem como “devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, conforme art. 926, NCPC. Não se pode esquecer que deverá o Brasil, ao também adotar, como razão principiológica, que nas relações internacionais se regerá pelo princípio da prevalência dos direitos humanos, conforme art. 4º, II da CR/88, os precedentes internos deverão dialogar com os precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos em qualquer matéria jurídica. Para nós, trataremos somente dos precedentes em matéria penal e processual penal. Na doutrina Internacionalista esta técnica de diálogo entre cortes, ou seja, entre a Suprema Corte e demais Tribunais com a Corte Interamericana de Direitos Humanos denomina-se de interpretação inter-cortes ou de viva interação37, em razão dos próprios precedentes da Corte IDH no sentido de que ela é a última autoridade em matéria de interpretação da Convenção Americana de Direitos Humanos, não admitindo, a doutrina que os países signatários realizem formação de uma ratio decidendi desassociada dos fatos idênticos já decididos pela Corte IDH, se evitando a denominada nacionalização do Pacto de San Jose de Costa Rica. Neste sentido, MAZZUOLI entende que o direito interno de um Estadoparte não pode criar uma interpretação particular em detrimento daquela já realizada pela Corte IDH, tendo em vista que o Brasil declarou expressamente que se submete à Jurisdição da Corte Internacional pelo Decreto Legislativo 89/98, sendo obrigatória não somente a observância de decisões contrárias ao Estado-parte como também a forma com que os tratados são interpretados pela 35

Ibidem, p. 456 Ibidem, p. 470 37 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional Da Convencionalidade Das Leis. São Paulo, 3.ed. revista, atualizada e ampliada, Revista dos Tribunais, 2013, p. 104, na qual o autor também faz menção a uma outra expressão sinônima da “inter-cortes”, denominada de “viva interação”, cunhada pelo juiz Diego Garcia-Sayán. 36

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Corte em casos de outro Estado-parte. Não há, portanto, discricionariedade e livre interpretação do pacto, que o autor denomina de “nacionalização” dos tratados internacionais de direitos humanos. Percebe-se a inquinação explícita da uniformização de jurisprudência como elemento de conectividade democrática, fazendo com que as relações internacionais tendam a uma universalização das questões decididas internamente em um Estado-parte com outros casos idênticos já decididos para outros países na Corte IDH. Citemos, na oportunidade do julgamento do Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. Sentencia 24 de noviembro de 2010, o trecho da sentença que deixa bem clara de que a Corte é o órgão legitimado realizar a hermenêutica mais adequada à Convenção Americana: “19. (....)En esta tarea, deben tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana.”38 -----------------------------------------------------------------------------------------“22. (....)Por tanto, resulta contrario a las obligaciones convencionales de Brasil que se interprete y aplique a nivel interno la Ley de Amnistía desconociendo el carácter vinculante de la decisión ya emitida por este Tribunal.”

Realizadas as premissas de que o Novo Código de Processo Civil irá efetivar uma grande inovação no ordenamento pátrio em matéria de uniformização de precedentes judiciais, inclusive no Processo Penal, bem como, acabamos de inferir não ser possível a realização de construção de precedentes internos que contrariem os emanados da Corte IDH, sob pena de violação frontal à Convenção Americana, consequentemente direitos humanos universais, podemos concluir que uma das maiores fontes da segurança jurídica e garantias para o investigado e de uma devida investigação criminal se encontram nos precedentes da Corte. Será este o fiel da balança do acesso à ordem jurídica justa à iniciar pela investigação criminal. A elaboração de verdadeira teoria geral da investigação criminal com princípios e regras orientadas por decisões, jurisprudência, opiniões consultivas e demais manifestações do contencioso da Corte que formam o que a doutrina denomina de bloco de convencionalidade39 ou também denominado de eficácia construtiva ou efeito positivo de suas decisões em todos os países signatários, tenham sido eles parte no processo ou não. 38

Supervisión de Cumplimiento de Sentencia. Resolución de la Corte Interamericana de Derechos Humanos de 17 de octubre de 2014. 39 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Ob. cit., p. 99/100. “Tais decisões das cortes somadas demonstram claramente que o controle nacional da convencionalidade das leis há de ser tido como o principal e mais importante, sendo que apenas nmo caso da falta de sua realização interns (ou de seu exercício insuficiente) é que deverá a Justiça Internacional atuar, trazendo para si a competência de controle em último grau (decisão da qual tem o Estado o dever de cumprir. (....) Os direitos previstos em tais tratados, assim, formam aquilo que se pode chamar de “bloco de convencionalidade”, à semelhança do conhecido “bloco de constitucionalidade”; ou seja, formam um corpus iuris de direitos humanos de observância obrigatória aos Estados-partes.”

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O Novo Código de Processo Civil e da Uniformização de Precedentes como Garantia ao acesso à Ordem Jurídica Penal Justa

Não é por outro motivo que advogamos o entendimento de que a defesa na investigação criminal, delegado natural, audiência de custódia, contraditório, devido Processo Penal, motivação das decisões se aplicam em razão de um norteador maior que se chama princípio pro homine ou pro persona. No ordenamento jurídico brasileiro, o Delegado de Garantias é quem deve efetivar com total legitimidade e respaldo internacional o princípio pro homine, na esteira da proteção à interpretação da Convenção Americana, na qual trazemos a baila outro precedente na qual fica clara a possibilidade do Delegado de Polícia exercer (e já exerce) função materialmente judicial quando exerce sua função de aplicar ao caso concreto interpretação das normas penais e processuais penais, in verbis: “Dichas garantías (do conduzido ser ouvido por um juiz ou outra autoridade que exerca funcões judiciais) deben ser observadas en cualquier órgano del Estado que ejerza funciones de carácter materialmente jurisdiccional, es decir, cualquier autoridad pública, sea administrativa, legislativa o judicial, que decida sobre los derechos o intereses de las personas a través de sus resoluciones.”40 (Grifo nosso)

Por fim, para a realização do direito de liberdade, e efetivação da incidência do devido processo legal em seu aspecto substancial na investigação criminal, as limitações para concessão de liberdade provisória pelo Código de Processo Penal ao Delegado de Polícia violam frontalmente o poder materialmente judicial que ele possui, não podendo o art. 322 do CPP limitar a garantia de uma pessoa de ser solta pelo delegado, cuja limitação é para crimes cuja pena máxima seja igual o inferior a quatro anos. Não há motivo racional que justifique a manutenção de alguém na custódia não estando presentes as hipóteses de cabimento do art. 313 combinados com os pressupostos do art. 312, ambos do CPP, razão pela qual advogamos o entendimento de que a violação frontal aos precedentes de Corte IDH autorizam o Delegado de Polícia a conceder liberdade provisória da mesma maneira que o juiz o faz. Trata-se de interpretação do precedente no caso Caso Palamara Iribarne Vs. Chile41, na qual destacamos os seguintes trechos: “191, g) si una detención es llevada a cabo por una persona que no es juez, esta debe cumplir con tres requisitos: estar autorizado por ley para ejercer funciones jurisdiccionales, cumplir con la garantía de independencia e imparcialidad y tener la facultad de revisar los motivos de la detención de una persona y, de ser el caso, decretar su libertad. El fiscal naval que ordenó la detención del señor Palamara estaba autorizado por ley para cumplir funciones jurisdiccionales y tenía la facultad de decretar la libertad de la persona. Sin embargo, no era independiente e imparcial.” (destaque nosso) 40

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Caso Nadege Dorzema e outros Vs. República Dominicana, no parágrafo 195, ao analisar em conjunto o art. 7.5 e 8.1 do Pacto de San Jose da Costa Rica e citando como precedente a opinião consultiva, OC-9/87 del 6 de octubre de 1987. Serie A Nº 9, párr. 27. 41 Palamara Iribarne Vs. Chile. Sentença de 22.11.2005

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“221. El simple conocimiento por parte de un juez de que una persona está detenida no satisface esa garantía, ya que el detenido debe comparecer personalmente y rendir su declaración ante el juez o autoridad competente.”42

Como se percebe com clareza solar e lógica cartesiana, o que emerge deste parágrafo da sentença da Corte IDH é que a outra “autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, quando não se tratar de um juiz, deve preencher 3 requisitos: 1º) AUTORIZADA POR LEI; 2º) POSSA DECRETAR A LIBERDADE DO DETIDO; e 3º) INDEPENDENTE E IMPARCIAL. O ordenamento jurídico vigente autoriza, por lei, que o Delegado conceda liberdade provisória em diversas ocasiões, como no art. 322 do CPP, artigos 173 e 174 da lei 8.069/90 e artigo 69, parágrafo único da lei 9.099/95, preenchendo assim os requisitos 1º e 2º. O 3º requisito é preenchido pela lei 12.830/13, que institui a figura do delegado natural. Devem os precedentes citados servirem como uniformização de jurisprudência no ordenamento brasileiro para expandir as liberdades públicas ainda em sede policial, como garantia a uma devida investigação criminal, corolário lógico da garantia ao acesso a uma ordem jurídica justa.

42

No mesmo sentido: No mesmo sentido, Caso Acosta Calderón, par. 77; e Caso Tibi, par. 118.

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Mediação de Conflitos – Um Novo Paradigma Nivea Maria Dutra Pacheco1 Resumo Muito tem se afirmado que a visão de acesso à justiça tem se ampliado, não mais se restringindo ao simples acesso ao poder judiciário. Não se pode olvidar que a falta de Acesso à Justiça é fator de diminuição da cidadania, gerando inquietação, e por esse motivo, se tem buscado alargar a incidência de aplicação efetiva do Direito na esfera judicial e extrajudicial. A conscientização, a implementação, a fomentação e a concretização da mediação propiciam atendimento ao comando Constitucional do acesso à justiça, viabilizando às partes uma tentativa de composição consensual da celeuma instaurada, com escopo de obter a paz e a inclusão social, pela valorização do ser humano e pelo respeito aos seus direitos fundamentais, desafogando reflexamente o Poder Judiciário, tão assoberbado nos dias atuais. As ADR’s Alternative Dispute Resolution Systems - buscam resgatar a responsabilidade de cada membro da comunidade no controle de seus conflitos, abstraindo-se de recorrer a uma sanção imposta pelo Estado-Juiz. Os Meios Alternativos de Resolução de Conflitos visam alcançar a efetividade do Direito, concedendo ao cidadão uma forma extrajudicial de compor seus conflitos. E, muito embora, a mediação não possa ser considerada uma poção mágica que solucionará todos os problemas da sociedade, é, sem dúvida, um novo caminho que estamos trilhando, um novo paradigma, em busca de uma efetiva ordem jurídica justa. Palavras-chave: Acesso à justiça; mediação; novo paradigma. Abstract Much has been said that the vision of access to justice has expanded, not restricted to the simple access to the judiciary. One must not forget that the lack of access to justice is a factor of decreased citizenship, generating unease, and therefore, it has sought to broaden the incidence of effective application of the law in court and out of court. The awareness, implementation, and fostering the achievement of mediation provide service to the constitutional command of access to justice, enabling the parties an attempt to consensual composition of the established stir, with scope to achieve peace and social inclusion for the valuation of the human and respect for their fundamental rights, reflexively relieving the judiciary, so overwhelmed today. The ADR - Alternative Dispute Resolution Systems - seek to rescue the responsibility of each member of the community in control of their conflicts, abstracting to resort to a penalty imposed by the State Judge. The Alternative Means of Dispute Resolution aimed at achieving the effectiveness of law, giving citizens an extrajudicial way to compose their conflicts. And even though, mediation can not be considered a magic potion that will solve all the problems of society, is undoubtedly is a new path we are treading a new paradigm in search of an effective fair legal system. Keywords: Access to justice; mediation; new paradigm. 1

Mestre em Direito pela UNESA; Professora de Processo Civil da UNESA (Pós-Graduação lato sensu e Graduação); Professora de Prática Jurídica da UNESA (Graduação); Advogada; Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UNESA campus Nova Friburgo; Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da 9º Subseção da OAB/NF.

Mediação de Conflitos – Um Novo Paradigma

Entendendo o Conflito

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Antes de adentramos no tema mediação, torna-se necessário falarmos no que vem a ser conflito, este não possui um conceito único, pois se perguntarmos a um advogado, este dirá: conflito é um litigio entre duas partes, se perguntarmos para um psicólogo, talvez diga: é o ponto crucial que vai servir para posterior amadurecimento se ele for bem administrado, e aí é preciso que saibamos que tipo de conflito podemos abordar diante da mediação. A mediação vai lidar com os conflitos interpessoais, ou seja, entre pessoas, por isso é necessário que o mediador não extrapole o seu papel e queira trabalhar com os conflitos interpsíquicos, que é conflito que o ser humano tem com si próprio, na sua própria cabeça, com suas próprias convicções, pois, o mediador não muitas vezes, não tem competência para lidar com esse tipo de conflito, sua função, ali, é a de auxiliar as partes à solução do conflito, e não, fazer um tratamento psicológico, pois, como já tido, em grande parte dos casos sua formação não é para isso. Outra coisa que precisamos entender sobre os conflitos é que eles são naturais, sabendo que uma das consequências da vida em sociedade é a existência de conflitos, seja nas relações familiares, entre vizinhos, no trabalho, cotidianamente, enfrentamos e temos que administrar algum tipo de conflito, ou seja, ele faz parte da natureza humana. Ademais, o conflito é necessário, pois traz crescimento (amadurecimento) para o ser humano, a partir do momento que este passa a ter consciência de sua responsabilidade diante do problema, devendo ser enxergado como uma oportunidade de crescimento, ou seja, enxergarmos as situações adversas como uma forma de amadurecimento, esse é o grande desafio do conflito. Ao longo da história esses conflitos têm sido resolvidos através do Poder Judiciário, sendo dado a um terceiro, imparcial, sem nenhum interesse em qualquer das partes, desconhecedor dos conflitos internos que permeiam aquele conflito levado ao judiciário, o poder de decidir sobre os alimentos, o poder de dizer com quem o filho ficará e quais os dias o outro genitor poderá estar (visitar) com o filho, decidir sobre o quanto vale a angústia, a vergonha sofrida, com o poder de dizer se um espaço é ou não uma servidão, poder de “Dizer o Direito” no caso concreto. É claro que não se pretende aqui, se afirmar que os conflitos podem prescindir da atuação do Poder Judiciário e que deve se retirar do Estado-Juiz o poder de resolver os conflitos, mesmo porque, não há que se olvidar que existem situações em que o diálogo se torna inviável, considerando todo um histórico do caso, existindo, ainda, conflitos que só podem ser resolvidos por meio do Poder Judiciário diante das regras do ordenamento jurídico brasileiro. Assim, considerando que os conflitos são naturais de uma sociedade, se começou a pensar na possibilidade real de solução destes pelos próprios envolvidos, tendo surgido, então, o que denominou-se de Meios Alternativos de Resolução de Conflito, com técnicas de negociação, técnicas capazes de conduzir as partes na solução de seu próprio conflito.

Nivea Maria Dutra Pacheco

No entanto, é necessário um cuidado com a nomenclatura “alternativo”, pois dá a falsa impressão ou um tom pejorativo - de “contrário”, enquanto, na verdade alternativo é a utilização pela sociedade de uma outra alternativa possível para a resolução do conflito fora da chamada Jurisdição, e muito se fala que esses meios alternativos surgiram para desafogar o Poder Judiciário, no entanto, podemos entender que essa não foi sua finalidade, pois quando alguém procura um meio alternativo para resolver o seu conflito, não está pensando em poupar o Poder Judiciário que se encontra abarrotado de processos, mas sim porque vê, por exemplo, na mediação uma oportunidade de solução de conflito mais rápida, mais barata, mais humana, que contempla suas necessidades. Portanto, não nos parece que desafogar o Judiciário é o objetivo da mediação (ou qualquer outro meio alternativo de resolução de conflito), podendo sim, ser considerado uma consequência e, portanto, é necessário que esses meios alternativos e o Poder Judiciário andem lado a lado, procurando chegar ao tão almejado acesso à Justiça.

O Desenvolvimento dos Meios Pacificadores de Conflito As transformações políticas e sociais dos anos 60 e a reforma do judiciário americano foram parcialmente responsáveis pelo movimento de popularização dos sistemas de manejo de conflito ou ADR’s – Alternative Dispute Resolutions. No campo das relações privadas, em especial, estão os indivíduos a todo tempo tendo que negociar, conciliar ou fazer valer seus direitos. No entanto, tem se constatado que os meios tradicionais de solução de conflito, envolvendo, principalmente, o Poder Judiciário tem se tornado dispendioso e demorado. Assim, a conduta baseada na litigiosidade tem o efeito de solapar irreversivelmente o relacionamento entre os envolvidos no litígio. Por outro lado, a conduta cooperativa e não adversarial busca manter o relacionamento entre as partes. E nesse caminho, estão as ADR’s que objetivam a manutenção das relações sociais e o exercício da responsabilidade pelos indivíduos. Não se trata da privatização da justiça e nem podem ser consideradas como um remédio miraculoso que irá desafogar o judiciário como já bem mencionado anteriormente. Trata-se da humanização da justiça, uma justiça mais coerente com as transformações contemporâneas. Considerando a crise da justiça e a eficiência própria das soluções autocompositivas, embora seus mecanismos mais eficientes sejam eminentemente uma atividade privada, é imprescindível que o Estado adote medidas de incentivo à sua realização, provendo o que se chama de uma política pública de incentivo à utilização em larga escala dos mecanismos para obtenção da autocomposição2. 2

CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação, Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 26

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Mediação de Conflitos – Um Novo Paradigma

Assim, ante a manifestação de um conflito de interesses, pode se chegar à sua solução por vários mecanismos. Existem, portanto, mecanismos autocompositivos, que são de iniciativa das partes e acabam sendo realizados por elas próprias, sendo que muitas vezes há a contribuição de um terceiro, e os mecanismos heterocompositivos, aqueles promovidos por terceiros estranhos à relação litigiosa. Entre os primeiros incluímos a mediação, a conciliação e a negociação, e entre os segundos, a arbitragem e a solução jurisdicional. Quanto a Arbitragem, Constituições de 1946, 1967, 1969 silenciaramse sobre a mesma. No artigo 114, §§ 1º e 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, foi tratado expressamente da arbitragem, seguindo as mais modernas filosofias sobre o assunto. Já a mediação apresenta-se como um meio de solução consensual de conflitos, desenvolvida, na forma que conhecemos hoje, na segunda metade do século XX, nos Estados Unidos. A mediação envolve a tentativa das partes em litígio de resolverem suas pendências com o auxílio de um terceiro, necessariamente neutro e imparcial, que desenvolve uma atividade consultiva, procurando facilitar o diálogo entre as partes que, permanecem com o poder de por fim à querela mediante propostas e soluções próprias. A natureza da mediação é autocompositiva e possui seus próprios procedimentos e técnicas, tendo como vantagem a maior participação e controle dos envolvidos no processo e em seu resultado, com uma diminuição do desgaste emocional e uma maior celeridade na resolução da questão. O benefício de uma mediação de sucesso está relacionado, diretamente, ao atendimento das necessidades e desejos das partes na lide. Para tanto, faz-se indispensável a figura do mediador como elemento neutro e de visão clara das questões entre as partes. Das várias formas pelas quais se pode definir a mediação, cita-se: “É a técnica mediante a qual as partes envolvidas no conflito buscam chegar a um acordo contando com a ajuda de um mediador, terceiro imparcial, que não tem poder de decisão3.” Muito tem se afirmado que a visão de acesso à justiça tem se ampliado, não podendo mais se restringir ao acesso ao poder judiciário. Segundo Mauro Cappelletti4 ocorreram três ondas que trouxeram uma maior abertura ao acesso à justiça, em linhas gerais a primeira teria sido a justiça gratuita; a segunda a defesa coletiva dos direitos e a terceira as modificações no sistema processual civil e no direito material, seguindo essa perspectiva, é possível se chegar ao que se denomina quarta onda renovatória, ou seja, a efetividade dos direitos processuais. 3

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COLAIÁCOVO, Juan Luis, COLAIÁCOVO, Cynthia Alexandra. Negociação, mediação e arbitragem: teoria e prática: tradução do original por Adilson Rodrigues Pires. Forense. Rio de Janeiro. 1999. p. 66 4 CAPPELLETTI, Mauro e GRATH , Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre. Fabris. 2002. p. 37

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Para Maria de Nazareth Serpa5: mediação “é um processo informal, voluntário, onde um terceiro interventor, neutro, assiste aos disputantes na resolução de suas questões.” Schiffrin6, afirma que algumas regras, podem ser consideradas básicas para que se possa ter um processo de mediação: “a mediação é um processo voluntário e não vinculante; 2) as partes podem por fim a mediação, a qualquer momento, devendo, no entanto, notificar a outra parte e o mediador de sua decisão; 3) por não representar qualquer das partes, o mediador é imparcial, sendo seu dever acompanhar e controlar os passos do processo de mediação; 4) a forma de pagamento e os honorários do mediador devem ser previamente definidos; 5) há possibilidade de que o mediador se reúna separadamente com as parte de forma confidencial.”

No entanto, um dos obstáculos à mediação é o fato de que a sociedade brasileira, de forma geral, ainda vislumbrar na figura do juiz, o meio inquestionável de poder para solução dos conflitos, assim, outras figuras como os conciliadores, juízes leigos, mediadores, ainda são vistos com certa desconfiança. Verifica-se que a filosofia gerenciada fundamentalmente pelo Conselho Federal de Educação quanto às escolas, baseou-se na extinção dos currículos escolares de disciplinas das ciências humanas e sociais, como sociologia e filosofia, dando primazia a uma formação de natureza pragmática e utilitarista, buscando, por um longo tempo, a formação de material humano técnico e gerencial. Segundo Rogério Gesta Leal7, com tais características, o pensamento jurídico preponderante no âmbito, inclusive, da formação dos operadores do Direito até os dias de hoje – ao menos na sua grande parte, concebe o Direito positivo como uma dimensão autônoma do político e um fundamento do Estado. O culto à lei e à separação dos poderes se coloca como véu ideológico que dissimula e inverte a natureza altamente política do Direito.8 No entanto, 5

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SERPA, Maria de Nazareth. Teoria e Prática da Mediação de Conflitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 1999. p. 90. SCHIFFRIN apud COLAIÁCOVO, Juan Luis; COLAIÁCOVO, Cynthia Alexandra. Negociação, mediação e arbitragem: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 69. LEAL, Rogério Gesta. O Poder Judiciário e os Direitos Humanos no Brasil. Artigo Publicado no Mundo Jurídico. Em 01.05.2003. Disponível em: http://www. mundojurídico.adv.br. Acesso em: 28 de junho de 2007. Ainda neste sentido Rogério Gesta Leal: “Assim tem se comportado a jurisprudência dominante dos tribunais: A nós juízes cabe interpretar e aplicar a lei  com aquela sensibilidade que se espera do judiciário, mas não ao ponto de nós substituirmos, seja ao Poder Legislativo, que estes sim devem promover sobre a justiça social.... Isso não é tarefa do Judiciário...” [...] quando da apreciação de ação de usucapião, apreciando a melhor distribuição da propriedade fundiária. Um dos votos vencedores ainda registra que existem valores confiados a nós juízes e que devem ser preservados, em especial, aquele da certeza das relações jurídicas. Ao Judiciário, ao menos por enquanto, incumbe dar soluções aos conflitos normalmente individuais e deduzidos por quem esteja legitimado. LEAL, Rogério Gesta. Revista dos Julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul- RJTJRGS, vol. 125, p. 350.

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entendendo-se incabível a permanência de um pensamento arcaico, o Direito brasileiro precisou ser passado “a fio” e começar a enxergar o verdadeiro sentido do acesso à justiça, que diante dessas preliminares explicações, deve ser visto a partir da ótica do jurista Mauro Cappelletti9, afirmando que, considerando as transformações ocorridas em nossa sociedade, na esfera econômica e social, soluções dinâmicas passaram a ser bem vindas a todos. A tecnologia alcançada mudou a velocidade do mundo contemporâneo, portanto, com a vida social alterada, clamou-se por modificações nas legislações processuais a fim de acompanharem os anseios sociais. Meios processuais mais informais passaram a ser vistos como necessários e, diante dessa necessidade, mudanças no sistema tradicional vêm sendo observadas em todo o mundo jurídico. Segundo Kazuo Watanabe10, “A problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.” A sociedade brasileira tem muito arraigada a cultura do litígio, a cultura da busca pelo Poder Judiciário, a cultura da necessidade de uma sanção para que o Direito seja reconhecido e respeitado, logo, o que se pretende com os meios alternativos de resolução de conflito é, justamente, afastar essa cultura do litígio e se aproximar de um meio voltado para a pacificação social, cuja solução para o conflito possa advir das partes envolvidas na controvérsia, pois quando encontrada pelas próprias partes será, certamente, mais salutar.

Mediação – uma forma adequada de Resolução do Conflito O diálogo é algo que deve ocorrer quando existe um conflito de interesses, no entanto, justamente esse não é encontrado em grande parte dos litígios, a sociedade brasileira não tem essa cultura, e tampouco os operadores do direito, por esse motivo, um número sem fim de demandas, anualmente, chegam até o Poder Judiciário, para que esse, com o seu poder, pautado no princípio da substitutividade (substituição da vontade das partes por meio de uma sentença), decida e imponha uma solução para a controvérsia, que, em muitos casos, não resolve o conflito existente entre as partes, vindo, apenas, a resolver a demanda com a aplicação do Direito ao caso concreto, mas, por não “curar a ferida” que foi aberta por ocasião da querela, acaba sendo fonte de novos conflitos, que, mais uma vez, desembocarão no judiciário. Certamente o Direito não resolve tudo na vida de uma sociedade, ele resolve apenas parte do conflito, pois a ele não é dado o poder de curar 9

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CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad.: e ver. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988. p. 155 10 GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. (Coord.) Participação e Processo. Texto: Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 119.

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desilusões, mudar caráter, aproximar pessoas, desfazer sentimentos de ódio, rancor etc., esse conflito apenas poderá ser definitivamente extinto quando as partes restabelecerem um diálogo e superarem questões pessoais, que vão muito além das questões meramente legais. A mediação, por sua vez, em que pese também não resolver tudo na vida, busca a participação dos envolvidos no conflito no sentido possibilitar que esses, com esforço comum, alcancem o melhor resultado possível para aquele conflito. Embora tenha a aparência de conciliação, a mediação é um procedimento bem distinto, pois o conciliador no esforço que tem de aproximar as duas pretensões, de procurar uma zona comum que comporte as duas pretensões, passa a apresentar sugestões, sendo com isso o co-autor do conteúdo daquele acordo, caso seja exitoso, podendo desempenhar também o papel de negociador das propostas apresentadas pelas partes na tentativa de atingimento de um ponto comum, onde cada parte deixa sua posição/pretensão inicial e, cedendo chega a uma posição confortável que satisfaça a ambos. O conciliador pode ser autor ou co-autor de propostas, não havendo nenhuma imposição às partes, mas apenas sugestões de como se chegar a solução daquele conflito por livre expressão da vontade das próprias partes. Enquanto isso, na mediação a situação é diferente, o mediador não faz qualquer sugestão, aqui ele tem o papel de facilitador, na tentativa de que cada parte entenda o ponto de visão do outro e procure estabelecer uma ideia, um sentimento de que a solução ideal para aquele caso é uma solução equilibrada, que represente um valor/justiça tanto para uma quanto para a outra parte, ou seja, as partes indo e vindo na posição contraria podem refletir os argumentos, os elementos internos e externos daquele conflito, o sofrimento que ambos os lados vivem, então, se cria uma zona de aproximação entre as partes, buscando um espírito de solidariedade, de forma com que busquem a solução não para resolver o problema de uma partes, mas uma solução que seja melhor para ambas. A comunicação não violenta, o restabelecimento do diálogo, a importância das relações continuativas é o alvo da mediação, é por meio desses pontos que se busca chegar a pacificação do conflito, portanto, aqui não se pretende apenas por fim na disputa entre as partes, o que, por óbvio, tende a ocorrer com o acordo firmado, mas, a busca da mediação vai mais além, o interesse é restabelecer a comunicação entre os envolvidos e resolver o conflito no plano do sentimento, onde as partes podem retornar para suas casas, empresas etc, com o pensamento de que aquela foi a solução certa, justa, ideal, gerando a pacificação social. Portanto, nas relações mais duradouras como as de família, de vizinhança, comunitária, de trabalho etc, a mediação é o meio mais indicado para a resolução do conflito, por se buscar resolvê-lo no plano do sentimento dos envolvidos, solucionando o problema como um todo, buscando-se restaurar a relação entre as pessoas, diante da potencialidade que tem os sentimentos não resolvidos de trazer novos conflitos. A mediação é um dos instrumentos mais valiosos para a autocomposição, é uma chave para que a sociedade possa se libertar da dependência do Poder Judiciário na resolução de todo e qualquer conflito, pois, como já mencionado,

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o Judiciário deve estar disponível para decidir apenas os casos que, de forma alguma, não seja possível às partes a solução por si só. O Conselho Nacional de Justiça preocupado com essa realidade e com a necessidade de demonstrar a importância desses novos instrumentos de solução de controvérsia publicou a Resolução nº 125, de 29 de Novembro de 2010, que buscou disciplinar e incentivar os mecanismos alternativos de solução de conflitos (mediação e conciliação), considerando que ainda não existia no Brasil uma lei disciplinando a mediação, vindo apenas a surgir a normativa em 2015, com o advento do Novo Código de Processo Civil – Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015, seguido da Lei nº 13.140 de 26 de junho de 2015. Diante da relevância do tema abordado o CNJ desde 2010 já vinha incentivando e implantando, gradativamente, a mediação do Brasil: [...] CONSIDERANDO que o direito de acesso à Justiça, previsto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal além da vertente formal perante os órgãos judiciários, implica acesso à ordem jurídica justa; CONSIDERANDO que, por isso, cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação; CONSIDERANDO a necessidade de se consolidar uma política pública permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consensuais de solução de litígios; CONSIDERANDO que a conciliação e a mediação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implementados nos país tem reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças; [...]11

Assim, o CNJ deixou claro que nem todo conflito deve ser dirimido pelo Poder Judiciário, sendo necessária a criação de meios alternativos de resolução de litígio, e que o princípio e a garantia do acesso à justiça não significam apenas a tutela jurisdicional do Estado, mas a busca por uma solução justa e equilibrada pelos próprios interessados, ainda que essa busca venha a contrariar, eventualmente, algum dispositivo infraconstitucional. Portanto, já há algum tempo o CNJ vem brilhantemente, com o apoio de grandes juristas, procurando dar uma dinâmica aos meios alternativos de resolução de conflito, oferecendo à sociedade um meio adequado para dirimir seus litígios, sem que seja necessária a intervenção do Poder estatal, sem que 11

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BRASIL, http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-vice-presidencia/relatorios/nupemec/ relatorio-semestral-nupemec-1o-2013/anexo-01-resolucao-125-2010-cnj. Acesso em 09 de junho de 2015.

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seja necessário se substituir a vontade das partes por uma sentença proferida pelo Poder Judiciário com a aplicação da lei ao caso concreto, pois, como dito, uma sentença, em muitos casos, não resolve o conflito interno existente entre os envolvidos. Ademais, a mediação possui alguns princípios em seu núcleo, o primeiro é o princípio da Autonomia da Vontade das partes. Não deve haver mediação imposta, esta será melhor sucedida quando depender da vontade das partes, no entanto, não se pode olvidar que as partes apenas terão interesse em mediar se conhecerem o instituto, por isso a importância de uma maior divulgação da existência e do êxito do instituto na solução dos conflitos, a sociedade precisa conhecer, e conhecer bem, esses mecanismos alternativos para que possa lhe dar credibilidade, para que possa deixar para traz a cultura do litígio e da sanção, para que possa acreditar que todo ser humano é capacitado para solucionar seu próprio conflito. Portanto, o segundo princípio é o da Credibilidade, logo, o mediador deve ser uma pessoa que transmite confiança, as partes precisam confiar que o mediador está em busca de que elas próprias cheguem a uma melhor solução para a controvérsia. Outro princípio importante é o da Confidencialidade, o procedimento da mediação deve ser confidencial, pois dá segurança às partes de que o que foi posto na sessão de mediação não será divulgado, salvo se as partes assim permitirem. Há que se ressaltar que, havendo sessões individuais, ou seja, quando o mediador perceber a necessidade de ouvir separadamente, em algum momento, as partes, é certo que também o que for dito na sessão individual deve ser confidencial e não poderá ser revelado à outra parte, salvo se autorizado. O mediador tem o dever de contatar as partes para informar/explicar o que é a mediação e qual o seu objetivo, é dever também do mediador a busca da solução juntamente com as partes, assim, jamais o mediador poderá sugerir uma solução, ele apenas conduz as partes. O procedimento da mediação também inclui o indivíduo socialmente, ampliando seu universo cultural, possibilitando o conhecimento de seus direitos e deveres, o que se aufere com este procedimento é o necessário fomento à paz e o incentivo a práticas de cidadania, requisitos essenciais no contexto de um Estado Democrático de Direito. Tamanha proporção e relevância tomou o meio alternativo de resolução de conflito conhecido por mediação, que o novo Código de Processo Civil acabou por estabelecer como obrigatória a audiência de mediação, considerando ato atentatório a dignidade da justiça a ausência injustificada da parte a sessão de mediação, de acordo com o que dispõe o artigo 331, §8º da Lei nº 13.105 de 2015, considerando que a tentativa de composição entre as partes é primordial para a busca do acesso à Justiça. No mesmo espírito do Novo Código Processual Civil foi editada a Lei 13.140 de 2015 que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da

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administração pública, trazendo para o ordenamento jurídico a normatização da mediação há muito esperada por toda a sociedade. Por outro lado, é certo que algum debate já vem ocorrendo, desde a edição do Novo Código, sobre a imposição da mediação nos processos judiciais, considerando que um Código tão festejado por ser democrático e dar voz às partes, tenha trazido a mediação por imposição, não deixando a critério dos envolvidos a escolha por essa via autocompositiva. Assim, alguns fatores que envolvem a Mediação e o Novo Código de Processo Civil tem sido alvo de debates iniciais, ainda sem maiores repercussões, como o fato do artigo 166 da Lei nº 13.105/15 poder atingir o relevante princípio que deve conduzir a mediação, que é o princípio da autonomia da vontade; é também para se pensar na possibilidade de se ter manobras processuais protelatórias por uma das partes, com o fito de apenas ganhar alguns meses de tramitação processual; e, por fim, inicia-se um debate sobre os custos do processo, com pagamento do mediador e deslocamento das partes a várias sessões de mediação, sendo tais pontos relevantes, considerando que estamos a um lapso temporal mínimo para aplicação prática do Novo CPC e desse instituto tão almejado pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Conclusão Sabe-se que para vencer eventuais resistências ao novo, uma vez que a sociedade brasileira há muito vive baseada na cultura do litígio, torna-se necessária a quebra de paradigmas, para o surgimento de um novo paradigma, no caso em comento, a mediação como meio alternativo de resolução de conflito com vistas a obter a pacificação social. Parece-nos, no entanto, que a mediação foi colocada como se fosse a panaceia para os problemas do mundo, onde tudo agora pode se resolver por meio da mediação, contudo, as coisas não são bem assim, a mediação tem também suas próprias limitações, ela deve estar de acordo com o poder judiciário, ela depende de uma mediador extremamente capacitado, e mais ainda, ela depende da boa-fé das partes, que nem sempre pode ser encontrada. Nos apaixonamos pela mediação, mas temos que tomar muito cuidado, e entendermos que paixão e ciência não andam lado a lado, ou seja, quando estamos apaixonados não conseguimos enxergar os defeitos, tudo é maravilhoso, mas, quando nos referimos a um instrumento, um mecanismo de resolução de conflito, precisamos compreender e enxergar que ele também possui suas limitações!!! A mediação não é milagrosa, não dá pra ser a solução de tudo, mas é um bom caminho que começa a ser trilhado em nosso país e que, verdadeiramente, oferece benefícios para o alcance do tão almejado Acesso à Justiça.

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Referências bibliográficas BRASIL.http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-viceresidencia/relatorios/nupemec/ relatorio-semestral-nupemec-1o-2013/anexo-01-resolucao-125-2010-cnj. Acesso em 09 de junho de 2015. CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação, Rio de Janeiro: Forense, 2007. CAPPELLETTI, Mauro e GRATH , Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre. Fabris. 2002. ________. Acesso à Justiça. Trad.: e ver. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 1988. COLAIÁCOVO, Juan Luis, COLAIÁCOVO, Cynthia Alexandra. Negociação, mediação e arbitragem: teoria e prática: tradução do original por Adilson Rodrigues Pires. Forense. Rio de Janeiro. 1999. GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo. (Coord.) Participação e Processo. Texto: Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. LEAL, Rogério Gesta. O Poder Judiciário e os Direitos Humanos no Brasil. Artigo Publicado no Mundo Jurídico. Em 01.05.2003. Disponível em: http://www.mundojurídico.adv.br. Acesso em: 28 de junho de 2007. SCHIFFRIN apud COLAIÁCOVO, Juan Luis; COLAIÁCOVO, Cynthia Alexandra. Negociação, mediação e arbitragem: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 1999. SERPA, Maria de Nazareth. Teoria e Prática da Mediação de Conflitos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 1999.

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Direito de Propriedade: Evolução Histórica, sua Função Social na Constituição Federal de 1988 e Legislação Correlata Valéria Juliana Tortato Monteschio1 Horácio Monteschio2 Resumo O conceito de propriedade, elaborado nas várias codificações primitivas e que recebeu tratamento peculiar pelos romanos, vem sofrendo, nos últimos tempos, aprimoramento singular na medida em que passa a assumir funções sociais. O conceito de utilização da propriedade de forma ilimitada, formulada no passado, com forte influência do liberalismo pós ancien regime, com o Estado Social recebeu alteração significativa, dentro da concepção de ser utilizada com objetivos claros e específicos voltados para a função social da propriedade. Desta forma, é inadmissível a utilização da propriedade com fins egoísticos, pessoais em detrimento da sociedade. Aliás, nesse sentido, abre-se a discussão da vedação de utilização imobiliária com fins de especulação imobiliária com o objetivo de lucro pessoal. Por sua vez, a previsão Constitucional de possibilidade de adoção de tributação progressiva, bem como da possibilidade de desapropriação de imóvel que não venha cumprindo a sua função social reafirmam essa importância do Direito de Propriedade. Palavras-chave: Direito de Propriedade; evolução histórica; função social.

Introdução A evolução social, com o êxodo rural, experimentado no Brasil nas últimas décadas, aliado com o desenvolvimento das relações econômicas, destacadamente com o incremento do agronegócio, possui significância singular pelo fato de tornarem o conceito a maneira de interpretar o Direito de Propriedade cada vez mais complexa e importante. 1

Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Graduada em Pedagogia, Mestre em Políticas Públicas da Educação, especialista em Gestão Educacional, professora nas Faculdades OPET e FAEL, autora da obra Direito da Criança e do Adolescente, advogada militante. 2 Doutorando pela Faculdade Autônoma de São Paulo – FADISP. Mestre em Ciências Jurídicas pelo UNICESUMAR Maringá. Especialista em Direito Público e Direito Processual Civil pelo IBEJ; em Direito Tributário pela UFSC; em Direito Administrativo pelo IRFB; Direito contemporâneo pela Escola da Magistratura do Estado do Paraná; Integrante da Comissão de Direito Eleitoral da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Estado do Paraná. Professor das Faculdades OPET, ex-Secretário de Estado da Indústria, Comércio e Assuntos do Mercosul do Paraná; ex-Secretário Municipal de Assuntos Metropolitanos de Curitiba. Advogado militante.

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O Brasil tinha a sua Constituição econômica fundada no extrativismo, destacado na cultura do café, os quais serviram de base para a formação da economia brasileira até o final da metade do século passado. Com os eventos climáticos, valorização da mão de obra nos centros urbanos e a mecanização das lavouras acabou por produzir um fenômeno social de expressiva significância no Brasil a ponto de ser conceituado de “êxodo rural”. A par desse fenômeno social, a propriedade passa a ser, cada vez mais, reinventado, novamente conceituado, assumindo importância cada vez mais significativa sob o enfoque a atender a sociedade. A propriedade passa a de um direito real absoluto e assume contornos de cunho social, vinculada a questões ambientais, de política urbana, ocasionando a sua utilização de forma racional, produtiva sob o enfoque social.

Regimes da Propriedade: Evolução Histórica O fator histórico e sócio econômico no qual se encontra envolto o Direito de Propriedade assume aspectos de cunho universal, assim descritas por Pinto Ferreira, “Os grandes impérios da Antiguidade também conheceram a propriedade, desde o mais antigo Código de Leis de que se têm notícia, que é o Código de Hammurabi, assim, como no Egito, os hebreus, muçulmanos, hindus, do mesmo modo na Greco-romana.”3 Neste momento da história o homem, em estado de natureza, que para Creusa Caplabo é definido pelo seu “estado selvagem, o estado de homem que vive em liberdade anárquica ou em independência em relação às leis.”4 malgrado por ser gregário, o homem neste estado relaciona-se com os seus semelhantes, cooperando para vencer as adversidades e garantir a sua manutenção pessoal. No mesmo sentido lecionam Michael Tigar e Madeleine Levy, para os quais “no Estado natureza, homem penetrava na floresta e começava a plantar.”5 Com a evolução o homem passa a constituir a fixação, descrita na doutrina de Walter Vieira do Nascimento, como aquela que “identifica, pela estreita ligação da família ao altar e deste ao solo, uma configuração de vínculo inconteste entre a religião e a terra”6 tendo forte ligação com a religião. Por seu turno, cabe destacar que Friederich Engels agrupa as ideias acima declinadas à “causa de produção da subsistência e suas conexões espontaneístas com o cotidiano dos indivíduos, sem existir uma nítida e presente intenção dirigida à sociabilidade”7 o que nos faz acreditar que a primeira demonstração de propriedade surgida na cultura tenha sido a comunal distinta da propriedade individual. 3

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FERREIRA.Pinto. Propriedade. In: Enciclopédia saraiva de direito. FRANÇA, Limongi (coord.). São Paulo : Saraiva, 1977, p. 145. CAPLABO, Creusa. Filosofia da educação brasileira. São Paulo : âmbito Cultural, 1987, p. 93. TIGAR, Michael; LEVY, Madeleine. O Direito e a ascensão do capitalismo. Rio de Janeiro : Zahar. 1978, p. 286. NASCIMENTO, Walter Vieira. Lições de história do Direito. Rio de Janeiro : Forense, 1999, p. 61. ENGELS, Friederich. A origem da família, da propriedade e do Estado. São Paulo : Alfa ômega, 1984, 56.

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Regimes da Propriedade na Antiguidade No Direito Romano Antigo No período do Direito Antigo ou pré-clássico, compreendido entre 754 a.C. aproximadamente, a 149 e 126 a.C., a propriedade era conhecida dos romanos a propriedade quiritária, descrita por José Cretella Júnior nos seguintes termos “a única espécie de propriedade até então conhecida pelos romanos foi a quiritária.”8

No Período do Direito Clássico Além da propriedade quiritária, os romanos reconhecerem três outras espécies de propriedades, denominadas bonitárias, a qual possui a característica de ser adquirida do vendedor sem o formalismo necessário, a qual poderia ser adquirida por intermédio do usucapião, descrito por Cássia Celina Paulo Moreira da Costa, “se constituía com o decurso de tempo necessário à aquisição do bem, mediante usucapião.”9

Período Pós-Clássico ou Romano Período de unificação das espécies de propriedade reconhecidas pelos romanos, a qual resultou numa única propriedade privada, em oposição à pública. Os costumes dos povos bárbaros se assemelhavam muito de povo para povo. Todavia, consoante a lição de Jacques Le Goff, “O direito romano era encarado como direito superior, assim, como a civilização romana em geral. Mas não era possível incorporá-lo, sem preservar toda a vida material romana ou suas instituições políticas.”10 Razão pela qual trouxe grande influência perante os conquistadores.

Regimes da Propriedade na Idade Média Com o desenvolvimento histórico e das relações, concedeu-se aos que trabalhavam a terra, o direito de possuí-la com algum ônus obrigacional perpétuo. Logo, não tinham a propriedade, a qual era mantida no domínio eminente das famílias nobres, mas um direito real sobre coisa alheia, assim, a propriedade para John Gilissen, assumia a seguinte posição econômica para época. A propriedade esta inserida no contexto do feudo, em que o senhorio concede ao vassalo proteção e um quinhão de terras e, em contrapartida, este, em câmbio, reconhece a autoridade devotando respeito e fidelidade. A Europa, naquela época, foi dividida em uma série de pequenos torrões de terra, constituindo-se em células independentes, a princípio, autossuficientes economicamente11. 8

CRETELLA JUNIOR, José. Curso de direito romano. São Paulo : Forense, 1980. p. 175. COSTA, Cássia Celina Paulo Moreira da. A Constitucionalização do Direito de Propriedade privada. Rio de Janeiro : América Jurídica, 2003, p. 9. 10 GOFF, Jacques Le. A civilização do ocidente medieval. Lisboa : Editorial Estampa, 1983, p. 86. 11 GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenian, 2001, p. 189. 9

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Nas últimas décadas do séc. XIII que se observava uma certa perda de vitalidade do feudalismo, causada basicamente pela peste bubônica. Em seu aspecto econômico, a crise derivara da exploração agrícola predatória e extensiva de forma típica do feudalismo, a qual tem seu ápice com o agravamento relacionado ao fenômeno climático ocorrido entre os anos de 1314-1315. Como consequência ocorre à ascensão da burguesia e a queda do feudalismo. O Antigo Regime o período da história europeia compreendida entre o renascimento e as grandes revoluções liberais, assim descritos por Alexis de Tocqueville “na historiografia da Revolução Francesa (Ancien Régime), é o nome dado ao regime político vigente na França, uma monarquia absolutista, na qual o soberano concentrava os poderes executivo, legislativo e judiciário.”12 Com a Revolução há, na lição de Gomes Canotilho “a ruptura do regime antecessor (antigo) e o surgimento de outro (novo), significando uma nova ordem social e não apenas uma adaptação político-social ou ajustamento prudencial da história.”13 A nova formulação de pensamento é que surgiu a Revolução Francesa, “a qual se aproveitou das ideias dos filósofos, dando as mesmas as conotações que mais lhes eram favoráveis em detrimento do regime absolutista.” 14 Com o desabrochar de novas ideias a burguesia acabou por servir-se, com o objetivo claro de revolucionar o Estado francês, distanciando-se de concepções vetustas em que apenas alguns se serviam e eram servidos pelos demais. A substituição do Antigo Regime recebeu o incentivo ofertado pelas teorias do liberalismo e racionalismo, as quais colocavam em posição de destaque as filosofias políticas as quais tinham como fundamento os valores da pessoa humana em razão da sua própria natureza, as quais rechaçavam o abuso e o arbítrio verificado no período antecessor, tendo como baluartes John Locke, na Inglaterra, Hugo Grócio e Spinoza, na Holanda, Rousseau e Montesquieu, na França. O epílogo do Antigo Regime está consubstanciado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, destacadamente no seu art. 2º que salvaguarda os direitos naturais entre os quais está presente o direito de propriedade.

Componente Teórico-filosófico da Propriedade Liberal A estrutura do direito de propriedade no Estado liberal foi formulada por Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Hegel, sendo assegurado posição de destaque a John Locke, que de forma singular emprestou sua parcela para a composição final, do que se revelou a importância da propriedade para esse Estado. 12

TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília : UnB, p. 63. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra : Almedina, 2003, p. 57 14 DALLARI, Dalmo Abreu. A Constituição na vida dos povos: da idade média ao século XXI. São Paulo Saraiva, 2010, p. 101. 13

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Valéria Juliana Tortato Monteschio e Horácio Monteschio

Na doutrina de Thomas Hobbes, os indivíduos são iguais em razão do esforço para satisfazerem os seus desejos. Para Locke, no estado de natureza os homens são livres, iguais, independente, porém desfrutando uns do convívio dos outros se encontram todos submetidos à lei da natureza, que é a razão, atribuindo a propriedade a sua existência e disposição na natureza e na formação do Estado. Cabe ressaltar o fato de que a propriedade, entendida por Locke possui o diferencial do trabalho humano, assim descritas por Luiz Antonio Zanini Fernerolli, para a doutrina lockeana, “a propriedade é um direito natural, pois as coisas estão dispostas livremente na natureza, aptas a serem beneficiadas com o desprendimento de energia, por meio do trabalho do ser humano e antecedendo até mesmo a existência do Estado.”15 Destarte há uma dependência entre a coisa o trabalho para a sua apropriação. Pela teoria adotada por Rousseau, o Direito de Propriedade não é legitimado pelo estado de natureza, uma vez que é produto da convenção humana, por conseguinte aquela liberdade estabelecida na natureza foi substituída pela liberdade civil, recebendo em troca a propriedade de tudo que possui. Extrai-se das reflexões formuladas por Rousseau, que cabe ao Estado o reconhecimento da propriedade individual, por conseguinte credencia-se, mediante as obrigações que lhe são inerentes, a regular sua utilização, impondo, inclusive limitações ao seu uso. Dando prosseguimento aos doutrinadores que deram arrimo ao liberalismo, cita-se Immanoel Kant, para quem a propriedade “parte do estado de natureza para atingir o contrato social com o objetivo de ser alcançado o Estado, em que cada indivíduo passa a conviver em um Estado civil.”16 Para Kant o estado de natureza era uma ideia, e não um fato. Assim sendo, quando um ser humano assume determinada conduta em relação a um objeto, ele se torna proprietário e, por consequência, com relação aos demais indivíduos, adquire o direito de uso e do gozo da coisa apropriada, que, pelo poder da lei pública, impõe a obrigação de respeito. Por sua vez Hegel difere do pensamento Locke-kantiano para a propriedade, no sentido de que este parte da ideia do proprietário individual, enquanto aquele dá uma visão à propriedade de empresa. Para Hegel, a liberdade era que “definia a propriedade privada, eis que, antes de tudo, caracterizava-se como um ato de realização da liberdade humana”17, não provinha do direito natural, mas baseada na própria vontade, tendo como início a posse do próprio corpo. A propriedade tida como realidade humana e advinda da liberdade do ser humano era, segundo a teoria hegeliana como “íntima e exterior”. 15

FERNEROLLI, Luiz Antonio Zanini. A função social e a propriedade imóvel privada: o aproveitamento do solo urbano. Florianópolis : Conceito Editorial, 2014, p.35. 16 KANT, Immanoel. A metafísica dos costumes. São Paulo : Edipro, 2003, p. 154. 17 HEGEL, G.W. Friedrich. Princípios da filosofia do Direito. São Paulo : Martins fontes, 1997, p. 47.

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Direito de Propriedade: Evolução Histórica, sua Função Social na Constituição Federal de 1988 e Legislação Correlata

Por derradeiro, não assiste razão a defesa da propriedade de pessoas, na doutrina de Hegel, portanto, só as coisas são apropriadas, na medida em que esta não manifestação a sua livre e espontânea vontade. Por sua vez, a propriedade capitalista, dada as suas características de vinculação com a legislação, mantendo o proprietário com pleno exercício e domínio sobre a coisa com exclusividade, ainda que outros efetivamente trabalhem nela.

A Propriedade no Liberalismo no ponto de vista da sua Positivação A doutrina liberal estabelece a preponderância dos interesses da classe burguesa, reduzindo o espectro de atuação do Estado, mitigando o poder, absolutista ou feudal, por conseguinte, não atingindo os interesses dos liberais, a fim de inibir ou restringir os direitos obtidos, em especial, aqueles que se restringissem como economicamente relevantes. A propriedade passa a viver ares de direito natural, imprescritível, inviolável e sagrado, do qual ninguém pode ser privado, salvo por necessidade pública, legalmente constatada, sob a condição de justa indenização. Com essa mudança de paradigma a classe burguesa passa a vislumbrar o Estado como garantidor deste direito a propriedade, trazendo ao lume esta conformação a lição de Aléxis Tocquiville, esclarecedora no que se refere ao interesse de manter o Estado como garantidor do Direito de Propriedade. É verdade que a Revolução vendeu as terras do clero e uma grande parte das terras dos nobres; mas se quisermos consultar os processos verbais dessas vendas, como tive, às vezes, a paciência de fazer, ver-se-á que a maioria foi comprada por pessoas que possuíam outras terras, de maneira que, se a propriedade mudou de mãos, o número de propriedades aumentou muito menos do que imaginamos.18

Francisco Tomás y Valiente, assevera “um corpo legal que colocasse a salvo, com garantias claras e estáveis, sem restrições ou embargos, a possibilidade de geração de riquezas, aquisição de patrimônios e inclusive o poder destinado ao indivíduo.”19 Malgrado o direito do Estado este deverá obedecer os novos entendimentos do conceito de propriedade.

A Propriedade Codificada A necessidade de proteção da propriedade, pela classe burguesa, despertou imenso temor em face da presente instabilidade constitucional, destacadamente na Carta francesa, a qual, no período pós-declaração experimentou quatro 18 19

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TOCQUIVILLE, Aléxis. O Antigo Regime e a Revolução. Brasília : UnB, 1982, p.72. TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Manual de historia del derecho español. Madrid : Tecnos, 1981, p. 467..

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versões no período exíguo compreendido entre 1791 a 1799, bem como os sucessivos movimentos revolucionários, os quais tumultuaram o sistema político francês, acarretando indelével instabilidade na ordem constitucional. Diante deste quadro de instabilidade política, era inconteste o fato de que a Constituição não expressava uma organização básica para a sociedade, mas residia somente num núcleo de organização política do Estado. O Código Civil ou o Código das Relações Privadas, gestado com base na Constituição de 1791, foi finalmente concluído em 1804. Desta forma, nasce o Código Napoleônico. Com as pilastras fundamentais fincadas no individualismo, destaca, de forma exuberante a doutrina liberal, concedendo importância singular ao Direito de Propriedade, não demorando a ser entendido como o Código da Propriedade, destacado por Manuel Ignácio Adrogue, “O proprietário consagra-se em um soberano do bem, e a propriedade, em um direito sagrado e inviolável. Representava a propriedade, conforme as ideias que vestiam a ocasião em salvaguarda da liberdade.” 20 Portanto, até o exercício abusivo para a propriedade era admitido, em confronto com o jus abutendi prestigiado no Direito Romano (que tolerava o consumo por meio da transformação ou destruição da coisa, mas não abuso, puro e simples), exclusivo (o direito de opor-se a qualquer outra pessoa sobre a possibilidade de obter utilidade ou vantagem sobre a coisa, ainda que isso não represente prejuízo algum ao proprietário do bem) e perpétuo. Sobreleva enfatizar o fato de que a conceituação de propriedade liberal esteve presente entre nós até 2003, ano de entrada em vigor do novo Código Civil. Por seu turno, cabe destacar, ainda que de forma perfunctória o fato de que a legislação civil de 1916 estava umbilicalmente ligada às lições da legislação francesa, cujos ensinamentos os doutrinadores pátrios foram abeberar seus conhecimentos para sua elaboração. Mas fixando as premissas na vigente legislação civil, a qual se encontra sintonizada com o Estado Democrático e Social de Direito, com arrimo na Constituição Federal de 1988, determinou um giro Copérnico na estrutura do Direito de Propriedade, na qual, em seu exercício, deve-se prestar atenção na função social que lhe é inerente.

A Propriedade na Mutação do Estado Liberal para Social Como dito em linhas acima, a propriedade no final do século XVIII e no início do século XIX, ficou conformada de acordo com o preconizado pela doutrina liberal, mas, como decorrência da própria evolução social e jurídica, essa concepção começou a receber severas críticas no final do século XIX, principalmente em razão de que o individualismo, presente na ideia liberal já na refletia os anseios da sociedade. 20

ADROGUE, Manuel Ignácio. El derecho de propiedad em La actualidad. Buenos Aires : Abeledo Perrot, 1991, p. 29.

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As críticas formuladas encontravam fundamento social em face da ausência de trabalho, fome e péssimas condições de trabalho e de vida que afetaram a maior parte da população durante o desenvolvimento do modelo político, econômico e social do Estado liberal do século XIX e começos do século XX. A concepção da “mão invisível do Estado”, imortalizada por Adan Smith e assumida pela ideia econômica do liberalismo de “deixar fazer” (laissez faire), trouxe um desnivelamento social, proporcionando acentuado descontentamento popular, principamento pela perda de recursos produtivos. O cenário de insatisfação social, tanto urbano como rural, culminou com o movimento dos proletários franceses de 1848. Iniciada em face das pessoas condições de trabalho e a frustração da colheita, negativa de sufrágio universal e bloqueio das reformas democráticas. O movimento popular brandia o grito de “vive la République démocratique et social” demonstrando que as exigências sociais eram dirigidas, em sua maioria, ao Estado com o fim de que fossem corrigidas as distorções resultantes das desigualdades derivadas das relações de produção.

A Construção da Propriedade Social

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As Constituições do México de 1917 e da Alemanha de 1919 marcaram em palco constitucional, pela primeira vez, a ideia de a propriedade privada desempenhar, por meio do exercício de suas próprias faculdades, uma funcionalização para o fim de ser justificada como socialmente útil. No mesmo caminho foram seguidas a Declaração soviética dos Direitos do povo trabalhador e explorado e a subsequente Constituição soviética e a Carta do Trabalho Italiana. Como precursores da tese de que a propriedade a origem de todos os males, capaz de instituir e perpetuar a desigualdade entre os homens Karl Marx e Friedrich Engels, passaram a representar a ideia de que a extinção da propriedade privada seria uma condição para a eliminação das desigualdades. A concepção de uma propriedade que rechaça a ideia de desigualdade entre as pessoas, adotadas por Marx e Engels, ao contrário do que pode parecer no contexto histórico, sendo percebido a partir da doutrina da igreja católica. São das lavras de Tomás de Aquino e Santo Agostinho, as primeiras concepções sobre a dimensão do compromisso da apropriação do que livre está na natureza com o proveito coletivo, difundiam que a propriedade privada tem um conteúdo inseparável da própria natureza humana, razão pela qual se exige que sua utilização seja pelo menos justa. A ideia partia do princípio de que todos são iguais, todos estariam aptos a extrair do estado natural aquilo que se mostrasse indispensável para atender a suas necessidades. O primeiro satisfazer as necessidades prementes de cada pessoa; o segundo, dividir com os outros o excesso daquilo que não se consistiria

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como indispensável. Este entendimento era diverso do assumido pelo setor político-jurídico do mundo secular. Por sua vez, as Encíclicas Rerun Novarum, de 1891, do papa Leão XIII, a Mater et Magistra, do Papa João XXIII, e a Quadragesimo Anno do Papa Pio XI, disciplinaram em suma que a propriedade privada, para receber um exercício justo conforme o mandamento cristão, teria que ser bem utilizada pelo seu titular. Essa era a concepção passada pela igreja do que se convencionou chamar de “socialismo cristão” ou “catolicismo social”. O Papa Leão XIII, com a Encíclica Rerum Novarum, expressou descontentamento da igreja com a igualdade absoluta, fruto da intelecção dos socialistas contemporânea que pretendia abolir a propriedade privada. Em 1931, por mãos do Papa Pio XI, guiado pela insatisfação de verificar a instalação do socialismo rigoroso de Stalin na União Soviética e a resultante da quebra americana de 1929 – Encíclica Quadragesimo Anno. De oposição ao socialismo e ao capitalismo conforme as feições da época, defendendo a doutrina social cristã já formulada por Leão XIII. No Rechaço, disseminava que, quer no comunismo como no capitalismo o proletariado não tinha acesso, de ordinário à aquisição de bens, coforme suas conveniências e interesses, uma vez que no primeiro o Estado desponta como o único titular da propriedade e no segundo apenas poucos alcançam a riqueza, havendo por isso distribuição desigualitária da propriedade. Acentua a doutrina tomista para fim de registrar, em especial para o socialismo, a crença na propriedade individual. Porém tal propriedade passou a comportar dois status: um individual e outro social. Junto com a Encíclica Mater et Magistra, de 1961, o Papa João XXIII, preocupado com a utilização injusta da propriedade, advertiu que a questão da propriedade era grave, ratificando o que o Papa Pio XI, o individualismo poderia negar o aspecto social e público da propriedade privada. Em 1963, o Papa João XXIII, edita a Encíclica Pacem in Terris, trouxe ao lume o disposto no concílio vaticano II, pregando a utilização social da propriedade, ditando em seu disposto 22 que a função social era inerente da propriedade privada. No ano de 1967, o Papa Paulo VI redigiu a Encíclica Popularum Progressio, voltada ao desenvolvimento dos povos, que estigmatizava, em suma, uma nova compreensão do Direito de Propriedade ao reger que a propriedade privada não constituía para ninguém um direito incondicional e absoluto. Em 1979 João Paulo II na cidade de Puebla de Los Ángeles, México, na III CELAM fez pronunciamento sobre a preocupação da igreja a respeito da propriedade. “A propriedade grava uma hipoteca social”. Na Encíclica Centesimus Annus João Paulo II.

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Propriedade na Constituição de 1988 A propriedade estabelece uma cláusula geral de garantia da propriedade (art. 5º inciso XXII), inserindo-a, também, como princípio da ordem econômica (art. 170, inciso II e III). Neste sistema capitalista de produção, a propriedade privada é um bem jurídico essencial à subsistência das pessoas. A Constituição Federal art. 24, inciso I. Atribuiu, ainda competência aos municípios para promoverem o adequado uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (art. 30, VIII). Observe-se que a Lei 10.257/01 (Estatuo da Cidade) estabelece diretrizes gerais da política urbana. Por sal vez o bem de família, nos termos do art. 5º inciso XXVI, é uma inovação da Constituição de 1988. Ao contrário do bem de família previsto no Código Civil, (art. 1711) ele não exige escritura pública ou testamento para sua Constituição, mas decorre diretamente do texto constitucional. Por sua vez a preservação da dignidade da pessoa humana, a impenhorabilidade de bens está previsto no Código de Processo Civil em seu art. 649. “Mesmo que a indisponibilidade gerada pelo CPC não possa ser chamada de bem de família, ao nominar os bens que ficam livres de penhora, tenta preservar a lei o indispensável para assegurar a dignidade do devedor e seus familiares.”21 Urge salientar a presença legislativa constante da lei 8.009/90, dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, bem como das suas exceções constantes do art. 3º, as quais guardam relevância jurídica suficiente para dar arrimo a penhorabilidade do bem imóvel. O Estado assegura especial proteção à família no art. 226 da Constituição Federal, o direito à moradia é considerado um dos direitos de personalidade inerente à pessoa humana, quer como pressuposto do direito à integridade física. Ainda, do texto Constitucional extrai-se o direito de herança no inciso XXX e da sucessão de bens do estrangeiro XXXI ambos do art. 5º. O direito de herança é um instituto próprio do liberalismo político e econômico. O direito de herança integra secularmente o ordenamento brasileiro, tendo o Código Civil de 1916 acolhido à tradição lusa advinda de fontes romanas. São destinatários do inciso XXX, na doutrina de Judith Martins Costa, O Estado e a generalidade dos cidadãos. trata-se de direito de defesa, pois ao assegurar a garantia ao direito de herança e, inclusive, revesti-la com a fixidez de cláusula pétrea, a Constituição cria uma intangibilidade à herança demarcada pela vedação ao Estado de abolir o instituto ou restringir excessivamente o direito sucessório. Em sentido lato, a palavra herança designa o acervo de bens direitos e obrigações atribuíveis a alguém em virtude da sucessão mortis causa, significando a universalidade dos bens que alguém deixa por ocasião de sua morte, e que os herdeiros adquirem.22 21

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DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2006, p. 463. 22 COSTA, Judith Martins. Direito de Herança. In: Comentários à Constituição do Brasil.

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A Constituição Federal, ainda assegura o direito de usucapião urbano no artigo 183. Avançou este diploma legal no sentido de prever a modalidade de usucapião para população de baixa renda para sua moradia, envolvendo áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, com específica regulação. A Constituição Federal assegura o direito de usucapião urbano ou rural no artigo 191. A lei 10.257/01, estatuto da cidade, estabelece as diretrizes gerais da política urbana. Entre as suas inovações está o usucapião especial urbano no seu art. 10, assim “por sentença judicial, que servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.”23 A norma Constitucional prevista no artigo 5º inciso XXIV24, estabelece os casos de desapropriação. Sendo a utilidade pública caracterizada pelo fato de que determinado bem embora não imprescindível, é importante para a realização dos fins pretendidos pelo Poder Público. Entre as possibilidades de desapropriação cabe destacar a espécie do imóvel não esteja cumprindo sua função social. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, as exigências estabelecidos no art. 186 da Constituição Federal. Por sua vez o artigo 182, § 4º da Constituição Federal prevê a desapropriação especial para imóvel urbano. No mesmo sentido verifica-se dispositivo no Estatuto da cidade, art. 8º. A desapropriação para reforma agrária, do imóvel rural que não estiver cumprindo função social poderá ser desapropriado pela União encontra-se no seu art. 184, § 1º. A Constituição Federal de 1988, assegura à autoridade competente o direito de utiliza a propriedade particular, sem autorização prévia do proprietário, em caso de iminente perigo público (art. 5º, inciso XXV). A Constituição Federal prevê, ainda, outra hipótese de requisição de bens, no caso do art. 139, VII, possibilitando na vigência do estado de sítio.A Constituição de 1988 previu, no art. 243, uma hipótese de desapropriação sem indenização nos casos de utilização para o cultivo de psicotrópicos ou de mão de obra escrava. Aos autores assiste o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras. Em outras palavras, o autor pode utilizar, publicar e reproduzir sua obra, exercendo sobre ela direitos exclusivos (art. 5º, inciso XXVII). Aos autores a Constituição confere os direitos sobre suas obras e reproduções no inciso XXVIII. A lei 9.610/98, autoriza e consolida a legislação sobre direitos autorais, alterada pela lei nº 12.853, de 14 de agosto de 2013, para dispor sobre a gestão coletiva de direitos autorais. A história do Direito industrial tem início na Inglaterra, mas de um século antes da primeira Revolução Industrial, com a edição do Statute Of Monopolies, CANOTILHO, Joaquim José Gomes. SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz, MENDES, Gilmar Ferreira (coords.) São Paulo : Saraiva/Almedina, 2013, p. 339. 23 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. São Paulo : Malheiros, 2005, p. 166. 24 XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

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em 1623, quando pela primeira vez, a exclusividade no desenvolvimento de uma atividade econômica deixou de se basear apenas em critérios de distribuição geográfica de mercados e outras restrições próprias ao regime feudal, para prestigiar as inovações nas técnicas, utensílios e ferramentas de produção. A Constituição protege os inventos e as criações industriais de marcas, nos nomes das empresas e outros signos distintivos produzidos pela mente humana. Art. 5º XXIX, ressalte-se ao final que deve-se levar em conta, na proteção dos inventos, o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, a qual regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. lei nº 9.609 , de 19 de fevereiro de 1998, a qual dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no país.

Função Social da Propriedade O princípio da função social da propriedade surgiu na Constituição de 1934 (art. 113), permanecendo em todas as posteriores. Na Constituição de 1988, ela aparece ao lado do Direito de Propriedade no art. 5º incisos XXII e XXIII. A função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade, assim classificada por José Afonso da Silva “Estes dizem respeito ao exercício do direito ao proprietário; aquela, à estrutura do direito mesmo, à propriedade.”25 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. Em que pese à doutrina destacada deste trabalho, mas entende-se que a função social da propriedade não fica reduzida ao espectro da legislação civil, passando a compor um megasistema que compõe o ordenamento jurídico pátrio. Razão pela qual não assiste razão a questão posta neste momento, sob o argumento de que haveria a necessidade de alteração da legislação infra Constitucional para alcançar a função social da propriedade entre os seus elementos de proteção. Não representa, tão pouco, contradição com o descrito acima quando relatado o momento que sucedeu a Revolução Francesa, quando as constituições não assumiam posição de proteção da propriedade, quanto mais da sua função social, na medida em que a própria predominância do constitucionalismo e seus instrumentos de proteção social cada vez mais se mostram eficientes na defesa da cidadania e da sociedade. 25

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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo : Malheiros, 2005, p. 281.

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Conclusões A propriedade assume importância fundamental na história humana, social e jurídica, representa uma mudança de paradigma a cada momento, tendo em vista que em um primeiro momento o homem não se fixa a qualquer localidade é um gregário, para posteriormente com o aperfeiçoamento de técnicas de agricultura, domesticação de animais, passa a ser sedentário, fixando-se em locais que melhor lhe oferece condições de sobrevivência. Com este plexo de fatores as preocupações humanas passam a residir em outras searas, destacadamente com a delimitação da propriedade, sua utilização pelo detentor do poder, para posteriormente estabelecer critérios econômicos, de importância a consagrar classe que passou a assumir preponderância social, ocasionando, com isso, um dos eventos mais importantes da história moderna a Revolução Francesa. O liberalismo, descrevendo a propriedade e sua ampla possibilidade de utilização, por parte do proprietário, ao mesmo tempo passa a ceder sua posição de destaque para uma nova visão de redução de força do individualismo e passa a consagrar a coletividade. O mundo passa por controverso momento, de lados antagônicos, potências se digladiam para a obtenção de adeptos aos seus fundamentos ideológicos e políticos, a propriedade assume importância expressiva no debate econômico. Ao mesmo passo que a posição religiosa, destacadamente do catolicismo, passa a editar encíclicas aos seus devotos, conclamando a importância da propriedade.

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O Dirisgimo Estatal como Impeditivo da Escolha do Regime de Bens pelos Septuagenários Nivea Corcino Locatelli Braga1 Resumo O presente artigo tem por objetivo analisar a intervenção estatal brasileira em detrimento do princípio da autonomia da vontade, especificamente no tocante a adoção do regime da separação legal de bens nos casos de casamento em que figure como nubente pessoa com mais de setenta anos, com o desiderato de verificar as principais tensões ocasionadas pelo dirigismo estatal. Palavras-chave: Dirigismo estatal; regime separação obrigatória de bens; autonomia da vontade; septuagenário. Abstract This article aims to analyze the Brazilian state intervention to the detriment of the principle of freedom of choice , specifically regarding the adoption of the legal separation of property regime in cases of marriage in which figure as betrothed person over seventy years, with the desideratum to check the principal stresses caused by state guidance. Keywords: State interventionism; mandatory regime separation of goods; autonomy of the will; septuagenarian.

