Direitos humanos de crianças e adolescentes e políticas públicas

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Descrição do Produto

André Viana Custódio Felipe da Veiga Dias Suzéte da Silva Reis Organizadores

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e Políticas Públicas

ISBN 978-85-8443-007-9

Multideia Editora Ltda. Rua Desembargador Otávio do Amaral, 1553 80710-620 Curitiba - PR +55(41) 3339-1412

[email protected]

Conselho Editorial Marli Marlene M. da Costa (Unisc) Salete Oro Boff (Unisc/IESA/IMED) Carlos Lunelli (UCS) Clovis Gorczevski (Unisc) Fabiana Marion Spengler (Unisc) Liton Lanes Pilau (Univalli) Danielle Annoni (UFSC)

Luiz Otávio Pimentel (UFSC) Orides Mezzaroba (UFSC) Sandra Negro (UBA/Argentina) Nuria Bellosso Martín (Burgos/Espanha) Denise Fincato (PUC/RS) Wilson Engelmann (Unisinos) Neuro José Zambam (IMED)

Coordenação editorial e revisão: Fátima Beghetto Projeto gráfico, diagramação e capa: Sônia Maria Borba Foto da capa: © Depositphotos.com / luismolinero

CPI-BRASIL. Catalogação na fonte C987

Custódio, André Viana (org.) Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e Políticas Públicas [recurso eletrônico] / organização André Viana Custódio, Felipe da Veiga Dias, Suzéte da Silva Reis – Curitiba: Multideia Editora, 2014. 212 p.; 21 cm ISBN 978-85-8443-007-9 1. Direitos humanos 2. Políticas públicas. 3. Crianças – Direitos humanos. I. Dias, Felipe da Veiga (org.). II. Reis, Suzéte da Silva (org.). III. Título CDD 342(22.ed.) CDU 342.7 É de inteira responsabilidade do autor a emissão de conceitos. Autorizamos a reprodução dos conceitos aqui emitidos, desde que citada a fonte. Respeite os direitos autorais – Lei 9.610/98.

André Viana Custódio Felipe da Veiga Dias Suzéte da Silva Reis Organizadores

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e Políticas Públicas Autores Aline Casagrande Ana Paula Cordeiro Krug André Viana Custódio Bruna Walker Felipe da Veiga Dias Felipe Jappe de França Gláucia Gonçalves Rodrigues Gustavo Kist Ismael Francisco de Souza Josiane Rose Petry Veronese

Lívia Copelli Copatti Luciana Rocha Leme Matheus Silva Dabull Nancy C. P. da Fonseca da S. M. Djata Patrícia Adriana Chaves Priscila Menezes Rafael Bueno da Rosa Moreira Rodrigo Flores Fernandes Suzéte da Silva Reis

Curitiba

2014

Conserto no Concerto A música exerce sobre a alma Uma dupla função: Permite que a alma toque o divino e ao mesmo tempo permite que o corpo toque a alma. O corpo ao tocar a alma Revigora-se, Transfigura-se Ilumina-se. O conserto no concerto a restauração de nossa humanidade dividida por vezes dilacerada. A música nos habita sacia no coração a sede de transcendência, simplesmente, o conserto no concerto. (Josiane Rose Petry Veronese)

APRESENTAÇÃO

A

presente obra é organizada pelo professor pesquisador Dr. André Viana Custódio e pelos doutorandos Suzéte da Silva Reis e Felipe da Veiga Dias, vinculados à linha de pesquisa Direitos Sociais e Políticas Públicas do Programa de Pós-graduação em Direito, Mestrado e Doutorado, da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. O livro contém textos que versam sobre temáticas relacionadas ao trabalho infantil e suas consequências no desenvolvimento físico, psíquico e social dos infantes que a ele estão submetidos. Aborda ainda, aspectos socioculturais sobre a redução da menoridade penal e a problemática do bullying escolar.

Embora privilegie em seus capítulos leituras diversificadas, esta obra é unida por um tema comum, que é o fio condutor da tessitura dos seus textos: os desafios da interpretação das normas jurídicas e, especialmente, das normas constitucionais frente à imperiosa necessidade de efetivação dos direitos humanos e fundamentais dos infantes e suas famílias que vivem em situação de vulnerabilidade social. No decorrer da leitura, constata-se que os autores fazem uma análise sobre o conjunto de ações articuladas e integradas que estão previstas nos direitos da criança e do adolescente no âmbito brasileiro e dos tratados internacionais sobre a temática, incluindo regras de proteção contra a exploração do trabalho infantil, referem ainda que, no Brasil, começou-se aos poucos a assimilar uma nova cultura jurídica e social em que o lugar de criança é na escola,

8 Profa. Dra. Marli M. M. da Costa – apresentação

sendo dever da família, da sociedade e do Estado zelar com absoluta prioridade pelos seus interesses e bem--estar. A proteção aos direitos dos infantes está prevista no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e envolve a erradicação da mão de obra infantil prevista no artigo 7º, inc. XXXIII, atualizado pela Emenda Constitucional 20/98.

Os textos apresentados demonstram a sensibilidade dos autores em diagnosticar, compreender e enfrentar os problemas sociais envolvendo crianças e adolescentes, dedicando suas pesquisas e seus estudos na busca de formas alternativas para solucioná-los. Em tempos de profundas transformações sociais, significa acenar para a possibilidade de um mundo melhor, mais inclusivo e igualitário, capaz de proporcionar a tão almejada efetivação dos direitos sociais dos infantes que se encontram em condições desprovidas de dignidade humana. É inegável que em sociedades complexas como as atuais, ampliar as condições de organização, das mais diversas formas e com os mais diversos focos, é fundamental para alargar as condições de emergência das demandas dos direitos humanos. Está havendo uma aceleração do espaço-temporal em consequência dos problemas demandados das rápidas transformações das instituições e dos modos de convivências tradicionais, do impacto transformador das comunicações e das novas tecnologias, que acabaram por intensificar uma crise nos direitos de cidadania e seu compromisso com a efetivação dos direitos dos infantes. As políticas públicas implementadas para melhorar suas condições de vida mostram que o aumento mundial da pobreza, da violência e da desigualdade social, entre outros, são fatores que dificultam a efetivação dos seus direitos humanos e fundamentais.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 9 e Políticas Públicas

Pensar democraticamente não é algo simples, e a criação de uma sociedade democrática passa pela capacidade de preparar nossas crianças e adolescentes para o exercício da cidadania. Vale lembrar que uma obra não esgota um tema, mas, sim, alcança conhecimentos necessários para uma profícua reflexão, capaz de despertar no leitor o interesse pelo prosseguimento no estudo e pela pesquisa na área, e na busca constante de conhecimento.

As temáticas abordadas neste livro expressam um olhar cuidadoso e a inquietação do Grupo de Pesquisa Direitos da Criança e do Adolescente e Juventude com as questões sociais carentes de solução. Neste exemplar, os autores, gentilmente, dividem conosco parte dos seus conhecimentos e suas seletas pesquisas, enriquecendo, dessa forma, nossos saberes. Fica o convite para a leitura desta bela obra, a fim de refletirmos acerca de temas instigantes e que trazem um olhar diferenciado sobre questões que nos cercam e, muitas vezes, nos afligem. Boa leitura a todos.

Santa Cruz do Sul, julho de 2014.

Profa. Dra. Marli M. M. da Costa

Com Pós-Doutorado em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Burgos/Espanha - com Bolsa Capes Coordenadora do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC (www.unisc.br) OAB/RS - 35192 Psicóloga - CRP/RS- 07/08955 Lattes - http://lattes.cnpq.br/2928694307302502

SUMÁRIO

UNIDADE I ESTUDOS SOBRE TRABALHO INFANTIL TRABALHO INFANTIL ARTÍSTICO: a ilegalidade oculta pelos mitos culturais............................................................................................. 15 André Viana Custódio Patrícia Adriana Chaves TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO: a exploração que começa no lar............................................................................................... 27 Bruna Walker Suzéte da Silva Reis A PROTEÇÃO CONTRA A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL E SEUS REFLEXOS NO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS) NO BRASIL..................................................................................... 41 Ismael Francisco de Souza Luciana Rocha Leme O TRABALHO INFANTIL NO MERCOSUL: a cooperação regional para a erradicação do trabalho infantil..................................................... 67 Ana Paula Cordeiro Krug Rafael Bueno da Rosa Moreira

UNIDADE II ESTUDOS SOBRE VIOLÊNCIA CRIANÇAS EM GUINÉ-BISSAU: é possível a criação de um instrumento jurídico interno fundamentado na doutrina da proteção integral?....................................................................................... 83 Josiane Rose Petry Veronese Nancy C. P. da F. da S. Monteiro Djata

12 André Viana Custódio; Felipe da Veiga Dias & Suzéte da Silva Reis - organizadores

O USO DE CASTIGOS CORPORAIS COMO MÉTODO DE EDUCAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE....................... 103 André Viana Custódio Felipe da Veiga Dias Gustavo Kist BULLYING E A VIOLAÇÃO AO DIREITO À EDUCAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE............................................................. 115 Gláucia Gonçalves Rodrigues Lívia Copelli Copatti A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE PAIS CONTRA FILHOS: apontamentos sobre a história, políticas públicas e a proteção jurídica da criança e do adolescente......................................................... 151 Gustavo Kist Luciana Rocha Leme O HIPERDIRECIONAMENTO MIDIÁTICO NA INTERNET DA “CRIMINALIDADE INFANTIL”: dados da estigmatização de crianças e adolescentes pela nova mídia digital.................................. 165 Felipe da Veiga Dias Priscila Menezes ASPECTOS SOCIOCULTURAIS SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ..................... 181 Felipe Jappe de França Matheus Silva Dabull

UNIDADE III POLÍTICAS PÚBLICAS ESTATUTO DA JUVENTUDE E ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: políticas públicas conflitivas ou dupla proteção?....... 199 Aline Casagrande Rodrigo Flores Fernandes

UNIDADE

I

ESTUDOS SOBRE TRABALHO INFANTIL

Capítulo 1

T

RABALHO INFANTIL ARTÍSTICO: a ilegalidade oculta pelos mitos culturais

André Viana Custódio Pós-Doutor em Direito na Universidade de Sevilla/Espanha (2012), Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006), Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002), Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Professor permanente nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul, Colaborador externo do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC), Pesquisador do Grupo Políticas Públicas de Inclusão Social (UNISC) e Coordenador do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA/UNISC), Coordenador do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo CNPq. Fellow da Ashoka Empreendedores Sociais. Foi Coordenador Executivo do Instituto Ócio Criativo, Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, do Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome e da Organização Internacional do Trabalho.

