DIREITOS DOS POVOS AMAZÔNICOS: ENTRE A PROTEÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL, OS ESTADOS PLURINACIONAIS DA PAN-AMAZÔNIA E AS VIOLAÇÕES NO BRASIL

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DIREITOS DOS POVOS AMAZÔNICOS: ENTRE A PROTEÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL, OS ESTADOS PLURINACIONAIS DA PAN-AMAZÔNIA E AS VIOLAÇÕES NO BRASIL Liana Amin Lima da Silva1

Resumo. No presente capítulo, pretende-se destacar temas como identidade étnica, autoatribuição e livre determinação a fim de compreendermos quem são os povos amazônicos e a relação intrínseca com o território, para assim, buscarmos a aplicação de direitos fundamentais, como o direito à consulta prévia. Traçou-se uma abordagem sobre os direitos étnicos à luz dos instrumentos jurídicos internacionais de direitos humanos e jurisprudência da Corte Interamericana, contextualizando com os casos de violações no Brasil que afetam diretamente a região amazônica com megaprojetos de hidrelétricas, mineração e o retrocesso na proteção jurídica da biosociodiversidade. O texto, por outro lado, mostra um panorama de avanços no âmbito dos Estados Andino-Amazônicos que reconheceram constitucionalmente sua plurinacionalidade. Palavras-chave: Pan-Amazônia. Direitos étnicos. Sociobiodiversidade.

1. Introdução. A região denominada Pan-Amazônia abrange territórios do Brasil, Bolívia, Colombia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Perú, Suriname e Venezuela, com área total de 7’186.750 km2, conforme a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Palacio Castañeda (2006) observa o contraste com a grande planície amazônica brasileira e do planalto central brasileiro (72,6% de toda área amazônica), além da subregião que provém dos planaltos guianenses, o restante da região amazônica é considerado como “andino-amazônica”. As populações que habitam a região amazônica, considerada uma região megabiosociodiversa, ao longo dos séculos puderam contribuir com a sua conservação, por meio de um modo de vida integrado à natureza, que respeita os ciclos de vida amazônicos, a exemplos de comunidades de várzea, onde sua subsistência segue adaptada aos períodos de cheia e vazante dos rios.

                                                                                                                1

Advogada. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Doutoranda em Direito Socioambiental e Sustentabilidade pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Integrante do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente: Sociedades Tradicionais e Sociedade Hegemônica (PPGD-PUCPR). Bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior (PDSE-CAPES), com estágio de doutorado junto ao Departamento de Sociologia da Universidad Nacional de Colombia (UNAL, sede Bogotá) e junto ao Instituto Amazónico de Investigaciones (IMANI, UNAL – sede Amazonia). Desde 2010 é professora colaboradora da Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), campus Alto Rio Negro (São Gabriel da Cachoeira -AM), turmas Baniwa, Tukano e Yanomami.

“A visão que reduz a Amazônia a uma gigantesca floresta sem gente se funda em um modelo conceitual que divide e separa a natureza frente à cultura, e a floresta frente aos povos que a habitam” (Palacio Castañeda, 2006, p.97). A reafirmação das identidades amazônicas emerge num intenso processo de resistência aos modelos predatórios perversos e projetos desenvolvimentistas que afetam a região. No Acre, na década de 1970, contra exploração de madeireiras, surge um movimento pela proteção da floresta, formado por seringueiros, sindicalistas, posseiros, castanheiros e indígenas, o que resultou na coletivização e reafirmação da identidade étnica amazônica, com a proposta de formação do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e da União dos Povos da Floresta. O movimento que lutou pela preservação das florestas, propondo uma prática de exploração sustentável dos produtos florestais não madeireiros, ficou marcado pela luta contra a opressão local, o que culminou, em 1988, no assassinato do líder sindicalista Chico Mendes. A resistência ali existente, contudo, não foi em vão, influenciou na reivindicação das “reservas extrativistas”, que, posteriormente se tornou uma categoria jurídica de unidade de conservação. 2 O movimento dos seringueiros nos aponta para a visibilidade de grupos e identidades amazônicas, múltiplos atores sociais, não exclusivamente indígenas. Movimentos de base, na luta pela subsistência física e cultural, passam a confrontar o modelo de mercantilização da terra e do trabalho, da natureza e da cultura. Na Amazônia brasileira, destacam-se ainda movimentos e organizações sociais de novos sujeitos coletivos de direitos, ainda que por muito tempo imersos na invisibilidade jurídica e social, a exemplo dos afro-amazônidas – mocambos, os quilombolas do rio Trombetas e do baixo Amazonas. Outro grupo com identidade étnica que se fortalece à partir de sua organização social e política são as quebradeiras de coco babaçu, por meio do resistente Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). Os direitos étnicos passam a ser reconhecidos nos tratados internacionais dos quais o Brasil passa a ser signatário, ainda que tardiamente, como no caso da                                                                                                                 2

Ameaças e assassinato de lideranças como Chico Mendes no Acre, se repetem em diversos contextos amazônicos, sendo invisibilizados e crimes não investigados. Para nomear uma liderança (e homenageá-la), destaco o desaparecimento em 2007 de João Batista, na época, presidente da Associação dos Produtores Rurais de Jutaí, quem lutou pela criação da Reserva Extrativista (RESEX) do Jutaí (médio solimões, Amazonas), entre tantas outras lideranças amazônidas que lutam pela preservação da natureza e proteção de suas comunidades, denunciando situações de descaso, injustiça e corrupção no interior dos Estados da Amazônia brasileira.

Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, que é de 1989, mas só foi ratificada pelo Brasil em 2002.3 Na contramão dos bons e bem vindos ventos que representam a conquista dos direitos coletivos e étnicos no contexto internacional, apresentaremos os retrocessos e violações dos direitos socioambientais no Brasil, que afetam diretamente os direitos dos povos amazônicos, com impactos socioambientais transfronteiriços. 2.

Direitos étnicos: Introdução à luz do direito brasileiro e do direito

internacional Marés (2010) distingue nos povos e nas minorias dois “direitos coletivos” diferentes. Um deles pertence a toda humanidade e pode ser chamado de direito à sociodiversidade: o direito de todos à existência e à manutenção de todos os povos, compreendendo um verdadeiro direito à alteridade, que tem estreita relação com o direito à biodiversidade. A outra espécie de direito coletivo dos povos e das minorias se refere aos direitos de que somente são titulares os membros da comunidade. São direitos que se comparam aos direitos nacionais quanto à titularidade. São direitos indivisíveis entre seus titulares, inalienáveis, imprescritíveis, inembargáveis, impenhoráveis e intransferíveis, conforme explicita Marés (2010). Tratando dos direitos coletivos dos povos e minorias étnicas, o autor faz referência a três grandes categorias: os direitos territoriais, os direitos culturais e os direitos à organização social própria. No que concerne aos direitos dos povos indígenas, a CF, no artigo 231, prevê o reconhecimento da sua organização social, costumes, crenças, tradições e os direitos originários das terras que tradicionalmente ocupam. Desse modo, considera-se que a CF recepciona os tratados de direitos humanos que abarcam os direitos dos povos indígenas e tribais. Vale ressaltar que os direitos territoriais das comunidades quilombolas estão previstos no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Ressalta-se ainda que a CF, no artigo 216, dispõe que constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, portadores de referência à identidade, ação e memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.                                                                                                                 3

A Convenção 169 da OIT foi ratificada pelo Brasil em 2002, aprovada pelo Decreto Legislativo 143, de 20 de junho de 2002, sendo promulgada pelo Decreto n. 5.051 de 19 de abril de 2004.