A Intervenção do Estado na Vida do Indivíduo A interferência do legislador sobre a vida privada das pessoas é fato que remonta a tempos imemoriais. O Direito Romano continha em seu ordenamento normas proibitivas da realização de matrimônio para determinadas pessoas, o que inclusive constava na Lei Papia Poppaea, posteriormente revogada. No Brasil, o Código Civil de 1916 impunha o regime da separação obrigatória de bens levando em conta o critério biológico, assim as mulheres 1

Coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação lato sensu da Universidade Estácio de Sá. Professora da Graduação da Universidade Estácio de Sá. Integrante da Equipe Editorial e Avaliadora da Littera Docente & Discente em Revista. Advogada. Conselheira da OAB/RJ – 9ª Subseção de Nova Friburgo, Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre “Democracia, Jurisdição Constitucional, Discurso e Administração de conflitos” do curso de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada em Processo Civil Contemporâneo pela Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Pós-Graduada em Docência do Ensino Superior pela Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

O Dirisgimo Estatal como Impeditivo da Escolha do Regime de Bens pelos Septuagenários

com mais de cinquenta anos e os homens com mais de sessenta anos de idade, para contrair núpcias precisariam adotar o regime imposto pela legislação. No momento da feitura do Código Civil de 1916, a cultura, o pensamento social, as relações travadas entre os indivíduos e a vulnerabilidade da mulher fomentaram a adoção da mencionada regra. Porém com a mudança de paradigmas e com a inserção intensa da mulher no mercado de trabalho a regra se tornou obsoleta, e já o era com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil que no artigo 5º, I2 agasalhou o princípio da igualdade. Nessa toada o Código Civil de 2002 equiparou homens e mulheres e mais especificamente no artigo 1641, II3 previu a obrigatoriedade de adoção do regime da separação de bens para a pessoa maior de sessenta anos, sem fazer distinção de gênero em obediência ao princípio da isonomia consagrado constitucionalmente. Posteriormente o limite etário foi modificado pela Lei 12.344/20104 resultante do Projeto de Lei de autoria da Deputada Solange Amaral, que alterou o inciso II do artigo 1641 do Código Civil5 ao estabelecer o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de setenta anos, impulsionada pelo aumento da expectativa de vida do indivíduo na contemporaneidade. Pois bem, o legislador apesar de ter tratado homens e mulheres paritariamente com a inserção da citada regra, ainda assim optou por manter a intervenção do estado na vida da pessoa maior de setenta anos, o que suscita dissenso.

Da Limitação ao Princípio da Autonomia da Vontade O princípio da autonomia da vontade atingiu seu auge no período do Estado Liberal clássico dimanado da Revolução Francesa, em que a intervenção estatal não era uma constante na sociedade, assim o princípio do pacta sunt servanda passou a nortear as relações entre os particulares. Superada esta fase, com a revolução industrial, o Estado Liberal devido às especificidades históricas e às peculiaridades da época se tornou obsoleto ensejando a necessidade de busca pela realização da igualdade material mediante o dirigismo estatal deveras praticado no Estado Social. Nesse cenário o dirigismo contratual encontrou espaço para ascender através da edição de normas de ordem pública elaboradas com a finalidade de tutelar as pessoas desfavorecidas economicamente. 2 3

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BRASIL, Constituição da República Federativa. São Paulo: Saraiva. 2015, 13. ed., p.6. BRASIL, Código Civil: Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Saraiva. 2015, 13. ed., p.265. BRASIL, Lei 12.344 de 09 de Dezembro de 2010. São Paulo: Saraiva. 2015, 13. ed., p. 1575. BRASIL, Código Civil: Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Saraiva. 2015, 13. ed., p.265.

Nivea Corcino Locatelli Braga

Hodiernamente a autonomia da vontade não é exercida de forma plena pelo indivíduo, haja vista que, o estado estabelece regras de comportamento, para impingir limites em prol de interesses sociais e da realização da justiça material. A imposição do regime da separação obrigatória de bens para as pessoas que possuem mais de setenta anos é tema que promove substanciais controvérsias em âmbito doutrinário e jurisprudencial, mormente por interferir diretamente na autonomia privada tida como uma das importantes conquistas da sociedade no tocante à representação da liberdade como valor jurídico, expresso no Preâmbulo da Carta Magna e no artigo 1706. Assim CHAVES e ROSENVALD7 asseveram que a norma em comento fere a dignidade da pessoa humana e não pode se sustentar atualmente. O Enunciado 125 fruto da I Jornada de Direito Civil possui previsão nesse sentido: “A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em razão da idade dos nubentes não leva em consideração a alteração da expectativa de vida com qualidade, que se tem alterado drasticamente nos últimos anos. Também mantém um preconceito quanto às pessoas idosas que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário, passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos, como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus interesses.”

Pertinente asseverar que inexiste norma que torne a pessoa incapaz pelo simples fato de ter completado setenta anos, ao revés a principiologia estrutural do Estatuto do Idoso visa à promoção dos direitos e deveres do indivíduo com mais de sessenta anos, com intuito de promover-lhe uma existência digna, porém a norma inserta no inciso II do artigo 1641 do Código Civil8 limita a autonomia da vontade, denotando o famigerado dirigismo estatal em detrimento da autonomia privada. A postura do Poder Legislativo mitiga o princípio do Direito de Família consubstanciado na Intervenção Mínima do estado na vida privada.

O Idoso como Sujeito de Direitos sob a Ótica da Dignidade da Pessoa Humana A Constituição da República Federativa do Brasil ao estabelecer os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da República fixou as diretrizes mínimas que deveriam ser seguidas pelo legislador infraconstitucional, adotando esse paradigma o Estatuto do Idoso assegurou as pessoas com mais de sessenta os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral da legislação, assegurando-lhe por lei ou por outros meios, as oportunidades e facilidades, para viabilizar preservação 6 7

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AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p.77. FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Volume 6. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 80. BRASIL, Código Civil: Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Saraiva. 2015, 13. ed., p.265.

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da saúde física e mental, bem como seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. O artigo 2º do Estatuto do Idoso9 parece conflitar com a regra estabelecida no artigo 1641, II do Código Civil10 que mitiga o princípio da autonomia da vontade ao subtrair do idoso o direito de escolha do regime de bens de seu casamento. Oportuno rememorar Rodrigues11 ao destacar que a senilidade constitui uma fase da vida que se inicia com a concepção desenvolve-se com o nascimento, infância, juventude, fase adulta até chegar à velhice. Assim, a pessoa idosa é plenamente capaz até que se prove o contrário, através de prova técnica produzida em procedimento judicial com ulterior prolação de sentença reconhecendo a incapacidade do indivíduo para os atos da vida civil, já que a senilidade por si só, isoladamente considerada não tem o condão de conduzir a incapacidade. O legislador pátrio ao manter a obrigatoriedade do regime da separação absoluta de bens para as pessoas com mais de setenta anos revela sua nítida feição patrimonialista, com ênfase a proteção aos bens do idoso e de sua família deixando em segundo plano a autonomia da vontade do indivíduo, olvidando de seu direito de escolha quando da celebração do casamento. Assim, sob a ótica patrimonialista o idoso é tratado, nesse particular como um incapaz, como alguém que por conta de um critério exclusivamente etário, não tenha discernimento suficiente para fazer escolhas pautadas em interesse próprio e no afeto. Nesse sentido Fiúza critica a posição do legislador ao asseverar que a exigência representa uma capitis diminutio aos maiores de 70 anos, já que a norma os infantiliza, os idiotiza, e não representa o que de fato ocorre na realidade. Com o aumento da expectativa de vida é possível dizer que um indivíduo de setenta anos é, de fato, ainda jovem. E mesmo se assim não fosse o que importa é se o indivíduo possui ou não consciência de seus atos, se tem discernimento o ato é válido, sendo desarrazoada a intervenção do Estado na esfera privada12. A norma veiculada no inciso II do artigo 1641do Código Civil é atentatória do princípio Constitucional da dignidade da pessoa humana, por reduzir a autonomia do indivíduo e por constrangê-lo a tutela reducionista13. De fato, a compreensão da dignidade da pessoa humana, assim como a concepção do direito natural se originou de um processo de racionalização e laicização, sendo preservada a noção basal da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade14. 9

BRASIL, Lei 10.741 de 01 de outubro de 2003. São Paulo: Saraiva. 2015, 13. ed., p.560. BRASIL, Código Civil: Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Saraiva. 2015, 13. ed., p.265. 11 RODRIGUES, Oswaldo Peregrina. A pessoa idosa e sua convivência em família. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A Ética da Convivência Familiar e sua Efetividade no Cotidiano dos Tribunais.1. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. 12 FIÚZA, César. Direito Civil. 17 ed. São Paulo: RT, Belo Horizonte, 2014, p. 1184. 13 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, p. 242-243. 14 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na 10

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Nivea Corcino Locatelli Braga

No tocante ao reconhecimento dos direitos individuais e de desenvolvimento do conceito da dignidade da pessoa humana, Immanuel Kant colaborou para a edificação de uma premissa da dignidade intrínseca, inata a toda e qualquer pessoa15. Para Kant a dignidade tem como fundamento a autonomia ética do homem, estruturada na liberdade de que dispõe para escolher conforme a razão e de agir nos moldes de seu entendimento e opção. Assim, a dignidade é um atributo do homem, como sujeito de autonomia prática, não podendo ser abreviada a criação constitucional, já que precedente a qualquer sistema normativo. A dignidade existe a priori, anterior a qualquer experiência especulativa16. Dessa feita, a vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo e a atuar em consonância com a representação de certas leis. Aquilo que serve à vontade de princípio objetivo da sua autodeterminação é o fim, e este é dado pela razão, tem que ser igualmente válido para todos os seres racionais.17 O conceito de dignidade da pessoa humana foi abordado por Kant em sua filosofia sendo oportuno citar o trecho a seguir transcrito: “O homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe com um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ter considerado simultaneamente com o fim.” 18

O homem como possuidor de dignidade não deve ter seu direito de escolha tolhido pelo estado em situações em que pode manifestar livremente sua vontade, sob pena de ser impedido de exercer um direito fundamental garantido constitucionalmente. Nesse sentido Maria Berenice Dias argumenta aduzindo que a discriminação em razão da idade é odiosa e inconstitucional, já que a capacidade plena é adquirida com o advento da maioridade e só pode ser afastada em situações extremas e por meio de processo judicial19 de interdição, em que se assegure a ampla defesa e o contraditório.

Considerações finais A Constituição da República Federativa do Brasil considerou a dignidade da Constituição Federal de 1988, p. 32 e A eficácia dos Direitos Fundamentais, p.45. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p.67. 16 SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da Dignidade da Pessoa Humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Dimensões da Dignidade: ensaios da Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 20. 17 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p.67. 18 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p.67-68. 19 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 15

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pessoa humana e a igualdade como princípios estruturais do Estado Democrático de Direito que devem ser preservados pelo legislador infraconstitucional. Hodiernamente não existe justificativa plausível para manter o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de setenta anos, com base unicamente no critério etário. A concepção patrimonialista do Código Civil idealizado no século XX não se coaduna com os tempos atuais e com os valores que emergem da sociedade. A interpretação dos institutos advindos do direito civil deve ser elaborada conforme a tábua axiológica da Lei Maior. O idoso tem o direito de contrair matrimônio e em observância ao princípio da autonomia da vontade de escolher o regime de bens, de acordo com seus interesses particulares, prescindindo da intervenção estatal. Assim, como princípio que estrutura o ordenamento jurídico pátrio, a dignidade da pessoa humana, deve pautar as relações jurídicas e servir de ponto de partida para a interpretação e aplicação da legislação infraconstitucional.

Referências bibliográficas AMARAL, Francisco.  Direito civil: introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. BRASIL, Constituição da República Federativa. São Paulo: Saraiva. 13. ed. 2015. BRASIL, Código Civil: Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002. São Paulo: Saraiva. 13. ed. 2015. BRASIL, Lei 10.741 de 01 de outubro de 2003. São Paulo: Saraiva. 13. ed. 2015. BRASIL, Lei 12.344 de 09 de Dezembro de 2010. São Paulo: Saraiva. 13. ed. 2015. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 6. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Volume 6. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. FIÚZA, César. Direito Civil. 17 ed. São Paulo: RT, Belo Horizonte, 2014. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003. RODRIGUES, Oswaldo Peregrina.  A pessoa idosa e sua convivência em família. In: PEREIRA, Tânia da Silva; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. A Ética da Convivência Familiar e sua Efetividade no Cotidiano dos Tribunais.1. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006. SARLET, Ingo Wolfgang. As Dimensões da Dignidade da Pessoa Humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Dimensões da Dignidade: ensaios da Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.

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O Direito de Escolha ao uso do Processo, na Justiça do Trabalho Camila Maria Simião1 Resumo O Direito do Trabalho nasce como instrumento limitador da pura vontade das partes, impõe através da legislação, doutrina, súmulas e conjunto principiológico as diretrizes básicas para uma prestação de serviços segura, saudável e, acima de tudo, digna. A elevação do Direito do Trabalho (do trabalho em si) a categoria de fundamental social, proporciona a descoberta de sua função social e edificante perante as partes, por outro lado, petrifica as relações, pois, convertem tais disposições em indisponíveis e irrenunciáveis, forçando empregado e empregador, quando, diante de um dilema (conflito) a demissão, a via coletiva (quando possível) e, a pior medida a busca “obrigatória” ao Poder Judiciário, com a distribuição de mais um novo processo, a somar com tantos outros havidos em tal Justiça Especializada. Palavras-chave: Indisponibilidade de direitos; obrigação ao processo; proteção empregatícia.

Introdução Jurisdição trata-se de uma função Estatal, sendo impossível o Estado estar em todos os lugares e ao mesmo tempo, detendo competência plena para diversas atividades, este, delega a função jurisdicional ao Poder Judiciário, passando assim, os magistrados a exercerem o poder de resolução das lides que lhes são apresentadas (distribuídas de acordo com sua competência). O grande problema enfrentado no estudo é a concentração da jurisdição como atividade apenas do Poder Judiciário, em sendo, apenas este seria o detentor do poder de resolução da lide em conflitos trabalhistas. Elege-se esta matéria específica, pois, apesar dos métodos alternativos de resolução da lide, a Justiça do Trabalho hoje, insiste na judicialização dos conflitos trabalhistas. A primeira análise a ser feita é o monopólio que o país atravessa no tange o poder jurisdicional, concentrado apenas ao Poder Judiciário, ora, se jurisdição é o delegar da função de resolução da lide, aplicação e entrega do Direito via processo, não se pode esquecer que, poder de resolução via processual, pode ser exercido por um Sindicato (Acordos e Convenções Coletivas); Síndico (reunião de condomínio, livros e atas); bem como, outros Poderes, como o Poder Executivo (processo administrativo) e outras possibilidades. Hoje, apesar da retomada do Estado Moderno, do conceito unitário da jurisdição, a sociedade depara-se com diversas possibilidades de resolução do conflito, muitas até mais céleres que o próprio Poder Judiciário, v.g., as 1

Advogada, Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais, especialista em Direito do Trabalho e em Direito Ambiental, Professora Universitária na cidade de Lucas do Rio Verde/MT – Faculdade La Salle.

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intervenções e atuações Sindicais; uso da Arbitragem; desenvolvimento de aplicação de projetos voltados a Mediação de Conflitos, e etc.. A grande questão é a insistência da processualística em entregar a função jurisdicional somente ao Poder Judiciário – Juiz – Estado, quando o próprio texto Constitucional oferece ao cidadão os métodos extrajudiciais, reconhecendo a conciliação, as demandas administrativas e o papel dos Poderes (Executivo e Legislativo) em sua resolução. A Lei de Arbitragem – Lei n° 9.307 de 1996, atuação do Procurador do Trabalho em mesas de mediação, a Comissão de Conciliação Prévia – CLT e tantos outros exemplos, onde se destaca o Estatuto da Advocacia que prevê que acima de qualquer litígio judicial, deve o advogado atuar na conciliação das partes. Da leitura do texto Constitucional, artigo 5°, §4°, resta evidente que até mesmo a “fatia” da competência, não comporta mais um conceito absoluto, pois, há a possibilidade de um julgamento e execução de decisão por um Tribunal Internacional, mesmo de casos havidos no território nacional. Diante da evolução da sociedade; do indivíduo por si; das relações, resta impossível o associar do conceito de jurisdição a Soberania Estatal, pois, de acordo com os elementos compositores do Estado – Povo, Território e Soberania, até um ente Sindical pode ser considerado soberano, pois, pode ter os associados e categoria como seu povo, possui a limitação territorial como espaço de atuação, e, por fim, inquestionável sua soberania, sendo um ente autônomo livre de qualquer tipo de fiscalização ou intervenção. Logo, precisa-se encarar a jurisdição de forma globalizada, não mais unitária, o poder de resolução de casos concretos, recomposição, retorno da condição anterior e aplicação do Direito via sentença, não será exercido apenas pelo Juiz, pode também o árbitro que por Lei (Arbitragem), o considera representante do Estado, também exercer esta mesma atribuição. Deve-se acompanhar o avanço da sociedade e a sua frenética necessidade de pronta resolução, que, o Poder Judiciário por si só não consegue atender, a jurisdição modernizou-se para atingir de forma mais célere seu escopo, a resolução de litígios, sendo esta globalizada não apenas do Estado, mas em constante diálogo com este.

A Irrenunciabilidade de Direitos Trabalhistas

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No direito material do trabalho encontram-se as garantias fundamentais aplicáveis ao trabalho subordinado de modo a garantir ao trabalhador, através do princípio da dignidade da pessoa um ambiente digno e condições dignas de trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho em diversos artigos aponta estas garantias ao trabalhador, como nos artigos, 58 – duração do trabalho; 129 – férias; 457 – remuneração; e outros, sendo basilar ao tema o artigo 7° da Constituição Federal, que narra em seus trinta e quatro incisos os direitos sociais relacionados ao trabalho, trabalhador urbano e rural.

Camila Maria Simião

O Direito do Trabalho em seu nascimento tem como essência, o combate às condições péssimas e exploratórias de trabalho em decorrência do período da Revolução Industrial, em especial, nasce em razão da indiferença do Estado – Liberalismo da Revolução Francesa, diante de tais ocorrências e violação da questão social. Nasce para combater a exploração do homem pelo homem – empregador, senhor absoluto da relação laboral, este combate, deixou clara a função do Direito do trabalho de proteger o trabalhador, pelo fato deste, não conseguir fazer por si, e, ante a disparidade social e econômica havida entre empregado e empregador. Evidente a disparidade social, jurídica, técnica e econômica havida entre as partes na relação de trabalho passa-se a evolução da fase liberal, para uma fase de intervenção Estatal, assumindo este um papel ativo frente às relações laborais, interferindo em prol do proletariado. A intervenção do Estado passa a ser clara através da edição de leis que garantiam (garantissem) a preservação de direitos básicos como, salário mínimo; limitação da jornada de trabalho; não discriminação do trabalho do menor e da mulher dentre outras. Desta interferência Estatal nasce a heteroproteção do trabalhador, em sendo, a convicção do Estado de promover a defesa do trabalhador, adotando uma postura atuante e interferente, como forma de manter o equilíbrio social e econômico através da dignificação pelo trabalho e proteção social ao mais fraco. O Direito do Trabalho é conhecido não só pelo seu ordenamento jurídico protecionista ao hipossuficiente, pelas suas garantias materiais, por suas imposições e sanções ao que viola o direito material posto, mas também, pelo seu conjunto principiológico regido pela batuta do princípio da proteção. As garantias materiais no texto Constitucional de 1988 estão narradas no artigo sétimo dentre seus vários incisos – direito material individual do trabalhador, na sequência artigos oitavo ao décimo primeiro, encontram-se as garantias materiais coletivas, a exemplo o direito de greve. Na Consolidação das Leis do Trabalho não há uma reunião específica de garantias, férias; jornada; salário; aviso; dentre outros, encontram-se espalhadas pelo texto laboral, diferente do texto Constitucional. Como toda matéria, o Direito do Trabalho conta com a utilização de princípios gerais; princípios constitucionais e, com seu conjunto de princípios específicos. Entendido o conceito de princípio, sob a linguagem primitiva de início, de onde brota começo, bem como, da terminologia jurídica sob o prisma da função integradora, em sendo, superar as lacunas havidas na lei; função informadora a que serve de base para a inspiração de leis; e função normativa a de maior debate dentre doutrinadores e estudiosos, pois, indaga-se se, os princípios seriam normas, e a resposta causa algumas vertentes sendo a majoritária, inclusive adotado pelo Professor Amauri Mascaro do Nascimento (2011, p.450) que, para que um princípio seja aplicado a um caso concreto este, precisa de força normativa, assim, a utilização de um princípio só prospera quando este é feito em conjunto com uma norma, para todo princípio uma norma.

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O Direito do Trabalho funda-se na proteção do trabalhador, tem como primazia proteger e buscar a dignidade da pessoa através do trabalho e salário justo, parte – ou talvez toda, esta proteção é devida graças ao princípio da proteção, que se desdobra em, in dúbio pro operário; norma mais favorável; e, condição mais benéfica. As partes na relação de trabalho possuem evidente disparidade, seja econômica, social, cultural, técnica, ou jurídica – na maioria das vezes econômica, tal disparidade ou desequilíbrio precisa ser compensado no intuito de equiparar, equilibrar a relação laboral. Não pode o princípio da proteção confundir-se com da isonomia que se trata de, dar tratamento igual aos iguais nas medidas de suas igualdades e, os desiguais de maneira desigual na medida de suas desigualdades. O princípio da proteção tenta dar equilíbrio, igualar as partes desiguais. O princípio da proteção trata-se de intervenção estatal, o Estado impondo normas mínimas aos agentes sociais, limitando suas vontades e ações, limitando a autonomia da vontade que cerca o contrato de trabalho. Informa este princípio que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro –, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. O princípio tutelar influi em todos os segmentos do Direito Individual do Trabalho, influindo na própria perspectiva desse ramo ao construir-se, desenvolver-se e atuar como direito. Efetivamente, há ampla predominância nesse ramo jurídico especializado de regras essencialmente protetivas, tutelares da vontade de interesses obreiros; seus princípios são fundamentalmente favoráveis ao trabalhador; suas presunções são elaboradas em vista do alcance da mesma vantagem jurídica retificadora da diferenciação social prática. Na verdade, pode-se afirmar que sem a ideia protetivo-retificadora, o Direito Individual do Trabalho não se justificaria histórica e cientificamente.2

Na doutrina encontra-se a exemplo CASSAR (2011, p.181), aqueles que fundam o princípio da proteção no texto constitucional, em sendo um princípio Constitucional específico à matéria de Direito do Trabalho, “Da proteção ao trabalhador e prevalência da condição mais favorável (art. 7°, caput)”. Evidente que, o princípio da proteção existe, não para dar algo a mais ao empregado, mas sim, para dar equilíbrio à relação laboral vez que, sendo o empregador o detentor da maior condição econômica, o Direito do Trabalho oferece através da proteção maior condição jurídica ao empregado, protegendo sua gama de direitos, restringindo ações do empregador que tenham a intenção de prejudicar a figura do empregado, v.g., redução salarial; rebaixamento de função; transferências não fundadas nos requisitos da lei; abuso no elastecer da 2

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DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10 ed. São Paulo: LTr. 2011, p. 192.

Camila Maria Simião

jornada de trabalho; exposição a agentes prejudiciais a saúde; abono de faltas justificadas; concessão de férias em seu período exato; e, dentre tantos outros. A doutrina trabalhista não chega a um consenso de quantos seriam os princípios específicos de Direito do Trabalho, se todos seria uma consequência do princípio da proteção, uma subdivisão deste, enfim, sabe-se apenas que, o princípio da proteção encaminha seu objetivo de, proteger; tutelar, para o princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, para alguns autores a exemplo MARTINS (2014, p.73) princípio da irrenunciabilidade de direitos trabalhistas. O princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas é resultado não só da proteção, mas também da imperatividade das normas trabalhistas, pois, o Direito do Trabalho tem o predomínio de regras obrigatórias – imperativas, sendo pouquíssimas as situações de regência por regras dispositivas em sendo, definição pela vontade das partes, v.g., artigo 472, §2°, da Consolidação das Leis do Trabalho. As normas trabalhistas são imperativas e de ordem pública, v.g., o direito a aquisição/concessão de férias, estando no texto da Consolidação das Leis do Trabalho que apenas dez dias poderão ser vencidos pelo empregado ao empregador, não pode o empregado vender os trinta dias de férias ao seu empregador, por mais que este empregado assim o deseje. O empregado não pode livremente dispor de seus direitos, por mais que seja esta sua vontade deverá observar os limites e moldes impostos pela Consolidação. O empregado mesmo sendo o detentor do direito, da proteção, mesmo por sua vontade, sem vícios, coação, não pode dispor livremente de seus direitos, não pode renunciar, v.g., de uma jornada diária de oito horas, para trabalhar todos os dias dez horas, mesmo desejando para uma maior produtividade em consequência maior remuneração. Aqui, os termos indisponibilidade e irrenunciabilidade são tidos como sinônimos, diferente se faz quando passa a tratar adiante da transação e renúncia de direitos trabalhistas. Direitos de indisponibilidade absoluta são, por exemplo, os direitos relativos à segurança e medicina do trabalho. Direitos de indisponibilidade relativa são os que podem ser alterados desde que não causem prejuízo ao empregado (art. 468 da CLT) ou haja expressa autorização Constitucional (reduzir salários – art. 7°, VI) ou legal (reduzir intervalo - §3° do art. 71 da CLT).3

Na indisponibilidade absoluta tem-se que, uma proteção de nível público necessária para a manutenção da ordem mínima da sociedade a exemplo, a anotação do registro de trabalho em Carteira de Trabalho e Previdência Social; pagamento do salário mínimo nacional, ou da categoria – redução somente via convenção coletiva, impossibilidade de negociação para menos, via partes. Na indisponibilidade relativa é possibilidade havida de negociação, tratativas entre 3

MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 30 ed. São Paulo: Atlas. 2014, p. 74.

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partes sem abalo da ordem pública e sem evidente prejuízo ao empregado a exemplo, o pagamento de salário mais variável através de comissões, todo o mês o empregado receberá como variável aquilo que produziu, podendo ser mais ou menos de acordo com a sua produtividade. Indiscutível o caráter protetivo da norma trabalhista, além, da proteção do empregado contra atos de fraqueza desse mesmo, assim trata-se de normas indisponíveis, não é dado ao empregado o direito de dispor de sua proteção, protege a vulnerabilidade do empregado frente à ótica do supostamente vantajoso, rápido e lucrativo, dispondo assim de suas garantias mínimas, adquiridas a base de muitas lutas e evolução social. A problemática que se enfrenta diante da discussão da indisponibilidade das normas trabalhistas é a confusão que se traça entre dispor de normas e direitos e, transacionar de acordo com as possibilidades das normas, direitos.

O Uso Forçado do Processo na Justiça do Trabalho

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Evidentemente, por tratar o Direito do Trabalho de proteção a parte mais fraca da relação laboral, resta clara a impossibilidade de renunciar direitos trabalhistas salvo, na presença de um juiz, contudo, a própria Consolidação das Leis do Trabalho permite transacionar, quando, por exemplo, dá ao empregado a possibilidade de vender 10 (dez) dias de seus, por direito 30 (trinta) dias de gozo de férias (artigo 143), como no exemplo acima, já tratado. Destes e outros debates, nasce um fenômeno ainda novo ao estudo do Direito do Trabalho, a chamada flexibilização dos direitos trabalhistas. O fenômeno nasce frente à crise do petróleo em 1973, com o avanço da tecnologia, a mecanização e robotização de postos de trabalho, a necessidade cada vez maior de desenvolvimento das comunidades econômicas, e, o aumento elevado do número do desemprego. Tais fatores levaram a uma “revisão” de algumas garantias (leis) trabalhistas, no intuito de recompor tais fatos. A necessidade nasce do dificultar das leis laborais, a falta de compatibilidade destas com o real momento econômico e profissional. Flexibilizar, portanto, é tornar a norma trabalhista mais flexível, adaptável à realidade profissional e econômica das partes, é possibilitar não a renúncia de um direito (garantia), mas sim o transacionar de forma direta entre as partes, sem a necessidade de estar à presença de um juiz, via processo, para que este o faça. Sem qualquer dúvida, o Direito do Trabalho nasce (período da Revolução Industrial), para ocupar função tutelar, de proteção do empregado do poderio econômico, mandos e desmandos de seu empregador, evitando que este seja absorvido pelo mercado profissional. Através de leis, o Estado impõe as partes (e Sindicatos) seus direitos, deveres e limitação, onde, na maioria das vezes restringe-se até demais a relação laboral. O nascimento da matéria se dá em um período muito diferente do atual, da mesma forma as Leis para o tema, a Consolidação das Leis do Trabalho é datada em 1943, possuindo em seu corpo alguns “remendos” na expectativa de se tornar um texto mais real e moderno.

Camila Maria Simião

Flexibilizar, é tornar possível às partes o transacionar, pode-se utilizar como exemplo a seguinte situação, através do texto Consolidado e também Constitucional, o salário do empregado só poderá ser reduzido em casos específicos e pontuais (crise) via negociação coletiva, em sendo, acordo ou convenção, contudo, como ficaria a situação de um empregado de uma empresa de pequeno porte, de um empresário individual, que não conseguiriam via negociação coletiva definir um prazo e disposições para tal redução? O mesmo, ante o princípio da indisponibilidade dos direitos trabalhistas, deverá ser despedido de suas funções, pois, transacionar – negociar, diretamente com seu empregador, seu ajuste salarial, não terá validade aos olhos do Direito do Trabalho. Evidentemente que, flexibilizar requer fiscalização, pois, nem todo empregado utilizando o exemplo acima teria condições plenas de transacionar sem ao final sofrer um prejuízo, ante a má-fé do empregador. Para tanto requer maior atividade sindical, atuação implacável do Ministério do Trabalho e Emprego, e, um aumento na carga de trabalho do Ministério Público do Trabalho. Ainda no exemplo, poderiam as partes interessadas, buscarem o Sindicato da categoria ou o Ministério do Trabalho e Emprego e, solicitando uma mesa de negociação narrarem os fatos, chegarem a um consenso e, ter a “reunião” reduzida a termo e homologada por um agente ou responsável destes órgãos, impondo assim a validade devida para tal redução, e, o devido acompanhamento para evitar que o empregado desprovido de informações, seja prejudicado por seu empregador. Infelizmente, a norma trabalhista não trata de tal possibilidade não deixando uma saída viável para resolução momentânea, salvo a demissão. Outro exemplo curioso que se discute é a chamada compensação de horas, de acordo com a Consolidação das Leis Trabalhistas (artigo 58 se ss.) a possibilidade é válida apenas para situações pontuais em casos extraordinários, já, em matéria sumulada (Súmula 85 do TST) quando a prática de horas extras é uma rotina da empresa e a mesma em conjunto com seus empregados deseje não pagar, mas compensar horas por horas, deverá ocorrer à intervenção sindical, através de uma negociação coletiva ao final, adesão individualizada de cada um dos empregados, enfim, uma maratona. Quando na verdade, de forma muito simples tudo poderia ser resolvido, com a apresentação de um documento, elaborado para cada empregado, com a adesão deste a prática de compensação (banco de horas) e, homologação no sindicato da categoria, o que não é válido se não existir uma norma coletiva amparando. Chega-se ao ponto de não somente proteger, papel primordial do Direito do Trabalho a figura do empregado, mas sim, de tratar este como alguém incapaz, dependente, pessoa sem vontade ou validade desta, pois, a figura do empregado descrita no artigo 3° da CLT – pessoa dependente, subordinada, pobre no sentido lato da palavra, há muito tempo mudou, não conseguindo as normas trabalhistas acompanhar esta mudança.

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Flexibilizar as normas trabalhistas é preciso, da mesma forma, saber distinguir a transação (indisponibilidade), da renúncia (irrenunciabilidade). Tanto um como outro, são negados as partes, válido apenas quando praticado perante a figura de um juiz trabalhista, que, imporia validade a tal desejo. Fala-se de plano em negativa, pois, caberia ao empregado transacionar, negociar apenas direitos cobertos pela indisponibilidade relativa que são poucos dentro do ordenamento trabalhista cita-se, abono de férias; pequenas compensações da jornada de trabalho; liberação do cumprimento ou indenização de aviso prévio e basicamente, para-se por aqui. Optando a norma trabalhista pela demissão do que pela flexibilização – transação de garantias. Assim, em detendo o Direito do Trabalho natureza privada, fundamentado no contrato de trabalho e no princípio da autonomia da vontade, a flexibilização se faz necessária em determinados casos (regras) para possibilitar a manutenção de postos de trabalho e vida empresarial, claro que, mantendo a intervenção estatal de modo a garantir que, o trabalho dignifique o homem, e mantenha as condições mínimas existenciais para o desempenho da função. Não se fala em renunciar ao recebimento de salários, mas sim, a possibilidade das partes negociarem, transacionarem diretamente uma adaptação deste a realidade, de forma momentânea, com a participação do ente sindical, evitando assim a demissão e o não fechamento da empresa. Até este ponto, debateu-se a questão do direito material e a possibilidade das partes diretamente, resolverem suas necessidades. Obstáculo maior, é enfrentado em casos de demissão, seja ela pedida ou aplicada pela empresa. Ainda com o vínculo empregatício, ante o princípio da indisponibilidade de direitos trabalhistas, ou se adapta a norma ou sendo inviável, restará à demissão do trabalhador, neste caso, inicia-se um novo problema. Poderá, entretanto, o trabalhador renunciar a seus direitos se estiver em juízo, diante do juiz do trabalho, pois nesse caso não se pode dizer que o empregado esteja sendo forçado a fazê-lo. Estando o trabalhador ainda na empresa é que não se poderá falar em renúncia a direitos trabalhistas, pois poderia dar ensejo a fraudes. É possível, também, ao trabalhador transigir, fazendo concessões recíprocas, o que importa um ato bilateral. Feita a transação em juízo, haverá validade em tal ato de vontade, que não poderá ocorrer apenas na empresa, pois, da mesma forma, há a possibilidade da ocorrência de fraudes. Em determinados casos, a lei autoriza a transação de certos direitos com a assistência de um terceiro. 4

Havendo pendências entre as partes da relação laboral isso após o vínculo empregatício, a doutrina fazendo irregular uso das disposições trabalhistas (artigos 4°; 444; e 468 da CLT) e, a falta de uniformidade da jurisprudência – Súmula específica para o tema impõe a busca ao Poder Judiciário Trabalhista para a resolução, pois, qualquer transação celebrada pelas partes, ou, homologada por Sindicato, Árbitro ou Comissão de Conciliação Prévia não teria validade 4 274 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 30 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p.73 e 74.

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caso o empregado renunciasse alguma verba em favor de outra, ou, até mesmo transacionasse valores. A dúvida latente é o fato de, se o empregado quer renunciar a uma verba em favor de outra, em sendo um direto seu (natureza privada), sendo este capaz para o ato, porque, somente o Juiz imporia validade ao desejo? De uma rápida e fria leitura, seria através dos poderes advindos da jurisdição e da má interpretação legislativa. O país está na contramão da celeridade, outros países a exemplo dos Estados Unidos utilizam e priorizam há anos os métodos alternativos de resolução da lide, como, mediação de conflitos; conciliação extrajudicial; arbitragem e, em especial ao Direito do Trabalho, o uso das Comissões, como as Comissões de Conciliação Prévia (art. 625-A da CLT e ss.). A mediação sequer possui um artigo, ou lei para defini-la e orientar sua utilização e aplicação, o que se tem, é o pioneirismo de alguns Tribunais que através de projetos, instituíram a prática em seu Estado ou região (cita-se Rio Grande do Sul e Santa Catarina). A arbitragem e sua previsão de “litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (Lei n° 9.307 de 1996, artigo 1°), ante a categorização do Direito do Trabalho como fundamental social, e, os princípios da proteção; irrenunciabilidade e indisponibilidade transfiguram-se quanto sua aplicação, pois, a doutrina não admite, já o Tribunal Superior do Trabalho, não é pacífico quando a utilização. ARBITRAGEM EM DISSÍDIOS INDIVIDUAIS. INVALIDADE. QUITAÇÃO GERAL DO CONTRATO DE TRABALHO. A jurisprudência desta Corte superior vem-se firmando no sentido de que é inválida a utilização de arbitragem, método de heterocomposição, nos dissídios individuais trabalhistas. Tem-se consagrado, ainda, entendimento no sentido de que o acordo firmado perante o Juízo Arbitral não se reveste da eficácia de coisa julgada, nem acarreta a total e irrestrita quitação das parcelas oriundas do extinto contrato de emprego. Precedentes desta Corte superior. Agravo de instrumento não provido. (Fonte: Tribunal Superior do Trabalho Processo: AIRR - 141000-13.2008.5.02.0006 Data de Julgamento: 12/11/2014, Relator Ministro: Lelio Bentes Corrêa, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 28/11/2014). ARBITRAGEM. APLICABILIDADE AO DIREITO INDIVIDUAL DE TRABALHO. QUITAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO 1. A Lei 9.307/96, ao fixar o juízo arbitral como medida extrajudicial de solução de conflitos, restringiu, no art. 1º, o campo de atuação do instituto apenas para os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Ocorre que, em razão do princípio protetivo que informa o direito individual do trabalho, bem como em razão da ausência de equilíbrio entre as partes, são os direitos trabalhistas indisponíveis e irrenunciáveis. Por outro lado, quis o legislador constituinte possibilitar a adoção da arbitragem apenas para os conflitos coletivos, consoante se observa do art. 114, §§ 1º e 2º, da Constituição da República. Portanto, não se compatibiliza com o direito individual do trabalho a arbitragem. 2. Há que se ressaltar, no caso, que a arbitragem é questionada como meio de quitação geral do contrato de

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trabalho. Nesse aspecto, a jurisprudência desta Corte assenta ser inválida a utilização do instituto da arbitragem como supedâneo da homologação da rescisão do contrato de trabalho. Com efeito, a homologação da rescisão do contrato de trabalho somente pode ser feita pelo sindicato da categoria ou pelo órgão do Ministério do Trabalho, não havendo previsão legal de que seja feito por laudo arbitral. Recurso de Embargos de que se conhece e a que se nega provimento (Fonte: Tribunal Superior do Trabalho E-EDRR-79500-61.2006.5.05.0028, Relator Ministro João Batista Brito Pereira, divulgado no DEJT de 30/3/2010).

As Comissões de Conciliação Prévia a cada dia passam a ser meros objetos do estudo teórico do Direito do Trabalho, pois, não mais se constitui como requisito da ação; perde força ante o engessamento dos princípios trabalhistas, deixa de ter eficiência, pois, sua instituição é facultativa, e, o título executivo advindo das mesmas é meramente liberatório. O pior drama é vivido pela conciliação, sendo para a prática trabalhista apenas judicial, a chamada endoprocessual, ou seja, a que ocorre dentro do processo, logo, este é observado como uma tutela inibitória as fraudes advindas de rescisões trabalhistas, pois, seriam apenas o processo e o juízo que o conduza capazes de privar as partes de práticas fraudulentas ou, a ocorrência de prejuízos ao empregado ante a expressa má-fé do empregador. A Consolidação das Leis do Trabalho, em seus artigos 846 e 850, narra os momentos que a conciliação deverá acontecer no processo do trabalho, contudo, não dispõe a obrigatoriedade que esta seja judicial, em sendo, não proíbe expressamente que as partes transacionem, ou além, que, após acordarem elaborem petição descrevendo tal acordo e, levem a juízo para mera homologação, já que, apenas pelas partes envolvidas não haveria validade jurídica. A Lei dos Juizados Especiais Cíveis (Lei n° 9,099 de 1995), sem impedimento de aplicação ao direito e processo do trabalho, até mesmo pela compatibilidade principiológica, narra em seu artigo 57 a seguinte disposição: Art. 57. O acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, poderá ser homologado, no juízo competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título executivo judicial. Parágrafo único. Valerá como título extrajudicial o acordo celebrado pelas partes, por instrumento escrito, referendado pelo órgão competente do Ministério Público.

Através da observância de tal dispositivo, teria-se o primeiro passo para a flexibilização de fato dos direitos trabalhistas, pois, dispensaria as partes já compostas, a distribuição de uma ação para Constituição do processo e futura audiência trabalhista para lavratura do acordo, simplesmente, as partes apresentariam uma petição descrevendo a composição e o juiz, uma vez observando a boa-fé das partes, homologaria o mesmo. Produzindo desta forma, um título executivo judicial, não passível de recursos (CLT, art. 831, parágrafo único).

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Manter esse engessamento, não pode dispor, só renuncia perante juízo, não há homologação de acordo extrajudicial... Mais parece a Justiça do Trabalho uma mãe relatando os limites de seu filho. Há muito tempo, a figura frágil e dependente do empregado mudou, a muito também modificou as relações de trabalho, hoje estar na empresa já não é um requisito para a prestação de serviços subordinada (trabalho remoto), a manutenção inabalável de princípios protecionistas, e o uso inadequado das normas estão levando ao fracasso das relações laborais, a extinção de postos de trabalho ante o medo da crise, em especial do processo. Forçar o trabalhador a buscar o Poder Judiciário, via processo, para obter a resolução adequada ao seu litígio, leia-se legal conforme manda o figurino, é tratar o trabalhador como incapaz, inclusive de escolher qual caminho adotar para percorrer e solucionar sua desavença, é romper com o direito fundamental da liberdade, do arbítrio conforme narra a Constituição Federal. O primeiro passo para a flexibilização de fato, é o uso dos dispositivos da Lei dos Juizados Especiais Cíveis quanto à homologação de acordo extrajudicial, próximo, é possibilitar as partes o exercício da autonomia da vontade de fato e direito, havida no estudo laboral, é manter um intervencionismo Estatal mínimo nas relações de trabalho e, acima de tudo, a pulverização da chamada “educação legislativa”, para tanto, muita coisa deveria ser mudada a começar pelo comportamento do “jeitinho brasileiro”, justificativa dos “porquês” a legislação trabalhista ainda é tão fechada, limitadora mesmo diante da modernidade que se encontra.

Conclusão O Direito do Trabalho nasce e mantém-se, com o firme propósito de proteção, tutelar a figura tida como mais fraca da relação laboral, em sendo o empregado, contudo, desde o seu nascimento até sua concepção (CLT 1943) muito mudou. A figura do empregado já não é a mais frágil e dependente de antes, a prestação de trabalho evoluiu e a subordinação em si, passa a ser questionada ante seus requisitos para análise, toma-se como exemplo a necessidade de estar na empresa para se receber ordens, hoje, o empregado pode em sua casa via e-mail receber as orientações e disposições sobre sua prestação laboral. A sociedade e as relações evoluíram menos o Direito do Trabalho, o texto legal especializado em sendo a Consolidação das Leis do Trabalho, sofreu e sofre algumas tentativas de modernização e aproximação com a atual realidade, v.g., o “novo” avisoprévio e o teletrabalho, disposições que, ao serem encaixadas na CLT se tornaram capengas, incompletas, ante ao arcaísmo do texto o qual foram inseridas. A manutenção da forma que se encontra da leitura, interpretação e aplicação dos princípios da indisponibilidade e irrenunciabilidade, levam ao atar de mãos das figuras empregado e empregador, que, por vezes se deparam em uma situação de crise, onde se há a necessidade gritante de ajustes e cortes, contudo, ante tais princípios se veem diante de poucas alternativas, convoca-se uma negociação coletiva (o que nem sempre será possível), ou, pela falta de possibilidade de ajuste e nova adaptação direto pelas partes, demite-se.

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Flexibilizar não significa perder o controle, mas sim, tornar-se adaptável a situação. Dar liberdade às partes não implica em trabalhar de graça, torna-se escravo no ambiente laboral, pois, se assim o fosse, não justificaria hoje com as normas vigentes ainda encontrar-se casos de exploração e redução análoga à condição de escravo. Flexibilizar é possibilitar as partes o conciliar entre si, é adaptar-se ao momento com a manutenção do posto de trabalho e não ter como opção única a demissão. Vale lembrar que, para flexibilizar é necessário educar as partes, preparar as mesmas para a compreensão mínima das normas, pois, o mínimo de intervenção Estatal sempre será necessário e, demonstrar a sociedade que, processo não é um santo remédio (conforme dito popular), mas sim, a conversa o acordo. Para isso, necessita-se também da real participação Sindical na vida de cada ente associado ou não e, a maior divulgação quanto às funções do Ministério do Trabalho e Emprego e Ministério Público do Trabalho. Não serão simplesmente livres as partes em transação, as mesmas deverão buscar tais órgãos para acompanhamento da negociação e, ao final o lavrar e homologar do bastante acertado. A flexibilização não prega a liberdade total e o mero ajuste verbal, há formalidades, burocracias necessárias para a manutenção do Direito do Trabalho e suas garantias seu status de direito fundamental social. Da mesma forma, a necessidade de aplicação do disposto na Lei dos Juizados Especiais Cíveis e o frear da interpretação errônea da CLT, no que diz respeito à conciliação obrigatória e judicial. A justiça do trabalho necessita de menos processo e mais celeridade, somente com a redução de distribuições de novas demandas isso será possível. É inconcebível a “obrigação” de se distribuir um processo para se obter um acordo homologado de forma válida. “Obrigar” as partes ao processo é unificar a jurisdição, dar super poderes ao magistrado, abarrotar o Poder Judiciário de novas demandas, retardar a solução, e acima de tudo, desprestigiar os métodos alternativos de resolução de conflitos. Deixar o empregado ou empregador sem ter escolhas é ceifar o livre arbítrio, escolher o método a ser adotado para resolver o litígio, é tratar o cidadão como um incapaz, incapaz de saber o certo ou errado, o que quer e o que não quer. Além, de esquecer que, a liberdade é um direito constitucionalmente previsto.

Referências bibliográficas

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Breve estudo sobre o Artigo 489, Parágrafo 2º, da Lei 13.105 de 2015 a partir da Teoria dos Princípios de Robert Alexy Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira1 Alexandre Ribeiro da Silva2 Resumo O presente artigo busca problematizar o artigo 489, parágrafo 2°, da Lei 13.195/2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil (CPC) no Brasil, a partir de concepções da Teoria dos Princípios de Robert Alexy, a qual adotamos como marco teórico, com breve análise da validade procedimental do Direito e as distinções entre regras e princípios. Palavras-chave: Ponderação; norma; regra; princípio; Robert Alexy. Abstract The present study aims to problematize the article 489, paragraph 2, of Law n. 13.195/2015, that establishes the new   Code  of  Civil Procedure  in Brazil, from the understandings of Robert Alexy in his Theory of Principles, which we adopt as  theoretical framework, with a brief analysis of the procedural validity of the Law and the distinctions between rules and principles. Keywords: Balancing; norm; rule; principle; Robert Alexy. 1

Jornalista e advogada. Possui Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010) e Graduação em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior (2013). É Mestre em Direito (Hermenêutica e Direitos Fundamentais) pela Universidade Presidente Antônio Carlos. Atualmente é mestranda no programa Direito e Inovação, na linha de pesquisa Direitos Humanos e Inovação, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa Pós-Graduação lato sensu em Direito Constitucional Aplicado no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associada ao Conselho Nacional de Pesquisa e PósGraduação em Direito (CONPEDI). 2 É advogado e professor de Direito, Literatura e Português. Possui Graduação em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior (2009), Graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010) e Pós-Graduação em Direito Processual pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011). Atualmente é mestrando no programa no programa Direito e Inovação, na linha de pesquisa Direitos Humanos e Inovação, na Universidade Federal de Juiz de Fora e cursa Pós-Graduação lato sensu em "Direito Constitucional Aplicado" no Complexo Educacional Damásio de Jesus.

Breve estudo sobre o Artigo 489, Parágrafo 2º, da Lei 13.105 de 2015 a partir da Teoria dos Princípios de Robert Alexy

Introdução Atualmente no contexto do pós-positivismo, quando se afirma que no Brasil vigora o Estado Democrático de Direito estamos defendendo uma construção política com um ideal de Estado regido por leis feitas em nome de todos e para todos, acima do simples arbítrio dos juízos dos homens. Para tanto, o Direito brasileiro vem, mesmo que vagarosamente, superando os paradigmas liberais e positivistas, ainda reconhecendo as normas como recurso máximo para dirimir conflitos e pretensões legais, mas também compreendendo que a aplicabilidade das mesmas, para que estas não sirvam ao arbítrio do poder ou a vontade de quem o detém, passa pela pacificação social a partir de decisões e sentenças racionalmente justificadas e embasadas nas garantias fundamentais, na dignidade da pessoa humana e na previsibilidade. O Direito, então, passa a ser visto como um sistema normativo limitado, abrindo-se espaço para o surgimento de teorias que expandem sua interpretação e deslocam a validade do mesmo para além do texto legal, concentrando-se em sua natureza essencialmente procedimental. O novo Código de Processo Civil surgiu deste clamor histórico de todos aqueles que operam o Direito, para que o mesmo como procedimento se realizasse com soluções racionais dos conflitos, em um contexto verdadeiramente democrático que levasse em conta todos as partes envolvidas no processo, essencialmente atrelado ao respeito aos direitos fundamentais, no menor tempo possível e realizando o interesse público da atuação da lei material. Não por menos, segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Luis Fux afirmou no anteprojeto do novo Código de Processo Civil que: Queremos justiça!!! Prestem-na com presteza; dizem os cidadãos. Sob o ecoar dessas exigências decantadas pelas declarações universais dos direitos fundamentais do homem, e pelas aspirações das ruas, lançou-se a comissão nesse singular desafio, ciente de que todo o poder emana do povo, inclusive o poder dos juízes, e em nome de nossa gente é exercido. A metodologia utilizada pela comissão visou a um só tempo vencer o problema e legitimar a sua solução. Para esse desígnio, a primeira etapa foi a de detectar as barreiras para a prestação de uma justiça rápida; a segunda, legitimar democraticamente as soluções. (p. 8, 2010)

Diversas são as inovações trazidas pelo texto, mas no presente artigo pretendemos problematizar o parágrafo 2º do artigo 489, que institui a ponderação pelo juízo na solução entre normas conflitantes, visando à racionalização das decisões e à diminuição do subjetivismo dos julgamentos. Para tanto, adotaremos como marco teórico a Teoria do Princípios de Robert Alexy3. 3

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ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. 2. ed.: Malheiros, 2011.

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Isto porque, apesar do evidente ganho democrático da inserção do presente dispositivo no sistema jurídico pátrio, a forma como o mesmo se apresentou escrito traz problemas sérios que podem acabar por invalidar sua própria aplicação. Sucintamente, o texto legal fala em conflitos de normas a serem resolvidos pela ponderação, mas não elucida a natureza destas normas, se as mesmas são normas princípios ou normas regras, como se o dispositivo se aproveitasse apenas em parte da teoria alexyana. É o que passaremos a analisar.

O Livre Convencimento Motivado versus a Ponderação de Alexy Por certo, há entre os detratores da aplicabilidade da ponderação em nossa legislação, a argumentação de que no novo CPC o procedimento estampado acabaria com o secular “livre convencimento motivado” do juiz, constante no ainda vigente CPC de 1973, o que atentaria contra a liberdade decisória e limitaria o papel dos nossos magistrados em meros reprodutores da lei positivada, o que certamente não se coaduna com a verdade. O Código de Processo Civil até então vigente estabelece, em seu artigo 131, que “o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento”. Ou seja, se reconhece a liberdade do julgador para apreciação e valoração da prova desde que o mesmo em suas razões exponha de seu convencimento. Nota-se patente, a grosso modo, que o juiz tem a liberdade de decidir conforme o seu próprio convencimento, sendo adstrito simplesmente a explicitar o porque de suas escolhas. Conforme o sistema vigente, o juiz se limita exclusivamente ao cumprimento da lei, pois sua decisão não pode ser contra legem, mas sua decisão segue um sistema próprio e de certo modo pessoal de valoração das provas de dos fatos do caso concreto. O princípio do livre convencimento motivado foi concebido como tentativa, ainda em tempos positivistas, de combate contra o convencimento puro, no qual o juiz não fundamentaria sua decisão, conhecido no ordenamento jurídico brasileiro, como regra geral, desde os tempos coloniais. Mas falha, uma vez que simplesmente exige que o juiz detalhe suas posturas e escolhas. Com o novo CPC, já instituído a partir de uma visão pós-positivista do Direito, a própria atividade de julgar do magistrado adota diversos novos parâmetros com a finalidade de retirar seu subjetivismo e privilegiando a racionalidade da decisão. Isso é patente com a valoração da prova que passa pelo exercício do contraditório cooperativo, em que as partes, através do cumprimento do adequado ônus argumentativo, influenciem na formação da convicção do magistrado e ainda a previsão de pré-requisitos de todas as sentenças, conforme previsão legal do artigo 489, § 1º, dentre tantos outros dispositivos.

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Certamente é acertada a escolha em um sistema que privilegie a racionalização em detrimento do livre convencimento motivado, pois representa uma superação do arbítrio judicial aceito pelo positivismo. Cria-se assim modelos e fórmulas que devem ser compatíveis com a previsibilidade necessária a todo sistema jurídico contemporâneo. Essa escolha fica ainda mais evidente a partir do momento que enxergamos a validade do próprio Direito como procedimental, conforme passaremos a demonstrar.

A Validade Procedimental do Direito Fazendo uma breve, mas pertinente, digressão, Trivisonno (2008, p.295) lembra-nos que no Jusnaturalismo a validade do Direito positivo derivaria da concordância ao Direito natural, sendo assim constituído de vali dade interna. Para os jusnaturalistas o que validava o Direito estava dentro dele mesmo, ou seja, o Direito quando aplicado era válido se concordasse com as regras prévias ditadas pelo Direito Natural e nele encontraria sempre uma única resposta correta para cada caso, se esquivando de justificação das mesmas ou atrelando a essas validades metafísicas e transcendentes. Esse raciocínio perdurou da Grécia Antiga até a Modernidade, pois tais sociedades seriam marcadas por sociedades extremamente homogêneas que encontrariam uma validade comum para todos do próprio Direito, uma vez que compartilhariam a mesma visão moral, as mesmas crenças e costumes. Assim, o Direito natural seria codificado a partir desta visão comum do mundo e a aplicação das normas estaria necessariamente atrelada à mesma, não existindo espaço para relativismo. Resta claro que tal visão não compactua com uma visão democrática e plural como a da sociedade contemporânea. Neste sentido: Em sociedades como a contemporânea, caracterizada por um pluralismo normativo sem precedentes, a defesa de um fundamento material seria arbitrária, pois significaria a imposição das visões de mundo de alguns ( ou de alguns grupos) sobre outros ( ou sobre outros grupos). No período posterior à Revolução Francesa, não foi por outra razão que começa o Direito natural a perder força, primeiro para dar lugar a um legalismo (século XIX) e depois para dar lugar a um Positivismo relativista (século XX).( TRIVISONNO, 2008, p.295)

A solução apontada pelo positivismo às demandas plurais da sociedade, ou seja, a validade do mesmo direito a ser aplicado em substratos sociais tão distintos, que não compartilham da mesma visão moral do mundo e tão pouco das mesmas crenças e costumes,teria que encontrar outro caminho se quisesse fugir da simples imposição de uma visão única de mundo atrelada ao absolutismo e totalmente oposta à Democracia contratualista nascida com a Modernidade. Essa resposta passou pela validade formal:

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Após o ataque ao Jusnaturalismo o Positivismo apresentou sua proposta: o fundamento de validade do Direito deve ser formal, como expressam, de modos diferentes, mas com alguma semelhança. A regra de reconhecimento de Hart e a norma fundamental de Kelsen. É bem verdade que os positivistas em geral consideram também a eficácia do Direito. É o caso tanto de Kelsen quanto de Hart. Porém, essa consideração não faz que o conceito de Direito deixe de ser, nos positivistas, formal, pois mesmo considerando a eficácia social do ordenamento, ele desconsidera o conteúdo deste ordenamento. (TRAVESSONI, 2008, p.295)

Certo é que a proposta positivista de validade formal acerta ao abarcar uma visão relativista do mundo, mas falha ao eleger a sua validade a uma ordem superior, seja a regra de conhecimento de Hart ou a norma fundamental de Kelsen. O Direito positivo, portanto, tinha o seu conteúdo determinado por outro Direito, de origem supostamente diversa do Direito positivo e que, por constituir em um paradigma ao Direito positivo, o vinculava e lhe prestava fundamento de validade. Assim, o Positivismo admitia que não existisse apenas uma única resposta correta ao caso concreto, mas ao invés de buscar uma correção na aplicação do Direito, a partir da aproximação com a Moral ou com a ideia de Justiça, se ocupou de garantir a validade das decisões e do próprio Direito à própria legalidade. E neste momento histórico, final do século XX, encontra-se Alexy com sua teoria pós-positivista tentando superar ambos e apresentar um conceito de validade de Direito que demonstre o conteúdo legítimo de uma ordem jurídica sem que este se evidencie como imposição de uma visão sobre outras. De outra forma, encontrar uma teoria de validade interna ao próprio direito, como já foi no Jusnaturalismo, e ao mesmo tempo, em que respeitasse uma lógica racional e formal que impediria o autoritarismo nas decisões, não atrelando sua validade a uma ordem superior apenas por legalidade. Neste sentido, a saída encontrada por Alexy e tantos outros pós-positivistas passa por um resgate do pensamento kantiano elegendo a validade do Direito como procedimental. Assim, A validade procedimental pode superar os problemas apresentados na antinomia acima referida. Com o |Jusnaturalismo e contra o Positivismo, (i) a validade procedimental constitui um critério que não é meramente formal, isto é, que tem algo a dizer sobre legitimidade dos conteúdos da ordem jurídica e, por outro lado, (ii) com o Postivismo e contra o Jusnaturalismo, ela não é material, pois não determina previamente conteúdos através de uma ordem material. O embrião do procedimentalsimo está, a meu ver, na filosofia prática de Kant. (TRIVISONNO, 2008, p.297)

Porém, Kant, em sua Metafísica dos Costumes, no qual trata da natureza procedimental dos deveres do Direito, os concebe como perfeitos e estritos,

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significando que os mesmos não admitiriam exceções, pois específicos. Importa aqui ressaltar que o próprio Kant adota o Direito com validade procedimental e não compartilha da visão absolutista jusnaturalista, na qual o Direito seria Direito se atendesse às normas de origens quase que sobrenaturais. No entanto, o modelo kantiano ocupa-se em depurar os deveres do Direito separando-os dos deveres da moral, estes sim imperfeitos e vinculados a uma casuística. Seu conceito de Direito exige ao contrário precisão matemática, ou seja, encontrar-se-ia na aplicação a norma e subsumiria o fato a esta, chegando assim à solução (TRIVISONNO, 2014, p. 3). Ora, se levássemos a cabo o entendimento kantiano o Direito ignoraria variáveis e pertinências da própria realidade que nos cerca, sendo impraticável a argumentação. O modelo de Kant poderia ser assim denominado de modelo da perfeição. Evidentemente essa ideia de perfeição já foi superada pelos próprios positivistas, quando tanto Hart quanto Kelsen apontam o fato de que uma norma aplicada a um caso concreto levaria para a impossibilidade de apenas uma única resposta, sendo, portanto o modelo da lei imperfeito. Existe uma relativa indeterminação, o que já contrariaria o modelo kantiano. Mas a solução encontrada pelos positivistas passa pela interpretação das normas a fim de se encontrar uma resposta para o caso concreto, ainda que esta não fosse a resposta correta. Assim o modelo positivista é incompleto (TRIVISONNO, 2014, p.7) pois não enxerga que a indeterminação na aplicação do Direito poderia ser resolvida por uma metodologia argumentativa, como a proposta por Alexy, o que levaria a uma resposta mais correta e próxima de uma idealidade de perfeição kantiana. Não, o modelo positivista simplesmente busca na validade formal da norma a subsunção da mesma. Assim, encontrada as premissas formais dentro do sistema aplica-se a norma ao caso, desconsiderando se a resposta é moralmente aceitável ou justa, desde que dentro do filtro da legalidade é aplicável e válido. Ainda, e talvez o mais relevante, o positivismo não apresentou solução quando da colisão ou oposição de normas. Interessa-nos principalmente o ponto em que chegamos, pois justamente é o dilema que Alexy encontrou e trabalhou: o desenvolvimento de um modelo de aplicação do Direito que não seja tão indeterminável e imperfeito, como o dos positivistas,e também que não encare o Direito como um modelo perfeito e matemático como Kant. Para Alexy, e aqui seu maior acerto, as decisões devem encontrar sua validade na própria argumentação, ou seja, um direito como procedimento, levando em conta os fatos trazidos pelo caso concreto e atrelados necessariamente a reflexão conjunta com a Moral, a dogmática e o ideal de Justiça a partir de um discurso prático. Para ele, sendo imperfeito o Direito,como realmente se demonstra, é claro que o mesmo deva ser depurado. Assim é inconcebível para Alexy que o Direito apresentasse uma única resposta correta materialmente alcançável, o mesmo teria que passar por uma argumentação a fim de obter validade em sua aplicação.

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Assim, a ideia de se buscar uma resposta correta no caso concreto, não uma única, passa por uma noção procedimental do próprio Direito, isto é, metodologicamente pensada como discurso no mundo real.Essa noção procedimental do Direito é o cerne da sua Teoria Discursiva do Direito. De forma sucinta, Alexy leciona que: Como já observado, constitui o esqueleto das minhas reflexões um modelo procedimental de quatro níveis, que eu primeiramente quero apresentar e então explicar. No primeiro nível encontra-se o procedimento do discurso prático, que de agora em diante será denominado, como delimitação em relação a outras formas do discurso, “discurso prático geral” (Pp). No segundo nível esta colocado o procedimento de produção estatal do direito (Pr), no terceiro o procedimento da argumentação jurídica ou o discurso jurídico (Pj), e no quarto procedimentos, os da produção estatal do direito e do processo judicial, trata-se de procedimento institucionalizados, sendo que a expressão institucionalização significa a regulamentação do procedimento através de normas jurídicas. (2014, p.86)

Aprofundamento um pouco mais, para Alexy, o Direito tem validade procedimental porque é a prática discursiva que almeja através da argumentação alcançar da melhor resposta possível. O Direito, por conseguinte, é um caso especial de discurso prático geral. Portanto, “O discurso jurídico se distingue do discurso prático geral através de seus vínculos. Nele não se pergunta qual a solução absolutamente mais racional, mas qual a solução mais racional no sistema jurídico” (ALEXY, 2014 p.88). E ainda, De importância central para isso é a ideia de que o discurso jurídico é um caso especial do discurso prático geral. O que os discursos jurídicos têm em comum com o discurso prático geral consiste em que, em ambas as formas de discurso, trata-se da correção de enunciados normativos. Fundamentar-se-á que tanto a afirmação de um enunciado prático geral, como com a afirmação ou pronunciamento de um enunciado jurídico levanta-se uma pretensão de correção. No discurso jurídico, trata-se de caso especial, porque a argumentação jurídica ocorre sob uma série de condições limitadoras. Entre essas, devem-se mencionar especialmente a sujeição à lei, a consideração obrigatória de precedentes, seu enquadramento dogmático pela Ciência do Direito organizada institucionalmente, assim como- o que não concerne, todavia, ao discurso científico-jurídico - as limitações das regras do ordenamento jurídico.

Simplesmente a partir desta elucidação entende-se que o Direito, por ser caso especial, distingue-se do próprio discurso prático e isso se dá, muito resumidamente, à necessária vinculação à lei, ou seja: o Direito tem validade procedimental,natureza argumentativa e é discurso prático especial necessariamente vinculado à dogmática jurídica.

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De tal sorte, o resgaste destas simplórias reflexões importa-nos para demonstrar que a validade do Direito e, desse modo, sua força impositiva na própria sociedade decorre de um necessário rigor quanto à forma em que se dá sua procedimentalidade, devido à necessária vinculação à lei conforme a mesma se encontra escrita, afinal é a partir da forma que adotamos o procedimento necessário à persecução da justiça.

O Artigo 489, Parágrafo 2º, do Novo Código de Processo Civil Primeiramente, segue o artigo4 em análise na íntegra: Art. 489. São elementos essenciais da sentença: I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2o No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. § 3o A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé. (grifo nosso)

Observa-se que, pela redação do artigo, ainda no caput informa-se que os elementos seguintes são elementos essenciais da sentença, ou seja, vincula4

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BRASIL. Senado Federal. Lei nº 13.105 de 16 de Março de 2015: Código de Processo Civil. Disponível em: . Acesso em: 07 de julho de 2015.

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setodas as decisões que envolvam resolução de mérito, inclusive e principalmente as de 1ª instância. O artigo destacado em si apresenta grande avanço processual por exigir expressamente dos juízes, ao emitirem sua decisão,fundamentação demonstrada e legítima. Ainda, uma das grandes mudanças em relação à legislação anterior é justamente esta a obrigatoriedade que se exige e que se coadunacom o previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. Ora, é cristalino que o presente parágrafo tem inspiração na Teoria dos Princípios de Robert Alexy, uma vez que institui a ponderação, expressamente grafada no parágrafo, como forma de solução a ser adotada em colisão entre normas. Só que no mesmo parágrafo que inova também reside o maior problema. O parágrafo 2º do artigo 489 do novo CPC fala em “normas”, mas não as distingue em princípios ou regras, desconsiderando, portanto parte fundamental da Teoria dos Princípios de Alexy, o que pode gerar transtornos e dificuldades de aplicação do mesmo levando a um grande retrocesso Conforme passaremos a demonstrar, só se fala em ponderação ao existir conflito entre princípios, não sendo a mesma adotável quando se tratar do conflito entre regras, e tal distinção, apesar de se demonstrar óbvia para quem estuda o pensamento de Alexy, não é necessariamente claro para os que não estão familiarizados. Ainda, a força do Direito reside na instrumentalidade precisa de suas formas jurídicas em um discurso prático específico. Portanto, o descuido e a imprecisão, por mais que se trate de simples e palatável erro de grafia, pode gerar consequências danosa no próprio aplicar do Direito, retirando toda a validade do instituto que se pretende estatuir.

Distinções entre Normas como Regras ou Princípios Entendendo a relevância da natureza procedimental para a correta aplicação do Direito, neste instante importa destacar as verdadeiras distinções entre regras e princípios, como espécies do gênero norma, e o porquê da pertinência de se acentuar exatamente a que se refere o artigo 489, parágrafo 2º da Lei 13.105 de 2015 e destacar ainda mais o seu erro material. A hermenêutica jurídica tradicional sempre utilizou de critérios como generalidade ou abstração para distinguir entre regrase princípios. Considerando a pluralidade e a inconsistência destas distinções, Alexy (2011, p.89) reflete que existiriam basicamente três teses sobre a distinção entre regras e princípios. Uma primeira que defenderia a impossibilidade de divisão das normas em regras e princípios, devido à pluralidade existente. Já a segunda tese sustenta haver uma distinção relevante entre regras e princípios, mas essa distinção seria de gradação de generalidade entre ambos. Dos defensores da distinção a partir de um suposto grau de generalidade, princípios seria normas com grau de generalidade relativamente alto enquanto o grau de generalidade das regras seria relativamente baixo (2011, p.87).

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Por fim, a terceira afirma que as normas podem dividir-se em regras e princípios, porém a diferença não é meramente gradual, mas também qualitativa. Esta é a que Alexy considera a correta. Para o jus filósofo, regras e princípios são espécies de normas. Nesse sentido: Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízo concretos de dever-ser, ainda que de espécie muito diferente. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção entre duas espécies de normas. (2011, p.87)

Mas ambas são construções estruturais distintas e o que as diferencia é a fundamentação de ambas as construções dentro de sua Teoria de Princípios, que se sustenta justamente nas implicações desta distinção. Para o caso em tela resta-nos salientar que seriam princípios os direitos fundamentais constitucionais, que se entenderiam por mandamentos de otimização em sentido amplo, incluindo permissões e proibições, com grau de generalidade relativamente alta. Ou seja, ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas, podendo ser satisfeitos em graus variados de acordo com o caso concreto, razão da dificuldade de racionalização quando mais de um se opõem. Ainda em seu raciocínio, os princípios seriam prima facie (ALEXY,2011, p.103), uma vez que exigiriam que alguma coisa fosse feita na maior medida dentro das possibilidades, não se delimitando a mandamentos definitivos, é dizer, seriam razões que podem ser afastadas por razões antagônicas, motivo pelo qual não é raro encontrar a oposição entre tais direitos que só se solucionam através da hermenêutica e da praxe forense. Com a visão de se racionalizar este sistema de direitos fundamentais de tão ampla aplicabilidade o doutrinador ampara-se em sua teoria a partir de duas leis complementares: a Lei de Colisão e a Lei do Sopesamento. A Lei de Colisão busca racionalizar os interesses envolvidos e seus pesos nas condições fáticas a fim de descobrir qual a consequência jurídica no caso concreto. Para tanto, a forma como duas razões em oposição deva ser solucionada não passa pela extensão do conteúdo normativo das mesmas. Alexy a descreve do seguinte modo: Essa lei, que será chamada de “lei de colisão”, é um dos fundamentos da teoria dos princípios aqui defendida. Ele reflete a natureza dos princípios como mandamentos de otimização: em primeiro lugar, a inexistência absoluta de precedência e, em segundo lugar, sua referência a ações e situações que não são qualificáveis. (2011, p.99)

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Melhor explicando, a Lei de Colisãoconclui que quando princípios colidem um deverá ceder em detrimento do outro no caso concreto tratado, não sendo

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declarado inválido e nem tendo introduzida uma cláusula de exceção em seu conteúdo. Para elencar as condições que gerariam a precedência, o jurista adotaria a Lei do Sopesamento, tendo obrigatoriamente que obedecer às três máximas parciais da mesma: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade, que decorrem logicamente da natureza dos próprios princípios, implicando na denominada máxima da proporcionalidade (ALEXY, 2011, p.106). Já o seu entendimento de regras perpassa a ideia de normas que possuem um mandamento definitivo, ou seja, emitem comandos, proibições ou permissões de forma definitiva. Neste sentido, Alexy (2014, p.146) aduz que: A forma de sua aplicação é a subsunção. Quando uma regra é válida é comandado fazer exatamente aquilo que ela exige. Se isso é feito, a regra é cumprida; se isso não é feito, a regra não é cumprida. Assim, regas são normas que sempre podem somente ser cumpridas ou descumpridas.

Destarte, resumidamente,as regras, de acordo com Virgílio Afonso da Silva ( 2103, p.611) “ao contrário dos princípios, expressam deveres e direitos definitivos, ou seja, se uma regra é válida, então deve se realizar exatamente aquilo que ela prescreve, nem mais, nem menos”. Segundo Alexy (2011, p.92), quando há oposição entre regras, fala-se de conflito que adotará a seguinte solução: “se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada invalidada”. Diante das distinções apresentada resta evidente que a correta interpretação do artigo 489, parágrafo 2º do novo Código de Processo Civil, quando o mesmo utiliza o termo “norma” como objeto de ponderação, na realidade estaria se reportando a princípio, conforme concluiremos a seguir.