Patrícia Adriana Chaves Graduanda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social da Universidade de Santa Cruz do Sul. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis” (CNPq).

16 André Viana Custódio & Patrícia Adriana Chaves

1 INTRODUÇÃO O tema do presente estudo é o trabalho infantil de crianças e adolescentes no Brasil; já o objetivo geral vai debater um assunto que passa despercebido aos olhos da maioria da população, que é a atuação de crianças e adolescentes em trabalhos artísticos. Tais atividades, em um primeiro momento, causam grande admiração e encantamento, mas, na verdade, esconde ou mascara a ilegalidade do trabalho infantil, confrontando com a atual Constituição brasileira e os tratados ratificados pelo Brasil que buscam erradicar essa prática. Os objetivos específicos são averiguar a existência de um regime jurídico definido acerca da criança-artista; estudar os dados estatísticos do trabalho infantil no Brasil e analisar as consequências da participação de criança e adolescente em trabalhos artísticos.

A pesquisa busca questionar se há um regime jurídico definido acerca da criança-artista em conformidade com a Teoria da Proteção Integral. A metodologia utilizada é a dedutiva, partindo de premissas gerais para as específicas, e, como técnicas de procedimento, o monográfico, o histórico e o estatístico, utilizando bases teóricas e fundamentadas no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Teoria da Proteção Integral (expressamente prevista no texto constitucional brasileiro), utilizando-se como base teórica, as leis e tratados já existentes.

Percebe-se que o Brasil, apesar de ter ratificado tratados internacionais pela erradicação de toda e qualquer forma de trabalho infantil e ter estabelecido um estatuto específico sobre a proteção desses direitos, ainda não cumpre, na integralidade, esses ditames, o que demonstra que o trabalho infantil não só é uma afronta à Constituição Federal brasileira, como também inadmissível, dado os malefícios causados no desenvolvimento daqueles que exercem atividades profissionais antes da idade legal apropriada. Já a participação de crianças e adolescentes em trabalhos artísticos é um assunto ainda novo no País e, embora visível diariamente nos meios de comunicação, não é considera-

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do pela maioria da sociedade como trabalho propriamente dito, já que sempre se relacionou trabalho infantil a algo penoso, sujo e de pouca remuneração, como é o caso dos lixões; já o trabalho artístico é transmitido pela imagem de algo próspero, de uma vida realizada e feliz, com fama e dinheiro. Isso acontece pelo simples motivo de que a mesma empresa que contrata é a que divulga essa atividade e, portanto, distorce a realidade. Com isso, acaba atraindo olhares de inúmeros pais que buscam sair da miséria, e acabam por incentivar seus filhos desde muito jovens a trabalharem no ramo, transferindo a responsabilidade que lhes cabe do sustento da família.

2

O APARATO JURÍDICO BRASILEIRO E A PROTEÇÃO À CRIANÇA-ARTISTA

Entender o trabalho infantil como algo maléfico para o desenvolvimento da criança é uma tarefa ainda desafiadora em um país que possui uma cultura em que o trabalho é salvacionista, como no Brasil. Os diversos mitos referentes ao trabalho infantil, como, por exemplo, “trabalhar é melhor do que roubar” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 18), ainda são muito debatidos dentro da sociedade e esclarecidos pelos pesquisadores e especialistas da área. A atual atenção dedicada às crianças e aos adolescentes, conferida por leis específicas de proteção, bem como pelo entendimento de serem estes seres íntegros e com necessidades especiais para o seu pleno desenvolvimento, é uma visão ainda inovadora em um país que utilizou da mão de obra infantojuvenil por muito tempo, calçado em leis que criminalizavam aqueles que deveriam proteger.

A consolidação do binômio delinquência-trabalho foi o viés pelo qual as políticas institucionais foram consolidadas e gradativamente orientadas para o absoluto controle social através da institucionalização, ou seja, a criminalização daqueles caracterizados como “menores”. Portanto,

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a resposta através das práticas de imposição de trabalhos, em sua maior parte forçados, foi a solução republicana para o problema da menoridade. (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 43)

Para entender um pouco melhor isso, faz-se necessário discorrer sobre a histórica negligência sofrida por essas crianças, que por muito tempo sequer tiveram qualquer tipo de sentimento voltado para elas; eram vistas como pouco mais que animais (CHAMBOULEYRON, 2004). Devido serem muito frágeis e não poderem trabalhar, acabavam por não ter valor algum e, quando morriam, eram facilmente substituídas por uma nova criança. Os primeiros registros da palavra criança são de 1830, aparecendo associada ao ato da criação, a “cria” da mulher, pelo ato da amamentação (MAUAD, 2004, p. 140). A ideia de infância surge mesmo no século XIX, definindo a infância “por envolver uma distinção entre a capacidade física e intelectual” (CUSTÓDIO, 2009, p. 15); repleta de negatividade, a criança era vista por aquilo que não sabia. Com o fim da escravidão, essa imagem se intensifica, pois os filhos libertos dos escravos, sem terem para onde ir, acabavam perambulando pelas ruas e, muitas vezes, cometendo pequenos furtos para se alimentarem, o que desagradava aos olhos da sociedade elitista da época. Criam-se então, nessa fase, muitos rótulos, usados até os dias atuais, referentes a essas crianças, os chamados “menores de rua” ou “menores infratores”. Mais uma vez, rotula-se a criança ao invés de dar-lhe assistência. Desta forma, para que houvesse higienização nas ruas, cria-se o Código de Menores, que vai punir aqueles que não trabalham. Logo, surge a ideia de que trabalhar é a única forma de a criança ser um adulto honesto.

A extinção do Código de Menores só vem a acontecer com a Constituição Federal brasileira de 1988. É nesse momento que a criança e o adolescente deixam de ser os “menores infratores” e passam a ter sua dignidade garantida por lei. O Estado, a família e a sociedade devem ser seus protetores, zelando pelo seu desenvol-

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vimento. Essa nova linha de pensamento, conhecida como “Teoria da Proteção Integral”, foi um reflexo da influência internacional, já que a Revolução Industrial fez com que as primeiras leis de proteção contra o trabalho infantil fossem criadas (BARROS, 2001), e a evolução nas leis trabalhistas se deram a partir de então. Em 1919, com a Conferência da Paz, no Palácio de Versalhes, foi criada a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que desde então dedica especial atenção à eliminação do trabalho infantil e à proteção do adolescente trabalhador. Já em 1945 foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU) e em 1948, a Declaração Universal de Direitos Humanos, desempenhando um importante papel para o desenvolvimento dos direitos humanos em todo o mundo. Essa evolução fez com que, em 1959, a ONU estabelecesse a Declaração dos Direitos da Criança, reconhecendo o direito à Proteção Integral (CAVALCANTE, 2011, p. 31). Pode-se dizer que o Brasil recepcionou essa nova teoria de proteção integral à criança e ao adolescente no seu artigo 227 da Constituição de 1988: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

E estabeleceu idade mínima de trabalho para adolescentes no inciso XXXIII do artigo 7º: Art. 7º [...]

XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos;

20 André Viana Custódio & Patrícia Adriana Chaves

No entanto, ainda há um número elevado de crianças trabalhadoras no Brasil, em diversas áreas, como na agricultura, nos lixões, como vendedores ambulantes, no âmbito doméstico, entre muitas outras atividades. No presente estudo, será dada ênfase ao trabalho da criança-artista na televisão, algo cotidiano nos meios de comunicação, visíveis aos olhos e invisíveis à consciência da maioria das pessoas. Para melhor análise dessa atividade, é necessário lembrar que o deslumbramento causado pela mídia acaba por mascarar o trabalho da criança na televisão, escondendo o fato de ser algo prejudicial. Muitas são as famílias que incentivam seus filhos a atuarem como atores, já que a remuneração nessa atividade é mais elevada do que nas demais formas de exploração infantil, sendo, inclusive, considerada uma atividade de classe social elevada, o que seduz ainda mais a faixa mais pobre da população. A carga horária exaustiva, em que repetidas vezes se reproduz a mesma cena para que se alcance o esperado ótimo desempenho, bem como as extensas horas de trabalho que acabam por fazer com que muitos atores mirins cancelem suas matrículas nas escolas e optem por professores particulares para seguirem seus estudos, são alguns exemplos de que essa é, sem dúvida, uma forma de trabalho infantil. Deve-se ainda levar em conta as gravações noturnas e o peso da responsabilidade de terem sucesso e transformarem a vida de seus familiares. Estes são alguns aspectos que caracterizam não apenas os malefícios psicológicos, como a “adultização” dessas crianças que, ao serem inseridas precocemente neste ambiente, acabam por perderem boa parte do seu desenvolvimento lúdico, por sinal, também previsto no atual ordenamento jurídico,

O importante aqui é descrever o que se vivencia nestes ambientes: crianças entediadas por longas esperas, tratadas com falta de respeito e impaciência por alguns funcionários de agências, mães que se calam e suportam o tratamento inadequado consigo e seus filhos em troca de roupas e do sonho de ser famoso!

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Além da irregularidade no que tange à idade desses atores infantojuvenis, pois a legislação brasileira determina a idade mínima de trabalho aos 16 anos, como já citado, há também atividade noturna, que só poderia ser realizada por maiores de 18 anos, demonstrando mais uma ilegalidade no exercício laboral dessas crianças em programas televisivos.

Lembramos que as normas de proteção aos direitos humanos estão sujeitas ao princípio da progressividade, ou seja, uma vez reconhecidas no ordenamento constitucional, não podem ser reduzidas, mas, tão somente, ampliadas. Há, porém, exceção dessas proibições, decorrente do texto do artigo 8º da Convenção 138 da OIT: Artigo 8º

1. A autoridade competente, após consulta com as organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas, se as houver, podem, mediante licenças concedidas em casos individuais, permitir exceções à proibição de emprego ou trabalho disposto no artigo 2º desta Convenção, para fins tais como participação em representações artísticas. 2. Permissões dessa natureza limitarão o número de horas de duração do emprego ou trabalho e estabelecerão as condições em que é permitido.