Na interpretação viva dos direitos humanos sob o prisma da interculturalidade, reconhece-se a legitimidade de outras práticas jurídicas - as que estão alheias ao Direito, mas, ao mesmo tempo, reconhecidas nele, por meio da proteção da diversidade cultural e, por conseguinte, da “jusdiversidade” , conforme Marés (2010, p.195). Com o reconhecimento da organização social própria, reconhece-se a diversidade das sociedades indígenas e a diversidade dos sistemas jurídicos próprios. Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam

livremente

sua

condição

política

e

buscam

livremente

seu

desenvolvimento econômico, social e cultural. 4 O direito à livre determinação é um direito fundamental, sem o qual não podem exercer plenamente os direitos humanos dos povos indígenas, tanto os coletivos, como os individuais.5 A Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), em seu artigo 26, dispõe que: “Os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam tradicionalmente ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido”. No art. 32, é declarado que “ Os povos indígenas têm o direito de determinar e de elaborar as prioridades e estratégias para o desenvolvimento ou a utilização de suas terras ou territórios e outros recursos.” O sentido de pertencimento dos povos e comunidades tradicionais à terra, supera o paradigma da terra como mercadoria ou como propriedade privada, o que nos revela uma nova relação jurídica sob o ponto de vista da denominada propriedade coletiva ou comunitária. O âmago dessa relação não se revela propriamente nas relações de troca, mas seu horizonte é ampliado para além dos valores materiais, ou seja, considerando os valores espirituais sobre as terras ancestrais, o direito à terra como direito à própria existência e integridade coletiva. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (2001), julgando o caso Mayagna Awas Tingni Indigenous vs. Nicarágua - precedente histórico a nível internacional na luta dos povos indígenas pelos seus direitos coletivos -, reconheceu que os povos indígenas, em virtude de sua existência, têm o direito de viver livremente em suas próprias terras e ter seus direitos ligados a ela. A Corte considera                                                                                                                 4

Artigo 4, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais (ONU, 2007). 5 ANAYA, James. (2009). Una cuestión fundamental: el deber de celebrar consultas. In: Informe del Relator Especial sobre la situación de los derechos humanos y las libertades fundamentales de los indígenas. ONU. Asamblea General. Consejo de Derechos Humanos. 12º período de sesiones, Tema 3 de la agenda. p. 12-20.

a estreita ligação dos povos com suas terras tradicionais, ampliando a interpretação do art. 21 da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) para atingir também os recursos naturais ligados à sua cultura e que se encontrem em seus territórios, assim como os elementos incorporados que se desprendam deles. 6 A Corte passou a interpretar o artigo 21 da Convenção Americana (Pacto de San José) à luz do artigo 29.b da Convenção, o qual proíbe interpretar algum dispositivo da Convenção no sentido de limitar o gozo e o exercício de qualquer direito ou liberdade que possa estar reconhecido de acordo com as leis internas do Estado em questão ou de acordo com outra convenção na qual seja parte o Estado. Destaca-se ainda, a interpretação da Corte IDH em convergência com os princípios e direitos previstos na Convenção n. 169 da OIT e Declaração da ONU de 2007. A nível nacional, em se tratando da jurisprudência recente, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (povos Macuxi, Wapixana, Ingariko, Patamona e Taurepang de Roraima), em 2009 e da Terra Indígena Caramuru Catarina Paraguasu do povo Pataxó Hã Hã Hãe do sul da Bahia, em 2012, confirmando a garantia constitucional do direito à terra indígena. A decisão do caso Raposa Serra do Sol (PET 3388-4 RR), ainda que tenha sido positiva em termos de demarcação da terra indígena em questão, refletiu na adoção de critérios e condicionates que representam restrições ao pleno exercício dos direitos coletivos dos povos indígenas. As 19 (dezenove) condicionantes que apareceram no voto do Ministro Menezes de Direito representam uma interpretação restritiva dos direitos garantidos pela Constituição, além de ignorar o que dispõe a Conv. 169 da OIT e Declaração da ONU de 2007. No julgamento dos Embargos de Declaração, contudo, definiu-se que a fixação de parâmetros de demarcação de terras pelo STF não vincula a outros processos. No mesmo julgamento, o ministro relator Carlos Ayres Britto, por sua vez, “inovou” em sua interpretação, ao adotar o critério do “marco temporal de ocupação”, o que significa dizer que a verificação da posse da terra tem como marco objetivo a                                                                                                                 6

OEA. Corte IDH. Caso Mayagna Awas Tingni Indigenous Community. Comunicado à Imprensa n. 23, de 28 de setembro de 2001. Posteriormente a Corte IDH firmou o mesmo entendimento em casos similares: OEA. Corte IDH. Caso Comunidad Indígena Yakye Axa vs. Paraguay. Sentença de 17 de junho de 2005; OEA. Corte IDH. Comunidad Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguay . Sentença de 29 de março de 2006, § 118.; OEA. Corte IDH. Caso Pueblo de Saramaka vs. Surinam. Sentença de 28 de novembro de 2007.

data da promulgação da Constituição (05 de outubro de 1988).7 Ocorre que, quando o STF insiste em aplicar esta interpretação, ignora o fato histórico de expulsão, esbulho de terras e massacres indígenas ocorrido no período anterior à democratização do país e ignora a possibilidade de reparação aos povos que estão em processos de retomadas de suas terras, a exemplo dos povos Guarani Kaiowá (sul do Mato Grosso do Sul) e Avá Guarani (oeste do Paraná). A Constituição Federal em seu artigo 231, refere-se ao direito originário à terra indígena. Por mais que o STF descarte

o instituto do indigenato (direito

congênito, originário dos povos indígenas), o que está em questão é como pode desconsiderar as violações sofridas pelos povos indígenas no período anterior à Constituição Federal, ou seja, período referente à ditadura militar em que títulos de propriedade de terras eram distribuídos pelos entes federativos nacionais como se tratasse de terras devolutas, quando sabidamente havia sobreposição a terras ocupadas por povos indígenas. Expulsão e massacre de povos indígenas foram legitimados pelo Estado, o que hoje se comprova pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade. 8 Os direitos originários à terra são direitos conexos ao direito à vida, à integridade física e cultural dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. O direito à terra existe desde o momento em que a comunidade se forma, ou seja, como direito congênito existe desde o surgimento da própria comunidade. Ademais, o § 2o do art. 5o da Constituição afirma que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. No STF passou a vigorar, o entendimento jurisprudencial da supralegalidade dos tratados de direitos humanos, o que deve ser considerado na análise da incorporação e implementação dos direitos garantidos pela Conv. 169 da OIT e Declaração da ONU de 2007 sobre os direitos dos povos indígenas. 9

                                                                                                                7

V. STF, Pet 3.388, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 19.3.2009, Plenário, DJE de 1.7.2010). Tal critério não está previsto na Constituição, o que está previsto é que a União deveria concluir os processos de demarcação de terras indígenas no prazo de 05 anos à partir da data da Constituição de 1988, conforme artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). 8 Comissão Nacional da Verdade (CNV). Relatório final. Comissão Nacional da Verdade. 09 de dezembro de 2014. Disponível em: http://www.cnv.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=571. 9 Julgamento da medida cautelar na ADI n° 1.480-3/DF, Rel. Min. Celso de Mello (em 4.9.1997) e posteriormente, RE n° 206.482-3/SP, Rel. Min. Mauricio Corrêa, julgado em 27.5.1998, DJ 5.9.2003; HC n° 81.319-4/GO, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 24.4.2002, DJ 19. 8. 2005.

