Direito Penal e subjetividade: crítica da legitimação (Livro: O que é um pai, hoje?)

June 2, 2017 | Autor: Clécio Lemos | Categoria: Criminologia, Direito Penal, Psicanálise, Subjetividade
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LEMOS, Clécio. Direito Penal e subjetividade: crítica da legitimação. In: VESCOVI, Renata (org). O que é um pai, hoje? Reflexões nas fronteiras entre direito e psicanálise. Vitória: FDV Publicações, 2016.

DIREITO PENAL E SUBJETIVIDADE:

crítica da legitimação.

RESUMO Apresenta o liberalismo e o positivismo como discursos que se apresentam hoje nos fundamentos do Direito Penal, conformando uma visão sobre o crime/criminoso e sobre os fundamentos da pena. Traz contribuições críticas a desestabilizar a apropriação da subjetividade humana realizada pelo Direito Penal, permitindo ver o sistema punitivo como peça de dominação social. Palavras-chave: Direito. Penal. Subjetividade. Psicanálise. Criminologia. Crítica.

SUMÁRIO 1.Introdução; 2.Direito Penal: liberalismo e positivismo; 3.Crítica da legitimação; 4.Conclusão. Referências.

1 INTRODUÇÃO Desde o seu nascimento, o Direito Penal utiliza a parcelas da subjetividade humana como fonte de legitimação de suas práticas. Entende-se aqui Direito Penal como um conjunto de saberes e discursos que nasce no século XVIII sob os auspícios do iluminismo, sendo o correlato “científico” da guinada política instaurada pela revolução burguesa. Como se sabe, tradicionalmente as mudanças nas formas de poder trazem consigo mudanças na ordem do saber. Com o penalismo ilustrado não foi diferente, e dentre suas novidades estava certamente a dita atuação “racional” do poder punitivo, somente justificável em torno de uma funcionalidade política que pode atuar sobre a razão dos delinquentes.

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Entre rupturas e permanências, à toda evidência o sistema jurídico-penal brasileiro é carregado de forma robusta por esta interseção, exatamente por isso é preciso investigar suas origens. Cabe esquadrinhar como esse processo se deu na historiografia punitiva. A potência crítica deve nos fornecer possíveis rotas de fuga, e assim tentaremos elaborar alguns choques no castelo dogmático penal da Modernidade. Seguindo os passos do pensamento crítico produzido sobretudo ao longo do século XX, parece que estamos diante de um caminho de insustentabilidade de certos pressupostos tradicionais do liberalismo e do positivismo.

2 DIREITO PENAL: LIBERALISMO E POSITIVISMO “Depois de um silêncio, levantou-se e afirmou que queria me ajudar, que ele se interessava por mim, e que, com a ajuda de Deus, faria alguma coisa em meu favor. Mas, antes, queria fazer-me mais algumas perguntas. Sem transição, perguntou se eu amava mamãe.” (Camus, 2010, p. 71)

O que existe de mais estrutural no Direito Penal moderno europeu, do qual o sistema brasileiro herda suas matrizes fundamentais, pode ser sumarizado por duas ordens de correntes de pensamento: o contratualismo liberal e o positivismo criminológico. Assim como ergueu as paredes do Estado burguês, o contratualismo filosófico instrumentalizou o campo teórico das práticas punitivas, mesmo porque o campo penal sempre foi nada mais do que um exercício político. Perceba-se que os pensamentos de John Locke (1632-1704) e J. J. Rousseau (1712-1778), por exemplo, não se furtaram a falar sobre suas visões acerca do criminoso e dos fundamentos do direito de punir. A premissa contratual faz valer em Locke o mais profundo consequente da liberdade negativa. Numa sociedade calcada na liberdade estritamente individual, o poder de punir deve se justificar por abdicação racional do direito de vingança motivada pela união em torno de valores eleitos em comunhão. “Os percalços a que os expõe o exercício irregular e aleatório do poder próprio do homem, de punir as transgressões dos outros, obrigam-nos a buscar a preservação da propriedade. É isso que os induz a abdicarem de boa vontade do poder individual de punir, para que um só indivíduo, por eles escolhido, o exerça; e isso através de regras que a comunidade, ou os que ele eleger, concordem e estabelecer.” (Locke, 2009, p. 85)