Conclusões A intenção de Robert Alexy, a partir de uma perspectiva pós-positivista, ao elaborar sua teoria, pauta-se fundamentalmente em duas questões principais: o conceito e a aplicação do Direito em contextos de ordem democráticas. E, especificamente ao tratar da separação de normas que se subdividem qualitativamente entre regras e princípios, de acordo com na medida em que podem e devem ser aplicadas, o jusfilósofo alemão construiu um modelo preocupado com a aplicação do Direito como ciência racional, prática e procedimental. Em outras palavras, o Direito é de validade procedimental e por tal razão adotamos procedimentos, no caso brasileiro processuais, que garantem sua validade formal e ao mesmo tempo usamos de argumentação, pois é a partir desta que atingimos a sua validade material. É o procedimento como caráter que

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garante ao Direito atingir a ambas as validades e, portanto, é necessário extremo rigor científico para a perfeita aplicação deste procedimento. Deste modo a interpretação do termo norma, constante no artigo 489, parágrafo 2º, do novo CPC, poderia ser a partir de três posicionamentos distintos: normas como aquelas que abarcam tanto regras como princípios, normas somente entendidas como regras e, finalmente, da maneira correta, norma como princípios exclusivamente. Se adotarmos o entendimento que o referido dispositivo legal entende que o juiz deva em caso de colisão entre normas, entender as mesmas a partir de uma ideia generalista, que abarcasse tanto normas princípio como normas regras, estaríamos então adotando um novo entendimento, que não perpassaria por toda construção racional e precisa demonstrada por Alexy. Isso porque se abriria espaço para o aplicador utilizar do dispositivo da forma que achasse pertinente, sem se preocupar em atender a nenhuma das premissas e distinções qualitativas entre as duas espécies de normas. Ou seja, o parágrafo 2° perderia totalmente seu propósito de racionalizar as decisões judiciais, voltando novamente ao subjetivismo do juiz. Uma vez que adotemos o entendimento de que as normas referemse somente a normas regras, o presente parágrafo está incorreto em toda sua integralidade e, portanto, deve ser ignorado ou suprimido de pronto. Isto porque um suposto afastamento de uma norma regra por oposição a outra poderia, no mínimo, resultar em decisões confusas ou contra legem,uma vez que a regra, conforme já demonstrado, ou é aplicada ou não se existirem as exceções, não cabendo ao arbítrio do juiz afastar uma regra por outra em detrimento de simples razões. Atentaria contra a própria noção de segurança jurídica. Evidentemente, a única aceitável de se entender o termo “norma” é como “norma princípio”, uma vez que somente por sua natureza é passível de um “afastamento” em relativo caso concreto a partir da sobreposição de outro princípio conquistada por uma argumentação racional no ato de julgar do magistrado. Ou seja, a partir de um extenuante raciocínio argumentativo e prático, ligado tanto ao que diz o princípio quanto aos elementos trazidos pelo caso concreto, o juiz apresentará as consequências e os ganhos do afastamento de um princípio por outro naquele caso e o porque de assim ter decidido. E isso só seria possível a partir de uma ideia de grau de afetação, o que é incabível com a ideia de regra, conforme demonstrado. E ainda, somente diante de um demonstrado conflito de princípios, sem que qualquer um deles seja retirado do sistema, o aplicador do Direito deve fazer uso da técnica da ponderação. A aplicação da ponderação nada mais é do que a solução do caso concreto de acordo com a máxima da proporcionalidade. Destarte, a inserção da ponderação no novo Código é reflexo da preocupação dos legisladores com a qualidade das decisões jurídicas, o que só seria alcançável pela perspectiva Alexyana se enxergarmos a ponderação complementarmente com uma argumentação racional também de qualidade. Somente assim, a decisão que surja do processo teria validade e seria racionalmente justificada.

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O próprio modelo tem que ser baseado em conceitos definidos, sem ambiguidades conceituais, com premissas construídas e debatidas em critérios prévios e racionais que demonstraria sua expectativa de desvencilhar a aplicação do Direito do subjetivismo e, porque não dizer, do autoritarismo, dotando-o de estabilidade, lastro e racionalidade alcançando justamente a segurança jurídica almejada em qualquer regime democrático. Um erro material, como o do caso em tela, não pode ser simplesmente ignorado, pois pode levar a incompreensões que acabam por desvalidar o próprio procedimento e, portanto, desconstituído o próprio Direito, que tem sua validade intrinsecamente atrelada à sua aplicabilidade, o que o sustenta como poder legitimo a uma Democracia.

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Invertendo Valores: Entre a Lógica Mercadológica, a Moralidade e o Dever Cívico – Reflexões sobre o Princípio do Poluidor-pagador no Direito Ambiental Raphael Villela1 Júlia Massadas2 Resumo O presente artigo visa analisar se o denominado princípio do poluidor-pagador – consubstanciado na obrigação do poluidor de arcar com as despesas decorrentes da degradação ambiental por ele ocasionada – é eficaz enquanto medida inibidora da poluição. A hipótese levantada é de que o referido princípio possui limitações na efetivação do objetivo almejado. Conclui-se que devido à inversão de valores provocada pela imposição de multas pecuniárias aos poluidores, o princípio do poluidor-pagador pode ocasionar justamente o que ele foi criado para inibir: o aumento de danos ambientais. Palavras-chave: Princípio do poluidor; pagador; dano ambiental; sociedade de mercado. Abstract This article aims to analyze if the polluter pays principle – that is present in the obligation of the polluter to pay for the environmental degradation generated by him – is efficient as an inhibitor measure of the pollution. The hypothesis raised is that this principle has limitations in the effectiveness of the aimed objective. As a conclusion, it follows that because of the inversion of values caused by the imposition of taxes to the polluters, the polluter pays principle may cause exactly what he was created to extinguish: the increasing of environmental damages. Keywords: Polluter pays principle; environmental damage; market society. 1

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Pós-graduando stricto sensu (Mestrado) em População, Território e Estatísticas Públicas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE). Pós-Graduando lato sensu (Especialização) em Análise Ambiental e Gestão do Território pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE). Geógrafo e Professor de Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: [email protected] Graduanda em Direito na Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Bolsista do programa “Jovem Pesquisador(a)” da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito Rio), realizando pesquisas no Centro de Justiça e Sociedade (CJUS). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa sobre Epistemologia Aplicada aos Tribunais, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ (PPGD/UFRJ) e do grupo de pesquisa: “Argumentação jurídica, instituições e aspectos constitucionais da regulação”, vinculado à Fundação Getúlio Vargas (FGV-Direito Rio). E-mail: [email protected]

Invertendo Valores: Entre a Lógica Mercadológica, a Moralidade e o Dever Cívico – Reflexões sobre o Princípio do Poluidor-pagador no Direito Ambiental

Introdução A questão motivadora a qual se pretende responder neste trabalho é resumida na seguinte pergunta: o princípio do poluidor-pagador aplicado no direito ambiental brasileiro se constitui em uma medida eficaz para a inibição do dano ambiental? A hipótese aqui suscitada é a de que o princípio do poluidor-pagador apresenta limitações como medida inibidora do dano ambiental. O presente trabalho tem como objetivo analisar as limitações do princípio do poluidor-pagador como medida inibidora dos referentes danos ambientais. Os procedimentos metodológicos adotados para a realização desta pesquisa consistiram, em primeiro lugar, na análise da teoria econômica de tradição neoclássica que fundamenta o princípio do poluidor-pagador; em segundo, na apresentação de críticas filosóficas à aplicação do princípio do poluidor-pagador; em terceiro, na revisão dos princípios norteadores do direito ambiental brasileiro, em especial do princípio do poluidorpagador; e, em quarto lugar, apresentamos as críticas relativas à compatibilidade do princípio do poluidor-pagador com a lógica do direito ambiental brasileiro. Posteriormente, analisamos a questão do dano ambiental causado pela siderúrgica TKCSA no distrito industrial de Santa Cruz, na cidade do Rio de Janeiro, afim de obtermos uma evidência empírica para a hipótese aqui defendida.

Soluções Econômicas para os Problemas Ambientais Segundo a teoria econômica de tradição neoclássica, a solução para os problemas ambientais se dá através da criação de um mercado para que poluidores e vítimas da poluição possam negociar, via mecanismo de preços, o nível ótimo de poluição. Entretanto, tal mecanismo somente será eficiente se os direitos de propriedade forem bem definidos. Assim, a vítima da poluição poderia trocar parte do seu direito de usufruir de um ambiente não poluído por uma quantia em dinheiro que seria pago pelo poluidor (LUTOSA & YOUNG, 2013). A questão central que emerge desta negociação privada é quanto cada agente estaria disposto a comprar ou vender neste mercado. Em outras palavras, quanto o agente poluidor (A) estaria disposto a pagar ao agente que sofre com a poluição (B) para que este tolere a poluição, ou ainda, quanto B estaria disposto a pagar para A para que este não polua. Assim, quando alcançada a igualdade entre oferta e demanda via mecanismo de preços há, portanto, um resultado eficiente no sentido de Pareto3 (VARIAN, 2006). 3

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Princípio elaborado pelo economista italiano Vilfredo Pareto (1848-1923). Uma alocação eficiente no sentido de Pareto é aquela em que nenhum consumidor pode melhorar a sua situação sem piorar a do outro (VARIAN, 2006). Contudo, isso não quer dizer que a alocação eficiente no sentido de Pareto seja necessariamente justa do ponto de vista social, pelo contrário, pode ocorrer uma situação em que um agente A detenha toda a quantidade de um bem disponível, enquanto que um outro agente B não possua absolutamente nada, ainda assim estaremos diante de uma situação eficiente no sentido de Pareto, pois não é possível melhorar a situação de B sem piorar a de A, embora essa distribuição seja injusta do ponto de vista social.

Raphael Villela e Júlia Massadas

Todavia, em termos práticos os problemas relacionados às externalidades (poluição) derivam, segundo o Teorema de Coase4, da má definição dos direitos de propriedade5, ou seja, o agente poluidor pode crer que possui o direito de poluir, enquanto que o agente que sofre com a poluição, por sua vez, pode acreditar que possui o direito de usufruir de um ambiente não poluído. Para Ronald Coase, a definição clara dos direitos de propriedade possibilitaria a criação de um mercado de compra e venda destes direitos, havendo, portanto, uma solução privada para o custo social produzido pela atividade poluidora, sem a necessidade de regulação estatal6 (COASE, 1960). A preocupação central para Ronald Coase é evitar o prejuízo mais grave, pois para ele este problema seria caracterizado por uma natureza recíproca, ou seja, se A causa um prejuízo B, logo é natural supor que a prática de A deveria ser coibida. No entanto, ele argumenta que esta causalidade é equivocada, pois ao evitar o prejuízo causado a B, o agente A seria prejudicado. Portanto, para ele a decisão eficiente é aquela que identifica qual dos dois agentes sofreria o maior dano, A ou B (COASE, 1960). Tomemos agora um exemplo clássico que trata da questão das externalidades7, entre uma usina siderúrgica e uma empresa de pesca. Vamos supor que A é proprietário de uma usina siderúrgica e que a sua produção de aço também gera uma determinada quantidade de poluentes que são lançados sem tratamento em um rio. E o agente B é proprietário de uma empresa de pesca localizada à jusante, sendo, portanto, afetado pela poluição causada por A que diminui ou até mesmo extingue a população de peixes no rio. Portanto, para Ronald Coase, se o efeito da poluição causada por A é a diminuição ou a extinção da população de peixes, logo o que deve ser decidido é se o valor da população de peixes mortos é maior ou menor do que o valor da produção da atividade poluidora, ou seja de aço. Finalmente, para Coase este valor precisa ser quantificado tanto em sua totalidade (custo total), quanto na margem (custo marginal) (COASE, 1960). Todavia, antes de avançarmos na discussão cabem aqui algumas reflexões: quais são as consequências ao extrapolarmos este modelo teórico concebido para um litígio entre dois indivíduos, para o conjunto da sociedade? A sociedade 4

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Ronald Coase, prêmio Nobel de Economia em 1991, por sua contribuição no trabalho intitulado: “O problema do custo social”, publicado em 1960. A má definição dos direitos de propriedade levaria à ineficiência, ao que ficou conhecido na literatura econômica como “A Tragédia do uso Comum”, assim a propriedade seria sobreutilizada, sendo esta uma forma particularmente predominante de externalidade (VARIAN, 2006). Coase apenas admite a intervenção estatal, nos casos em que os custos de transação sejam consideráveis, como quando na necessidade de contratação de advogados e especialistas, de reunião de todas as vítimas e etc. (LUTOSA & YOUNG, 2013). As externalidades representam os custos sociais não internalizados na “função custo” do agente, quando este custo é internalizado esta ação deixa de ser uma externalidade para ser apenas um impacto.

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Invertendo Valores: Entre a Lógica Mercadológica, a Moralidade e o Dever Cívico – Reflexões sobre o Princípio do Poluidor-pagador no Direito Ambiental

representa um simples somatório das preferências individuais ou, pelo contrário, resulta de uma complexa combinação entre as preferências individuais existentes? Será que os indivíduos tomam decisões estritamente racionais? As informações estão disponíveis de maneira simétrica ou assimétrica entre os indivíduos? O dano ambiental está restrito a uma única escala geográfica ou, pelo contrário, ele assume múltiplas escalas geográficas? Qual é a escala temporal do dano ambiental causado, pode ele ultrapassar a escala de vida humana perdurando por gerações? Frente às questões mencionadas, os economistas passaram a observar que o mecanismo de mercado proposto pode não funcionar de maneira adequada, quando o dano ambiental não é facilmente identificado, causando prejuízos à sociedade. Estes danos são considerados como externalidades. As externalidades são entendidas como os danos a terceiros que não são quantificados via mecanismo de preços e que, portanto, não podem ser “equilibrados”, a partir dos mecanismos de mercadológicos (VARIAN, 2006). Consequentemente, devido a falha de mercado, cabe ao Estado a correção do problema das externalidades, através da implementação de mecanismos de controle e de uma regulamentação mais rígida; ou ainda, através de estímulos para boas práticas que podem se dar na forma de subsídios. A solução usualmente proposta é a criação de um imposto/taxa sobre o agente que exerce a atividade poluidora de forma a coibi-la, esse imposto é conhecido na literatura econômica como imposto pigouviano8. É daí que surge o princípio do poluidor-pagador (VARIAN, 2006). Em termos econômicos a aplicação do princípio do poluidor-pagador significa que os custos sociais derivados da produção ou do consumo de um bem (ou recurso) sejam computados na função de produção do agente que se beneficia da prática poluidora. O objetivo é, portanto, que estes custos gerados sejam contabilizados privadamente pelo agente poluidor, evitando, assim, a socialização destes custos por meio das externalidades que foram geradas pelo poluidor9, alcançando finalmente o ótimo social (LUTOSA & YOUNG, 2013). 8

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Arthur Pigou (1877-1959), economista britânico propôs a tributação do poluidor, com o objetivo de garantir que o custo total da poluição fosse computado na decisão do poluidor. O poluidor, por sua vez, transferiria os custos adicionados pelo imposto aos consumidores que decidiriam adquirir, ou não, o produto aos novos preços. Entretanto, como salientado por Pigou a estimação correta o custo real da poluição não é trivial. Seus argumentos estão expostos na obra “The Economics of Welfare”. Microeconomicamente, isso quer dizer que as curvas de custo dos que são geradores da emissão não incorporam plenamente todos os custos envolvidos (Cmg1) e por isso as quantidades produzidas (Q1) excedem o nível de ótimo social (Q2). Qual a solução para esse problema? Fazer com que o poluidor incorpore as externalidades, ou seja, os custos sociais também devem ser adicionados ao custo marginal privado, fazendo com que a curva de custo marginal se desloque para a esquerda (Cmg2). Assim, a fim de que o poluidor incorpore as externalidades, o custo marginal a ser considerado deve ser Cmg2 e a quantidade produzida deve ser menor, atingindo o ótimo social em Q2. Este é o princípio do poluidor-pagador (LUTOSA & YOUNG, 2013: 345).

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O ótimo social simboliza o ponto no qual o custo de produzir um determinado bem, cuja atividade produz degradação ambiental, seria internalizado pelo agente poluidor. Consequentemente, haveria um novo nível de preços (p’) maior do que o de equilíbrio (p*) que induziria o agente poluidor a diminuir a produção deste bem de forma a encontrar um novo ponto de equilíbrio entre demanda e oferta – haveria um deslocamento para a esquerda da curva de oferta – e a interseção entre este novo nível de preços (p’) e a nova quantidade produzida (q’) representaria o ponto de ótimo social (VARIAN, 2006). Entretanto, em termos práticos pode ocorrer justamente o contrário. É esta a reflexão que nós desejamos promover neste trabalho, pois a multa aplicada ao poluidor pode representar uma sinalização de que a prática poluidora é moralmente aceita desde que o mesmo pague o valor da multa sem a necessidade, portanto, de extenuar o dano ambiental causado. Assim, a partir de que ponto a lógica mercadológica quando estendida à mais diversas esferas da vida social é capaz de gerar uma inversão de valores éticos e de deveres cívicos?

Inversão de Valores Entendida a corrente econômica neoclássica, cabe tecer algumas críticas à sua aplicação e à inserção do princípio do poluidor-pagador – que opera com uma lógica mercadológica – em um sistema jurídico que busca fomentar a sustentabilidade. Para tanto, é preciso refletir sobre as diferenças entre ter uma economia de mercado e ser uma sociedade de mercado. A primeira, seria um mecanismo de organização da economia e que trouxe inegáveis benefícios materiais para a sociedade. O problema decorre quando o mecanismo de mercado passa a dominar as relações sociais de tal forma que a ética é desconsiderada. É preciso delimitar os limites morais do mercado, ou seja, quais são as atividades que nós, enquanto sociedade, não desejamos que sejam mercantilizadas (SANDEL, 2012). Ao aplicarmos a teoria de Michael Sandel à questão da taxação do poluidor, identificamos que a lógica dos mercados, quando estendida às demais esferas da sociedade não é capaz de coibir a prática poluidora. Isso porque, o custo econômico adicionado como medida coatora, se utilizado indiscriminadamente, pode gerar um aumento dos níveis de poluição. Consequentemente, os atores econômicos que dispõem de mais recursos podem vir a perceber a atividade poluidora como um direito que pode ser comprado. Assim, de acordo com Michael Sandel, a perversidade da lógica de taxação do poluidor consiste no esvaziamento do dever cívico de preservar a qualidade ambiental, dando lugar à uma lógica de mercantilização da biosfera, a partir de incentivos financeiros. O autor apresenta um argumento conciso ao utilizar a questão dos créditos de carbono como exemplo:

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[Estas] compensações também oferecem um risco: o de que aqueles que compram estes créditos se considerem isentos de qualquer outra responsabilidade pelas mudanças climáticas. O risco é que os créditos do gás carbono tornem-se, pelo menos para alguns, uma forma indolor de pagar para se livrar das mudanças mais fundamentais de hábitos, atitudes e estilos de vida que podem ser necessárias para enfrentar o problema climático (SANDEL, 2012: 78).

A grande questão é que, na prática, opera-se uma inversão de valores: o que antes era visto pela sociedade como um dever cívico e moral de não poluir – que, caso descumprido, poderia ocasionar sanções morais – passa a ser encarado como um serviço pelo qual pode-se pagar. E o mais perverso dentro desta lógica de mercado é que normalmente é mais barato e mais fácil para o ator econômico simplesmente pagar a taxa – ainda que a mesma seja alta – do que modificar todo o seu modo de produção e arcar com os custos e “inconveniências” relativos a isso. Michael Sandel traz um exemplo de uma creche que, visando diminuir o número de atrasos de pais para buscar seus filhos, impôs multas aos pais que chegassem atrasados, mas que, com isso, ao invés de diminuir o número de atrasos, fez com que estes aumentassem consideravelmente. A partir disso, ele demonstra o poder que o mercado tem de moldar comportamentos. O autor indica que: [...] à medida que os mercados passam a interferir em esferas da vida governadas por normas alheias ao mercado, o habitual efeito de preço talvez não funcione mais. [...] Deste modo, para explicar o mundo, os economistas precisam desalojar as normas alheias ao mercado. Para isso, devem investigar as perspectivas morais que informam determinada prática e descobrir se a mercantilização dessa prática (pelo estabelecimento de um incentivo ou desincentivo financeiro) poderá interferir nelas (SANDEL, 2012:90).

O autor destaca que o dever cívico e a questão da preservação ambiental devem estar acima dos princípios do funcionamento dos mercados. Segundo ele: “[...] tendo constatado que o mercado e o comércio alteram o caráter dos bens, precisamos nos perguntar qual o lugar do mercado e onde é que ele não deve estar” (SANDEL, 2012: 201).

Princípios do Direito Ambiental Brasileiro

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Frente à referida lógica mercadológica aplicada na resolução de conflitos ambientais, cabe compreender quais foram as opções adotadas pelo legislador no Brasil. O Direito ambiental brasileiro é reconhecidamente principiológico, adotando normas bastante amplas e, por vezes, sem uma definição clara. Diante desta imprecisão, em muitos casos, os operadores do Direito dispõem de ampla discricionariedade na definição e aplicação das normas jurídicas. Sendo assim, para que se possa compreender melhor em que contexto o princípio do poluidor-pagador – objeto deste estudo – está inserido e as críticas que se faz a ele, cabe indicar quais são as definições legislativas e doutrinárias de alguns dos princípios que com ele estão relacionados. Em primeiro lugar, indicaremos como a doutrina interpreta o princípio do poluidor-pagador.

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Princípio do Poluidor-pagador Antônio Herman Benjamin informa que o princípio do poluidor pagador: [...] impõe ao poluidor o dever de arcar com as despesas de prevenção, reparação e repressão da poluição. Ou seja, estabelece que o causador da poluição e da degradação dos recursos naturais deve ser o responsável principal pelas consequências de sua ação (ou omissão) (BENJAMIN, 1993: 228).

Argumenta-se que o referido princípio objetiva prevenir a poluição, imputando um custo social no processo produtivo pelo dano ambiental causado e pelas medidas de proteção ambiental que se farão necessárias. Afirma-se que este princípio não visa compensar os danos ambientais causados, mas sim o custo social de se prevenir, reparar e repreender o dano ocasionado (BENJAMIN, 1993). Rômulo Sampaio indica que: Cumpre esclarecer que não se trata do pagamento de licença para poluir, mas da imputação de um custo social pela poluição gerada. Possui, portanto, um conteúdo preventivo, internalizando, no processo produtivo, os custos das medidas de proteção do meio ambiente. Neste sentido, para que possa produzir os efeitos desejados, é fundamental que, financeiramente, não valha a pena para o empreendedor causar o dano (SAMPAIO, 2015:37).

O autor destaca que este princípio objetiva fomentar a razoabilidade e racionalidade e, na esfera administrativa, tem natureza punitiva.

Reparação Uma vez ocorrido o dano ambiental, o Direito ambiental imporá a obrigação de se reparar ao estado anterior (quando possível) ou, subsidiariamente, indenizar/ compensar o dano ocasionado. Este princípio tem natureza compensatória e não punitiva, diferenciando-se, graças a isso, do princípio do poluidor-pagador.

Desenvolvimento Sustentável A Constituição Federal de 1988 destaca, no seu artigo 170, VI dentre os princípios da ordem econômica a “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”10. Sendo assim, a Constituição conjuga os valores do desenvolvimento econômico e sustentabilidade, incluindo a proteção do meio ambiente nas tomadas de decisão. 10

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em 28 ago. 2015.

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Conforme destaca Edis Milaré, o princípio impõe a “obrigação de se levar em conta a variável ambiental em qualquer ação ou decisão — pública ou privada — que possa causar algum impacto negativo sobre o meio” (MILARÉ, 2005: 161). Álvaro Luiz Valery Mirra resume esta análise indicando que o referido princípio integra o meio ambiente no processo global de desenvolvimento dos países (MIRRA, 1996).

Educação, Informação e Participação A Constituição Federal dispõe no seu artigo 225, caput que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. A mesma traz ainda medidas a serem adotadas pelo Poder Público para a efetivação deste direito. Neste dispositivo, consubstancia-se o dever de proteger o meio ambiente e os direitos à educação (Lei 9.795/99) e à informação ambiental (Leis 10.650/03 e 12.527/11). Todavia, Rômulo Sampaio destaca que: “Infelizmente, contudo, na prática, a requisição de informações aos órgãos ambientais e ao Ministério Público é resistida a despeito do moderno regime legal de acesso a informações” (SAMPAIO, 2015:47).

Princípio do Direito à Qualidade de Vida Com base em diversos documentos internacionais, como a Declaração de Estocolmo, este princípio visa garantir condições de vida adequadas, sadias e com qualidade. Todavia, que tipo de condição de vida é esta é algo que o princípio deixa a cargo do aplicador do Direito.

Princípio da Precaução O princípio da precaução, proposto na Conferência do Rio de Janeiro de 1992 (Rio 92), foi definido enquanto uma garantia contra riscos potenciais que não possam ser identificados devido ao estágio atual de desenvolvimento científico. O princípio 15 da Conferência indica que: Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (NAÇÕES UNIDAS, 1992:3).

Nas palavras de Rômulo Sampaio:

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O estado atual da ciência pode não ser suficiente para demonstrar que uma determinada atividade “x”, ocorrendo no presente seja nociva ou degradadora do ambiente natural em grau que, se conhecidas fossem as suas consequências, não seria juridicamente aceitável. Portanto, somente se revelarão como dano ambiental quando o grau de desenvolvimento científico revelar o verdadeiro impacto da atividade (SAMPAIO, 2011: 287).

A partir disso, vê-se que este princípio – assim como o direito ambiental em geral – está fortemente dependente de informações técnico-científicas típicas de outras áreas do conhecimento. Por este motivo, os juízes – que possuem autoridade judicial, mas não competência epistêmica para decidir casos envolvendo matérias fáticas que ultrapassam a esfera jurídica – precisaram de auxílio de especialistas no tema para que possam decidir de forma mais embasada e integrada aos avanços do meio científico11.

Princípio da Prevenção Este princípio impõe a proibição, mitigação ou compensação de uma ação ou omissão como forma de evitar a ocorrência do dano ambiental.

Princípios do Acesso Equitativo e do uso Sustentável dos Recursos Naturais O princípio do acesso equitativo visa garantir a equidade no acesso e utilização dos recursos naturais disponíveis, inclusive entre as gerações futuras. Sendo assim, deve-se garantir o direito das próximas gerações aos recursos naturais. Para tanto, a utilização dos referidos recursos não pode comprometer sua própria capacidade de renovação. Já o princípio do uso sustentável aponta para a necessidade de se fazer um uso eficiente dos recursos naturais.

Redução do Risco e utilização de Produtos e Serviços Seguros O princípio da redução do risco objetiva reduzir o máximo possível os riscos ambientais, de forma a promover a saúde e segurança da população. Com relação aos produtos e seguros, o direito ambiental visa afastar aqueles que possam ocasionar danos ambientais e para a saúde ou segurança da comunidade.

Limitações do Princípio do Poluidor-pagador A partir da revisão dos princípios norteadores do Direito ambiental brasileiro, é possível verificar que o legislador brasileiro optou por promover uma lógica de proteção ao meio ambiente e de integração do ser humano a este. 11

Sobre o denominado “casamento conturbado” entre o direito e a ciência, ver: HAACK, Susan. Irreconcilable Differences? The Troubled Marriage of Science and Law. 72 Law and Contemporary Problems, winter 2009, p. 1-24.

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Todavia, parece-nos que o princípio do poluidor-pagador opera em uma lógica diversa do ordenamento jurídico brasileiro. Cabe ressaltar que não trata-se aqui de uma colisão de princípios, a ser resolvida através da ponderação12. Não parece ser o caso de promoção de valores que podem se mostrar conflitantes no caso concreto, mas, de uma tentativa de se utilizar o princípio do poluidor-pagador como mecanismo de punição para aqueles que desrespeitarem as demais normas do direito ambiental brasileiro e como método eficaz na diminuição da degradação ambiental. Porém, a incoerência está no fato de que, enquanto o direito ambiental opera com uma lógica de promoção da sustentabilidade, direito à qualidade de vida sadia (inclusive para as próximas gerações), precaução em casos de incerteza científica, promoção da saúde e da segurança da comunidade, diminuição dos danos ambientais, uso eficiente dos recursos naturais etc., o princípio do poluidorpagador, na prática, secundariza esses valores em detrimento do pagamento de uma quantia como mecanismo punitivo pela poluição ocasionada. No entanto, o referido princípio não tem a pretensão de impor uma mudança nos modos de produção e acaba por permitir que a população – haja vista que a poluição se dissipa, não ficando concentrada apenas no local em que foi ocasionada – sofra as consequências da degradação ambiental. A doutrina indica que o princípio se baseia na ideia de que o causador da degradação ambiental deve ser o responsável principal pelas consequências da sua conduta ou omissão (BENJAMIN, 1993). Todavia, a pergunta que deve ser feita é se a punição pecuniária – ainda que elevada – faz com que o poluidor/ degradador sofra os maiores impactos das suas ações/omissões ou se o poluidor terá a possibilidade de se inserir em uma lógica mercadológica de permissão da poluição, desde que o devido pagamento seja feito. Nesse sentido, a taxação funcionaria como um imposto pago por um serviço que se compra. Todavia, deveria ser possível comprar o que, na prática, funciona como um “direito de poluir”? É neste tipo de sociedade que nós queremos viver? Parece-nos que, na prática, quem sofre as maiores consequências da poluição e degradação ambiental é a população; em especial, a sua parcela mais pobre, que não tem condições de barganhar em condições de igualdade com os grandes grupos empresariais e que, por este motivo, acaba por ser cooptada pela compensação pecuniária em detrimento da sua saúde, da qualidade de vida e dos direitos de gerações vindouras. Além disso, deve-se questionar a ideia de que a aplicação deste princípio, de forma isolada, gera a efetiva diminuição da poluição. Argumenta-se que para que o princípio seja eficaz, a taxação/multa aplicada deve ser alta o suficiente para que, financeiramente, seja mais interessante para o empreendedor não causar o dano para não ter que pagar a multa/taxa. Porém, cabe questionar 12

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Este artigo não pretende abordar a diferenciação entre regras e princípios e nem propor formas de se solucionar casos em que há colisão entre princípios. Sobre o tema, ver: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

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ainda se este dinheiro arrecadado é realmente revertido em projetos para a promoção da qualidade de vida da população atingida pela degradação ambiental. Ademais, é preciso questionar se os empreendedores optarão por modificar todo o seu modo de produção (o que normalmente envolve gastos elevadíssimos), quando tem outras opções que talvez sejam mais “interessantes” do ponto de vista econômico, como as seguintes: (i) pagar a multa/taxa e continuar degradando o meio ambiente; ou (ii) buscar outro território, cuja legislação ambiental seja mais frouxa para que se possa continuar produzindo de maneira insustentável e obtendo altos lucros em função disso. Sendo assim, o grande desafio que se aponta é o de definir que tipo de atividade econômica deve ser incentivada no Brasil e, finalmente, até que ponto o lucro arrecadado e os bens produzidos em atividades extremamente predatórias são revertidos para a melhoria da qualidade de vida da população em nosso território ou se nós, pelo contrário, estamos causando graves danos ambientais ao nosso país para melhorar a qualidade de vida em outros países. Feitos esses questionamentos, cabe esclarecer que não se objetiva neste artigo negar por completo a utilização do princípio do poluidor-pagador. Porém, deve-se estar ciente das suas limitações e da necessidade de se conjugar esse tipo de medida com outras mais eficazes no equilíbrio entre desenvolvimento econômico e sustentabilidade.

O caso da TKCSA Tais preocupações com as consequências práticas da aplicação do princípio do poluidor-pagador são evidenciadas através de uma análise empírica do caso da siderúrgica TKCSA. Projetada para ser a maior usina siderúrgica da América Latina, a ThyssenKrupp Companhia Siderúrgica do Atlântico – TKCSA – instalada no Distrito Industrial de Santa Cruz, na zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, iniciou suas operações em Julho de 2010. O empreendimento engloba uma usina siderúrgica, uma termoelétrica e um terminal portuário situado às margens baía de Sepetiba, com capacidade de produção anual de 5,5 milhões de toneladas de placas de aço. A produção destina-se exclusivamente ao mercado externo, sendo que 60% desta produção é exportada para os EUA e 40% para a Alemanha (FERNANDES, et. al., 2014). Desde a implantação da usina são comuns os relatos de irregularidades que chegam à imprensa, fazendo com que Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro apresentasse denúncia contra a TKCSA. A principal irregularidade denunciada após o início das atividades da usina foi o aumento da poluição atmosférica por material particulado, ocasionando o que se denominou como “chuva de prata” (MILANEZ et. al., 2011). A siderúrgica após ser condenada duas vezes na Justiça, em denúncia conduzida pelo MP-RJ recebeu uma primeira multa no valor de R$ 1,8 milhão e outra de 2,4 milhões, ademais a TKCSA foi obrigada a realizar investimentos da ordem de R$ 14 milhões em obras de saúde

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e infraestrutura no local. Estas multas foram aplicadas entre os anos de 2010 e 2011. O MP-RJ baseou sua denúncia a partir: [Do] relatório elaborado por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) [...] pelo documento, o pó emitido em Santa Cruz contém substância tóxicas (ferro, cálcio, silício, enxofre, alumínio, magnésio, estanho, titânio, zinco e cádimo, etc. Segundo o requerimento do MPRJ, a emissão de substância poluente ultrapassa em três ou quatro vezes o estipulado pela Organização Mundial de Saúde (FERNANDES, 2014:318)

Diante das evidências científicas de que a atividade desenvolvida pela siderúrgica liberou substâncias tóxicas no meio ambiente, devemos nos questionar se a aplicação isolada de uma multa em razão dos danos ocasionados é suficiente. Afinal, o direito à poluição pode ser comprado? Além disso, a aplicação das referidas multas faz com que os grupos econômicos poluam menos? O caso da TKCSA é bastante emblemático13, pois mesmo após a aplicação das multas, a contaminação atmosférica por materiais tóxicos persistiu, sendo ainda hoje frequente a ocorrência de “chuvas de prata” nas localidades próximas à usina. A Companhia, por sua vez, insiste que a poluição gerada não causa danos à saúde das pessoas. E o mais grave, a siderúrgica teve a sua autorização renovada para operar até Abril de 2016, apesar de cumprido com apenas 44 dos 134 itens que constavam no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) celebrados entre a usina e o Instituto Estadual do Ambiente. Assim, o princípio do poluidorpagador aplicado como medida coatora do dano ambiental causado pela TKCSA tem se demonstrado incapaz de reverter a prática poluidora da Companhia. Tal evidência empírica demonstra que a imposição de multas aos poluidores, por si só, é insuficiente na diminuição dos danos causados ao meio ambiente e é incapaz de promover métodos mais sustentáveis de produção.

Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. BENJAMIN, Antônio Herman V. O princípio poluidor-pagador e a reparação do dano ambiental. In: Dano Ambiental — Prevenção, Reparação e Repressão. BENJAMIN, Antônio Herman V. (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em 28 ago. 2015. COASE, Ronald. O problema do custo social. The Latin American and Caribbean Journal of Legal Studies, v.3, nº 1. Tradução de Francisco Kümmel F. Alves e Renato Vieira Caovilla. DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997. 13

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ALAMINO, Renata de C. J.; VERDE, Rodrigo B. da Rocha; FERNANDES, Francisco R. C. Cia. Siderúrgica do Atlântico causa problemas ambientais e de saúde à população de Santa Cruz (RJ). In: FERNANDES, Francisco R. C.; ALAMINO, Renata de C. J.; ARAÚJO, Eliane (Eds.). Recursos Minerais e comunidade: impactos humanos socioambientais e econômicos. Rio de Janeiro: CETEM/MCTI, 2014. Disponível em: Acesso em: 01 jul. 2015. HAACK, Susan. Irreconcilable Differences? The Troubled Marriage of Science and Law. 72 Law and Contemporary Problems, winter 2009, p. 1-24. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2015. LUTOSA, Maria Cecília J. & YOUNG, Carlos Eduardo. Política Ambiental. In: KUPFER, David & HANSENCLEVER, Lia. Economia Industrial: fundamentos teóricos e práticos. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. MILANEZ, Bruno; PORTO, Marcelo F. de S. BOSSI, Dario; CHAMMAS, Danilo; KATO, Karina. Chuva de poeira prateada. Le Monde Diplomatique Brasil, 01/04/2011. Disponível em: > Acesso em: 01 jul. 2015. MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.161. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Princípios Fundamentais do Direito Ambiental. In: Revista de Direito Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 2, 1996, p. 65. NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Rio de Janeiro sobre meio ambiente e desenvolvimento (1992). Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2015. O GLOBO. CSA tem autorização para operar renovada, apesar de pendências ambientais. O Globo, 03/05/2014. Disponível em: Acesso em: 30 jul. 2015. SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Direito ambiental. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2015. Disponível em: . Acesso em 28 ago. 2015. ______. Direito ambiental: doutrina e casos práticos. Rio de Janeiro: Elsevier: FGV, 2011. ______. Fundamentos da responsabilidade civil ambiental das instituições financeiras. 1. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. VARIAN, Hal R. Microeconomia: conceitos básicos. 7. ed. Tradução: Maria José Cyhlar Monteiro e Ricardo Doninelli. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006

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A Compreensão do Conceito de Pessoa no Século XXI e sua importância para o Direito Fernando Chaim Guedes Farage1 Resumo O presente trabalho tem por objetivo, por meio de uma abordagem do conceito de pessoa na história, definir qual seu status em nosso tempo, e como é possível concebê-la de forma racional, respeitando a autonomia da pessoa, seus direitos e deveres, em face de sua inclusão numa sociedade cada vez mais complexa. Palavras-chave: Reflexão; compreensão; pessoa; direito; modernidade. Abstract The present work has for objective, through an approach of person’s concept in the history, to define which his/her status in our time, and as it is possible to conceive her/it in a rational way, respecting the person’s autonomy, their rights and duties, in face of his/her inclusion in a society more and more complex. Keywords: Reflection; understanding; person; right; modernity.

Introdução O período em que vivemos, sem sombra de dúvidas, deixa claro, que cada vez mais, as relações jurídicas estão passando por uma profunda revisão, em face de uma sociedade cada vez mais plural e complexa e que cobra uma postura do Direito capaz de atender aos seus anseios cada vez mais diversos. Some-se a ainda o fato, do surgimento de relações até então inexistentes em nosso contexto social, que colocam os juristas debruçados em suas pesquisas e reflexões também na busca de uma resposta satisfatória capaz de regular tais situações de maneira coerente e racional. Neste diapasão, necessário se faz entender o conceito de pessoa em nosso tempo, por ser este capaz de nos indicar, importantes elementos, que nos serão úteis para compreender e buscar harmonizar estas relações. Sob esta ótica, buscaremos com o presente trabalho demonstrar o conceito de pessoa em nosso tempo, dando enfoque tão somente à pessoa natural, analisando também, como este conceito, é importante nas manifestações de interesses sejam da esfera pública, sejam da esfera privada, e porque sua compreensão se faz extremamente necessária para cumprir próprio objetivo que se quer dar ao Direito na Modernidade. 1

Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC de Juiz de Fora- MG. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior de Juiz de Fora-MG. Advogado.

A Compreensão do Conceito de Pessoa no Século XXI e sua importância para o Direito

Uma breve análise do Conceito Jurídico de Pessoa na História O Conceito de Pessoa na Concepção da Antiguidade e da Idade Média Para compreender o conceito de pessoa no século XXI, necessário se faz reconstruir suas bases históricas, o que passaremos a fazer de forma breve neste capítulo, de maneira a possibilitar ao leitor o entendimento do contexto em que tal conceito foi concebido até chegarmos ao seu momento atual. A construção do conceito de pessoa, especificamente aqui, o de pessoal natural, teve suas bases fundamentais na história fixadas na chamada Antiguidade Tardia, e foi sendo lapidada posteriormente, na Baixa Idade Média, conforme nos assevera Brunello Stancioli, em sua obra: [...] O estatuto da pessoa humana (em linguagem mais técnica, pessoa natural), teve suas bases fundamentais na Antiguidade Tardia. Seu refinamento, por outro lado, ocorreu já na Idade Média. Fica claro, a partir do estudo, que as bases teóricas para a elaboração do conceito de pessoa humana consideram-se por analogia ao conceito de pessoa divina. [...] 2

Com estas palavras, quer o autor nos dizer, que a analogia que se faz, ao conceito de pessoa divina se traduz, basicamente, em que a pessoa é revestida de um corpo físico e neste reside seu espírito e tendo este por sua vez, um caráter transcendental singular, que o torna único, e todas estas estruturas são possíveis por serem concedidas por Deus aos homens, tornando-os diferentes das demais criaturas viventes, sendo a alma imortal, bem como a própria conexão de Deus com os homens: [...] A alma infundida em cada homem, no momento de sua concepção, confere-lhe singularidade. E, se o corpo advém da procriação carnal, a alma só pode proceder de Deus [....]3 Apesar de sobreviver, por ser imortal, a alma desencarnada não é mais singular e não mais pode ser chamada por um nome. Para se definir a pessoa humana segundo o pensamento medieval, são necessários alma e corpo. [...]4

Desta maneira, resta patente que a concepção medieval tende a valorizar muito mais o caráter imortal (alma) em desprezo do corpo físico, sobretudo, por uma ótica religiosa, que considerava os atributos maiores da pessoa aqueles oriundos da alma e não só do corpo, sendo este importante, por ser um recipiente da alma tão somente. 2

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STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direito da personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte. Del Rey, 2010, p. 48. 3 Ibid., p. 45. 4 Ibid., p.45.

Fernando Chaim Guedes Farage

Por fim, nos resta dizer que a concepção de vida boa para época, era aquela que passava pelo viver segundo os desígnios de Deus, devendo ser racional moderando o apetite de seus sentidos na escolha do bem em detrimento do mal5.

O Conceito de Pessoa no Iluminismo Com o avançar do tempo, as perspectivas até então avençadas a respeito do conceito pessoa natural vão se desconectando pouco a pouco da concepção religiosa6 e passa-se a valorizar o corpo como parte integrante da pessoa, tendo como diferença da concepção medieval, que este deixa de ser mero recipiente para alma, para se tornar efetivamente um valor intrínseco da própria pessoa constituindo também sua própria essência. Com o objetivo de se afastar cada vez mais de uma visão estritamente religiosa, os iluministas, sobretudo os iluministas radicais, atribuem uma concepção de autonomia da vontade do ser humano, onde é este que deve buscar os seus objetivos, não mais tendo a obrigação de agir sob os desígnios de Deus tal qual o modelo medieval preconizava. Uma vez mais com Brunello Stancioli, temos o panorama de tal momento histórico: [...] A filosofia iluminista, ao contrário, tentou romper, radicalmente, com os matizes teológicos. A busca pela compreensão da pessoa humana pela ciência foi uma das grandes aspirações do Iluminismo. Buscou-se engendrar a pessoa em termos estritamente científicos. [...]7 Além dos pensadores mais conhecidos, houve um grupo de intelectuais do século XVIII, denominados Iluministas Radicais, que foram mais longe e negaram totalmente, a ideia de ‘Providência’. [...] O grande sentido da existência humana, para eles, é o prazer, que é incrementado quando se buscam, na própria natureza, as fontes morais do homem. Todas as raízes metafísicas devem ser cortadas, pois nada mais fizeram que redundar em sofrimento8. [...]9 Ter-se-ia, portanto uma imbricação plena entre natureza e pessoa humana. Mediados 5

Ibid., p.44. Note-se que esta transformação foi percorrida a passos lentos, e muitos preferiram um distanciamento da religião sem se desconectar completamente desta, assumindo uma concepção que admitia a autonomia da pessoa na busca daquilo que melhor lhe aprouvesse, mas vinculando-a como um livre-arbítrio, concedido pelo próprio Deus, e utilizar desta faculdade era fazer a vontade divina. Neste sentido que Brunello Stancioli assevera: “Assim, a autonomia (ou livre arbítrio, na expressão quatrocentrista) apresenta a possibilidade de a pessoa humana se autoconduzir para sua realização no Bem, que já está pré-determinado por Deus. Aproximar-se da divindade, exercer a racionalidade e expurgar a ignorância são as grandes buscas que levam o homem à dignidade.” Ibid., p.54. 7 Ibid., p.55. 8 Neste trecho em específico, faz o autor referência à obra de: TAYLOR, C. Sources of the self. The making of the modern identity. Cambrigde: Cambrige University Press, 1989, p.332. 9 STANCIOLI, Brunello. Opus, cit.p 63. 6

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pela racionalidade, do tipo científico-instrumental do século XVIII, os desenvolvimentos científicos levariam à produção ético-normativa para a pessoa humana. Em outra acepção, o ‘dever-ser’ normativo é derivação do ‘ser’ natural. [...]10

Através destas palavras temos um grande resumo da época e ainda, o primeiro esboço da pessoa como sujeito de direito, tendo-se em vista, que a produção normativa deveria ser compatível ao ser pessoa natural. Como se pode perceber, a relação construída para a concepção de pessoa abarca inicialmente uma visão puramente religiosa desprezando o corpo físico, e depois tende a expurgar a visão espiritual em enaltecimento do corpo. Mas será a análise da pessoa sob óticas sempre antagônicas é capaz de oferecer uma melhor resposta? O transcorrer do tempo nos mostrará que não, que ser pessoa, muitas vezes envolverá, tanto “espírito”, mas que na verdade pode-se denominar como a própria personalidade da pessoa, quanto “corpo físico”11 e que o desejo de realizar-se por vias próprias o destino que melhor lhe aprouver é que deve ser tutelado abrangendo com equilíbrio, ainda que raro de ser obtido, entre as realizações do “espírito” e do “corpo físico” inseridos na sociedade. Têm-se assim, o nascimento de um direito subjetivo da pessoa de realizarse perante a si mesma e à sociedade. Discorrendo sobre este assunto nos valemos das palavras de Judith Martins Costa: [...] a pessoa é o sujeito, autor e destinatário do direito. Mas é, paradoxalmente, sujeito e objeto de um direito de propriedade, o seu próprio, direito voltado sobre o próprio ‘eu’; o indivíduo é a pessoa e ser pessoa significa a capacidade para atuar na ordem jurídica como proprietário.[...]12

Para tornar mais clara tais palavras, colacionamos as de Luis Recacéns Siches: 10

Ibid., p.68. Neste sentido que colacionamos dois exemplos que retratam tanto a preocupação que se deve dar ao caráter espiritual, mas que aqui podemos assumir como caráter da própria personalidade da pessoa, quanto um caráter ligado a sua condição física de ser humano, no sentido da realização do ser pessoa e a tutela que deve o Direito lhe dar: “[...] se é negado a um católico fervoroso o direito de rezar, estar-se-á mutilando a forma de ele se sentir pessoa humana, dotado de ‘vida que vale ser vivida’ [...] Para tentar ser mais claro, há determinadas ações consideradas desumanas. Uma pessoa que vive em uma determinada região, sem requisitos mínimos de higiene, sem água tratada, sem esgoto, ao olhar do Ocidente esta submetida a ‘tratamento desumano’. No rigor técnico, falta, nesse caso, um valor (as condições de habitação) que possa conduzir a pessoa a uma vida digna, boa, que vale ser vivida. [...]” Ibid., p.93-94. 12 MARTINS-COSTA, Judith. Pessoa, personalidade, dignidade (ensaio de uma qualificação). Tese de Livre-Docência apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003, p.39. 11

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[...] El derecho subjetivo se opone o, mejor dicho, se refiere correlativamente al deber jurídico de otra u otras personas. El Derecho en sentido objetivo, es decir, como norma, al proyectarse sobre situaciones concretas, determina derechos subjetivos e deberes jurídicos en correlácion. El derecho subjetivo de una persona se opone correlativamente o se articula con el deber jurídico de otra o otras personas;[...]13

Após esta breve análise histórica, que se fez tão somente, para pontuar momentos chave da construção de tal conceito, indagamos: como é possível hoje concebermos o conceito jurídico de pessoa e o exercício que daí resulta da autonomia da pessoa natural em face do Estado e da sociedade em face do toda apresentado até aqui? Eis o tema do próximo capítulo.

O Ser Pessoa no Século XXI Para entender o ser pessoa no século XXI, é necessário entendermos também o próprio contexto social a qual estamos inseridos. Vivemos hoje, num modelo de Estado que privilegia em muito as questões sociais, um Estado com o cunho garantista, que se contrapõe ao modelo de Estado liberal de outrora que pouco avançava nas questões atinentes à vida privada. A respeito do modelo de Estado Social e seu conceito, colacionamos as palavras de Paulo Bonavides: [...] O Estado social representa efetivamente uma transformação superestrutural por que passou o antigo Estado liberal. [...] Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado Constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influencia a quase todos os domínios dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social. [...]14

Fica patente ao ler a referida citação, que o Brasil se insere em tal modelo estatal bem como diversos outros países, e como consequência, a realização da pessoa no século XXI passa necessariamente, pelas realizações que o referido modelo de Estado pode oferecer, visto que ele é o garantidor dos direitos dos cidadãos. 13

RECASÉNS SICHES, Luis. Introducción al estúdio del derecho. 14. ed. México. Porrúa, 2003, p.144. 14 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7.ed. São Paulo. Malheiros, 2004, p.186.

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A Compreensão do Conceito de Pessoa no Século XXI e sua importância para o Direito

Um dos instrumentos que possui o Estado para caso a caso garantir os direitos da pessoa passa pelo Direito. Se em linhas acima, que o conceito de vida boa outrora, passava pela realização dos desígnios de Deus, e, posteriormente é entendido como a pessoa como senhora de seu destino na busca desta realização, cabe ao Direito ser meio para tal intento, bem como harmonizador destes desígnios perante aos demais membros do Estado. O ser pessoa no século XXI passa, portanto, pela ideia de que a pessoa tem autonomia (que é privada, visto não ser emanante do Estado e do povo, sendo esta pública) na busca de seus desígnios, sem contanto, poderem ir de encontro ao Direito, sofrendo logo por este limitações, justificadas pela vida que é só possível em sociedade e no espaço público. Estas limitações por sua vez, devem ser feitas, tão somente, para garantir de forma equânime a garantia dos direitos e o cumprimento dos deveres de todos os cidadãos na maior medida possível. Discorrendo sobre o conceito de pessoa e como este deve ser entendido em nosso tempo, nos valemos das palavras de Lúcio Antônio Chamon Júnior, que assevera: [...] Antes de mais nada devemos alertar para o fato de que tal noção de ‘pessoa’ e ‘personalidade’ somente podem cobrar um papel e relevância na argumentação se não se tratar de mera figura de linguagem, mas significar algo relevante e dotado de um sentido próprio no interior do discurso.Além disso, e como consequência, não podemos atribuir à ‘personalidade’ uma função meramente auxiliar, muito menos compreendê-la como construção da Ciência do Direito: antes, e como aqui se vem sendo enfrentado, a ‘personalidade’ implica reconhecimento normativo de imputação de direitos e deveres. A própria ‘personalidade’, isto é, o referencial para imputação, é algo central em uma construção da práxis jurídico-discursiva. [...]15

Com tais palavras, quer se dizer, que o conceito de pessoa na Modernidade, deve ser entendido, como conectado ao mundo da vida, como de outra forma não pode ser, haja vista, vivermos em uma sociedade cada vez mais plural e complexa, e que cobra um entendimento do Direito, capaz de concatenar de forma harmônica direitos, deveres e interesses, das mais diversas ordens e esferas de maneira racional e coerente. Esta prática, que é tal cara e necessária, se faz possível quando entendida, dentro de uma teoria do discurso, a qual Jürgen Habermas propõe que tem como máxima e como implicação o que se segue: [...] D: Válidas son aquellas normas (y solo aquelas normas) a las que todos los que puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar su assentimiento como participantes en discursos racionales.[...]16 La teoría discursiva del 15

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CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: por uma reconstrução crítico discursiva na alta modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2007, p.149. 16 HABERMAS, Jürgen. Faticidad e validez: sobre el derecho y el Estado democratico del derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. 4.ed. Madrid,Trotta, 2005, p.172.

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derecho entiende, por una parte, el Estado democrático de derecho como la institucionalizacíon que discurre a través de derecho legítimo (y que, por tanto, garantiza la autonomía privada) de procedimientos y pressupuestos comunicativos para una formación discursiva de opiníon y la voluntad, la cual hace posible a su vez (el ejercicio de la autonomia política y) uma produción legítima de normas. La teoria comunicativa de la sociedad, es decir, la teoría de la sociedad, articulada en conceptos de comunicacíon, entiende, por otro lado, el sistema político articulado en términos de Estado de derecho como un sistema más entre vários sistemas de acíon. Éste puede “actuar como garante” en lo conciernente a resolver los problemas de integracíon de la sociedad global mediante una interacíon entre la formacíon institucionalizada de la opiníon y la de la voluntad y las comunicaciones públicas informales, porque esa integracíon, a través del espacio de la opinión basado en la sociedad civil, queda inserta en los contextos de un mundo de la vida que le resulta favorable (es decir, de un mundo de la vida caracterizado por una cultura política habituada a la liberdad y por los correspondientes patrones de socializacíon). Finalmente, una determinada concepcíon del dereceho establece una relacíon entre la consideracíon normativa y la consideracíon empírica. Ségun esta concepcíon, la comunicacion jurídica puede entenderse com um médio a través del cual las estructuras de comunicacíon realizadas en la accíon comunicativa se transfieren del nível de las interacciones simples al nível abstracto de las relaciones organizadas. La película tejida de comunicaciones jurídicas puede envolver a toda la sociedad, por compleja que ésta sea. El paradigma procedimental del derecho es, por lo demás, resultado de una disputa de paradigmas, y está todo él bajo la premisa de que el modelo liberal del derecho y el modelo ligado al Estado social interpretan la evolucíon jurídica en termos excessivamente concretistas y ocultan la conexíon que se da entre autonomía privada y autonomía pública, la cual necesita ser interpretada caso por caso. Bajo esta premisa las mencionadas tendências a la crisis aparecen a una luz distinta; y de distinta valoracíon síguense recomendaciones prácticas distintas. [...]17

O que tal teoria propõe, portanto, é uma melhor concepção do papel do Direito, visto que quando da elaboração normativa18, se abre a possibilidade de todos os futuros afetados por uma determinada norma, tenham a possibilidade de se manifestar sobre a mesma, e logo, colocarem seus argumentos e defendêlos de forma racional e coerente perante outros, o que em uma sociedade cada vez mais heterogênea é extremamente salutar, pois permite à democracia e uma melhor realização do papel cidadão, da autonomia destes e consequentemente 17 18

Ibid., cit.p.523-524. Faz-se aqui plena referência aos discursos de justificação da norma, que para melhor entendimento do leitor explicamos: “[...] Os discursos de justificação jurídico-normativa se referem à validade das normas, e se desenvolvem com o aporte de razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas), através das condições de institucionalização de um processo legislativo estruturado constitucionalmente, à luz do princípio democrático [...]. CATTONI, Marcelo Andrade Oliveira. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001.

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de sua realização como pessoa, modulando e alterando seus direitos e deveres, de forma a conceber o que melhor lhe aprouver, mas sempre dentro de uma democracia, permitindo que opiniões e ideias contrárias também sejam levadas a baila e assim, na pluralidade de ideias vença aquela que democraticamente, se faz mais coerente com aquele contexto do mundo da vida em que esta inserida aquela sociedade. Tal proposta teórica não exclui ainda, que quando da aplicação normativa19, se produza na argumentação jurídica, uma reinterpretação daquele caso, pois através de argumentos jurídicos, e levando a sério os elementos presentes num determinado caso, se possa construir uma decisão coerente com o Direito, entendendo este como um sistema de princípios que guardam entre si coerência, pois só assim se pode ir além dos meros textos de lei, legitimando o Direito pelo Direito: [...] Acontece que do ponto de vista da aplicação normativa, o papel dos cidadãos, articulados em associações civis ou organizações nãogovernamentais, ou ainda individualmente, deve ser vislumbrado como referido ao reconhecimento institucional de pretensões normativas todavia carentes de garantia em algumas situações determinadas. E o papel desses cidadãos é, pois, de exatamente de se valerem de argumentos capazes de demonstrar diferenças e igualdades que sejam suficientemente fortes para o reconhecimento de uma tal diferença. A luta política desse cidadãos – sem dúvida alguma, extremamente frutífera para construção de critérios de igualdade e diferença de casos e questões que se colocam ao Direito – não significa a abertura jurisdicional a argumentos éticos, morais, ou pragmatistas; a pretensão normativa subjacente a essa luta política é que deve ser analisada juridicamente pelo órgão jurisdicional competente. [...]20

Desta forma somente pela argumentação e através da mesma, que se pode definir o ser pessoa no século XXI, e ainda garantir as esferas de autonomia da pessoa frente ao Estado ou a qualquer outra pessoa, de maneira democrática e legitima permitindo de forma ordeira e organizada conceber à proteção dos interesses cada vez mais plurais e complexos de nossa sociedade, e realizar o conceito de pessoa, na busca de seus interesse da maneira que melhor lhe aprouver nos limites que lhe impõe o Estado e o Direito. Após estas análises passa-se às considerações finais a respeito do tema. 19

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Aqui por sua vez, se faz referência aos discursos de aplicação que são:”[...] Já os discursos de aplicação se referem à adequabilidade de normas válidas a um caso concreto, nos termos do Princípio da Adequabilidade ,sempre pressupondo um ‘pano de fundo de visões paradigmáticas seletivas [...]”.CATTONI, Marcelo Andrade Oliveira. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001. 20 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes normativas no direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2009, p.254.

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Conclusão Podemos entender que a concepção do conceito de pessoa natural se deu na chamada Antiguidade Tardia, com a era medieval e a analogia à divindade se moldou ainda mais. E assim foi se moldando até nossos tempos. Se hoje temos o entendimento, que não é mais possível entender a sociedade como compartilhando uma concepção única de perspectivas de realizações para seus desígnios pessoais, dentro de sua concepção e realização como pessoa, necessário se faz buscar meios que consigam tornar possível a estabilização das expectativas de comportamento destas e atender aos seus anseios. Embora tal tarefa para o Direito e para o próprio Estado se mostre difícil, não se pode dela olvidar sob pena de se desequilibrar o próprio Direito e Estado que nasceram pois para o equilíbrio das relações sociais. Neste sentido, a perspectiva da realização do conceito de pessoa no século XXI, deve passar necessariamente por uma constante reinterpretação, para que esteja sempre a par das necessidades sociais a ela inerentes. Desta forma, é que a perspectiva de teórica de Jürgen Habermas se mostra aberta a atender tais necessidades de maneira diferenciada, pois permite justamente da pluralidade e complexidade de nosso tempo, extrair a racionalidade e coerência que ao Direito são tão preciosas, seja na elaboração da norma, seja de sua aplicação, posto que fundamentado na democracia esteja, e por isto mesmo, torna possível a comunicação com todos os setores da sociedade e com todas as pessoas. Assim o conceito de pessoa é um processo contínuo do qual os limites não são possíveis de se mensurar, mas o caminho que se deve percorrer para garantir o seu contínuo avanço através dos tempos, este é possível mensuração, e passa por sua vez, na democracia e na argumentação. É neste sentido que concordamos com as palavras de Lúcio Antônio Chamon Júnior: [...] O próprio passado do Direito, como vimos, permite-nos vislumbrar que a sua história é repleta de equívocos e mal-entendidos do seu sentido. Mas o Direito tem a capacidade de aprender com os tropeços do passado, ao mesmo tempo em que se auto-purifica. Afirmar, à melhor luz, que o Direito é uma prática social que permite sua auto-purificação, a partir dos erros do passado, implica dizer que o próprio Direito, relendo a sim mesmo, pode vislumbrar determinadas decisões – legislativas e administrativas e aqui em específico, jurisdicionais – como equívocos porque incoerentes com esse projeto do Direito. Esse novo capítulo que se fará ‘escrito’ pode superar a falta de coerência no tratamento de determinadas questões jurídicas porque capaz de ser adequadamente focado ao que está a exigir o constitucionalismo moderno. [...] 21

No fim, o conceito de pessoa e o próprio Direito, fazem parte de uma grande e poderosa história de nossa civilização, cujos próximos capítulos podem e devem ser escritos por nós, buscando como inspiração a racionalidade, a argumentação e a democracia. 21

CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Opus cit., p.255-256.

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Referências bibliográficas BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7.ed. São Paulo. Malheiros, 2004. CATTONI, Marcelo Andrade Oliveira. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001. CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria Geral do Direito Moderno: por uma reconstrução crítico discursiva na alta modernidade. 2. ed.Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2005. CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes normativas no direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2009. HABERMAS, Jürgen. Faticidad e validez: sobre el derecho y el Estado democratico del derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. 4.ed.Madrid,Trotta, 2005. MARTINS-COSTA, Judith. Pessoa, personalidade, dignidade (ensaio de uma qualificação). Tese de Livre-Docência apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003. RECASÉNS SICHES, Luis. Introducción al estúdio del derecho. 14. ed. México. Porrúa, 2003. STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direito da personalidade ou como alguém se torna o que quiser. Belo Horizonte. Del Rey, 2010.

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O Ministério Público no Novo Código de Processo Civil Edmundo Gouvêa Freitas1 Resumo O objetivo do presente estudo é abordar os conceitos e reflexões sobre o Ministério Público à luz do novo Código de Processo Civil. O escopo aqui é contribuir para um maior didatismo na compreensão do tema fazendo um comparativo entre Lei n. 5.869\73 e Lei n. 13.105\15. Palavras-chaves: Ministério público; Novo Código de Processo Civil; reformas processuais. Abstract The purpose of the study is to address the concepts and reflections in the light of the new Code of Civil Procedure. The scope here is to contribute to a greater didacticism in understanding of the issue doing a comparison of between the Federal Law 5.869\73 and Federal Law 13.105\15. Keywords: Persecution; new code of civil procedure; procedural reforms.

Introdução Com efeito, nos termos da exposição de motivos do novel diploma processual,2 a coerência substancial corrobora-se objetivo fundamental, ratificando-se que não trata-se de uma ruptura com o passado, mas sim um passo à frente no sentido de aperfeiçoar o sistema jurídico garantindo a este maior coesão, agilidade, gerando processos mais justos e céleres. No tocante ao Ministério Público3, resta patente a relevada harmonia entre a Lei Ordinária e Constituição Federal.

Da Participação do Parquet na Nova Legislação Processual Civil Brasileira Em verdade, os deveres institucionais do órgão ministerial resta plasmado no artigo 176 quando vaticina que o mesmo atuará na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis. 1

Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais (Unipac-MG). Especialista em Direito Processual Contemporâneo (Unesa-MG). Bacharel em Direito (Universo-MG). Professor de Direito Processual Civil (FAA\ CESVA\FDV-RJ). Organizador e Autor de diversas obras jurídicas. Advogado Pleno e Consultor Jurídico 2 FUX, Luiz e NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil: comparado – Lei n. 13.105\2015. Coordenação: Luiz Fux; Organização; Daniel Amorim Assumpção Neves. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2015, p. 306. 3 Arts.176-181 do NCPC.

O Ministério Público no Novo Código de Processo Civil

Cumpre examinar o artigo 177 que reforça tal interpretação, pois que relaciona o direito de ação do Parquet em conformidade com suas atribuições constitucionais4. A sistemática de intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica, nas hipóteses previstas em lei ou a Constituição Federal foi aperfeiçoada com a introdução de necessidade de intimação no prazo de 30 dias conforme o caput do artigo 178. Nas hipóteses de atuação5 do Ministério Público foram utilizados conceitos jurídicos indeterminados para melhor adaptação da legislação à necessidade do tecido social pátrio. Como exemplo disso tem-se as expressões interesse público e social6. Outro avanço consta na ampliação da atuação do Ministério Público no tocante à posse que no CPC de 1973 estava limitada aos litígios coletivos rurais e com o a Lei n. 13.105\2015 (NCPC) garantiu tal prerrogativa também à terra urbana e não somente rural7. Nesse passo, o artigo 179 melhor regulou a atuação custos legis8 do Órgão Ministerial dando maior abrangência nas prerrogativas, posto que não elencou atos processuais como no diploma processual revogado9 optando por prerrogativas mais livres como produzir provas, requerer as medidas processuais pertinentes e recorrer10. Assim, o Ministério Público terá vista dos autos após as partes, devendo ser intimado de todos os atos do processo11. Compromissado com a coerência substancial referente à celeridade e agilidade, o prazo diferenciado12 (quádruplo para contestar e dobro para recorrer) não mais é aplicável ao Novo Código de Processo Civil Brasileiro. 4

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A doutrina dominante, impressionada com a heterogeneidade das funções exercidas pelo Ministério Público no processo, nega que ele seja sempre parte. Fala assim, que ele será, conforme caso: a) patê, b) substituto processual, c) representante da parte, d) parte adjunta, e) fiscal da lei. (GINOVER, Ada Pelegrini, CINTRA, Antônio Carlos de Araújo e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 266). 5 Atuação como fiscal da ordem jurídica não deve ser confundida na atuação em substituição processual das partes. Vide Art. 179 do NCPC. 6 Art. 178-I do NCPC. 7 Art. 83-III do CPC de 1973 c\c Art. 178-III do NCPC. 8 Fiscal da Lei. Mesmo atuando como fiscal da lei (custos legis), o CPC confere ao Ministério Público alguns poderes e direitos da própria parte, sendo eles: ter vista dos autos, ser intimado dos autos do processo, juntar documentos e certidões, produzir prova e requerer medidas ou diligências necessárias ao descobrimento da verdade. (MELLO, Cleyson de Moraes e MELLO, Márcia Ignácio de Moraes. Código de Processo Civil anotado e Interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013, p. 211) 9 Art. 83 do CPC de 1973 (CURIA, Luiz Roberto, CÉSPEDES, Lívia e ROCHA, Fabiana Dias da. Códigos de Processo Comparados. São Paulo: Saraiva, 2015). 10 Art.179-II do NCPC. 11 Art. 179 – I do NCPC. 12 Art. 188 do CPC de 1973.

Edmundo Gouvêa Freitas

O artigo 180 regula o prazo em dobro do Ministério Público para manifestação nos autos, tendo como início a intimação pessoal realizada por carga, remessa ou meio eletrônico13, tendo como exceção, a regra do artigo 180,§2º, já que afasta o benefício da contagem em dobro quando a lei estabelecer, de forma expressa , prazo próprio para o Ministério Público14. Outro ponto de ataque ao tempo morto do processo refere-se ao disposto no Art. 180,§1º que aborda a possibilidade de requisição dos autos pelo juiz para prosseguimento do processo em caso de decurso do prazo sem oferecimento de parecer ministerial, divorciando da ideologia do diploma processual de 1973 que legitimava a morosidade procedimental sob a justificativa da teoria dos prazos impróprios em determinados atos processuais. Por fim, à responsabilidade civil do Ministério Público foi garantida a possibilidade de ação regressiva15 quando agir com improbidade processual16. De resto, convém colacionar os enunciados do Fórum Permanente de Processualistas Civis17: 119. (art. 1164; art. 139, X; art. 259, III; art. 333) Em caso de relação jurídica plurilateral que envolva diversos titulares do mesmo direito, o juiz deve convocar, por edital, os litisconsortes unitários ativos incertos e indeterminados (art. 259, III), cabendo-lhe, na hipótese de dificuldade de formação do litisconsórcio, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública ou outro legitimado para que possa requerer a conversão da ação individual em coletiva (art. 333). 5 (Grupo: Litisconsórcio e Intervenção de Terceiros) 123. (art. 133) É desnecessária a intervenção do Ministério Público, como fiscal da ordem jurídica, no incidente de desconsideração da personalidade jurídica, salvo nos casos em que deva intervir obrigatoriamente, previstos no art. 178. (Grupo: Litisconsórcio e Intervenção de Terceiros) 204. (art. 976) Quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, poderá o juiz oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e os demais legitimados a que se refere o art. 988, § 3º, II, para que, querendo, ofereça o incidente de resolução de demandas repetitivas, desde que atendidos os seus respectivos requisitos15. (Grupo: Incidente de Resolução 13

Art.180 c\c 183,§1º do NCPC. Mutatis Mutantis, o benefício de prazo em dobro para litisconsortes com procuradores diferentes regulado no Art. 191 do CPC de 1973, muitas vezes era afastado por legislação específica, bem como leis de organização judiciária e regimentos internos de Tribunais, acarretando maior manejo de meios de impugnação de decisões judiciais abarcando teses sobre hierarquias de leis. No caso tratado neste capítulo, a regulação em Lei Infraconstitucional contribuirá para desburocratização da tramitação processual e maior segurança jurídica das decisões. 15 Disposição não contida no art. 85 do CPC de 1973 e ampliada com Art.180,§2º do NCPC (ROQUE, André, GAJARDONI, Fernando; TOMITA, Ivo Shigueru, DUARTE, Luiz Dellore Zulmar. Novo CPC anotado e comprado: tudo em um. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2015). 16 Leia-se: Agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções. 17 Carta de BH: IV FPPC. 14

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O Ministério Público no Novo Código de Processo Civil

253. (art. 190; Resolução n. 118/CNMP) O Ministério Público pode celebrar negócio processual quando atua como parte. (Grupo: Negócios Processuais) 254. (art. 190) É inválida a convenção para excluir a intervenção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica. (Grupo: Negócios Processuais) 328. (art. 554; art. 565) Os arts. 554 e 565 do CPC aplicam-se à ação de usucapião coletiva (art. 10 da Lei 10.258/2001) e ao processo em que exercido o direito a que se referem os §§4º e 5º do art. 1.228, Código Civil, especialmente quanto à necessidade de ampla publicidade da ação e da participação do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos órgãos estatais responsáveis pela reforma agrária e política urbana. (Grupo: Impactos do CPC nos Juizados e nos procedimentos especiais de legislação extravagante) 350. (art. 988; art. 15). Cabe reclamação, na Justiça do Trabalho, da parte interessada ou do Ministério Público, nas hipóteses previstas no art. 988, visando a preservar a competência do tribunal e garantir a autoridade das suas decisões e do precedente firmado em julgamento de casos repetitivos. (Grupo: Impacto do CPC no processo do trabalho)

Considerações finais Destarte, não há como garantir o sucesso da intensão do legislador com a vigência da nova legislação processual civil pátria, pois antes do pleno exercício prático do novo diploma legal, as sugestões de aperfeiçoamento são meras especulações, já que, v.g., verificam releituras de suprimidos institutos pretéritos em diversas searas do código em tela18. Posta assim a questão, não basta apenas regular, mas sim regular para melhorar19, ressalvando a contundente carência estrutural e amplitudes regionais das Cortes Jurisdicionais no Brasil que também devem ser objeto de efetivas políticas públicas de Acesso à Justiça.