Em termos de superar a discussão entre soft e hard law, a Bolívia avançou ao promulgar a Ley n. 3760, de 07 de novembro de 2007, incorporando em seu direito interno a Declaração da ONU de 2007 e seu caráter vinculante. Já a Constituição da República do Equador (2008) avança também, em seu artigo 417, ao dispor sobre os princípios pro ser humano, não restrição de direitos, aplicabilidade direta e cláusula aberta aos tratados internacionais de direitos humanos. Nesse sentido, alguns países da Pan-Amazônia avançam ao tratar do caráter vinculante da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas, especialmente com as novas Constituições do Equador (2008) e Bolívia (2009). 2.1 Direitos étnicos e os avanços das novas constituições dos Estados Plurinacionais Andino-amazônicos A República do Equador buscando “una nueva forma de convivencia ciudadana, en diversidad y armonía con la naturaleza, para alcanzar el buen vivir, el sumak kawsay”, em sua nova Constituição (2008), reconheceu os idiomas kichwa e shuar como idiomas oficiais de relação intercultural. Assim como reconheceu os direitos das comunidades, povos e nacionalidades indígenas, povo afroequatroriano, povo montubio e comunas. Para o fortalecimento da identidade, cultura, tradições e direitos, se reconhecem ao povo equatoriano os direitos coletivos estabelecidos na Constituição, nas leis e tratados de direitos humanos. São reconhecidos os direitos coletivos dos povos montubios a fim de garantir seu desenvolvimento humano integral, sustentável, políticas e estratégias para seu progresso e formas de administração associativa, a partir do conhecimento de sua realidade e o respeito a sua cultura, identidade e visão própria. Ademais, a Constituição equatoriana admite que os povos ancestrais, indígenas, afroequatorianos e montubios poderão constituir circunscrições territoriais para a preservação de sua cultura. Reconhece ainda as “comunas” que tem a propriedade coletiva da terra, como uma forma ancestral de organização territorial. Por sua vez, a Constituição do Estado Plurinacional da Bolívia define “nação e povo indígena originário campesino” (artigo 30) como toda a coletividade humana que compartilhe identidade cultural, idioma, tradição histórica, instituições, territorialidade e cosmovisão, cuja existência seja anterior à invasão colonial espanhola. O Estado passa a reconhecer, respeitar, proteger e promover a organização econômica e social comunitária, compreendendo os sistemas de produção e

reprodução da vida social, fundados nos princípios e visão próprios das nações e povos indígena originário campesinos (art. 307). A Constituição boliviana avançou ao reconhecer a igualdade de hierarquia entre a jurisdição ordinária e a jurisdição indígena, cabendo ao Tribunal Constitucional Plurinacional solucionar os possíveis conflitos de competência. O modelo desenvolvimentista ou de crescimento econômico, passa a ser substituído pelo Sumak Kawsay/Suma Qamaña, a terra passa a ser vista não como propriedade e objeto para exploração econômica, mas retoma o sentido de geradora de vida, onde se deve prosperar a dignidade e o respeito às identidades coletivas. Considera-se, em termos socioambientais, um outro recente avanço na Bolívia, o reconhecimento da natureza jurídica dos territórios tradicionais como sendo entidades territoriais autônomas e descentralizadas, conforme artigo 407 da Constituição Boliviana. Entre os direitos elencados nos incisos do artigo 30 encontrase a livre determinação e territorialidade, a titulação coletiva de terras e territórios e a proteção de seus lugares sagrados. 3.

Quem são os povos amazônicos? Somos o povo de todos os povos. Somos os homens da selva e as mulheres da chuva, somos a Pan-Amazônia, o coração do planeta. Em nossas terras e rios se desenvolvem uma batalha decisiva para os destinos da Humanidade. De um lado, as corporações transnacionais, o agronegócio e as grandes empresas de mineração que promovem a destruição de nossas florestas e nossas águas em nome de um progresso que beneficia tão somente os donos do capital. De outro, estamos nós, indígenas, camponeses e camponesas, quilombolas, trabalhadores e trabalhadoras dos campos, da mata e das cidades, lutando por nossos territórios, pelos direitos da Mãe-Terra, por nossas culturas, por nossos direitos de viver bem, em harmonia com a natureza. La Unidad de los Pueblos de la Amazonía para transformar el Mundo. Carta de Cobija, 01 de dezembro de 2012, VI Fórum Social Pan-Amazônico.

3.1 Povos amazônicos transfronteiriços: novos direitos e velhas fronteiras As fronteiras criadas pelos colonizadores não têm a força (ainda que com tentativas de uso da força) de separar ou isolar os povos indígenas. Os povos amazônicos historicamente viveram e vivem em processos de intercâmbio de saberes e práticas tradicionais, relações socioeconômicas e culturais de interdependência entre si, assim como relações interétnicas de parentesco, que devem ser respeitadas. Ademais, há povos e comunidades amazônicas que mantêm características de povos nômades, que podem se mudar e reestabelecer suas aldeias, de acordo com os ciclos

das águas, dos recursos florestais e pesqueiros, de acordo com suas práticas tradicionais e rituais que estão intrinsecamente ligados à natureza. Para além da questão do estabelecimento de Estados nacionais (ou plurinacionais),

fronteiras e soberania dos

a noção de pertencimento, cosmovisão e

territorialidade nem sempre corresponde aos processos demarcatórios dos limites de terras indígenas realizados pelo Estado. Historicamente a proteção e reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, se fez por meio de “reservas” ou demarcação como “ilhas”, visando demarcar os núcleos ou comunidades, separando as “partes” (aldeias) da noção de totalidade e abrangência do território tradicional, identificado também como território ancestral, conforme as cosmologias de cada povo. Uma grande vitória do movimento indígena passou a ser a luta por demarcação em área contínua. O exemplo da reivindicação pela demarcação da Terra Indígena Alto Rio Negro, em área contínua nos demonstra a força do movimento indígena e suas organizações locais, que se articularam por meio da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN). Trata-se de uma região megabiosociodiversa, considerada como área protegida insubstituível por sua biosociodiversidade, a região do alto rio Negro, noroeste da Amazônia brasileira, é território de 23 povos indígenas pertencentes às famílias linguísticas Tukano Oriental, Japurá-Uaupés (anteriormente denominada Maku), Aruak, Tupi e Yanomami, que perfazem 95% da população e da extensão territorial do município de São Gabriel da Cachoeira - AM (112.000.000 hectares), o que a torna a região de maior diversidade linguística do Brasil e do continente americano. 10