Acontece que a exceção mencionada no artigo 8º da Convenção não foi recepcionada no ordenamento brasileiro (o texto do Decreto 4.134, de 15 de fevereiro de 2002, estabelece a idade mínima para admissão a emprego ou trabalho em dezesseis anos) e, portanto, não cabe, no Brasil, exceções para qualquer forma de trabalho infantil, tornando a participação de crianças e adolescentes menores de 16 anos, em programas artísticos, ilegal e inconstitucional. Porém, muitas autorizações judiciais são fornecidas, para que tais práticas aconteçam fundamentadas, erroneamente, nesse artigo.

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Nos anos de 2005 a 2010, juízes e promotores da infância e da juventude e do trabalho concederam mais de 33 mil autorizações de trabalho, a jovens com menos de 16 anos (RODRIGUES; AGÊNCIA BRASIL, 2013). Felizmente, os últimos dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais) indicam que houve uma redução de 58% nessas autorizações judiciais de trabalho concedidas para crianças ou adolescentes, em comparação a 2010. No total, foram concedidas 3.134 autorizações em 2011. Em 2010, constatou-se a liberação de 7.421 casos (RODRIGUES; AGENCIA BRASIL, 2013). Embora tenha havido a redução, os números ainda são altos e ferem o princípio da dignidade da pessoa humana e a proteção da criança e do adolescente, transformando as autorizações em verdadeiras violações constitucionais.

3

A META DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL NO BRASIL E OS MALEFÍCIOS DESTA PRÁTICA

O Brasil, juntamente com a OIT, tem como meta erradicar até 2016 as piores formas de trabalho infantil, e até 2020 todas as formas. Os índices têm demonstrado que o número de crianças e adolescentes ocupadas vem diminuindo, todavia, a passos lentos. No último levantamento realizado no censo de 2010, cujos números foram divulgados em 2011 e 2012, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), alguns dados são significativos para um melhor entendimento sobre a situação de crianças e adolescentes no País. Com eles é possível analisar alguns pontos importantes para manutenção desta prática.

Segundo o censo, em 2011, o País possuía uma população de 195,2 milhões de brasileiros; desses, 56,2 milhões se situam na faixa etária de 0 a 17 anos. No que se refere ao trabalho infantil, os dados demonstram uma redução: em 2009 eram 4,3 milhões de crianças e adolescentes trabalhadoras, conforme o PNAD 2011, sendo que os números atuais são de 3,7 milhões na faixa etária

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de 5 a 17 anos de idade. Desses, 89 mil crianças com idade de 5 a 9 anos estão em situação de trabalho; 615 mil com idade entre 10 a 13 anos, e a maioria, 3,0 milhões, com idade de 14 a 17 anos. O censo também identificou que o número de meninos trabalhadores é maior que o de meninas, como já havia sido comprovado em outros anos: 2.242 milhões de meninos e 1.232 milhões de meninas (IBGE, PNAD 2011). Tais dados confirmam o quanto a exploração da mão de obra infantil ainda é utilizada no Brasil. A desigualdade social é um dos grandes fatores que fortalecem a prática do trabalho infantil. Conforme o IBGE, famílias de baixa renda têm redução na escolaridade e inserção mais rápida dos adolescentes no mercado de trabalho, sendo esses, muitas vezes, os principais mantenedores da família. Cabe ressaltar que o número de negros e pardos trabalhadores, dentro dessa faixa etária, também é mais elevado comparativamente aos de pessoas autodeclaradas branca.

Percebe-se com isso que a desigualdade social ainda é um dos fatores mais relevantes no que diz respeito ao trabalho infantil, tornando as famílias de baixa renda um alvo fácil para mídia, que utiliza todo o seu poder sobre a população brasileira para distorcer a ideia de que o trabalho artístico não é trabalho, e sim sinônimo de sucesso e riqueza, ocultando os problemas acarretados com essa atividade.

Alguns casos famosos de crianças podem ser usados para a melhor compreensão dos problemas que podem ocasionar a inserção precoce de crianças e adolescentes nesse meio.

A menina Maísa se tornou apresentadora de um programa diário, antes mesmo dos 5 anos de idade. Exposta publicamente, teve crises de choro, ao vivo, durante um programa em que debatia com seu patrão, e mesmo com a intervenção do Ministério Público Federal de São Paulo e a consequente cassação da licença por parte da Vara da Infância e Juventude de Osasco, a decisão foi lamentada pela sua família, o que demonstra como a mídia influencia o imaginário da população brasileira. Apesar de a me-

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nina estar abalada psicologicamente, os pais de Maísa não compreenderam a dimensão do problema do trabalho na infância de sua filha, visto que o deslumbramento causado pelo trabalho na televisão acaba por fazer com que a família e a própria sociedade não vejam os malefícios da precoce trajetória de uma criança no mercado de trabalho.

A responsabilidade de se manter famoso é um peso até mesmo para os adultos que trabalham nesse ramo, o que dizer de uma criança ou adolescente em fase de desenvolvimento? A participação desses seres peculiares em qualquer atividade de trabalho já é um problema a ser enfrentado, todavia, uma prática profissional que interfere diretamente no imaginário e no psicológico de uma criança trará consequências apenas a médio e longo prazo, e talvez essa seja a grande dificuldade para famílias de crianças artistas entenderem os problemas de tal prática. Em contrapartida, as autorizações judiciais concedidas para que crianças trabalhem é a prova do descaso do próprio Judiciário para com a proteção concedida a crianças e adolescentes. No que diz respeito às autorizações relacionadas exclusivamente ao meio artístico, esses números ainda não são exatos, mas o que se percebe, ao assistir diariamente as telenovelas e programas de televisões em geral, é que não são poucas as crianças inseridas em tal meio, o que comprova que a cultura do trabalho como meio de formação de caráter ainda permanece até mesmo na mente daqueles que deveriam proteger a Constituição Federal, o Judiciário brasileiro.

4 CONCLUSÃO

É necessário que se compreendam os problemas gerados com o trabalho infantil, em todas as esferas. Não há nenhum modo de exploração de crianças e adolescentes que possa ser benéfico para o futuro deles, muito embora ainda esteja muito

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 25 e Políticas Públicas

arraigada no País a cultura salvacionista do trabalho, e a mídia reforça a ideia de que a inserção dos infantes no meio artístico é uma maneira de formação profissional e cultural.

O trabalho infantil no meio artístico não é legalizado, nem tampouco existem leis que permitam tal prática, como afirmam alguns. A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente deixam explícitas as regras referentes à participação destes em qualquer atividade remunerada, qual seja, a proibição de tais atividades, como já mencionado no presente capítulo. Portanto, as autorizações judiciais fornecidas para viabilizar essa prática ferem a Constituição Federal, e principalmente toda a luta em prol da erradicação do trabalho infantil.

REFERÊNCIAS

BARROS, Alice Monteiro de. O trabalho do menor e as inovações introduzidas pela Lei 10.970/2000. Revista Tribunal Superior do Trabalho, Brasília, v. 67, n. 1, jan./mar. 2001. CAVALCANTE, Sandra Regina. Trabalho Infantil Artístico: do deslumbramento à ilegalidade. São Paulo: LTr, 2011. CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

CUSTÓDIO, André Viana. Direito da criança e do adolescente. Criciúma: Unesc, 2009. CUSTÓDIO, André Viana; VERONESE, Josiane Rose Petry. Crianças Esquecidas: o trabalho infantil doméstico no Brasil. Curitiba: Multidéia, 2009.

IBGE. PNAD 2011. Disponível em: ˂ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_ e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_ anual/2011/Sintese_Indicadores/comentarios2011.pdf˃. Acesso em: 27 maio 2013. MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças de elite durante o Império. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2004.

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RODRIGUES, Alex. Autorizações judiciais para o trabalho infantil são inconstitucionais, afirma Maria do Rosário. Agência Brasil. Disponível em: ˂http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-10-27/autorizacoes -judiciais-para-trabalho-infantil-sao-inconstitucionais-afirma-maria-do -rosario˃. Acesso em: 05 abr. 2013.

RODRIGUES, Alex. Autorizações judiciais para o trabalho reduzem 58% em um ano. Agência Brasil. Disponível em: ˂http://www.bra sil.gov.br/ noticias/arquivos/2012/10/02/autorizacoes-judiciais-para-trabalho -infantil-reduzem-58-em-um-ano˃. Acesso em: 08 abr. 2013.

Capítulo 2

T

RABALHO INFANTIL DOMÉSTICO: a exploração que começa no lar

Bruna Walker Graduanda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), integrante do Grupo de Estudos “Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens” e do Núcleo de Pesquisa “Políticas Públicas de Inclusão Social”, da Universidade de Santa Cruz do Sul. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis” (CNPq).

Suzéte da Silva Reis Doutoranda em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Mestre em Direito – Área de Concentração Políticas Públicas de Inclusão Social, pela mesma Universidade, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Membro do Grupo de Estudos “Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens”, vinculado ao Grupo de Pesquisa “Políticas Públicas de Inclusão Social”, da Universidade de Santa Cruz do Sul. Advogada. Especialista em Direito do Trabalho, Previdenciário e Processo do Trabalho. Professora de Direito do Trabalho da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professora de cursos de especialização em diversas instituições de ensino superior. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infanto-juvenis” (CNPq).

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1 INTRODUÇÃO O tema do presente capítulo é a exploração do trabalho infantil doméstico no Brasil, e tem como objetivo geral apresentar algumas das características da exploração do trabalho infantil doméstico em casa de terceiro ou no seio da própria família. Como objetivos específicos pretendem-se analisar o contexto do trabalho infantil doméstico, estudar a proteção jurídica existente contra a exploração do trabalho infantil e analisar as políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil doméstico no Brasil contemporâneo. O método de abordagem utilizado é dedutivo, com marco teórico na teoria da proteção integral, e o método de procedimento monográfico com técnicas de pesquisa bibliográfica e documental. Apesar da preocupação com a exploração do trabalho infantil no âmbito doméstico e das diversas formas para combatê-lo, ainda se observa que efetivamente há poucas iniciativas concretas. Ademais, percebe-se que é incipiente a conscientização das famílias sobre trabalho infantil doméstico. Os aspectos apontados neste capítulo versam sobre a exploração de crianças e adolescentes em trabalhos domésticos, e as dificuldades de serem combatidos porque são realizados às escondidas nos próprios lares, pelos mais diversos municípios e regiões brasileiros. O estudo visa também ressaltar que essa prática traz enormes prejuízos às crianças. Por outro lado, é imperioso analisar a legislação sobre a proteção de crianças e adolescentes com vistas a combater a prática dessa exploração, bem como buscar formas para sua erradicação.