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Desta forma, o criminoso é um individualista em excesso, que se expande sobre a “propriedade” alheia (vida, liberdade, bens), e sua punição está fundada no fato de livremente atuar desta maneira contra uma ordem contratual posta, majoritária. Em Rousseau, o consenso social persiste como argumento de sustentação do sistema jurídico punitivo, que deve atuar como ferramenta da preservação dos valores da sociedade em contraposição à figura do criminoso. Assim, todo delinquente é um inimigo da sociedade, um falsário para quem não há lugar naquele local, traidor que recebe a punição como única forma de se preservar a vontade de todos. “Partindo dessa ideia, vê-se com clareza que já não é preciso perguntar a quem compete fazer leis, visto serem atos de vontade geral, nem se o Príncipe está acima da lei, visto ser membro do Estado, nem se a lei pode ser injusta, porquanto ninguém é injusto para consigo mesmo, nem como se é livre e ao mesmo tempo submisso às leis, já que estas são meras expressões de nossa vontade.” (Rousseau, 1996, p. 47)

Abrindo um campo de estudo concentrado no fenômeno penal, surge o que então se denomina penalismo ilustrado, composto principalmente pelas obras de Cesare Beccaria (1738-1794), Francesco Carrara (1805-1888), Jean-Paul Marat (1744-1793), Paul Johann Anselm Feuerbach (1775-1833) e Giandomenico Romagnosi (1761-1835). Beccaria produz apenas uma única obra, denominada “Dos delitos e das penas” (1764), quando então inaugura uma nova área de produção de saber que se preocupa do crime/criminoso e as formas de sua contenção eficaz. A partir daqui nasce o Direito Penal moderno, fornecendo valores que repercutem até hoje nos discursos punitivos. Dentre essas principais matrizes do novo campo de saber, há nitidamente a preocupação funcional das punições, o que por alguns é interpretado como o surgimento das “penas humanitárias”. Interessava a estes autores pensar racionalmente as penas, e isto veio acompanhado da ideia de que as punições mais eficazes são aquelas que se fixam de forma mais veemente sobre a mente do infrator e dos possíveis interessados em perpetrar a mesma infração. “É concebível que um corpo político, que, bem longe de agir por paixão, é o moderador tranquilo das paixões particulares, possa abrigar essa inútil crueldade, instrumento do furor e do fanatismo, ou dos fracos tiranos? Poderiam os gritos de um infeliz trazer de volta do tempo sem retorno as ações já consumadas? O fim, pois, é apenas impedir que o réu cause novos

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danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros a fazer o mesmo.” (Beccaria, 1997, p.62)

A moderação da “paixão” é o dever do Direito Penal, sendo assim tão mais útil quanto for capaz de agir sobre a subjetividade dos cidadãos. Logo, ao aderir à necessidade de influir sobre a mente do criminoso, o iluminismo penal passa a perceber intrinsecamente a figura do criminoso como alguém que optou pela via criminosa, mas que pode ser conduzido a novos caminhos de subjetividade. A mente então é capturada no discurso, inevitavelmente. O agente é visto como portador do livre-arbítrio, e bem por isso passível de ser coagido pelo poder penal a seguir a via da legalidade que reflete o consenso social. O criminoso é um isolado, alguém que destoa. Já são famosas as palavras de Foucault quando analisa essa transformação dos discursos e práticas punitivas absolutistas para o iluminismo, deixando registrada a guinada “do corpo à alma”, que representa justamente o fato da função punitiva passar a ser uma função de condicionamento e docilidade, conformação ao suposto todo valorativo. “Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições.” (Foucault, 2010, p. 18)