Referências bibliográficas CURIA, Luiz Roberto, CÉSPEDES, Lívia e ROCHA, Fabiana Dias da. Códigos de Processo Comparados. São Paulo: Saraiva, 2015. FUX, Luiz e NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil: comparado – Lei n. 13.105\2015. Coordenação: Luiz Fux; Organização; Daniel Amorim Assumpção Neves. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2015. FREITAS, Edmundo Gouvêa et al. Curso do Novo Processo Civil. ARAÚJO, Luis Carlos e MELLO, Cleyson de Moraes (Coords). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015. 18

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Sobre o tema Cf. FREITAS, Edmundo Gouvêa et al. Curso do Novo Processo Civil. ARAÚJO, Luis Carlos e MELLO, Cleyson de Moraes (Coords). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015. 19 Expressão utilizada pelo Professor Pós-Doutor Antônio Pereira Gaio Júnior. Cf. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Instituições de Direito Processual Civil. 2 ed. Belo Horizonte: FREITAS, Edmundo Gouvêa et al. Curso do Novo Processo Civil. ARAÚJO, Luis Carlos e MELLO, Cleyson de Moraes (Coords). Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015. Del Rey, 2013.

Edmundo Gouvêa Freitas

GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Instituições de Direito Processual Civil. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2013. GINOVER, Ada Pelegrini, CINTRA, Antônio Carlos de Araújo e DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. MELLO, Cleyson de Moraes e MELLO, Márcia Ignácio de Moraes. Código de Processo Civil anotado e Interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013. ROQUE, André, GAJARDONI, Fernando; TOMITA, Ivo Shigueru, DUARTE, Luiz Dellore Zulmar. Novo CPC anotado e comprado: tudo em um. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2015.

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Os Precedentes Judiciais no Direito Norte-americano e sua aplicação no Ordenamento Jurídico Brasileiro Maria Carolina Cancella de Amorim1 Resumo O presente trabalho tem como objetivo tratar dos precedentes judiciais no Direito norte-americano e analisar os instrumentos utilizados no ordenamento jurídico brasileiro que são inspirados nos precedentes como as súmulas vinculantes, os recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça e na Justiça do Trabalho e o incidente de resolução de demandas repetitivas previsto no novo Código de Processo Civil. Pretendemos apresentar breves noções acerca da organização judiciária americana e sobre os sistemas da common law e civil law traçando as diferenças entre eles. Apontamos os argumentos favoráveis e desfavoráveis à adoção do sistema de precedentes judiciais diante de uma análise crítica frente aos princípios constitucionais concluindo pela necessidade de aplicação desta sistemática no ordenamento jurídico brasileiro. Palavras-chave: Precedentes judiciais; sistema norte-americano; mecanismos inspirados nos sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro; argumentos favoráveis e desfavoráveis ao uso dos precedentes no Brasil. Abstract This paper aims to address the judicial precedents in North American law and analyze the instruments used in Brazilian law that are inspired by the previous as binding precedents, repetitive features in Superior Court and the Labour Court and the incident Resolution of repetitive demands under the new Code of Civil Procedure. We intend to present brief notions about the American judicial system and the systems of common law and civil law outlining the differences between them. We point out the favorable and unfavorable arguments the adoption of judicial precedents system before a critical front analysis to the constitutional principles concluding appeal for the application of this systematic in Brazilian law. Keywords: Judicial precedents; north american system; mechanisms inspired by the previous system in Brazilian law; arguments favorable and unfavorable to the use of precedent in Brazil.

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Graduada em Direito pela UFRJ. Pós-Graduada em Direito Público e Privado pela EMERJ. Mestranda em Direito pela UNESA, na linha de pesquisa Acesso à justiça e efetividade do processo. Professora de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da UNESA. Professora da EMERJ.

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Introdução

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O presente artigo tem por objetivo tratar dos precedentes judiciais no sistema norte-americano. Primeiramente abordamos em breve síntese a organização judiciária e noções acerca dos sistemas da common law e civil law. Em seguida procuramos entender os argumentos favoráveis e desfavoráveis ao sistema de precedentes e procuramos coaduná-los com os princípios constitucionais. Nossa pesquisa visa apresentar os quatro principais instrumentos pensados no Brasil e inspirados no sistema de precedentes. Inicialmente tratamos das súmulas vinculantes no ordenamento jurídico brasileiro, abordando noções gerais, natureza jurídica, pressupostos, uma perspectiva histórica para melhor compreender o instituto, além de apontar o papel da súmula vinculante no controle de constitucionalidade verificando seu atendimento aos princípios mencionados anteriormente. O Brasil, em especial, a partir da década de 60, vem presenciando um exponencial aumento do número de demandas e com isto os processualistas passaram a buscar mecanismo para conter este avanço fazendo que as decisões proferidas no primeiro e no segundo graus de jurisdição não chegassem aos Tribunais superiores e muitas vezes não conseguissem chegar, sequer ao próprio Tribunal. Notamos este avanço com a Emenda Constitucional 45, conhecida como Reforma do Poder Judiciário. À época uma grande discussão envolveu o Conselho Nacional de Justiça, oportunamente criado por esta emenda, alegando que sua instituição criaria o chamado controle externo da magistratura entendendo-se finalmente que não existia, uma vez que dentre os membros do Conselho estão magistrados, portanto não estaríamos diante de controle externo e consequentemente não haveria ofensa ao princípio da separação dos poderes. A despeito desta discussão a emenda trouxe a súmula vinculante que foi regulamentada posteriormente em 2006, através da lei 11.417. Sem dúvida foi um sinalizador no sentido de firmar entendimento da Corte Suprema para aplicação nos demais órgãos do poder judiciário e da administração direta e indireta e com isto auxiliar na contenção do número de processos. Apesar das diferenças, que ficam claras através de uma análise crítica comparativa, as súmulas vinculantes foram inspiradas no sistema dos precedentes judiciais no direito norte-americano. Esta não é a única inovação neste diapasão. Podemos citar a súmula impeditiva de recursos, prevista no artigo 518, parágrafo primeiro do Diploma Processual Civil, que prevê que o magistrado não admitirá o recuso de apelação se a decisão estiver em conformidade com as súmulas dos Tribunais. Registre-se que o dispositivo trata de súmulas persuasivas, encerrando as portas para uma análise do órgão colegiado a partir do entendimento indicado pelo Tribunal sem efeito vinculante a propósito. Recentemente a lei 13.015 de 21 de julho de 2014, que entrou em vigor em setembro deste ano, ao cuidar do processamento dos recursos na Justiça do Trabalho, pretende acelerar a tramitação dos processos, ao permitir que o Tribunal

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escolha um processo representativo daquela questão jurídica em discussão e que esta tese única se aplique a todos os casos idênticos. Nos últimos tempos também notamos um aumento na judicialização de conflitos trabalhistas, o que alguns concluem como efeitos do incremento dos direitos sociais a partir da Constituição da República, em que muitos até hoje não foram adequadamente regulamentados. Não podemos olvidar dos mecanismos que serão implementados com o novo Código de Processo Civil, ainda em período de vacatio, como o IRDR – Incidente de resolução de demandas repetitivas2, que pretende atender a isonomia garantindo a segurança nas relações jurídicas e objetivando atender as demandas das sociedades de massa. Partimos então da verificação fática que o nosso ordenamento está criando cada vez mais mecanismos que visam conter o número de processos judiciais e neste sentido devemos procurar ajustá-los.

O Sistema Jurídico Norte-americano Inicialmente cumpre ressaltar o quanto é difícil compreender o sistema jurídico norte-americano como bem menciona o professor Wilian Burhman3: To speak of the judicial system of the United States is misleading, because there are in reality 51 different judicial system in the country: the federal court system and de court system in each state. As to questions of the state law, each of the state systems resort is a separate closed system. In other words, each state system has its own court of last resort that has the last word on what state law is. Only in issues of federal law, arising originally either in federal or state court, can it be said that there is the semblance of a single national judicial system with one court, the United States Supreme Court, serving as the court of last resort.

Em suma o sistema é composto basicamente pelas Federal Courts e State Courts. A Constituição Americana limitou-se a criar a Suprema Corte deixando a cargo dos Estados a possibilidade de criar cortes inferiores. As cortes federais, ou Federal Courts, compõem-se em regra e no topo da organização judiciária, pela U.S. Supreme Court, a chamada Suprema Corte, onde são julgados casos de apelação cujo fundamento se dá em desrespeito à Constituição Americana. Em seguida apresentam-se as U.S.Courts of appeals (Cortes de apelação), que por sua vez são divididas em treze circuitos judiciais federais e onze destes divididos em bases territoriais. 2

Art. 976 – Lei 13.105/15 – Novo Código de Processo Civil - É admissível o incidente de resolução de demandas repetitivas quando, estando presente o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica, houver efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de Direito. 3 BURHMAN, Willian. Introduction to the law and legal system of the United States. 3 ed.United States of America. West Group, 2006.

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As chamadas Legislative Courts, apreciam questões específicas como, por exemplo, em matéria tributária federal temos as tax courts), a revisão de decisões do departamento de veteranos de guerra é feita pela Court of veterans appeals, os danos decorrente de ações ou omissões de agentes estatais é julgado pela Court of federal claims, as penalidades impostas por cortes marciais podem ser revistas nas Courts of the armed forces, as causas referentes à legislação alfandegária ou de importação são examinadas nas Courts of internacional trade e para finalizar a matéria falimentar é apreciada pelas Banckruptcy courts. Na primeira instância, nas esfera federal, estão o que podemos chamar de U.S. District Courts, que são juízes federais conhecidos como trial courts, sendo o país atualmente dividido em noventa e quatro distritos e havendo pelo menos um distrito federal em cada Estado membro. Cabível afirmar que na esfera federal a Justiça americana apresenta duas premissas básicas: Diversity, cujo objetivo é o de garantir àquelas cortes a solução de Controversies entre dois ou mais estados da federação ou entre cidadãos de diferentes Estados e Federal Question, a respeito de controvérsias surgidas no tocante à própria Constituição e às leis federais.4 O sistema das Cortes Estaduais, conhecidas como State Court System, abrange State Supreme Court, Superior Courts, Special Courts e Trial courts para o julgamento de casos de menor complexidade. Cumpre ressaltar que neste sistema cada Estado membro é livre para estabelecer a organização do poder judiciário local, diferente do ocorre no Brasil, onde a competência tanto da Justiça Federal, como da Justiça Estadual e das chamadas Justiças especializadas (Eleitoral, Militar e Trabalhista) estão delineadas na Constituição da República, restando aos Estados membros apenas a competência concorrente, segundo dispõe o artigo 24,XI da CRFB, para legislar sobre procedimentos de apoio ao processo, que podem ser traduzidos como normas de organização judiciárias locais. A estrutura e organização judiciárias americanas formam um emaranhado muito complexo que exige um estudo apurado oportunamente e de fato não se confundem com o sistema jurídico brasileiro, que centraliza na União a competência para legislar sobre o Poder judiciário permitindo pouquíssima intervenção dos Estados, o que de certa forma, é contrário a própria ideia de federalismo. O sistema americano é baseado no direito anglo-saxão e tem como pressuposto que a lei é criada pelos usos e costumes, nas decisões dos casos concretos proferidas pelos juízes ou corpo de juízes, ao invés do ato normativo codificado extraído do poder legislativo.5 4

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SILVA, Paulo Cesar da. A importância do precedente no direito norte-americano1º Curso de Introdução ao Direito Americano: Fundamentals of US Law Course. Publicações da Escola da AGU Brasília n. 12 p. 1-406 set./out. 2011- Brasília-DF) 5 Idem p.325.

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Os Precedentes Judiciais no Sistema Norte-americano e no Brasil Os Estados americanos influenciados pela common law, apresentam um sistema jurídico, em que a principal fonte é o precedente judicial. Não podemos olvidar que um ordenamento baseado em precedentes não pode se distanciar, embora não se confunda, com o que chamamos de stare decisis, isto é, a eficácia vinculante dos precedentes, que acaba portanto se tornando um aspecto indissociável do common law. Simpson6 aponta que qualquer tentativa de identificação completa entre o common law e o stare decisis é insatisfatória To a historian at least any identification between the common law system and the doctrine of precedent, any attempt explain the nature of the common law in terms of stare decisis, is bound to seen unsatisfactory, for the elaboration of rules and principles governing the use of precedents and their status as authorities is reatively modern, and the idea that there could be binding precedent more recent still. The common law had been in existence for centuries before anybody was very excited about these matters, and yet it functioned as anv system of law without such props as the concept of the ratio decidendi, and functioned well enough.

O Brasil é inspirado no direito romano-germânico, português, organizado em sistema de códigos e oficialmente adota como estrutura jurídica denominada de civil law. Inicialmente podemos pensar que este sistema é incompatível com os precedentes, justamente presentes no commom law , porém não é isto que acontece e neste sentido nos explica a doutrina a seguir. Cruz e Tucci7 ao estudar os aspectos históricos de outro sistema, o civil law, aponta que uso de precedente, inclusive obrigatórios, com força vinculante é presente e cíclico esclarecendo: Por paradoxal que possa parecer, vem assinalado que, sob o prisma da histórica do direito moderno, os sistemas de direito codificado também conheceram, além da força natural dos precedentes persuasivos, precedentes com eficácia vinculante, sendo certo que dentre eles sobressaía à jurisprudência de cortes superiores (precedentes verticais), como, e.g., os arrêts de réglement do Parlamento francês, os julgamentos das “causas maiores” da Rota Romana, da Itália pré-unitária, o regime de assentos da Casa de Suplicação em Portugal, o prejulgado trabalhista no Brasil, e, ainda hoje, o controle exercido pelo Tribunal Constitucional espanhol sobre as decisões que contrariam precedentes judiciais, e a inusitada regra constante do artigo 1º do Código Suíço, que outorga ao juiz, diante da lacuna da lei, 6

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SIMPSON, A. W.B. The common law and legal theory. In: Horder, Jeremy (ed) Oxford essays in jurisprudence. Oxford: Clarendon Press, 1973,p.77. TUCCI, José Rogério Cruz. Precedente como fonte do direito. São Paulo:ED.RT,2004.

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o poder de criar a regra aplicável ao caso concreto (...). Se olharmos ainda mais para o passado, iremos verificar que o uso do precedente, acentuado na casuística, constituiu um método cuja característica fundamental independe da época, do sistema jurídico ou da natureza da função exercida pelas pessoas que o empregam.

O professor Marinoni8, em sua obra de referência sobre o tema, indica um estreitamento e a imprescindibilidade do respeito ao sistema de precedentes no ordenamento jurídico pátrio. Não há dúvida que o papel do juiz do civil law e especialmente o do juiz brasileiro, aquém é deferido o dever-poder de controlar a constitucionalidade da lei no caso concreto, muito se aproxima da função exercida pelo juiz do common law, especialmente a realizada pelo juiz americano. Acontece que, apesar da aproximação dos papéis dos magistrados de ambos os sistemas, apenas o common law devota respeito aos precedentes (...) A segurança jurídica, postulada na tradição do civil law pela estrita aplicação da lei, está a exigir o sistema de precedentes, há muito estabelecido para assegurar essa mesma segurança no ambiente do common law, em que a possibilidade de decisões diferentes para casos iguais nunca foi desconsiderada e, exatamente por isso, fez surgir o princípio, inspirador do stare decisis, de que os casos similares devem ser tratados do mesmo modo (treat like cases alike).

Como é possível perceber o atual cenário jurídico brasileiro não permite um afastamento do sistema de precedentes. O legislador já percebeu esta necessidade e vem trabalhando desde a primeira grande reforma do atual Código de Processo Civil.

Argumentos favoráveis e desfavoráves à Cultura dos Precedentes Imprescindível à leitura do professor Luiz Guilherme Marinoni9, que nos aponta os argumentos favoráveis e desfavoráveis à adoção do sistema de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro. Inicialmente procuramos indicar os argumentos favoráveis lançando como primeiro o que consideramos essencial: a segurança jurídica. Os precedentes visam dar estabilidade, continuidade e previsibilidade das decisões judiciais para determinadas condutas e estes aspectos caracterizam em resumo o próprio conceito de segurança jurídica. Para Ingo Wolfgang Sarlet10 as noções de segurança jurídica estão intrinsecamente ligadas à dignidade da pessoa humana. 8

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3 ed. São Paulo. RT, 2013. Idem p. 118. 10 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: a dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no Direito Donstitucional brasileiro. Revista de Direito Donstitucional, vol.57,p.11) 9

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Considerando que também a segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do ser humano, viabilizando, mediante a garantia de uma certa estabilidade das relações jurídicas e da própria ordem jurídica como tal, tanto a elaboração de projetos de vida, bem como sua realização , desde logo é perceptível o quanto da ideia de segurança jurídica encontra-se umbilicalmente vinculada à própria noção de dignidade da pessoa humana (...) a dignidade não restará suficientemente respeitada e protegida em todo lugar onde as pessoas estejam sendo atingida por um tal nível de instabilidade jurídica que não estejam mais em condições de, com um mínimo de segurança e tranquilidade, confiar nas instituições sociais e estatais (incluindo o Direito) e numa certa estabilidade das suas próprias posições jurídicas. A estabilidade integra uma dimensão objetiva da segurança jurídica, enquanto a previsibilidade para muitos traduz a confiabilidade do cidadão nos seus próprios direitos e a continuidade se mostra necessária para o próprio conceito de Estado de Direito, de modo que este seja capaz de se impor como ordem jurídica.11 Canotilho12 defende que a segurança jurídica e a confiabilidade são intrinsecamente ligadas. A ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica- garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito -, enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade de indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos atos dos poderes públicos.

A questão do precedente e da igualdade também merece atenção, até porque esta é elemento indissociável do Estado democrático de Direito. Para autores como Marinoni13 “o poder judiciário baseado no civil law não se submete ao princípio da igualdade no momento de decidir, vale dizer, no instante de cumprir o seu dever, prestando a tutela jurisdicional”. Os precedentes contribuem para a manutenção da coerência na ordem jurídica, ao permitir que desde o primeiro grau de jurisdição se apliquem as decisões dos Tribunais Superiores. Tal circunstância acaba por refletir e garantir um controle do poder do juiz com a garantia da imparcialidade, pois como aduz o autor supramencionado ao permitir decisões díspares a casos idênticos o ordenamento tende a estimular decisões arbitrárias e a parcialidade. Acreditamos que os precedentes permitem a adoção de uma orientação jurídica que torne a aplicação do direito mais coerente, a previsibilidade das 11

Idem p. 127. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra, Almedina, 2002. 13 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3 ed. São Paulo. RT, 2013, p. 139. 12

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decisões oriunda dos precedentes contribui de fato para o favorecimento de acordos, o desestímulo à litigância e à duração razoável do processo tornando a máquina judiciária mais eficiente. Em contrapartida não podemos deixar de mencionar os argumentos desfavoráveis abordados por Marinoni14 são em um primeiro momento o obstáculo ao desenvolvimento do direito e ao surgimento de decisões adequadas às novas realidades sociais. Este argumento é facilmente combatido, pois não podemos confundir o precedente como uma forma de engessamento, até mesmo porque existem mecanismos que permitem a revisão das decisões para acompanhar a evolução indissociável do Direito como ciência social. Um dos fortes argumentos contrários ao sistema de precedentes é a violação à independência dos juízes, e uma das questões que norteiam esta independência é o livre convencimento motivado que não obriga os magistrados à decisão das cortes superiores. No entanto, é preciso sopesar: o que adianta a parte alcançar uma decisão em primeira instância que meses ou até anos mais tarde será certamente modificada em instância superior, por já possuir entendimento consolidado? Estamos falando do atendimento a outros princípios basilares como a duração razoável do processo, a efetividade das decisões e a economia processual que nos parecem mais urgentes para bem atender as necessidades dos jurisdicionados e com isso garantir o acesso à justiça esculpido no artigo 5º, XXXV da CRFB.

Instrumentos utilizados no Brasil e inspirados nos Precedentes Judiciais As Súmulas Vinculantes Os enunciados da súmula da jurisprudência predominante com eficácia vinculante são conceituados como proposições aprovadas ou revisadas, de ofício ou por iniciativa de legitimado ativo para ação direta de inconstitucionalidade, por dois terços dos membros do Supremo Tribunal Federal, quanto à interpretação, validade e eficácia de normas determinadas, em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e Administração Pública direta ou indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, sob pena do uso de reclamação. No ordenamento jurídico brasileiro temos as súmulas persuasivas e as súmulas vinculantes. Súmulas persuasivas são aquelas que tão somente influenciam as decisões judiciais, servindo como uma orientação, sem efeito obrigatório. Na prática, porém, os juízes têm adotado as orientações sumuladas pelos Tribunais, de modo inclusive a evitar a procrastinação do feito. A súmula vinculante, que ora conhecemos, foi precedida de outros mecanismos recentes que alteraram a legislação e segundo Cândido Rangel Dinamarco15 contribuíram significatimente para a valorização dos precedentes 14 15

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Idem p.188. DINAMARCO, Candido Rangel. Fundamentos do processo moderno. 3. ed, v.II. São Paulo: Malheiros, 2000, p.11102.

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judiciais como também para a ampliação dos poderes judicantes do relator revelando forte tendência do processo civil contemporâneo. É sabido que o Poder Judiciário está abarrotado de processos. Segundo os últimos dados indicados em Relatório apresentado em 2013, pelo Conselho Nacional de Justiça, no Brasil temos aproximadamente 92,2 milhões de ações tramitando, o que em uma conta rápida nos aproximaria de um processo para cada três brasileiros. Houve um aumento de dez por cento no número de processos somente nos últimos quatro anos, mas foi registrada uma leve queda de dez por cento na taxa de congestionamento, que corresponde ao número de processos tramitando ainda sem baixa na distribuição. É justamente neste cenário que a súmula vinculante ganhou aplausos, como uma forma segura e eficaz de deter o processo ainda na primeira instância, ao argumento que de nada adiantaria seu prosseguimento se ao chegar ao Supremo Tribunal à decisão seria modificada para adequar-se ao entendimento do Tribunal. O professor Guilherme Peña de Moraes16 nos adverte acerca da discussão doutrinária travada sobre a natureza jurídica das súmulas vinculantes. O professor Lenio Luis Streck17, defende que possui natureza legislativa, justamente por permitir a edição de normas gerais e abstratas, enquanto que Jorge Miranda18 e Luis Carlos Alcoforado19 devem que seria revestida de cárter jurisdicional, pois necessitaria de provocação e julgamento de diversos casos anteriores. Não podemos olvidar aposição de Mauro Cappelletti20 sobre o tema ao defender que na verdade estamos diante de uma circunstância mista, intermediária entre o que podemos extrair do abstrato dos atos legislativos e a concretude dos atos jurisdicionais., uma vez que: “os juízes estão constrangidos a ser criadores do Direito. Efetivamente, eles são chamados a interpretar e, por isso, inevitavelmente, a esclarecer, integrar, plasmar e transformar e não raro a criar ex novo o Direito. Isso não significa que eles sejam legisladores. Existe realmente diferença entre os processos legislativo e jurisdicional”.

Acreditamos que de fato se trata de instrumento de caráter jurisdicional, até mesmo em virtude os mecanismos previstos e utilizados na lei como o manejo da reclamação que pode inclusive cassar uma decisão judicial. 16

MORAES, Guilherme Pena de. Súmula vinculante no direito brasileiro. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, nº. 17, 2008. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br 17 STRECK, Lenio Luiz. Súmulas no Direito Brasileiro: eficácia, poder e função. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998, p. 13 18 MIRANDA, Jorge. Contributo para uma Teoria da Inconstitucionalidade. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 196. 19 ALCOFORADO, Luis Carlos. Súmula Vinculante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 20 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legislativos? Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p.73.

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Os Recursos Repetitivos no Superior Tribunal de Justiça e na Justiça do Trabalho Os recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça surgiram com a lei 11.672/2008 que acrescentou a alínea c ao artigo 543 do diploma processual civil. Também encontram previsão na resolução número 08 do respectivo Tribunal Superior. Tal medida foi adotada no sentido de permitir a aplicação da mesma tese jurídica para situações jurídicas idênticas contribuindo visivelmente para a previsibilidade das decisões garantindo, portanto, segurança nas relações jurídicas. Ao menos este deve ser o entendimento mais adequado como alternativa para a multiplicação de processos. Um recurso é eleito como representativo e com isto todos os outros recursos em trâmite nos Tribunais Regionais Federais e nos Tribunais de Justiça que versem sobre aquela questão restarão suspensos aguardando a decisão da Corte Superior que será aplicada então a todos. Insta salientar alguns aspectos procedimentais envolvendo esta lei. Em primeiro lugar destacamos a questão do Tribunal de origem que ao verificar a existência da controvérsia deve escolher um recurso e encaminhá-lo ao Superior Tribunal de Justiça, porém qual deve ser o critério para esta escolha? O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro passou a tratar da matéria na resolução número 03 de 2009, precisamente no seu artigo 2, porém não apontou, por exemplo, se os demais litigantes terão acesso ao processo escolhido como parâmetro. Quando a escolha é procedida pelo próprio Superior Tribunal de Justiça à questão se torna mais emblemática, pois é determinada a suspensão dos processos quando diante controvérsia já existe jurisprudência dominante, sem que exista efetivamente uma seleção dentre os recursos oferecidos. A referida lei não faz menção à possibilidade de recurso diante da decisão que determina a suspensão dos processos o que gera críticas quanto ao seu conteúdo. A própria lei deixou a cargo dos Tribunais de segunda instância, no âmbito sua competência, e do próprio Superior Tribunal de Justiça à possibilidade de estabelecer mediante resolução os procedimentos referentes ao processo e ao julgamento do recurso especial nos casos envolvendo recursos repetitivos. Recentemente com o advento da lei 13.015, de 21 de julho de 2014, que entrou em vigor em setembro de 2014, repetiu-se praticamente a sistemática dos recursos repetitivos agora na Justiça do Trabalho com o previsto no artigo 896-C da Consolidação das leis do Trabalho.

O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas 332

Previsto na lei 13.105/2015, o novo Código de Processo Civil, que até o presente momento encontra-se em vacatio ,o incidente que não tem natureza

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jurídica recursal, pode ser instaurado sempre que estivermos diante de processos que versem sobre idêntica questão de direito e que por esta razão possam gerar conflitos ensejadores de grave insegurança nas relações jurídicas e no que tange à isonomia. O pedido de instauração do incidente será dirigido ao Presidente do Tribunal pelo juiz ou relator por ofício, pelas partes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública por meio de uma simples petição. A desistência ou abandono do incidente não impedem o seu exame de mérito e também não serão cobradas custas. Caberá aos regimentos internos regular detalhes quanto aos aspectos procedimentais. O julgamento do incidente caberá ao órgão indicado pelo regimento interno dentre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribunal. A este colegiado, incumbido de julgar o incidente e de fixar a tese jurídica, caberá o julgamento do recurso, a remessa necessária ou a causa de competência originária de onde se originou o incidente. Ampla divulgação e publicidade estão previstas por meio de registro eletrônico no Conselho Nacional de Justiça. A questão do prazo para o julgamento do incidente foi prevista em até um ano, com prioridade sobre os demais feitos, com exceção dos que contemplam réu preso e o habeas corpus. Ao ser admitido o incidente o relator cuidará de suspender os processos individuais ou coletivos, que tramitam no estado ou na região, conforme o caso; e ainda poderá requisitar informações a órgãos em cujo juízo tramita processo no qual se discute o objeto do incidente, que as prestarão no prazo de quinze dias e intimará o Ministério Público para, querendo, manifestar-se no prazo de quinze dias. O artigo 984 prevê a ordem do julgamento do incidente indicando que o relator fará a exposição do objeto do incidente; e que poderão sustentar suas razões, sucessivamente: o autor e o réu do processo originário, e o Ministério Público, pelo prazo de trinta minutos. Além disto, os demais interessados, no prazo de trinta minutos, divididos entre todos, sendo exigida inscrição com dois dias de antecedência. A tese jurídica, julgado o incidente, será aplicada a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo estado ou região. Ainda é admitida aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 983 do projeto. Esta hipótese de revisão é a que permite uma reexame da tese jurídica e será realizada pelo próprio Tribunal. A não observância da tese adotada no incidente enseja a possibilidade de interposição de reclamação e esta pode ser proposta perante qualquer tribunal e seu julgamento compete ao órgão jurisdicional cuja competência se busca preservar ou autoridade se pretenda garantir. Acrescente-se que do julgamento do mérito do incidente caberá recurso extraordinário o especial obedecendo às hipóteses respectivas de cabimento.

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Os Precedentes Judiciais no Direito Norte-americano e sua aplicação no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Apesar de posições contrárias acreditamos que estes quatro instrumentos abordados ao longo do texto, súmulas vinculantes, recursos repetitivos no STJ, recursos repetitivos na justiça do trabalho e incidente de resolução de demandas repetitivas se coadunam perfeitamente à sistemática processual moderna atendendo ao princípio da isonomia quando permite a previsibilidade das decisões e a aplicação de decisão única a casos idênticos.

Conclusão

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Atualmente a fala recorrente dentre os processualistas civis é que o Brasil está adotando os precedentes judiciais tal como ocorre nos Estados Unidos. Ao estudar o sistema norte-americano é possível perceber as diferenças na própria construção e interpretação do mecanismo, portanto não é possível afirmar que o nosso ordenamento está reproduzindo na íntegra o modelo americano baseado na commom law. No entanto não podemos nos afastar da ideia da concreta que o Brasil está desde a primeira reforma do Código de Processo Civil e sobretudo no projeto do novo CPC criando mecanismos inspirados nos precedentes para destes extrair os pontos favoráveis principalmente a previsibilidade das decisões. Tem-se reforçado e muito o caráter vinculante para obrigar que os juízes de primeira instância atendam as orientações dos Tribunais Superiores diminuindo a forçada ideia da revisão da decisão por um órgão colegiado em obediência ao princípio do duplo grau de jurisdição. Em meio a uma sociedade de massa, com um número cada vez mais crescente de processos, resta aos processualistas buscar alternativas no sentido de alcançar o melhor rendimento dos institutos já existentes e criar outros mecanismos que auxiliem na redução e na melhora da prestação da atividade jurisdicional. Acreditamos que enquanto não houver uma mudança cultural na sociedade brasileira não conseguiremos atingir a diminuição deste número. É preciso repensar e melhor atender o processo coletivo brasileiro, tema não tratado neste artigo, mas que merece uma atenção especial e conceber o processo civil baseado na composição dos conflitos através dos meios alternativos como a conciliação, a mediação e a arbitragem. Enquanto esta realidade ainda está em construção é imperioso buscar estas alternativas na tentativa de conter o número de processos em curso, não apenas com uma visão puramente reducionista em termos aritméticos, mas visando atribuir segurança nas relações jurídicas ao atribuir previsibilidade as decisões que tratam de situações jurídicas semelhantes, permitindo também a redução significativa no tempo de duração do processo o que implica direta e indiretamente em redução de custas e de esforço das partes, além da movimentação da própria máquina judiciária em perfeita contribuição com o que se espera do princípio da economia processual. É neste diapasão que consideramos a súmula vinculante, bem como os demais instrumentos como a súmula impeditiva de recursos, os recursos

Maria Carolina Cancella de Amorim

impeditivos no Superior Tribunal de Justiça e na Justiça do Trabalho e futuramente o incidente de resolução de demandas repetitivas, previsto novo Código de Processo Civil, como necessários e adequados ao sistema jurídico brasileiro.

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Os Precedentes Judiciais no Direito Norte-americano e sua aplicação no Ordenamento Jurídico Brasileiro

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A Constituição e a Ordem Econômica Glória Maria de Godoy Moreira1 Resumo Este trabalho visa participar da discussão lançada desde a promulgação da Carta Constitucional, em 1988, a respeito do papel da sociedade empresária no desenvolvimento econômico e social nacionais. A observação da sociedade contemporânea nos leva a identificação de alguns fenômenos sociais, pode-se destacar o engajamento das sociedades empresárias no esforço conjunto de redução de desigualdades. O setor privado volta seu olhar ao interesse social abrindo mão, inclusive, de garantias historicamente asseguradas. Surge, assim, a necessidade de compreender a mutação das gestões privadas à luz dos princípios constitucionais. Palavras-chave: Direito; Constituição.; gestão; social; sociedade empresária. Abstract This work aims to join the discussion launched since the promulgation of the Constitutional Charter in 1988 about the role of business societies in the development of national’s economic and social aspects. The observation of contemporary society leads us to identify some social phenomena, we can highlight the engagement of business societies in joint effort to reduce inequalities. The private sector returns his gaze to the social interest giving up even historically ensured guarantees. Thus arose the need to understand the mutation of private management in the light of constitutional principles. Keywords: Law; constitution; management; social; business society.

Considerações Introdutórias Este trabalho visa participar da discussão iniciada com a Carta de 1988, a respeito das diretrizes estabelecidas para a gestão das sociedades empresárias, especialmente na esfera da responsabilidade social. Refletir, brevemente, sobre a imposição do Constituinte originário ao intérprete, utilizar orientadores éticos com relevo especial na ponderação de valores, na composição do exercício dos direitos fundamentais, submergindo com isso a subsunção tradicional a regras normativas. Priorizar o viés principiológico, com especial ênfase à dignidade da pessoa humana, os valores do trabalho e da livre iniciativa, estabelecidos como fundamentos da República Federativa. Neste compasso, a ordem econômica se estabelece preservando a propriedade privada, porém com o dever de observarlhe a função social. 1

Mestranda em Educação pela Universidad Internacional Iberoamericana UNINI.  Especialista em Direito Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pela Universidade Estácio de Sá (RJ). Professora de Direito Constitucional da Universidade Estácio de Sá - RJ (Graduação). Advogada. Arquiteta e Urbanista.

A Constituição e a Ordem Econômica

Nesta linha, a responsabilidade social, antes restrita aos setores públicos, passou a impor-se a todo o setor privado como contraponto ao exercício das atividades. Hoje, passados mais de 25 anos de vigência da Carta, a sociedade apresenta uma nova feição. Torna-se cada vez mais frequente o engajamento das sociedades empresárias na árdua tarefa de reduzir desigualdades, visando o resgate social. Não resta dúvida que surgiu um novo empreendedor, mais voltado aos problemas sociais, mais participativo e engajado, principalmente em relação às comunidades ao derredor. Talvez, menos por uma conscientização do gestor do que pelas diretrizes constitucionais.

A Orientação Constitucional: A Democracia e os Objetivos da República A Constituição de 1988 adotou Princípios Gerais como norteadores da nova ordem que iniciou, na qual direcionam não somente a interpretação do ordenamento e do próprio Texto Maior, como também as relações sociais, sejam elas verticais ou horizontais. Nas palavras de Cláudio Pereira de Souza Neto e José Vicente Santos de Mendonça2: “Desde que a Constituição passou a ser compreendida como norma jurídica dotada de superioridade formal e material em relação às demais, era questão de tempo até que se passasse a denominar como “constitucionalização do direito” a percepção, mais ou menos difusa, de que todas as normas infraconstitucionais deviam pagar algum tributo de sentido à norma máxima. O fenômeno, no Brasil, vem sendo descrito e justificado em diversos estudos, com ênfase nas pesquisas recentes sobre a “filtragem constitucional”, a eficácia privada dos direitos fundamentais e a formação de um Direito Civil-Constitucional.” Neste diapasão a estrutura principiológica estabelecida dita o tom interpretativo do ordenamento jurídico ao tempo que estabelece os orientadores das políticas públicas a serem implementadas pelos entes federativos. É nessa linha de reestruturação que se reagrupam e contrapõem princípios e garantias, individuais e sociais. Por outro lado, ao constituir-se “Estado Democrático de Direito” a Constituição de 1988 não apenas reuniu os dois conceitos, Estado democrático e Estado de direito, como lhes acrescentou o componente revolucionário da transformação, como leciona o célebre José Afonso da Silva3. Prossegue o Mestre esclarecendo que a democracia, neste Estado instituído, seria um processo realizado em uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I / CRFB4), com o exercício do poder voltado para o povo, uma vez que dele emana. Sendo uma sociedade pluralista com relação as ideias, culturas e etnias, 2

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Fundamentos e fundamentalismo na interpretação do princípio Constitucional da livre iniciativa. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (Org.) A Constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007. pág 711/712. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. pág. 119 Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I construir uma sociedade livre, justa e solidária.

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por isso mesmo presumidamente aberta ao diálogo na diversidade, haverá de ser a liberação “das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício5”. Na construção destas condições econômicas o legislador estabeleceu os fundamentos da República, notadamente a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III/ CRFB6) apresentado também como orientador da ordem econômica (art. 170, caput/ CRFB7). Aspecto singular na estrutura da Carta de 1988, onde a dignidade da pessoa humana é “não apenas fundamento da República Federativa do Brasil, mas também o fim ao qual se deve voltar a ordem econômica (mundo do ser)8”. Da mesma forma, o legislador constituinte, ao apresentar os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV/ CRFB9), estabeleceu um liame entre a efetividade destes princípios e o pleno desenvolvimento da República. Este o fundamento para políticas sociais de distribuição de renda, de valorização do trabalhador, dos incentivos à livre iniciativa, ao incremento dos investimentos privados, como destacou Eros Grau, “políticas públicas que, objeto de reivindicação constitucionalmente legitimada, hão de importar o fornecimento de prestações positivas à sociedade10”. De modo geral, ações governamentais que direcionam o investimento privado no sentido de favorecer o alcance do objetivo contido nos preceitos apontados no Texto Constitucional. Para este fim, a Carta Política sobrepôs o interesse coletivo ao individual, prevendo a atuação direta pelo Estado, nas palavras de Pinto Ferreira: “O Estado aparece como agente normativo e também regulador da economia, exercendo, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo o planejamento obrigatório para o Poder Público e mero indicativo para o setor privado11”. Neste sentido, o artigo 3º do texto Constitucional consagrou objetivos fundamentais da República, nos esclarecimentos de Eros Grau, com destaque à construção de uma sociedade que realize a justiça social; o propósito de fraternizar 5

SILVA, J. A. Op. Cit. pág 120. Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem por fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana. 7 Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados as seguintes princípios.. 8 GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. pág. 196 9 Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem por fundamentos: IV – os valores do trabalho e da livre iniciativa. 10 GRAU, E. R. Op. Cit. pág. 215 11 Apud: TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2006. pág. 121. 6

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os homens dentro dela ao invés de afastá-los12, essencialmente a erradicação das desigualdades sociais e regionais13. Para alcançar estes objetivos ampliou a responsabilidade dos Entes Federativos aos demais segmentos da sociedade, notadamente na ordem econômica e, dentro desta, as sociedades empresárias, como os sujeitos que, ao lado dos Entes Federativos, são chamadas a materialização dos ditames constitucionais. Uma sociedade justa e solidária, como ali preceituado, somente poderia ser construída com a participação de todos os segmentos sociais. Por esta razão as políticas públicas de incentivos e distribuição de renda visam minimizar as diferenças entre os diversos setores sociais e regionais. Historicamente, a absorção de mão de obra pelo setor privado é mais significativa que a realizada pelo setor público. Nem poderia ser diferente, visto ter a Constituição Federal instituído, também como fundamento da República, a livre iniciativa. No entanto, é necessário que esta seja direcionada, com os investimentos sendo realizados nas áreas que ainda não atingiram o maior grau de desenvolvimento. Os objetivos apresentados na Carta de 1988 são, portanto, direcionadores do crescimento social como um todo e visam alcançar a todos. Já mais de vinte e cinco anos transcorridos desde a promulgação já se observa efeitos destas orientações. A pulverização dos investimentos e incentivos fiscais, através de alíquotas tributárias diferenciadas, criou, por exemplo, o chamado agronegócio, ou os polos industriais do interior do País. Apesar disso, ainda se observam muitos locais onde a concentração de baixa renda e a falta de investimentos é evidente. Faz-se necessária uma sucessão de ações dos diferentes ramos da sociedade para superar o quadro que ainda se mantém. Recai sobre os detentores do capital e dos meios de produção uma parcela maior neste reordenamento social. Missão estabelecida por um conjunto normativo direcionado por cláusulas abertas e por princípios, que possibilitam uma interpretação do conjunto normativo anteriormente posto a partir de uma nova ótica.

Os Atores da Ordem Econômica Estabelecendo as diretrizes da ordem econômica a Constituição reapresenta fundamentos, quando lança os destinados a alicerçar o estado democrático, dentre os quais a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa. Obviamente não por mero capricho o legislador Constitucional lança mão dos mesmos vetores. No velho brocardo, a lei não comporta palavras a mais, inúteis. Neste caso, ao retomar os conceitos antes expostos enfatiza, impondo nova conotação interpretativa. 12 13

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GRAU, E. R. Op. Cit. pág 215. Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

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Aponta José Afonso da Silva para uma hierarquização dos valores apresentados no caput do art. 170 da Carta Magna, devendo, a valorização do trabalho humano, ser o orientador da ordem econômica sobre os demais valores da economia de mercado. Desta forma, destaca o Mestre, consagra a economia de mercado, o sistema capitalista, e prioriza os valores do trabalho humano na nova ordem econômica. Conclui, salientando tratar-se de uma declaração principiológica, que “essa prioridade tem o sentido de orientar a intervenção do Estado, na economia, a fim de fazer valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada, constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria República Federativa do Brasil (art 1º, IV)14”. Por outro lado, ao analisar esta abordagem do preceito, André Ramos Tavares, discordando do Mestre constitucionalista, não vislumbrou hierarquia entre os valores apresentados pelo constituinte. Ao contrário, aponta como normas de natureza principiológica todo rol do art. 170, tanto do caput como dos incisos, por perfazerem o conjunto normativo a ser observado e respeitado pelos Poderes da República, sob o crivo da inconstitucionalidade. Conclui ser impossível “perante a ordem Constitucional as decisões do Poder Judiciário que afrontarem estes princípios, assim como as leis e qualquer outro ato estatal que estabeleçam metas e comandos normativos que, de qualquer maneira, oponhamse ou violem tais princípios15”. Prosseguindo em seu ponto de vista, José Afonso orienta para a necessária consciência de que a declaração constitucional, simplesmente, não tem o condão de, por si só, assegurar a todos a existência digna que defende. Da mesma forma, esculpir princípios formadores da ordem econômica não garante sua efetividade. E, destacando as palavras de Josaphat Marinho, salienta que, embora não efetivas em si, poderão lançar a sistemática necessária à ordenação das “atividades criadoras e lucrativas e reduzir desigualdades e anomalias diversas, na proporção em que as leis se convertem em instrumentos reais, de correção das contradições de interesses privados16”. A tarefa de assegurar a todos uma existência digna é sobremodo difícil para uma sociedade de base capitalista, por consequência, individualista. Um regime que se caracteriza pelo acúmulo dos meios de produção nas mãos de pequena parcela da população, não trilhará sem traumas, de moto próprio, a senda da justiça social, como preconizado no texto constitucional, esclarece o Mestre constitucionalista. Para atingir tal fim, esta Carta foi dotada de uma série de regras normativas que juntas integram um conjunto apto a, bem utilizado, tornar menos abstrato o objetivo de justiça social. À diferença das Cartas anteriores, esta, promulgada em 1988, pretendeu-se menos abstrata e mais efetiva para alcançar os objetivos 14

SILVA, J. A. Op. Cit. pág 764. TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2006. pág. 128 16 Apud: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. pág 765.

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por ela estabelecidos. Em bases capitalistas, busca, com este conjunto de regras, minimizar os efeitos de concentração do capital, afinal como destaca José Afonso “a história mostra que a injustiça é inerente ao modo de produção capitalista, mormente do capitalismo periférico17”. Visando minimizar este efeito, a Carta introduziu mecanismos específicos, porém, o êxito dependerá da aplicação deste conjunto de normas com a finalidade de assegurar uma existência digna a todos. De qualquer forma, ao interpretar as normas, especialmente as programáticas, é impositivo o direcionamento apresentado pelos princípios constitucionais. Desta forma, o núcleo representativo do princípio da dignidade humana, salienta Luiz Roberto Barroso, quando inserido na ordem econômica, deve assegurar o mínimo existencial, uma vez que identifica a integridade moral que deve ser assegurada a todos da sociedade, pelo simples fato de sua existência humana18. Aponta Eros Grau19, que o processo de desenvolvimento deve alterar a estrutura social, elevar-lhe os diversos níveis perceptíveis, como o econômico e o cultural-intelectual comunitário. Desta forma, é necessário que mudanças qualitativas sejam implantadas em toda a estrutura social, uma vez que desenvolvimento não pode ser confundido com crescimento. O desenvolvimento implicaria em mudança social. A transformação de uma estrutura social para outra. A ideia de desenvolvimento trás consigo a ideia de mudança, seja econômica seja social. O Estado teria, por isso, o papel de realizar o desenvolvimento nacional, ou seja, o papel de construir uma sociedade livre, justa e solidária, como esculpido na Carta Maior. O governo dos países subdesenvolvidos deverá ter um mínimo de políticas de longo prazo, sendo imperativo que setores público e privado sejam aliados. Salienta Fábio Comparato20 uma característica singular dos países subdesenvolvidos, não são totalmente ricos nem totalmente pobres. Haveria sempre no contexto do subdesenvolvimento uma contradição, uma oposição, entre uma área rica e outra pobre, um setor moderno e outro arcaico, uma região abastecida com infraestrutura e outra não. Este desequilíbrio, permanente e dinâmico, econômico e social, próprio do subdesenvolvimento gera ainda um desequilíbrio político, uma vez que influencia em direitos individuais, na existência do sufrágio universal, na independência dos poderes constituídos. O processo de desenvolvimento gerará, paulatinamente, a superação deste quadro. Mas é primordial que a economia autossustentável esteja jungida à eliminação das desigualdades sociais. E conclui: 17

SILVA, J. A. Op. Cit. pág 765. O começo da história. A nova interpretação Constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto(Org.). A nova interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. pág. 372. 19 GRAU, E. R. Op. Cit. pág 216. 20 Apud: GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. pág 217. 18

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“Um processo dessa natureza não é natural, mas voluntário e programado. Ele somente se desencadeia com a instauração de uma política nacional a longo prazo, abrangendo todos os setores da vida social21”. O conjunto normativo apresentado na Constituição Federal de 1988 deve ser interpretado em uníssono, porque se interpreta um direito e não um texto normativo, não se poderá interpretar as regras apresentadas isoladamente. “Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços22”. Mas o intérprete deverá caminhar pelos vetores por ela apresentados. Desta forma, os doutrinadores apontam para a necessidade, apresentada na Carta Constitucional, da criação de uma política de longo prazo, que englobe todos os setores sociais, não somente os Entes Federativos. Estes, sem dúvida, têm o importante papel de planejar e convocar os setores privados a se integrarem neste “projeto nacional”. Todos os setores privados, todas as camadas sociais. A construção da sociedade livre, justa e solidária idealizada pelo Constituinte deve ser um projeto de toda esta sociedade, construída a partir da conscientização individual de que a realidade coletiva nada mais é do que a soma das realidades individuais. Permeada pela consciência de que ao abrir mão de uma pequena parcela de conquistas individuais, justas no sistema adotado, cada um ganhará enormemente pelos reflexos sociais germinados por seu investimento. Assim, por deterem maior poder econômico, coube às sociedades empresárias uma parcela maior na construção desta sociedade. Nas palavras de José Afonso: “Um regime de justiça social será aquele em que cada um deve poder dispor dos meios materiais para viver confortavelmente segundo exigências de sua natureza física, espiritual e política. Não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta e a miséria23”.

A Propriedade dos Meios de Produção A Função Social da Propriedade A garantia total da propriedade privada, antes incontestável, é minimizada no cotejo de outra, a função social a ela imposta, especialmente quando se trata da propriedade dos meios de produção. Desta forma, apresenta André Tavares, a Constituição funda a ordem econômica e social no capitalismo temperado “pela necessária observância à sua função social, a ser igualmente aplicada à propriedade dos bens de produção24”. A Carta de 1988, ao condicionar o direito de propriedade, importa os conceitos anteriormente defendidos pelo juspublicista Léon Duguit “A propriedade implica, para todo detentor de uma riqueza, a obrigação de empregála em acrescer a riqueza social, e, mercê dela, a interdependência social. Só ele pode cumprir certo dever social. Só ele pode aumentar a riqueza geral, fazendo 21

Idem. GRAU, E. R. Op. Cit. pág 166. 23 SILVA, J. A. Op. Cit. pág 765. 24 TAVARES, A. R. Op. Cit. pág. 150. 22

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valer a que ele detém25”. Neste sentido, há uma dúplice natureza jurídica para a propriedade na ordem firmada em 1988, a garantia individualista servindo às necessidades sociais. No entanto, esta não foi uma invenção na Carta de 1988, Pontes de Miranda já apontava, desde o final do outro século: “A propriedade tem passado, desde o terceiro decênio do século, por transformação profunda, à qual ainda não se habituaram os juristas, propensos à só consulta do Código Civil, em se tratando de direto de propriedade26”. Certamente, menos afeitos a composição multidisciplinar que o direito de propriedade, como desenhado na Carta Magna vigente, apresenta. Nas palavras de José Afonso, “o regime jurídico da propriedade não é uma função do Direito Civil, mas de um complexo de normas administrativas, urbanísticas, empresariais (comerciais) e civis (certamente), sob fundamento das normas constitucionais27”. Nestes termos, a função social da propriedade se apresenta como elemento estrutural do sistema jurídico propriedade, “é, pois, princípio ordenador da propriedade privada; incide no conteúdo do direito de propriedade impondolhe um novo conceito28”. Esta nova visão, prossegue o Mestre Constitucionalista, resguarda o tradicional conjunto de faculdades do proprietário, mas confere-lhe uma nova roupagem. Desta forma, a garantia à propriedade impõe que os direitos de usar, gozar e fruir, apresentados pela esfera Cível, sejam compreendidos à luz da função social, posto que imperativo constitucional. Ainda que os interesses do proprietário, aponta André Tavares, sejam colidentes com o cumprimento da função social deverá prevalecer o ditame jurídico, “é que se trata de fundamento para o reconhecimento e garantia do Direito de propriedade em sua plenitude29”. E conclui: “Seriam, pois, exigíveis dentro do conceito de função social todas as condições que visam a satisfazer um interesse público no uso da propriedade, sem, contudo, transformá-la em bem comum30”. Na visão de José Afonso, a função social da propriedade, apresentada como mitigadora do tradicional direito de propriedade, “ultrapassa o simples sentido de elemento conformador de uma nova concepção da propriedade como manifestação de direito individual, que ela, pelo visto, já não o é apenas, porque interfere com a chamada propriedade empresarial31”. Salienta, porém, que não autoriza a supressão legislativa do direito à propriedade, no entanto, poderá vir a fundamentar uma socialização em alguns casos, e conclui: “Por isso é que se conclui que o direito de propriedade (dos meios de produção especialmente) não pode mais ser tido como um direito individual32”. 25

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Apud: TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2006. pág. 152. 26 Ibidem. pág. 154. 27 SILVA, J. A. Op. Cit. pág. 273. 28 Ibidem. pág. 272. 29 TAVARES, A. R. Op. Cit. pág. 155. 30 Idem. 31 SILVA, J. A. Op. Cit. pág. 280. 32 Ibidem. pág. 283.

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Assim, prossegue o autor, mitigado pela função social, o direito de propriedade foi mantido, ganhando contornos socialistas, ainda que inserido no sistema capitalista. Mais do que a “hipoteca social” que, preconiza a CNBB33, deve ser inerente a toda propriedade. Portanto, quando a propriedade se concentra nas mãos dos detentores do poder econômico, a função social imposta constitucionalmente, apresenta novos contornos. Necessariamente mitigará o caráter absoluto, exclusivo ou perpétuo, como nos demais casos. Mas, como geradores das riquezas nacionais, será ponderado no cotejo, ainda, da busca do pleno emprego e da redução das desigualdades sociais e regionais. Estas, por óbvio, passam pelo caminho do desenvolvimento sustentado.

A Propriedade dos Meios de Produção O direito de propriedade e a sua função social assumem, então, uma conotação distinta quando reafirmados como princípios da ordem econômica. Como leciona José Afonso, não poderá mais ser compreendido como um direito exclusivamente individual, oponível erga omnes, mas necessariamente terá que ser submetido ao crivo do cumprimento da função social “relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (grifos do autor)34”. Desta sorte, prossegue o doutrinador, o direito de propriedade só se legitima, na nova ordem constitucional, quando cumprindo “uma função dirigida à justiça social”. Neste mesmo passo, apresenta André Tavares, é necessário considerar a propriedade como elemento essencial à democracia instaurada em 1988. No entanto, seu conteúdo foi alterado, consagrando os direitos sociais, e salientando que “também a propriedade é alcançada pela concepção social do Direito, o que se dá pela determinação de que a propriedade cumprirá sua função social e se harmonizará com a busca da dignidade para todo cidadão35”. A Constituição de 1988 estabelece um sistema econômico capitalista, em linhas gerais, aquele que se baseia na propriedade privada dos meios de produção. No entanto, equilibrando este conceito com a necessária função social, busca a “estruturação de uma ordem social intensamente preocupada com a justiça social e dignidade da pessoa humana36”, nas palavras de José Afonso. Neste raciocínio, conclui André Tavares que não se pode mais falar em direito de propriedade em termos absolutos, “contudo, com conteúdo diverso, voltada que está também a propriedade para o atendimento do interesse social37”. Há mitigação do direito individual de propriedade no cotejo do direito social à existência digna e à sociedade justa e solidária. 33

Apud: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. pág. 282. 34 SILVA, J. A. Op. Cit. pág. 788. 35 TAVARES, A. R. Op. Cit. pág. 156. 36 SILVA, J. A. Op. Cit.. pág. 789. 37 TAVARES, A. R. Direito Op. Cit. pág. 156.

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Ressalte-se, aqui, que meios de produção, ou bens de produção, são instrumentos utilizados para a confecção de novos bens, como ferramentas, máquinas, estradas de ferro, etc. Como apresenta José Afonso, é o regime de apropriação destes bens que irá definir a natureza do sistema econômico adotado. Assim, a inserção da função social da propriedade no capítulo destinado a ordem econômica tem sua relevância na importância que o Constituinte buscou empreender a esta função “como um dos instrumentos destinados à realização da existência digna de todos e da justiça social38”. É a correlação destes fundamentos com os demais, apresentados nos incisos do art 170 da Carta Magna, que configura a relação direta com a propriedade dos bens de produção, a realização efetiva do poder econômico, imputado, nesta ordem, à empresa, nas palavras de José Afonso “o poder de dominação empresarial39”, que chama, dentre outros sinônimos, da verdadeira função social da empresa. Nesta mesma linha de raciocínio apresenta as lições de Eros Grau, salientando que a função social da propriedade mais se pode sentir e apresentar seus almejados efeitos quando se refere a propriedade dos meios de produção, propriedade dinâmica por natureza, pelo compromisso imposto à destinação dos bens de produção pelo Constituinte. E destaca: “Na verdade, ao nos referirmos à função social dos bens de produção em dinamismo, estamos a aludir à função social da Desta forma, a propriedade dos meios de produção pelo setor privado, notadamente as sociedades empresárias, porque maiores e mais aparelhadas, deve estar jungida à função social. Esta propriedade deve assim ser utilizada na consecução dos objetivos da República, atentos, investidores e Estado, aos preceitos constitucionais da redução das desigualdades. Por certo, a propriedade privada atinge um novo enfoque a partir de 1988, este novo enfoque impõe a todos, e por óbvio aos que mais detêm, a responsabilidade sobre uma parcela da sociedade que compõe. A propriedade dos meios de produção, assim, alinha a imposição Constitucional ao papel historicamente desempenhado pelos seus agentes. A necessidade de assumir uma postura mais voltada para o compromisso de construção de uma sociedade mais justa, mais solidária, mais humana. Ao que se denomina função social da empresa.

Paradigmas da Responsabilidade Social A Constituição de 1988 estabeleceu um sistema baseado em cláusulas abertas, para isso adotou princípios com força normativa. Todo o ordenamento jurídico deve ser interpretado, portanto, a partir desta perspectiva principiológica estabelecida. Ademais, a legislação apresenta o instituto da responsabilidade. Tradicionalmente o conceito de responsabilidade está vinculado à obrigação 38

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SILVA, J. A. Op. Cit. pág. 790. Idem.

Glória Maria de Godoy Moreira

contratual descumprida, ou trata-se de uma obrigação imposta pela lei, por isto tida como extracontratual. “Realmente, ou o devedor deixa de cumprir um preceito estabelecido num contrato, ou deixa de observar o sistema normativo, que regulamenta sua vida. A responsabilidade nada mais é do que o dever de indenizar o dano40”. No mesmo sentido, define Maria Helena Diniz como “dever jurídico de responder por atos que impliquem dano a terceiro ou violação de norma jurídica, ou qualidade de ser responsável, ou imposição legal de reparar dano causado, ou ainda, situação daquele que deve responder por um ato ou fato41”. Da interpretação do instituto da responsabilidade civil, através de suas definições mais simples, através da senda dos princípios constitucionais, emerge um compromisso social. Este, imposto pelas cláusulas constitucionais abertas reordenando a interpretação e reequilibrando os valores que estruturam a sociedade. Neste sentido, a própria lei estabelece a obrigação que visa, dentre outras coisas, orientar os investimentos e, consequentemente, o crescimento, com vistas a atingir os objetivos determinados na Carta Magna. Neste sentido, elucidativa a lição de Sérgio Cavalieri a respeito de imposição legal de deveres jurídicos, da obrigação criada a partir do descumprimento da norma legal e também por uma exigência social. “Não se trata de simples conselho, advertência ou recomendação, mas de uma ordem ou comando dirigido à inteligência e à vontade dos indivíduos, de sorte que impor deveres jurídicos importa criar obrigações42”. Assim entendidos, os fundamentos e objetivos da República Democrática, bem como os princípios e fundamentos da ordem econômica formam o conjunto sob o qual a atividade econômica e o desenvolvimento devem ser realizados. Desta forma, a lei impõe um dever de agir, com vistas a atingir os objetivos desenhados teoricamente. No cotejo com os conceitos de responsabilidade civil emerge, portanto, a responsabilidade inerente aos gestores da ordem econômica. A responsabilidade dos detentores do poder econômico, quais sejam, as sociedades empresárias. Como já apresentado, o conjunto normativo sublinha de importância primordial a dignidade de todas as pessoas humanas integrantes da sociedade, bem como a necessidade de uma reunião de esforços para reduzir as desigualdades sociais e regionais. Estes os objetivos da Norma Constituidora. Neste passo, a imposição legal sobressai quanto à justiça social. Tão distante da prática do sistema econômico adotado, por isso mesmo tão reiterado no Texto Maior. Para José Afonso, a justiça social só será atingida quando a distribuição de riqueza for equitativa. Mas isto não é fácil em um sistema de apropriação 40

FRANÇA, Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. Vol. 65. pág. 331. 41 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2005. Vol. 4. pág 200. 42 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2006. pág. 23.

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privada dos meios de produção, visto que gera enorme concentração de capital e renda. Os nichos de riqueza e pobreza lado a lado, comuns na sociedade contemporânea, não refletem a justiça social preconizada na Carta. E conclui sobre o regime econômico “que resulta da apropriação privada dos meios de produção, não propicia efetiva justiça social, porque nele sempre se manifesta grande diversidade de classe social, com amplas camadas da população carente ao lado de minoria afortunada43”. Desta forma, a lei apresenta o dever jurídico de agir, um agir que visa minimizar as diferenças sociais. Por esta razão, o descumprimento desta norma fará surgir a responsabilidade de ressarcimento do dano causado. “Só se cogita, destarte, de responsabilidade civil onde houver violação de um dever jurídico e dano. Em outras palavras, responsável é a pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de um precedente dever jurídico44”.

Considerações finais A Carta de 1988, nas palavras de Luiz Roberto Barroso e Ana Paula Barcelos, não apresentou uma sociedade pronta, um conjunto fechado de regras que refletissem a sociedade de então. Ao contrário, sendo principiológica, apresenta uma proposta de sociedade, uma direção a ser seguida, “sem as velhas certezas ambiciosas, com o caminho a ser feito ao andar45”. A justiça social apresentada no Texto, não é, pois, uma simples regra, mas uma trajetória a ser perseguida por todos os integrantes da sociedade. A possibilidade de manutenção da propriedade privada em meio a sociedade subdesenvolvida e desigual deve caminhar na senda da justiça social, trilhando e perseguindo o caminho Constitucional da responsabilidade conjunta na redução das desigualdades. Por evidente, uma parcela maior nesta tarefa será imputada aos mais favorecidos na distribuição das riquezas e oportunidades. Apesar dos mais de 25 anos transcorridos sob a vigência da Carta e das muitas conquistas já obtidas, ainda será necessária conscientização por parte da sociedade, para que alcance o protagonismo das transformações delineadas, consciente de que, moto próprio, nenhuma mudança seria possível. No entanto, sob a regência da Constituição, a transformação poderá ser acelerada quando o povo compreender ser o protagonista do processo. 43

SILVA, J. A. Op. Cit. pág. 765. CAVALIERI FILHO, S. Op. Cit. pág. 24. 45 O começo da história. A nova interpretação Constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto (org). A nova interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. Pag. 329. 44

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Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto (Organizador). A nova interpretação Constitucional: Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Malheiros, 2006. DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2005. FRANÇA, Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2007. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (Coordenadores). A constitucionalização do direito: Fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007. TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Método, 2006.

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O Direito da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito de Recusa de Hemotransfusão nas Testemunhas de Jeová Cristiane Binoto Vidal Rodrigues1 Resumo O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a dignidade humana como valor atributivo do ser humano, examinando sua relação direta com demais princípios e garantias constitucionais em especial o direito à liberdade religiosa, o direito à vida, e o direito de recusa ao tratamento de Transfusão de sangue pelas Testemunhas de Jeová. As Testemunhas de Jeová estabelecem uma escolha entre a fé e a vida. Analisa-se o aparente conflito entre esses princípios bem como a obrigação estatal de assegurar o pleno exercício dos direitos dos cidadãos. Palavras-chave: Dignidade; direito à vida; direto à liberdade; princípios Abstract This study aims to demonstrate the human dignity as attributive value of the human being, examining its direct relationship with other principles and constitutional guarantees in particular the right to religious freedom, the right to life and the right to refuse treatment Transfusion blood by Jehovah’s Witnesses. Jehovah’s Witnesses set a choice between faith and life. It analyzes the apparent conflict between these principles and the State’s obligation to ensure the full exercise of citizens’ rights. Keywords: Dignity, right to life; right to freedom; principles

Introdução A Constituição Federal de 1988 inaugurou uma nova era no Direito Brasileiro trazendo como alicerce um Estado Democrático de Direito, consagrando princípios fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, liberdade religiosa e autonomia da vontade, portanto todos têm o direito de exercer o seu direito de crença sem ter a sua dignidade cerceada, isto é, a dignidade do ser humano não pode correr o risco de sofrer algum dano em virtude de sua crença ou de sua religião. 1

Mestranda em Direito no curso de Hermenêutica e Direitos Fundamentais da Universidade Antonio Carlos – UNIPAC, possui especialização em Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá, Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá e Graduação em Administração pela Universidade Candido Mendes (1996). Atualmente é Coordenadora do curso de Direito da UNESA, campus Freguesia, Professora Auxiliar I da Universidade Estácio de Sá, além de advogada.

O Direito da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito de Recusa de Hemotransfusão nas Testemunhas de Jeová

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana constitui-se como vetor do ordenamento jurídico e exerce sua influência, sobretudo, nos direitos fundamentais e da personalidade, revestindo-se de grande importância não apenas no campo do Direito Constitucional, mas em todas as esferas da Ciência Jurídica que se presta à tutela da vida humana. Trata-se aqui de um assunto árduo frente às divergências seja no âmbito filosófico ou jurídico e neste último, no campo doutrinário e jurisprudencial, qual seja o estudo da pessoa humana e de sua dignidade. As divergências abarcam desde seu significado até o âmbito de sua proteção. E para sua compreensão fazse necessário que o jurista recorra aos entendimentos filosóficos, históricos e políticos. Já no campo social a evolução do homem apresentou uma valorização crescente do indivíduo em si, ou seja, passou-se a reconhecer que há um valor intrínseco em cada ser, que o individualiza quanto aos demais. Percebeu-se que quando o homem começou a exercer a atividade política, ele não poderia ser considerado como um objeto qualquer dentro da sociedade, tão pouco atribuir um valor material a cada ser humano ali integrante daquele meio. Cada indivíduo deveria ser individualizado e respeitado, visto que cada um deles apresentava princípios e valores intrínsecos. Ocorre que frente a esses valores individuais se contrapõem valores sociais igualmente previstos na Constituição Federal como Princípios fundamentais, tais como o direito à vida. Diante desse aparente conflito, questiona-se se o Estado poderia intervir impondo uma decisão que deveria ser adotada apenas pelo indivíduo, já que a vida é um bem indisponível, o ser humano não poderia colocar a sua dignidade acima da vida. Em situações peculiares e individuais como a apresentada, interesses que possuíam bens jurídicos protegidos por Direitos Fundamentais efetivamente se opunham, um em relação ao outro.

A Dignidade da Pessoa Humana

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Inicialmente a expressão persona designava a máscara usada pelos atores em apresentações teatrais, não uma pessoa, mas um papel. Outrossim, na linguagem comum, a palavra dignitas foi empregada primeiramente no sentido de função, cargo, título, vinculada à posição A palavra “pessoa” enriqueceu e deixou de ser status para tornar-se atributo natural do ser humano através de um pensamento antropológico-cristão como a filosofia de Tomás de Aquino que baseou-se na ideia de que todos os homens foram concebidos à imagem e semelhança de Deus, todos seriam iguais, merecendo respeito independentemente da titulação, das posses e das qualidades. Somente na Carta Constitucional de 1988 foi esculpido, em seu Art. 1, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana sendo a norma constitucional central de todo o ordenamento jurídico.

Cristiane Binoto Vidal Rodrigues

Assim, importante salientar que tal princípio há de ser visto sob uma dimensão bem ampla, ou seja, significa dizer que o ser humano merece reconhecimento na sua parte mais íntima e no seu todo mais amplo. Origina-se então a ideia de dignidade sob uma nova perspectiva que visa garantir a felicidade e a busca da plenitude observando-se o princípio da dignidade da pessoa humana sob a ótica da perspectiva dos direitos da personalidade. Considera-se então como vida digna aquela onde estão presentes os valores essenciais para o pleno desenvolvimento da pessoa, próprios para as suas necessidades, aptos para as suas características, identificados e individualizados de forma a satisfazer o seu titular. De tal modo, faz-se necessário compreender o que é a  pessoa humana, deixando de ser tratada apenas como sujeito de direito, mas como um ser humano, com suas possibilidades, aptidões, necessidades bem como são singulares em sua personalidade, em seu modo de ser. A personalidade humana deve ser pensada como um todo, um complexo mosaico, singular e unitário, merecedora de garantia e tutela no seu particular modo de ser e em todos os variados aspectos que a singularizam. A Constituição Brasileira abarcou o princípio da dignidade da pessoa humana não apenas como norma garantidora dos direitos fundamentais, mas precipuamente como fundamento da República, ou seja, é condição não somente para os cidadãos, mas também imposto ao Estado, que tem a função de aplicá-lo em toda sua plenitude. A dignidade da pessoa humana é o valor máximo de um Estado democrático, de onde se extrai e para o qual converge o fim de todas as normas, desempenhando a função de fundamentar direitos implícitos existentes na Constituição. De tal modo, a dignidade da pessoa humana, não só regerá as relações inter partes, mas ao Estado incubirá manter a paz e proporcionar o desenvolvimento de seus cidadãos observando sempre o devido respeito a dignidade humana. Portanto o princípio da dignidade da pessoa humana deverá agir no sentido de resguardar, proteger e garantir os institutos previstos na Constituição, oferecendo suporte para que os princípios sejam postos em prática e para que eles disponham de toda a sua eficácia jurídica necessária. Deverá, ainda, atuar como limitador dos atos do Estado que porventura ofendessem a dignidade ou os direitos dos cidadãos.

O Direito à Vida Consagrado na Carta Magna, em seu art 5º, caput: Todos são iguais perante a lei, sem discriminação de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

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O Direito da Dignidade da Pessoa Humana e o Direito de Recusa de Hemotransfusão nas Testemunhas de Jeová

O direito à vida é suporte indispensável, é o pressuposto elementar para a existência de todos os demais direitos, uma vez que é o primeiro direito, o mais fundamental de todos os direitos. No Estado Democrático de Direito, a vida é um bem inviolável, bem como indisponível, tendo em seu conteúdo o direito à existência, dignidade da pessoa humana, direito à integridade moral, direito à integridade física e o direito à privacidade, que formam o mínimo existencial necessário à dignidade humana. Assim, partindo desse pressuposto, a essencialidade do direito à vida digna como fundamental a cada indivíduo, não há que se falar em vida apenas como o viver biológico, mas devendo ser garantido pleno exercício e proteção daquilo a ser considerado como digno, quer seja pela sociedade, quer seja por condições individuais. O direito à vida contém o direito pela sua proteção, impedindo que o Estado e outros indivíduos pratiquem atos atentatórios contra o direito de existência de qualquer indivíduo, e se submeterem ao dever de não violar esse bem basilar. Sendo um direito, e não uma mera liberdade, não se inclui no direito à vida a opção por não viver. Na medida em que os poderes públicos devem proteger esse bem, a vida há de ser preservada, apesar da vontade em contrário do seu titular. Daí que os poderes públicos devem atuar para salvar a vida do indivíduo, mesmo daquele que praticou atos orientados ao suicídio. A inter-relação entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana é base de acirradas polêmicas, o que se coloca em pauta não é a existência ou não da conexão, mas sim as consequências a serem extraídas dessa vinculação e o modo que ela se manifesta. Nesse viés é que devem ser analisados os casos de transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, através da vida digna decorrente da liberdade de crença por aquele que optou em seguir tal religião, o direito à vida e a autonomia privada.

O Direito à Liberdade de Crença e a Autonomia da Vontade

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O direito fundamental à liberdade de religião pode ser depreendido do direito à liberdade em uma acepção ampla. A Carta Magna assegura, em seu artigo 5°, inc. VI, a liberdade de consciência e de crença, garantindo sua inviolabilidade, também assegura a plena proteção à liberdade de cultos e suas liturgias. A liberdade de religião não se realiza simplesmente pela contemplação do ente sagrado, ou seja, não é a simples adoração a Deus. Sua característica básica é exteriorizada na prática religiosa mediante sua consciência e ações em suas vidas, na forma indicada pela religião escolhida. Assim sendo, a liberdade religiosa tem como escopo a liberdade para professar fé em Deus. De tal modo, respeitadas as imposições legais, há o direito dos indivíduos manifestarem a orientação religiosa por eles seguida, assegurando-lhes o direito de recusa à prática de atos que atentem contra as suas convicções pessoais. A

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liberdade resulta na possibilidade de recusa por convicções religiosas também com fundamento na garantia de liberdade de consciência e de crença. Nesse sentido não cabe ao Estado avaliar e julgar valores religiosos, e sim respeitá-los. Assim sendo, os adeptos à religião das Testemunhas de Jeová fundamentados nos preceitos bíblicos, consideram o sangue como portador da alma e da vida do ser. Por conseguinte exteriorizam sua fé por obedecer esses preceitos bíblicos, cuja essência recusa o uso de sangue.