Muita se fala em trabalho infantil doméstico, razão pela qual se faz necessário analisar as medidas de proteção que existem, a sua eficácia e efetividade, e ainda sugerir outras medidas que sejam eficientes e eficazes no combate ao trabalho infantil. Da mesma forma, é preciso verificar se as políticas públicas implementadas dão conta de tamanha complexidade para efetivamente auxiliar no combate e exploração do trabalho infantil doméstico.

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BREVE HISTÓRICO

O trabalho infantil doméstico é de longa data, porém pode-se aferir que o marco inicial está associado ao período escravocrata, quando era comum e amplamente aceitável que crianças ajudassem seus pais escravos nos afazeres e até mesmo que servissem de brinquedo para os filhos dos seus senhores.

As crianças empobrecidas brincavam ou eram os próprios brinquedos dos meninos da casa grande, dos pequenos senhores; relação considerada como indispensável na construção das relações de lealdade entre senhor e escravo, convivendo no espaço doméstico e compartilhando as vivências do cotidiano, mas sempre situado na condição de submissão e devedor da caridade prestada pela família, elemento legitimador da exploração de sua mão-de-obra infantil, no espaço doméstico. (CUSTÓDIO, 2006, p. 33)

Além da exploração, a educação das crianças oriundas das camadas mais empobrecidas da população foi negligenciada – enquanto os filhos das elites aprendiam várias disciplinas e diversos conteúdos, aos filhos das camadas mais pobres era ministrado somente o essencial: rudimentos de leitura, escrita e cálculos. A proteção era precária, ou praticamente inexiste, pois os modelos higienistas e de controle social da época tinham como discurso a valorização da limpeza, ou seja, predominava a ideia de que crianças deveriam ser retiradas das ruas:

Assim, surgem reforços ideológicos à cultura do trabalho precoce como forma de ocupação e manutenção das crianças e adolescentes longe das ruas, das drogas e da ociosidade, ao mesmo tempo em que contingentes significativos trabalham nas próprias ruas, em condições perigosas, penosas e insalubres. (CUSTÓDIO, 2006, p. 94)

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Com o passar do tempo, a exploração do trabalho das crianças adquiriu outra roupagem e elas serviram, durante longo período, como empregados de fábricas, por representarem mão de obra barata, e muitas vezes até mesmo sem perceber remuneração alguma, e sem o devido tratamento digno, submetidas a toda forma de exploração. 419):

Neste sentido, a lição de Gomes e Gottschalk (1998, p. 418O emprego de mulheres e menores na indústria nascente representava uma sensível redução do custo de produção, a absorção de mão-de-obra barata, em suma, um meio eficiente e simples para enfrentar a concorrência. Nenhum preceito moral ou jurídico impedia o patrão de empregar em larga escala a mão-de-obra feminina e infantil. Os princípios invioláveis do liberalismo econômico e do individualismo jurídico davam-lhe a base ética e jurídica para contratar livremente, no mercado, esta espécie de mercadoria.

Era muito comum, nos intervalos entre as jornadas de trabalho, encontrar crianças brincando pelos corredores ou no pátio das empresas com seus brinquedos. Muitas delas aguardavam seus pais, enquanto outras efetivamente estavam inseridas no trabalho. Outro fator preocupante era o alto índice de crianças que se machucavam. O elevado número de acidentes de trabalho entre crianças e adolescentes em parte era devido a elas não terem noção do que estavam fazendo e de como deveriam agir. Assim, quando colocadas para trabalhar com máquinas, o risco de acidente era bem elevado. Além da imaturidade das crianças, também não se observava qualquer forma de proteção individual, como utilização de equipamentos de proteção ou treinamento para a realização de determinadas atividades mais perigosas. Assim, a precariedade das condições de trabalho era um agravante e trazia consequên-

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cias gravíssimas para a saúde e o desenvolvimento dos pequenos trabalhadores. Com o passar dos anos a legislação foi avançando e sofrendo modificações com o intuito de assegurar maior proteção às crianças e adolescentes. O processo foi lento, mas, aos poucos, os direitos começaram a ser reconhecidos. Os principais avanços vieram das Convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT, especialmente a Convenção 138, que dispõe sobre a idade mínima de admissão ao emprego, e a Convenção 182, que versa sobre as piores formas de trabalho infantil.

Em regra, as normas e diretrizes internacionais se articulam a partir do limite etário. Assim, partindo de uma perspectiva mais abrangente, compreende-se que trabalho infantil é realizado por todos aqueles que têm menos de dezoito anos de idade, conforme reconhecido pela Convenção Internacional dos Direitos das Crianças e pela Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. Porém, não se pode pensar que a ratificação de uma Convenção Internacional, mesmo que obrigue o Estado signatário a velar pela sua aplicação e efetivação no âmbito interno, seja suficiente para combater o trabalho infantil: A falta de evidência empírica deve fazer-nos cautelosos para chegar a conclusões firmes. Não obstante, a evidência circunstancial sugere que, desde o ponto de vista de famílias pobres que lutam para sobreviver, o trabalho infantil permanece como uma necessidade para gerar receitas. Por outro lado, frente à sensibilidade que penetrou na consciência empresarial, política e pública, as formas mais evidentes e expostas do trabalho infantil podem desaparecer. Mas as formas menos expostas, aquelas que acontecem nas ruelas empobrecidas dos subúrbios e na agricultura, seguirão florescendo. E a globalização, entendida como a liberalização do mercado e o recuo do Estado, reduz os instrumentos disponíveis para combatê-las. (LIETEN, 2007, p. 33)

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A legislação brasileira, em consonância com as diretrizes internacionais, proíbe o trabalho infantil. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, inciso XXXIII, veda expressamente o trabalho para aqueles que têm menos de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos. Ainda assim, prevê que os adolescentes entre 16 e 18 anos de idade não podem trabalhar em condições insalubres, periculosas ou nocivas à sua formação, vedando, também, o trabalho noturno. Da mesma forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no Capítulo V, que trata do “Direito à Profissionalização e à Proteção no Trabalho” em seu artigo 60, atualizado pela Emenda Constitucional 20/98, reitera a proibição de qualquer trabalho aos menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos de idade.

Entretanto, observa-se, no cenário nacional e também no âmbito internacional, que ainda se perpetuam diversas formas de exploração do trabalho infantil, sendo uma delas o trabalho doméstico, que fica escondido nos lares das famílias e invisível aos olhos da sociedade, fator que dificulta o controle e a fiscalização e permite a perpetuação dessa forma de exploração.

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TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO E SUA COMPREENSÃO

A primeira ressalva que deve ser feita é em relação à distinção entre tarefa e trabalho, visto que é comum as pessoas confundirem uma e outra. A criança deve ter tarefas que podem ser realizadas, como manter seu quarto e material escolar organizado, colocar suas roupas no cesto para lavar, auxiliar atividades diárias de pôr e retirar a mesa para refeições, dentre outras. Tais atividades contribuem para o seu desenvolvimento e organização e não se configuram como exploração do trabalho, pois seu caráter é educativo. Assim, pode-se definir tarefa como uma ajuda, que é realizada junto à família. Já o trabalho é quando a criança toma

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responsabilidades de um adulto, como limpar casas, cuidar de irmãos, trabalhar em outro local, como na casa de terceiros ou na agricultura, para ajudar a família e trazer outra fonte de renda para a família. O caráter aqui passa a ser econômico, aliado à responsabilidade que é, sem sombra de dúvida, do adulto, e não da criança:

O compartilhamento de tarefas no espaço doméstico faz parte de todo o processo de socialização da criança e do adolescente que, na família, oferece sua parcela de contribuição para a organização do espaço de vivência. Não se trata especificamente de ajuda, mas, sim, de efetiva responsabilidade, de acordo com suas condições de desenvolvimento físico e psicológico, a qual a criança e o adolescente podem assumir. Trata-se, portanto, de uma forma coletiva e solidária de vivência em comum. (CUSTÓDIO, 2006, p. 106)

Evidencia-se, no trabalho infantil, o caráter econômico, de exploração da força de trabalho, o que se contrapõe ao princípio da proteção integral, segundo o qual a criança e o adolescente devem ser protegidos de toda e qualquer forma de exploração e ameaças aos seus direitos fundamentais. Os fatores históricos e culturais, fortemente arraigados no âmbito de muitas sociedades, fazem ainda que o trabalho infantil se perpetue:

Muitos fatores sociais e econômicos se interagem, permitindo a existência do trabalho infantil. A pobreza; a falência do sistema educacional; o descaso dos Poderes Públicos para garantir o acesso de todos às políticas públicas e o não cumprimento das leis de proteção contra o trabalho precoce; as vantagens econômicas para os empregadores ao utilizar mão-de-obra barata e com um perfil dócil, que não se organiza em sindicatos; o descaso dos sindicatos, pois a maioria não inclui em sua pauta de luta política os direitos da criança e do adolescente;

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a mentalidade da sociedade que acha ‘melhor trabalhar que roubar’, impondo aos pobres o trabalho como a única via possível de superação de sua exclusão social. (VIEIRA, 2013, p. 24)

O número elevado de crianças e adolescentes que são explorados, configurando-se assim o trabalho infantil, encontra uma de suas origens no fator econômico. A renda familiar é um dos elementos determinantes que leva crianças e adolescentes ao trabalho, porquanto, se considerássemos que se os pais ganhassem o suficiente para assegurar a subsistência da família, seus filhos não precisariam trabalhar, pois, “[...] quanto maior o salário da mãe e do pai, menor é a probabilidade de a criança trabalhar e maior é a de ela estudar” (KASSOUF, 2013). Todavia, é necessário ressaltar que não é apenas esse o motivo fundamental, pois, aliado a ele, existem os fatores históricos e culturais que muito contribuem para a manutenção dessa forma de exploração, especialmente do trabalho doméstico.