Nesse giro, o sistema penal se fixa como instância de poder conformador da mente, que não se justifica em função da preservação do poder inerente ao rei (fazer morrer, deixar viver), mas da defesa social que demanda disciplina (fazer viver, deixar morrer). “Com isso, o direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere vida e a se ordenar em função de seus reclamos. Essa morte, que se fundamentava no direito do soberano se defender ou pedir que o defendessem, vai aparecer como o simples reverso do direito do corpo social de garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la.” (Foucault, 2011, p. 148)

Aqui gostaríamos, portanto, de fixar a primeira matriz fundamental dos sistemas penais modernos: a ideia de culpabilidade. O criminoso como aquele que frustra valorativamente o coletivo, que merece punição por afrontar subjetivamente a ordem consensual posta, quando podia respeitar o todo.

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A ideia de defesa social não se desvincula da necessária condição de portador de uma subjetividade infratora e influenciável. Aí reside a culpabilidade, que pode então ser averiguada pelo jurista. O sistema brasileiro atual, assim como os seus dois modelos de maior referência (italiano e alemão) são profundamente calcados na ideia de culpabilidade, indicando que o sujeito infrator é aquele que possui a ordem psíquica capaz de optar pela obediência à lei. O homem racional iluminista ainda é a grande figura das programações criminalizantes de nossa referência, e se firma tanto em nossa doutrina penal quanto no senso comum em torno da figura do criminoso. “Para justificar a imposição de uma sanção, não é suficiente que o autor tenha obrado típica e antijuridicamente. O juízo de desvalor somente pode ser emitido quando existir a possibilidade de formular uma reprovação ao autor do fato. E essa possibilidade só existirá quando, no momento do fato, o autor puder determinar-se de outra maneira, isto é, pelo dever jurídico.” (Bitencourt, 2008, p. 348)

Eis aqui, evidentemente, a teoria jurídico-penal se apropriando de parte da subjetividade humana, atravessando seu discurso com tons da ordem “psi”. Criminoso é aquele que podia ser obediente, e exatamente por isso será punido, para aprender a seguir as regras corretas, da maioria, em adesão subjetiva. Isso é o que os penalistas se acostumaram a chamar de “teorias da prevenção”, que verdadeiramente se confundem com o nascimento do iluminismo Penal. Segundo tais autores, a pena vem cumprir uma função de prevenir novas delinquências, pois punindo cria-se um receio nos que pretendem cometer crimes (viés negativo) e estimula um senso de crença na lei, respeito mútuo e nos valores sociais instituídos (viés positivo). Interessante observar, aqui, que esses argumentos de ordem política são manipulações de forma de compreender o psiquismo humano, e a pena atuando como uma cumpridora da satisfação geral pelo castigo por parte de quem conteve suas pulsões, apesar deste viés egoístico normalmente não ser explicitado na teoria. (Zaffaroni, Batista, et al, 2003, p.122) Por sua vez, uma segunda marca fundamental dos sistemas penais que se refletem no modelo brasileiro é o positivismo criminológico. Inaugurado principalmente no século XIX, por autores como Cesare Lombroso (1836-1909), Enrico Ferri (1856-1929) e Raffaele Garofalo (1851-1934).

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O Positivismo se destaca inicialmente pela confluência dos saberes jurídicos com a medicina, o que calhou na suposta fase “técnico-científica” dos discursos criminológicos. Produz, nesta confusão entre natureza e delinquência, uma aproximação da legitimação penal com a visão patológica do criminoso. Lombroso, dito pai desta corrente, foi um destacado psiquiatra italiano, interessado em discorrer sobre a delinquência como um reflexo de deformidades psíquicas. Criminoso como portador de uma interior falho que se expressa na passagem ao ato. “Faltam-lhes o sentimento afetivo e senso moral; nasceram para cultivar o mal e para cometê-lo. Estão sempre em guerra contra a sociedade, são indivíduos que frequentemente figuram nas agitações políticas. Falando dos dois casos de dementes, os dois tipos são dotados de feliz e pronta memória, de engenho agudo, de muitas e variáveis imaginações; todos são egoístas e com deficiência absoluta de sentimentos afetivos.” (Lombroso, 2007, p. 201)