                                                                                                                10

Sobre a relação indissociável que permeia a biosociodiversidade, a perda de biodiversidade e a perda de línguas maternas estão intrinsecamente relacionadas conforme sobreposição da disposição geográfica entre locais de diversidade linguística e os “hotspots” e áreas silvestres de alta biodiversidade, conforme demonstra o interessante estudo desenvolvido pelos biólogos e linguistas Gorenflo, L.J.; Romaine, Suzanne; Mittermeier, Russel A.; Walker-Painemilla, Kristen. Co-occurrence of linguistic and biological diversity in biodiversity hotspots and high biodiversity wilderness áreas. Informações obre a região do Alto Rio Negro, a Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável e as as turmas “Baniwa”, “Tukano”, “Ñeegatu” e “Yanomami”, conforme territorialidades linguísticas (territórios etnoeducacionais), disponíveis em: http://www.ensinosuperiorindigena.ufam.edu.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3& Itemid=3

Fig. 1. Mapa Etnias das Terras Indígenas Alto e Médio Rio Negros. Instituto Socioambiental (ISA), 2008.

Ainda se tratando do contexto da Terra Indígena Alto Rio Negro e os povos amazônicos transfronteiriços, reflexões de um aluno Kurripako, participante da primeira turma “Baniwa” da Licenciatura Indígena em Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), nos mostram a essência das relações interculturais e interétnicas entre os Povos Kurripako e Baniwa, nas fronteiras dos Estados Nacionais Colômbia e Brasil. O que inquietava o aluno Kurripako era a busca pela compreensão do mundo globalizado e entender como os povos indígenas poderiam se inserir nele. Em determinado momento, fez o questionamento se poderia ter dupla nacionalidade, já que transita pelas terras indígenas pertencentes a dois territórios “nacionais”. Estávamos, de fato, em territórios onde permeiam relações interculturais e plurinacionais, ao visibilizarmos as nações indígenas do rio Içana (afluente rio Negro) e suas autonomias. Instigado pela reflexão, o Kurripako confessou-me sua peculiar situação: “tenho documento de identidade brasileira e documento de identidade colombiana: quando estou do lado de lá, sou colombiano, quando estou do lado de cá, sou brasileiro; mas na verdade, sou é Kurripako.” Nos cabe destacar que as lições da experiência entre os Baniwa e os Kurripako nos remete ao artigo 36 da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007), quando dispõe que os povos indígenas, em particular os que estão divididos por fronteiras internacionais, têm o direito de manter e desenvolver contatos, relações e cooperação, incluindo atividades de caráter espiritual, cultural, político, econômico e social com seus próprios membros, assim como com outros povos através das fronteiras. A mesma situação se passa com os povos Yanomami

(Brasil/ Venezuela), Ticuna (Tríplice fronteira: Brasil/ Perú/ Colômbia), Ashaninka (Brasil/ Perú), entre outros diversos povos amazônicos.

Fig.2. Vista da Comunidade Tunui Cachoeira, Alto Içana, região dos Baniwa e Kurripako (Terra Indígena Alto Rio Negro). Foto: LIMA DA SILVA, Liana Amin. 2010.

3.2 Povos amazônicos e os territórios tradicionais no Brasil A maior parte das Terras Indígenas (TIs) do Brasil concentra-se na Amazônia Legal 11 : são 422 áreas, 111.401.207 hectares, representando 22.5% do território amazônico brasileiro e 98.42% da extensão de todas TIs do país. O Censo 2010 registrou, 305 povos indígenas, falantes de 274 línguas no Brasil. Os povos indígenas somam, segundo o Censo IBGE 2010, 896.917 pessoas. Destes, 324.834 vivem em cidades e 572.083 em áreas rurais, o que corresponde a aproximadamente 0,47% da população total do país. Além das terras indígenas, na Amazônia brasileira podemos encontrar diversos territórios tradicionais, não necessariamente com o reconhecimento jurídico de áreas protegidas ou unidades de conservação12.

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A denominada “Amazônia Legal” foi uma criação jurídica, na época, para fins de incentivos de desenvolvimento econômico da região, no governo Getúlio Vargas. “Art. 2º A Amazônia brasileira, para efeito de planejamento econômico e execução do Plano definido nesta lei, abrange a região compreendida pelos Estados do Pará e do Amazonas, pelos territórios federais do Acre, Amapá, Guaporé e Rio Branco e ainda, a parte do Estado de Mato Grosso a norte do paralelo de 16º, a do Estado de Goiás a norte do paralelo de 13º e a do Maranhão a oeste do meridiano de 44º.” ( Lei nº 1.806, de 6 de Janeiro de 1953). 12 Lei 9.995 de 2000 institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) que é dividido em dois grupos de categorias de Unidades de Conservação, as de Proteção Integral e as de Uso Sustentável (artigos 7o,, 8o e 14). Unidades de Proteção Integral: Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional; Monumento Natural; Refúgio de Vida Silvestre; e Unidades de Uso Sustentável: Área de Proteção Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista; Reserva da Fauna; Reserva de Desenvolvimento Sustentável; Reserva Particular do Patrimônio Natural.

Fig.3. Amazônia. Áreas Protegidas e Terras Indígenas. RAISG, 2012.

Diferente das terras indígenas, as quais os indígenas detém a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos naturais, as comunidades quilombolas têm direito à propriedade definitiva de suas terras, de acordo com o art. 68 do ADCT. O procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos é regulamentado pelo Decreto n. 4.887 de 2003. 13 O Decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003, que regulamenta os direitos territoriais quilombolas define os remanescentes das comunidades dos quilombos como os grupos étnico­raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (art. 2º).14 Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), órgão responsável pela titulação dos territórios quilombolas na esfera federal, ao todo são 154 títulos emitidos, em benefício de 217 comunidades                                                                                                                 13

O movimento nacional quilombola, por meio da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Quilombolas (CONAQ), teve uma relevante contribuição na formulação do decreto que regulamenta as terras quilombolas, influenciando na construção do texto normativo. 14 Registra-se a investida contra os direitos quilombolas, pela interposição da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3239, pelo partido político Democratas (DEM), anterior PFL. A ADI segue em julgamento no STF, já havendo o voto do Min. César Peluso (relator), em 18 de abril de 2012, julgando procedente a ação. E em sentido contrário, julgando improcente, o mais recente e comemorado voto da Min. Rosa Weber, em 25 de março de 2015. O voto da Ministra Rosa Weber trouxe elementos muito importantes para a fundamentação da constitucionalidade do Decreto 4.887, como a referência à Convenção n. 169 da OIT e aos casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). O ponto controvertido do voto foi a aplicação do critério do marco temporal, como critério objetivo para verificação da posse da terra, o que nem sempre é possível em termos de esbulho, expulsão e violência sofrida pelos quilombolas e indígenas, sobretudo no período da ditadura militar, com distribuição de títulos como se tratassem de terras devolutas.