De acordo com a OIT, o trabalho infantil doméstico em casa de terceiros é uma das formas mais comuns e tradicionais de trabalho infantil. As crianças e adolescentes que realizam atividades domésticas são “trabalhadores invisíveis”. Isto porque o seu trabalho é desenvolvido no interior de casas que não são as suas, onde não existe nenhum sistema de controle e longe de suas famílias. Diante disso, esse grupo é provavelmente o mais vulnerável e explorado. Da mesma forma, é o mais difícil de proteger (OIT). O trabalho infantil doméstico apresenta uma faceta muito perversa: ele ocorre no interior das residências familiares, longe dos olhos da sociedade, o que torna a fiscalização e o combate mais difíceis de serem concretizados. Além do mais, contam com a conivência das famílias: da sua própria família e daquela para as quais trabalham e que exploram a mão de obra infantil. Para Custódio e Veronese (2009, p. 75),

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Os indicadores sobre trabalho infantil doméstico não são apenas resultantes do acirramento da exclusão econômica e empobrecimento da população, mas também indicam uma continuidade da dinâmica histórica consolidada por práticas jurídicas e institucionais, que sempre deslocaram a responsabilidade para crianças e adolescentes pela sua própria subsistência e também do grupo familiar.

Conforme Custódio, a exploração da mão de obra infantil doméstico se apresenta com uma aparência diversa da realidade:

[...] o trabalho infantil doméstico é oculto pelo discurso da caridade, o que fortalece os mitos em torno do trabalho precoce, ou seja, dando a aparência de que o trabalho é positivo para o desenvolvimento da criança, tendo por conseqüência, a reprodução das condições culturais de exclusão, da alienação e o fortalecimento das desigualdades de gênero e raça. (CUSTÓDIO, 2006)

A compreensão do trabalho infantil doméstico não pode partir de um único olhar, visto que são vários os fatores que permitem a sua existência e manutenção: condições de gênero, espaço doméstico e, supostamente, desvinculado do sistema econômico. Porém, as causas econômicas representam um dos fatores determinantes, pois “a condição de pobreza e a baixa renda familiar são um dos estímulos para o recurso ao trabalho da criança e do adolescente, pois a busca pela sobrevivência exigiria a colaboração de todos os membros do grupo familiar” (CUSTÓDIO; VERONESE, 2009, p. 77). É necessário também considerar os fatores culturais e históricos, visto que, como asseveram Custódio e Veronese (2009, p. 79), o trabalho infantil “está arraigado nas tradições, nos comportamentos de diversos locais, como um vestígio do passado, com uma forte resistência à mudança”. O reforço ideológico que contribui para que o trabalho infantil se perpetue nas sociedades se desloca para o campo da na-

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turalização. Assim, é comum ouvir determinados “ditos” acerca do trabalho infantil. Neste sentido, Custódio e Veronese (2009, p. 72) destacam sete mitos: é melhor trabalhar do que roubar; o trabalho da criança ajuda a família; é melhor trabalhar do que andar nas ruas; lugar de criança é na escola; trabalhar desde cedo acumula experiência para trabalhos futuros; é melhor trabalhar do que usar drogas; e trabalhar não faz mal a ninguém. É a crença nestes mitos que faz com que o trabalho infantil, de modo geral, e o trabalho infantil doméstico, em particular, seja visto como algo natural, que não traz prejuízos, mas que, ao contrário, contribui para afastar a criança de outros males. Modificar esta concepção é tarefa de cada um e de todos.

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TRABALHO INFANTIL DOMÉSTICO E SUAS CONSEQUÊNCIAS

As consequências do trabalho infantil doméstico, muitas vezes, não são perceptíveis num primeiro momento. Um grande problema visto ao longo do tempo é a evasão escolar. Crianças têm de abrir mão dos estudos para trabalhar, as que não precisam abrir mão, raras vezes conseguem conciliar o estudo com a escola, pois o tempo destinado ao trabalho prejudica o rendimento escolar. Nesse caso, ocorrem déficits de formação educacional, o que futuramente, fatalmente acarretará prejuízos. O momento de a criança ter para seu desenvolvimento, ou seja, a oportunidade das brincadeiras, lazer, atividades para seu desenvolvimento saudável e para sua formação escolar, é trocado por responsabilidades:

[...] o fato de trabalhar e ter de submeter-se, inibe seus anseios naturais de brincar e expressar seus desejos e interesses. Como o brincar cumpre na infância um papel muito maior do que a busca do prazer e diversão, fornecendo a oportunidade de reviver, entender e assimilar os mais diversos modelos e conteúdos das relações afetivas

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e cognitivas, e como passa a temer ser punida por expressar-se livremente, ocorre um empobrecimento tanto no que se refere à sua capacidade de expressão quanto de compreensão. (LIMA, 2000, p. 20)

Uma prática comum em muitas cidades é o fato de muitas jovens irem morar em casa de outras famílias e assim servirem de empregadas. A ideia é oferecer um lugar para elas morarem enquanto estudam, porém, na prática, acabam servindo de empregadas domésticas. A falsa ideia de auxílio mútuo se perpetua em inúmeras famílias brasileiras, contribuindo para a exploração do trabalho infantil e para a continuidade do círculo de exploração. De acordo com a OIT, as situações de pobreza no campo e na cidade geram situações como a das “criaditas”, “ahijadas”, “filhas de criação”, “restàvek”, ou seja, as meninas que desde muito cedo os pais enviam ou “dão” para uma família que se encarregará de seu cuidado em troca de habitação e educação, na esperança de que isto as conduza a melhores condições de vida (OIT, [s.d.], p. 3). Na realidade, essas meninas, na grande maioria dos casos, não formam “parte da família”: elas se transformam em pequenas trabalhadoras domésticas, sem oportunidades de estudo e de uma infância e adolescência saudáveis. Além do que, são também vítimas frequentes de assédio moral e sexual e maus-tratos (OIT, [s.d.], p. 3). Ademais, as consequências educacionais – déficits – impedem ou dificultam as possibilidades de emancipação. Conforme Custódio e Veronese (2009, p. 96), o trabalho infantil doméstico tem como característica principal a “ausência de pagamento ou pela remuneração através de pequenos bens ou salários ínfimos”. Observa-se que:

Muchos niños que trabajan en el servicio doméstico son víctimas de explotación. Al limpiar, cocinar, cuidar a los hijos de su empleador o realizar tareas pesadas en la casa,

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se les priva de derechos que, como niños, les reconoce La legislación internacional: el derecho de jugar, a visitar a su familia y sus amigos, el derecho a un alojamiento decente y a la protección contra el acoso sexual o los abusos físicos o sociológicos. (OIT, El trabajo)

Para a Unicef ([s.d.], o trabalho infantil doméstico alimenta muitas famílias de um status social ou de uma condição econômica, perpetuando a desigualdade entre classes e raças. As características do serviço doméstico podem ser assim descritas: relação exploradora, “desprofissionalizada”, renegada dos direitos trabalhistas e, principalmente criminosa, quando no lugar de um adulto é colocada uma criança para desempenhar funções e atividades incompatíveis com sua condição biológica, psicológica e cognitiva. Outro problema se vislumbra: a exploração do trabalho das meninas no âmbito doméstico revela uma diferenciação de gênero. A OIT estima que, em todo o planeta, o número de meninas menores de 16 anos empregadas no trabalho doméstico é muito maior do que em qualquer outra forma de trabalho. Isto porque ainda “persiste a crença tradicional de que as tarefas domésticas são inerentes às mulheres e, portanto, empregá-las desde cedo nesta atividade as prepararia para um adequado exercício de sua função quando adultas.” (OIT, Notas OIT, [s.d.]) A realidade mostra que o problema do trabalho infantil doméstico é perverso e necessita de ações urgentes e da adoção de medidas permanentes, seja no sentido de conscientização acerca da temática, seja no sentido de reforçar a atuação das autoridades com vistas a coibir a prática de exploração do trabalho infantil em todas as suas formas.

5 CONCLUSÃO

O trabalho infantil doméstico, assim como qualquer das formas de trabalho infantil, traz prejuízos que alcançam várias

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esferas do desenvolvimento de crianças e adolescentes. É fundamental a obediência aos preceitos constitucionais que estipulam os limites etários para o trabalho.

A ratificação das Convenções 138 e 182 da OIT representa um avanço, na medida em que foram determinantes para a revisão do ordenamento jurídico pátrio, que buscou atender e ampliar a proteção assegurada pelos instrumentos internacionais. No Brasil, o limite etário para o trabalho é de 16 anos, excetuando a condição de aprendiz a partir dos 14 anos de idade. Tal limite foi fixado pelo texto constitucional, que é a norma máxima no âmbito nacional.

Entretanto, observa-se que, apesar dos esforços realizados, o Brasil ainda carece de políticas públicas que consigam dar conta do elevado número de crianças e adolescentes expostos a todas as formas de trabalho, em especial do trabalho infantil doméstico.

REFERÊNCIAS

CUSTÓDIO, André Viana. A exploração do trabalho infantil doméstico no Brasil contemporâneo: limites e perspectivas para sua erradicação. Tese (Doutorado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

CUSTÓDIO, André Viana. Direito da criança e do adolescente. Criciúma: Unesc, 2009. CUSTÓDIO, André Viana. O trabalho da criança e do adolescente no Brasil: uma análise de sua dimensão sócio-jurídica. Dissertação (Mestrado em Direito) – Curso de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002. CUSTÓDIO, André Viana; VERONESE, Josiane Rose Petry. Crianças esquecidas: o trabalho infantil doméstico no Brasil. Curitiba: Multideia, 2009.

GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Curso de Direito do Trabalho. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. KASSOUF, Ana Lúcia. Trabalho infantil: escolaridade x emprego. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2013.

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LIETEN, K. Globalização e trabalho infantil. In: LIETEN, K. (Org.). O problema do trabalho infantil: temas e soluções. Tradução de Danielle Annoni. Curitiba: Multideia, 2007.

LIMA, Consuelo Generoso Coelho de. Trabalho precoce, saúde e desenvolvimento mental. In: MTE. Proteção integral para crianças e adolescentes, fiscalização do trabalho, saúde e aprendizagem. Florianópolis: DRT/SC, 2000. OIT. El Trabajo Infantil. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2013.

OIT. NOTAS OIT. O trabalho doméstico remunerado na América Latina e Caribe. n. 3, p. 01. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2013. VIEIRA, Márcia Guedes. Trabalho infantil: a dívida da sociedade mundial com a criança. Disponível em: . Acesso em: 12 mar. 2013.