O Conflito entre Direitos Fundamentais: Direito à Vida versus Direito de Recusa por Convicções Religiosas A hipótese de recusa à hemotransfusão por parte das Testemunhas de Jeová traz consigo um conflito dos direitos fundamentais da vida e da liberdade de crença, mas especificamente o direito a recusa por convicções religiosas. A Carta Magna não apresenta ma solução adequada para a questão da colisão de tais direitos fundamentais. Essa aparente colisão não se mostra como um ponto sem definição, é perfeitamente descaracterizada na medida em que se utiliza mecanismos específicos de Hermenêutica Constitucional, buscando-se harmonizar os valores envolvidos. Segundo os ensinamentos de Alexy2, para que se chegue à resolução deste conflito deverá ser feita uma análise do caso concreto para eleger a prevalência do direito fundamental com maior peso. De modo que os direitos envolvidos possam ser mitigados no menor grau possível, preservando-se a sua essência, o seu núcleo essencial Salienta-se que, num Estado Democrático de Direito, a interpretação da colisão dos direitos fundamentais é feita através de uma análise caso a caso, ou seja de forma casuística, considerando cada um destes como todas as suas especificidades, o que permitirá a ponderação dos interesses envolvidos naquela hipótese fática. A compatibilização dos direitos fundamentais conflitantes dar-se-á pela técnica da ponderação entre os valores, cabendo ao intérprete utilizar o princípio da proporcionalidade, efetuando escolhas buscando concretizar ao máximo os direitos constitucionalmente protegidos. Sendo assim, cumpre verificar o conteúdo especial dos valores em colisão em cada hipótese do caso concreto. Destarte deve-se observar que a liberdade religiosa deve prevalecer nos seguintes termos: se o paciente tiver no gozo pleno de suas faculdades mentais, em condições de manifestar validamente suas convicções religiosas, é seu o direito de decidir sobre qualquer intervenção em seu próprio corpo, da mesma 2

ALEXY Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgilio Afonso da Silva. São Paulo Ed Malheiros 2008

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forma que optou por deslocar-se até o hospital ou clínica médica. De tal modo, a submissão forçada aos cuidados médicos, no caso das Testemunhas de Jeová, à transfusão de sangue, implicaria em afronta à dignidade humana. Entende-se que situação de perigo iminente de vida é aquela em que o paciente tenha sofrido forte hemorragia ou necessite ser submetido a uma intervenção cirúrgica, ou até mesmo quando está no meio desta, e torna-se imprescindível a transfusão sanguínea para preservação de sua vida. Nessa hipótese estando o paciente sem conseguir exprimir validamente sua recusa à terapia, diante do seu estado de inconsciência ou incapacidade de se manifestar, o médico, na posição de garantir o bem jurídico vida, possui o dever legal e ético de proceder à transfusão. E, ainda, presentes os elementos da urgência e do perigo imediato, não é outra a atitude esperada, até porque a lei penal assim já determina. No entanto, o raciocínio não é esse em se tratando de uma situação de perigo iminente de vida, ou ainda nas hipóteses de incapazes. Óbvio que aos pais, detentores do poder familiar, pertencem a iniciativa de formação religiosa até que seus filhos, chegados à idade adulta, possam decidir pela religião a ser por eles seguida e assumir pessoalmente as consequências desta opção, bem como zelar pela saúde, integridade e vida de seus filhos. Entretanto, o poder familiar não é absoluto, uma recusa ao tratamento do filho menor por razões de crença religiosa pode constituir exercício abusivo do pátrio poder, uma vez que o Estado transporta para os pais o dever de garantir a vida de seus filhos, porém, se atuarem em sentido diverso, não se pode permitir que a vontade dos pais se sobreponha ao direito de viver de seus filhos, impondose, portanto, a intervenção estatal. Caberá, então, ao magistrado a decisão se concede a tutela à vida ou permite a recusa do tratamento por convicções religiosas. Através de um juízo de ponderação caso a transfusão se mostrar imprescindível à manutenção da vida do menor, seria razoável deixar de realizála com base em crença religiosa dos pais, ou seja afastar a vida de quem sequer possui maturidade para escolher determinada religião. Ou seria razoável entender que a tese de que o pátrio poder é absoluto, entendendo que a decisão de não submeter o menor de idade a determinado tratamento médico pertence ao parente responsável por ele, uma vez que para este grupo um indivíduo que tenha se submetido a hemotransfusão não teria uma vida digna aos olhos de suas convicções religiosas. Vale ressaltar que ainda que se alguém não concorde com a fundamentação religiosa dessas pessoas deverá haver um respeito quanto ao seu posicionamento. Não se pode olvidar que se encontram resguardados na Constituição Federal Brasileira o direito de liberdade de culto e de crença, que estes estão postos como direitos e garantias fundamentais. De tal modo, o desrespeito ao direito de liberdade de culto e de crença implica diretamente no desrespeito da dignidade da pessoa humana posta

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também como fundamento da Constituição, e que deverá ser respeitada de forma incondicional e exercendo a função de fundamento aos direitos e garantias fundamentais, como também agindo na forma de limite para com as condutas do Estado. Corrente contrária à recusa de transfusão sanguínea por motivação religiosa, argumenta tratar-se o direito à vida biológica irrenunciável sob qualquer aspecto, sendo a base para a existência de todos os outros direitos, como se depreende nas palavras de Alexandre de Moraes quando defende que “[...] o direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos”3 Relativamente ao assunto, complementa Pedro Lenza que: “[...] se estiver o médico diante de urgência ou perigo iminente, ou se o paciente for menor de idade, pois, fazendo uma ponderação de interesses, não pode o direito à vida ser suplantado diante da liberdade de crença, até porque, a Constituição não ampara ou incentiva atos contrários à vida”4

Destarte, vislumbrados os principais argumentos que sufragam ou não pela recusa à transfusão sanguínea por adeptos da religião Testemunhas de Jeová, nota-se existir um conflito entre bens jurídicos consagrados na Constituição (direito à vida biológica e a liberdade de crença).

Jurisprudências acerca do tratamento com infusão sanguínea em paciente testemunha de Jeová Objetiva-se aqui expor a visão de alguns Tribunais acerca da matéria, observando que há pouca divergência sobre o tema. TJRS AC 155 RS 2003.71.02.000155-6 Relator(a): VÂNIA HACK DE ALMEIDA DIREITO À VIDA. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. DENUNCIAÇÃO DA LIDE INDEFERIDA. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. LIBERDADE DE CRENÇA RELIGIOSA E DIREITO À VIDA. IMPOSSIBILIDADE DE RECUSA DE TRATAMENTO MÉDICO QUANDO HÁ RISCO DE VIDA DE MENOR. VONTADE DOS PAIS SUBSTITUÍDA PELA MANIFESTAÇÃO JUDICIAL. (...) Conflito no caso concreto dois princípios fundamentais consagrados em nosso ordenamento jurídico-constitucional: de um lado o direito à vida e de outro, a liberdade de crença religiosa.A liberdade de crença abrange não apenas a liberdade de cultos, mas também a possibilidade de o indivíduo orientar-se segundo posições religiosas estabelecidas.No caso concreto, a 3 4

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2005. P.31 LENZA, Pedro. Liberdade Religiosa- Laicidade do Estado – Radicalimos e Preconceitos – Limites – Razobalidade. Jornal Carta Forense. Abril/2009. P.1

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menor autora não detém capacidade civil para expressar sua vontade. A menor não possui consciência suficiente das implicações e da gravidade da situação pata decidir conforme sua vontade. Esta é substituída pela de seus pais que recusam o tratamento consistente em transfusões de sangue.Os pais podem ter sua vontade substituída em prol de interesses maiores, principalmente em se tratando do próprio direito à vida.A restrição à liberdade de crença religiosa encontra amparo no princípio da proporcionalidade, porquanto ela é adequada à preservar à saúde da autora: é necessária porque em face do risco de vida a transfusão de sangue torna-se exigível e, por fim ponderandose entre vida e liberdade de crença, pesa mais o direito à vida, principalmente em se tratando não da vida de filha menor impúbere. Em consequência, somente se admite a prescrição de medicamentos alternativos enquanto não houver urgência ou real perigo de morte. Logo, tendo em vista o pedido formulado na inicial, limitado ao fornecimento de medicamentos, e o princípio da congruência, deve a ação ser julgada improcedente. Contudo, ressalva-se o ponto de vista ora exposto, no que tange ao direito à vida da menor.

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TJRGS. Apelação Cível. 595000373. 6ª.C.C. Rel. Des. Sérgio Gischkow Pereira. CAUTELAR. TRANSFUSAO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVA. Não cabe ao poder judiciário, no sistema jurídico brasileiro, autorizar ou ordenar tratamento médico-cirúrgicos e/ou hospitalares, salvo casos excepcionalíssimos e salvo quando envolvidos os interesses de menores. Se iminente o perigo de vida, é direito e dever do médico empregar todos os tratamentos, inclusive cirúrgicos, para salvar o paciente, mesmo contra a vontade deste, de seus familiares e de quem quer que seja, ainda que a oposição seja ditada por motivos religiosos. Importa ao médico e ao hospital demonstrar que utilizaram a ciência e a técnica apoiadas em séria literatura médica, mesmo que haja divergências quanto ao melhor tratamento. O judiciário não serve para diminuir os riscos da profissão médica ou da atividade hospitalar. Se transfusão de sangue for tida como imprescindível, conforme sólida literatura médicocientífica (não importando naturais divergências), deve ser concretizada, se para salvar a vida do paciente, mesmo contra a vontade das Testemunhas de Jeová, mas desde que haja urgência e perigo iminente de vida (art146, §3°, I, do Código Penal). [...] O direito à vida antecede o direito à liberdade, aqui incluída a liberdade de religião; é falácia argumentar com os que morrem pela liberdade, pois aí se trata de contexto fático totalmente diverso. Não consta que morto possa ser livre ou lutar por sua liberdade. Há princípios gerais de ética e de direito, que aliás norteiam a Carta das Nações Unidas, que precisam se sobrepor às especificidades culturais e religiosas; sob pena de se homologarem as maiores brutalidades; entre eles estão os princípios que resguardam os direitos fundamentais relacionados com a vida e a dignidade humanas. Religiões devem preservar a vida e não exterminá-la. [...] Abrir mão de direitos fundamentais, em nome de tradições, culturas, religiões, costumes, é, queiram ou não, preparar caminho para a relativização daqueles direitos e para que venham a

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ser desrespeitados por outras fundamentações, inclusive políticas. [...] É o voto. TJ-DF - AGRAVO DE INSTRUMENTO AG 20060020045004 DF (TJDF) Ementa:  AGRAVO DE INSTRUMENTO - TRANSFUSÃO DE SANGUE EM MENOR - PAIS SEGUIDORES DA RELIGIÃO  ‘TESTEMUNHAS  DE  JEOVÁ’  - AUTORIZAÇÃO DADA AO HOSPITAL PELO JUÍZO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE - APELAÇÃO - FUNGIBILIDADE RECURSAL - INTEMPESTIVIDADE DO RECURSO. 1.A AUTORIZAÇÃO PARA TRANSFUSÃO DE SANGUE EM MENOR, DADA PELO JUÍZO DA INFÂNCIA E JUVENTUDE, DESAFIA A APELAÇÃO. NÃO CONSTITUI, PORÉM, ERRO GROSSEIRO A INTERPOSIÇÃO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO, CUJO PRAZO RECURSAL É O MESMO DA APELAÇÃO PREVISTA NO ECA , SENDO APLICÁVEL A FUNGIBILIDADE RECURSAL. 2. A CIÊNCIA INEQUÍVOCA DOS PAIS ACERCA DA TRANSFUSÃO SANGUÍNEA ANTES DA INTIMAÇÃO FORMAL DO ADVOGADO CONSTITUÍDO ELIDE A EXIGÊNCIA DE FAZER CONSTAR EXPRESSAMENTE NA PROCURAÇÃO ‘ET EXTRA’ OS PODERES ESPECIAIS PARA CITAÇÃO. NA HIPÓTESE, O PRAZO DO RECURSO DEVE TER INÍCIO A PARTIR DA INTIMAÇÃO DO ADVOGADO NOS AUTOS. 3. RECURSO NÃO CONHECIDO. UNÂNIME

Percebe-se que os Tribunais hodiernamente vêm decidindo que no sopesamento dos direitos fundamentais o Direito à vida se sobrepõe ao Direito à liberdade religiosa.

Conclusão Os direitos fundamentais não são simples regras jurídicas, visto que a sua aplicação independe de previsão legal, podendo inclusive decorrer da interpretação entre eles e mesmo os não positivados merecem proteção, como, por exemplo, o direito à vida digna. Ocorre e é comum que em determinadas ocasiões, como a transfusão de sangue em Testemunhas de Jeová, tais princípios fundamentais se chocam, ocorrendo um aparente conflito, cria-se, então, técnicas e ponderação, através da qual, naquele caso concreto, um princípio ira se sobrepor a outro. No entanto quando os Tribunais negam o direito das Testemunhas de Jeová recusarem as transfusões de sangue, entendendo que o direito à vida é um direito indisponível e que deve prevalecer o sentimento de preservá-la diante de qualquer ato que venha a ofendê-la, não percebe que nem sempre o fato de manter o indivíduo vivo é garantia de se ter uma vida feliz, digna e saudável.

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O direito da dignidade da pessoa humana e o direito de recusa de hemotransfusão nas testemunhas de Jeová

É cediço que os Testemunhas de Jeová imponham como dogma religioso resistência à transfusão de sangue, mesmo diante da possibilidade desta recusa provocar a morte de um de seus fiéis. Ao privar as Testemunhas de Jeová do poder de decisão de recusa à hemotransfusão, o Estado estará condenando essas pessoas a viverem totalmente descontentes, abaladas psicologicamente, sem contar com a destruição de toda a sua vida religiosa, visto que, submetendo-as a esse procedimento médico, elas perderão o sentido da vida, pois um dos fundamentos primordiais e basilares dessa religião é justamente não receber qualquer tipo de sangue. Em um Estado Democrático de Direito, a liberdade é um dos basilares requisitos da democracia. Deve-se respeitar a autonomia individual e, com ela, o direito de consciência e de crença. As manifestações religiosas não se limitam ao exercício da religião em templos. Entende-se que pressupõe a prática religiosa, com respeito aos seus dogmas, em todas as circunstâncias da vida. Admite-se, dessa forma, a recusa às transfusões sanguíneas por motivos de convicções pessoais, religiosas ou não. O próprio Código Civil coíbe a intervenção médica ou cirúrgica, com risco de vida, sem o prévio consentimento do paciente. Diante disso quando um paciente se manifesta na escolha do tratamento que queira ser submetido, não haverá, em nenhuma hipótese, a intervenção para o coagir a receber a infusão sanguínea, seja por parte do médico ou do Estado. Haja vista que o único propósito de manifestação do poder, de forma legítima, em um comunidade civilizada e em um Estado Democrático de Direito, sobre um indivíduo e contra a sua vontade, é para prevenir danos a outros. O próprio bem, seja físico ou moral, não é justificação suficiente para a intervenção. Não se pode coagir alguém a suportar alguma situação em virtude de que seria melhor para si. Quem deve decidir o tipo de tratamento em que o corpo e a mente do paciente deve ser submetido, é ele próprio, e não a classe médica, algum juiz, e nem tampouco, a opinião pública. A decisão é altamente subjetiva, pois se baseia em valores morais, para decidir qual tratamento é o melhor ou certo, em sua concepção. Assim sendo, em respeito ao fundamento Constitucional da dignidade da pessoa humana, que é assegurado na Constituição Federal e o direito de consciência, de crença e o direito à vida digna, às Testemunhas de Jeová deve-se reconhecer o direito de recusa as transfusões sanguíneas, em face de que, negando-as, haveria um prejuízo imensurável para esses indivíduos, sem contar com o total desrespeito para com os ditames constitucionais.

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Cristiane Binoto Vidal Rodrigues

Referências bibliográficas ALEXY Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgilio Afonso da Silva. São Paulo Ed Malheiros 2008 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. Tradução Zilda HutchinsonSchild Silva; revisão técnica da tradução e introdução à edição brasileira Cláudia Toledo. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. BARROSO, Luís Roberto et al. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. BASTOS, Celso. Hermenêutica e Interpretação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Celso Bastos, 1999. BRASIL.Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acesso: 08 set. 2013. LENZA, Pedro. Liberdade Religiosa- Laicidade do Estado - Radicalimos e Preconceitos – Limites – Razobalidade. Jornal Carta Forense. Abril/2009. MARTINS-COSTA, Judith. Pessoa, Personalidade, Dignidade. (ensaio de uma qualificação). Tese (Livre-Docência em Direito Civil) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, maio 2003. MATTA MACHADO, Edgar de Godói. Conceito Analógico de Pessoa Aplicado à Personalidade Jurídica. Revista da Faculdade de Direito [da] Universidade de Minas Gerais. Belo Horizonte, a.6 (nova fase), out.1954, p.55-78. MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2005. STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao Exercício de Direitos da Personalidade. Ou como alguém se Torna o que Quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

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Direito Fundamental e de Igualdade e os Direitos Previdenciários e Sucessórios do Casal Homoafetivo Eron Dino Leite Pereira1 Resumo Esse trabalho teve por objetivo analisar e discutir os direitos previdenciários e sucessórios do companheiro homoafetivo com base no direito fundamental e de igualdade da pessoa humana. Os companheiros homoafetivos por muitos anos não tiveram seus direitos definidos, surgindo dessa forma, a necessidade da criação de leis específicas para resolução dos problemas em questão. Dessorte, o objeto em análise é atual e marcante, pois se trata de um assunto controverso e polêmico no mundo jurídico e fora dele, o que justifica seu estudo. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica, desenvolvida com base em material impresso e virtual já publicado, como livros, artigos e outras publicações relevantes da internet, assim proporcionando um aprofundamento e embasamento do estudo. Palavras-chave: Homossexuais; direitos de igualdade; previdência social; sucessão. Abstract This study aimed to analyze and discuss the pension and inheritance rights homoafetivo mate based on the fundamental rights and equality of the human person. The homosexual companions for many years did not have their defined rights, coming this way, the need to create specific laws to solving the problems in question. Dessorte, the object in question is current and striking, because it is a controversial and divisive issue in the legal world and beyond, which justifies its study. The methodology used was literature, developed on the basis of printed and virtual published material such as books, articles and other relevant publications of the Internet, thus providing a deeper and basis of the study. Keywords: Homosexuals; equal rights; social security; succession.

Introdução Nos primórdios do século passado, as relações homoafetivas sempre sofreram muitas críticas da sociedade, pois esse tipo de relacionamento era considerado uma afronta à formação da família. A igreja considerava a união entre casais homoafetivos como algo frágil, proibido e pecaminoso. 1

Advogado inscrito na OABMG; Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho; PósGraduado em Direito Previdenciário; Formação em Docência de Ensino Superior; MBA Executivo em Petróleo e Gás; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais.

Direito Fundamental e de Igualdade e os Direitos Previdenciários e Sucessórios do Casal Homoafetivo

Com o passar do tempo, ocorreu uma transformação na estrutura familiar, sobretudo no que tange a união entre pessoas do mesmo sexo, uma vez que atualmente este instituto também é visto como uma forma de Constituição de família. A evolução do direito sucessório homoafetivo no Brasil se deu com o julgamento da ADI 4277, que inseriu as uniões estáveis homoafetivas como entidade familiar. Com isso, esse instituto ganha legitimidade. Todavia, surgem muitas dúvidas, principalmente com relação aos direitos que os companheiros poderiam pleitear, já que, a Constituição apesar do tratamento digno e respeitoso que procura dar ao assunto, em matéria previdenciária vem obtendo significativos avanços já que o posicionamento de alguns tribunais em relação ao assunto permeiam o reconhecimento dessas uniões. Os companheiros homoafetivos por muitos anos não tiveram seus direitos definidos, surgindo dessa forma, a necessidade da criação de leis específicas para resolução dos problemas em questão. A pensão por morte já é um benefício garantido ao indivíduo sobrevivente dessa relação, inclusive no STJ, que no tratamento dessas questões reflete em suas decisões avanços significativos. Deste modo, esse trabalho tem por objetivo analisar e discutir os direitos previdenciários e sucessórios do companheiro homoafetivo com base no direito fundamental e de igualdade da pessoa humana. Dessorte, o objeto em análise é atual e marcante, pois se trata de um assunto controverso e polêmico no mundo jurídico e fora dele, o que justifica seu estudo. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica, desenvolvida com base em material impresso e virtual já publicado, como livros, artigos e outras publicações relevantes da internet, assim proporcionando um aprofundamento e embasamento do estudo.

Desenvolvimento Direito de Igualdade da Família Atual Difícil encontrar uma definição de família que abranja ou mesmo dimensione no contexto atual e social dessa entidade. Segundo Gagliano & Pamplona Filho (2011, p.45), “família é um núcleo existencial integrado por pessoas unidas por um vínculo sócio-afetivo, teologicamente vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes”. Com o surgimento de novas estruturas de convívio sem uma terminologia adequada que as diferencie, seus componentes não têm lugares definidos, e a nova formação vem desafiando a possibilidade de uma conceituação única a sua identificação. Então passamos a buscar essa identificação em elementos que nos permitam enlaçar no conceito de entidade familiar com base em todos os relacionamentos que tem como origem um elo de afetividade.

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Eron Dino Leite Pereira

A Carta Magna de 1988 fez profundas transformações na realidade social e no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no Direito de Família. A Constituição de 1988 seguramente representa o instrumento jurídico mais importante na história do constitucionalismo brasileiro, sobretudo no que se refere aos direitos fundamentais e de igualdade do ser humano. No capítulo VII, art. 226 da Constituição Federal Brasileira, a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Houve a mais radical transformação no que concerne à tutela Constitucional da família, pois, não há qualquer referência a determinado grupo de família, o que propicia o começo da compreensão do seu conceito amplíssimo. Lima (2009, p.355) assevera que: [...] Para demonstrar que as relações homoafetivas constituem verdadeiras entidades familiares, temos como ponto de partida o rol descrito no artigo 226 da Constituição Federal, que, em nossa opinião, não é numerus clausus, e sim um rol exemplificativo, dada a natureza aberta das normas constitucionais. Para tanto, é essencial que se considere a evolução da família a partir de seus aspectos civis e constitucionais, buscando nos fenômenos da publicização e constitucionalização do Direito de Família, e, também, na repersonalização das relações familiares, os elementos para a afirmação das relações homoafetivas. A partir disso, encontramos um vasto campo para uma análise mais aprofundada da proteção legal das relações homoafetivas, assim como dos direitos que delas emanam, segundo o ordenamento jurídico vigente.

Como a lei nunca preocupou-se em definir a família, limitando-se apenas a identificá-la com o casamento, tivemos alguns resultados não tão verdadeiros o que levava muitas vezes, a julgar algumas situações e negar o direito quando se tratava de relações homoafetivas, caracterizadas como uma união. Vale destacar que a família é um dos grupos mais antigos da sociedade, e que ainda permanece em vigência, é claro, com funções reformuladas. Houve a repersonalização nas relações familiares na busca do atendimento aos interesses mais valiosos das pessoas humanas: afeto, solidariedade, confiança, respeito e amor. Gonçalves (2008, p.263) diz que: “a família exige de seus membros forte dose de compreensão, sacrifícios, capacidade de perdoar, solidariedade, espírito de renúncia, tolerância, afeição, amparo e assistência mútua”. Ao Estado, inclusive em suas funções legislativas e jurisdicionais foi imposto o dever jurídico Constitucional de implementar medidas necessárias e indispensáveis para a Constituição e desenvolvimento das famílias. É no Direito das Famílias em que mais se sente o reflexo dos princípios eleitos pela Constituição Federal, que consagrou como fundamentais valores sociais dominantes. O novo modelo de família funda-se sobre a repersonalisação da afetividade, pluralidade e pelo sistema de moral que tem por fim a felicidade do homem,

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obrigando uma nova roupagem ao direito de família, contribuindo para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes bem como, crescimento e formação da própria sociedade, justificando a sua proteção pelo Estado. A concepção de família com as mudanças constitucionais atualmente dispõem que os laços afetivos são suficientes para que se constitua uma família. O judiciário deverá sempre reconhecer como família todo e qualquer grupo no qual os seus membros distinguem uns aos outros como seu familiares. Nas palavras de Maria Berenice Dias, (2011, p.197) “o poder familiar é irrenunciável, intransferível, inalienável, imprescritível e decorre tanto da paternidade natural como da filiação legal e da sócio-afetiva”. As relações de pessoas do mesmo sexo ao longo da história receberam rotulações pejorativas e discriminatórias, porém essa realidade deve ter em vista os direitos constitucionais da igualdade, pois a lacuna existente na legislação não pode servir como obstáculo para o reconhecimento dos direitos da união homoafetiva. A família vem se diversificando ao longo dos anos, cada época com seu “estilo familiar”. Saindo de uma organização autocrática para uma organização democrático-afetiva, e, nas palavras do Doutrinador Caio Mário da Silva Pereira (2006, p.35) “o centro de sua Constituição deslocou-se do princípio da autoridade para o da compreensão e do amor importante destacar que neste período a família recebeu forte influência dos direitos humanos deflagrados na Revolução Francesa, que foram determinantes para sua transformação”. Acompanhando as mudanças religiosas, econômicas e sócio-culturais do contexto em que se encontram inseridas, é um espaço continuamente renovado e reconstruído. Hoje, novos arranjos familiares são identificados em nossa sociedade tais como as famílias formadas por casais homoafetivos, que se formam a partir de uniões livres com ligações afetivas que romperam com os velhos padrões de vida familiar, pautado na rigidez dos papeis sociais. Essas profundas mudanças de função, natureza e composição mudou completamente a concepção acerca dos direitos de igualdade da família atualmente.

Direito Sucessório do Companheiro Homoafetivo

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Antes da Constituição Federal de 1988, a relação entre companheiros sequer era reconhecida e tampouco recebia proteção do Estado, pois este tinha como família legitimamente constituída tão somente aquela oriunda da união pelo casamento. Assim, muitos entre nós estaríamos predestinados a não sermos frutos de uma família, já que somente as pessoas unidas pelo casamento eram consideradas como tal. Este entendimento estava intimamente ligado aos dogmas do direito canônico e, consequentemente, teve reflexos no direito brasileiro. Para a igreja católica, através do direito canônico, o casamento era considerado um sacramento não sujeito a dissolução e, por isso, qualquer união entre homem

Eron Dino Leite Pereira

e mulher fora do casamento era considerada precária e passível de dissolução a qualquer tempo, sendo assim classificada como concubinato. Nesta medida, por muito tempo o concubinato foi um assunto excluído dos estudos de alguns civilistas por ter sido considerado irrelevante sob o ponto de vista jurídico. Após as mudanças apresentadas na Constituição, caracterizando principalmente a união estável como entidade familiar, houve o surgimento de novas regras sobre a matéria, contida nas Leis nº. 8.971/94 e nº. 9.278/96, culminando em uma nova disposição da temática no Código Civil de 2002. O caput do artigo 1.790 determina que o companheiro sobrevivente somente participe da sucessão com relação aos bens adquiridos a título oneroso na vigência da união estável. Assim, em havendo bens adquiridos antes da união estável, o companheiro não terá qualquer direito sucessório sobre esses. Da mesma forma, se os bens forem adquiridos a título gratuito (ex: doação em que só há vantagem para o companheiro donatário), o companheiro sobrevivente também estará excluído da sucessão. Desse modo, esses bens, definidos como bens particulares, serão divididos somente entre os parentes do falecido. Desde então, a Constituição Federal passa a olhar o aspecto funcional de cada um, bem como a dignidade de cada ente pertencente à família, deixando de observar a família apenas como um vínculo formal. A base dessa garantia legal assegurada aos companheiros vem da proteção Constitucional a dignidade da pessoa humana, prevista no art. 1º, III da Carta Magna. De uma forma geral, este assunto apresenta a evolução da própria sociedade brasileira no que diz respeito à união entre pessoas do mesmo sexo e seus direitos hereditários e fundamentais. Para dizer que vivemos em um Estado Democrático de Direito muito ainda precisamos avançar no sentido de priorizar a dignidade da pessoa humana, tendo a liberdade e a igualdade como princípios fundamentais. A união homoafetiva somente é abordada em ordem doutrinária e jurisprudencial, onde surgem opiniões diferentes a cada caso concreto e por consequência gera a insegurança jurídica. O casal homoafetivo deverá proteger-se mutuamente através da realização de dois testamentos distintos, onde cada um, individualmente, deixará para o outro a parte que lhe caiba do patrimônio comum do casal e dos seus bens particulares, se assim o desejarem, eis que se testarem na modalidade conjuntiva, fica aberta aos herdeiros legítimos a via judicial para se obter a declaração de sua nulidade (VARGAS, 2011). Segundo Dias (2011, p. 85): Não demorou para a justiça abandonar a analogia e reconhecer as uniões homoafetivas como união estável. Passando duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo a manter relação duradoura, pública e contínua, como se casadas fossem, formando um núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a que pertencem. Mister identificá-las como união estável. Esse vanguardismo que se deve à justiça gaúcha vem encontrando eco na maioria dos tribunais brasileiros.

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O julgamento da ADI 42772 que teve como relator o ministro Ayres Britto, cujo voto foi favorável a interpretação conforme a Constituição Federal, dispôs que o artigo 1.723 do Código Civil não crie obstáculos ao reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. O relator afirmou em seu voto que “não se deve discriminar ou diminuir as pessoas em função de sua preferência sexual e que qualquer depreciação feita aqueles que vivem em união estável homoafetiva entra em colisão com o artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal”. Com a ADI 4277, as uniões homossexuais ganharam status de união estável tal qual às uniões entre casais heterossexuais, ou seja, são consideradas entidades familiares, há a consolidação de direitos antes desprezados. No caso de relação homoafetiva ao convivente sobrevivo será aplicado o artigo 1.790 do Código Civil, onde determina que “participará da sucessão do outro quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável” (NICOLAU, 2011, p. 89). O inciso II do artigo 1.790 determina que se o companheiro sobrevivente concorrer com descendentes só do falecido, terá direito à metade do que cada um deles receber. Dessa forma, partilhando-se os bens, ao companheiro será entregue uma parte da herança e a cada um dos descendentes o dobro da quota que aquele receber, considerando a herança limitada aos bens adquiridos onerosamente durante a convivência do casal conforme vinculação do caput do artigo, pois, os demais bens serão recolhidos apenas pelos descendentes do falecido. Diante da redação do inciso II, Rodrigues (2004, p. 158) destaca que: A redação é defeituosa, pois nem todos os descendentes chamados terão, forçosamente, direito a frações idênticas: o legislador pela redação dada ao dispositivo, parece ter partido da premissa oposta (e equivocada). É perfeitamente possível que, concorram, por exemplo, filhos e netos do autor da herança, quando os últimos sejam convocados por direito de representação e, consequentemente dividam a quota do filho pré-morto (novo Código Civil, arts. 1.835 e 1.855). “A metade”, a que se refere o texto legal, deve ser, pois, calculada sobre a fração que couber aos descendentes chamados por direito próprio: havendo a simultânea vocação de filhos e netos (apenas) do de cujus, a parte do companheiro deverá corresponder à metade do que tocar singularmente a cada filho e a(s) estirpe(s) do(s) filho(s) pré-morto(s).

Nota-se que outra hipótese frequente ficou esquecida pelo legislador qual seja: quando o companheiro sobrevivente for chamado a suceder em concorrência com os descendentes comuns (filhos do casal) e ao mesmo tempo com os descendentes apenas do falecido. Essa hipótese é denominada pela doutrina como filiação híbrida. Nesse sentido, Gonçalves (2007, p. 175) nos ensina que: 2

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Portal Jus Brasil. Disponível em: . Acesso em: 18 Ago.2015.

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Como a lei não prevê solução para a hipótese em que os filhos têm origem híbrida, a omissão dá ensejo à mesma discussão [...], na qual se entrechocam três correntes antagônicas. Uma delas vislumbra a possibilidade de partilhamento da herança considerando todos os filhos como se fossem comuns, para atribuir ao companheiro quota igual à que lhes for destinada. Outra restringe a quota do companheiro à metade do que àqueles couber. Uma terceira, por fim, propõe a realização de um cálculo proporcional do que caberia ao companheiro, considerando-se quota igualitária com relação aos filhos havidos em comum, e só metade do que coubesse aos demais.

Percebe-se, portanto, que a ausência de previsão da hipótese acima comentada, gerou polêmica, fazendo com que a doutrina propusesse diversas soluções para o tema. Os doutrinadores controvertem na medida em que uns defendem a aplicação do inciso I, enquanto outros entendem pela incidência do inciso II. Parece que o legislador quis dar tratamento diferenciado às hipóteses de concorrência do companheiro com os descendentes do falecido de um ou de outro grupo. No entanto, há de se observar o Princípio Constitucional contido no art. 226, § 6º da Constituição Federal de 1988, garantidor da igualdade de direito entre os filhos, independente de origem. Desse modo, “seria logicamente inadmissível cogitar de solução por meio da qual os critérios dos incisos I e II fossem, ambos, aplicados simultaneamente” (PEREIRA, 2004, p.159), pois, se assim fosse, estariam os filhos comuns prejudicados patrimonialmente. A solução mais favorável, defendida pelos doutrinadores para a hipótese de filiação híbrida, seria a aplicação do inciso I, fazendo a partilha por cabeça. Assim, ao companheiro será entregue a mesma quota cabível a cada um dos descendentes, independente de ser filho comum ou só do falecido. Nesse sentido, Venosa (2007, p. 136) defende a aplicação do inciso I para filiação híbrida argumentando o seguinte: Essa conclusão deflui da junção dos dois incisos, pois não há que se admitir outra solução, uma vez que os filhos, não importando a origem, possuem todos os mesmos direitos hereditários. Trata-se, porém, de mais um ponto obscuro entre tantos na lei, que permite a multiplicidade de interpretações [...].

Na busca da solução do problema, Rodrigues (2004, p.159) destaca: Inclinamo-nos por adotar a solução mais favorável ao companheiro, que é a do inciso I do art. 1.790: partilha por cabeça, em igualdade de condições para os co-herdeiros (ou, mais precisamente, para todos aqueles chamados por direito próprio), levando em conta a circunstância de o novo Código não ter reservado, em benefício daquele, a quota mínima deferida ao cônjuge, na hipótese de descendência comum (art. 1.832, parte final, CC/2002).

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Desta feita, conforme posicionamento apresentado pelos doutrinadores citados, pode-se concluir que a aplicação do inciso I do artigo 1.790, na hipótese de filiação híbrida, seria sem dúvida a solução mais favorável ao companheiro. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sempre marcado pelas posições de vanguarda de seus membros, que contém um dos primeiros e únicos acórdãos no país reconhece o direito sucessório ao companheiro homossexual, nos seguintes termos: [...] União homoafetiva. Possibilidade jurídica. Observância dos princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana. Pela dissolução da união havida, caberá a cada convivente a meação dos bens onerosamente amealhados durante a convivência. Falecendo a companheira sem deixar ascendentes ou descendentes caberá à sobrevivente a totalidade da herança. Aplicação analógica das Leis n.º 8.871/94 e 9.278/96. Por maioria, negaram provimento, vencido o revisor. [...]3

O julgado acima trata de recurso a partir de uma interpretação sistemática dos princípios e regras que regem o ordenamento jurídico e que se revelam como uma alternativa harmônica e viável para resolver a controvérsia, sem a necessidade de alteração legislativa expressa no artigo 1.790 do Código Civil, enquanto se resolve pela constitucionalidade ou não do dispositivo legal. Existem muitas controvérsias se os companheiros sucedem somente sobre os bens onerosos adquiridos na constância da união estável ou, se independe da época ou a que título o bem foi adquirido. Há, porém, dois entendimentos sobre a base de cálculo para a sucessão do companheiro. Uma corrente defende que a matéria está vinculada e, sendo assim, os incisos devem ser interpretados de acordo como caput do artigo, ficando a sucessão do companheiro limitada aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. A outra defende que a interpretação dos incisos deve ser a gramatical, levando-se em consideração a expressão herança usada pelo legislador. Sendo assim, a sucessão do companheiro se dará pela totalidade dos bens, incluindo os particulares e comuns. Levantando a questão da expressão “herança” contida nos incisos do artigo 1.790, o professor Luiz Paulo Vieira de Carvalho (2008, p. 287) leciona: [...] Ora, com efeito, a expressão herança abrange todo o conjunto de bens, direitos e obrigações transmissíveis do falecido (é uma universalidade de direitos e coisa indivisa até a partilha – art. 91 e art. 1.791 do CC) e não se restringe apenas a eventuais aquestos.

Indagam-se, portanto alguns doutrinadores ainda, se os incisos III e IV do art. 1.790, seriam autônomos, independentes do caput. Nesse sentido, Carvalho (2008, p. 287) enfatiza que: 3

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TJRS, Apelação Cível 70006844153, 8ª Câmara Cível, Rel. Catarina Martins, j. 18/12/2013.

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Se autônomos, isto é, desvinculados do caput, na hipótese do inciso IV do art. 1.790 do CC, não havendo ascendentes, descendentes e colaterais, o companheiro sobrevivente não concorre com o poder público, isto, sobrepõese a este, recebendo toda a herança legal deixada pelo falecido, incluindo-se aí os bens particulares e comuns deixados pelo morto, independentemente da meação obtida inter vivos pelo companheiro sobrevivo (sendo sabido que, como já dito, na falta de acordo em contrário, o regime patrimonial de bens na atualidade aplicável à união estável é o regime da comunhão parcial).

Contudo, considerando os incisos III e IV do art. 1.790 autônomos, ou, interpretando-os com a devida vinculação ao caput, o fato é que alguns tribunais têm entendido ser o artigo 1.790 do CC inconstitucional por ferir os princípios constitucionais da igualdade e dignidade. Nessa linha de raciocínio, tem decidido por equiparar os direitos sucessórios do companheiro aos do cônjuge. Finalmente, inexistindo parentes colaterais até o quarto grau, a herança composta pelos bens adquiridos onerosamente na constância da união será deferida ao companheiro sobrevivente em sua totalidade, conforme dispõe o inciso IV do art.1.790 do CC. Maria Berenice Dias, (2011, p.185) afirma que chamar as uniões de pessoas do mesmo sexo de sociedade de fato, e não de união estável “leva à sua inserção no direito obrigacional, com consequente alijamento do manto protetivo do direito das famílias, o que, em consequência, enseja o afastamento de direitos sucessórios”.

Direito Previdenciário Antigamente em quase todos os sistemas jurídicos, prevalecia a noção de que apenas os direitos da liberdade eram de aplicabilidade imediata, ao passo que os direitos sociais tinham aplicabilidade mediata, por via do legislador. Assim, cresceu o juízo de que esses direitos representam, de certo modo, uma ordem de valores. As prescrições desses direitos são também direitos objetivos e isso levou, segundo Carl Schmitt, à superação daquela distinção material entre as duas partes básicas da Constituição, em que os direitos fundamentais eram direitos públicos subjetivos, ao passo que as disposições organizatórias constituíam unicamente direito objetivo. (BOBBIO, 1992). Segundo Bonavides, (1996): A concepção de objetividade e de valores, relativamente aos direitos fundamentais, fez com que o princípio da igualdade, tanto quanto o da liberdade, tomasse também um sentido novo, deixando de ser mero direito individual, que demanda tratamento igual e uniforme, para assumir, conforme demonstra a doutrina e a jurisprudência do constitucionalismo alemão, uma dimensão objetiva de garantia contra atos de arbítrio do Estado.

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A Constituição Federal de 1988, que estabelece em seu artigo 201: Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: I - cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada; II - proteção à maternidade, especialmente à gestante; III - proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário; IV - salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda; V - pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no § 2º.

Sobre Previdência Social, Correia (2007, p. 17), quanto ao termo seguridade social, descreve como: Conjunto integrado de medidas públicas de ordenação de um sistema de solidariedade para a prevenção e remédio de riscos pessoais, mediante prestações individualizadas e economicamente avaliáveis, agregando a ideia de que, tendencialmente, tais medidas se encaminhem para a proteção geral de todos os residentes, contra as situações de necessidade, garantindo um nível mínimo de renda. 

A Previdência Social Brasileira busca consolidar o que dispõe a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que dispõe na 1ª parte de seu artigo XXV: Miranda (2007, p. 137) conceitua Previdência Social como: Sistema de proteção social, de caráter contributivo e em regra de filiação obrigatória, constituído por um conjunto de normas principiológicas, regras, instituições e medidas destinadas à cobertura de contingências ou riscos sociais previstos em lei, proporcionando ao segurado e aos seus dependentes benefícios e serviços que lhes garantam subsistência e bem-estar.

Ocorrendo qualquer circunstância que impeça ou limite a capacidade de trabalho, caberá ao Estado garantir a dignidade e a subsistência dessas pessoas. Pois, o Estado Democrático e Social de Direito deve prover as pessoas sempre que elas não disporem de recursos para tal, como forma de se efetivar os direitos humanos, garantindo assim a Dignidade Humana (MIRANDA, 2007, p. 138). Com o interesse do Estado em regular a seguridade social, foi criado assim a previdência social, que conforme Santos (2003, p. 169) A previdência social protege necessidades decorrentes de contingências expressamente previstas na Constituição e na legislação infra-constitucional, mediante o pagamento de contribuições. Somente aquele que contribui tem direito subjetivo à prestação na hipótese de a ocorrência da contingência prevista em lei gerar a necessidade juridicamente protegida.

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 Neste mesmo sentido temos a seguinte definição de Correia (2007, p. 17) para Previdência Social: “Um instrumento estatal, específico de proteção das necessidades sociais, individuais e coletivas, sejam elas preventivas, reparadoras e recuperadoras, na medida e nas condições dispostas pelas normas e nos limites de sua capacidade financeira”. Correia (2007, p. 18) ainda afirma que “o Direito Previdenciário é o ramo do Direito Público que visa normatizar, regular e estudar a seguridade social, a previdência pública e privada e a assistência social; como forma de efetivar o Estado de Bem Estar Social”.

Direito Previdenciário dos Homoafetivos Devido à falta de regulamentação de alguns direitos dos casais homoafetivos, no mundo jurídico, a solução de alguns problemas ficam à mercê da análise por parte da doutrina em solucionar alguns conflitos no que tange os direitos fundamentais acerca dos direitos dos homossexuais. “A união homoafetiva em muito se assemelha à união estável, diferindo desta na medida em que o legislador Constituinte considera união estável tão somente aquela que se verifica entre homem e mulher” (CF/88, art. 226, § 3º). A regulamentação dos direitos dos parceiros homoafetivos enquanto dependentes previdenciários fazem com que a doutrina jurídica debruce sobre estudos que possam verificar a condição dos parceiros para que venham a se tornar dependentes previdenciários em caso de morte de um deles. Castro e Lazzari (2009, p.213) asseveram que: Existem situações previstas em lei nas quais não há necessariamente dependência econômica: como por exemplo, mesmo que ambos os cônjuges exerçam atividade remunerada, um é considerado dependente do outro, para fins previdenciários, fazendo jus a benefícios, mesmo que aufiram ganhos decorrentes de atividade laborativa.

O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) regulamentou por meio de instrução normativa a maneira como o companheiro homossexual deve comprovar essa união. A regulamentação administrativa equiparou os dependentes homossexuais àqueles previstos no inciso I do art. 16 do PBPS, sendo igualmente titulares do direito à pensão por morte e auxílio-reclusão. Art. 25. Por força da decisão judicial proferida na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0, o companheiro ou a companheira do mesmo sexo de segurado inscrito no RGPS integra o rol dos dependentes e, desde que comprovada a vida em comum, concorre, para fins de pensão por morte e de auxílio-reclusão, com os dependentes preferenciais de que trata o inciso I do art. 16 da Lei nº 8.213, de 1991, para óbito ou reclusão ocorridos a partir de 5 de abril de 1991, conforme o disposto no art. 145 do mesmo diploma legal, revogado pela MP nº 2.187-13, de 2001.

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O art. 25 da IN 45/2010, haja vista que, devido ao preconceito que ainda impera em nossa sociedade dita contemporânea, muitas uniões homoafetivas não se mostram públicas como acontece na união estável e, naturalmente, no matrimônio, em especial aquelas em que não houve a formalização do ato (DIAS, 2011). Mediante o art. 45: A inscrição do dependente será realizada mediante a apresentação dos seguintes documentos: “(...) § 2º Para o (a) companheiro(a) do mesmo sexo, deverá ser exigida a comprovação de vida em comum, conforme disposto na Ação Civil Pública nº 2000.71.00.009347-0”. Os demais artigos relacionados aos direitos previdenciários dos homossexuais dispõem que: Art. 54 - São garantidos iguais direitos previdenciários a todas as pessoas, independentemente da orientação sexual ou identidade de gênero. Art. 55 - É vedada às instituições de seguro ou de previdência, públicas ou privadas, negar qualquer espécie de benefício tendo por motivação a condição de homossexual, lésbicas, bissexual, transexuais, travestis, transgêneros ou intersexuais do beneficiário. Art. 56 - As operadoras de planos de saúde não podem impedir ou restringir a inscrição como dependente no plano de saúde, do cônjuge ou do companheiro homoafetivo do beneficiário. Art. 57 - O cônjuge ou o companheiro homoafetivo tem direito à pensão por morte, auxílio-reclusão e a todos os demais direitos, na condição de beneficiário junto ao Instituto Nacional de Seguro Social – INSS. Art. 58 - O cônjuge ou o companheiro da união homoafetiva tem direito, na condição de dependente preferencial, a perceber a indenização em caso de morte, como beneficiário do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Via Terrestre, ou por sua Carga, a Pessoas Transportadas ou não – Seguro DPVAT.

Todos aqueles que vivem em uniões de afeto com pessoas do mesmo sexo, devem estar enquadrados no rol dos dependentes preferenciais dos segurados. Tal união é defendida pelo princípio da preservação da dignidade humana e pela analógica aplicação da união estável do art. 1.723 ao art. 1.727 do Código Civil. A segunda Turma do STF negou por unanimidade em 16.08.2011 recurso de agravo regimental interposto pela filha de uma das partes em união homoafetiva contra a concessão de benefício previdenciário de seu falecido pai ao companheiro dele.

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“Vide RE 477554. EMENTA: AÇÃO ORDINÁRIA RECONHECIMENTO DE DIREITO AO RECEBIMENTO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO - CONTRATO FIRMADO COM ENTIDADE DE PREVIDÊNCIA PRIVADA - UNIÃO HOMOAFETIVA COMPROVADA - TENTATIVA DE INCLUSÃO DO COMPANHEIRO COMO DEPENDENTE - INÉRCIA DA CONTRATADA - AUSÊNCIA

Eron Dino Leite Pereira

DE PREVISÃO CONTRATUAL QUE VEDE A POSSIBILIDADE DO SEGURADO POSSUIR UM COMPANHEIRO OU COMPANHEIRA - VEDAÇAO QUE CASO EXISTISSE SERIA NULA DE PLENO DIREITO - PRÁTICA DISCRIMINATÓRIA QUE NÃO É ACEITA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO - INTERPRETAÇÃO CONTRATUAL RESTRITIVA DE DIREITOS DO CONTRATANTE FRUSTAÇÃO INDEVIDA DE SUAS EXPECTATIVAS - OBRIGAÇÃO DE PAGAR A PENSÃO PREVIDENCIÁRIA DECORRENTE DA MORTE DO COMPANHEIRO QUE DEVE SER DECRETADA PELO PODER JUDICIÁRIO. - Comprovada a existência de união estável homoafetiva, bem como a dependência entre os companheiros e o caráter de entidade familiar externado na relação, é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente o direito de receber benefícios previdenciários decorrentes de plano de previdência privada. Tolher o companheiro sobrevivente do recebimento do benefício previdenciário, ensejaria o enriquecimento sem causa da entidade de previdência privada, que permitia quando da celebração do contrato que o segurado possuísse companheiro e ainda garantia, que este seria beneficiário do plano quando algum sinistro ocorresse, portanto, o fato de tal companheiro ser do mesmo sexo do contratante (união homoafetiva) jamais enseja um desequilíbrio nos cálculos atuariais a impedir o pagamento pleiteado, prejuízos esses, os quais sequer foram comprovados nos autos”.

Mesmo que o Direito Previdenciário deva seguir o princípio da legalidade, isto não significa que da omissão do legislador possa advir tratamento desigual entre as pessoas, indo de encontro aos direitos constitucionais. Para a primeira classe de dependentes como cônjuge, companheiro (a), filhos não emancipados, de qualquer condição, até 21 anos, ou inválidos, basta que o companheiro comprove a relação de convivência, prescindindo da comprovação de dependência econômica, conforme se aduz da leitura do parágrafo 3° do artigo 16 da Lei dos Benefícios Previdenciários (MORAES, 2006). Segundo Moraes (2006, p.36): O princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia Constitucional do que de um direito individual, já que não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura ao particular a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma ou outra via que não seja a da lei.

As normas devem ser interpretadas com o objetivo de saber qual o conteúdo deve ser dado à norma individual de uma sentença, norma esta, a ser deduzida da norma geral da lei, na sua aplicação no caso concreto. A interpretação da norma deve ser feita pelo aplicador do Direito quando “julga a incidência da lei no caso concreto, mas ela também deve ser feita por uma pessoa privada, um particular, e pela ciência jurídica, doutrinadores” (KELSEN, 2003, p.388).

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Conclusão

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Após profunda análise da legislação pertinente e de exaustivas pesquisas doutrinárias acerca dos direitos sucessórios, podemos concluir que a sociedade brasileira em muito evoluiu no que diz respeito à união entre pessoas do mesmo sexo. Na esteira desses acontecimentos, surgiram os direitos sucessórios resultantes desse vínculo. Com o advento do século XX cresceu o número de uniões informais, que pouco a pouco vem ganhando amparo e reconhecimento. Em decorrência da promulgação da Constituição Federal de 1988, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana, a união entre casais do mesmo sexo, vem recebendo proteção do Estado, tornando-se reconhecida como entidade familiar e passando a ser denominada “união estável”. Desde então, muito se discute se a proteção contida na Carta Magna equiparou a união estável e o casamento. De qualquer forma, muito embora a nova união tenha sido protegida pelo Estado, ainda assim não se falou no direito sucessório do companheiro na CF de 88. Surgiu dessa maneira, a necessidade de regulamentação da questão sucessória. É daí que o legislador, com o desejo de amparar a nova união protegida pelo Estado, promulga a Lei 8.971/94, que passa a regular o direito dos companheiros a alimentos e a sucessão. Essa lei assegurou aos companheiros a proteção há muito reclamada. Dessa forma, com base na Constituição de 1988 o legislador protegeu e garantiu os direitos do companheiro homossexual. Entretanto, para isso, estabeleceu alguns requisitos a serem cumpridos para o gozo desses direitos. Diante da evolução do direito sucessório do companheiro homossexual, várias questões acerca da equiparação dos direitos de igualdade foram levantadas por parte dos doutrinadores que confirmam que a ambos devem ser conferidos direitos similares. Ao proceder desta forma o Estado deve cumprir com os fins do próprio Estado, quais sejam: igualdade, dignidade, liberdade, bem-estar dentre outros princípios elencados no Preâmbulo da Constituição Federal. O Estado Democrático e Social de Direito deve prover as pessoas sempre que elas não disporem de recursos para tal, como forma de se efetivar os direitos humanos. O Estado deve manter o interesse de regular a seguridade social do cidadão. Através desse contexto é que veio a necessidade de regular a Previdência Social, com a finalidade de proteger as necessidades sociais como forma de efetivar o bem estar social dos casais homoafetivos. Algumas empresas estatais como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Petrobrás, entre outros, tem acatado a inclusão do dependente homoafetivo para fins de pensão por morte e beneficiário de seguro/previdência privada. Atualmente, também já é possível incluir o companheiro (a) como dependente nos Planos de Saúde de natureza privada, e a Receita Federal também autorizou o casal a incluir seu  companheiro na declaração de Imposto de Renda como dependente homoafetivo.

Eron Dino Leite Pereira

É preciso considerar que os “códigos” morais e valores são construídos histórica e socialmente. Ainda que se esteja nas primeiras décadas do século XXI e que progressos tenham ocorrido em relação à defesa da integridade humana, a questão da tolerância com relação às minorias (mulheres, negros, homossexuais, entre outros grupos) parece não estar resolvida; considerando-se também que esta questão toca a fronteira da religiosidade das pessoas, reverberam-se discursos diversos, os quais, em nome de outros valores que consideram “morais”, esvaziam a defesa da igualdade e da liberdade (fundamentais na moral ocidental) entre os indivíduos, independentemente de sua sexualidade. Dessa forma, pode-se entender que é dever do Estado criar mecanismos para preservação da dignidade humana, a qual não diz respeito apenas a gênero ou orientação sexual, mas sim ao homem enquanto ser autônomo e emancipado. A discussão, a polêmica e o debate propriamente dito fazem parte da vida em sociedade e, além disso, são positivos quando objetivam buscar consensos em nome da tolerância da coesão social. Por outro lado, a imposição de ideias e posicionamentos (em uma ou outra direção), ainda que sejam em nome de uma “causa nobre”, seguem na contramão das liberdades e da construção de um tecido social democrático e tolerante com as diversidades, independente quais sejam.

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A Discricionariedade do Juiz e o Princípio da Integridade proposto por Ronald Dworkin Lorena Campos Vieira1 Resumo O presente trabalho tem como objetivo abordar o instituto da discricionariedade do juiz e o princípio da integridade proposto por Ronald Dworkin. O principal enfoque é discutir o poder da discricionariedade do magistrado em casos difíceis, a possibilidade da aplicação da conveniência e da oportunidade sem ferir o ordenamento jurídico e ainda, apresentar pontos de vistas do renomado filósofo Dwokin a respeito do assunto. Palavras-chave: Discricionariedade; conveniência e oportunidade; limites. Abstract This study aims to address the discretion of the Institute of the judge and the principle of integrity proposed by Ronald Dworkin. The main focus is to discuss the power of the magistrate’s discretion in difficult cases, the possibility of applying the convenience and opportunity without hurting the legal system and also present viewpoints of renowned philosopher Dwokin on the subject. Keywords: Discretion; convenience and opportunity limits.

Introdução O presente trabalho tem como tema o polêmico instituto da discricionariedade judicial, a qual urge por aceitação e entendimento, tendo em vista que se trata de uma necessidade que se fundamenta no estado democrático de direito e na eficaz complementação dos direitos fundamentais, não podendo mais ser relegada nos dias atuais. Muitos têm a figura do juiz como um Deus, soberano, estigma este que pode ser explicado pela autoridade de que foi investido, causando certa impressão de homem superior, a que todos estão submetidos. A verdade é que o juiz é um agente do poder público subordinado às restrições que lhe são impostas pela organização estatal que tomou para si a função de julgar os conflitos sociais e delegou ao magistrado a obrigação de decidir tais conflitos dentro das normas legais vigentes. 1

Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas Vianna Júnior; Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e Mestranda em Direito da UNIPAC – Juiz de Fora.

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Daí falar em criatividade ou discricionariedade judicial, advindas e fundamentadas no princípio da legalidade, como faculdades inerentes à atividade judicial, imprescindíveis à resolução dos casos que não se encontram postos na lei, pela impossibilidade de previsão normativa pelo legislador ou que são postos de formas destoantes com a justiça do caso em apreciação. Esse fenômeno se dá, também, em virtude da reiterada adoção das cláusulas gerais e dos “conceitos jurídicos indeterminados”, conceitos vagos ou imprecisos, vale dizer, fórmulas cuja exata definição do sentido exige a consideração das circunstâncias concretas e da interpretação valorativa do magistrado para serem implementadas. Ademais, é cediço que a lentidão da justiça, a morosidade dos processos clamam por um novo juiz. Um juiz que trate não somente dos “novos direitos”, mas que também tenha habilidade para entender e para cumprir as suas funções, sem deixar de lado a sua responsabilidade ética e social, pois, as novas situações carentes de tutela não podem, em casos não raros, suportar o mesmo tempo que era gasto para a implementação dos direitos de anos trás. Diante do quanto exposto, depreende-se, de logo, que com uma pequena sensibilidade para identificar o clamor social, poder-se-á sentir que o Judiciário não atravessa imune as surpresas que envolvem toda a atuação estatal. Se o próprio conceito de estado, suas formas e regimes exigem reformulação, todos os seus órgãos e entidades integrantes padecem das mesmas enfermidades lógicas. Diante desse contexto, o constituinte de 1988, entregou ao judiciário a missão de pacificar a sociedade, sem lhe retirar a tarefa clássica de solução dos conflitos individuais. Mais do que isso veio a dar novo ao juiz brasileiro um novo papel. Nesse sentido, na atual conjectura do ordenamento jurídico, o importante tema em questão, vem esclarecer e tratar da problemática da difícil tarefa do julgar associada ao seu caráter discricionário, função esta que, em determinado caso concreto, concede-se ao agente público escolher, segundo critérios de conveniência e oportunidade, um entre mais comportamentos, todos igualmente incertos nos limites da legalidade e com o mesmo grau ótimo de atendimento à finalidade da lei, face à emergência de novas competências e da ampliação dos poderes outorgados ao juiz nos dias de hoje, os quais são exigidos pela complexidade da vida moderna. Para tanto, com esse estudo pretende-se esclarecer a discricionariedade judicial traçando seu conceito, suas principais características, averiguandose, por conseguinte, a existência ou inexistência do controle existente no ordenamento jurídico, de “discricionariedade” concedida ao juiz a fim de que as lides tomem seu rumo ao ideal de efetividade e justiça. Ainda como escopo do estudo será abordado o princípio da integridade proposto por Ronald Dworkin, que sem sombra de dúvidas foi um dos principais protagonistas que discorreram sobre a aplicação das leis em casos difíceis, criticando duramente àqueles que defendiam a criação de um novo direito, o que para ele é simplesmente inadmissível.

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Há muito se discute acerca do conceito de direito e das formas de solução de casos onde não se encontra guarida na norma positivada. Os posicionamentos doutrinários se divergem, e cabe a cada operador analisar e retirar o conceito que melhor lhe ocorre dos julgamentos de casos onde não se encontra regra, ou ainda, quando mais de uma regra os disciplina. Quando não há no caso concreto, regra que se aplica a tal no ordenamento jurídico, ou ainda quando há mais de uma regra solucionadora de tal caso, ou então, quando a solução do caso causa extrema estranheza aos costumes e a coletividade, o magistrado então irá se deparar com um caso difícil, diferente dos casos facéis, onde simplesmente com a regra o magistrado soluciona a lide, em tese pragmática e analiticamente. É neste momento em que estamos diante a tão discutida e complicada discricionariedade, momento este em que o juiz consciente de sua função, deve apreciar vários critérios, dentre eles a circunstância do caso concreto, a moral, a opinião de instituições que estão ou devem estar coerentes com o grupo social e a Constituição. Desta forma, segundo o positivismo jurídico, diante os casos difíceis, os juízes possuem poder discricionário para decidir. Casos difíceis são aqueles que não podem ser decididos apenas com base em regras, ou porque essas não são claras, ou porque não foram escritas. Em virtude do já exposto os casos difíceis, assim denominados por Ronald Dworkin, é sinônimo de lacuna da lei, utilizados principalmente pelos positivistas. A partir desta teoria, quando o juiz decide um caso difícil, ele legisla novos direitos jurídicos, e os aplica retroativamente. Por isso, segundo Dworkin uma teoria sobre a validade das leis é sempre interpretativa, e é o modo como se deve interpretá-las que deve ser justificado.

A Discricionariedade Judicial e seu Campo Conceitual De logo, é preciso salientar que a palavra discricionariedade tem a sua raiz no verbo latino discernere o que significa separar, distinguir ou avaliar. O passar dos tempos e o desenvolvimento da ciência jurídica, conduziram, à descoberta de que efetivamente, o papel do juiz é muito mais difícil e complexo, do que se supunha até então, e de que o juiz, moral e politicamente, é bem mais responsável por suas decisões do que haviam sugerido as doutrinas tradicionais. Para alguns a escolha constitui discricionariedade, embora não necessariamente arbitrariedade, mas, sim, valoração e balanceamento. Significa ter presentes os resultados práticos e as implicações morais da própria escolha; significa ainda que devem ser empregados não apenas os argumentos da lógica abstrata, ou talvez os decorrentes da análise linguística puramente formal, mas também e, sobretudo, aqueles da história, da economia, da política e da ética, da sociologia e da psicologia.

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Elucida, com maestria, Luís Roberto Barroso que a nova interpretação Constitucional envolve escolhas pelo juiz, bem como a integração subjetiva de princípios, normas abertas e conceitos jurídicos indeterminados.2 É preciso registrar que não pode mais o juiz ocultar-se tão facilmente por detrás da frágil defesa da concepção do direito como um conjunto de normas preestabelecidas, claras e objetivas, nas quais pode basear a sua decisão de forma neutra. Logo, diante da crescente complexidade social e da velocidade da sua transformação, o legislador vai sempre conceder um grau de discricionariedade às concretizações da realidade, para garantir uma decisão correta no caso concreto. Não há como negar, também que há situações submetidas ao pleito do Judiciário para as quais existem alternativas de decisões válidas e legítimas, de maneira que o julgador, baseado nas peculiaridades do caso concreto, bem como nas suas convicções político-sociais, poderá optar livremente pela hipótese que lhe parece ser a mais coerente, vale dizer, que melhor lhe convencer, considerando que a sua escolha será feita sempre de forma motivada. Este instrumental mais flexível, e, portanto, adjudicador de maior poder aos juízes, vem-se mostrando crescentemente como uma necessidade nos dias atuais. É importante realçar que a discricionariedade conferida ao magistrado possui uma zona de abrangência, limite, ou seja, sua liberdade de convencimento não poderá extrapolar os limites do razoável, do proporcional, do exigível, do adequado. Na verdade, a valoração feita pelo juiz para a solução de questões não prescritas expressamente no ordenamento jurídico pátrio deve coadunar-se com as concepções sociais vigentes e dominantes, sendo que seus critérios pessoais não haverão de conflitar com o que se considera padrão na sociedade em que se vive. Na lição de Arruda Alvim a discricionariedade, como instituto de dualidade, ou pluralidade de soluções, todas igualmente válidas, em face da lei, que as encampa, dependentemente da motivação justificadora da eleição de um ou outro caminho, deve, todavia, ser distinguida das hipóteses em que existe, apenas, uma intensidade de valoração por parte do juiz.3 Desenvolvendo o seu pensamento, afirma ele que para estas hipóteses, somente num sentido impróprio se haverá de falar em discricionariedade, porquanto, estas outras normas, ainda que proporcionando amplo espectro de indagação/decisão, para o magistrado, são intencionalmente preordenadas a terem num dado momento e num dado lugar, somente uma interpretação, para o fim de abrangerem ou não uma dada hipótese. 2

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BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica Constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços, 2003. p.334. 3 ALVIM, Arruda. A arguição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p.16.

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Mais uma vez impõe-se repetir que, em alguma medida, toda interpretação é criativa, e que sempre se mostra inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional. Mas, obviamente, alerta o autor, nessas novas áreas abertas à atividade dos juízes haverá, em regra, um espaço para mais elevado grau de discricionariedade e, assim, de criatividade, pela simples razão de que quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo torna-se, também, o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias. Esta é, portanto, a grande causa da acentuação que, em nossa época, teve o ativismo, o dinamismo e, enfim, a criatividade dos juízes. Não se pode ocultar para ele, é certo, que a diferença em relação ao papel mais tradicional dos juízes é apenas de grau e não de conteúdo. Pode-se observar que a ordem jurídica de um determinado país nunca se encontra plenamente satisfeita apenas pelas disposições das suas leis escritas. Mesmo que, através do procedimento de uma lógica rigorosa, deduza-se delas tudo aquilo que se possa extrair de uma aplicação intensa das faculdades intelectuais tendentes à penetração de um texto redigido por homens, ainda assim, permanecerá abaixo das necessidades, que devem corresponder à ideia integral do direito. As relações humanas são demasiadamente numerosas, complexas e mutáveis para que possam encontrar uma regulamentação suficiente em algumas fórmulas verbais editadas num momento fixo e na presença de uma situação impossível de ser abraçada num só golpe de vista, tanto para a distinção entre os fatos da vida social que merecem a sanção pública, como para que se determinem as condições, a natureza e os efeitos dessa sanção. Em razão de que, faz-se necessário multiplicar os caminhos e os meios de investigação das normas jurídicas, e, acima de tudo, reconhecer que, além de procedimentos muito variados, através dos quais as normas são elaboradas, impõe-se uma apreciação discricionária do intérprete, a única verdadeiramente capaz de adaptar, em concreto, o direito ao fato. Vista por este ângulo, pode-se afirmar que a discricionariedade judicial constitui uma técnica ordinária inerente à função jurisdicional, uma solução normal em face da impossibilidade de tudo que se prevê na letra da norma, a qual, não é imune a controle e nem a limites. Cabe esclarecer que o processo civil clássico afastava qualquer possibilidade de o juiz agir de forma discricionária, eis que deveria estar extremamente atrelado à lei, não cabendo interpretá-la, mas tão somente aplicá-la. No entanto, sabe-se que esta vinculação tornou-se impossível nos dias atuais, uma vez que desumano seria exigir-se do legislador a elaboração de normas aptas a abarcar todas as situações passíveis de conflito. Desta forma, os poderes conferidos ao magistrado foram ampliados, permitindo-se, por vezes, que interprete criativamente o dispositivo legal adaptando-o aos casos concretos, devendo, entretanto, fundamentar suas decisões conforme a prescrição Constitucional posta no art. 93, IX.4 4

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: IX – todos os julgamentos

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A Discricionariedade do Juiz e o Princípio da Integridade proposto por Ronald Dworkin

De qualquer sorte, cumpre mencionar que a discricionariedade, noção imprescindível no Estado Democrático de Direito, não existe sem a legalidade, como já ressalvado, antes a pressupõe, resultando da incapacidade do legislador para atender de forma completa as múltiplas e inumeráveis, imprevisíveis, situações que envolvam a tutela dos direitos humanos a impor a atuação do juiz, manifestando-se, em verdade, não apenas através de um poder e, sim, de um poder-dever que lhe é atribuído por uma norma legal. Existe na discricionariedade dualidade ou pluralidade de soluções, variedade de rotas. Há uma verdadeira prerrogativa, um espaço destinado ao aplicador da norma, um poder para preenchimento dos espaços normativos. Vale realçar, a exaustão, que discricionariedade judicial nada tem a ver com arbitrariedade, com ato tomado de forma ditatorial. A discricionariedade é, sim, a faculdade inerente ao juiz de criar a norma jurídica adequada ao caso concreto, nas hipóteses em que não há enquadramento legal ajustado para o caso posto à sua apreciação. Desta forma, os métodos de interpretação e argumentação jurídicas funcionam como justificativas para legitimar resultados que o intérprete se propõe a alcançar, motivado, muitas vezes, por um impulso pessoal baseado em uma intuição particular do que é certo ou errado – desejável ou indesejável. Entendido, assim, não pode o hermeneuta revelar, de maneira desinteressada e neutra, uma verdade, mas ele cria essa verdade, discricionariamente, no caso concreto. A lei, conforme assinala Luiz Guilherme Marinoni, perdeu o seu posto de supremacia, e, hoje, é subordinada à Constituição e, por isso, já constitui slogan dizer que as leis devem estar em conformidade com os direitos fundamentais, contrariando o que outrora acontecia, quando os direitos fundamentais dependiam da lei.5 Ao comentar o tema, Marcelo Carlos Zampiere, salienta que a discricionariedade encontra assento na complexidade e na variedade dos problemas que o poder público deve solucionar a cada passo e para os quais a lei, por mais casuística que fosse não poderia prever todas as soluções, ou pelo menos, a mais vantajosa e adequada para cada caso corrente.6 Leonardo Greco, afinado com a existência da discricionariedade judicial, destaca a relevância dos poderes do juiz, especialmente o poder decisório discricionário. A seu ver, em numerosos casos exerce o juiz esse poder.7

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dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. p.02. ______. A Questão do Convencimento Judicial. Disponível em: . ZAMPIERI, Marcelo Carlos. SILVA, Fabiana. Breve reflexão sobre o controle jurisdicional dos atos administrativos. 2005. p. 04. Disponível em: http://ufsm.br/direito/artigos/ administrativo/atos-administrativos.htm. GRECO, Leonardo. A execução e a efetividade do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 46.

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Fundada em propósito semelhante, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, assevera que a decisão judicial exclui a possibilidade de remanescerem outras soluções, todas válidas perante o direito. Daí por que deve ser aceita com cautela a afirmação de que o poder judiciário exerce poder discricionário, ele o faz, somente, segundo a autora, quando não atua no exercício da jurisdição propriamente dita. A seu ver, não há na atividade desempenhada pelo magistrado o papel criador da vontade do agente como ocorre no poder discricionário.8 Segundo outros autores o juiz nunca tem diante de si vários caminhos dentre os quais pode, indiferentemente, escolher um, sendo todos, juridicamente lícitos e almejados pela norma embora, uns possam ser melhores que outros. Para o magistrado há uma solução, que há de ser tida como a correta, a desejada pelo legislador e determinada pela norma, ainda que o caminho para que se chegue até ela não seja um dos mais fáceis. Não obstante a firmeza dos argumentos supramencionados é induvidosa a existência da discricionariedade judicial. Nos dias atuais, diante da nova hermenêutica constitucional, é indubitável negar o caráter criativo do juiz ao analisar o caso concreto. É importante mencionar ainda que a discricionariedade não deve ser confundida com a hermenêutica (técnica de interpretação). Utilizar-se dela não significa que o magistrado estará agindo discricionariamente, porém, ela poderá ser utilizada para aclarar situações normativas duvidosas, postas à apreciação do judiciário. Se a lei oferece vastos caminhos a serem seguidos, e se o juiz carece de interpretá-la para verificar o melhor caminho a ser tomado, claro que deverá utilizar-se da hermenêutica para agir de forma discricionária e escolher a solução mais justa frente àquelas arroladas na lei.

O Princípio da Integridade proposto por Ronald Dworkin Ronald Dworkin contribuiu muito para a compreensão do ordenamento jurídico, notadamente quanto à importância dos princípios jurídicos, independente de seu trabalho estar inserido dos países de origem angloamericana, do Common Law. A abordagem da importância da interpretação é muito interessante, pois Dworkin alerta que as decisões judiciais estão vinculadas mais ao posicionamento social e ideológico do juiz do que às normas legislativas. Ele vê a interpretação como um processo de construção, uma evolução em decorrência da própria mudança social. No tocante à integridade do direito colhe-se a lição de que o ordenamento, como um todo, é único e formado dia a dia pela nova realidade. O enfoque principiológico tem por finalidade identificar a existência de preceitos morais no seio do Direito. Tudo para dar uma única resposta correta aos casos difíceis. 8

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001.