(abrangendo 13.145 famílias quilombolas). 15 Contudo, a totalidade estimada pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Quilombolas (CONAQ) é de 3.000 comunidades no Brasil. Em relação às demais comunidades tradicionais, em termos de territorialidade e reconhecimento jurídico, contam com um instrumento normativo, no âmbito nacional, que traz definições relevantes que é o Decreto nº. 6.040 de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNDSPCT). 16 Nesse decreto encontra-se a seguinte definição de “povos e comunidades tradicionais”: Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

São grupos com identidade étnica e, em se tratando de comunidades tradicionais amazônicas, se autodenominam e se auto-reconhecem como Ribeirinhos, Beiradeiros, Pescadores Artesanais, Quilombolas, Quebradeiras de Coco-babaçu, Agroextrativistas da Amazônia, Seringueiros, Castanheiros, Erveiras, entre outros grupos “cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial”, aplicando a definição de “povos tribais”, prevista na Convenção n. 169 da OIT, art. 1o-1, a. É a Convenção n. 169 que nos traz a diretriz do critério da autoconsciência (autoatribuição), ao prever, no artigo 1.º-2, que a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da Convenção. As populações tradicionais não-indígenas da Amazônia caracterizam-se, sobretudo, por suas atividades extrativistas, de origem aquática ou florestal terrestre. Os caboclos/ribeirinhos, seringueiros e castanheiros estão agrupados como populações tradicionais extrativistas. (DIEGUES; ARRUDA, 2001, p. 41).

                                                                                                                15

154 títulos emitidos, regularizando 1.007.827, 8730 hectares em benefício de 127 territórios , 217 comunidades e 13.145 famílias quilombolas (as áreas foram tituladas pelo Incra, FCP, FCP/INTERBA/CDA-BA, ITERPA, ITERMA, ITESP e SEHAF-RJ, INTERPI/Incra, SPU, IDATERRA-MS e ITERJ. Dados disponíveis em: http://www.incra.gov.br/quilombolas . Acesso em 10 de julho de 2015. 16 A PNDSPCT é resultado dos trabalhos da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT). A CNPCT foi instituída em 2004, precedida de consulta pública, sendo composta por 15 representantes de órgãos e entidades da Administração Pública Federal e 15 representantes de organizações não governamentais/ organizações de povos e comunidades tradicionais.

A importancia do Decreto 6.040 (PNDSPCT) se dá em função das definições adotadas sobre Povos e Comunidades Tradicionais estarem em consonância com a Convenção 169, reforçando também a previsão sobre os direitos territoriais desses povos, ao trazer a definição de “territórios tradicionais” (art. 3º, I e II), ao dispor sobre ocupação e uso dos territórios e recursos naturais, revela-se como um avanço no ordenamento jurídico brasileiro, pois abrange as situações em que as comunidades detêm a posse das terras, independente de título de propriedade, de demarcação de terra indígena ou criação de unidade de conservação. Observa-se que o decreto dispõe sobre a noção de territórios, e não somente de terras. Atribui, portanto, um sentido abrangente, incluindo a utilização dos recursos naturais. A noção de território enseja uma conotação simbólica e cosmológica, não sendo a terra e seus recursos meramente objeto de exploração, mas tendo um sentido maior, um sentido de pertencimento, muito ligado ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, pois há uma referência à identidade coletiva. Abarca, portanto, situações em que os grupos não ocupam de forma permanente o território, legitimando a utilização temporária do recurso natural, servindo como parâmetro para legislações estaduais que prevejam o livre acesso aos recursos, independente da posse ou propriedade das terras. Como exemplo as leis municipais do Babaçu Livre nos estados do Maranhão, Tocantins e Pará, permitindo o livre acesso aos babaçuais em terras públicas ou privadas. A legislação também estabelece, sobre o manejo sustentável do babaçu, restrições a derrubadas de palmeiras e proibição de queimadas. As identidades emergentes colocam a necessidade de se repensar teoricamente a noção de sujeito que não comporta as situações de fato, como é o caso das comunidades quilombolas e das quebradeiras de coco babaçu (SHIRAISHI NETO, 2013, p.72). Conforme nos aponta Shiraishi Neto (2010, p.32), a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais está sustentada no tripé cultura/identidade/territorialidade. Segundo o autor, “a inversão da ordem de se pensar o direito a partir da situação vivenciada pelos povos e comunidades tradicionais leva a uma ruptura com os esquemas jurídicos preconcebidos”. Referindo-se a outros povos e comunidades tradicionais e principalmente aos quilombolas, Almeida (2008, p. 93), considera: “[...] as etnias são várias e não se reduzem só aos povos indígenas”.

Além disso, um mesmo grupo étnico exibirá traços culturais diferentes, conforme sua situação ecológica e social, “[...] adaptando-se às condições naturais e oportunidades sociais que provêm da interação com outros grupos, sem, no entanto, perder com isso sua identidade própria”, como assinala Cunha (2009, p. 251). Para Cunha, grupo étnico é aquele que compartilha valores, formas e expressões culturais, sendo significativa a existência de uma língua, ainda que não imprescindível. 4.

Violações e ameaças aos direitos dos povos amazônicos no Brasil Os ecossistemas das florestas tropicais possuem uma biodiversidade de enorme complexidade, quase impossível de conhecer completamente, mas quando estas florestas são queimadas ou derrubadas para desenvolver cultivos, em poucos anos perdem-se inúmeras espécies, ou tais áreas transformam-se em áridos desertos. Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco sobre o Cuidado da Casa Comum, 2015.

4.1 Biosociodiversidade amazônica: retrocessos da nova Lei de Acesso Segundo Shiva (2001, p. 91), “[...] os trópicos são o berço da diversidade biológica do planeta, com uma multiplicidade de ecossistemas sem igual”. A autora observa que a biodiversidade sempre foi um recurso local comunitário, definindo que um recurso é propriedade comunitária quando existem sistemas sociais que o utilizam segundo

princípios

de

justiça

e

sustentabilidade,

combinando

direitos

e

responsabilidades entre os usuários, assim como utilização atrelada à conservação. Toda a riqueza biológica existente nas áreas protegidas, a biodiversidade, relaciona-se à diversidade sociocultural dos povos e comunidades tradicionais, que são detentoras do conhecimento que se relaciona com as formas tradicionais de utilização, manejo e conservação da biodiversidade. Temos hoje, no Brasil, a possibilidade de estabelecer um planejamento estratégico que beneficia o país e abre espaço para um papel importante das populações tradicionais da Amazônia, populações que até agora foram relegadas a um plano secundário, quando não vistas como obstáculos. [...] A riqueza da Amazônia – sem falar de seus recursos humanos – não compreende apenas seus minérios, suas madeiras, seus recursos hídricos, mas também sua biodiversidade e os conhecimentos de que se dispõe acerca dela. (CUNHA, 2009, p. 270)

A biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural quanto do cultural. Os componentes tangíveis e intangíveis da biodiversidade estão intimamente ligados, e não é possível dissociar o reconhecimento e a proteção aos conhecimentos tradicionais de um sistema jurídico que efetivamente proteja os direitos territoriais e culturais desses povos e populações tradicionais (SANTILLI, 2005).