UNICEF. Trabalho infantil doméstico: não deixe entrar na sua casa. Disponível em: . Acesso em: 13 mar. 2013.

Capítulo 3

A

PROTEÇÃO CONTRA A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL E SEUS REFLEXOS NO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS) NO BRASIL Ismael Francisco de Souza Doutorando em Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduado em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Professor de Direito da Criança e do Adolescente da Universidade do Extremo Sul Catarinense. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito, e do Laboratório de Direito Sanitário e Saúde Coletiva. Coordenador do Projeto Ação Adolescente (UNESC). Docente da Escola de Gestão Pública Municipal (EGEM), em Santa Catarina. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo CNPq.

Luciana Rocha Leme Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Professora de Direito Processual Constitucional na Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e de Direito Constitucional no Centro Universidade Barriga Verde (Unibave). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direitos e Políticas Públicas de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA), da UNISC, e do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED), da UNESC. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infanto-juvenis”, financiado pelo CNPq.

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1 INTRODUÇÃO O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê um conjunto de ações articuladas e integradas para a proteção e garantia dos direitos da criança e do adolescente, incluindo normas de proteção contra a exploração do trabalho infantil. De igual modo, a proteção internacional e nacional contra a exploração do trabalho infantil está orientada para o estabelecimento de limites de idade mínima para o trabalho.

No âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), as políticas para a prevenção e erradicação do trabalho infantil são articuladas com o serviço de proteção social especial nas unidades dos Centros de Referências Especializados de Assistência Social (CREAS) e a proteção social básica nas unidades do Centro de Referências de Assistência Social (CRAS).

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FUNDAMENTOS DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A proteção aos direitos fundamentais da criança e do adolescente, prevista no artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil, envolve a integração da proteção contra a exploração do trabalho infantil prevista no artigo 7º, XXXIII, que determina os limites de idade mínima para o trabalho. Assim, o referido artigo, atualizado pela Emenda Constitucional 20, de 15 de dezembro de 1998, dispõe sobre a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos” (BRASIL, 1988). A proteção constitucional contra a exploração do trabalho infantil está integrada aos pressupostos dos limites de idade mínima para o trabalho previstos na Convenção 138, da Organização Internacional do Trabalho, que desde a sua ratificação tem suas regras alçadas ao status de direito fundamental.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 43 e Políticas Públicas

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, disciplina as normas de proteção contra a exploração do trabalho infantil entre os artigos 60 e 69, possibilitando a definição precisa do conceito de trabalho infantil a partir dos limites de idade mínima para o trabalho. Assim, considera-se como trabalho infantil todos os trabalhos realizados por crianças e adolescentes antes dos limites de idade mínima para o trabalho, que neste caso envolve: a) todos os trabalhos perigosos, insalubres, penosos, prejudiciais à moralidade e realizados em horários e locais que prejudiquem a frequência à escola antes dos dezoito anos de idade; b) qualquer trabalho antes dos dezesseis anos de idade, salvo na condição de aprendiz; c) qualquer trabalho, incluída a condição de aprendizagem, antes dos quatorze anos de idade. As normas de direito internacional do trabalho estabelecem requisitos mais detalhados para a proteção contra a exploração do trabalho infantil. Deste modo, a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil em 15 de fevereiro de 2002, estabelece que o país deve adotar um limite de idade mínima básico para o trabalho ou em qualquer caso adotar a idade de 15 anos. O Brasil, neste caso, adotou uma condição superior ao estabelecer a idade mínima para o trabalho em 16 anos, de acordo com o seu ordenamento jurídico interno. Além disso, a referida Convenção obriga aos países a adotarem uma política nacional de combate ao trabalho infantil, que, no Brasil, se dá por meio do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), compreendido como um programa do Estado brasileiro com ações intersetoriais específicas em cada uma das áreas de políticas públicas básicas. A Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho vem acompanhada da Recomendação 146, que, por sua característica jurídica, não obriga ao país o cumprimento de seus procedimentos, mas tão somente indica e sugere estratégias para que os parâmetros propostos pela Convenção sejam devidamente implantados.

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Assim, a Recomendação 146 diz em seu artigo 1 que, para assegurar o sucesso da política nacional de combate ao trabalho infantil,

[...] alta prioridade deveria ser conferida à identificação e atendimento das necessidades de crianças e adolescentes em políticas e em programas nacionais de desenvolvimento, e à progressiva extensão de medidas coordenadas necessárias para criar as melhores condições possíveis para o desenvolvimento físico e mental de crianças e adolescentes. (OIT, 1976)

Para garantir o integral atendimento de crianças e adolescentes afastados do trabalho, é necessário, no planejamento das políticas públicas, levar em consideração a importância das medidas relacionadas ao desenvolvimento do emprego nas zonas urbanas e rurais; a extensão progressiva de medidas econômicas e sociais para atenuar a pobreza e assegurar às famílias padrões de vida e renda que tornem desnecessário o recurso à atividade econômica de crianças; o desenvolvimento e a progressiva extensão de medidas de seguridade social destinadas à manutenção da criança; o desenvolvimento e a progressiva extensão de meios adequados de educação, proteção e bem-estar de crianças e adolescentes, inclusive daquelas que não convivam com suas famílias; garantia de acesso e frequência obrigatória à educação integral, dentre outras medidas previstas na Recomendação 146 (OIT, 1976).

Em análise mais específica, pode-se verificar que muitas das medidas previstas na Recomendação 146 são amparadas no Brasil no âmbito das políticas socioassistenciais e organizadas segundo a lógica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Além da proteção geral contra toda forma de exploração do trabalho infantil, a Organização Internacional do Trabalho previu medidas especiais para o enfrentamento daquelas consideradas

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como piores formas de trabalho infantil, mediante a Convenção 182, ratificada pelo Brasil em 12 de setembro de 2000. Essa convenção internacional tem caráter complementar em relação à Convenção 138, e estabelece as medidas que os países devem tomar de modo urgente e imediato para assegurarem a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil. Assim, o artigo 3º da Convenção 182 define como piores formas de trabalho infantil:

a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, tais como a venda e o tráfico de crianças, a servidão por dívidas e a condição de servo, e o trabalho forçado ou obrigatório, inclusive o recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; b) a utilização, o recrutamento ou a oferta de crianças para a prostituição, a produção de pornografia ou atuações pornográficas; c) a utilização, recrutamento ou a oferta de crianças para a realização de atividades ilícitas, em particular a produção e o tráfico de entorpecentes, tal como definido nos tratados internacionais pertinentes; e,

d) o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças. (OIT, 1999)

A partir da ratificação, os países-membros da Organização Internacional do Trabalho devem:

a) impedir a ocupação de crianças nas piores formas de trabalho infantil; b) prestar a assistência direta necessária e adequada para retirar as crianças das piores formas de trabalho infantil e assegurar sua reabilitação e inserção social;

c) assegurar o acesso ao ensino básico gratuito e, quando for possível e adequado, à formação profissional a todas

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as crianças que tenham sido retiradas das piores formas de trabalho infantil; d) identificar as crianças que estejam particularmente expostas a riscos e entrar em contato direto com elas; e, e) levar em consideração a situação particular das meninas. (OIT, 1999)

A implementação das diretrizes da Convenção OIT 182 requer a ação articulada dos órgãos responsáveis pelas políticas públicas de proteção e atendimento aos direitos da criança e do adolescente e o estabelecimento de estratégias de atendimento integral como forma de enfrentamento à exploração do trabalho infantil.

Para tanto, a Organização Internacional do Trabalho editou a Recomendação 190, que sugere ações para garantir a efetividade das políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil. Destaca-se neste contexto a necessidade do estabelecimento de programas de ação, que no Brasil estão articulados no contexto do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), que devem estabelecer ações estratégicas mediante consulta às organizações governamentais, de empregadores e trabalhadores, que no Brasil é feita por intermédio da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI), mas também levando em consideração crianças e adolescentes diretamente afetados pelas piores formas de trabalho infantil e suas famílias.

Os Planos de Ação, segundo o artigo 1º da Recomendação OIT 190, devem estabelecer estratégias para: a) identificar e denunciar as piores formas de trabalho infantil;

b) impedir a ocupação de crianças nas piores formas de trabalho infantil ou retirá-las dessas formas de trabalho, protegê-las de represálias e garantir sua reabilitação e inserção social por meio de medidas que atendam às suas necessidades educacionais, físicas e psicólogas;

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c) dispensar especial atenção: i) às crianças mais jovens; ii) às meninas; iii) ao problema do trabalho oculto, no qual as meninas estão particularmente expostas a riscos; e, iv) a outros grupos de crianças que sejam especialmente vulneráveis ou tenham necessidades particulares; d) identificar as comunidades nas quais as crianças estejam especialmente expostas a riscos, entrar em contato direto e trabalhar com elas,

e) informar, sensibilizar e mobilizar a opinião pública e os grupos interessados, inclusive as crianças e suas famílias. (OIT, 1999-A)

Além das estratégias de ação, a Recomendação 190, prevê ações específicas para o enfrentamento do trabalho perigoso e medidas de aplicação da Convenção 182, tais como a integração e sistematização de dados sobre trabalho infantil e ações correspondentes das políticas públicas, bem como o estabelecimento de mecanismos nacionais apropriados para monitorar a aplicação das normas jurídicas nacionais sobre a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho infantil.

A disseminação de discursos justificadores diante da proibição do trabalho infantil é algo recorrente, principalmente com a presença de crianças e de adolescentes no mercado de trabalho como situação cultural e histórica aceita socialmente. Diante deste fato, a conscientização da sociedade a respeito do trabalho infantil como algo prejudicial ao desenvolvimento físico, psíquico e emocional de crianças e adolescentes, e/ou que a utilização de mão de obra infantil representa uma violação de direitos humanos tornam-se tarefas desafiadoras, mesmo com a vivência de um novo momento legislativo referente à proteção de crianças e adolescentes. O trabalho infantil na sociedade está intrinsecamente associado à condição de pobreza e a fatores culturais que justificam e normalizam a condição de que algumas crianças vivem sua infância enquanto outras não. Esta realidade é afetada ainda por

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um longo período de ausência de políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil, ou, mesmo que essas tenham existido, demonstravam-se insuficientes. O resultado destes fatores é facilmente percebido no senso comum exteriorizado pelos mitos que justificam o trabalho infantil (CUSTÓDIO, VERONESE, 2006).