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Para Ronald Dworkin, grande filósofo e pesquisador sobre o assunto a discricionariedade propõe a incompatibilidade do uso da discricionariedade plena para o julgamento desses casos difíceis, devendo o julgador socorrer-se nos princípios que regem aquela sociedade e aquele sistema legal, caso em que deverá descobrir o direito do caso e proclamá-lo ao vencedor. Dworkin busca através da hermenêutica do direito já pré-existente a solução do caso. Ronald Dworkin acredita que, de certo modo o juiz cria e não aplica o direito, pois não encontrando solução na regra, cria nova regra ao caso, usando sua discricionariedade, o que vem a ser um ponto combatido por seus ensinamentos, que compreende que ao fazer isso o magistrado aplica direito novo a situação já existente, incorrendo assim em retroatividade da norma jurídica. Dworkin: A conhecida história de que a decisão judicial deve ser subordinada à legislação é sustentada por duas objeções à originalidade judicial. De acordo com a primeira, uma comunidade deve ser governada por homens e mulheres eleitos pela maioria e responsáveis perante ela. Tendo em vista que, em sua maior parte, os juízes, não são eleitos, e como na prática eles não são responsáveis perante o eleitorado, como ocorre com os legisladores, o pressuposto acima parece comprometer essa proposição quando os juízes criam as leis. A segunda objeção argumenta que, se um juiz criar uma nova lei e aplicá-la retroativamente ao caso que tem diante de si, a parte perdedora será punida, não por ter violado algum dever que tivesse, mas sim por ter violado um novo dever, criado pelo juiz após o fato.9

Dworkin deixa clara sua posição contrária à discricionariedade pregada por outros, como por Hart, propõe então, uma teoria que afirma a necessidade de correlação entre direito, princípios, moral, política e até mesmo economia para a solução de um caso difícil. Para ele, quando o magistrado apenas usa de sua discricionariedade perante o caso difícil que decidiu, acaba por incorrer em retroatividade de norma ao caso, ou seja, legisla sobre novos direitos jurídicos, vez que cria novo direito, o que é inadmissível.10 Aos olhos de Dworkin, o magistrado não deve decidir o caso difícil por discricionariedade própria e sim pela análise dos princípios da comunidade onde o caso está em debate, e pela diferenciação dos princípios das regras. Desta forma, não incorreria o magistrado na criação de novo direito, logo não afrontaria o princípio da legalidade com sua criação, e, consequentemente não incorreria em retroatividade da norma ao caso em questão, vez que ao decidir com base nos princípios, sustenta Dworkin, o magistrado não inova na norma, pois os princípios trazidos à baila, já são parte do sistema jurídico utilizado na solução do caso, não havendo assim qualquer criação de nova norma. Dworkin diferencia as regras dos princípios da seguinte forma, as regras, ou são válidas ou não válidas, se válidas são aplicáveis ao caso, se não válidas, não são aplicáveis, é 9

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DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. Tradução Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 132. 10 Ibid. p. 127.

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questão de tudo ou nada, ao contrário dos princípios, que não enunciam uma decisão de forma concreta, necessitam de uma reflexão particular acerca do tema no qual se afronta o princípio. Exatamente neste ponto o meu estudo encontra sua indagação, se a falta de respostas aos casos difíceis pode ser encontrada simplesmente na discricionariedade do juiz, de forma que ele encontre uma solução ao caso não positivado, ou se ao caso difícil deve ser aplicado princípios já existentes, conforme prevê Dworkin, de forma a não criar direito novo, mas por meio dos próprios princípios se solucionar o problema. Podemos concluir que o jurista Ronald Dworkin considerado póspositivista ataca teses sustentadas pelo positivismo jurídico, como a conexão entre direito, moral e princípios. Com efeito, a Teoria de Dworkin, além de afirmar a conexão entre direito, moral e princípios é necessária, foca-se especialmente à solução dos casos difíceis no âmbito jurídico, sem abandonar os parâmetros do mesmo sistema, na medida em que questões de ordem, principiológica ou moral poderão ser invocadas e tornarem-se jurídicas, quando o sistema jurídico for insuficiente. Para Dworkin, o Princípio da Integridade tem como objetivo o que melhor se espera de um juiz de outros agentes do direito, ou seja, que suas decisões sejam coerentes, abrangentes, adequadas, justificáveis, criativas e íntegras. Afirma ainda, que o critério da coerência é tradicionalmente associado com a repetição de decisões anteriores de modo mais fiel ou precisamente possível. Entretanto, a coerência no domínio da integridade diz respeito, para Dworkin, com a articulação de princípios e não de regras ou de exemplos passados. A integridade é uma norma muito mais dinâmica e radical do que parece inicialmente, explicou Dworkin, porque incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo na busca da coerência com algum princípio fundamental. Uma interpretação bem sucedida não deve tão somente adequar-se à prática que interpreta; deve também justificá-la. Portanto, as decisões só podem ser justificadas desenvolvendo-se algum sistema geral de responsabilidade moral que pudesse considerar como um atributo dos membros de uma comunidade, no sentido de não prejudicar os demais. Neste sentido, Ronald Dworkin considerou que a integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo. A integridade para Ronald Dworkin é usada para descrever e avaliar a ação institucional dos juízes num determinado jogo principiológico. A integração prática dos princípios depende da iniciativa criteriosa e filosófica de um juiz humano produzindo conhecimento especializado sobre a prática judicial representando virtualmente uma comunidade, ou cultura judiciária de princípios.

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A integridade é um processo de releitura Constitucional que utiliza o método da interpretação construtiva, valoriza constitucionalmente a liberdade, igualdade, fraternidade, legitimidade, responsabilidade e a dignidade dos cidadãos no âmbito do direito e da política. Todos esses princípios são transcendentes ou superiores no esquema de raciocínio de Ronald Dworkin. Dworkin é um hermeneuta preocupado fundamentalmente em criar algum modelo de interpretação que seja democrático e inclusivo, e com isso acabou idealizando um juiz, juiz este que sofre sérias limitações de tempo e conhecimento, e é exatamente nesse quadro que eles vão executar as suas atividades interpretativas. A teoria da integridade para Dworkin pretendeu descobrir até que ponto os juízes têm diante de si caminhos abertos para aperfeiçoar o direito, ao mesmo tempo e que eles buscam estratégias que representam a virtude da fraternidade republicana. Para alguns autores Dworkin preferiu atribuir menos valor à norma e mais aos princípios; dessa maneira sua teoria introduziu um grau elevado de incerteza sobre os resultados das sentenças devido à prática subjetivista dos que decidem. Enfaticamente, os juízes não estão autorizados para transcender a lei e a julgar moralmente; por isso mesmo os princípios morais que surgem do lado de fora do sistema jurídico serão obrigatoriamente neutralizados e invalidados por instituições reais e não imaginárias. Podemos concluir que este presente artigo tem como objetivo o esclarecimento acerca do assunto tão inquietante que é a discricionariedade judicial e a teoria de Ronald Dworkin sobre a resolução dos casos difíceis. Para isso, foi necessário encontrar conceitos básicos, como o de regras, princípios, etc. Além disso, vislumbrou-se a possibilidade de um caminho ainda mais perfeito para a interpretação, denominado por Dworkin de princípio da integridade pura. Uma teoria que conta com a vantagem de não estar, necessariamente, ligada aos casos concretos. Tal teoria, apesar de complexa, de seus métodos, ainda encontra muitos críticos e opositores, e está longe de constituir-se uma unanimidade. Para alguns, o ponto mais fraco de sua teoria é a ficção de que o direito tenha um só legislador, a comunidade personificada. Tal ficção se torna bastante importante para interpretar o direito como integridade. Para outros, é difícil absorver a importância do pensamento de um juiz que tem a carreira toda para resolver um único caso, e que por isso, não possui a limitação dos juízes comuns. Há também àqueles que consideram sua teoria demasiadamente otimista. A confusão entre moral e direito também é citada por autores que criticam sua teoria. Mas, sem dúvida, a parte de sua teoria que mais gera desconforto é a afirmação de que, mesmo nos casos difíceis, há apenas uma resposta correta. Mesmo assim, a hermenêutica de Dworkin é importante. O fato de ser debatida e discutida por tantos teóricos como pude observar, ao invés de diminuir o valor de seu trabalho, apenas agrega valor.

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Conclusão A título de conclusão, parece essencial mencionar um breve resumo por meio dos quais se poderá ter uma visão do conjunto da pesquisa, para, em seguida sintetizar de forma mais analítica os pontos de vista desenvolvidos ao longo desse artigo. Vislumbrou-se que não há mais como reduzir o direito à lei, o que não significa afirmar que não estejam os Poderes Estatais, em especial o Judiciário, preso a textos normativos, porém eles são apenas uns dos inúmeros instrumentos postos capazes de implementar um direito equânime. Discricionariedade, no sentido amplo, é a possibilidade jurídica criada por uma norma originária, para o exercício de uma definição integrativa do interesse público específico nela previsto, por uma nova norma ou ato concreto derivados. Em sentido estrito, a discricionariedade judicial é, portanto, uma prerrogativa que é cometida ao juiz, em grau e modo que venha a ser indispensável para integrar a vontade da lei, a fim de executá-la corretamente e garantir a efetiva prestação da tutela jurisdicional. Pode-se ainda, concluir que a discricionariedade ou interpretação judicial é um instrumento mais flexível, e, portanto, adjudicador de maior poder aos juízes. Porém a sua liberdade de convencimento não poderá extrapolar os limites do razoável e do proporcional. A discricionariedade judicial ganha relevo, no momento em que se depara o julgador com as prescrições legislativas mais abertas, pois, quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo torna-se o espaço deixado à atuação discricionária nas decisões judiciais. Firmou-se o entendimento que a discricionariedade judicial nada tem haver com arbitrariedade, com ato tomado sob o manto da ditadura e da ilegalidade. A discricionariedade é, sim, faculdade inerente ao juiz de criar a norma jurídica adequada ao caso concreto, nas hipóteses de omissão legislativa ou até mesmo quando existente regramento jurídico desconforme com a situação posta à apreciação do magistrado. Chega-se, também, ao entendimento de que se a lei oferta caminhos vastos a serem seguidos e o juiz precisa interpretá-la para verificar a melhor postura a ser tomada, claro que ele deverá utilizar-se da hermenêutica, agindo de forma discricionária para escolher a solução mais justa ao caso concreto. Inicialmente era incipiente o controle do poder discricionário do juiz.  Porém, não se pode ocultar que a discricionariedade judicial esbarra em dois limites: o princípio da Legalidade e o alcance da finalidade a ser alcançada com a escolha feita pelo juiz. Ademais, figuram também como controle da criatividade judicial o dever Constitucional de fundamentação das decisões judiciais, posto no art. 93, IX da CF/88 e o próprio princípio da proporcionalidade. Verificou-se que com a significativa adoção das cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados no ordenamento jurídico foi ampliada

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a discricionariedade do Poder judiciário incumbido de aplicá-las. As decisões judiciais que as preenchem não ficam, todavia, imunes de controle pelos Tribunais Superiores, por meio dos recursos de estrito direito. Não será a inexistência/ existência dos fatos que serão alvo de cognição por tais órgãos jurisdicionais, mas sim, o correto enquadramento das situações fáticas consideradas soberanamente. Desta forma, concluiu-se que as aplicações equivocadas das regras, que contenham conceitos vagos ficam sujeitas ao controle pelas vias recursais superiores. Logo, vê-se, com clareza, que a discricionariedade nada mais é que um reclamo da modernidade, pautada exatamente no princípio da legalidade e na legitimidade conferida ao Estado colimado a atender aos reclamos da justiça e da igualdade, no seu espectro substancial. De acordo com as premissas apresentadas Dworkin, este estabelece uma abordagem que aproxima o Direito da moral e da política, a qual nega a discricionariedade judicial, este situa os casos difíceis a partir das fontes do Direito. Nesta linha de pensamento, os casos difíceis estão localizados naquelas hipóteses em que o Direito positivo não oferece solução (hipótese de lacuna) ou então a solução apresentada não é condizente com os padrões de justiça socialmente adotados pela comunidade. Diante de tais casos, o juiz não possui discricionariedade, pois sua decisão estará limitada pelos princípios (jurídicos e extra-jurídicos) e pelo ideal político do Direito como integridade. Para o jurista norte-americano Dworkin, além de afirmar que a conexão entre direito, moral e política é necessária, dedica-se especialmente à solução dos casos difíceis no âmbito jurídico sem abandonar os parâmetros do mesmo sistema, na medida em que questões de ordem moral ou política poderão tornarse jurídicas conforme a complexidade de cada situação concreta e a insuficiência do repertório. Ao finalizar o presente estudo, apresentamos em linhas gerais a questão da discricionariedade judicial na solução dos casos difíceis e o princípio da integridade segundo Ronald Dworkin. Por conseguinte, diante a toda explanação promovida, espera-se que a discricionariedade judicial se direcione as finalidades existenciais apontadas nesse trabalho, a fim de que não lhe seja mais merecida à clássica e já ultrapassada imputação de ser um instituto arbitrário e ilegal. Denomina-se então poder discricionário, o poder de escolher dentro de certos limites, a providência que se adotará mediante a consideração da oportunidade e da conveniência, em face de determinada situação não regulada expressamente pela lei. Observamos também na doutrina posições contrárias à existência de poder discricionário aos magistrados, distinguindo conceito discricionário com conceito jurídico indeterminado. Entretanto, a grande maioria dos doutrinadores processualistas acatam a existência de atuação discricionária do juiz, para alguns deles se referir a atuação discricionária do juiz no desempenho do chamado poder

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cautelar geral, em cujo exercício lhe é permitido autorizar a prática, ou impor a abstenção, de determinados atos, não previstos em lei ou nesta indicados apenas exemplificativamente. A realidade é que o Juiz tem no exercício de sua atividade de dizer qual é o direito, quem tem o direito e satisfazer esse direito, devendo ter os instrumentos necessários para garantir a certeza dessa atividade, enquanto não puder efetivá-la. Um dos grandes males do processo é o tempo, que da mesma forma que é indispensável ao juiz para que conheça os fatos é indispensável para a garantia dos princípios processuais da ampla defesa e da igualdade das partes, mas é responsável pela demora na entrega da tutela jurisdicional, quando então concorre para que ocorra injustiça.

Referências bibliográficas ALVIM, Arruda. A arguição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. BARROSO, Luís Roberto. A ordem econômica Constitucional e os limites à atuação estatal no controle de preços. Revista Diálogo jurídico, nº 14, junho/agosto, 2003. Disponível em: < http://www.direitopublico.com.br >. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. (Trad.) Luiz Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2007. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério. Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. GRECO, Leonardo. A execução e a efetividade do processo. Revista de Processo. n° 94, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 34-66. MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. 8. ed.rev. ampl. São Paulo: Malheiros, 2005. ______. A Questão do Convencimento Judicial. Disponível em: . ZAMPIERI, Marcelo Carlos. SILVA, Fabiana. Breve reflexão sobre o controle jurisdicional dos atos administrativos. Disponível em: http://ufsm.br/direito/artigos/administrativo/atosadministrativos.htm.

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O Monitoramento da Correspondência Eletrônica Estefânia de Oliveira Gonçalves1 Resumo O presente trabalho tem como principal objetivo uma análise sobre a temática concernente ao conflito existente entre o Direito Constitucional à intimidade e o monitoramento de e-mails nas relações de trabalho, a partir de precedentes da Justiça do Trabalho. Foi analisada a utilização do e-mail corporativo e do particular no ambiente de trabalho, adentrando na possibilidade ou não do seu monitoramento pelo empregador. O assunto em voga é de extrema relevância, em razão da contínua e crescente problemática da violação dos direitos fundamentais através de meios informáticos. O estudo trata dos direitos fundamentais tutelados na Carta Magna e, portanto, não podem ser violados de forma leviana, ilimitadamente, devendo-se levar em conta, entretanto, a questão da legitimidade do empregador quando houver atos inadequados do trabalhador no uso do e-mail corporativo, em consequência do poder diretivo. Palavras-chave: Judicialização da política; poder judiciário; politicas públicas. Abstract The present work has as its main objective an analysis on the subject regarding the conflict between the constitutional right to privacy and e-mail monitoring in labor relations, from previous labor courts. Was analyzed using corporate e-mail and particularly in the workplace, entering on whether or not the monitoring by the employer. The issue recently is of extreme importance, because of the continuous and growing problems of violation of fundamental rights through electronic means. The study deals with the fundamental rights guaranteed in the Constitution and therefore cannot be violated lightly, unlimitedly, and should be taken into account, however, the question of the legitimacy of the employer when there is inadequate worker acts in the corporate e-mail use, as a result of the power directors. Keywords: Judicialization of politics; judiciary; public policy.

Introdução O surgimento da tecnologia ocasionou significativas mudanças nas relações de trabalho, principalmente com a introdução da informática na atividade laboral. Dentre as chamadas tecnologias da informação nenhuma trouxe tantos impactos no cenário jurídico, como a Internet. Com os diversos fatores positivos deste acesso à tecnologia nas relações de emprego, como por exemplo, o aumento da produtividade, a celeridade na 1

Advogada, docente da Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduada em Direito Público pela Unesa e mestranda em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC.

O Monitoramento da Correspondência Eletrônica

prestação de serviços e a racionalização do trabalho, houve um grande aumento nas possibilidades de fiscalização do empregado pelo empregador. O presente trabalho busca fazer um estudo acerca do direito à intimidade do empregado em confronto com o controle patronal aos meios tecnológicos postos à disposição do empregado. Objetiva o questionamento acerca da legitimidade da fiscalização pelo empregador do e-mail corporativo, bem como do e-mail pessoal do empregado, quando o uso deste se dá nos computadores da empresa. A pesquisa visa à análise do excesso da competência de fiscalização do empregador quando do uso do seu poder diretivo, em razão da proteção da intimidade e da vida privada do empregado, previstos nos incisos X e XII do artigo 5º da Carta Magna de 1988. Assim, serão estudados os seguintes pontos: Os direitos fundamentais do empregado à intimidade e à vida privada em confronto ao direito de propriedade e do poder empregatício (diretivo e disciplinar) do empregador, bem como a solução para esta tensão em observância à jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho.

O Direito à Intimidade e ao Sigilo das Correspondências

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A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, ampliou de forma significativa o campo normativo e principiológico no que tange às garantias e os direitos fundamentais dos trabalhadores. O doutrinador Américo Plá Rodrigues, define princípios como sendo “linhas diretrizes que informam algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, pelo que podem servir para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e resolver casos não previstos” (RODRIGUEZ, 2002, p. 102). Apesar da Carta Magna de 1988 não prever os princípios informadores do Direito do Trabalho de forma expressa, não há dúvida de que em seu bojo existam vários princípios aplicáveis às relações laborais. Ressalte-se que já no artigo 1º, prevê como fundamentos da República, além de outros, a dignidade do ser humano (inciso III) e os valores sociais do trabalho (inciso IV). Os direitos e garantias individuais encontram-se difundidos em vários títulos da Carta Magna, sobretudo nos artigos 5º e 6º. José Afonso da Silva afirma que a dignidade da pessoa humana é o “valor Constitucional supremo, que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (SILVA, 2011, p. 105). Os Direitos Fundamentais, também conhecidos como Liberdades Públicas e Direitos Humanos são definidos como um conjunto de direitos e garantias do ser humano institucionalizadamente garantidos, cujo objetivo principal é o respeito a dignidade deste, com a tutela do Poder Público, garantindo assim, condições mínimas de vida e desenvolvimento aos indivíduos, para o pleno desenvolvimento de sua personalidade.

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No que tange aos direitos personalíssimos do ser humano, cumpre destacar nas relações de trabalho a não submissão a tratamento desumano ou degradante (art. 5º inciso III); a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra, da imagem (art. 5º, inciso X). Segundo leciona Alexandre de Moraes: A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto serem humanos. O direito à vida privada, à intimidade, à honra, à imagem, entre outro, aparece como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. (MORAES, 2002, pag. 88).

O princípio da dignidade humana é a base inspiradora dos demais princípios jurídicos, de maneira que se ele não for observado, não haverá sentido algum no respeito a qualquer outro princípio. A intimidade é um direito ligado ao sigilo do indivíduo nos assuntos relacionados à sua personalidade e a seu foro íntimo, assuntos estes que deseja que sejam conhecidos por terceiros. Trata-se de uma salvaguarda da esfera mais íntima do indivíduo. O direito fundamental à intimidade é um alicerce dos direitos da personalidade e do princípio Constitucional da dignidade da pessoa humana, sendo verdadeiro limite ao poder empregatício. Íntimo é proveniente do latim intimus, que é superlativo de interior. Tratase do indivíduo enquanto voltado a seu foro interno, aquilo que há de mais singular, secreto, misterioso e incomunicável. Intimidade seria, assim, um direito de proteção mais severo que a privacidade (MIGUEL, 1995, p.29). Correto afirmar que a dignidade da pessoa humana é um fundamento dos direitos fundamentais, donde a existência destes serve para salvaguardar a dignidade humana, concedendo ao ser humano a proteção aos direitos mínimos. Assim, dificilmente haverá violação à dignidade humana sem violar algum direito fundamental previsto na Carta Magna. Por outro lado, importante registrar que nem todo direito fundamental será também um da personalidade e, bem por isso não podem ser considerados análogos, já que, em determinados pontos, se distanciam. Importante registrar que os direitos da personalidade são aqueles que conferem às pessoas a proteção das características mais relevantes de sua personalidade e, sem os quais, esta se tornaria algo insuscetível de realização, tendo sua existência impossibilitada.

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O Monitoramento da Correspondência Eletrônica

Trata-se de direitos subjetivos, voltados ao foro íntimo, cujo conteúdo se identifica com os valores e bens essenciais da pessoa humana, abrangendo aspectos morais, intelectuais e físicos. O inciso X do artigo 5º da Constituição de 1988 demonstra o comprometimento do constituinte em tratar os direitos da personalidade, na medida em que consagra no inciso III do artigo 1º o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito. Por outro lado o Código Civil de 2002 prestigiou os direitos da personalidade com um capítulo próprio. A previsão contida no Código Civil, sobretudo em seus artigos 12 e 21 dispuseram uma proteção bem abrangente, na medida em que previu medidas preventivas para fazer cessar “ameaça, ou lesão, a direito de personalidade” e disse que “a vida privada da pessoa natural é inviolável” (CIVIL, 2012, p.136-137). O artigo 5º, inciso X, da CRFB/88, dispõe que: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”(BRASIL, 2012, p.22). Já o inciso XII da CRFB/88 resguarda o sigilo das correspondências, prevendo que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” (BRASIL, 2012, p.22 ). Os direitos individuais resguardados pela Constituição desempenham um conjunto de limitações do Poder estatal frente aos indivíduos. Na Constituição os princípios fundamentais possuem força vinculante, assim como os artigos expressos. Ao exercer um direito, sobretudo quando se trata de uma garantia constitucional, não pode haver afronta ao direito de outrem. Desta forma, conclui-se que foi de vontade do constituinte resguardar os indivíduos fazendo com que o a dignidade dos trabalhadores deva ser levada em consideração. Neste contexto, a análise do exercício do poder diretivo, regulamentar, disciplinar e fiscalizatório do empregador, não pode ser exercida de forma ilimitada, devendo ser resguardada a dignidade do trabalhador, entretanto, esta fiscalização deverá ser feita sob a ótica dos princípios protetivos dos direitos tanto do empregado quanto do empregador, conforme adiante será exposto. Diante das garantias constitucionais dos trabalhadores aqui elencadas, pode-se afirmar que ao violar a caixa de e-mail do empregado, o empregador estaria afrontando direitos fundamentais daquele, gerando inclusive, um dever de reparar eventuais danos morais experimentados pelo empregado.

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A Função Social da Propriedade e o Poder Empregatício A relação de emprego reconhece a subordinação jurídica como elemento intrínseco do contrato de trabalho, uma vez que a todo poder corresponde um necessário dever de subordinação jurídica do empregado em face do empregador. A CLT, em seu artigo 3º, não menciona expressamente o termo subordinação, mas nomeia o termo dependência, ao conceituar empregado. Porem, o vocábulo subordinação foi adotado pela doutrina e jurisprudência pátrias. Temos então, que a ideia extraída da expressão “subordinação” é a de dependência, da sujeição de uma pessoa a outrem. É este elemento inclusive, a principal diferença de relação de emprego das demais relações de trabalho. É através da relação de emprego que nasce para o empregador o poder empregatício e, por consequência, para o empregado, o dever de obediência, que se exterioriza por intermédio da subordinação jurídica. Também conhecido como jus variandi, o poder empregatício decorre do fato de que é o empregador que corre os riscos do empreendimento e, portanto, deve ter o controle do seu negócio, com liberdade nas tomadas de decisões e providências imprescindíveis ao sucesso do negócio, conforme previsto no art. 2º da CLT. Alice de Barros Monteiro, leciona que o jus variandi é a “faculdade concedida ao empregador, com fundamento no poder diretivo, de realizar modificações e variações na prestação de serviços conforme as circunstâncias, exigências ou perigos que surjam na realidade fática” (BARROS, 2013, p.672-673). O poder de direção dos empregadores na Carta Magna de 1988 foi reconduzido às normas que consagram os valores sociais da livre iniciativa (art. 1°, IV), propriedade privada como direito fundamental (art. 5°, XXII) e princípio geral da atividade econômica (art. 170, II e parágrafo único). Deste então, existe a tutela ao poder diretivo do empregador, ainda que de forma indireta, assim como o direito à intimidade e à vida privada, de forma direta, pelo art. 5º, X. Desta forma, conclui-se que na relação de emprego existe um conjunto de prerrogativas que são deferidas às partes, e que atribuem aos mesmos, direitos e obrigações oriundas do contrato de trabalho. Ao empregador é concedida a prerrogativa de planejar ou organizar, dirigir, regulamentar e controlar o seu negócio no âmbito do espaço empresarial e cabe ao empregado a execução de sua atividade laboral de acordo com as disposições do contrato. A CLT considera o empregador o detentor exclusivo do poder empregatício e, ao mesmo tempo, o único com titularidade para admitir, assalariar e dirigir a prestação pessoal de serviços no contexto da relação jurídica de emprego, assumindo inclusive todos os riscos inerentes à sua atividade econômica de produção. Em decorrência deste poder de fiscalização, eis que surge o direito do empregador de exercer o monitoramento das correspondências eletrônicas do

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empregado. Isto porque ao exercer a fiscalização da caixa de e-mail corporativo, estaria o empregador exercendo o poder empregatício, bem como o seu direito de propriedade, visto que o computador é uma ferramenta de trabalho de propriedade do empregador e, consequentemente, somente pode ser utilizada para execução do trabalho, sem exceções. Isto porque ao fazer uso do e-mail corporativo, o empregado o faz em nome do empregador e, portanto, caso o utilize de modo indevido, como por exemplo, enviando e-mails pornográficos, com conteúdo de vírus, ou mensagens ilícitas, acaba por gerar riscos à empresa. Outrossim, o uso fora das atividades laborativas pode gerar queda da produção do empregado, visto que em muitos casos, os empregados ficam engajados nos envio de mensagens pessoais ao longo do horário de trabalho, e acabam por esquecer as suas tarefas. Sob a ótica da relação de emprego, o direito à propriedade assegura ao empregador, legítimo proprietário do negócio e de todos os bens postos aos empregados para a atividade laboral, a prerrogativa de por e dispor de tais bens da forma que melhor lhe aprouver na busca pelos resultados do seu negócio, desaguando, então no poder diretivo. Com isto, resta clara uma tensão entre princípios constitucionais, e a solução não é tarefa fácil. Se este conflito fosse baseado em normas constitucionais de um lado e normas infraconstitucionais de outro lado, prevaleceria o entendimento baseado em normas constitucionais, já que hierarquicamente superiores. Porem, ambos os direitos são baseados em normas constitucionais, de mesmo peso e hierarquia. Desta forma, evidente o conflito entre as normas constitucionais, sendo necessário que seja estabelecido um critério intermediário entre os dois princípios constitucionais, face à unidade da Constituição, aplicando-se o princípio da razoabilidade na vigilância e, consequentemente, impondo limites a esta.

Da Violação do e-mail Pessoal do Empregado

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Em se tratando de conta de correio eletrônico particular, é a pessoa física quem contrata os serviços de um provedor de acesso, com a finalidade de criar um endereço eletrônico pessoal. Neste contexto, cabe a esta pessoa física escolher um codinome, e adota-lo em seu endereço, elegendo o seu próprio login e a respectiva senha para acesso. Portanto, a comunicação eletrônica é realizada através de conta privada do usuário, que detém sua titularidade e suporta com os seus custos da prestação de serviço de provimento de acesso e conexão. O correio eletrônico é um mecanismo de transmissão de conteúdo à distância, mediante o qual se envia e recebe mensagens entre dois computadores por meio da rede, um mecanismo análogo do correio convencional com papel utilizado pelas pessoas para enviar e receber mensagens. Quando o acesso à caixa de e-mail é feito através da internet e dos computadores da empresa, em tese, poderá ser facilmente monitorada e

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controlada pelo empregador. Este monitoramento é objeto de grande controvérsia a despeito dos limites desse controle e se a comunicação do empregado via correio eletrônico pessoal pode ser violada pelo empregador. Entretanto, o melhor entendimento é aquele que afirma que deve ser resguardada a regra da inviolabilidade das correspondências quando o empregado lança mão do uso do seu e-mail pessoal nas dependências da empresa e nos computadores de propriedade desta. Ressalte-se que o empregador poderá usar bloqueios e até mesmo proibir o uso do e-mail pessoal no horário de serviço, ou até mesmo impedir o uso dos aparelhos pertencentes à empresa, mas jamais poderá ter acesso ao conteúdo material das mensagens do e-mail pessoal do empregado se estas forem enviadas ou recebidas pelos computadores da empresa (BELMONTE, 2004, p.88). Neste sentido, o recente julgado do Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista nº 183240-61.2003.5.05.0021 em que a Corte entendeu acerca da impossibilidade de violação da caixa de e-mail pessoal do empregado. Vejamos: (...) INDENIZAÇÃO - DANO MORAL - CARACTERIZAÇÃO VIOLAÇÃO À INTIMIDADE - ARROMBAMENTO DE ARMÁRIO PRIVATIVO E VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA PESSOAL (CORREIO ELETRÔNICO E DADOS PESSOAIS) (por violação ao artigo 5º, V e X, da Constituição Federal). O Tribunal Regional, embasado nas provas dos autos, na forma preconizada pela Súmula nº 126 desta Corte, constatou presentes os elementos caracterizados da responsabilidade civil, quais sejam, o dano, o nexo de causalidade e a conduta ilícita do agente ofensor. Observe-se que o Colegiado constatou que, in casu, a prova testemunhal produzida confirma o fato alegado na inicial como ensejador da reparação pretendida, no sentido de que houve arrombamento do armário privativo do reclamante bem como violação de sua correspondência pessoal, inclusive correio eletrônico e dados pessoais. Dessa forma, houve, de fato, efetivo prejuízo de ordem moral ao reclamante. Recurso de revista não conhecido. (TST - RR 183240-61.2003.5.05.0021 - 2ª Turma - Rel Min. Renato de Lacerda Paiva, Pub: 14/09/2012).

Em decorrência da citada decisão do TST, o acórdão proferido pela 5ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, da lavra da Desembargadora Maria Adna Aguiar, restou mantido. Vejamos parte do acórdão: (...) À luz do art.5º, inciso XII, da Carta Magna, a fiscalização sob equipamentos de computador, de propriedade do empregador, incluído o correio eletrônico da empresa, podem ser fiscalizados, desde que haja proibição expressa de utilização para uso pessoal do equipamento, nos regulamentos da empresa. Nesta hipótese, temos a previsão do poder diretivo, com base no bom senso e nos estritos termos do contrato de trabalho, com respeito à figura do empregado como pessoa digna e merecedora de ter seus direitos personalíssimos irrenunciáveis e inalienáveis, integralmente resguardados pelo Estado Democrático de Direito.

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Importante destacar que na decisão em tela, a empresa fora condenada a indenizar o empregado por ter arrombado seu armário pessoal para retirada de notebook corporativo, e após ter o aparelho em mãos cometeu a violação da caixa de e-mail pessoal do empregado que era acessado por este através do notebook. Restou clara a violação do direito à intimidade do empregado, na medida em que houve excesso do empregador quando do arrombamento do armário utilizado pelo empregado para acautelar seus pertences, e acessado a caixa de correios eletrônica pessoal do empregado através das senhas salvas no computador pertencente à empresa. Ante o exposto, importante esclarecer que o poder diretivo do patrão, decorrente do direito de propriedade, não é absoluto, e o acesso ao conteúdo das mensagens contidas no e-mail pessoal do empregado somente será possível através de autorização, seja ela do funcionário ou judicial. Se não houver autorização prévia, a conduta será considerada abusiva, havendo violação à intimidade e o sigilo das correspondências, direitos fundamentais do trabalhador, dando ensejo a futuras reparações de natureza moral e material.

Da Colisão de Direitos e a Fiscalização do e-mail Corporativo Como visto acima ao empregado é garantido o Direito Constitucional à inviolabilidade de suas correspondências, em decorrência da proteção a intimidade e a vida privada, e ao empregador é resguardado o direito da propriedade e o exercício do poder empregatício. No caso em tela, importante que seja feita a ponderação dos direitos envolvidos, para que ambos sejam resguardados. Canotilho (apud BELMONTE, 2004) afirma que no choque entre princípios constitucionais não há antinomia e sim dimensões diversas de concretização de direitos, sendo possível sanar o conflito através de outros critérios, quais sejam: O do juízo de ponderação ou valores jurídicos fundamentais, em que se aplica a regra da máxima observância e da mínima restrição, de forma a alcançarse, pelo meio menos lesivo, o menor sacrifício dos direitos envolvidos; e o da dimensão de peso e importância, consistente no peso relativo dos interesses envolvidos, constatando, no caso concreto, qual valor deve ser preservado (CANOTILHO, 1986, p. 112).

Não se pode negar que ao empregado é garantido o direito a privacidade e intimidade, porem o empregador é responsável pelos atos do seu empregado, sobretudo quando há negligência, imprudência ou imperícia, na forma do entendimento da Suprema Corte Constitucional esposada na Súmula nº 341.

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A utilização do e-mail da empresa, com o seu domínio, identificador de sua marca e de sua personalidade, torna a empresa passível de responsabilização pelos atos provocados pelo seu funcionário. Desta forma, justificável seria o controle do e-mail corporativo. As empresas afirmam que a fiscalização do e-mail corporativo é necessária a preservação ao bom nome e à boa imagem da empresa (GONÇALVES, 2002, Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/2509/e-mail-x-empregados >). Isto porque se o empregado utilizar o e-mail da empresa, para divulgar mensagens pornográficas, ofensivas/ discriminatórias ou mesmo atentatório à ordem pública, tal conduta será evidentemente associada à empregadora, que será responsável pelo fato. E a razão pela responsabilização da empresa está justamente a ausência do empregado. A culpa in vigilando ou in eligendo será evidenciada no caso concreto, justificando a responsabilização da empregadora. Neste sentido, oportuno o entendimento do Ministro do TST Alexandre Agra Belmonte: Umas das razões que levam ao rastreamento das navegações e e-mails diz respeito à associação da má utilização ao bom nome e reputação da empresa. No terreno da responsabilidade civil, não têm validade os chamados Legal Disclaimers ou avisos de isenção de responsabilidade empresarial, que remetem ao funcionário - e não à Empresa - a responsabilidade pelo envio de e-mail causador de prejuízo moral ou material. Assim como não teria valor o aviso afixado na porta de veículo funcional, informativo de que a empresa não responderia pelos xingamentos, agressões físicas ou abalroamentos ocorridos em horário de serviço, remetendo ao empregado a integral responsabilidade pelos atos. Isto porque o empregador responde, perante terceiros, pelos danos praticados pelo empregado ou preposto (BELMONTE, 2004, p. 113).

O local de trabalho deve ser cercado de profissionalismo e responsabilidade, e o e-mail corporativo posto à disposição do empregado como instrumento de trabalho, com o nome do domínio da empresa, estabelece um limite claro do ambiente de trabalho. Trata-se de observância as regras contidas no pacto laboral, em que são geradas obrigações para empregador e empregado. Aqui, já não está se discutindo acerca da fiscalização do e-mail pessoal do empregado, protegido em regra pela inviolabilidade de correspondência, mais do e-mail que leva o nome da empresa em seu domínio, gerando a responsabilização da empresa pelas mensagens ilícitas enviadas pelos seus empregados. Outrossim, importante considerar o risco que o empregador corre na divulgação de assuntos sigilosos através do mal uso do e-mail corporativo. Segundo a jurisprudência Pátria, o e-mail corporativo da empresa não está protegido pelo do direito à intimidade e à privacidade do empregado, em decorrência de ser um instrumento de trabalho e, portanto, passível de controle pelo empregador.

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Isto porque não se trata de correspondência de cunho pessoal do trabalhador, ou pelo menos não deve ser assim usada. Vejamos o posicionamento do TST: RECURSO DE REVISTA. (...) 3. JUSTA CAUSA. USO INDEVIDO DO CORREIO ELETRÔNICO CORPORATIVO. TRANSMISSÃO DE MENSAGEM INADEQUADAS. O correio eletrônico corporativo é ferramenta de trabalho, que deve ser utilizada de forma segura e adequada, respeitando os fins a que se destina e os limites expressamente definidos pelo empregador. Nessa situação, o empregado utiliza computador e provedor da empresa e do próprio endereço eletrônico que lhe foi disponibilizado, devendo fazer uso das ferramentas, estritamente, para fins de trabalho. Não havendo dúvida acerca das reais finalidades do equipamento e sistema disponibilizados, a divulgação de mensagens manifestamente inadequadas a terceiros, com sérios riscos à própria imagem da empresa empregadora, expõe o mau procedimento do empregado, justificando o desfazimento do pacto laboral. Recurso de revista conhecido e provido (...) Recurso de revista não conhecido. (TST- RR- 269-80.2010.5.09.0594 - Ministro Relator Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira- Pub: 12/04/2013).

O e-mail corporativo deve ser utilizado pelo empregado apenas e tão somente para o trabalho, através de equipamento de propriedade da empregadora, com software da empregadora. Sendo assim, o empregado deve ter em mente que está no ambiente de trabalho e deve se comportar de modo a evitar o envio de mensagens com conteúdo pessoal e íntimo. Em face da colisão de direitos, cabe ao magistrado minimizar o direito que cederá em parte para se ajustar ao bom sentido do Texto Constitucional. As normas constitucionais devem ser interpretadas de maneira que se busque evitar qualquer tipo de contradição entre si, em razão do princípio da unidade da Constituição. Isto porque a Constituição não é um aglomerado de normas constitucionais isoladas, mas, ao contrário disso, forma um sistema orgânico, no qual cada parte tem de ser compreendida à luz das demais (SARMENTO, 2000, p.97-98). Canotilho afirma que este princípio obriga o intérprete a considerar a Constituição na sua totalidade e harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (CANOTILHO, 1991, p.162). O principal objetivo dos direitos fundamentais é a de acautelar as liberdades individuais contra as arbitrariedades das autoridades públicas. Estamos diante de direitos defensivos do homem livre se resguardando contra o Estado. O que deve ser levando em consideração é que as relações trabalhistas devem ser regidas pelo princípio da lealdade e boa-fé entre as partes, cumprindo cada qual a sua obrigação contratual, não gerando riscos à outra parte, e consequentemente criando um meio ambiente saudável para a atividade laboral.

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Sendo assim, é importante a fiscalização da empresa seja pautada no princípio da lealdade e boa-fé. Em sinal desta boa-fé, o empregado não pode ser surpreendido com uma regra de uma hora para outra, tendo sua intimidade violada. É necessário que ele conheça as regras do jogo. Da mesma forma que a empresa tem direito a exercer a fiscalização de suas propriedades, o empregado deve ter a sua privacidade e à intimidade protegidos. Isto porque independente da condição de subordinação à qual o empregado é submetido por conta do contrato de trabalho, seus direitos devem manter-se intactos, pois são bens constitucionalmente protegidos e que merecem resguardo em qualquer situação. O Tribunal Superior do Trabalho, que há algum tempo vinha acerca da possibilidade do monitoramento de e-mail corporativo, sem restrições, alterou relativamente tal entendimento fazendo o uso da ponderação de valores envolvidos, aplicando a razoabilidade na vigilância do e-mail corporativo. A mais alta Corte Laboral firmou entendimento de que as empresas só podem fiscalizar computadores e monitorar contas de e-mail corporativo utilizadas por seus funcionários, se houver a prévia proibição expressa em regulamento, do uso dessas ferramentas para uso pessoal. A empresa deve deixar claro que a fiscalização é a regra, de maneira a ficar claro ao empregado sobre a possibilidade de fiscalização pela empresa do conteúdo das mensagens do e-mail corporativo, de maneira que ele conheça as hipóteses de violação do regimento da empresa, bem como as penalidades que serão impostas em caso de violação. Com isto, estará sendo feita uma ponderação dos bens constitucionalmente protegidos, diminuindo-se o impacto do direito do empregado, haja vista que as regras lhe são esclarecidas. Desta forma, o balanceamento dos bens fica pendendo para o poder diretivo do empregador. No entanto, a empresa deve deixar claro que o e-mail é de utilização do empregado apenas para as tarefas profissionais, advertindo-o, desde logo, de que não poderá ser utilizado em quaisquer outras situações.

Conclusão A ausência de uma legislação a respeito da possibilidade de fiscalização do e-mail do empregado pelo empregador fez surgir opiniões acerca da viabilidade e legalidade deste monitoramento na relação de trabalho das mensagens do e-mail pessoal do empregado, acessado nas dependências da empresa nos computadores de propriedade do empregador, ou das mensagens do corporativo, fornecido pelo empregador ao empregado, como instrumento de trabalho. O empregado deve ter a sua privacidade e intimidade resguardadas, porem devem respeitar as normas internas da empresa quanto ao uso do e-mail corporativo. O mau uso do e-mail da empresa, a torna passível de responsabilização pelos atos provocados pelos seus funcionários, na forma da Súmula 341 do STF, razão pela qual justificável a fiscalização do e-mail corporativo.

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Diante do conflito existente entre as duas normas constitucionais, de mesmo peso hierárquico, quais sejam: o direito a intimidade e a vida provada do empregado e o direito de propriedade do empregador, deve ser feita a ponderação de valores a fim de um direito ceda em parte em prol do outro de maior relevância. No presente conflito, importante destacar o atual entendimento do TST acerca do monitoramento do e-mail corporativo, na medida em que deva ser feito com amparo no princípio da razoabilidade, com a utilização do bom senso no caso concreto. No que tange ao e-mail pessoal do empregado, ainda que acessado através do computador do empregador, não é possível a sua violação pelo empregador, em razão da inviolabilidade da correspondência garantida pela Carta Magna. Possível apenas que o empregador exerça um controle formal, seja bloqueando o acesso às páginas dos provedores dos e-mails pessoais dos empregados. Ressalte-se que o empregado deverá ser informado acerca da proibição do uso do e-mail corporativo para fins pessoais, para que o monitoramento das correspondências não acarrete invasão à intimidade do empregado. Diante do exposto, conclui-se pela impossibilidade de violação do e-mail pessoal do empregado e pela possibilidade do monitoramento das mensagens do e-mail corporativo, desde que o empregador preveja a proibição do uso deste último para fins pessoais em norma coletiva ou no regulamento interno da empresa, especificando que o uso deve ser para fins estritamente profissionais, cabendo punição disciplinar em caso de violação.

Referências bibliográficas

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BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2013. BELMONTE, Alexandre Agra. O monitoramento da correspondência eletrônica nas relações de trabalho. São Paulo: Ltr, 2004. BRASIL. Constituição Federal de 1988. VadeMecum. 15. ed, atualizada e ampliada. São Paulo: Rideel, 2012. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1991. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Rever ou Romper com a Constituição Dirigente? Defesa de um constitucionalismo moralmente reflexivo. In: Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 4. n.15. CIVIL. Código. VadeMecum. 15. ed, atualizada e ampliada. São Paulo: Rideel, 2012. FABIO, Rodrigues Gomes. Direitos Fundamentais dos Trabalhadores: Critérios de identificação e aplicação prática. São Paulo: LTr, 2013. GONÇALVES, Sérgio Ricardo Marques. E-mail x empregados: é legal o monitoramento pela empresa?. Jus Navigandi, Disponível em: < http://jus.com.br/artigos/2509/e-mail-xempregados >. Acesso em: 30 set. 2013. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. São Paulo: Atlas, 2002. MIGUEL, Carlos Ruiz. La configuracion constitucional del derecho a la intimidad. Editoral Tecnos. 1995. RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios do Direito do Trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2002. SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal, 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

Limites da Autonomia Privada na Relação de Emprego Júlia Mara Rodrigues Pimentel1 Resumo Muito se questiona se os princípios protetivos e os direitos trabalhistas consagrados na Lei Fundamental e na CLT podem ser vistos como uma forma de se atingir a autonomia privada, já que estando os sujeitos contratantes em situação de igualdade, ter-se-ia uma liberdade negocial plena. Tal, todavia, não acontece. No plano fático, a relação de emprego ainda é marcada pelo “poder” do empregador e os princípios e direitos laborais acabam por funcionar, em regra, como limites à autonomia privada. Admitir-se uma liberdade plena de negociação, em verdade, poderia importar em renúncia de direitos, daí a importância do princípio protetor, da imperatividade e da irrenunciabilidade das normas laborais bem como do leque de direitos fundamentais trabalhistas consagrados na Lei Maior. Palavras-chave: Relação de emprego; autonomia privada; irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas. Abstract Often been asked if the protective principles and labor rights embodied in the Constitution and CLT can be seen as a way to achieve private autonomy, as being the contractors subject on an equal footing, would have a negotiating freedom full. This, however, does not. On the factual level, the employment relationship is still marked by the “power” of the employer and the principles and labor rights end up working, as a rule, such as limits on private autonomy. Admit to full freedom of negotiation, in fact, could care for waiver of rights, hence the importance of the protective principle, the imperative and non-waiver labor standards as well as the range of labor fundamental rights enshrined in the Constitution. Keywords: Employment relationship; private autonomy; non-waiver of labor rights.

Introdução Consagrada no caput do artigo 5ª da Constituição Federal de 1988, a liberdade constitui direito fundamental, fazendo parte do chamado mínimo existencial garantido a todo indivíduo. 1

Mestranda em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Ciências Penais pelas Faculdades Integradas de Caratinga; Especialista em Direito Público e em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhaguera-Uniderp. Advogada e Conselheira da “OAB Mulher” da 54ª Subseção da OAB. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade Doctum de Manhuaçu e Professora da Rede Doctum de Ensino.

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O direito, a primeira vista, sob a perspectiva de ordenador de condutas em caráter intersubjetivo, parece limitar a liberdade2. Todavia, o direito é fomentador da concretização plena da liberdade humana, estabelecendo que a limitação de liberdade de uma pessoa corresponde a oportunização a outra do exercício de sua liberdade. Tal ocorre, por exemplo, ante a autonomia privada, quando a liberdade negocial das partes comporta a autorregulação de suas relações sociais. Nesta vereda, nota-se a acuidade da autonomia privada no ordenamento jurídico pátrio, como expressão de um direito fundamental de liberdade e livre iniciativa. No campo dos negócios jurídicos e contratos, a autonomia privada revela-se com extrema força, pois nestas relações é patente a paridade dos sujeitos que querem negociar e contratar. Daí surge um questionamento: Como compatibilizar essa liberdade negocial no Direito do Trabalho ante sua tutela essencialmente protetiva? O presente trabalho analisará essa questão na doutrina, bem como alguns julgados, a fim de averiguar como se pautam as interações entre a autonomia privada e a natureza protetiva do Direito do Trabalho na relação individual de emprego.

Os Direitos Trabalhistas à Luz da Autonomia Privada Os Direitos Trabalhistas como Direitos Sociais O Direito do Trabalho, cujo marco no contexto mundial é o século XIX, surgiu em um momento histórico de crise, como resposta política aos problemas sociais acarretados pelos dogmas ao capitalismo liberal. Após a Revolução Industrial, instaurou-se uma crise social ocasionada pelo império da máquina que, ao reduzir o esforço físico e mental do obreiro, provocou a exploração do trabalho dos considerados “meias forças”, isto é, as mulheres e crianças e colocou em segundo plano o trabalho do homem adulto. Tal conjuntura, aliada aos baixos salários, às jornadas excessivas de trabalho e ao desgaste prematuro do material humano nos acidentes de trabalho demonstrou que o Direito Civil já não se encontrava apto à solução desses problemas, que demandavam uma legislação mais apropriada com o momento histórico-social3. O contrato de trabalho disciplinado nos moldes liberais do direito clássico avivava a flagrante desigualdade dos interlocutores sociais. Nesse contexto, ante as agitações e lutas sociais do proletário no continente europeu, o Estado decidiu intervir na regulamentação do trabalho4. Nessa conjuntura, surgem os direitos

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2 A Declaração de 1789, documento fundamente do que Bartolomé Clavero chama de “sujeito constitucional”, assegura: Art. 4º “A liberdade consiste em poder fazer tudo o que não prejudique a outrem: em consequência, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem por limites os que assegurem aos demais membros da sociedade a fruição desses mesmos direitos. Tais limites só podem ser determinados pela lei”. 3 BARROS, 2007, pp. 81-82. 4 O Direito do Trabalho nasceu como consequência do Estado intervencionista, no sentido de dar igualdade jurídica ao empregado, inequivocamente o hipossuficiente na relação laboral.

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fundamentais de segunda dimensão. O Estado não mais poderia se manter inerte ante das injustiças sociais, deveria atuar positivamente na efetivação dos direitos que salvaguardassem as necessidades mínimas do indivíduo, proporcionando o chamado Estado do Bem-Estar Social ou Welfare State. Tal fato, entretanto, não significava que o Estado deveria abandonar o capitalismo. Pelo contrário, o Welfare State partia da premissa garantidora dos alicerces do capitalismo, como a livre iniciativa e a garantia da propriedade privada, mas não se olvidava dos direitos garantidores de uma vida digna para o ser humano5. Inspirado em critérios próprios, não encontrados noutros ramos do Direito, até então, o Estado alia-se ao trabalhador e edita uma legislação generosa para a época. Tais normas formam inspiradas pelo princípio da proteção, peculiar do Direito do Trabalho, e pelo da irrenunciabilidade, centrado numa garantia de condições mínimas de trabalho6. Ingo Sarlet, sobre os direitos de segunda geração, declara que a nota distintiva desses é a sua dimensão positiva, já que não se cuida mais da liberdade do e perante o Estado, senão da liberdade por intermédio do Estado7. Assim, os direitos de primeira geração são tidos como direitos de defesa das liberdades do ser humano, demandando do Estado uma atitude passiva e de vigilância em termos de polícia administrativa, enquanto os direitos fundamentais de segunda geração, direitos de participação, estabelecem do Estado uma política ativa para garantir o seu exercício. Destarte, é imperativo conceber os direitos trabalhistas como direitos fundamentais sociais, uma vez que não basta que o Estado se abstenha de violar os direitos trabalhistas, conquanto deve garantir os mesmos, de forma participativa, a fim de permitir o exercício destes direitos. No Brasil, assim como na América Latina, essa legislação garantista foi marcada pela proteção estatal8 e pela hostilização aos sindicatos, já que estes não podiam ser controlados pelo Estado, tendo, destarte, restrições quanto às relações coletivas. A intervenção do Estado ganha força devido à constatação de que a relação de emprego é, em sua gênese, desequilibrada, de um lado, o empregador, detentor de um poder social e econômico e, de outro, o obreiro, parte débil da relação empregatícia. 5

Não obstante já houvesse notícias desses direitos nas Constituições francesas de 1793 e 1848, bem como na Constituição Alemã de 1849 e na Constituição Brasileira de 1824, foram as Constituições Mexicana de 1917 e Alemã de Weimar que primeiro, efetivamente, positivaram esses direitos (MARMELSTEIN, 2009, pp. 49-50) 6 A Constituição mexicana, de 1917, pela primeira vez, eleva em postulado Donstitucional o salário mínimo capaz de satisfazer às necessidades básicas do trabalhador e limita a jornada de trabalho em oito horas diárias, estabelecendo, outrossim, um dia de descanso a cada seis dias de trabalho. 7 SARLET, 2011, p. 47. 8 Insta salientar que os direitos de segunda geração abordam também as chamadas “liberdades sociais”, como a liberdade de sindicalização e o direito a greve, representando um caráter negativo, de abstenção por parte do Estado, bem como o reconhecimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores (SARLET, 2011, p. 48).

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A necessidade de expansão da legislação laboral no sentido protetivo vem do ideal marxista de que o proprietário era quem massacrava o operário e não lhe repassava o total daquilo que era por seu direito, colocando-o em situação de inferioridade e carente de proteção estatal9. Buscando a proteção do obreiro e melhoras na prestação laboral, o Direito do Trabalho desenvolve alguns princípios, que visam equilibrar a relação de emprego, caracteristicamente desequilibrada, os quais serão abordados a seguir.

Princípios do Direito do Trabalho Princípio da Proteção É entendimento comum que a Justiça do Trabalho está exclusivamente voltada ao amparo do obreiro. Todavia, isso se deve ao caráter tutelar das leis trabalhistas, essas sim, voltadas à proteção ao trabalhador. O princípio da proteção, também denominado princípio tutelar, presente sobretudo no direito individual do trabalho, visa, como põe em relevo Delgado; “[...] retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho”10. Américo Plá Rodriguez discorrendo sobre a situação de desigualdade existente nas relações empregatícias assevera que o “legislador não pôde mais manter a ficção de igualdade existente entre as partes do contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa desigualdade econômica desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica a ele favorável”.11 No contrato de trabalho é flagrante a existência de uma relação desigual12. Em razão da constatação de que a relação de emprego encontra-se desequilibrada, o Direito do Trabalho possui normas voltadas ao amparo do obreiro. A razão dessa proteção é a inferioridade do contratante amparado em face do outro, cuja superioridade lhe permite, ou a um organismo que o represente, impor unilateralmente as cláusulas do contrato, que o primeiro não tem a possibilidade de discutir, cabendo-lhe aceitá-las ou recusá-las em bloco13. Tal proteção ao trabalhador justifica-se devido a devido a vários fatores, tais como a detenção do poder econômico do empregador, que irá refletir durante toda a relação de trabalho, seja no momento de aceitação das condições impostas ao obreiro – que necessita do dinheiro para a sobrevivência – seja quando o empregado se acha diante do empregador numa situação que não lhe permite exprimir uma vontade realmente livre14. 9

MOLINA; GUERRA FILHO, 2009. Disponível em: . DELGADO, 2008, p. 198. 11 RODRIGUEZ, 1978, p. 16. 12 No mesmo sentido, Sérgio Pinto Martins manifesta-se no sentido de que “se deve proporcionar uma forma de compensar a superioridade econômica do empregador em relação ao empregador, dando a este último uma superioridade jurídica” (2007, p. 63). 13 SILVA, 1999, pp. 22-41. 14 “O princípio da proteção, entretanto, vem sofrendo recortes pela própria lei, 10

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A subordinação jurídica do empregado frente ao empregador constitui outra justificação para o princípio da proteção. O empregador possui poderes de direção, de fiscalização e de sancionar seus empregados, todos conferidos pela CLT15. Desse modo, o empregador tem o poder de dar ordens de serviço ao obreiro e fiscalizar a execução de tais ordens. Já o poder de punir é conferido ao patrão para que este estabeleça sanções diante de determinadas condutas praticadas pelo empregado. A existência de tais poderes pode deixar o obreiro numa posição de inferioridade, já que a ameaça de punição pode fazer com que o este deixe de reivindicar certos direitos ou aceitar condições de trabalho desfavoráveis16. Do princípio da proteção, ou princípio tutelar, emergem o princípio in dubio pro operario, o princípio da norma mais favorável e o princípio da condição mais benéfica17. com vista a não onerar demais o empregador e impedir o progresso no campo das conquistas sociais. Isso é também uma consequência do fenômeno da chamada flexibilização ‘normatizada’. [...] O grande desafio que se enfrenta é determinar o ponto de equilíbrio entre uma flexibilização sensível às preocupações legítimas das empresas e uma legislação que impeça um retrocesso ao antigo arrendamento de serviços, norteado pela autonomia da vontade, que foge completamente dos ideais de justiça social” (Barros, 2007, pp. 179-180). 15 O artigo 2º da CLT confere ao empregador poder diretivo, fiscalizador e sancionador. Estes poderes representam o conjunto de prerrogativas concentradas no empregador dirigidas à organização e estruturação empresarial, incluindo o processo de trabalho adotado na empresa, com estabelecimento de regras e orientações no tocante às condutas dos empregados dentro do estabelecimento (DELGADO, 2003, p. 641) 16 Segundo Sérgio Pinto Martins, o poder de direção do empregador é o modo como este define como serão desenvolvidas as atividades do obreiro decorrentes do contrato de trabalho. O fundamento legal do poder diretivo encontra-se no art. 2º da CLT e compreende o poder de direção não só o de organizar suas atividades, como também de controlar e disciplinar o trabalho, de acordo com os fins do empreendimento. Dentro do poder de organização, encontra-se a possibilidade de o empregador regulamentar o trabalho, elaborando o regulamento da empresa (2007, pp. 193194). Esse poder, contudo, não é ilimitado, pois a própria lei determina as limitações do poder de direção do empregador. O obreiro não está obrigado a cumprir ordens ilegais. Surge assim, a possibilidade do empregado opor-se, validamente, a determinações ilícitas oriundas do empregador, eis o chamado jus resistentiae, direito de resistência do obreiro, que deriva “diretamente do uso irregular do poder diretivo patronal” (VIANA, 1996, p. 412). Todavia, o “[...]   jus resistentiae  torna-se, na prática, mitigado, uma vez que o risco de rompimento do contrato pelo empregador inibe eventual posição defensiva do empregado em face de determinações abusivas recebidas (DELGADO, 2008, p. 1006). Assim, insta ressaltar que a intangibilidade e a irrenunciabilidade de certos direitos trabalhistas funcionam assim como verdadeira linha divisória entre o exercício legítimo e o exercício abusivo do poder diretivo, nesse sentido Márcio Túlio Viana sobre o jus resistentiae  assevera que a “[...] resistência será a defesa direta, pelo empregado ou pelo grupo, do direito violado ou do justo interesse insatisfeito por empregador, no exercício (irregular) de seu poder diretivo” (1996, p. 26). 17 BARROS, 2007, pp. 177-179.

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Também denominado in dubio pro misero, o princípio in dubio pro operario, consiste na prevalência da escolha de interpretação mais favorável ao obreiro. O princípio da norma mais favorável ao empregado estabelece que quando se tem duas normas aplicáveis ao empregado, opta-se por aquela mais benéfica18. Já o princípio da condição mais benéfica implica na prevalência de condições mais vantajosas para o trabalhador, fixadas no respectivo contrato de trabalho19. Assim, diante de uma sucessão normativa, deve-se ter por permanente a condição mais favorável ao trabalhador20.

Princípio da Imperatividade das Normas Trabalhistas Segundo tal princípio, no ramo juslaborativo, prevalece as normas imperativas, isto é, obrigatórias, em detrimento das regras apenas dispositivas. Desse modo, não podem, no todo, terem sua regência contratual afastada em caso de simples manifestação da vontade das partes. Como adverte Maurício Godinho Delgado: Para este princípio prevalece a restrição à autonomia da vontade no contrato trabalhista, em contraponto à diretriz civil de soberania das partes no ajuste das condições contratuais. Esta restrição é tida como instrumento assecuratório eficaz de garantias fundamentais ao trabalhador, em fase do desequilíbrio de poderes inerente ao contrato21.

Destarte, há uma restrição no tocante a autonomia da vontade dentro do contrato de trabalho, que prevalece contrapondo-se ao ajuste das condições contratuais, à diretriz de soberania estabelecida pela parte contratante, tudo com o intuito de manter as garantias fundamentais do obreiro em face de poderes do empregador inerentes ao contrato laboral.

Princípio da Irrenunciabilidade dos Direitos Trabalhistas Inicialmente, insta salientar que é característica dos direitos sociais serem inalienáveis, imprescritíveis e irrenunciáveis22. A irrenunciabilidade, portanto, 18

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Tal princípio configura-se claro pela simples leitura do artigo 620 da CLT: “As condições estabelecidas em Convenção, quando mais favoráveis prevalecerão sobre as estipuladas em acordo”. 19 ALMEIDA, 2012, p. 34. 20 Assim, os princípios da condição mais benéfica e da norma mais favorável apresentam em comum o fato de depender a sua aplicação da existência de uma pluralidade de normas, diferenciando-se porque o princípio da norma mais favorável supõe normas com vigência simultânea e o princípio da condição mais benéfica sucessão normativa. 21 DELGADO, 2008, p. 201, grifo do autor. 22 Os direitos sociais não podem ser objeto de renúncias. Dessa característica, como entende Alexandre de Moraes, surge diversas discussões, como renúncia ao direito à vida e a eutanásia, aborto e suicídio (MORAES, 2006, p. 23). Todavia, mister se faz chamar atenção que certos direitos fundamentais, chamados direitos da personalidade, podem ser

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encontra-se presente no Direito do Trabalho, por ser o mesmo considerado um direito social. Na seara trabalhista, a irrenunciabilidade consiste “na impossibilidade jurídica de privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito trabalhista em benefício próprio”23. Embora atenuado pela negociação coletiva, tal princípio está vinculado à ideia de imperatividade, isto é, de indisponibilidade de direitos. Seu escopo é limitar a autonomia da vontade das partes, visto que não seria viável que “o ordenamento jurídico, impregnado de normas de tutela do trabalhador, permitisse que o empregado se despojasse desses direitos, presumivelmente, pressionado pelo temor reverencial de não obter o emprego ou de perdê-lo”24, caso não formalizasse a renúncia25. A irrenunciabilidade é a regra, tendo em vista que a escopo imediato do Direito do Trabalho consiste na proteção jurídica ao trabalhador. Consagra-se o princípio no art. 9º da CLT, qual declara que “serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. Deste modo, quando o obreiro renuncia seus direitos trabalhistas, favorecendo, em regra, o empregador, há de se considerar tal ato de disposição nulo26, afinal o trabalhador, parte débil da relação, não estava em condição de exercer plenamente sua autonomia privada, de sorte que o ato pode ser considerado fraudulento, desvirtuativo ou impeditivo de consagração dos princípios trabalhistas.

objeto de parcial disposição do seu titular, v. g., quando o indivíduo dispõe de sua imagem para realização de uma campanha publicitária. Nada disso, todavia, pode ser capaz de ensejar a renúncia ao direito fundamental ou a ofensa à dignidade da pessoa humana. 23 RODRIGUEZ, 1978, p. 142. 24 BARROS, 2007, pp. 182-183. 25 Nesse sentido é o entendimento de Luiz Pinho Pedreira da Silva, haja vista que a imperatividade, a indisponibilidade e consequente inderrogabilidade, todas de ordem pública e cogentes, como ainda a presunção de vício de consentimento nos atos jurídicos do trabalhador, resultante da sua subordinação ao empregador, conjugam-se para produzir a consequência da irrenunciabilidade de direitos do obreiro como um dos princípios cardiais do mesmo direito (1999, p.124). 26 A regra é de que o contrato de trabalho não pode ser modificado unilateralmente pelo empregador. Esse regra é observada no art. 468 da CLT e assevera que a alteração nos contratos individuais só é lícita por mútuo consentimento e se não causarem prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da referida alteração. Segundo Sérgio Pinto Martins “o princípio da imodificabilidade do contrato de trabalho reflete uma forte intervenção do Estado na relação entre empregado e empregador, de modo a que o primeiro, por ser o pOlo mais fraco dessa relação, não venha a ser prejudicado com imposições feitas pelo segundo e decorrentes do seu poder de direção. Daí a necessidade da interferência do Estado, evitando que o empregador altere unilateralmente as regras do pacto laboral. Trata-se, portanto, de uma norma de ordem pública, que restringe a autonomia da vontade das partes contratantes” (2007, p. 310).

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Princípio do Não-Retrocesso Social As normas que estabelecem direitos fundamentais são consideradas cláusulas pétreas por força do art. 60, § 4º, IV, da Lei Maior. O constituinte instituiu, por conseguinte, uma barreira às retrocessões relativas aos direitos fundamentais, fomentando a atitude estatal no sentido progressista. Sendo acentuada a característica da historicidade dos direitos fundamentais, não comportam retrocessos, quer sejam por supressão desses direitos ou enfraquecimento27. Dessa forma, uma norma pode ser um retrocesso às conquistas obtidas ao longo do tempo. Concernente ao não-retrocesso social na esfera trabalhista ressalte-se que o mesmo possui sede constitucional, consoante o art. 7º, caput, da CF/88: “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social”28. Os direitos trabalhistas estão sujeitos ao princípio do não-retrocesso social, de sorte que os direitos sociais já concretizados e efetivados não podem retroceder diante de normas ordinárias29. Nesse sentindo Meireles acentua: Ora, o que o legislador Constitucional estabeleceu, no artigo 7º, foi uma série mínima e fundamental de direitos social-trabalhistas, preceituando, ainda, que outros direitos podem ser concedidos aos trabalhadores, desde que visem à melhoria de sua condição social. Daí se tem que não se pode admitir norma Constitucional derivada (emenda) ou norma infraconstitucional que tenda a não gerar uma melhoria na condição social do trabalhador. Ela seria inconstitucional por justamente não preencher esse requisito Constitucional da melhoria da condição social do trabalhador30.

Dessa forma, a partir do momento em que a Carta Fundamental consagrou a existência de direitos dos trabalhadores que melhorem sua condição social, proibiu que sobrevenha uma piora nestes mesmos direitos, constituindo o embasamento para a existência do princípio do não-retrocesso social em sede trabalhista. 27

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Para Canotilho, seria inconstitucional qualquer medida que tendente a revogar direitos fundamentais já regulamentados, sem a criação de meios alternativos de compensação (1992, p. 350). 28 Segundo George Marmelstein, os direitos trabalhistas “possuem uma função diferente dos demais direitos fundamentais, pois eles têm como principal destinatário as empresas privadas e não o Estado. São, portanto, normas que limitam o poder de direção do empregador com vistas a proporcionar condições mais dignas de trabalho” (2009, p. 176). 29 SARLET, 2011, p. 438. 30 MEIRELES; MEIRELES, 2009, p. 21.

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A Autonomia Privada e a Relação de Emprego sob a Perspectiva do Direito Individual do Trabalho Conceito de Autonomia Privada Individual A autonomia privada consiste no poder conferido aos particulares pelo ordenamento jurídico de criar, dentro dos limites estabelecidos pela lei, normas jurídicas em suas relações31. A autonomia privada se baseia não apenas na autodeterminação e liberdade dos indivíduos para formação a de negócios jurídicos32, tal como na autonomia da vontade33. É cogente que este consenso seja previsto como legítimo pelo ordenamento jurídico, ou, ao menos, que este consenso não seja proscrito pelo ordenamento jurídico34. Na teoria da autonomia privada é suficiente o mero consenso para criar direito, isto é, não basta a manifestação de vontade para que os sujeitos se obrigem, fazendo-se mister a observância de certos pressupostos de validade. Assim sendo, os particulares apenas podem conformar relações jurídicas que sejam reconhecidas pelo ordenamento jurídico, desde que estejam em conformidade com o mesmo. A autonomia privada comporta uma liberdade de atuação, no entanto a norma pode deixar um espaço maior ou menor para esta liberdade. Sem um ordenamento jurídico que consagre o mínimo de liberdade negocial entre os indivíduos, não se pode falar em autonomia privada. Todavia, existem ramos do direito, nos quais a liberdade negocial se apresenta, inclusive ramos considerados protecionistas e, por conseguinte, de difícil acesso da autonomia privada. No Direito do Trabalho, ramo onde se tem uma desigualdade social 31

FERRI, 1969, p. 67. Para Francisco Amaral a autonomia privada é o direito fundamental que garante ao indivíduo o exercício de sua vontade e consiste no princípio de direito privado pelo qual o sujeito tem a faculdade de “praticar um ato jurídico, determinando-lhe o conteúdo, a forma e os efeitos” (2006, p. 345). 33 Segundo Couto, “os princípios da autonomia da vontade e da autonomia privada pertencem a diferentes estágios da evolução social e da teoria do Direito. A autonomia da vontade decorre do voluntarismo oitocentista, que elevou a vontade ao mesmo plano da lei como a causa dos efeitos jurídicos. Por sua vez, a autonomia privada é resultado das transformações socioeconômicas que conduziram à sociedade de massas, ligando-se à tendência de objetivação do negócio, tutela da confiança e na dignidade da pessoa humana [...] O princípio da ‘autonomia da vontade’ é desenvolvido pela influência da filosófica liberal fundada nos direitos naturais. Na ideologia do modelo de Estado Social, o Estado deve impor limites à liberdade de contratar, a fim de coibir os abusos decorrentes das desigualdades entre as partes. [...] Para a autonomia da vontade o poder era considerado como um dado imanente das pessoas, ao passo que os positivistas vêem o poder como concessão do Direito. Assim, a autonomia privada decorre em virtude e nos limites do ordenamento jurídico estatal [...] na autonomia privada, os interesses são particulares e seu exercício é a manifestação de liberdade, derivado e reconhecido pela ordem estatal. O Estado opera intervenções que visam a mitigar as desigualdades econômicas entre as partes contratantes e não distorcem a autonomia; colabora com os objetivos da autonomia privada, permitindo que os contratantes se expressem em pé de igualdade” (COUTO, 2009). 34 BORGES, 2007, pp. 52-53. 32

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marcante, a autonomia privada encontra respaldo em determinados casos. No direito coletivo do trabalho, a autonomia privada assume papel de protagonista na negociação coletiva35. Dessa forma, é possível visualizar uma subdivisão nesse conceito de autonomia privada. É plausível se falar em autonomia privada individual, que é aquela liberdade negocial, respeitando os primados de validade na Constituição da obrigação, que ocorre na relação aos sujeitos empregado e empregador, ante de um contrato individual de trabalho. Por outro lado, tem-se a autonomia privada coletiva, que acontece no âmbito coletivo das relações laborais. No qual se tem a atuação de um sindicato de trabalhadores, negociando diretamente com a empresa (acordo coletivo), ou com um sindicato empresarial (convenção coletiva).