Ao revés de incentivar um modelo de desenvolvimento socioambientalmente justo e includente para a Amazônia, reconhecendo o relevante papel dos povos e comunidades tradicionais para a conservação da biodiversidade, a nova Lei de Acesso e Uso ao Patrimônio Genético da Biodiversidade e Conhecimentos Tradicionais (Lei n. 13.123 de 20 de maio de 2015) representa retrocessos, no que tange à discussão ao longo de mais de duas décadas, desde a Conferência das Nações Unidades sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92) e com a posterior regulamentação da Convenção da Diversidade Biológica (CDB) por meio da Medida Provisória 2.186-16 de 2001. Na contramão do Protocolo de Nagoya (ainda não ratificado pelo Brasil) e da Convenção n. 169 da OIT, a Lei n. 13.123 representa uma afronta aos direitos dos povos e comunidades tradicionais, detentores de conhecimentos tradicionais. A discussão sobre o projeto de lei não foi realizada de forma democrática participativa e plural. Os povos e comunidades tradicionais, maiores interessados e afetados diretamente pela lei, não foram convocados a participar no âmbito do processo legislativo. O Congresso Nacional, mais uma vez, ignorou o direito à consulta prévia sobre atos legislativos. Pedido de veto ao então Projeto de Lei 7735/ 2014 foi encaminhado à Presidenta da República pelas entidades e organizações representantes dos Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais, Agricultores e Agricultoras familiares do Brasil, guardiões, mantenedores e multiplicadores da Agrobiodiversidade e da Biodiversidade nacionais, detendores dos saberes tradicionais.

O veto parcial,

contudo, não atingiu os dispositivos que representam retrocessos para os povos e comunidades tradicionais no que tange ao consentimento livre, prévio e informado e a repartição de benefícios. 17 A lei 13.123 ao regulamentar a repartição de benefícios o faz com foco em elencar as situações e sujeitos que estarão isentos da repartição de benefícios, a exemplo dos fabricantes de produtos intermediários, microempresas, agricultores tradicionais e cooperativas. O artigo 9o § 2o dispõe que “O acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificável independe de consentimento prévio informado”, o que dá margem para a exploração indevida, sem consentimento livre prévio e informado e                                                                                                                 17

Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Mensagem n. 147 de 20 de maio de 2015 (veto parcial).

sem repartição de benefícios sobre a escusa de que se trata de conhecimentos “de origem não identificável”. Todavia, se há o acesso, é possível identificar os provedores e detentores dos conhecimentos tradicionais, ainda que os conhecimentos sejam difusos ou compartilhados por diversas comunidades. Propostas como repartição de benefícios por meio de fundos que busquem a conservação da sociobiodiversidade e beneficiem os povos e comunidades tradicionais detentores dos saberes tradicionais seria uma alternativa para a não isenção nesses casos. Lamentavelmente, a lei prevê que o consentimento será cabível tão somente quando tratar-se de consentimento para o acesso ao conhecimento tradicional associado de origem identificável e, ainda assim, quando este não se referir à acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicionais para atividades agrícolas, conceituadas pela lei como “atividades de produção, processamento e comercialização de alimentos, bebidas, fibras, energia e florestas plantadas”, nos casos em que se referir à variedade tradicional local ou crioula ou raça localmente adaptada ou crioula, hipótese na qual existiria uma pretensa isenção da necessidade de consentimento. (Moreira, 2015)

Entre outros problemas da nova lei, destacados por Eliane Moreira (2015), a lei não deixa claro quem é o responsável pela obtenção do consentimento livre, prévio e informado, além de apontar meios de prova para demonstrar a obtenção do consentimento que ferem o direito à autodeterminação dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Em suma, a nova lei que regulamenta de forma restritiva a Convenção da Diversidade Biológica no Brasil, além de ferir o direito a consulta prévia dos povos e comunidades tradicionais, em matéria que os afeta diretamente, o que torna o processo legislativo eivado de vício, também ignora que a obtenção do consentimento livre, prévio e informado é resultado do próprio processo consultivo (dever do Estado), conforme dispõe a Convenção n. 169 da OIT, a Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a jurisprudência da Corte Interamericana. 4.2 Megaprojetos: Hidrelétricas e Mineração Atualmente, há investidas do Poder Público em projetos de desafetação de áreas protegidas, ou seja, diminuição nos limites das áreas, o que as tornam bens disponíveis, apropriáveis para atividades lesivas ao meio ambiente. Há cerca de 17 áreas protegidas na área de influência de projetos hidrelétricos previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na Amazônia. Um exemplo de ameaça consumada ocorreu em janeiro de 2012, quando o governo federal reduziu Unidades

de Conservação nos Estados do Pará e Amazonas para permitir a construção de hidrelétricas. Como podemos observar no mapa abaixo.

Fig. 4. Áreas Protegidas da Amazônia potencialmente ameaçadas por projetos hidrelétricos. IMAZON, 2012.

Outro exemplo de “fato consumado” é a construção da UHE Belo Monte na Bacia do Rio Xingu (Pará). As tentativas de negociação em relação à compensação dos impactos socioambientais - as condicionantes que foram estabelecidas para a concessão da licença prévia -

tem sido sistematicamente descumpridas, como

demonstra o Dossiê Belo Monte (ISA, 2015). A

construção

do

megaprojeto

hidrelétrico

sociobiodiversidade amazônica, afetando o curso do rio

afeta

diretamente

a

Xingu (Volta Grande),

gerando impactos que não são suficientemente dimensionados, atingindo povos indígenas, esgotando recursos pesqueiros, com extinção de espécies raras da fauna, vilipendiando os grupos humanos que pertencem àquele território e dependem da natureza para sua sobrevivência. Para os povos Arara e Juruna da Volta Grande do Xingu, os impactos previstos eram ainda maiores: praticamente 80% do rio Xingu será desviado, exatamente no trecho onde estão localizadas as TIs Arara da Volta Grande do Xingu e Paquiçamba. Todos os estudos apontam para uma mudança radical das condições ambientais do local, jogando sombras sobre a vida na região em um futuro próximo. (ROJAS GARZÓN, 2015, p.43)