Diante da cultura de concordância com o uso do trabalho infantil, reforça-se o ciclo intergeracional de pobreza e negam-se oportunidades para que crianças e adolescentes superem a condição de seus pais, perpetuando, assim, uma realidade já vivenciada de ausência de perspectivas, que contradiz a proteção integral determinada constitucionalmente. Neste sentido, há que se lembrar que é dever da família, do Estado e da sociedade criar uma rede apta a dar condições de acesso aos direitos fundamentais como educação, saúde, cultura, moradia, bem como proteger e garantir que o ingresso no mercado de trabalho ocorra somente na idade adequada e de forma a promover desenvolvimento profissional sem que haja o comprometimento emocional e físico (CUSTÓDIO, VERONESE, 2006). Salienta-se, no entanto, que a situação do trabalho infantil no Brasil reflete um desafio global, já que o atual modelo econômico é pautado no acúmulo de riquezas, deixando a promoção e a garantia de direitos humanos, na maioria das vezes, em segundo plano. Conforme Rubio (2011, p. 45),

[...] cuando se habla de estudios y saberes sobre derechos humanos, hay que incorporar el elemento intercultural para evitar seguir participando en la consolidación de discriminaciones y silenciamientos históricos de culturas y grupos humanos cuyos imaginarios, formas de pensar, modos de vida, ritmos y tiempos son muy diferentes al athos sociocultural.

Limitando-se à história brasileira, o trabalho infantil sempre foi realidade para as crianças de famílias pobres, vítimas da desi-

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gualdade social, da concentração de renda nas mãos de uma pequena elite e da negativa de direitos humanos e sociais básicos para a maioria da população, ocorrida e agravada durante o século XX.

Cabe salientar que o enfrentamento do trabalho infantil deve constituir-se como política prioritária de Estado, pois, além das consequências nefastas às crianças e aos adolescentes, apresenta riscos à própria democracia, tendo em vista que a inserção precoce ao trabalho dificulta o acesso à informação, necessária para o exercício pleno de direitos. Há que se destacar ainda que a saída para tal desafio da eliminação do trabalho infantil encontra-se em políticas públicas aptas a garantir o atendimento integral de crianças e adolescentes e criar condições de dignas de subsistência para que as famílias não dependam do trabalho de suas crianças, já que cabe ao Estado garantir a inclusão social de todos. Portanto,

Si el desarrollo humano sostenible se entiende como un proceso continuo e integral, que reúne componentes y dimensiones de desarrollo de las sociedades y las personas, en los que resulta central la generación de capacidades de por y para la gente, con las que la equidad se acreciente para las actuales y futuras generaciones, la tolerancia o la regulación permisiva del trabajo infantil en sus peores formas, va en una dirección diametralmente opuesta a la noción de desarrollo humano sostenible. (GONZALEZ, 2010, p. 19)

A compreensão das dimensões econômicas do trabalho infantil é um desafio permanente. Sem dúvida, as condições de pobreza das famílias aparecem no cenário do trabalho infantil no Brasil. Neste sentido, pensar a erradicação do trabalho infantil é atuar no campo da garantia de renda e emprego às famílias, tendo em vista que a pobreza é um dos principais fatores que levam famílias a inserirem seus filhos no trabalho e, portanto, a renda trazida pelas crianças e pelos adolescentes para casa tem um peso importante.

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Na seara das políticas públicas de enfrentamento ao trabalho infantil há que se coordenar ações intersetoriais envolvendo educação, saúde, assistência social, esporte, cultura e lazer para que efetivamente se alcance a erradicação. No Brasil, as políticas públicas de proteção contra a exploração de crianças e adolescentes no trabalho se faz por meio da articulação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), criado em 1996, pelo Governo Federal, cujo objetivo é a retirada de crianças e adolescentes, com idades entre 7 e 14 anos, dos trabalhos perigosos, penosos e insalubres. Inicialmente, foram atendidas crianças e adolescentes que trabalhavam nas carvoarias do estado do Mato Grosso do Sul, nos canaviais de Pernambuco e nas pedreiras e sisal da Bahia, provendo apoio financeiro às famílias e atividades educacionais, culturais e pedagógicas para as crianças e adolescentes afastados do trabalho.

O Peti está estruturado estrategicamente em cinco eixos de atuação: informação e mobilização, com realização de campanhas e audiências públicas; busca ativa e registro no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal; transferência de renda, inserção das crianças, adolescentes e suas famílias em serviços socioassistenciais e encaminhamento para serviços de saúde, educação, cultura, esporte, lazer ou trabalho; reforço das ações de fiscalização, acompanhamento das famílias com aplicação de medidas protetivas, articuladas com Poder Judiciário, Ministério Público e Conselhos Tutelares; e monitoramento. (BRASIL, MDS, [s.d.])

O PETI prevê, ainda, o controle social por meio das Comissões de Erradicação do Trabalho Infantil, Conselhos de Direitos da Criança, Conselhos de Assistência Social e Conselhos Tutelares. Desde 2000, o PETI estabeleceu parceria junto ao Ministério o Trabalho e Emprego – MTE, por meio de um Termo de Cooperação Técnica. Esse processo tem como finalidade implementar conjuntamente as ações voltadas à erradicação do trabalho in-

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fantil. Esse termo prevê que, uma vez identificada, nas fiscalizações realizadas pelo MTE, a existência de crianças e adolescentes em situação de trabalho precoce, estas terão prioridade de ingresso no PETI. Outro aspecto pactuado consiste na delegação de competência ao MTE para supervisionar a jornada ampliada.

Diante da percepção do elevado números de crianças e adolescentes trabalhadores no Brasil, fez-se necessária a ampliação do programa para os demais Estados. Por meio da Portaria 458, de outubro de 2001, a Secretaria de Estado da Assistência Social (SEAS), vinculada ao Ministério da Previdência e Assistência Social, estabeleceu as diretrizes e normas do PETI. O Programa foi definido no âmbito da gestão intergovernamental, de caráter intersetorial, com foco inicial no enfrentamento das piores formas de trabalho infantil, tendo como público prioritário crianças e adolescentes de 7 a 14 anos de idade que estejam trabalhando em atividades consideradas perigosas, insalubres, penosas ou degradantes, com exceção para o atendimento de crianças com até 15 anos de idade em situações de extremo risco, referentes à exploração sexual. A referida portaria introduziu as comissões de erradicação do trabalho infantil no âmbito estadual, do Distrito Federal e municipal, de caráter consultivo e propositivo, com participação do governo e da sociedade civil, tendo como objetivo, na época, contribuir para a implantação e implementação do PETI.

A família foi afirmada como locus de atenção do Programa, com indicação de registro e cadastramento no CadÚnico. A responsabilidade na condução das ações dos órgãos de assistência social e o financiamento se realizam de forma compartilhada nas três esferas de governo.

O estudo apresentado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 2005, levantou indicadores do programa de erradicação do trabalho infantil, demonstrando que o PETI estava em 2.788 municípios do Brasil, atendendo 930.804 crianças e adolescentes (MDS, 2005).

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Assim, em razão de o programa de combate à pobreza do governo Federal ser uma das metas dos objetivos do milênio da Organização das Nações Unidas (ONU), os programas sociais foram unificados.

3

TRABALHO INFANTIL NO ÂMBITO DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL

O processo de erradicação do trabalho infantil dentro da Política de Assistência Social está organizado no Sistema Único de Assistência Social, que prevê atribuições específicas no âmbito da Proteção Social Básica e da Proteção Social Especial, que coordenam os serviços socioassistenciais nos termos propostos pela Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. A edição das diretrizes metodológicas para o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos para Crianças e Adolescentes de 6 a 15 anos e do Projovem Adolescente para adolescentes de 15 a 17 anos constituiu um importante componente nessa política, aliadas às diretrizes operacionais do PETI no âmbito do Sistema Único da Assistência Social.

Contudo, é necessário o fortalecimento das estratégias de identificação e encaminhamento, bem como a integração dos fluxos interinstitucionais de crianças e adolescentes afastados do trabalho infantil. Também é necessária a garantia da ampliação da cobertura territorial do PETI, dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros Especializados de Referência de Assistência Social (CREAS). A realidade da maioria dos municípios brasileiros, considerados de pequeno porte, conta com estruturas institucionais reduzidas, modelos interventivos precários e rotinas técnicas e administrativas incipientes, pouco estimulando o desenvolvimento técnico dos seus recursos humanos (BRASIL, CapacitaSuas, 2008, p. 30). Cumpre salientar que se faz necessária a construção de estratégias que atendam às situações de trabalho infantil nos seus

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diversos contextos. A prevenção e a erradicação do trabalho infantil devem ser assumidas efetivamente como prioridade pela sociedade e pelo poder público. Enfrentar a insuficiência de recursos humanos, materiais e de infraestrutura para a atuação e funcionamento do Sistema Único de Assistência Social, dos Conselhos de Direitos e Tutelares e demais políticas públicas. Outro sinal é o fato de que administradores públicos e atores do Sistema de Garantias de Direitos de Crianças e Adolescentes estão pouco capacitados para lidar com as questões do trabalho infantil. Podem ser citadas também as cadeias produtivas, formais e informais, que ainda persistem nas violações dos direitos de crianças e adolescentes (BRASIL, Plano Nacional, 2011, p. 19-20). A efetivação de políticas públicas para a erradicação do trabalho infantil implica transformações profundas em diversos campos e, inclusive, em sua própria dimensão jurídica. O direito da criança e do adolescente apresenta-se como potencial alternativa que congrega, dentre outros aspectos, uma nova visão, multidisciplinar e democrática, pois tem em sua essência a participação dos diversos atores sociais. Além disso, atribui responsabilidades para o Estado, à família e à sociedade quanto à efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes.

Nesse contexto, a Política Nacional de Assistência Social, por meio do Sistema Único de Assistência Social, tem o compromisso de contribuir com o desenvolvimento de mecanismos, metodologia e estratégias no âmbito da proteção social básica e especial para a erradicação do trabalho infantil e ao atendimento socioassistencial de crianças, adolescentes e suas famílias.

A implementação de sistemas de notificação e o encaminhamento no âmbito do Sistema Único de Assistência Social têm suas especificidades que merecem atenção especial do Sistema de Proteção, Controle e Fiscalização na realização correta dos procedimentos. De igual modo, a Rede de Atendimento deve conhecer os níveis de complexidade dos serviços socioassistenciais para o adequado encaminhamento de crianças, adolescentes e famílias.