Logo, tal corrente de pensamento busca encontrar amparo em fatores de ordem biopsicológica para a tradicional separação existente entre cidadãos e inimigos (Zaffaroni, 2007). Eis uma nova forma de compreender a delinquência, agora instrumentalizada por premissas mais rígidas e impassíveis de questionamento, tal como registra Anitua: “O estudo da criminologia positivista pode ser explicado, de forma bem sintética e ressalvando numerosas diferenças, com base no ‘homem deliquente’. Essa denominação seria a de um ente diferenciado, como outra ‘raça’ em tudo diferente da dos seres humanos normais.” (Anitua, 2008, p. 297)

Tradicionalmente, nos textos penais, o surgimento do positivismo parece apresentar uma ruptura fatal com o discurso iluminista: enquanto o criminoso de Beccaria é aquele do livre-arbítrio, o criminoso de Lombroso é o do determinismo. Todo criminoso, portanto, é aquele que traz em si uma forma de pensar não virtuosa, cujas características famigeradas podem ser identificadas por sua “mala vita”. Eis porque interessava tanto ao julgador de Mersault saber se ele tinha ou não chorado no enterro de sua mãe... Logicamente o positivismo passou a assumir uma fala mais refinada quando as premissas deterministas assumiram um tom de patologia social, e não apenas medicalizado. (Genelhú, 2012) Tanto Ferri quanto Garofalo se concentraram nas ditas “causas sociais da

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criminalidade”, em que o aporte criminoso é consequente do seio criminógeno em que o agente foi inserido, que desenvolve nele uma carreira criminosa, curiosamente sempre coincidente com os cortiços e periferias pobres. Tais formulações, ainda que não de todo equivocadas, parece apontar a uma leitura bifurcada, eis que supostamente os discursos penais somente podem aderir a uma ou a outra corrente de pensamento. Não é o que ocorre. A bem da verdade, desde o surgimento das premissas patológicas há uma somatória que passa a constituir o imaginário punitivo contemporâneo, de maneira que o criminoso em regra é visto como alguém que pôde optar pelo crime e, ao mesmo tempo, era portador de uma psique diferenciada do campo social. Ele é uma fração minoritária, e este desvio se justifica de forma patológica. Logo, ao invés de romper radicalmente com os discursos iluministas, o positivismo é antes um paradigma que traz ao contratualismo um argumento para caucionar a classe dos desajustados no campo da natureza. E, lógico, as leis da natureza não cabem ser questionadas, são dadas a priori e não comportam debate político. Objetificação do diferente. (Batista, 2011, p. 44) Foucault deflagrou todo um campo de estudos acerca das sociedades disciplinares e as premissas positivistas, percebeu muito cedo que o higienismo social produzia não apenas repressão, mas uma quota positiva, um acréscimo na subjetividade útil ao poder político. Assim também nos vale a contribuição de Jurandir Freire Costa, alertando para essa confusão proposital entre o ilegal e o doentio: “Os crimes contra o Estado poderiam, em consequência, converter-se em atentado à raça e vice-versa. O ilegal e o “antinatural” confundiam-se, fundiam-se, formavam a matriz teórica do anormal que autorizou a medicina higiênica a converter-se em ortopedia moral ou medicina do comportamento.” (Costa, 2004, p. 150)

A crença no positivismo criminológico pode ser hoje amplamente visualizada no Brasil. A legislação penal o viabiliza em vários momentos, quando considera que a pena deve ser maior na existência de “antecedentes”, “reincidência”, ou se visualizados traços negativos na “personalidade do agente”. Basta uma breve leitura dos artigos 59 e 61 do Código Penal.