Outra violação grave cometida se mostra com o deslocamento compulsório de comunidades tradicionais. Assim como impactos diretos no modo de vida dos beiradeiros, extrativistas, ribeirinhos tanto das Reservas Extrativistas da Terra do Meio e de territórios tradicionais ainda mais vulneráveis ao impacto, por não terem sido demarcados como áreas protegidas (unidades de conservação). Medidas que eram previstas nas condicionantes, em termos de infraestrutura social e fornecimento

de serviços básicos, como saúde e saneamento, tem sido descumpridas, revelando-se um cruel descaso. Além da violação dos direitos dos povos indígenas e impacto sobre as áreas protegidas, ampliando o desmatamento, há populações ribeirinhas urbanas que tem sido compulsoriamente deslocadas, o que gera impactos sociais como violência, miséria, insegurança alimentar, desnutrição infantil, infraestrutura precária, ausência de transporte público entre as áreas de reassentamento urbano, ensejando em grave violação da dignidade humana da população afetada por Belo Monte. Em termos das decisões judiciais em âmbito nacional, o avanço da construção da usina de Belo Monte só tem sido possível devido ao instrumento processual da Suspensão de Segurança, criado pela lei 4.348 de junho de 1964, com o intuito de controlar politicamente as decisões judiciais contrárias ao regime militar, esse mecanismo autoritário permite a tribunais suspenderem decisão de instância inferior diante do perigo de “ocorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. (ROJAS; VALLE, 2013) Em 2006, o STF suspendeu decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que determinava que os povos indígenas atingidos pela usina fossem ouvidos, como dispõe a Constituição (art. 231, § 3o) e a Convenção n. 169. “Por meio da Suspensão de Segurança, ignorar ilegalidades passou a ser uma situação de “normalidade institucional”. Com o aval da cúpula do Judiciário, o empreendedor de grandes obras só precisará cumprir as regras estabelecidas se lhe for conveniente. (…) O uso repetido e inescrupuloso do Poder Judiciário pelos interesses governamentais por meio da Suspensão de Segurança leva a crer que a situação irá se repetir em relação às próximas grandes obras planejadas para a Amazônia, como o complexo de usinas do Rio Tapajós”. (ROJAS; VALLE, 2013)

A pressão sobre a região amazônica se repete. Outro megaprojeto, a UHE de São Luiz do Tapajós integra o Complexo Tapajós - conjunto de 07 grandes usinas hidrelétricas projetadas a partir do barramento dos rios Tapajós e Jamanxim, afetando diretamente o povo Munduruku, outro caso de afronta ao direito à consulta prévia. Ambos os casos de Hidrelétricas na Amazônia brasileira e violação ao direito ao consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas foram descritos no ultimo relatório das Nações Unidas (20 de maio de 2015). Não obstante os impactos socioambientais das hidrelétricas, existe um projeto de instalar a 10 km da barragem de Belo Monte exploração de ouro. Projeto da empresa Belo Sun, do grupo canadense Forbes&Manhattan, sendo questionado em Ação Civil Pública, na qual o Ministério Público Federal (MPF) requereu a suspensão

do licenciamento até a realização do Estudo de Impacto Ambiental, ressalvada a participação dos indígenas nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em se tratando de projetos de extração mineral em áreas protegidas, atualmente, são 104 processos titulados e 4.116 interesses minerários que incidem sobre 152 Terras Indígenas localizadas na Amazônia Legal (ISA, 2013). Tramitam no Congresso Nacional, desde 1996, o Projeto de Lei de Mineração em Terras Indígenas (PL 1610/1996) e o Projeto de Lei do novo Código da Mineração (PL n. 5807 de 2013). O Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração repudiou a proposta que propõe que a criação de unidade de conservação, demarcação de terra indígena, assentamentos rurais e definição de comunidades quilombolas dependerão de anuência prévia da Agência Nacional de Mineração (ANM). Ou seja, os interesses de mineração passariam a se sobrepor à proteção da sociobiodiversidade e do uso tradicional das terras pertencentes aos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, violando os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. 5.

Direitos à consulta prévia e ao consentimento livre, prévio e informado A Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)

estabelece o direito à consulta, mediante procedimentos apropriados, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar os povos indígenas e tribais diretamente (art.6). Verifica-se que, em regra, no Brasil, o modelo que tem sido implementado, envolvendo os povos e comunidades tradicionais, não os tem considerado como sujeitos ativos da sua própria trajetória, desmerecendo sua autonomia para promover e decidir as prioridades no processo de desenvolvimento que os afetem, subalternizando seus valores culturais e cosmovisões. Conforme Fajardo (2011), o direito ao consentimento prévio, livre e informado é um direito reforçado de caráter específico que constitui um requisito adicional ao exercício de outros direitos (como a participação ou a consulta prévia) para que o Estado possa tomar uma decisão, quando a matéria em questão possa afetar direitos fundamentais dos povos indígenas e pôr em risco sua integridade. Fajardo nos

orienta pela distinção do consentimento como a “finalidade” de um processo de consulta, do consentimento como “requisito” para que o Estado tome uma decisão. O consentimento como finalidade do processo de consulta significa que o estado deve organizar os procedimentos de tal modo que estejam orientados ao êxito do consentimento ou acordo. Todavia, há outras situações nas quais o consentimento não é só o horizonte ou finalidade de um procedimento, mas que dito consentimento seja um requisito para que o Estado tome uma decisão. Este é o caso de situações previstas normativamente e outras nas quais se pode colocar em risco direitos fundamentais dos povos, como a integridade ou o modo de subsistência. Além das hipóteses previstas na Convenção n. 169 e na Declaração de 2007, em que se deve obter o consentimento prévio, livre e informado, ressaltamos a existência de precedente pela admissibilidade do direito de consentir (e consequentemente

direito

de

“veto”),

conforme

jurisprudência

da

Corte

Interamericana de Direitos Humanos, nos casos de megaprojetos que possam afetar o modo de vida dos povos (como ocorre nos supostos deslocamentos pela construção de represas e certas atividades extrativas). No recente julgado envolvendo o povo Kichwa Sarayaku vs. Equador, a Corte sentencia de forma clara e didática acerca do direito à consulta e seu caráter prévio, fazendo referência ao Comitê de Expertos da OIT. Aborda ainda o requisito da boa fé e a finalidade de se chegar a um acordo e a necessidade de ser uma consulta adequada e acessível aos povos, assim como informada. Reforça ainda a conexão entre o direito à consulta, à propriedade comunal com o direito à identidade cultural. Em outro precedente, caso Saramaka vs. Suriname, a Corte considera que, quando se trate de planos de desenvolvimento ou de intervenção em grande escala que geram um maior impacto dentro do território Saramaka, o Estado tem a obrigação, não só de consultar aos Saramaka, como também deverá obter o consentimento livre, informado e prévio deles, segundo seus costumes e tradições. A Corte considera que a diferença entre “consulta” e “consentimento” nesse contexto requer uma maior análise e cita a interpretação do Relator Especial da ONU, que tem observado, de maneira similar que, sempre que se levem a cabo projetos de grande escala em áreas ocupadas por povos indígenas, é provável que essas comunidades tenham que atravessar mudanças sociais e econômicas profundas que as autoridades competentes não são capazes de compreender, muito menos prever.