Relação de Emprego como Negócio Jurídico e seus Reflexos na Autonomia Privada Individual Considerando que a autonomia privada consiste numa liberdade de negociação dentro dos limites impostos pelo ordenamento jurídico, faz-se mister analisar a autonomia privada na relação de emprego. Essencialmente, não se pode olvidar que os direitos trabalhistas são direitos fundamentais sociais, portanto, passíveis de amparo estatal. Tal proteção é vista sob um prisma intervencionista, de forma que o Estado consagra certos direitos trabalhistas, permitindo um melhor desenvolvimento da relação empregatícia. E, como visto, a relação individual de emprego é pautada no princípio da proteção, bem como no da irrenunciabilidade, e os direitos trabalhistas estão sujeitos ao princípio do não-retrocesso social, daí argúi-se se a existência de tais princípios trabalhistas poderia limitar a autonomia privada ou se a mesma poderia conviver harmonicamente com tais princípios. O contrato de trabalho36 é resultado de uma manifestação bilateral de vontades. Para a formação da relação de emprego, é essencial o consentimento das partes. O trabalho é livre e não obrigatório, de forma que o consentimento do trabalhador não pode ser dispensado37. No que tange à confusão entre liberdade 35

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A autonomia privada e a autonomia coletiva diferenciam-se quanto aos fins e à estrutura que comportam. Quanto aos fins, é possível afirmar que a autonomia individual visa satisfazer um interesse individual, pertinente a pessoa singularmente considerada, enquanto a autonomia coletiva visa a realizar interesse coletivo, pertinente ao grupo. Quanto à estrutura, verifica-se que os limites internos e externos da autonomia são dados pelo grau de relevância dos interesses envolvidos (SILVA, 2008, pp. 48-65). 36 José Martins Catharino assevera que a expressão correta seria contrato de emprego, sendo este espécie do gênero contrato de trabalho, uma vez que se trata do pacto entre empregador e empregado (1982, pp. 217-218). A CLT em seu artigo 422 conceitua o contrato de trabalho nos seguintes termos: “contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”. 37 Acerca do assunto o professor Otavio Pinto e Silva registra que a “[...] ideia de contrato de trabalho inserido na área da autonomia privada está relacionada ao reconhecimento,

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e vontade, tem-se que a vontade de formar o vínculo sempre é manifestada, ainda que a liberdade esteja mitigada, em razão da necessidade daquele emprego. O empregado não é totalmente livre para discutir as cláusulas contratuais, porém sempre manifesta vontade de contratar ou não. Esse negócio jurídico, pautado na vontade dos contraentes, deve preencher os requisitos legais para a sua configuração, quer sejam: pessoalidade, onerosidade, subordinação jurídica e não-eventualidade. Saliente-se que o preenchimento dessas características configura a relação de emprego, contudo isso não é impeditivo da mesma passar pelo crivo dos planos da existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos civis. Constata-se, destarte, que a relação de emprego é resultado de uma autonomia privada individual. Coelho a esse respeito salienta que: A autonomia privada funda-se na capacidade de a pessoa autorregular autônoma e responsavelmente sua vida. Isso somente se torna possível quando uma parte na relação negocial não tem sobre a outra uma posição de supremacia e controle, de maneira a conformar a decisão do polo mais fraco. É dado ao trabalhador, hoje, o direito de não contratar, desde que aceite as implicações de seu ato no mundo capitalista38.

Com base em tal posicionamento, é plausível analisar se a autonomia privada individual, devido a esse desequilíbrio na relação negocial, sofre limitações em razão da existência de um sistema protetivo trabalhista. Daí surge o seguinte questionamento: diante da existência de direitos trabalhistas garantidos pelo Estado, existe liberdade negocial plena entre os contratantes?

Autonomia Privada Individual e Negociação (ou Disponibilidade) de Direitos Trabalhistas Tendo em vista que a relação individual de emprego é marcada pela existência de um contrato de trabalho, é possível indagar se haveria uma plena liberdade negocial ante a existência de direitos trabalhistas garantidos pelo Estado, bem como se esta autonomia privada se sustentaria diante do sistema protetivo característico do direito laboral. pelo estado do poder conferido aos particulares de regularem os seus próprios interesses. É assim um negócio jurídico bilateral, visto que regulamenta os interesses de pelo menos dois sujeitos. Pouco importa que essa autonomia de contratar esteja sujeita a uma série de condicionamentos legais: o ordenamento reconhece a autonomia negocial mas não renuncia ao poder de regulamentar os interesses privados. A liberdade de contratar, assim sofre limitações na medida que as leis passam a dispor imperativamente sobre o conteúdo de alguns contratos. Trata-se de fenômeno comum no Direito, conhecido como dirigismo contratual e que se manifesta na forma de política destinada a restringir a autonomia negocial na determinação dos efeitos de alguns contratos. É o que acontece no Direito do Trabalho e igualmente no direito do consumidor, de modo que a intervenção estatal não descaracteriza a natureza jurídica contratual do vínculo entre os sujeitos” (2004, p. 20). 38 COELHO, 2005, p. 147.

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Como já amplamente visto, num primeiro momento, é plausível pensar que a autonomia individual na relação de emprego é mitigada, em decorrência dos princípios trabalhistas que visam proteger o obreiro. Nada obstante, tal afirmativa deve ser examinada sob outra perspectiva. É consabido que o sistema protetivo adentrou no ordenamento jurídico visando o reequilíbrio das partes. Deste modo, estando as partes em situação de igualdade, seria possível uma autonomia privada na realização do contrato de trabalho. Entretanto, deve-se ressaltar que restrições à autonomia privada individual se justificam por se tratar de uma relação que é, historicamente, desigual39. Assim, o direito individual do trabalho tem na indisponibilidade de direitos trabalhistas por parte do empregado um de seus princípios mais destacados, estando subjacente a pelo menos três relevantes dispositivos da CLT, quais sejam, artigo. 9º, 444 e 468. Contudo, vale ressaltar o que Maurício Godinho Delgado destaca [...] não é todo tipo de supressão de direitos trabalhistas que o ramo juslaborativo inibe. O despojamento restringido pela legislação centrase fundamentalmente naquele derivado do exercício expresso ou tácito da vontade pelo titular do direito trabalhista (através da renúncia ou da transação, por exemplo). O Direito do Trabalho não impede, porém, a supressão de direitos trabalhistas em face do exercício, pelo devedor trabalhista, de prerrogativa legal (como arguição de prescrição) ou em face do não-exercício, pelo credor trabalhista, de prerrogativa legal ou convencional (como no caso da decadência). Prescrição e decadência geram, pois, supressão de direitos laborais, sem afronta ao princípio básico da indisponibilidade que caracteriza o Direito Individual do Trabalho.40

Desse modo, o obreiro, quer pela renúncia ou transação, não pode dispor de seus direitos trabalhistas, sendo nulo o ato dirigido a esse despojamento. Tal conduta normativa geral realiza, no plano concreto da relação de emprego, os princípios da indisponibilidade e imperatividade das normas trabalhistas. A indisponibilidade inerente aos direitos trabalhistas não tem, todavia, a mesma exata rigidez e extensão. Consoante Delgado, “pode-se, tecnicamente, distinguir entre direitos imantados por indisponibilidade absoluta ao lado de direitos imantados por uma indisponibilidade relativa”41. Assim, do ponto de vista do direito individual do trabalho, absoluta será a indisponibilidade quando o direito enfocado merecer uma tutela de nível de interesse público, por exprimir um patamar civilizatório mínimo firmado pela sociedade política num dado momento histórico. De outro 39

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Esta premissa não se mantém diante da autonomia privada coletiva, onde, em regra, há entes iguais e a autonomia privada alcança sua plenitude. 40 DELGADO, 2008, p. 216. 41 DELGADO, 2008, p. 217.

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modo, será relativa a indisponibilidade quando o direito enfocado traduzir interesse individual ou bilateral simples que não caracterize um tal padrão civilizatório geral mínimo42. A jurisprudência traz exemplos nos quais a autonomia privada não foi reconhecida, pois se tratava de casos em que os direitos eram absolutamente indisponíveis, eis: RECURSO DE REVISTA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NULIDADE. Não se admite o conhecimento do Recurso de Revista com relação à preliminar de nulidade por negativa de prestação jurisdicional com base em violação ao art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República, sob pena de contrariedade à Orientação Jurisprudencial 115 da SDI. Acordo individual firmado mediante instrumento particular. renúncia de reajustes salariais previstos em dissídio coletivo como garantia de emprego. ato nulo. 1. É nula a transação individual extrajudicial celebrada entre a reclamada e reclamante, mediante a qual o autor, a pretexto de espontaneamente declarar sua vontade, renuncia a reajustes salariais expressivos (de 236, 98% e 130,36%) fixados em acordo homologado em dissídio coletivo, tendo por único motivo ensejador para firmar referida transação o de evitar a sua demissão. 2. Conquanto a demissão seja direito potestativo do empregador, a coação moral se revela quando uma das partes, a teor de exercer direito seu, dele abusa ou o faz de forma anormal, de maneira a incutir no outro temor suficiente à prática do ato desejado (doutrina de Vicente Ráo). Recurso de Revista de que se conhece e a que se dá provimento.43

Resta claro que a autonomia privada encontra limites nos princípios e normas que compõem o ordenamento jurídico como um todo. Nesse sentido: ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ADMISSÃO POSTERIOR À CF/88 SEM PRÉVIA APROVAÇÃO EM CONCURSO PÚBLICO. CONTRATO NULO. EFEITOS.[...] consoante Súmula 363 do Colendo Tribunal Superior do Trabalho. DIREITOS TRABALHISTAS. RENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. Diferente do direito privado, onde vigora a autonomia da vontade e a disponibilidade do direito, exceto os direitos personalíssimos, no Direito do Trabalho a irrenunciabilidade constitui a regra e a renunciabilidade a exceção. Nesse sentido, impossível 42

Delgado traz como exemplos de indisponibilidade absoluta “o direito à assinatura de CTPS, ao salário mínimo, à incidência das normas de proteção à saúde e segurança do trabalhador. Também será absoluta [...] quando o direito enfocado estiver protegido por norma de interesse abstrato da respectiva categoria”, no que concerne a indisponibilidade relativa: “É o que se passa, ilustrativamente, com a modalidade de salário paga ao empregado ao longo da relação de emprego (salário fixo versus salário variável, por exemplo)” (2008, pp. 217-218). 43 Processo ED – RR 133007020075008913300-70.2007.5.15.0089. Relator Emmanoel Pereira. Julgamento: 11/05/2011. Órgão Julgador: 5ª Turma. Publicação 20/05/2011.

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acolher a renúncia em relação ao FGTS, por se tratar de parcela de natureza social, indisponível pelo empregado, com destinação precípua à manutenção do Sistema Financeiro de Habitação e do saneamento básico.44

Ademais, a irrenunciabilidade implica uma restrição à autonomia da vontade. Esta fica paralisada diante do interesse social que se antepõe ao eventual interesse individual45. Depreende-se da análise dos julgados supra, que o princípio da irrenunciabilidade, que norteia o Direito do Trabalho impede o afastamento, pela ação das partes, no âmbito do contrato individual de trabalho, das normas protetivas, de caráter imperativo, tudo com o intuito de proteger o trabalhador. 44

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Processo RO 600200610622008 PI 00600-2006-106-22-00-8. Relator: Francisco Meton Marques de Lima. Julgamento: 13/03/2008. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação: DJT/PI, página 25, 10/03/2008. 45 RECURSO DE REVISTA. ESTABILIDADE ACIDENTÁRIA. RENÚNCIA. ASSISTÊNCIA SINDICAL. DESPEDIDA SEM JUSTA CAUSA. IMPOSSIBILIDADE. O princípio da irrenunciabilidade, que norteia o Direito do Trabalho, impede o afastamento, pela ação da vontade das partes, das normas protetivas – incluindo aí também o sindicato da categoria. Há, segundo Américo Plá Rodriguez [...] verdadeira impossibilidade de o próprio empregado privar-se voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito trabalhista em benefício próprio. Os direitos trabalhistas revelam-se marcados com a insígnia da indisponibilidade, e qualquer alteração que vise a suprimir a proteção concedida pelo ordenamento jurídico, sem autorização deste, mostra-se inquinada de nulidade. – A irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas traduz a ideia da indisponibilidade desses direitos. Vale dizer: os direitos trabalhistas são irrenunciáveis, porque o trabalhador deles não dispõe. Aqui se evidencia ostensivamente o caráter publicístico do Direito do Trabalho: a indisponibilidade é uma garantia social, transcende o indivíduo-trabalhador. Por isso, ele não pode deles abdicar, nem deixar de exercê-los validamente. Se o fizer, o ato ou a omissão correspondentes não se convalidam no tempo. Sem dúvida, a irrenunciabilidade implica uma restrição à autonomia da vontade. Esta fica paralisada diante do interesse social que se antepõe ao eventual interesse individual. [...] A extinção do vínculo de emprego, nos moldes em que apresentada – despedida sem justa causa com assistência sindical à renúncia de garantia de emprego – não encontra amparo no direito posto, em face do princípio da irrenunciabilidade, que orienta o direito trabalhista – o qual não apresenta qualquer exceção que se adapte ao caso dos autos. Em face das particularidades das normas de distribuição do ônus da prova no processo do trabalho, como reflexo do próprio princípio protetivo – que justifica a razão de ser desta Justiça Especializada –, não se revela razoável a exigência por parte do julgador da demonstração de coação no ato efetuado. Ausente a vontade do empregado no término do vínculo, porquanto extinto o contrato por iniciativa do empregador – a afastar a aplicação do art. 500 da CLT–, presume-se a coação para a renúncia à garantia de emprego – ainda que presente o sindicato – e tem-se por nulo o ato efetuado, a atrair a incidência dos arts. 9º, 444 e 468 da CLT. Recurso de revista conhecido e provido. TST, Relator: Rosa Maria Weber, Data de Julgamento: 04/11/2009, 3ª Turma.

Júlia Mara Rodrigues Pimentel

Conclusão O direito laboral possui um arcabouço principiológico forte no tocante à proteção da parte mais débil da relação de emprego. Devido a hipossuficiência do trabalhador o sistema protetivo adentrou no ordenamento jurídico na busca de um reequilíbrio das partes. Assim sendo, estando as partes em situação de igualdade, seria possível a autonomia privada na realização do contrato de emprego. Poder-se-ia dizer que os princípios protetivos e os direitos trabalhistas consagrados na Lei Fundamental podem ser vistos como uma forma de se atingir a autonomia privada, uma vez que estando os sujeitos contratantes em situação de igualdade, ter-se-ia uma liberdade negocial plena. Tal afirmação, entretanto, deve ser vista com ressalvas, haja vista que os princípios e direitos laborais acabam por funcionar, em regra, como limites à autonomia privada, já que a liberdade plena de negociação por vezes esbarra no princípio protetor ou no leque de direitos fundamentais dos trabalhadores consagrados na Lei Maior. Tratando-se de uma relação entre uma parte débil e outra detentora de um poder social, o respeito ao princípio da proteção em face da autonomia privada não é uma limitação maléfica, pois vem para assegurar a fruição dos direitos fundamentais pelo obreiro, enquanto trabalhador e cidadão. Destarte, não atinge simplesmente direitos trabalhistas, mas também direitos da personalidade do obreiro, que devem se encontrar amparados pelo princípio protetivo para que os trabalhadores possam ter uma vontade que seja livre, uma liberdade real, material. Em suma, pode-se dizer que quando a negociação das cláusulas do contrato de trabalho atrair a incidência dos artigos 9º, 444 e 468 da CLT tem-se por nulo o ato efetuado. Assim, há de concluir-se que os limites da autonomia privada na relação de emprego tem como referência o artigo 444 celetista, qual estabelece que as relações contratuais de trabalho “podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes”. Logo, evidencia-se a verdadeira impossibilidade do próprio obreiro privarse voluntariamente de uma ou mais vantagens concedidas pelo direito laboral em benefício próprio. Os direitos trabalhistas revelam-se marcados com a insígnia da indisponibilidade, e as negociações ou alterações, no plano da relação individual de emprego, que visem suprimir a proteção concedida pelo ordenamento jurídico, sem autorização deste, mostram-se inquinadas de nulidade.

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Limites da Autonomia Privada na Relação de Emprego

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A Validade do Testamento Vital em face do Direito à Morte Digna e da Autonomia da Vontade José Flávio Barroso Madaleno1 Resumo O presente artigo visa abordar a validade do testamento vital em face do direito à morte digna e da autonomia da vontade. A referida temática insere-se na perspectiva civil-constitucional, envolvendo discussões acerca dos limites de disposição dos direitos da personalidade, da aplicabilidade da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade no momento da morte do indivíduo e, por fim, acerca da contraposição do direito à vida física versus direito à vida intelectual. Fará uma abordagem das Teorias de Herbert Hart e Ronald Dworkin sobre o caso concreto, pela subsunção ao presente tema. Com os avanços tecnológicos das últimas décadas revolucionaram vários campos da ciência, dentre eles, a Medicina, permitindo um prolongamento interminável da vida através de aparelhos e outras tecnologias. Nesse contexto, torna-se imprescindível o estudo do testamento vital, instrumento disciplinado pela resolução 1995/12 do CFM, que permite ao paciente em estado terminal definir os limites terapêuticos aos quais quer submeter-se. Palavras-chave: Morte digna; autonomia da vontade; testamento vital. Abstract This article aims to address the validity of living wills in the face of the right to a dignified death and freedom of choice. That theme is part of the civil and constitutional perspective, involving discussions about the limits of provision of personal rights , the applicability of human dignity and autonomy of the will at the time of the individual’s death and , finally, about the contrast the right to physical life versus right to intellectual life. Make an approach to Herbert Hart and Ronald Dworkin Theories about the case, the subsumption to this theme. With the technological advances of recent decades has revolutionized many fields of science, among them medicine, allowing an endless prolongation of life through devices and other technologies. In this context, it is essential to the study of living will , disciplined instrument for the resolution 1995/12 of the CFM, which allows the terminally ill patient define the therapeutic range to which you want to submit. Keywords: Dignified death; freedom of choice; living will.

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Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor de Direito pela Faculdade Doctum de Manhuaçu e advogado.

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Introdução O maior bem tutelado pelo Direito, indubitavelmente, é a vida. Pode-se pensar em alguma situação de alguma sobreposição desse bem? O que se pretende demonstrar é exatamente a interminável discussão em torno da possibilidade de ponderar outros fatores, pautados nos princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, sobre a sua interrupção. O foco recai sobre doentes adultos que, em estado terminal ou irreversível, poderão expressar sua vontade de forma autônoma, consciente e capaz, de acordo com os seus valores, crenças e convicções, definindo como desejam transcorrer os últimos momentos de suas vidas. O que se percebe claramente é, em princípio, a falta de instrumentos jurídicos para que se possa trazer uma solução justa e pacífica para a questão. Não há no ordenamento uma regra que possa enquadrar o caso trazido a debate. Pensar que uma pessoa poderia fazer o pedido de dar o fim à sua própria vida, mesmo em situações adversas, se torna uma questão jurídica infindável, por ser, em um primeiro momento, sem solução. Propõe-se, na primeira fase, a possibilidade de solução na teoria de Hart, dos sistemas simples e sistemas complexos, em que menciona o sistema de regras primárias – regras que impõem ações e omissões aos indivíduos - e sistemas de regras secundárias2. E a resposta para o presente caso nesse autor está neste tipo de regra3. Passa-se então à análise dessa teoria, em que o foco principal das regras secundárias, no positivismo de Hart, é, justamente, findar as incertezas. Cumpre ressaltar que estas trazem em si o que o jusfilósofo chamou de regra de reconhecimento. Elas devem ser utilizadas à medida em que as dificuldades jurídicas começam a ocorrer e o ordenamento jurídico não encontra apto a apresentar uma resposta. Não se pode olvidar que a grande problemática trazida se faz justamente no campo da linguagem, visto que a linguagem jurídica é limitada. E o tema proposto, no entendimento de Hart, enquadra-se no que ele chamava de textura aberta da linguagem4. Nesses casos, a proposta para solução, desses, denominado casos difíceis é a técnica de analogia. 2

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As regras secundárias, na visão de Hart, foram assim classificadas: a) Regras de Câmbio: concediam aos particulares e legisladores a possibilidade de criar regras primárias; b) Regras de Adjudicação: pode-se afirmar que são regras que regulam o exercício da função jurisdicional; c) Regra de Reconhecimento: tem importância particular na teoria de Hart, na qual representa um dos pilares da reconstrução do positivismo e também possibilita identificar o direito vigente. 3 D. N.  MacCormick,  “Law,  morality  and  positivism”,  Legal  Studies,  Vol.1, N. 2 (1981), pp. 131-145. 4 A textura aberta da linguagem jurídica se torna relevante no campo das regras jurídicas por motivos essenciais: a) As regras jurídicas não estão direcionadas a pessoas ou coisas particulares, mas a grupo de pessoas ou coisas. b) As regras têm vigência indeterminada e nem sempre conseguem produzir seus efeitos durante períodos largos e se aplicam a situações que não podem ser previstas no momento de sua criação.

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Seguindo esse raciocínio, Hart propõe, em sua teoria do direito, a interpretação razoável. A sua proposta é que os juízes possam utilizar da chamada discricionariedade para aplicar a interpretação que mais lhes pareçam apropriada ao caso concreto. Para essa opção, quanto aos casos difíceis, a escolha para o que jusfilósofo chama de razoável, é a ponderação entre o formalismo e o realismo.5 Para Hart, nos casos fáceis, o formalismo deve ser aplicado. Estes são casos em que a subsunção do fato à regra se dá, pelo aplicador do Direito, sem qualquer margem de dúvida. Assim, ocorrido no mundo um fato, com relevância jurídica, existe uma regra, que não comporta antinomia, e, que se enquadra perfeitamente no caso, trazendo uma solução justa. Em um ponto diametralmente oposto, o realismo está mais adequado, segundo o autor da teoria, sobre os casos considerados difíceis. Para esse segundo fator, Hart traz o conceito de regra de reconhecimento. Esta, em um nível de regras secundário, foi estabelecida pelo teórico justamente para auxiliar as normas primárias quando diante de um caso em que elas não alcançam, em princípio, o fato. Em seu livro intitulado O Conceito de Direito, Hart assim dispõe sobre o acima comentado: A forma mais simples de remédio para a incerteza do regime das regras primárias é a introdução daquele a que chamaremos uma “regra de reconhecimento”. Esta especificará algum aspecto ou aspectos cuja existência uma dada regra é tomada como uma indicação afirmativa e concludente de que é uma regra do grupo que deve ser apoiada pela pressão social que ele exerce.6

Certo é que o autor defende, em sua teoria, que o ordenamento jurídico não deve incluir conceito moral. Nesse sentido, o Positivismo Jurídico quer demonstrar que as leis não reproduzam exigências morais. Por esse motivo, é que havia o entendimento de que o Direito não poderia ser construído tomando como pressuposto a ideia de hábitos, por exemplo. É exatamente nesse ponto que o autor fez a distinção entre as regras primárias de obrigação e regras secundárias de reconhecimento. Para Hart, justamente, devido à textura da linguagem aberta, os casos de difícil solução estariam sem o amparo, em princípio, pelas regras. Para se ter um julgamento justo e aplicar o direito se faz necessário recorrer, através de um modelo de interpretação dos Tribunais, ao que ele chamava de precedentes. De maneira contraposta, Ronald Dworkin, um ferrenho crítico de Herbert Hart, propõe uma distinção entre regras jurídicas e princípios. Em seu ponto de ataque, Dworkin enfrenta justamente a questão, em que o presente trabalho justifica ser a solução e a melhoria da teoria jurídica de Hart, que é a regra de reconhecimento. Aquele autor apresentava, para seu 5 6

SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 131. HART, Hebert L.A.. O Conceito de Direito. Tradução A. Ribeiro Mendes. São Paulo, Alto dos Passos, 2007. p. 104.

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entendimento, que deveria haver uma aproximação do Direito com moral quando da utilização dos princípios. No seu livro Clássicos de Teoria do Direito, Adrian Sgarbati elucida o acima mencionado: (...) Dworkin assinala que o positivismo jurídico tradicional simplifica o direito descrevendo-o como um conjunto de regras que são válidas ou inválidas com respeito a um critério de pertencimento ou pedigree formal a partir do qual essa validade ou invalidade é mensurada. Pontua, assim, que o direito não opera dessa maneira, pois existem referências diferentes das regras, tais como os princípios e as políticas que escapam a essa medida.7

O trecho supra mencionado revela claramente a crítica de Ronald Dworkin à teoria jurídica de Herbert Hart. Ele menciona em seus estudos que o positivismo jurídico simplifica o Direito, ao passo que deveria se utilizar não somente o campo das regras, mas também dos princípios. Dessa maneira em seu sistema jurídico haveria a solução para casos difíceis no campo das regras jurídicas e dos princípios gerais do Direito. Assim, para Ronald Dworkin, ao analisar o ordenamento jurídico, demonstra que a estrutura das regras são de duas espécies: princípios e regras jurídicas. Em sua teoria, a distinção entre princípios e regras é de caráter lógico. As regras, ou são válidas e o resultado é alcançado, ou inválidas, e não têm incidência sobre o caso. Conforme já mencionado, Dworkin dirige sua crítica ao que Hart chamou de “regra de reconhecimento”, precisamente contra a afirmação da discricionariedade dos juízes. Para aquele, sempre existirá uma norma preexistente que solucionará um caso concreto. Para Dworkin o Direito é uma ciência que ele chamou de “prática social” e tem seu caráter argumentativo, portanto não pode ser identificado com prescrições de conduta encontrada a partir de regras de identificação de normas, que Hart chamava de Regras de Reconhecimento. Para sua teoria, o jusfilósofo busca o critério de duas dimensões, quais sejam: da adequação e da justificação. Justifica que para cada fato, existe necessariamente uma regra. O que se deve ter é uma melhor interpretação da regra normativa. Porém Simioni explica que três argumentos impedem a afirmação da melhor interpretação de Dworkin e, que, por isso, impedem a adequação da aplicação do Direito ao caso, que ocorrem quando: há um imprecisão linguística no direito; falta informações suficientes para atender adequadamente o caso; e, não é possível demonstrar a veracidade de uma proposição jurídica.8 Outro ponto de relevante importância em sua teoria e, é ponto de divergência e crítica ao positivismo de Hart, que Dworkin afirmava não ser o 7 8

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SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito. Rio de Janeiro. Lumen Juris. 2006. p. 151. SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea: do positivismo clássico ao pós-positivismo jurídico. Curitiba. Ed. Juruá Editora. 2014.

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direito desvencilhado da moral. Para ele, não é possível identificar o conteúdo do Direito sem socorrer-se da moralidade política. Nesse sentido, no julgamento de casos difíceis, não há como se desligar do que chamou de princípios morais, bem como também influenciam na decisão os objetivos políticos.9 O que se pode abstrair é que para o teórico a ideia de Direito em um Estado Democrático se faz necessário um reconhecimento em um mesmo patamar de igualdade de todos os membros daquela comunidade que o legitima. Dessa forma deve haver uma relação adequada, segundo Dworkin, entre Direito, Moral e Política. Seguindo o acima exposto, assim foi escrito em Levando os Direitos a Sério: “A Constituição funde questões jurídicas e morais, fazendo com que a validade de uma lei dependa da resposta a problemas morais complexos como de saber se uma determinada lei respeita a igualdade inerente entre todos os homens.”10 No debate do caso difícil apresentado abaixo, Dworkin invoca, em sua teoria da descrição de regras e princípios, a imprescindibilidade de sua justificação à luz da moral e da comunidade. Isso traz como consequência a ampliação do conceito de Direito. Importante mencionar que Dworkin sustenta que o juiz ao decidir uma lide deve mencionar a teoria geral da “força gravitacional”. Nessa teoria os juízes devem buscar suas convicções nos precedentes que atuam nas decisões judiciais, que é sustentada pelo argumento dos princípios. Hércules concluirá que sua doutrina da equidade oferece a única explicação adequada da prática do precedente em sua totalidade. Extrairá algumas outras conclusões sobre suas próprias responsabilidades quando da decisão de casos difíceis. A mais importante delas determina que ele deve limitar a força gravitacional das decisões anteriores à extensão dos argumentos de princípio necessários para justificar tais decisões.11

Ele utilizou o exemplo do caso Spartan Steel12 para demonstrar que naquele caso concreto, de difícil solução, dessa forma, o juiz, ao julgar com base nessa força, deveria utilizar os precedentes. Essa força é utilizada para Dworkin justificar que os fatos com relevância jurídica, por mais difíceis que sejam de subsumir o fato à regra, terão, por meio 9

Idem p. 335. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 2002. p. 285 11 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p 177. 12 O caso em questão envolve um acidente no qual empregados do demandado haviam rompido um cabo elétrico pertencente a uma companhia de energia elétrica que fornecia energia para o autor da ação, cuja fábrica foi fechada enquanto os reparos estavam sendo realizados. A questão, portanto, girava em torno do problema: se era devida alguma indenização ao demandante pela perda econômica sofrida decorrente de danos à propriedade alheia cometidos por negligência. 10

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dos princípios, uma situação solucionável. E, como se percebe, para isso ele criou a figura do juiz Hércules13, que não deve legislar, e sim, ao interpretar o caso que lhe é trazido, buscar o princípio aplicável que se encontra naquele ordenamento jurídico e justifiquem a sua história jurídica. Hércules deve em princípio, segundo a teoria, avaliar a relação existente entre a interpretação no caso e os princípios que fundamentam a questão. Pois Dworkin defendia a tese que o direito tem por base um conjunto de princípios sobre a equidade, a justiça e o devido processo legal. A figura alegórica desse juiz usa de sua sabedoria e capacidade sobrehumana para buscar entre todos os princípios, aquele que melhor se adequa ao caso levado a julgamento. Posteriormente, ele deve avaliar qual a melhor interpretação é pertinente diante da imensidão do ordenamento jurídico. Importante ressaltar que se mais de um princípio se enquadra ao caso, Dworkin ensina que Hércules deve optar utilizando-se do juízo de equidade ou de justiça aplicar o que chamou de moral política. Logo não se pode deixar de trazer a debate a questão levantada em sua teoria sobre a importante distinção entre regras e princípios. Essa diferenciação inclusive influenciou Roberty Alexy que, em sua teoria procedimentalista, traça o procedimento do sopesamento de normas e princípios. Dworkin observa que nos casos difíceis, conforme aquele comentado abaixo, os juízes recorrem a princípios que não fazem parte do direito positivo. Há um busca por padrões normativos exteriores a normas expressas. Essa busca se dá no que mencionamos sobre o que sua teoria chamou de princípios morais e objetivos políticos. Para tanto se faz uma distinção conceitual entre essas regras e esses princípios. Sendo que, conceitualmente, tudo aquilo que obriga e está expresso no direito são ou podem ser chamados de regras. Para Dworkin a aplicação dessas regras é uma questão do tudo ou nada14. Assim, para ele, nesse caso, ou há o adimplemento da regra ou a sua violação. Quando há, portanto, colisão de regras, a solução está no campo da validade das normas em disputa. Para isso a hermenêutica jurídica tem os tradicionais métodos de interpretação, em especial a interpretação conhecida como sistemática. No caso dos princípios, seu conceito é mais amplo. Eles são tudo que não pode ser as regras e estão além do direito positivo. Pode-se dizer que os princípios, na teoria dworkiana, são todos os demais padrões de moralidade que ultrapassam o direito positivo, sendo portanto os padrões morais e políticos nos quais as decisões jurídicas devem se embasar para decidir os casos em que as regras não são suficientes para solucionar. 13

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Hércules é um personagem fictício em que Dworkin atribui a ele capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, para desenvolver, no caso prático, as teorias para solucionar os casos difíceis quando da impossibilidade de enquadrar o fato jurídico à norma. Ele o elege para dar conta dos problemas da interpretação jurídica, superando a teoria do poder discricionário defendida pelo positivismo jurídico. 14 DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. Ed. Martins Fontes. São Paulo. 2002. p. 24

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Após a explanação sobre as duas teorias acima mencionadas, torna-se perceptível, a necessidade de aplicação de suas convergências no caso sobre a questão do “testamento vital”15. Notará uma evolução do assunto, e a sua complexidade não está somente na essência do próprio tema, mas também na omissão jurídica para enquadrar um caso em seu conjunto de normas. Se faz necessário buscar nas teorias acima debatidas uma solução para o caso em tela, que, por esse motivo, é denominado como um caso difícil. Diante dessa omissão e da constante evolução da medicina, possibilitando o prolongamento interminável da manutenção da vida com sofrimento, vários questionamentos vêm sendo levantados acerca da possibilidade do paciente escolher a quais métodos ele quer se submeter no fim de sua vida. Com isso se quer debater sobre, se há ou não, possibilidade de se evitar o uso de recursos artificiais que apenas prolongam sua existência, causando um sofrimento exagerado tanto para si, quanto para seus familiares. É essencial a apreciação da temática em um nível elevado utilizando os estudos ora apontados. O direito à vida não se resume, é necessário insistir, somente à manutenção do corpo físico. Ela abrange, também, a preservação da integridade intelectual do indivíduo, a qual engloba a liberdade de crença, de opinião e o direito à autodeterminação.

As Clássicas Teorias de Herbert Hart e Ronald Dworkin aplicadas no Direito à Morte Digna – TESTAMENTO VITAL A doutrinadora Maria Celina Bodin de Moraes, ao verificar a crise de paradigmas existente entre o Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1998, incentivou, juntamente com outros doutrinadores, como Gustavo Tepedino16, o movimento de constitucionalização do direito civil, o qual foi responsável pela revisão de conceitos tradicionais no âmbito civilista e pela disseminação da necessidade de coexistência pacífica das diversas concepções de vida, as quais devem estar “cientes do que as distingue e do que as une – no caso, a singularidade de cada uma e a igual dignidade de todas as pessoas humanas.”17 15

De acordo com o professor Flávio Tartuce, o testamento é um instituto que visa produzir efeitos após a morte, sendo um dos atos que apresenta o maior número de formalidades no Direito Privado. São utilizados outras denominações como: diretrizes antecipada de vontades e living will. 16 Afirma Gustavo Tepedino que: “o novo Código nascerá velho principalmente por não levar em conta a história Constitucional brasileira e a corajosa experiência jurisprudencial, que protegem a personalidade humana mais do que a propriedade, o ser mais do que o ter, os valores existenciais mais do que os patrimoniais. E é demagógico porque, engenheiro de obras feitas, pretende consagrar direitos que, na verdade, estão tutelados em nossa cultura jurídica pelo menos desde o pacto político de outubro de 1988.” TEPEDINO, 2006, p. 358. 17 MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de

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Passou, portanto, a se defender a aplicação direta dos princípios constitucionais às relações privadas e a conformação do Código Civil de 2002 à cláusula geral da dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, disserta Maria Celina Bodin de Moraes: A incorporação dos valores personalistas à leitura do direito civil afasta a sua aplicação tecnicista e conservadora em favor de um movimento de despatrimonialização do direito civil. Este movimento, por ser guiado (rectius, imposto) pelas normas constitucionais, deve prevalecer sobre a aplicação mecânica dos institutos clássicos do direito civil, sob pena de preponderar a racionalidade alegadamente técnica e científica (e supostamente neutra) sobre o princípio da democracia. Daí justamente decorrer a necessidade, urgente e imperiosa, de proceder a um controle de validade dos conceitos tradicionais do direito civil. Trata-se de avaliar sistematicamente as mudanças, de maneira a valorar o significado profundo, marcadamente axiológico, da constitucionalização.18

Tal concepção foi fundamental para que se ampliasse a proteção conferida ao direito à integridade psicofísica, o qual consistia, segundo Maria Celina Bodin de Moraes, apenas no direito de não ser torturado e o de ser titular de certas garantias penais, como a proibição de penas cruéis. No entanto, a partir da constitucionalização do direito civil, a integridade psicofísica passou a garantir numerosos outros direitos da personalidade, como a vida, honra, imagem, corpo, identidade pessoal, privacidade, dentre outros. Dessa forma, de acordo com a referida doutrinadora: [...] no âmbito do que começa a se configurar como um novo ramo, o do “biodireito”, ainda sem regulamentação jurídica adequada, estão problemas decorrentes da reprodução assistida [...], da privacidade dos dados genéticos, da experimentação em seres humanos, dos atos de disposição sobre o próprio corpo, dos transplantes, da mudança de sexo, acontecimentos plenamente factíveis desde a aquisição, cada vez mais veloz, das tecnologias necessárias.19

Nesse contexto, vem surgindo um novo direito da personalidade, que é o direito de morrer dignamente, uma vez que nem sempre o prolongamento interminável da manutenção da vida apresenta-se como a medida mais adequada para a felicidade do indivíduo. Como consequência do movimento de constitucionalização do Direito Civil, houve o reconhecimento da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, a aplicação dos direitos fundamentais em toda e qualquer relação jurídica Janeiro: Renovar, 2006. p. 28. MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, apresentação. 19 MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 29/31. 18

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entre particulares. A razão desse fenômeno é muito bem explicada por Dirley da Cunha Júnior: [...] os direitos fundamentais não são direitos apenas oponíveis aos poderes públicos, irradiando efeitos também no âmbito das relações particulares, circunstância que autoriza o particular a sacar diretamente da Constituição um direito ou uma garantia fundamental para opô-lo a outro particular.20

Verifica-se, portanto, que o movimento de socialização das relações privadas traz consigo uma prevalência dos valores mais humanitários e sociais, a partir de uma despatrimonizalização do Direito Civil e de uma ênfase na pessoa humana, isto é, na compreensão da dignidade como cerne das relações jurídicas. De acordo com Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, o elemento essencial para todas essas mudanças paradigmáticas é a cidadania: [...] a grande questão que toca ao jurista do novo tempo é a proteção a ser conferida aos cidadãos (rectius, aos entes dotados de personalidade como um todo, para que não se exclua parcela de interessados) perante essas novas relações jurídicas. É de se buscar a maneira mais segura para garantir os direitos fundamentais nesse novo quadro de relações sociais, econômicas e jurídicas, impedindo sua violação. E reconheça-se que o ponto de partida para tanto deve estar, sempre, no conceito de cidadania.21

Essa harmonização do Direito Civil com os direitos fundamentais tem estreita consonância com o princípio da Autonomia da Vontade, principalmente nas relações mais íntimas do ser humano. De forma ampla acima debatido Dworkin e Hart, reservada as devidas diferenças, tem dentro das respectivas teorias uma forma de solução. Com o acima exposto, torna-se perceptível que cada uma, a seu modo, se aplica ao caso e certamente a solução para ambas será acertada nos parâmetros da justiça, almejada pelo direito. Um princípio trazido para a solução do presente caso é referente à dignidade da pessoa humana22. Relevante importância tem para o caso, uma vez que a dignidade da pessoa humana “é parte do núcleo essencial dos direitos fundamentais, como igualdade, liberdade e privacidade. Sendo assim, ela vai necessariamente informar a interpretação de tais direitos constitucionais, ajudando a definir o seu sentido no caso concreto.”23 20

CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 56. 21 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil-Teoria Geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2010, p. 62. 22 Na visão de Luís Roberto Barroso, o conceito de dignidade humana é multifacetado que está presente na religião, na filosofia, na política e no Direito. A dignidade humana constitui um valor fundamental subjacente às democracias constitucionais de modo geral, mesmo quando não previstas expressamente nas suas constituições. 23 BARROSO, Luís Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito

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A Validade do Testamento Vital em face do Direito à Morte Digna e da Autonomia da Vontade

Ao se estudar os direitos fundamentas, não se pode fazê-lo, sem uma conceituação, uma vez se tratar de um tema de enorme complexidade. Nesse sentido George Marmelstein: (...) os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano Constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico.24

O conceito de pessoa está intrinsecamente ligado ao, de dignidade da pessoa humana, em sua autonomia. Não se pode negar os aspectos acertados de ambas as teorias que aplicariam no caso de testamento vital, resolveriam a zona gris deixada pela legislação brasileira nesse caso. Diante do intenso movimento de (re)personalização da ciência privada, a pessoa humana voltou a ser a grande referência do Direito Civil, o qual possui a relevante finalidade de promover a sua dignidade. Para Fábio Konder Comparato25, a definição do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana foi sendo construída, sucessivamente, no campo da religião, da filosofia e da ciência. Superado esse entendimento, a importância dada a esse princípio é tamanha que ele transcende à Constituição Federal e passa-se a ser aplicado também no Direito Civil, ramo do direito privado. Não há como não pensar em testamento vital, sem trazer ao debate as teorias acima comentadas. O direito é uma atividade interpretativa. E a hermenêutica jurídica não é uma questão de aplicação de métodos. Por isso há uma ciência que estuda a interpretação das normas. A hermenêutica é uma ciência. E dentro de seus acertos foi justamente o que propõe a teoria hartiana e dworkiana. Respeitado o princípio da dignidade da pessoa humana, Hart em sua regra de reconhecimento, de categoria secundária, corrigiria o equívoco existente na regra primária e traria uma solução justa para o caso. Dworkin, com seu conjunto de regras e princípios, transcenderia das normas expressas e buscaria a solução nos princípios morais, sendo certo que também não deixaria sem solução. Importante ressaltar que a sua teoria não traz a descoberta no sentido metafísico, abstrata. Essa descoberta da melhor norma para o caso concreto está na descoberta das convicções morais importantes. Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald defendem que o direito à morte digna é uma decorrência natural e lógica do direito à vida digna, devendo sempre ser ponderado diante das circunstâncias do caso concreto. Exatamente o que se soluciona na regra de reconhecimento e na regras de princípios e normas. Nesse sentido:

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contemporâneo e no discurso transnacional. Separata da Revista dos Tribunais, ano 101 – vol. 919 – maio de 2012, p. 127-196. 24 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas 2009. P. 20 25 Ver COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

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A defesa da vida com dignidade é objetivo constitucionalmente assegurado pelo Poder Público. Por isso, funciona como verdadeira cláusula geral, que serve como motor de impulsão de tudo que vem expresso na ordem Constitucional ou mesmo infraconstitucional. [...] Seja consentido salientar, finalmente, que, como a dignidade da pessoa humana é valor a ser preenchido concretamente, é possível chegar à ilação da existência de um direito à morte digna, o que não significa, de nenhum modo, um discurso favorável à eutanásia ou à ortotanásia.26

Para além do conceito ontológico da dignidade apresentado acima, o qual está atrelado à condição de ser humando, independente da consideração de qualquer intersubjetividade, tem-se desenvolvido atualmente um novo conceito de dignidade, a denominada dignidade relacional ou ética, conforme nos esclarece Laura Scalldaferri Pessoa: Após dois milênios vigorando o conceito de pessoa como substância pensante, individual e autossuficiente, produzindo uma absolutização filosófica do homem, surge em nossos dias a ideia da pessoa como existência relacional, fruto de convicções morais pluralistas e concepções filosóficas e éticas diferentes da visão da pessoa como substância individual da metafísica clássica. Nesse sentido, a pessoa não é simplesmente um fato biológico nem uma substância metafísica dada plenamente desde a concepção, mas uma existência que vai acontecendo ao longo de toda a vida.27

Nesse contexto de dignidade relacional, surge a necessidade de respeitarmos e tolerarmos as diferentes concepções de vida, as crenças religiosas, as opiniões, os desejos e as aspirações de cada um. Dessa forma, mesmo não sendo um caso em que há uma subsunção do fato à norma, vários são as questões, que fixam a solução na teoria de Herbert Hart e Ronald Dworkin. Não se pode pensar em utilizar a lei de uma forma não interpretativa para o presente caso. Mesmo que a teoria daquele seja positivista, mas utilizaria a interpretação nas regras secundárias, permitindo a discricionariedade do juiz e no caso deste a interpretação do melhor princípio e regra aplicável ao caso. Assim de suma importância é o reconhecimento da autonomia e do direito à autodeterminação de cada indivíduo, permitindo-o realizar-se como ser humano da forma como entende devida, ou seja, garantindo-lhe a liberdade de optar entre as diversas alternativas lícitas e viáveis existentes, arcando cada qual com as consequências de suas escolhas. Essa concepção é extremamente valorosa no que diz respeito à temática do testamento vital, porquanto, o grande entrave para a livre aceitação desse instrumento é a cultura religiosa que sustenta a convicção segundo a qual nenhum ser humano teria o direito de dispor da vida. 26

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil-Teoria Geral. 8 ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2010, p. 160 –161. 27 PESSOA, Laura Scalldaferri. Pensar o final e honrar a vida: direito à morte digna. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 65.

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Sendo a dignidade humana relacional, ninguém está obrigado a manterse vivo independentemente das circunstâncias. Ademais, cumpre ressaltar que a Constituição Federal de 1998 institui um Estado Democrático de Direito laico, destinado a assegurar o exercício de valores supremos de uma sociedade pluralista. Para Flávia Piovesan: Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de sociedade aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. Os grupos religiosos tem o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não tem o direito a pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico. No Estado laico, marcado pela separação entre Estado e religião, todas as religiões merecem igual consideração e profundo respeito, inexistindo, contudo, qualquer religião oficial, que se transforme na única concepção estatal, a abolir a dinâmica de uma sociedade aberta, livre, diversa e plural. Há o dever do Estado em garantir as condições de igual liberdade religiosa e moral [...]28

Verifica-se, portanto, que Estado laico é aquele que respeita a diversidade de pontos de vista dos diversos credos sem, contudo, deixar-se influenciar por algum deles em específico. Dessa maneira não se quer demonstrar que a utilização transcendental de Dworkin é a metafísica. Ao contrário, sua teoria busca a transcendência da legislação expressa, buscando os princípios morais e tendências políticas para a solução. Não é a transcendência religiosa que fora utilizada na evolução do conceito de pessoa ao longo dos séculos. Seguindo esse mesmo raciocínio Pérez Luno, assim transcreveu: Se os métodos da interpretação Constitucional fazem referência aos meios os instrumentos através daqueles que realiza a atividade hermenêutica, os princípios supõem diretrizes, pautas o guide-lines fundamentais que orientam o labor do intérprete.29

Assim, percebe-se na linguagem do doutrinador que são os princípios que dão as diretrizes para que o direito encontre a melhor solução. O julgador deve pautar nos princípios como base para os julgamentos. No que tange aos casos difíceis a solução justa é pautada nessa interpretação, como no caso em discussão. Em nosso direito brasileiro, especificamente em relação aos atos de disposição do corpo humano, a regra geral, extraída do art. 13 do Código Civil, 28 29

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PIOVESAN, Flávio. Direitos Humanos (coord). Curitiba: Juruá editora, 2007, pp. 24-25. PÉREZ LUÑO, Antonio Henrique. Derechos Humanos, Estado de Derecho e Constituicion. Madri: Tecnos, 1999.

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interpretado a contrario sensu, estabelece que o titular pode dispor livremente do seu corpo, desde que não gere diminuição permanente da integridade física e desde que não contrarie os bons costumes. Excepcionalmente, é possível, até mesmo, atos de disposição corporal com redução permanente da integridade física, desde que haja exigência médica, como ocorre, por exemplo, quando há necessidade de amputação de um órgão por necessidade terapêutica. Percebe-se que o Código Civil de 2002 traçou tão somente limites abstratos e genéricos à possibilidade de disposição corporal, não permitindo identificar precisamente quando tal conduta é legítima. Dessa forma, entendemos que, em virtude da autonomia da vontade e da necessidade de se refutar a excessiva intervenção do Estado na esfera privada, o que se deve levar em consideração para analisar a legimitimidade ou não de determinada disposição corporal é a capacidade e o discernimento dos indivíduos. Nesse sentido, cabe destacar que num Estado Democrático de Direito, em respeito à autonomia da vontade e à autodeterminação, deve ser garantida a liberdade de acreditar e de se conformar de acordo com determinada fé religiosa, como também deve ser garantida a opção individual de rejeitar qualquer crença religiosa. Tal esfera da personalidade dos indivíduos não diz respeito ao Direito, tampouco a um Estado laico.30 A resolução n° 1995/12 do CFM destaca a relevância da autonomia do paciente, garantindo seu direito à autodeterminação e à morte digna. Em conformidade, manifesta o autor Ernesto Lippmann: [...] o fundamento legal do testamento vital é a autonomia da vontade, a livre escolha do ser humano e o princípio Constitucional de sua dignidade humana, sendo importante que seus desejos sejam documentados e manifestados de forma consciente e esclarecida, o que se faz através do testamento vital, que registra o tratamento que o paciente deseja receber quando sua morte se aproximar.31

Dessa forma, entendemos que o testamento vital é um instrumento garantidor da autonomia da vontade e do direito à autodeterminação, estando em perfeita consonância com o Direito Civil Contemporâneo. Ademais, trata-se de um instrumento que permite a concretização da dignidade da pessoa humana no momento da morte, assegurando aos indíviduos a capacidade de decidir e de agir por si mesmos. 30

“Pode-se acreditar que a vida não pertença ao indivíduo que a vive. Pode-se crer que a vida seja um dom de Deus e que a Ele pertença e que, assim, somente Deus dela possa dispor de forma definitiva ou mesmo destrutiva. Mas essa é uma crença pessoal, inserida na esfera da liberdade individual de pensar e acreditar em tudo aquilo que se entenda conveniente. Se o indivíduo livremente escolher adotar essa crença, certamente há de lhe ser garantida a possibilidade de se comportar em conformidade com os preceitos morais ou religiosos que assim prescrevam a indisponibilidade da vida.” 31 LIPPMAN, Ernesto. Testamento Vital. São Paulo: Matrix, 2013, p. 21, (Grifos do autor).

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Conclusão O conceito de dignidade da pessoa humana, aplicado ao presente trabalho, tanto serve para defender a preservação da vida, como para justificar sua abreviação. Com efeito, embora proposta como um ideal comum a todo ser humano, a dignidade, especialmente considerada sob a perspectiva relacional, tem sido invocada para sustentar posições contraditórias, porém claramente legítimas no seio de uma sociedade pluralista. Dessa forma, defende-se no presente trabalho que, diante do conflito entre os bens jurídicos vida e dignidade da pessoa humana, faz-se necessário adotar uma solução ponderada a partir do critério do menor sacrifício possível dos direitos fundamentais. Nesse sentido se estudou a fundo as teorias que, aplicadas ao presente caso, traria a solução mais aproximada do conceito de Justiça, quais sejam: Herbert Hart e Ronald Dworkin. Em comum, essas teorias prelecionam que para a solução deve se levar em consideração todas as circunstâncias do caso concreto, especialmente o direito à autonomia e autodeterminação do indivíduo, devendo-se afastar a ideia preconcebida de prevalência incondicional do direito à vida física. O que deve sempre prevalecer é a participação ativa co-responsável do cidadão nos destinos da própria existência. Sendo a vida um direito, e o bem maior protegido pelo Direito, é plenamente possível a sua livre disposição em casos em que ela se torna em posição insuportável de sofrimento corporal e sem possibilidade de reversão, preservando a vida com dignidade. Assim, deve o Estado Democrático de Direito permitir a convivência pacífica das diversas concepções religiosas e das diversas formas de se visualizar a vida, assegurando que cada indivíduo se determine de acordo com o que ele entende ser devido e de acordo com o que lhe preserve sua autonomia e, consequentemente, dignidade.

Referências bibliográficas

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Possibilidades Democráticas no Estado de Direito Bruno dos Santos Vieira1 Resumo O presente artigo tem por objetivo um breve estudo acerca das acepções atuais da ideia de democracia e sua relação com o conjuntura política brasileira atual, buscando ainda apontar a participação e o debate como instrumentos democráticos fundamentais e capazes de transformar a realidade político-jurídica no Estado de Direito Abstract The present paper brings recent concepts of the idea of democracy and its relation with the nowadays of Brazil´s political situation, pointing out the participation and debate as fundamental keys of changing politics and legislation under the Rule of Law.

Introdução A presente monografia tem como escopo uma breve reflexão sobre a experiência democrática brasileira contemporânea e possíveis (desejáveis) desdobramentos proporcionados pela efetiva participação nas esferas públicas de debate sobre a gênese legislativa, bem como suas consequências para os demais poderes da república. Dito isso, buscamos trazer alguns estudos mais recentes sobre a democracia e uma breve análise da realidade do sistema político brasileiro, sem nos aprofundarmos nas controvérsias existentes nas teorias acerca da temática de legitimação do poder. Nosso ponto de partida será o que temos de concreto com base na assunção lógica de que o Direito pátrio, ao elencar em sua Carta Maior a ideia de Estado Democrático de Direito, conferiu à Democracia status de imposição legal Constitucional que deve, no sentido mais jurídico do termo, balizar a conduta estatal esteja ela onde estiver. Desta forma, não iremos tratar do diálogo necessário entre Direito e Democracia, mas analisaremos a Democracia abrigada sob o manto coercitivo do Direito, e, portanto, como objetivo Constitucional normativamente garantido(r). Essa prática se coaduna com o que Habermas prega quando afirma que quando os cidadãos ocupam o papel de co-legisladores, eles não são mais livres para escolher o meio para a realização de sua autonomia, não possuem o poder de decidir a linguagem da qual irão se utilizar; a ideia democrática de auto-legislação somente pode adquirir sua validade mediada pelo Direito2. 1

Graduado em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF - Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF - Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antonio Carlos – UNIPAC 2 Em “On the Internal Relation between the Rule of Law and Democracy” [1995], Habermas aduz, ipsis litteris: “The democratic Idea of self legislation must acquire its validity in the medium of law itself ” (in The Inclusion of the Other – Studies in Political Theory. Ciaran Cronin e Pablo de Greiff (eds.). Cambridge (Mass.): MIT Press, 1998, p.260.)

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Tampouco iremos recorrer a perspectivas históricas ou voltar à Grécia clássica para tratar de uma Democracia que hoje difere radicalmente da experiência grega; isso não significa denegar a origem do termo, mas acentuar o sentido contemporâneo que ele hoje assumiu e que não se coaduna com as práticas excludentes de outrora,3 considerando a pluralidade aglutinadora dos que hoje podem participar na formação dos parlamentos, cidadãos que nos idos tempos não poderiam ser assim denominados. Se utilizaremos algo de etimologia da palavra será tão somente pra tentar desmistificar o sentido usual da palavra “democracia” para tentar incutir no leitor maior dinâmica ao termo que se relaciona com uma capacidade criadora, como mecanismo para atingir-se a convivência harmônica e para a correta distribuição e exercício do poder. Finalmente, buscaremos a possibilidade de repercussão, das reflexões que serão trabalhadas, nos poderes da república, bem como apontar o que o tensionamento alargador das práticas democráticas pode legar a nosso País.

A Realidade Brasileira e as Questões Abertas Os poderes republicanos no Brasil são monopólios de grupos oligárquicos que se perpetuam no poder ora de maneira pessoal, com representantes das classes oligárquicas dominantes, ora por meio de representantes cooptados por estes grupos. Claro que existem exceções (na maioria das vezes para confirmar a regra) e nem tudo está perdido. Mas no meio do jogo de interesses dos poderosos, encontramos a massa cidadã cada vez mais tolhida de instrumentos eficazes de participação, acuada no binômio protesto de rua – sufrágio periódico, sem que estes instrumentos reflitam efetivamente em capacidade de realizar algo mais do que apresentar uma tênue chancela ou repúdio à representação política. A prática democrática contemporânea não fornece meios e instrumentos de efetiva participação necessários ao efetivo controle e exercício do poder por parte dos cidadãos que efetivamente possuem o direito à deliberação e à justificação ética e racional das decisões tomadas em seu nome. Por outro lado, existem tentativas e legislação tímida que configuram uma luz no fim do túnel: orçamento participativo, consultas públicas, audiências públicas, conselhos, entre outras práticas efetivamente democráticas que permitem o debate público, ainda que sem caráter vinculativo sobre as decisões dos poderes. Muito bem ilustrado por Jacques Rancière, quando discorre sobre as práticas usuais nas democracias atuais em contraste com as prerrogativas realmente democráticas, a leitura da passagem nos revela que não só no Brasil, mas globalmente, os Estados padecem da democracia: 3

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WENDY BROWN, em seu ensaio “We are all democrats now...” afirmava: “As is well known, ancient Athenian democracy excluded 80-90 percent of the adult Atticans population form its ranks – womem, slaves, free foreign residents and others who did not meet the strict lineage requirements for citizens”.(in G. Agamben [et. al.] Democracy in what state? Tradução inglesa de William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011, p. 51.)

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“(...) o que chamamos de democracia é um funcionamento estatal e governamental que é o exato contrário: eleitos eternos, que acumulam ou alternam funções municipais, estaduais, legislativas ou ministeriais e vêem a população como elo fundamental da representação dos interesses locais; governos que fazem eles mesmos as leis; representantes do povo maciçamente formados em certa escola de administração; ministros ou assessores de ministros realocados em empresas públicas ou semipúblicas; partidos financiados por fraudes nos contratos públicos; empresários investindo uma quantidade colossal de dinheiro em busca de um mandato; donos de impérios midiáticos privados apoderando-se do império das mídias públicas por meio de suas funções públicas. Em resumo, apropriação da coisa pública por uma sólida aliança entre a oligarquia estatal e a econômica.” 4

Não é outra a triste realidade brasileira. Nomes e sobrenomes estão aí para confirmar a tendência da perpetuação oligárquica que envenena os corredores das instituições brasileiras com suas práticas retrógradas, corporativistas, nepotistas e contrárias as boas práticas republicanas voltadas ao bem comum e ao uso regrado das prerrogativas do exercício do poder. A frase o poder corrompe é usada de maneira corriqueira e reflete uma triste realidade que molda com força o ambiente político-jurídico brasileiro. Passamos da indignação ao conformismo na velocidade de uma publicação periódica diária. Dizemos que é assim mesmo, é o “jeitinho brasileiro”, é a maneira que funciona por aqui... O fato é que a realidade do sistema político brasileiro acaba por alijar do processo decisório o componente social pela falta de distribuição equilibrada do poder, pela falta de espaços de deliberação na formação da legislação e pelo rolo compressor formado por um Congresso Nacional que pauta casuisticamente ora matérias de interesses das oligarquias, ora de interesses particulares dos congressistas, e pelo Poder Executivo que luta, refém dos corporativos congressistas, pela pauta de matérias que supostamente interessam ora ao bem estar social (de forma cada vez mais reduzida), ora ao gerenciamento econômico imposto pela ordem neoliberal (de maneira substancialmente maior). A participação popular acaba restrita ao período de eleições, quando slogans de marketing e verbas espúrias são utilizados num circo midiático que mascara as verdadeiras intenções dos candidatos. Aqui, devemos fazer um mea culpa para apontar também um desinteresse da população em geral para participar de conselhos, audiências públicas e debates associativos, deixando com isso de fomentar metas propositivas a serem apresentadas aos legisladores. A questão do querer participar com mais afinco não pode ser imposta, mas deve partir da iniciativa pessoal de cada um, é uma questão cultural imposta tanto pela escolha pessoal mas também por uma dose maciça do sistema de acumulação que ora não deixa tempo livre face aos compromissos do labor, ora seduz para o meio de vida liberal de “cada um por si”. 4

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à Democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 93.

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Uma conjuntura diferente, uma maior participação, meios de pressão plurais e, principalmente, uma maior transparência, poderiam nos ajudar a exercer e controlar o poder de maneira eficaz? O poder pode efetivamente ser exercido e controlado de maneira mais democrática? O que é, afinal, uma maneira democrática?

Democracia Possível e Requisitos Imprescindíveis Definir a ideia democracia é tarefa árdua. Por maiores que sejam os esforços intelectuais dos teóricos da filosofia política, a ideia de democracia constitui verdadeiro desafio quando buscamos uma definição que traduza a plenitude de características que a experiência prática pode alcançar. Certamente a dificuldade esbarra no grau de variabilidade das experiências democráticas ao longo do tempo e do espaço. Por seu caráter cambiante, podemos afirmar que a ideia não pode ser aprisionada em um conceito estanque, apesar de podermos apontar características inerentes à prática democrática, e, muito embora existam características consolidadas quando dizemos que uma república é democrática, como a existência de sufrágio universal, existem características que somente o efetivo exercício da ideia democrática pode tornar visível e passar assim a fazer parte de seu conceito. Analisando a etimologia da palavra e considerando os radicais gregos que a compõem, bem como a historicidade cultural, Josiah Ober apresenta um rol de possibilidades entre as quais uma chama a atenção e culmina com a seguinte conclusão por parte do autor: O que nos traz, finalmente, à demokratia. Demokratia não pode significar o “demos monopoliza os cargos” já que o demos (diferentemente dos implícitos plurais hoi oligoi, hoi aristoi) tem de referir-se a um corpo coletivo [corporate body] – a um “público” – e esse público não pode ser coletivamente um “detentor de cargo” no sentido ordinário. Mas se extrapolarmos da definição que propus para isokratia, o termo tem sentido ao mesmo tempo filológico e histórico: Demokratia, que emergiu como um tipo de governo com a histórica auto-asserção de um demos em um momento de revolução, refere-se à capacidade coletiva do demos de fazer coisas no domínio público (grifo nosso), de fazer coisas acontecerem. Se isto é correto, demokratia não se refere em primeira instância ao controle monopolístico do demos da autoridade Constitucional pré-existente. Demokratia não é apenas “o poder de demos” no sentido de “o poder superior ou monopolístico do demos no que diz respeito a outros potenciais detentores do poder no Estado. Antes significa, de forma mais abrangente, “o demos com poder” – é o regime no qual o demos ganha uma capacidade coletiva de efetuar mudanças no domínio público. E, assim, não se trata simplesmente de uma questão de controle de um domínio público, mas da força e capacidade coletiva de agir nesse domínio e, na verdade, de reconstituir o domínio público através da ação. (grifo nosso). 5 5

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OBER, Josiah. A significação original de “democracia”: Capacidade de fazer coisas, não regra majoritária. Tradução de Lucy Rodrigues de Figueiredo e Marcelo Garcia Santana (Revisão: Theresa Calvet de Magalhães). In Direito, Filosofia, Ética e Linguagem. Cleyson de Moraes Mello e Nuno M. S. Coelho (coord. Geral) Juiz de Fora: Editar Editora, 2013, p101.

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Ober não entra no mérito sobre como surgiu e propagou-se a distorção que ganhou a proporção dos dias de hoje, em que se compara democracia a simples regra majoritária, mas apresenta sua crítica e, tal qual exposto acima, instiga e nos leva a pensar out of the box, dando valiosas lições sobre como definições reducionistas de fato enfraquecem e levam a democracia a um estado de vulnerabilidade sujeita a críticas baseadas na errônea compreensão de que democracia seria um simples mecanismo de decisão com base em votos. Orlando Villas Bôas Filho apresenta a democracia como tendo um conceito indeterminado face à dificuldade de delineamento de seu contorno. Em seu texto “Democracia: a polissemia de um conceito político fundamental” o autor realiza uma pesquisa histórica, baseada em autores como Rancière, Rosanvallon e Koselleck, e alerta sobre as possibilidades das “torções semânticas diante de usos políticos diversos”.6 Em “We are all democrats now...”, Wendy Brown tem como objetivo provocar uma profunda reflexão sobre a democracia. A autora faz uma contundente crítica ao neoliberalismo, levanta importantes questões que vão desde a necessária simbiose entre soberania e democracia até questões sobre os limites que devem ser impostos à democracia para que o querer popular de povos avessos à democracia, mas utilizando sua sistemática para impor sua vontade, não acabe por proporcionar o avanço do fascismo; e questiona até mesmo a viabilidade da democracia enquanto escolha contemporânea de caminho a seguir. Ao procurar as possibilidades, Brown aduz que a profunda e honesta deliberação sobre as mínimas condições para a construção de pontes com o objetivo da distribuição democrática do poder pode ser um caminho eficaz. Sob outro ponto de vista, Jean-Luc Nancy7 enxerga a política como possibilidade e a democracia como meio nunca como fim em si mesmo. De acordo com sua perspectiva, a democracia seria um caminho para chegarmos, e na eventualidade de existir uma finalidade democrática, esta seria uma comunidade, seria a admissão da diversidade e da multiplicidade das interrelações na esfera do comunitário. 6

VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Democracia: A polissemia de um conceito político fundamental. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 108 jan./dez p. 651-696, 2013, p. 690. Jean-Luc Nancy, no seu ensaio “Finite and Infinite Democracy”, realiza uma análise filosófica da democracia que mistura reflexões sobre a linguagem e considerações sobre política: “Politics must give the form of acces to openness of the other forms: it is the antecedent of a condition of access, not a foundation or determination of meaning. That does not subordinate politics, but it does confere upon it the particularity of supreme service. In return, it must not constitute itself as form – or not in the same way at any rate: the other forms and registers do in effect envelop ends that are ends in themselves (the arts, language, love, thought, knowledge...). But in compensation, it allows the imposition of form on power to take place.” In Agamben, Giorgio [et al.] Democracy in what state?, p. 73.

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Habermas propõe uma solução procedimental conjugando o que ele denominou de princípio do discurso com princípio de democracia. O autor alemão sublinha a importância da institucionalização jurídica dos procedimentos democráticos; os espaços de deliberação democrática estão assegurados pelo Direito. Para Habermas, o princípio de democracia deve não só estabelecer o procedimento legítimo de criação do Direito, mas balizar mesmo a legislação: “The principle of democracy is what then confers legitimating force on the legislative process. The key idea is that the principle of democracy derives from the interpenetration of the discourse principle and the legal form. I understand this interpenetration as a logical genesis of rights, which one can reconstruct in a stepwise fashion. One begins by applying the discourse principle to the general right to liberties – a right constitutive for the legal form as such – and ends by legally institutionalizing the conditions for a discursive exercise of political autonomy (...). Hence the principle of democracy can only appear as the heart of a system of rights. The logical genesis of these rights comprises a circular process in which the legal code, or legal form, and the mechanism for producing legitimate Law – hence the democratic principle – are co-originally constituted.”8

Podemos observar, portanto, que a própria noção de democracia varia interdisciplinarmente e entre vários autores, sem que exista de fato a primazia de um conceito pronto e acabado. Por esta razão, considerando a pluralidade conceitual e da ideia de Democracia, assumimos o critério de ser ela não um fim, mas um meio, um caminho, uma possibilidade. Deixamos um pouco de lado a dualidade descrita por Agamben que observa a democracia ora como meio de Constituição do corpo político, ora como técnica de governo9 para lançar luzes sobre a anfibologia10, a polissemia que o termo suscita e adotar, para fins didáticos, a falta de conceituação acabada; melhor dizendo, a indefinição terminológica do termo para evitar o cerco à fertilidade advinda da ideia de democracia. Mas não podemos deixar de lado, por maior que seja o problema da definição, alguns requisitos essenciais para que as práticas democráticas sejam possíveis. Nos valemos aqui de Rancière que alega o seguinte: 8

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JÜRGEN HABERMAS, Between Facts and Norms. Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Tradução Inglesa de Willian Rehg. Cambridge (Mass): MIT Press, 1996. p. 121-122. 9 AGAMBEN, Giorgio. “Introductory Note on the Concept of Democracy”, in G. Aganbem [et. al.], Democracy in what state?, p. 1. 10 Ver G. Agamben, “Introdutory Note on the Concept of Democracy”, p.2: “When the same fundamental political concept can be translated to mean either “constitution” or “government”, then we have venture out beyond ambiguity onto the featureless terrain of amphibology (a term from Grammar and rhetoric signifying indeterminacy of meaning)”(grifo nosso).

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“podemos enumerar regras que definem o mínimo necessário para um sistema representativos e declarar democrático:mandatos eleitorais curtos, não acumuláveis, não renováveis; monopólio dos representantes do povo sobre a elaboração das leis; proibição de que funcionários do Estado representem o povo; redução ao mínimo de campanhas e gastos com campanha e controle da ingerência das potências econômicas nos processos eleitorais”.11

Podemos ir um pouco mais fundo do que o autor para dizer que a proibição do financiamento privado de campanhas eleitorais e a adoção da total transparência nas deliberações e votos dos parlamentares (fim do voto secreto tout court no desempenho parlamentar) seriam também de grande valia.

Conclusão Consequências da Efetivação das Possibilidades Democráticas nos Poderes de Estado Uma sociedade bem (in)formada com amplo acesso às decisões tomadas em seu nome, uma legislação democratizante que permita a abertura ao diálogo com a sociedade organizada, e o respeito às liberdades constitucionais podem fazer a diferença e proporcionar uma tensão alargadora permitindo mais possibilidades democráticas no Estado de Direto brasileiro. Uma importante questão levantada pelo jurista Norberto Bobbio diz respeito aos espaços públicos de debate: “Após a conquista do sufrágio universal, se ainda é possível falar de uma extensão do processo de democratização, esta deveria revelar-se não tanto na passagem da democracia representativa para a democracia direta, como habitualmente se afirma, quanto na passagem da democracia política para a democracia social – não tanto na resposta à pergunta “Quem vota?”, mas na resposta a essa outra pergunta: “Onde se vota?”. Em outros termos, quando se deseja saber se houve o desenvolvimento da democracia num dado país, o certo é procurar perceber se aumentou não o número dos que tem o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas os espaços nos quais podem exercer este Direito. Até que os dois grandes blocos de poder situados nas instâncias superiores das sociedades avançadas não sejam dissolvidos pelo processo de democratização – deixando-se de lado a questão de saber se isto é não só possível mas sobretudo desejável – ,o processo de democratização não pode ser dado por concluído”12.

11 12

JACQUES RANCIÈRE. O Ódio à Democracia. p.92-93. IN BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 40.

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Possibilidades Democráticas no Estado de Direito

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Ao dizer processo de democratização, com muita propriedade o jurista aponta que a Democracia não é um estado acabado de coisas, mas uma permanente luta. Transparência, mais do que direito à informação, deve permitir amplo acesso às razões subjacentes à formação da própria informação. Isso serve tanto ao poder legislativo quanto ao poder executivo. O Poder Judiciário é sabidamente formado sem a participação da vontade popular propriamente dita, mas isso não significa que tal poder caracterize um vazio democrático. Como dissemos no início, as decisões judiciais, quando efetivamente respeitam as prerrogativas jurisdicionais (tais como observância da necessidade de motivação racional das decisões, contraditório substancial pleno, entre outras) ajudam a garantir os objetivos do Estado de Direito, e, em última análise, a consolidação das possibilidades da Democracia. Mas não parece suficiente quando analisamos as decisões das cortes brasileiras referentes ao julgamento de questões afetas às questões políticas propriamente ditas. Se é certo que legisladores e juízes não estão vinculados, em suas tomadas de posições, à vontade popular, também é certo que quanto maior a coincidência entre as vontades, maior será a carga democrática das decisões. Portanto, seria deveras importante uma reflexão sobre a necessidade de fazer constar na legislação as razões pelas quais as mesmas foram geradas e aprovadas pelo legislativo. Melhor explicando, se uma exposição de motivos, tanto os acolhidos quanto os rechaçados, acompanhar a lei (como uma espécie de preâmbulo), saberíamos todos o que levou os legisladores a adotarem tal posição; consignando também os debates e as posições vencidas, certamente na hora da apreciação judicial de controvérsias, saberíamos a que interesse a decisão judicial estaria atendendo. Lembrando sempre que não se trata de vincular a decisão a um ou outro ponto de vista exposto na deliberação, mas proporcionar transparência e racionalidade nas decisões judiciais. Desta maneira, atendidas condições de transparência e ampla informação referente aos processos de formação, tanto das decisões legislativas quanto das decisões judiciais, maiores seriam as chances de entender a dinâmica das relações de poder e maior seria a compreensão das decisões oriundas dos poderes de Estado. O controle democrático possível do exercício do poder exige, portanto, transparência e direito irrestrito à informação. Exige também a ocupação dos escassos, porém existentes, espaços onde se expressam os prós e contras: audiências públicas, consultas públicas, conselhos locais, associações de bairros. O espaço possível só será alargado com o exercício cidadão das prerrogativas hoje existentes e com a luta pelo alargamento dos espaços públicos de expressão de ideias. A democracia possível, em nosso entender, passa pela assunção das responsabilidades de cada um de nós pela participação organizada como forma de pressão seja nas ruas, com cartazes e passeatas, mas principalmente com a ocupação dos espaços públicos de discussão, debate e deliberação, fazendo consignar não só a posição vencedora, mas também a posição vencida para que

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tenhamos subsídios para apontar os acertos e os erros cometidos e possamos, com a transparência desejada, consertar o que for possível. Mais além, a possibilidade democrática exige um princípio de alteridade, de reconhecermo-nos no outro, de assentir que, como genitores e destinatários das normas devemos respeitar a autonomia do outro como forma de assegurar nossa própria autonomia. Devemos nos reconhecer mutuamente como forças solidárias na formação e na implementação do querer bem comunitário. Se o Direito é o instrumento viável para a implementação das possibilidades democráticas, sem a necessária participação consciente dos destinatários das normas em debates públicos, tais possibilidades restariam sem implementação. Se é certo que a democracia é em parte uma concessão feita pelas oligarquias, mais certo é que tal concessão não caracteriza favores concedidos de bom grado, mas é fruto de uma luta permanente e sofrida pela distribuição do exercício do poder. Se é certo que a união faz a força, mais certo é que a união solidária é força motriz da Democracia.

Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio [et al.] Democracy in what state? Tradução inglesa de William McCuaig. New York: Columbia University Press, 2011. BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2000. BROWN, Wendy. We are all democrats now…, in Giorgio Agamben [et.al.]. Democracy in what state?, p.44-57. HABERMAS, Jürgen. The Inclusion of the other – Studies in Political Theory. Ciaran Cronin e Pablo de Greiff (eds.) Cambridge (Mass.): MIT Press, 1998. HABERMAS, Jürgen. Between Facts and Norms. Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Tradução inglesa de Willian Rehg. Cambridge (Mass.): MIT Press, 1996. OBER, Josiah. A significação original de “democracia”: Capacidade de fazer coisas, não regra majoritária, tradução de Lucy Rodrigues de Figueiredo e Marcelo Garcia Santana (revisão: Theresa Calvet de Magalhães) in Direito, Filosofia, Ética e Linguagem. Cleyson de Moraes Mello e Nuno M. S. Coelho (coord. Geral) Juiz de Fora: Editar Editora, 2013, pp. 95-104. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à Democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014. VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. “Democracia: A polissemia de um conceito político fundamental.” Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 108 jan./dez. 2013, p 651696.

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Aspectos da Violência Sexual na Relação Conjugal Bianca Freire Ferreira1 Resumo O presente artigo tem por objetivo precípuo analisar a possibilidade jurídica de estupro em relacionamentos conjugais. Cumpre ressaltar que muito embora a relação sexual no casamento seja lícita, o constrangimento ilegal utilizado como meio para sua realização não é. Ainda nos tempos atuais existem posicionamentos diversos acerca do tema. Nesse sentido, abordaremos de forma mais aprofundada dois posicionamentos específicos, onde no primeiro a recusa da esposa em manter relações sexuais com seu esposo somente será aceita quando fundada em justo motivo, caso contrário, não há que se falar em estupro. Já o segundo posicionamento defende a possibilidade de estupro na relação conjugal, uma vez que mesmo casada, a mulher tem o direito de decidir sobre a sua liberdade sexual, devendo seu cônjuge respeitar a sua decisão e não obrigá-la a manter relações sexuais contra vontade, sob pena de responder criminalmente pelo crime de estupro, tipificado no art.213 do Código Penal Brasileiro. Palavras-chave: Casamento; relação sexual; consentimento; estupro; cônjuge. Abstract This article has the main objective to analyze the legal possibility of marital rape in relationships. It should be emphasized that although the sexual relationship in marriage is lawful, unlawful restraint used as a means for its realization is not. Even nowadays there are different positions on the subject. Accordingly, we discuss in more detail two specific positions where the first wife’s refusal to have sex with your spouse will only be accepted when based on just cause, otherwise there is no need to talk about rape. The second position argues for the possibility of rape in marital relationship, since even married, the woman has the right to decide about their sexual freedom, your spouse should respect your decision and not force her to have sex against their will under penalty of being liable criminally for the crime of rape, typified in art.213 of the Brazilian Penal Code. Keywords: Marriage; sex; consenting spouse; rape

Introdução A vida sexual inserida na esfera matrimonial é sempre cercada de inúmeras polêmicas. Faz-se necessário esclarecer que muito embora surja com o casamento o direito de manter relações sexuais com o parceiro, não é direito do cônjuge exigir por meio de violência, coação ou grave ameaça que o seu consorte pratique o ato sexual mesmo que sem vontade, tão somente para satisfazê-lo, 1

Advogada. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá.

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esse pensamento decorre de uma má interpretação do um instituto oriundo do Código Civil chamando débito conjugal. Importa salientar que a ocorrência do estupro marital é mais frequente do que se imagina, porém grande partes das vitimas não sabe que seus parceiros estão praticando crime ao forçá-las à conjunção carnal. Atualmente podem figurar como sujeitos ativo e passivo do crime de estupro na relação intra- matrimonial, tanto o homem, quanto a mulher e, mesmo nos tempos atuais, por falta de informação ou talvez por medo de seus respectivos cônjuges ou companheiros, as vítimas ficam silentes, fazendo com que a prática da relação carnal forçada se prolongue por toda a vida e comum do casal. Desta forma, este trabalho demonstrará os posicionamentos existentes no ordenamento jurídico brasileiro acerca do tema não só nos dias de hoje, mas também em um passado não muito remoto, onde na prática do crime de estupro só o homem poderia ser sujeito ativo e, em alguns entendimentos jurisprudenciais mais conservadores, forçar a esposa à relação sexual era considerado “exercício regular do direito”.

A Relação Sexual e o Débito Conjugal à luz do Código Civil De acordo com os ensinamentos do art. 1566 do Código Civil, a conjunção carnal entre os cônjuges, nada mais é que um débito conjugal, previsto no rol de deveres matrimoniais. Nesse sentido, faz-se necessário entender o que vem a ser o “débito conjugal” Expressão que tem sua origem no direito canônico, o presente instituto é o direito-dever dos cônjuges cederem de forma recíproca seus corpos para satisfação sexual mútua. Segundo as diretrizes do direito canônico, o casamento se consolidava em três pilares: o caráter sacramental, a cópula e a indissolubilidade. Assim, temos que o débito conjugal foi criado com o objetivo de neutralizar o adultério, uma vez que os consortes teriam a obrigação de satisfazer sexualmente um ao outro durante todo o período de convivência conjugal. Em nosso ordenamento jurídico, o débito conjugal surgiu no artigo 117 da Consolidação das Leis Civis de 1858, escrito pelo jurista Augusto Teixeira de Freitas, segundo o artigo 117 da mencionada lei: “a comunhão legal dos bens só se concretizava depois da cópula carnal dos esposos, que deveria ocorrer em seguida à solene celebração do matrimÔnio.” Nesse sentido, posicionamentos conservadores defendem que, em razão do débito conjugal, forçar um dos cônjuges à prática de relação sexual nada mais é do que exercício regular do direito, uma vez que esquivar-se dos desejos sexuais de seu consorte seria inaceitável. Assim, importa colacionar o entendimento jurisprudencial de alguns anos atrás fruto de uma sociedade machista e conservadora:

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“Inadmissibilidade da prática do crime do marido contra mulher  - TAGB: “Exercício regular de direito. Marido que fere levemente a esposa, ao constrangê-la à prática de conjunção sexual normal. Recusa injusta da mesma, alegando cansaço. Absolvição mantida. (...)” (RT 461/44apud MIRABETE, Júlio Fabbrini. CP interpretado, São Paulo: Atlas, p.1.246.”

Entendimentos contemporâneos sustentam que muito embora os cônjuges tenham o dever mútuo de se satisfazerem sexualmente, não há que se falar em coação em função do débito conjugal. Acerca do tema, Silvio Venosa2 diz: “[...] na convivência sob o mesmo teto está à compreensão do débito conjugal, a satisfação recíproca das necessidades sexuais. Embora não constitua elemento fundamental do casamento, sua ausência, não tolerada ou não aceita pelo cônjuge, é motivo de separação.”

Julio Mirabete 3corrobora o posicionamento: “Embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do lar. A evolução dos costumes, que determinou a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, justifica essa posição. Como remédio ao cônjuge rejeitado injustificadamente caberá apenas a separação judicial”

Na mesma linha de raciocínio ensina NUCCI4”Tal situação não cria o direito de estuprar a esposa, mas sim o de exigir, se for o caso, o término da sociedade conjugal na esfera civil, por infração a um dos deveres do casamento” Espera-se que a relação sexual dentro do casamento se dê de forma contínua, tendo em vista que o desejo sexual é inerente ao homem médio e, com a construção de uma vida em comum presume-se que o casal satisfará sexualmente um ao outro espontaneamente. Cumpre informar ainda que a recusa constante da esposa em manter relações sexuais com seu marido, pode gerar consequências civis, tais como o divórcio. Porém, não se pode o cônjuge se valer dos preceitos previstos no art 1.566 do Código Civil para obrigar seu consorte a praticar o ato sexual de maneira forçada. A discussão acerca da existência de fundamentos jurídicos para a exigência do cumprimento do débito conjugal ainda existe nos dias atuais, alguns raciocínios mais radicais falam até em indenização quando do descumprimento 2

VENOSA, Sílvio Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 3. ed. Sao Paulo:Atlas, 2010. p.157-158 3 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2011. v.1. p. 411. 4 NUCCI, Guilherme de Souza (CP comentado. 2. ed.São Paulo: RT p.655-657-1.2460).

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do débito conjugal. Nesse sentido, Maria Berenice Dias5, desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul defende que: “Essa injustificada tentativa de inserir na lei civil obrigação indenizatória por dano moral decorrente da ‘ausência de contato físico de natureza sexual’, se vingar, terá consequências funestas. Algumas, até imprevisíveis. Poderá dar ensejo a um verdadeiro terrorismo sexual. Até mesmo chegar a absurdos como - quem sabe? - desqualificar o estupro nas relações familiares, pelo reconhecimento do direito do estuprador ao exercício da sexualidade.”

Com a evolução da sociedade e por conseguinte do ordenamento jurídico pátrio, se torna cada vez menos admissível a intromissão do Estado em relações tão íntimas, tais como o sexo dentro do casamento, uma vez que não tem o Estado poder para manter relações sexuais. Sendo assim, o instituto do débito conjugal vem perdendo espaço para concepções mais modernas que defendem o direito do cônjuge se negar a praticar sexo com seu consorte contra a vontade.

Aspectos Históricos sobre o Crime de Estupro na Legislação Brasileira Na primeira legislação penal utilizada pelo Brasil, as Ordenações Filipinas, o crime de estupro admitia como único sujeito passivo a mulher e, a punição prevista era a pena de morte. O Código Penal do Império de 1830, trazia no art 222 a seguinte previsão: “Art.  222. Ter cópula carnal por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher honesta. Penas - de prisão por três a doze anos, e dote a ofendida. Se a violentada fôr prostituta. Penas - de prisão por um mês a dois anos”.

Nota-se que assim como nas Ordenações Filipinas, o Código Penal de 1830 também admitia apenas a mulher como sujeito passivo do crime de estupro. Posteriormente, com o advento do Código Penal de 1890, foi inserido pela primeira vez no ordenamento jurídico pátrio o conceito de estupro: “Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta: Pena - de prisão celular de um a seis anos. § 1º Se a estuprada for mulher publica ou prostituta: Pena - de prisão celular de seis meses a dois anos. § 2º Se o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será aumentada da quarta parte.” 5

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DIAS, Maria Berenice. Falando em estupro. Disponível em http://www.mariaberenicedias. com.br. Acesso em 20 de fevereiro de 2015

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“Art. 269. Chama-se estupro o ato pelo qual o homem abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não. Por violência entende-se não só o emprego da força física, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hipnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e narcoticos.”

Nesse sentido, importa mencionar a concepção de “mulher honesta” adotada na época: “Mulher honesta não é somente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é  irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o mínimo de decência exigido pelos bons costumes.  Só deixa de ser honesta a mulher francamente desregrada, aquela que, inescrupulosamente, multorum libidine patet, ainda que não tenha descido à condição autêntica prostituta” (TJRJ - AC - Rel. Octávio Stucchi - RJTJSP 9/578).

Já o Código Penal de 1940, em seu artigo 213, atribuía ao estupro pena de reclusão de 4 a 10 e anos, e definiu como sujeito passivo a mulher e como sujeito ativo o homem. Para este código, a definição de estupro era: “Constranger mulher à conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça”.Posteriormente, a lei 8.072/70, alterou a pena para reclusão de seis a dez anos  Destaca-se que segundo a Lei 2.848/40 o título utilizado era “bons costumes” e não dignidade como o adotado pela lei 12.015/09, ou seja, nota-se que na ultima lei existe uma maior preocupação por parte do legislador, ao passo que crimes contra os costumes deixava muito a critério do à vítima ou o meio social ao qual pertencia tipificar o delito de estupro. Nesse sentido, importa mencionar que até o ano de 1995 o sujeito ativo que casasse com a sua vítima teria a punibilidade extinta, percebe-se então a aplicação no que se refere aos costumes, pois naquela época a preocupação era com a desonra da mulher, o que não faz sentido algum para a nossa atual sociedade. Um marco importante aconteceu com o surgimento da lei 12.015/09 que alterou o art 213 do Código Penal e passou a admitir tanto o homem, quanto a mulher nas qualidades de sujeitos ativos e passivos do delito. Nota-se que os arts 213 e 214 foram unificados, e o bem jurídico tutelado passou a ser a liberdade sexual em geral, não apenas só a da mulher. No que tange ao ato libidinoso, importa dizer que é caracterizado por qualquer ato que satisfaça a libido alheia, mediante violência ou grave ameaça, nesse caso não se incluem fotos, escritos ou imagens. É a ofensa material de ordem sexual. Um simples beijo lascivo pode ser considerado atentado violento ao pudor, dependo do contexto, e sob a ótica da lei 12015/09, estará configurado o crime estupro.

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Definição de Estupro pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro e sua Análise Dogmática A palavra estupro é derivada da palavra stuprum que, no direito romano correspondia a qualquer tipo de prática sexual indevida, desde as relações forçadas, até o adultério e a pederastia. Atualmente, o crime de estupro se encontra tipificado no artigo 213 do Código Penal da seguinte forma: Art. 213.- Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos § 1o  Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos § 2o Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta)”

Importa mencionar que o bem jurídico tutelado no crime de estupro é a liberdade sexual, ou seja, o direito que o indivíduo tem de decidir com quem e quando terá a relação sexual. Fazendo um paradoxo com o Direito Penal italiano, o jurista Manzini entende que o bem jurídico tutelado no crime de estupro é a inviolabilidade carnal porém, tá concepção não ganhou seguidores em nosso país onde prevalece a liberdade sexual como bem jurídico tutelado. Nesse sentido Capez 6diz que “a lei penal não interfere nas relações sexuais normais dos indivíduos, mas reprime as condutas anormais consideradas graves que afetem a moral média da sociedade”.

Sujeitos Ativo e Passivo No que tange ao sujeito ativo, importa mencionar que trata-se de um crime comum, ou seja, pode ser praticado por qualquer pessoa. No âmbito conjugal, destaca-se que a definição prevista no Código Penal não exclui a possibilidade do marido, ou a esposa ser o agente ativo desse delito. A exclusão do cônjuge da condição de sujeito ativo é entendimento exclusivamente doutrinário, onde alguns autores afirmam que manter relação sexual com seu consorte, nada mais é do que um dever decorrente da construção da sociedade conjugal. Com relação ao sujeito passivo, a vítima pode ser qualquer pessoa, seja a mulher ou o homem que não concorde em praticar o ato sexual ou ato libidinoso a que está sendo ameaçado. Nesse sentido, o dissenso da vítima é elemento essencial do delito. Com efeito, não existe constrangimento onde há concordância, ou seja, para a caracterização do crime de estupro, faz-se necessário a constatação de que a vítima ofereceu resistência à prática do ato 6 452 CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Volume 3 ,Saraiva .2009.

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Do Estupro no Casamento Conforme exposto anteriormente, em um passado não muito remoto, o vínculo matrimonial entre o autor do fato e a vítima do crime de estupro era tido como causa extintiva da punibilidade, conforme previa o inciso VIII do artigo 108 do Código Penal de 1940. Tal concepção era adotada, uma vez que em uma sociedade patriarcal a mulher nada mais era do que propriedade do seu esposo, razão sua liberdade sexual não merecia ser levada em consideração. Destaca-se que no Código Penal de 1940, o crime de estupro se encontrara previsto dentro dos crimes contra os costumes, ou seja, o objetivo não era tutelar a liberdade sexual, mas sim preservar os costumes de uma sociedade. Importa mencionar que, segundo o posicionamento predominante em 1940, era lícito ao marido exigir ou forçar sua esposa à conjunção carnal “normal”, ou seja aquela que se dá pela cópula vagínica, não fazendo parte dos privilégios inerentes aos cônjuge varão os coitos oral e anal. Assim, caso a cônjuge virago fosse obrigada a praticar relações sexuais “fora do normal”, tal como os coitos anal ou oral, seu marido responderia pelo crime de atentado violento ao pudor, previsto no art 214 do texto original do Código Penal de 1940. Como reflexo do entendimento social da época, pode-se citar o jurista Nelson Hungria7 que, em 1954 ao se manifestar acerca do tema afirmou: “Questiona-se sobre se o marido pode ser, ou não, considerado réu de estupro, quando, mediante violência, constrange a esposa à prestação sexual. A solução justa é no sentido negativo. O estupro pressupõe cópula ilícita (fora do casamento). A cópula intra matrimonium é recíproco dever dos cônjuges. O marido violentador salvo excesso inescusável, ficará isento até mesmo da pena correspondente à violência física em si mesma, pois é lícita a violência necessária para o exercício regular de um direito.”

Viveiros de Castro, apud Nucci8trata o assunto da seguinte forma: “A cópula não é o fim único e exclusivo do casamento, mas é indispensável, inerente à instituição, que tem como um dos seus mais nobres fundamentos, a propagação da espécie, a criação e educação da prole. E ainda: Casandose, dormindo sob o mesmo teto, aceitando a vida em comum, a mulher não pode furtar-se ao congresso sexual cujo fim mais nobre é a perpetuação da espécie. Qualquer violência da parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão as esposa para se furtar à união sexual seja um mero capricho ou um fútil motivo, podendo, entretanto, ele responder pelo excesso cometido.” 7 8

HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal, v.VIII, Forense, Rio, 1959. NUCCI, Guilherme de Souza (CP comentado. 2. ed.São Paulo: RT p.655-657-1.2460).

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Nota-se inclusive que Hungria menciona a expressão “prestação sexual”, ou seja, deixa clara a ideia de que o corpo da esposa é tão somente um objeto de satisfação para os desejos de seu marido. Pouco tempo atrás, no ano de 2004, ainda era possível encontrar entendimento jurisprudencial que defendia a extinção da punibilidade nos casos de reconciliação dos cônjuges após o delito: EMENTA: PENAL. CRIME CONTRA OS COSTUMES. ESTUPRO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. O restabelecimento da sociedade conjugal pré-existente entre ofendida e o agente do delito constituiu-se, a partir da interpretação analógica in bonan partem do artigo 107, inciso VII, do Código Penal, causa extintiva da punibilidade. Decretaram extinta a punibilidade. Unânime. (Apelação Crime Nº 70009464470, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luís Gonzaga da Silva Moura, Julgado em 06/10/2004)

A Constituição Federal de 1988, em seu §5º, artigo 226 assegura a igualdade de direitos e deveres ao homem e a mulher na relação intra-matromonial. Sendo assim, com o advento da Carta Magna de 1988, a mulher atingiu um status de igualdade ao seu consorte, desta forma a ideia de que a esposa deve ser submissa ao seu marido vai se perdendo a cada dia. É sabido que a nossa Constituição é recente e para apagar totalmente ideias tradicionais e machistas que prevaleceram por décadas e não será fácil. Nesse sentido, muito embora atualmente a admissibilidade de um dos cônjuges como sujeito ativo no delito de estupro é praticamente unânime em nosso ordenamento jurídico, cabe ressaltar que existem duas correntes doutrinárias distintas acerca das hipóteses em que estaria tipificado o crime de estupro na relação conjugal. A primeira corrente, traz um posicionamento tradicional e defende que para a caracterização do crime de estupro, faz-se necessário que a vitima tenha uma “justa causa” para negar ao seu consorte a prática do ato sexual ou contraído alguma doença venérea. No que tange ainda sobre doença venérea, nos casos em que o portador de mencionada doença for o cônjuge que forçar o outro à prática sexual, esta será tipificada como estupro, independente de justa causa para a recusa da vitima. Nesse sentido, Damásio de Jesus 9ensina: “Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual [...]. Assim, sempre que a mulher não 9 454 JESUS, Damásio E de. Direito Penal. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2011

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consentir na conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa.”

Nota-se que, muito embora o entendimento acima admita a ocorrência de estupro no casamento, este ainda não é o posicionamento mais adotado pela doutrina. O exposto anteriormente menciona que para que exista o estupro na relação conjugal, a recusa da esposa necessita ter uma justa causa. Assim, é possível observar ainda resquícios de uma concepção machista, onde a virago precisa ter um justo motivo para não querer ter relações sexuais com seu esposo. Ainda nessa linha de raciocínio, faz-se necessário trazer à baila o posicionamento de Magalhães Noronha 10: “a violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo”. Ocorre que o entendimento anterior pertence atualmente à uma corrente minoritária e hoje, grande parte da doutrina admite a prática do delito de estupro na relação conjugal desde que o ato sexual entre os cônjuges aconteça por meio de violência ou coação e sem o consentimento da esposa. A fim de corroborar o acima exposto, faz-se necessário trazer o entendimento jurisprudência pátrio onde é admitida a possibilidade de estupro em âmbito conjugal. Número do processo: 1.0074.06.033921-0/001910 Relator: Des. JOSÉ ANTONINO BAÍA BORGES Data do Julgamento: 25/02/2010 Data da Publicação: 20/04/2010 Ementa: PENAL - TENTATIVA DE ESTUPRO - CRIMINAL - ESTUPRO - CRIME COMETIDO PELO MARIDO CONTRA A ESPOSA - PALAVRA DA VÍTIMA - ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE DESISTÊNCIA VOLUNTÁRIA RECONHECIMENTO - DESCLASSIFICAÇÃO PARA CONTRAVENÇÃO PENAL CABIMENTO - AUSÊNCIA DO ELEMENTO OBJETIVO DO TIPO PENAL - ARTIGO 61 DO DL Nº 3.688/41 - PENA - PRESCRIÇÃO RETROATIVA - EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. - A mulher pode ser vítima de crime de estupro praticado pelo próprio marido, pois embora a prática sexual constitua um dos deveres do casamento, a mulher tem a livre disponibilidade do próprio corpo e não é propriedade do homem. - A palavra da vítima, se coerente, firme e consistente, tem especial valor nos casos de crimes contra os costumes, sendo, por isso, suficiente para a comprovação da autoria e da materialidade. - Restando comprovado nos autos que o agente abandonou o propósito criminoso por ato próprio e espontâneo, deve ser reconhecida a desistência voluntária, respondendo somente pelos atos já praticados. - Impõe-se a desclassificação da infração 10

NORONHA, Magalhães. Direito Penal. São Paulo, Saraiva, 2008 . v. 3.

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Aspectos da Violência Sexual na Relação Conjugal

capitulada no art. 213 c/c art. 14, II do CP para a contravenção penal disposta no art. 61 da Lei de Contravenções Penais quando a ação do agente constitui ato reprovável, uma importunação à vítima. - Ocorrido o lapso temporal necessário, decreta-se a prescrição retroativa, extinguindo-se a pretensão punitiva do Estado. DERAM PROVIMENTO PARCIAL PARA DECRETAR EXTINTA A PUNIBILIDADE, PELA PRESCRIÇÃO, VENCIDO PARCIALMENTE O VOGAL.

Assim, é sabido que relação sexual lícita tem como condição absoluta o consentimento dos envolvidos, caso a mencionada condição não esteja presente, já se encontra configurado a prática do estupro, mesmo nos casos em que a coação ou violência se der em âmbito marital. Destaca-se que ao contrário do fundamento utilizado pelos posicionamentos mais antigos, a esposa não precisa de um “justo motivo” para não querer dispor de seu corpo para o ato sexual. Assim, pode-se dizer que o emprego da violência pelo consorte, fere inclusive o princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista que ninguém é obrigado a ter relação sexual contra a sua vontade. Importa destacar que o princípio da dignidade da pessoa humana, assim como o direito a própria a liberdade sexual devem prevalecer sobre o desejo que um consorte tem para com o outro. Segundo o estudo feito por Maria Berenice Dias11 acerca do crime de estupro no Brasil:   69% das mulheres já foram agredidas ou violadas   Uma em cada dez mulheres sofre ao menos um estupro na vida, na   maioria dos casos por homens conhecidos.   25% das vítimas de estupro conhecem o agressor pelo nome No Brasil Apenas 14% das vítimas de agressão sexual notificam a ocorrência do crime Somente 7% dos estupros são cometidos por pessoas desconhecidas 54% dos estupros são cometidos pelo marido

Ressalta-se que tal pesquisa foi feita por Maria Berenice Dias em 2011, ou seja, infelizmente ainda nos dias atuais existem mulheres vítimas de seus maridos que praticam o crime de estupro todas as vezes em que forçam suas esposas à manter relação sexual forçada. Nesse sentido, há de ser esclarecido que, muito embora o crime de estupro admita como sujeitos ativo e passivo, tanto o homem quanto a mulher, no âmbito conjugal em 99,9% dos casos registrados, a vitima do estupro é a esposa e o sujeito ativo seu marido. A grande questão é que muito embora o número de delegacias especializadas em violência contra a mulher tenha aumentado nos últimos anos, a grande parte 11

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DIAS, Maria Berenice.  Falando em estupro. Disponível em http://www.mariaberenicedias. com.br. Acesso em 20 de fevereiro de 2015

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das vítimas de estupro praticado por seus consortes não faz o registro do crime por medo ou até mesmo falta de informação. Ao contrário de quando a esposa sofre violência física, tal como espancamento, a mulher estuprada carrega um sentimento de culpa e tem vergonha de tornar público o ocorrido. A falta de informação também dificulta que o esposo seja denunciado, tendo em vista que muitas esposas não tem o conhecimento de que a relação sexual mediante coação, constrangimento ou grave ameaça em âmbito conjugal também é crime. Mesmo nos dias atuais mulheres ainda se sentem no dever de “servir” aos seus esposos mesmo que contra a sua própria vontade. A dificuldade em provar a ocorrência do delito em âmbito doméstico também prejudica as denuncias uma vez que na maioria das vezes inexistem testemunhas a fim de comprovar o alegado pela vítima e, por outro lado apenas a alegação da ofendida não é suficiente para condenar o agressor. A doutrina majoritária atual defende que além da liberdade sexual, bem jurídico tutelado no crime de estupro, há ainda a violação dos princípios da dignidade da pessoa humana, vontade das partes, bem como ao direito à integridade física, garantias essas adquiridas ao longo da evolução de nossa sociedade. Desta forma, é inadmissível cogitar a hipótese de que apenas as mulheres solteiras teriam direitos às garantias acima citadas, sendo a mulher casada, tão somente um objeto de propriedade de seu marido. Em tempos onde os direitos humanos se encontram em tanta evidencia, a pergunta que se faz à corrente minoritária com posicionamento mais machista e ultrapassado é: Por que não defender também os direitos da mulher casada já que segundo a nossa Carta Magna de 1988 “todos são iguais perante a lei”?

Do Estupro Conjugal e da Violência Doméstica É sabido por todos que atualmente o esposo também pode figurar como sujeito passivo no crime de estupro, assim como pode ser vítima de qualquer outra violência em âmbito doméstico, porém em, 99,9% dos casos, as mulheres figuram como vítimas não só de violência sexual, mas outros tipos de violência que atingem as esferas física e moral. Surge então a preocupação em resguardar as vítimas da violência de gênero. Nesse sentido, a Lei 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, veio com o objetivo de erradicar qualquer tipo de violência em que se tenha como vítima a mulher em seu âmbito doméstico. No que tange a proteção da vítima com relação à sua liberdade sexual, o inciso III, do artigo 7º da mencionada lei dispõe que: Art. 7o  São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (...) III- a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a

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induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

Ocorre que, além da criação das DEAMs, mencionadas anteriormente e da previsão legal que resguarde as vítimas das violências sexuais sofridas, ainda existem barreiras a serem ultrapassadas no que tange ao estupro em âmbito conjugal. Não há como catalogar ao certo o número de vítimas existentes devido ao fato de grande parte das mulheres não denunciam seus esposos não só pelo fato do medo, mas também por não saber do seu direito de dispor sobre o próprio corpo. Existe ainda a barreira do orgulho, a mulher violentada pelo esposo deseja esconder a falência de sua vida conjugal e na maioria das vezes, só resolve tornar público o delito a qual foi vítima quando as agressões passam a ser incontroláveis, tornando o casamento um pesadelo. Destaca-se que em alguns casos a esposa que sofre em silencio abusos sexuais reiterados podem sofrer transtornos psicológicos graves, chegando inclusive ao suicídio. A dinâmica da violência domestica se dá na seguinte forma:

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A violência doméstica é um problema de saúde pública, o estupro por exemplo, além dos prejuízos psicológicos, pode trazer à mulher no âmbito da saúde física doenças sexualmente transmissíveis, lesões de maior ou menor gravidade, inflamações pélvicas, gravidez indesejada além do aborto espontâneo nos casos em que a esposa estiver grávida. Estudos feitos pela OMS em 2002 apontaram que a violência domestica e o estupro são a sexta causa de morte e incapacidade física entre as mulheres de 15 a 44 anos, ficando na frente inclusive do câncer e dos acidentes de transito. De acordo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento, no Brasil a violência doméstica contra a mulher também é responsável pela perda de produtividade e emprego, fazendo com que a violência domestica deixe de atingir tão somente a esfera social, mas também a econômica.

Bianca Freire Ferreira

Em pesquisa recente realizada nas 267 DEAMs do país, foi constatado que a grande parte das mulheres descreve o estupro conjugal como lesão corporal. Das 3.193 entrevistadas, 40% declarou ter sofrido violência física exclusiva ou conjugada com a forma sexual cometida pelo parceiro e 5% declarou ter sofrido violência de cunho exclusivamente sexual por parte de seu companheiro, daí a dificuldade de se fazer um estudo exato acerca do numero de casos de estupro marital no Brasil.

Conclusão Após todo o exposto, pode-se concluir que nos dias atuais o crime de estupro nas relações conjugais é admitido de forma majoritária. Destaca-se a evolução desse posicionamento não decorre tão somente de leis, mais do processo evolutivo das sociedades. O fato é que, submeter a cônjuge à relação sexual contra sua vontade, vai contra os preceitos matrimoniais uma vez que viola a integridade física e moral de seu consorte. Importa mencionar que o direito de ter relações sexuais não dá o direito de forçar o parceiro a tal prática. O combate a violência sexual em âmbito conjugal ainda é um caminho longo a ser percorrido, tendo em vista que o nosso país, ainda não possui uma estrutura capaz de atender a essas vítimas que tiveram a liberdade sexual violada

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por seus próprios parceiros. A maior parte dos programas e serviços de saúde não conta ainda com protocolos de atenção para casos de violência doméstica e sexual contra a mulher, apesar de se constatar uma relativa disponibilidade das esposas em relatarem a situação que vivem. Destaca-se que no caso em tela, a maioria das vítimas mantém seus relacionamentos afetivos com seu parceiro mesmo após o estupro, o que torna a prática do delito cada vez mais recorrente. Abordar a violência sexual doméstica e sua interface com a saúde, bem como dar destaque à questão da sexualidade e do sexo forçado na conjugalidade resultaria, entre outras coisas no reconhecimento da violência como “objeto” do setor saúde, considerando-se tanto a concepção ampliada de saúde como o impacto provocado na qualidade de vida. Assim, pode-se concluir que muito embora o tema ainda gere uma certa polemica, uma vez praticada pelo consorte conduta tipificada no caput do art. 213 do Código Penal, estará caracterizado o delito de estupro, independente de justificativa para recusa.

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Aplicação Prática dos Princípios Processuais: uma Visão Prática com base em uma Ação Civil ex delicto Flávio de Almeida Souza Batista1 Resumo Em meio a um cenário onde a atividade judiciária pode ser equiparada a uma fábrica, na qual o produto é o resultado de uma linha de produção, sobra pouco ou quase nenhum espaço para a reflexão e para a atividade criativa dos magistrados. Assim, nesse cenário mecânico, mas às vésperas de um novo Código de Processo Civil, voltado para a atividade criativa do juiz, lastreado, mormente, nos princípios, ou normas fundamentais como alcunha o novo código, como será que o nosso judiciário enxerga os princípios quando suscitados no caso concreto, ainda que contra legem? Tentando trazer à luz a força da principiologia no caso concreto, selecionada fora uma singela ação civil ex delicto, mas cujas peculiaridades lhe tornaram interessante, em que por força dos princípios do processo, despicienda se tornou a apresentação da certidão de trânsito em julgado para que o processo pudesse ser regularmente desenvolvido, o que coroa a atuação do magistrado, que sucumbiu à força normativa dos princípios. Palavras-chave: Ação civil ex delicto; certidão de trânsito em julgado; princípios processuais. Abstract Amid a scenario where judicial activity can be likened to a plant in which the product is the result of a production line, left little or no room for reflection and creative activity of judges. Thus, this mechanical setting, but on the eve of a new Civil Procedure Code, aimed at the creative activity of the judge, backed, in particular, the principles, or fundamental rules as nickname the new code, as does our judiciary sees principles when raised in this case, albeit against legem? Trying to bring to light the strength of principles in this case selected out a simple ex delicto civil action but whose peculiarities made him interesting in that by virtue of the process principles, insignificant became the presentation of the traffic certificate on trial for the process could be developed regularly, which crowns the action of the magistrate, who succumbed to the normative force of principles. Keywords: Action ex delicto civil; traffic certificate in trial; procedural principles. 1

Curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil – Universidade AnhangueraUNIDERP

Aplicação prática dos princípios processuais: uma visão prática com base em uma ação civil ex delicto

Introdução A pesquisa tem como objetivo trazer à luz, ainda que pela perspectiva de um caso concreto sem qualquer repercussão, a maneira como tem sido encarada argumentos jurídicos baseados em princípios, mesmo quando seja para ir de encontro à legalidade. O problema, mais detalhadamente tratado no capítulo segundo, pode ser resumido da seguinte maneira: em uma ação civil ex delicto executiva (Processo n. 0000680-45.2014.8.19.0048), o autor não apresentou a certidão de trânsito em julgado da decisão condenatória na esfera criminal, o que é salutar para a formação do interesse processual para tal procedimento. Todavia, o juiz recebeu a inicial e certificou que estava ausente tal documento, porém sem qualquer ação no sentido de mandar ao autor que apresentasse a certidão. Em contestação, o réu confirmou o trÂnsito em julgado. Antes, porém, da sentença, quando os autos já estavam conclusos, o magistrado proferiu despacho no sentido de que a parte autora apresentasse a certidão. Todavia, o autor apresentou petição argumentando, lastreada em princípios, acerca da desnecessidade da exigência. Nesse ponto, a ideia era verificar como o juiz decidiria, ou seja, se continuaria exigindo o documento ou se o dispensaria em razão da peculiaridade do caso e da aplicação de várioas princípios processuais. Antes, porém, da argumentação, salutar trazer à pesquisa, ainda que de maneira genérica, os instrumentos que serão usados no desenvolvimento, quais seja, noções sobre ação civil ex delicto e acerca de princípios, como o do devido processo legal, da duração razoável do processo, da eficiência, da boa-fé processual, da cooperação e da adequação. Por fim, e após o desenvolvimento da tese da desnecessidade da certidão à luz da principiologia do processo, apresentada ao juízo por petição, obviamente sem semelhante desenvoltura aqui apresentada, o magistrado proferiu decisão, que não será aqui revelada, a qual demonstrará o valor atribuído aos argumentos embasados em norma fundamentais, principalmente as veiculadas por princípios, ainda que seja para afastar documento considerado imprescindível para a ação civil ex delicto executiva. Assim, mostraremos como, às vésperas de um Novo Código de Processo Civil, completamente comprometido com os princípios e com a maneira leal, ética e cooperativa de comportamento entre os personagens do processo, que não se cingem às partes, o juiz, no caso, encarou a argumentação a ele apresentada, ainda que superficial.

Caso Concreto Paradigma (problema) Trata-se de uma ação civil ex delicto2, precedida de fase de liquidação, proposta na Comarca de Rio das Flores – RJ. O fundamento da ação foi a condenação da executada em processo criminal pelo crime de injúria com a pena 2 462 Processo n. 0000680-45.2014.8.19.0048.

Flávio de Almeida Souza Batista

aumentada em um terço em razão de ter sido praticada na presença de várias pessoas, conforme artigos 140 c/c 141, III, do Código Penal.3 A indenização ou reparação do dano na seara cível derivou, portanto, da ofensa à honra subjetiva, agravada pela exteriorização da ofensa, pois, houve, sem qualquer dúvida, violação da personalidade e, por consequência, ofensa ao postulado normativo da dignidade da pessoa humana, o que enseja o cabimento de reparação por danos extrapatrimoniais. Ou seja, à luz da Constituição de 1988, dano moral, no sentido estrito, é a violação do direito à dignidade; ao passo que, no sentido amplo, é a violação de algum direito ou atributo da personalidade, que constituem a essência do ser humano4. Pois bem; passando-se à análise processual, que é o foco da pesquisa, o magistrado, que proferiu a condenação penal, deixou claro que não fixou indenização mínima, nos moldes do artigo 387, IV, do CPP, o que gerou reflexo na ação civil ex delicto, que não pode ser executada diretamente, devendo ser precedida da fase de liquidação. Após essa positivação do contexto em que foi proposta a ação civil ex delicto, iniciaremos a delimitação do problema que nos fez usar tal caso como paradigma. A exequente, na petição inicial, apesar de tê-la preparado corretamente, cometeu um equívoco processual, qual seja, se esqueceu de anexar à exordial a certidão de trânsito em julgado da decisão condenatória. Isso deságua na falta de interesse processual para a ação civil ex delicto, na medida em que somente após o trânsito em julgado da condenação, há a subordinação da seara cível, logo, sem a comprovação dessa circunstância, não é possível iniciar-se um procedimento executório, com ou sem prévia liquidação, se não há o título judicial para tanto, ilíquido ou líquido. Vale ressaltar, contudo, que, em regra, as instâncias são independentes, salvo em alguns casos, de modo que, mesmo não havendo trânsito em julgado da condenação penal, seria possível ajuizar uma ação de conhecimento para ressarcimento de danos pelo mesmo fato que ensejou a ação penal. Todavia, mesmo que já tivesse havido o trânsito em julgado, anexou à vestibular a sentença condenatória, que transitou em julgado, mas não a certidão de trânsito em julgado. Diante disso, na admissibilidade da inicial, o magistrado deveria ter mandado emendar, juntando tal certidão, expedida pelo cartório da vara onde foi processada a ação penal, para que se regularizasse o processo e que pudesse ser dada continuidade, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito, nos termos do artigo 267, VI do CPC de 1973 (artigo 485, VI do CPC de 2015)5. 3

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido: (...) III - na presença de várias pessoas, ou por meio que facilite a divulgação da calúnia, da difamação ou da injúria. 4 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 11.ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 106-108. 5 Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: (...) Vl - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e

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Aplicação prática dos princípios processuais: uma visão prática com base em uma ação civil ex delicto

Tendo sida admitida a inicial, a executada foi citada e intimada para apresentar a sua resposta, na qual não fora feita menção a qualquer defesa preliminar no sentido da ausência da certidão de trânsito em julgado, mas, pelo contrário, a própria executada afirmou que houve o trânsito em julgado da decisão condenatória que embasa a ação civil ex delicto. Em seguindo o procedimento, o magistrado proferiu despacho para que a exequente apresentasse a réplica, na qual, entretanto, não fora sanado o vício processual, se atendo apenas à discussão relativa ao quantum debeatur do dano moral a ser apurado. Após a réplica, realizada fora a audiência de conciliação, na qual não houve qualquer menção ao problema processual, muito menos acordo quanto ao valor do dano. Ademais, não quiseram as partes produzir mais provas, o que torna desnecessária a audiência de instrução e julgamento, de modo que o processo ficou concluso ao magistrado para que prolatasse a sentença. Todavia, uma semana após a audiência de conciliação, enfim, o magistrado notou o vício processual e proferiu um despacho mandando o exequente juntar a certidão de trânsito em julgado para que pudesse regularizar o processo, sendo possível, assim, a prolação da sentença. A exequente peticionou aos autos no sentido de que, àquela altura, não faria mais sentido exigir tal certidão, em razão de alguns argumentos (serão listados, mas enfrentados no desenvolvimento), como violação à boa-fé processual, da qual se extrai a teoria dos atos próprios, perfeitamente aplicável ao processo; violação à duração razoável do processo; violação à eficiência; criação de despesa desnecessária ao exequente, pois teria que desarquivar o processo criminal transitado em julgado e já arquivado; cumprimento da finalidade da certidão por outro meio, qual seja, o andamento processual retirado do sítio do TJRJ, no sentido do trânsito em julgado e do arquivamento do processo. Diante de toda essa argumentação, a ideia era saber como o magistrado iria se portar, ou melhor, decidir, após toda uma argumentação principiológica, principalmente, no que concerne à boa-fé processual, ou seja, a intenção era saber se a boa-fé processual seria apenas um argumento abstrato e doutrinário ou se teria força normativa suficiente para afastar um requisito essencial ao interesse de agir para a ação civil ex delicto. A posição do magistrado será trazida ao final do tópico relativo ao desenvolvimento.

Noções gerais Ação civil ex delicto Antes de nos aprofundarmos no tema deste tópico, salutar fazermos um corte metodológico no sentido de que apenas será trazido à luz, no que se refere ao instituto da ação civil ex delicto, aquilo que será imprescindível à compreensão da pesquisa.

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o interesse processual. (Art. 485 O juiz não resolverá o mérito quando: (...) VI – verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual;)

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Os fatos humanos ou atos jurídicos em sentido amplo, de maneira uníssona na doutrina, são definidos como ações humanas que criam, modificam, transferem ou extinguem direitos. São subdivididos em atos lícitos (não nos interessa) e ilícito. Estes são aqueles atos jurídicos em sentido amplo ou fatos humanos praticados em desacordo com o ordenamento jurídico.6 Um ato ilícito não necessariamente recebe a tutela do Direito Penal, constituindo um crime ou contravenção penal, pelo contrário, o Direito Penal é a última razão (ultima ratio), ou seja, o ordenamento jurídico deve utilizar, em primeiro lugar, as formas menos gravosas de proteção aos bens jurídicos. Somente quando estas forem ineficazes, o Estado poderá lançar mão da intervenção penal.7 Isso é o que se denomina de intervenção mínima. De outro lado, as formas menos gravosas seriam as relacionadas às esferas: civil e administrativa. Porém, a tutela do bem jurídico por uma ou outra seara ou meio de proteção não pode ser entendida como um enquadramento isolado, ou seja, um mesmo ato ilícito pode receber a tutela dos três ramos do direito acima mencionados. Dessa forma, quando o ato ilícito repercutir na tutela penal e civil, terá lugar a chamada ação civil ex delicto, que é o procedimento judicial voltado à recomposição do dano civil causado pelo crime.8 O Brasil adota o sistema, no que concerne aos reflexos de uma instância na outra, da independência relativa ou mitigada, pois existe, para algumas questões, uma subordinação temática de uma seara na outra9, isto é, a eficácia de decisões do juízo criminal na seara cível.10 No caso paradigma da pesquisa, não houve fixação da reparação civil em sede de sentença condenatória na seara penal, como permite o artigo 387, IV, do Código de Processo Penal11 (CPP), logo, não foi possível a execução diretamente, como prevê o artigo 63, parágrafo único, do CPP12, dependendo, porém, do procedimento prévio de liquidação, nos termos dos artigos 475-A do Código de Processo Civil de 1973 (artigo 509 e 512 do CPC de 2015) combinado com o artigo 475-N, II do CPC de 1973 (artigo 515, VI do CPC 6

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: parte geral. Vol. 1. 11.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 318. 7 GALVÃO, Fernando. Direito Penal: parte geral. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p.138. 8 PACELLI, Eugênio. Curso de Direito Processual Penal. 18.ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 183. 9 Idem. p. 183. 10 TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 10.ed. Salvador: Juspodvm. 2015, p.218-219. 11 Art. 387.    O juiz, ao proferir sentença condenatória: (...) IV – fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. 12 Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. Parágrafo único.  Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.

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Aplicação prática dos princípios processuais: uma visão prática com base em uma ação civil ex delicto

de 2015)13. Assim, como no âmbito criminal se reconheceu a materialidade e a autoria do crime, tais temas não poderão mais ser discutidos na esfera cível, conforme prevê o artigo 935 do Código Civil de 200214 (CC/02). Destarte, a ação civil ex delicto, com base na sentença condenatória transitada em julgada, que não fixou a reparação mínima, como permite o artigo 387, IV do CPP, deverá, por isso, ser precedida da fase de liquidação, conforme o artigo 475-A c/c artigo 475-N, II do CPC de 1973, para apurar o valor devido a título de dano moral (no caso concreto paradigma, o dano a ser ressarcido é apenas extrapatrimonial, mas nada impede que sejam ressarcidos danos emergentes, lucros cessantes, perda de uma chance, dano estético.) em razão da prática do crime de injúria com a causa de aumento relativa à prática da infração diante de várias pessoas, nos termos do artigo 140 c/c artigo 141, III do CP. Antes de encerrarmos esse subitem, ligeiramente, impera saber o que a certidão de trânsito em julgado é para a ação civil ex delicto. A posição adotada por essa pesquisa trata tal certidão como sendo fundamental ao interesse de agir processual para a ação civil ex delicto, na medida em que somente após o trânsito em julgado da condenação, há a subordinação da seara cível, logo, sem a comprovação dessa circunstância, não é possível iniciar-se um procedimento executório, com ou sem prévia liquidação, se não há o título judicial para tanto, ilíquido ou líquido. Muito embora, pela independência relativa das instâncias, seja possível mover ação de conhecimento para reconhecer o dano e a autoria de maneira a ser ressarcido o dano (não é objeto de a pesquisa tratar da possibilidade de suspensão do processo de conhecimento proposto no cível, enquanto tramitar a ação penal, o que se extrai do artigo 64, parágrafo único do CPP15, pois o objeto é a ação civil ex delicto com o rito de cumprimento de sentença, precedida ou não da fase de liquidação). Sem entrar na discussão sobre ser o interesse de agir processual uma condição da ação ou um pressuposto processual com o CPC de 2015, adotaremos a posição do professor Fredie Didier, para quem o interesse de agir processual é 13

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Art. 475-A. Quando a sentença não determinar o valor devido, procede-se à sua liquidação. (Art. 509. Quando a sentença condenar ao pagamento de quantia ilíquida, proceder-se-á à sua liquidação, a requerimento do credor ou do devedor:); Art. 475-N. São títulos executivos judiciais (...) II – a sentença penal condenatória transitada em julgado (Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: (...) VI – a sentença penal condenatória transitada em julgado).  14 Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. 15 Art.  64.  Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil. Parágrafo único.  Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela.

Flávio de Almeida Souza Batista

um requisito processual extrínseco positivo, ou seja, é o fato que deve existir para que a instauração do processo se dê validamente16, assim, a certidão de trânsito em julgado comprova o fato de ter havido transitado em julgado a decisão condenatória, momento em que há a subordinação da esfera cível pela criminal, no que toca ao reconhecimento da materialidade e autoria do fato. Se, por acaso, faltar o interesse de agir, o pedido não será examinado, havendo extinção do processo sem resolução do mérito, todavia, antes desse desfecho, o magistrado deve oportunizar o suprimento do vício. É salutar, por fim, ressaltar que apenas não estará sujeita a novas indagações no cível aquilo que diz respeito ao elemento subjetivo da ação delituosa, isto é, a decisão acerca do dolo ou culpa imputado ao autor (réu na ação civil ex delicto).17

Princípios do Processo Civil Obviamente, a ideia subtópico que se inicia não é esgotar a análise de tais princípios, mas tão somente criar o arcabouço teórico para que sejam compreendidos os argumentos levantados no sentido de não ser devida a exigência da certidão de trânsito em julgado da decisão condenatória, que embasou a ação civil ex delicto, no caso concreto em estudo.

Devido Processo Legal O devido processo legal é uma cláusula geral, cuja natureza é de direito fundamental, sendo que o cerne de seu conteúdo é evitar a tirania e a arbitrariedade, no âmbito da nossa pesquisa, do magistrado no desempenho de sua função julgadora, ou seja, o devido processo legal forma uma estrada pela qual o juiz deve se pautar para que sua obra – a decisão – seja adequada ou em compasso com o direito. Fredie Didier18 afirma que o devido processo legal é um direito fundamental que pode ser enxergado sob dois vieses, quais sejam, o viés formal e o substancial. O primeiro, também chamado de devido processo legal procedimental, tem como conteúdo as garantias processuais extraídas de tal cláusula geral ao longo dos anos, como o direito ao contraditório, ao juiz natural, a um processo com duração razoável etc. De outro lado, mas jungida na primeira esfera do princípio do devido processo legal, há a esfera ou dimensão substancial que, em síntese, se refere à aplicação das máximas da proporcionalidade e da razoabilidade ao processo. 16

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. Vol. 1. 17.ed. Salvador: JusPODIVM, 2015. p. 359. 17 PACELLI, Eugênio. Curso de Direito Processual Penal. 18. ed São Paulo: Atlas. São Paulo, 2014. p. 189. 18 DIDIER JR., Op.Cit., p. 67-72.

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Aplicação prática dos princípios processuais: uma visão prática com base em uma ação civil ex delicto

Enfim, o devido processo legal, formal e substancial, significa que não basta a observância do procedimento descrito em um ato normativo, primário ou secundário, para que se preencha a cláusula geral do devido processo legal, mas também é imprescindível que se observe a proporcionalidade e a razoabilidade ao aplicar o ordenamento jurídico. O artigo 8º do CPC/2015 é expresso ao exigir que o magistrado observe a proporcionalidade e a razoabilidade no momento em que for aplicar o ordenamento jurídico.19

Duração Razoável do Processo Embora presente no ordenamento jurídico desde 1992, em razão do art. 8º, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em 1992, a EC 45/2004 apenas elevou tal princípios ao patamar de garantia constitucional, ao positivá-lo no art. 5º, LXXVIII da CF/88. O seu conteúdo, em síntese, significa que o processo possui um tempo de amadurecimento para que a decisão seja a mais adequada, o que exclui a possibilidade de respostas imediatas, muitas vezes mal refletidas. O que se combate é a demora excessiva, ou seja, o que se busca evitar é a extrapolação do tempo do processo, este que é variável, pois depende de critérios como a complexidade do assunto, do comportamento dos litigantes e de seus procuradores, atuação do órgão jurisdicional e estrutura do judiciário (DIDIER apud TUCCI).20 Segundo Carnelutti, citado por Alexandre Câmara:21 “O processo dura; não se pode fazer tudo de uma só vez. É necessário ter paciência. Semeia-se, como faz o camponês, e se há de esperar para colher. Junto à atenção há de se colocar a paciência entre as virtudes necessárias ao juiz e às partes. Desgraçadamente, estas são impacientes por definição; impacientes como os enfermos, pois sofrem também elas. Uma das funções dos defensores é inspirar-lhes a paciência. O slogan da justiça rápida e segura, que se encontra nas bocas dos políticos inexpertos, contém, desgraçadamente, uma contradição in adiecto; se a justiça é segura, não é rápida; se é rápida; não é segura. Algumas vezes a semente da verdade leva anos, até mesmo séculos, para converter-se em espiga (veritas filia temporis).”

Princípio da Eficiência O princípio da eficiência, na dimensão da gestão do processo, dirige-se ao magistrado que, no exercício de um serviço público, deve orientar seus poderes de gestão para dar a máxima eficiência ao processo. Apenas para não haver confusão, eficiência não se confunde com efetividade, pois enquanto esta é a Art. 8o. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. 20 Ibid., p. 95. 21 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. V. 1. 25.ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.67. 19

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realização pelo processo do direito afirmado e reconhecido judicialmente, aquela é o meio pelo qual se atinge tal realização, que pode ser efetiva ou não. Fredie Didier22, citando Humberto Ávila afirma que: “Eficiente é a atuação que promove os fins do processo de modo satisfatório em termos quantitativos, qualitativos e probabilísticos. Ou seja, na escolha dos meios a serem empregados para a obtenção dos fins, o órgão jurisdicional deve escolher meios que o promovam de modo minimamente intenso (quantidade – não se pode escolher um meio que promova resultados insignificantes) e certo (probabilidade – não se pode escolher um meio de resultado duvidoso), não sendo lícita a escolha do pior dos meios para isso (qualidade – não se pode escolher um meio que produza muitos efeitos negativos paralelamente ao resultado buscado).”

Boa-fé Processual O princípio da boa-fé processual é veiculado por meio de uma cláusula geral, o que torna infindável o seu âmbito de aplicação, da qual se extrai uma norma de conduta amparada na lealdade e na não frustração das legítimas expectativas dos personagens do processo. O CPC/2015 traz expressamente, em seu art. 5º, a cláusula geral da boa-fé processual, todavia, sem embargos das divergentes posições doutrinárias acerca do fundamento Constitucional de tal princípio – contraditório, igualdade ou solidariedade – o STF se posicionou no sentido de que a boa-fé processual deriva da cláusula geral do devido processo legal, na medida em que é mais fácil extrair deste princípio a boa-fé, afinal, um processo só será devido se for ético e leal.23 Nos termos do artigo 5º do CPC/201524, no que concerne aos destinatários do princípio da boa-fé processual, fica claro que todos aqueles que participam do processo devem se portar de maneira ética, leal e em compasso com a legítima expectativa criada, o que inclui o magistrado.

Princípio da Adequação O princípio da adequação, na dimensão jurisdicional, dá ao juiz poderes para adaptar o procedimento às peculiaridades da causa sub judice. Assim, a flexibilidade do procedimento às exigências da causa é salutar para que mais facilmente o processo seja efetivo, ou seja, atinja os seus fins. Fredie Didier25, citando Luiz Guilherme Marinoni, afirma que”se a adequação é um direito fundamental (derivado do devido processo legal), cabe ao órgão jurisdicional efetivá-lo, quando diante de uma regra procedimental inadequada às peculiaridades do caso concreto”. 22

DIDIER JR., Op.Cit., p.102. Ibid., p. 108-109. 24 Art. 5o.  Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé. 25 Ibid., p118-119. 23

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Princípio da Cooperação O princípio da cooperação, previsto expressamente no art. 6º do CPC/201526, se refere ao comportamento ou a maneira na qual o processo deve se estruturar. Fredie Didier27, fazendo referência a Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, afirma que: “esse modelo caracteriza-se pelo redimensionamento do princípio do contraditório, com a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual, e não mais como um mero espectador do duelo das partes. (...) A condução do processo deixa de ser determinada pela vontade das partes (marca do processo liberal dispositivo). Também não se pode afirmar que há uma condução inquisitorial pelo órgão jurisdicional, em posição assimétrica em relação às partes. Busca-se uma condução cooperativa do processo, sem destaques para qualquer dos sujeitos processuais.”

Em razão dessa cooperação entre os personagens do processo, o magistrado não mais conduz o processo, pelo menos até a prolação da decisão, em posição assimétrica, ou seja, o juiz não é o senhor da gestão processual, pois, em virtude da cooperação, a relação passa a ser paritária, isto é, há diálogo e equilíbrio na administração do processo a fim de se alcançar um processo leal e efetivo. Um dos deveres que exsurgem do princípio da cooperação é o dever de esclarecimento, que nada mais é do que a conduta do órgão jurisdicional em buscar elucidar junto às partes eventuais dúvidas acerca de alegações, pedidos ou posições em juízo. Isso para que não se comete equívocos no momento de proferir a decisão.28

Conclusão Apenas para sistematizar a pesquisa, os dois subtópicos anteriores trouxeram, obviamente que naquilo necessário, as ferramentas que serão usadas no próximo tópico, no qual será trabalhada a argumentação da prescindibilidade da certidão de trânsito em julgado da decisão condenatória, apta a embasar a ação civil ex delicto, em razão das peculiaridades do caso concreto. Posteriormente, será trazida a decisão do magistrado acerca dessa tese desenvolvida no processo.

Art. 6o. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. 27 Ibid., p.125. 28 Ibid., p.128. 26

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Prescindibilidade da Certidão de Trânsito em Julgado da Decisão Condenatória para a Ação Civil ex delicto em virtude das Peculiaridades do Caso Antes de iniciar, como forma de sistematização, desenvolvimento será confeccionado na ordem cronológica dos atos processuais, logo, ao trazer as peculiaridades do processo e a argumentação, serão indicadas as páginas no processo onde se encontra cada item trazido à baila. Em primeiro lugar, sem entrar na discussão acerca da manutenção, ou não, das condições da ação com o CPC/2015, mas pressupondo que foram extirpadas, sendo a legitimidade e o interesse processual insertos nos pressupostos processuais, podemos iniciar o primeiro ponto. Pois bem; ao propor uma ação civil ex delicto, imprescindível a comprovação do trânsito em julgado da decisão condenatória na seara criminal para que haja a subordinação do juízo cível em relação ao juízo penal no que toca à materialidade e à autoria do fato, nos termos do art. 935 do CC/02. Essa certidão, como já sustentado outrora, foi por nós inserida no interesse de agir processual, que é um requisito processual extrínseco positivo, ou seja, é o fato que deve existir para que a instauração do processo se dê validamente. Destarte, ao propor a ação civil ex delicto lastreada não na certidão de trânsito em julgado expedida pelo cartório do juízo em que tramitou a ação penal, cuja decisão condenatória transitou em julgado, mas sim na sentença que acabou por se tornar definitiva, apenas mencionando que houve trânsito em julgado (p. 10 – 15 do processo n. 0000680-45.2014.8.19.0048, da Comarca de Vara única de Rio das Flores-RJ), é clara a ausência de um requisito processual extrínseco positivo, o que certamente, na análise da vestibular para o seu recebimento pelo juízo, levaria, em um primeiro momento, à necessidade de emenda da petição inicial, sob pena de indeferimento da exordial, o que acarreta a extinção do processo sem resolução de mérito, nos termos dos art. 284 do CPC/73 c/c art. 267, I e 295, III do CPC/73 (art. 321 do CPC/15 c/c art. 485, I e 330, II do CPC/15). Todavia, a petição inicial foi recebida, muito embora constatada a ausência da certidão de trânsito em julgado (p. 30 e 31 do processo n. 000068045.2014.8.19.0048, da Comarca de Vara única de Rio das Flores-RJ), mas sem qualquer manifestação judicial para a sua apresentação. Em contestação, em vez de o réu suscitar em preliminar a ausência de interesse processual, nos termos do art. 301 do CPC/73 (art. 337, XI do CPC/15), surpreendentemente, afirma que houve trânsito em julgado (p. 36 do processo n. 0000680-45.2014.8.19.0048, da Comarca de Vara única de Rio das Flores-RJ): “A presente demanda é uma liquidação por arbitramento em ação civil ex delicto, porquanto a autora busca a reparação por danos morais que suportou ao ser alvo de injúria, lastreando seu pleito em decreto condenatório com trânsito em julgado na instância criminal.” Pois bem; embora possa

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parecer uma falha do réu, entendemos que, na verdade, se trata de um acerto, pois, consciente ou inconscientemente, a boa-fé processual e a cooperação são evidentes. Isso porque, suscitar uma defesa peremptória – já que se não houvesse o trânsito em julgado, o processo deveria ser extinto sem mérito por falta de interesse processual –, em razão da ausência de certidão de trânsito em julgado, mesmo sabendo que a decisão condenatória no juízo criminal já fez coisa julgada material, seria afrontar a lealdade, eticidade, cooperação e boa-fé que dever direcionar a atuação das partes no processo. Avançando um pouco mais na caminhada processual, após a audiência de conciliação, na qual não houve acordo (p. 69 do processo n. 000068045.2014.8.19.0048, da Comarca de Vara única de Rio das Flores-RJ), bem como a declaração das partes de que não haveria mais provas a produzir, logo, desnecessária se tornou a audiência de instrução e julgamento, de tal modo que os autos foram conclusos para a sentença. Quando as partes já esperavam pela sentença, o magistrado proferiu despacho no sentido de que a parte autora juntasse aos autos a certidão de trânsito em julgado da decisão condenatória (p. 71 do processo n. 000068045.2014.8.19.0048, da Comarca de Vara única de Rio das Flores-RJ) para que comprovasse o interesse processual e, assim, fosse possível proferir a sentença. A parte autora, porém, interpôs petição juntando a consulta da movimentação do processo no sítio do TJRJ e argumentando, sinteticamente, no sentido da desnecessidade de tal certidão pelos argumentos a seguir. O despacho é violador do princípio do devido processo legal no viés substancial, pois o magistrado, embora na dimensão formal esteja correto, na medida em que a certidão de trânsito em julgado é o meio pelo qual se prova a subordinação da seara cível à criminal no que toca à autoria e a materialidade, fazendo nascer o interesse processual para a ação civil ex delicto, deixa de lado a proporcionalidade e a razoabilidade. Ou seja, ao exigir a juntada da certidão no momento em que os autos estão conclusos para a sentença, muito embora tenha sido juntada a sentença condenatória, a parte ré tenha confirmado o trânsito em julgado, bem como o processo criminal tramitou no mesmo juízo em que tramita a ação civil ex delicto, por se tratar de comarca de vara única, verifica-se que a exigência da certidão de trânsito em julgado é completamente desproporcional, porquanto o fim a que se presta a certidão já fora alcançado pelas peculiaridades do caso, qual seja, demonstrar uma condenação criminal apta a subordinar a esfera cível quanto à autoria e a materialidade. O pronunciamento judicial também viola o princípio da duração razoável do processo, porque, no momento em que o despacho foi proferido, o processo já estava pronto para ser decidido, ou seja, o processo estava maduro – não se refere à teoria da causa madura, mas sim à condição de já ter atingido o seu tempo razoável – para que fosse sentenciado, de maneira que a exigência da juntada da certidão àquela altura só serviria para alongar um procedimento sem qualquer justificativa razoável, pois a afirmação da parte ré no sentido de que houve o trânsito em julgado, a juntada da decisão que transitou em julgado,

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a consulta processual realizada no sítio do TJRJ, bem como ter sido a decisão condenatória proferida pelo mesmo juízo, caso em que bastaria requisitar ao cartório para expedir a certidão, sem a necessidade de isso ser feito pela parte, supriram a ausência do documento comprobatório do interesse processual, ou melhor, o interesse foi demonstrado por outros meios. O juiz, como um prestador de serviço público, está atrelado ao princípio da eficiência, que, em síntese, pode ser entendido como o melhor meio para que se alcance o fim almejado. Assim, lembrando das considerações trazidas no tópico em que escrevemos poucas palavras acerca de tal princípio processual, podemos dizer que todo o acervo construído em favor da ocorrência do trânsito em julgado da decisão criminal, principalmente a possibilidade do próprio juiz requisitar ao cartório do juízo a certidão, já que é o gestor administrativo do processo e da vara, é um meio apto – promove resultados desejados – e certo – a probabilidade de alcançar o fim é evidente – para se chegar ao mesmo fim obtido com a juntada da certidão de trânsito em julgado, qual seja, a comprovação da subordinação da esfera cível pela criminal no que toca à autoria e à materialidade, o que justifica a ação civil ex delicto executiva. No que concerne à boa-fé processual, no caso analisado, de maneira excepcional, podemos verificar que as partes agiram com uma lealdade e eticidade almejada para os próximos anos, pois, mesmo que a parte autora não tenha juntado à inicial a certidão de trânsito em julgado da decisão condenatória apta a subordinar a seara cível e a criar o interesse para a ação civil ex delicto executiva, a parte ré não fez qualquer defesa processual nesse sentido, pelo contrário, afirmou, como já fora transcrito, que a decisão condenatória na esfera criminal já havia transitado em julgado, logo, em um mundo ideal, não haveria mais qualquer discussão acerca dessa situação, até porque há peculiaridades suficientes, no que toca a documentos, que demonstram que houvera realmente o trânsito em julgado. De outro lado, se algum dos integrantes do processo praticou atos contraditórios, violadores da boa-fé processual, foi o magistrado. Isso porque, no pronunciamento em que recebeu a inicial, certificou a falta da certidão de trânsito em julgado, no entanto não tomou qualquer conduta no sentido de mandar emendar a inicial, apenas afirmou que houve juntada da decisão condenatória. Assim, se nesse momento inicial do processo não exigiu tal certidão, após todo o curso do procedimento, no qual, posteriormente, houve a afirmação da parte ré no sentido de ter havido trânsito em julgado, bem como da possibilidade do próprio magistrado obter a certidão no cartório da sua vara, o que se alinha ao princípio da cooperação, onde tramitou a ação penal, não poderia mais exigir tal certidão, sob pena de atuar de maneira contraditória, ferindo a legítima expectativa criada nas partes acerca da regularidade do processo e de sua conclusão para a prolação da sentença. Por fim, no que toca ao princípio da adequação, cujo conteúdo, na dimensão jurisdicional, dá ao juiz poderes para adaptar o procedimento às peculiaridades da causa sub judice, de modo que, a flexibilidade do procedimento às exigências

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da causa é salutar para que mais facilmente o processo seja efetivo, ou seja, atinja os seus fins, o despacho também não foi alinhado a tal princípio, pois, em razão das peculiaridades do caso concreto, já mencionadas inúmeras vezes, o procedimento poderia ser adaptado no sentido de não se exigir a certidão de trânsito em julgado em face de todos os pormenores desse processo, que cumpriram, da mesma maneira, a finalidade de se comprovar o trânsito em julgado da decisão condenatória na esfera penal. Após essa gama argumentativa, que foi, de maneira bem rasa, superficial e implicitamente, levada ao juízo após o despacho exigindo a juntada da certidão de trânsito em julgado para que fosse possível proferir a sentença na ação civil ex delicto, a juíza proferiu a sentença sem que tenha sido cumprida a exigência determinada no despacho (p. 70 do processo n. 0000680-45.2014.8.19.0048, da Comarca de Vara única de Rio das Flores-RJ). Apenas para ilustrar, interessante transcrever os argumentos usados na petição (p. 71 do processo n. 000068045.2014.8.19.0048, da Comarca de Vara única de Rio das Flores-RJ): “Informa a Autora que a ação já fora arquivada, todavia, a Autora apresenta o andamento processual do tribunal de Justiça relativo ao processo, que indica o despacho e o dia em que transitou em julgado a decisão condenatória, ocorrido em 31/07/2014, que alcançará a mesma finalidade pretendida pela certidão de trânsito em julgado. Inclusive Exa., não fora suscitado como defesa na contestação, o que demonstra claramente o reconhecimento, pela outro parte, que realmente ocorreu o trânsito em julgado, violando o princípio da duração razoável do processo e acarretando um custo desnecessário à parte que terá que desarquivar os autos do Processo Penal em que se concluiu que sofrera ofensa em sua honra, reconhecendo a materialidade e a autoria da ré na ação civil ex delicto.”

Dessa maneira, embora fosse esperado que o magistrado, na sentença, se manifestasse acerca da petição e dos argumentos trazidos, nada mencionou, todavia, pelo menos reconheceu que, por todos os argumentos aqui trazidos, despicienda a exigência da certidão de trânsito em julgado para comprovar o trânsito em julgado do título judicial que lastreou a ação civil ex delicto executiva.

Conclusão

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A ideia da pesquisa não foi debater acerca da ação civil ex delicto, muito menos tratar dos princípios do processo, todavia, para que pudéssemos chegar ao objetivo do trabalho, imprescindível que trouxéssemos, na medida do possível, em razão do espaço limitado, as noções gerais dos institutos que seriam usados no desenvolvimento do objeto de estudo. Para tanto, discorremos acerca da ação civil ex delicto e sobre os princípios do devido processo legal, da duração razoável do processo, da eficiência, da boa-fé processual, da cooperação e da adequação. De outro lado, tendo em vista que o foco era mostrar, em um caso concreto, a força argumentativa dos princípios processuais e a sua aplicação

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pelos juízes, o caso trazido à pesquisa se encaixava perfeitamente, pois o cenário era da exigência de um documento específico para comprovar um requisito imprescindível ao interesse processual referente à ação civil ex delicto executiva, após todo um processo, cujas peculiaridades atingiram a mesma finalidade daquele documento, mesmo sem ter sido apresentado. Assim, lançando mão de argumentos relacionados aos princípios processuais, a intenção era a de verificar qual seria a postura do magistrado, ou seja, se continuaria a exigir aquele documento ou se aceitaria a argumentação pautada no bom senso principiológico, no sentido de considerar desnecessário o documento em razão dos pormenores do caso concreto. Para o bem do direito processual, ainda que de uma maneira tímida, o magistrado, embora não tenha feito qualquer referência aos motivos pelos quais proferiu a sentença sem a certidão de trânsito em julgado, mesmo após ter sido por ele exigida, prolatou a sentença. Essa conduta, no mínimo, demonstrou a maneira pela qual o magistrado encara os princípios e qual a força argumentativa que a eles atribui. Antes de fecharmos as cortinas, vale a pena uma reflexão no sentido de que estamos às portas de vigência de um novo CPC – Lei 13.105/2015 –, cujo apelo para a atuação das partes pautadas na lealdade, na cooperação, na eticidade será mais intensa do que em qualquer período histórico anterior, podendo-se falar em alteração de paradigma na maneira de ver e atuar no processo, logo, a participação dos magistrados nessa alteração de perspectiva é imprescindível, pois quanto mais embasarem as suas decisões em norma fundamentais, principalmente aquelas veiculadas por princípios, mais rapidamente essa nova postura processual será incorporada no cotidiano forense.

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Este livro foi impresso em outubro de 2015 por Editar Editora Associada Ltda. Juiz de Fora/MG - Tel.: (32) 3213-2529 www.editar.com.br

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