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Além disso, na sede de execução penal é fácil perceber a modulação de fatores completamente positivistas para verter em controle penal, os ditos “requisitos subjetivos” de concessão de livramento condicional e progressão de regime. Aliás, é interessante não apenas perceber como a legislação remete a estas considerações, como também quanto os “auxiliares técnicos” da justiça estão abraçados às premissas positivistas. Uma interessante pesquisa se encontra na obra de Cristina Rauter, quando se concentrou em 120 laudos do Exame para Verificação de Cessação de Periculosidade (EVCP), elaborados sobre condenados entre os anos de 1968 e 1972. Leia-se: “O processo de reconstituição da história do condenado nos EVCP poderia ser descrito como uma mirada em direção ao passado do indivíduo, buscando a confirmação de que realmente existiram acontecimentos em sua vida que por sua própria natureza são geradores de crime. Circula-se tautologicamente sobre este tipo de raciocínio: se tenha diante de mim alguém que está preso e condenado, este alguém só pode ser criminoso e, como criminoso, só pode ter história de criminoso. A este passado se tem acesso pela fala do preso, mas esta não é, por certo, uma via totalmente confiável: acredita-se que, certamente, ele procurará enganar, falsear a “verdade”. Lança-se mão dos autos do processo-crime, da ficha de comportamento carcerário, etc. Com base nestes dados considerados inquestionáveis, chega-se ao que se desejava: vidas pontilhadas de indícios que só poderiam mesmo levar ao crime. Supõe-se que, sem sombra de dúvida, o crime só pode ser uma anormalidade psicológica. Ao se historiar a vido do indivíduo, o que se quer é encontrar os indícios desta anormalidade desde a infância (abondonou a escola? Seus pais não o criaram? Já praticava pequenos furtos egresso da Funabem?), passando pela vida no cárcere (cometeu muitas infrações disciplinares? Tentou fugir?) e assim por diante, atentando-se para uma trilha de oposições, de pequenos atos de indisciplina.” (Rauter, 2003, 91-92)

Apresenta então o quanto os postulados deterministas ainda permeiam as teorias e práticas brasileiras, indicando que o criminoso, mais do que ser uma pessoa que praticou um delito, é um portador perigoso de um projeto criminoso mais extenso, enraizado em sua mente de forma profunda. Enfim, parece que os discursos atuais que circulam para fins de legitimação do sistema penal levam em conta essas duas ordem de argumentação em torno da subjetividade do agente a ser julgado: 1) a culpabilidade (liberal); e 2) a patologia (positivista).

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Cabe agora, portanto, considerar algumas contribuições que vieram desestabilizar tais premissas, sobretudo a partir da sociologia/antropologia e da psicanálise contemporânea.

3 CRÍTICA DA LEGITIMAÇÃO A formulação de um Direito Penal enquanto defensor da sociedade, pena como medida justa para proteger os cidadãos do inimigo, sofreu duros ataques quando a sociologia/antropologia e a psicanálise começaram a operar. Desde que se abriu um campo de pesquisa para refletir sobre a estrutura contratualista, cada vez mais se pôde perceber que a premissa consensual era falha. Os indivíduos não vivem num pacto consensual, assim como não conduzem suas vidas por absoluto livre-arbítrio. Pôde-se então a partir da ideia de “Teoria do Conflito”, repensar os fundamentos do Estado moderno, e com isto considerar a possibilidade de que os indivíduos não sejam pactuantes livres e igualitários na mesa da democracia. A própria linguagem marxista de luta de classes apresentou um potente caminho para considerar a história da política europeia. Assim os discursos ditos “de esquerda” puderam projetar na sociedade posta uma realidade de luta de classes, e não propriamente de confraternização mediante atuação representativa nas decisões de poder. Na sociologia valeria destacar os nomes de Ralf Dahrendorf, Lewis Coser, George Vold e Austin Turk. Todos caminhando no sentido de que as sociedades modernas são constituídas por uma pluralidade valorativa, multicultural, que se organiza geralmente numa distribuição desigual de poderes, encontrando por vezes contradições insolúveis e grupos que preponderam sobre outros. Logo, a política instituída não é uma livre escolha geral. Logo, se não há um consenso valorativo, a conduta criminosa não pode ser vista como algo que destoa em função da livre escolha, mas resultado de uma divergência cultural manejada pela estrutura social. Freud também apresentou relevantíssimas contribuições para subverter a ideia de culpabilidade, enquanto livre atuação que afronta o pacto social valorativo. Assim nos lembra Salo de Carvalho:

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“A teoria freudiana do delito por sentimento de culpa permite, conforme sustenta Baratta, corroer o princípio da culpabilidade no livre arbítrio. A ideia dogmática de culpabilidade pressupõe que o autor do crime seja capaz de compreensão do caráter ilícito do fato e tenha real possibilidade de ação diversa daquela incriminada pelo Estado.” (Salo, 2008, p. 204)

A descoberta da ordem do inconsciente trouxe à tona o fato de que os atos humanos não são frutos absolutamente racionais. Que há uma ordem de coisas que perpassa a condição humana sem que o indivíduo tenha perfeito controle, condição esta tão levantada como pressuposto da atuação punitiva. Assim sendo, como crer no livre-arbítrio como fundamento da pena? A Antropologia nos apresentou também o conceito de cultura como fator de presente em todas as sociedades, de forma que a condução de vida nunca é absolutamente livre, eis que fruto de uma coação social intrínseca. (Laraia, 2003) A ação é resultado de múltiplos fatores que influenciam o sujeito, negativa e positivamente, e assim em toda conduta há muito do social, e muito pouco de si. Já adentrando sobre o paradigma positivista do delinquente patológico, uma das primeiras e mais fortes propostas de enfrentamento foi feita pelo sociólogo Émile Durkheim. As investigações do autor francês levaram-no à conclusão de que o fenômeno criminal é uma constante nas comunidades, absoluta normalidade no coletivo. “Assim, como não pode haver sociedade em que os indivíduos não divirjam em maior ou menor grau do tipo coletivo, é também inevitável que, entre essas divergências, haja algumas que apresentem um caráter criminoso. Pois o que confere a elas esse caráter não é sua importância intrínseca, mas a que lhes atribui a consciência comum.” (Durkheim, 1999, 71)

Portanto, a existência do desvio, em si, não é problemática, pois sempre haverá uma quota de variação ética dentro de cada seio social. Somente a anomia (excesso de desvio) é problemáticas, mas certa quantidade de crime chega a ser salutar para o desenvolvimento da comunidade. Freud é ainda um dos principais expoentes a inserir rupturas no determinismo criminal. Insere o autor a questão no nível do paradigma cultural, fazendo com que o criminoso não possa mais entendido como aquele que destoa com valores antissociais. Um minoritário ético que se isola politicamente porque traz em si o “germe do crime”. Segundo Cottet, a psicanálise se apresenta então com uma dupla missão:

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“A psicanálise é então investida de um duplo papel: primeiramente o caráter ‘simbólico do crime’, quer dizer, nessa época, o desconhecimento pelo sujeito da estrutura edipiana de seu ato. O sujeito é assim humanizado e reinscrito no universal edipiano, mesmo se lhe é dada uma interpretação privada. Em segundo lugar, em uma intenção polêmica, a interpretação do ato revela mais ou menos as tensões mesmas da sociedade, ou, mais ainda, ‘a função criminogênica’ da sociedade; é o que já havia estabelecido o artigo de 1948, ‘A agressividade em psicanálise’.” (Cottet, 2008, p. 23)