Os efeitos principais

compreendem a perda de territórios e terra tradicional, o desabrigo, a migração e o possível reassentamento, esgotamento dos recursos necessários para a subsistência física e cultural, a destruição e contaminação do ambiente tradicional, a desorganização social e comunitária, os impactos negativos sanitários e nutricionais de larga duração, em alguns casos, abuso e violência. 18 Do mesmo sentido, observamos os avanços da Corte Constitucional colombiana ao reconhecer a natureza de direito fundamental do direito à consulta prévia. A Corte colombiana reconhece o direito de consentimento livre, prévio e informado para os casos em que implique: a) em traslado ou deslocamento das comunidades; b) esteja relacionado com armazenamento ou depósito de dejetos tóxicos nos territórios étnicas; c) representem um alto impacto social, cultural e ambiental em uma comunidade étnica; que ponha em risco à existência da mesma. 19 Não é demais lembrar que os direitos culturais e étnicos, porque indissociáveis do princípio da dignidade da pessoa humana, têm o status de direito fundamental (DUPRAT, 2007). No Brasil, no entanto, observa-se a tendência de retrocesso, com uma interpretação restritiva do direito à consulta prévia. Ressalta-se que no caso de Belo Monte, o consentimento livre, prévio e informado dos povos do Xingu possui natureza jurídica de requisito para a construção do megaprojeto hidrelétrico. Todavia, o direito à consulta prévia foi desrespeitado pelo Estado brasileiro e denúncias foram encaminhas à Comissão Interamericana (CIDH), o que resultou na Medida Cautelar n. 388/10 de 2011. 20 Em 1º. de abril de 2011, a CIDH outorgou medidas cautelares a favor dos membros das comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu, Pará, Brasil: Arara de la Volta Grande do Xingu; Juruna de Paquiçamba; Juruna del "Kilómetro 17"; Xikrin de Trincheira Bacajá; Asurini de Koatinemo; Kararaô e Kayapó da terra indígena Kararaô; Parakanã de Apyterewa; Araweté do Igarapé Ipixuna; Arara da terra indígena Arara; Arara de Cachoeira Seca; e as comunidades indígenas em isolamento voluntario da bacia do Xingu, alegando que a vida e integridade pessoal dos beneficiários estaria em risco pelo impacto da construção da usina hidroelétrica Belo                                                                                                                 18

Corte IDH. Caso Saramaka vs. Surinam, 2007; Interpretação da Sentença de 28 de novembro de 2007; e Corte IDH. Caso Pueblo Kichwa Sarayaku vs. Ecuador, 2012. 19  Sentenças da Corte Constitucional da Colômbia: SU-039 de 1997; C- 366 de 2011; T-129 de 2011; T-376 de 2012; T-172 de 2013; C-253 de 2013.   20 CIDH. MC n. 388/10. Caso UHE Belo Monte. Comunidades Indígenas de la Cuenca del Río Xingu, Pará, Brasil.

Monte. A CIDH solicitou ao Governo do Brasil suspender imediatamente o processo de licença do projeto de Hidroelétrica Belo Monte e impedir a realização de qualquer obra material de execução até que se observem condições mínimas, entre elas, realizar processos de consulta, em cumprimento das obrigações internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, libre, informada, de boa fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de chegar a um acordo. 21 O Estado Brasileiro, além de descumprir a medida cautelar pela suspensão imediata do processo de licenciamento da construção da UHE Belo Monte, manteve uma postura de retaliação à Organização dos Estados Americanos (OEA), não efetuando o pagamento de sua cota anual para manutenção da organização internacional e retirando a indicação da candidatura brasileira à vice-presidência da CIDH. A postura do Estado Brasileiro perante as recomendações dos organismos internacionais nos confirma as tensões entre a defesa dos direitos humanos, direitos dos povos indígenas e tradicionais e o discurso prevalente da soberania e interesse nacional, tanto perante à OEA (CIDH), quanto à OIT (2013) e ONU (2015), que nos últimos informes têm destacado as violações ao direito ao consentimento livre prévio e informado dos povos indígenas nos casos de megaprojetos hidrelétricos na Amazônia brasileira (Belo Monte e Tapajós).22 6. Reflexões finais Em termos de direitos étnicos, a consulta prévia é um direito fundamental. É pressuposto para a efetivação do direito à livre determinação dos povos e manutenção de suas próprias instituições diante de modelos de desenvolvimento que os afetem. Desse modo, a usurpação dos direitos territoriais dos povos amazônicos significa usurpação também de seus direitos culturais e de sua organização social própria, sua identidade coletiva, seus modos próprios de ser, de fazer e de viver. As violações dos direitos étnicos no Brasil tem ocorrido tanto em âmbito dos atos legislativos, quanto administrativos. A Lei 13.123 de 2015 representa um retrocesso na regulamentação da biosociodiversidade no Brasil, ao violar o direito à                                                                                                                 21

CIDH. MC 382/10, 2011. OIT. Informe de la Comisión de Expertos en Aplicación de Convenios y Recomendaciones. Informe III (Parte 1A). OIT. Conferencia Internacional del Trabajo, 101.ª reunión, 2012; Informes OIT 2013 e 2014; ONU. Human Rights Council, Twenty-nine session. Promotion and protection of all human rights, civil, political, economic, social and cultural rights, including the right to development. Hydroelectric dams and violations of indigenous peoples’ rights to free, prior and informed consent in de Brasilian Amazon [ONU, 22 May 2015].

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consulta prévia, direito ao consentimento livre, prévio e informado e à repartição justa e equitativa de benefícios sobre o acesso e uso do patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados. O modelo desenvolvimentista predatório perverso adotado pelo Brasil com megaprojetos hidroelétricos na bacia amazônica e projetos de extração mineral em áreas protegidas, além de impactar a biodiversidade amazônica, viola os direitos fundamentais de povos étnicos, gerando impactos socioambientais incomensuráveis em âmbito regional. A ausência de consulta prévia aos povos amazônicos, faz com que as licenças dos empreendimentos e projetos que afetam a Amazônia estejam eivadas de vício formal. E para além da formalidade procedimental, a consulta prévia deverá ensejar o empoderamento local, em termos de participação e soberania popular sobre as alternativas ao modelo de desenvolvimento predatório proposto para a região amazônica. De modo que, ao mirarmos a prudência do reconhecimento dos Estados Plurinacionais (Bolívia e Equador), nos caminhos da interculturalidade e na busca de um convívio harmônico com os diferentes povos e nações, respeitando os direitos da natureza (derechos de Pachamama/ derechos de Madre Tierra), aspiramos como uma via possível em termos de um futuro em que os Estados da Pan-Amazônia democraticamente optem por sua conservação. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8, Fundação Universidade do Amazonas, 2008. p. 84-5. ANAYA, James. Una cuestión fundamental: el deber de celebrar consultas. In: Informe del Relator Especial sobre la situación de los derechos humanos y las libertades fundamentales de los indígenas. ONU. Asamblea General. Consejo de Derechos Humanos. 12º período de sesiones, Tema 3 de la agenda. 2009. p. 12-20. ARIZA SANTAMARÍA, Rosembert. Pueblos indígenas de Colombia ante el Sistema Interamericano de Derechos Humanos / Rosembert Ariza Santamaría. —Bogotá: Editorial Universidad del Rosario – Fundación Konrad Adenauer, 2013. CARTA DE COBIJA. La Unidad de los Pueblos de la Amazonía para transformar el Mundo. Carta de Cobija, 01 de dezembro de 2012, VI Fórum Social Pan-Amazônico. Disponível em: https://foropanamazonico.wordpress.com/cartas-2/. Acesso em 10 de julho de 2015.

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