As palavras de Freud são certeiras ao propor em um de seus principais textos a possibilidade da elaboração de uma “patologia das comunidades culturais”. No seu texto antropológico “O mal-estar na civilização”, sentencia o pai da psicanálise: “Se o desenvolvimento da civilização possui uma semelhança de tão grande alcance com o desenvolvimento do indivíduo, e se emprega os mesmos métodos, não temos nós justificativa em diagnosticar que, sob a influência de premências culturais, algumas civilizações, ou algumas épocas da civilização – possivelmente a totalidade da humanidade – se tornaram ‘neuróticas’?” (Freud, 1997, p. 48)

Logo, o crime é tão social quanto a conduta lícita. Ele não é um traço isolado nos valores culturais. Também os sociólogos da metade do século XX perceberam que os mesmo instrumental psíquico pode levar a uma adesão ao lícito ou ao ilícito, pois os processo de socialização para ambos os caminhos não partem de diferenças numa moralidade prefixada na subjetividade do agente. (Sutherland, 1947) A sentença definitiva para afundar os discursos sobre a culpabilidade e a patologia criminal só foi conferida pela Criminologia Crítica a partir da década de 1960, na somatória das contribuições oferecidas por esta multiplicidade de saberes em torno da questão criminal. Obras como as de Roberto Lyra Filho (Criminologia Dialética - 1972), Paul/Taylor/Young (The New Criminology - 1974), Juarez Cirino dos Santos (Criminologia Radical - 1981) e Alessandro Baratta (Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal - 1982), passaram então a confluir na formação de um saber de absoluto confronto aos ideários que sustentam a teoria do crime, sobretudo no tocante à visão sobre o agente criminoso e os fundamentos das penas. Em breve síntese, a demonstração científica por eles produzida veio solapar as matrizes de subjetividade criminosa instituídas no cenário do Direito Penal moderno na medida em que descortinaram os seguintes fatores: 1) A sociedade não vive em coesão social

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de valores consensuais, mas em verdade é uma multiplicidade de culturas que interagem, enquanto uma delas acaba preponderando quando seu grupo detém o poder (teoria do conflito); 2) O agente criminoso não é subjetivamente inferior do agente conformista, apenas passou por processos de aprendizado distintos, todos eles em interação com a cultura vigente (teoria do etiquetamento); 3) Crime é um ente jurídico que reflete uma conduta politicamente manejável em favor do grupo que está no poder (teoria política do crime); 4) A pena não visa produzir prevenção do crime ou defesa social, pois é apenas uma expressão de força política de quem detém o poder a fim de preservar sua posição (Teoria da dominação social).

CONCLUSÃO Por todo o exposto, parece claro que o Direito Penal vigente, cujas matrizes remontam ao liberalismo e ao positivismo, se arquiteta sobre apropriações falsas de frações da subjetividade do agente criminoso, para fins de sustentação do seu exercício de poder. A leitura da mente humana criminosa realizada pelos discursos legitimantes dos sistemas punitivos modernos sofreu fraturas incuráveis quando da descoberta de conhecimentos críticos ao longo do século XX, que progressivamente denunciaram o equívoco crucial na afirmação de que o delinquente é alguém que opta livremente por se distanciar de supostos valores consensuais (liberalismo) e que traz em si uma mente diferenciada dos demais, voltada para o crime (positivismo). A percepção definitiva da mecânica dos sistemas punitivos como uma ferramenta das estruturas políticas manejadas pelos grupos de poder permite visualizar que os fundamentos do Direito Penal em nada se diferenciam do Direito de Guerra, como há muito tempo denunciava Tobias Barreto, e agora a Criminologia Crítica demonstra de maneira convincente. Cabe refletir sobre o papel das ciências psi como forma de resistência a esta apropriação inaceitável dos discursos oficiais do Direito. Além disso, cabe aos criminólogos críticos formular uma maior fissura na dogmática e legislação penal a fim de sufragar essa legitimação. Nas relações de poder penal, a inércia já está a favor do punitivismo, todo silêncio também é político.

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