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Assim, as políticas públicas de proteção social básica são indispensáveis para a erradicação do trabalho infantil, em especial com articulação integrada ao Serviço de Proteção Integral à Família (PAIF), o qual se realiza por meio do trabalho social com famílias, de caráter continuado, com a finalidade de fortalecer a função protetiva das famílias, prevenir a ruptura dos seus vínculos, promover seu acesso e usufruto aos direitos e contribuir na melhoria da qualidade de vida. Prevê o desenvolvimento de potencialidades e aquisições das famílias e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, por meio de ações de caráter preventivo, protetivo e proativo. O trabalho social do PAIF deve utilizar-se também de ações nas áreas culturais para o cumprimento de seus objetivos, de modo a ampliar o universo informacional e proporcionar novas vivências às famílias usuárias do serviço (BRASIL, Tipificação, 2009).

O PAIF expressa um conjunto de ações relativas à acolhida, à informação e à orientação, bem como à inserção em serviços da assistência social, tais como socioeducativos e de convivência, encaminhamentos a outras políticas, promoção de acesso à renda e acompanhamento sociofamiliar (BRASIL, Tipificação, 2009, p. 6). O acompanhamento com famílias no PAIF é destinado às famílias que apresentam situações de vulnerabilidades sociais e que, desta forma, requeiram um conjunto de intervenções com vistas à garantia de proteção social. Esse conjunto de ações deve ser articulado para atingir o objetivo de facilitar o acesso aos direitos sociais, ampliar a capacidade protetiva da família, demandando, para tal, a intervenção pautada em atividades planejadas, continuadas, numa perspectiva de abordagem interdisciplinar. Em especial, nas situações de trabalho infantil, a articulação entre Proteção Social Especial e CRAS deve acontecer sistematicamente, pois, embora as famílias estejam sendo acompanhadas pelo Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), as crianças e os adolescentes em

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situação de trabalho infantil precisam participar dos Serviços de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV).

A Proteção Social Básica tem um papel fundamental na prevenção do risco e da reincidência da prática de trabalho infantil, principalmente no contexto do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF). Além disso, por meio do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) para crianças e adolescentes de 6 a 15 anos, acolhe, com prioridade, aqueles que foram retirados do trabalho infantil e foram contrarreferenciados a um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Isso reafirma a necessidade de que a Proteção Social Básica e a Proteção Social Especial estejam articuladas e que os fluxos de notificação, ou seja, de referência e de contrarreferência, sejam definidos com precisão. Nos casos de adolescentes com idade de 15 a 17 anos em situação de trabalho infantil, as ações socioeducativas no âmbito da Proteção Social Básica são articuladas com o Projovem Adolescente, um programa cuja prioridade é a atenção aos adolescentes egressos do PETI (BRASIL, MDS, 2010a).

A gestão territorial da Proteção Social Básica responde ao princípio de descentralização do Sistema Único de Assistência Social e tem como objetivos promover a atuação preventiva, disponibilizar serviços próximos do local de moradia das famílias, racionalizar as ofertas e traduzir o referenciamento dos serviços do CRAS em ação concreta, tornando a principal unidade pública de proteção básica uma referência para a população local e para os serviços setoriais.

Para o processo de identificação do trabalho infantil, as ações de Busca Ativa devem ocorrer no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). A busca ativa constitui-se como processo da procura intencional, com a finalidade de identificar situações de vulnerabilidades e risco social; portanto é essencial conhecer o território, planejar a ação de busca ativa e realizar os encaminhamentos dos resultados alcançados.

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Conforme estabelece o artigo 21, § 1º, do Protocolo de Gestão Integrada de Serviços, Benefícios e Transferência de Renda no âmbito do Sistema Único de Assistência Social, cabe às equipes de CRAS e CREAS ou equipes técnicas da Proteção Social Básica e Proteção Social Especial a verificação do cumprimento de condicionalidades que materializa a ocorrência de situações de vulnerabilidade e risco social, traçando estratégias de atendimento ou encaminhamentos condizentes com as seguranças afiançadas pela Política de Assistencial Social.

Nos municípios com grande extensão territorial, há o desafio de atingir as regiões mais distantes. É preciso fazer a política pública chegar às comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas. No que se referem às desigualdades socioterritoriais, também as questões étnico-raciais assumem forte relevância e precisam ser consideradas quando se trata de conhecer a diversidade territorial e sociocultural que caracteriza a sociedade brasileira. A presença de comunidades tradicionais, como os quilombolas, grupos indígenas, populações de pescadores e ribeirinhas espalhadas por todas as regiões brasileiras, adiciona maior complexidade ao estudo e planejamento de serviços e equipamentos, pois são muitas as dificuldades de mapeamento e conhecimento dessas comunidades em termos de localização territorial, diversidade cultural, necessidades sociais a serem atendidas. É preciso, pois, ampliar os espaços de debate e participação dessas comunidades, para que a política pública de assistência social possa ser feita com elas e não para elas (BRASIL, CapacitaSuas, 2008, p. 54-55).

Como estratégia de fortalecimento das políticas socioassistenciais, os serviços de Proteção Social Especial (PSE) destinamse a famílias e indivíduos em situação de risco pessoal e social e/ou violação de direitos por ocorrência de situações, tais como abandono, maus-tratos físicos e/ou psíquicos, abuso e exploração sexual, situação de rua, situação de trabalho infantil, entre outras.

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A Proteção Social Especial de média complexidade oferta serviços que contribuem diretamente para o enfrentamento ao trabalho infantil, com especial atenção ao Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Família e Indivíduos (PAEFI), ao Serviço de Abordagem Social e à Busca Ativa.

O Protocolo de Gestão Integrada de Serviços, Benefícios e Transferência de Renda no âmbito do SUAS, aprovado pela Resolução CIT 7, de 10 de setembro de 2009, estabelece os procedimentos necessários para garantir a oferta prioritária de serviços socioassistenciais para as famílias do Programa Bolsa Família, do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e do Benefício de Prestação Continuada, especialmente das que apresentam sinais de maior vulnerabilidade.

Por isso, o Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Família e Indivíduos (PAEFI) oferece atendimento especializado de apoio, orientação e acompanhamento das famílias com um ou mais de seus membros em situação de risco pessoal e social e/ou violação de direito, buscando a promoção dos direitos e o fortalecimento da função protetiva da família. Tem, portanto, papel fundamental na orientação e acompanhamento das famílias, de modo a contribuir para a retirada imediata da criança e do adolescente da situação de trabalho. Contribui, também, para o cumprimento das condicionalidades inerentes ao Programa Bolsa Família (PBF) e ao Programa Erradicação do Trabalho Infantil, por meio do trabalho social com as famílias, quando os motivos do descumprimento se referirem a quaisquer situações de risco pessoal e social e/ou violação de direitos, dentre as quais a própria reincidência de trabalho infantil. Ressalte-se que, identificadas as situações de trabalho infantil, o PAEFI procederá ao acompanhamento familiar por no mínimo três meses, com vistas a contribuir para a imediata retirada de crianças e adolescentes do trabalho, para o cumprimento das condicionalidades de frequência ao Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) e à escola, proporcionando

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orientação e acompanhamento da família. Visa também à superação de outras situações de risco pessoal e social e/ou violações de direitos identificadas. Após a intervenção do PAEFI, a família deve ser encaminhada ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) para o devido acompanhamento no território pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à família (PAIF) (BRASIL, MDS, 2010b).

Já o Serviço Especializado em Abordagem Social, por meio do trabalho social desenvolvido nos territórios, pode identificar a incidência de trabalho infantil em espaços públicos, situações nas quais deverá comunicar à pessoa de referência da Proteção Social Especial responsável pelo PETI e fazer os devidos encaminhamentos para o PAEFI para início do acompanhamento da família. A pessoa de referência na PSE responsável pelo PETI deverá garantir a inserção das famílias no CadÚnico e das crianças/ adolescentes no SCFV e/ou em outras ações socioeducativas da rede de promoção e proteção dos direitos da criança e do adolescente, assegurando o acompanhamento da frequência e registro no SISPETI (BRASIL, MDS, 2010b).

Nos casos de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas de liberdade assistida ou prestação de serviço à comunidade que estejam em vivência de trabalho infantil, cabe à coordenação ou pessoa responsável pelo PETI articular com o CREAS para romper com a situação do trabalho infantil sem prejuízo ao cumprimento da medida de Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade. Ainda sim, nas situações de crianças e adolescentes com vínculos familiares fragilizados ou já afastados do convívio familiar e/ou comunitário, que estejam em situação de trabalho infantil, a coordenação do PETI e o CREAS deverão, num trabalho articulado com Conselho Tutelar, buscar o fortalecimento dos vínculos familiares para garantir a retirada da criança e/ou adolescente do trabalho. É indispensável a atenção nos aspectos relativos à qualidade do atendimento profissional (BRASIL, MDS, 2010b).

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Assim, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) constitui-se na unidade pública estatal de prestação de serviços especializados e continuados a indivíduos e famílias em situação de risco pessoal e social e/ou violação de direitos, promovendo a integração de esforços, recursos e meios para enfrentar a dispersão dos serviços e potencializar a ação para os seus usuários. Operam a referência e a contrarreferência com a rede de serviços socioassistenciais da proteção social básica e especial, com as demais políticas públicas e com as outras instituições que compõem o Sistema de Garantia de Direitos (BRASIL, MDS, 2011). Nesse contexto, vale registrar que, como o trabalho infantil constitui-se violação de direitos, a coordenação ou pessoa de referência responsável pelo PETI deverá estar vinculada à PSE e terá a atribuição de apoiar o gestor da Assistência Social a promover a articulação do PETI no SUAS, a intersetorialidade com outras políticas públicas, a interface do PETI com os órgãos de defesa de direitos, dentro de suas competências técnicas.

4 CONCLUSÃO

Por todo o exposto, verifica-se que, no tocante às normas afetas a proibição e proteção contra o trabalho infantil, as Convenções 136 e 182 da OIT são os fundamentos mais significativos de proteção na instância internacional. Ao estipularem limites de idade para o trabalho e determinarem quais atividades são consideradas realização do trabalho infantil nas piores formas, estabelecem parâmetros para os países ratificadores, constituindo-se em importantes instrumentos de prevenção e proteção. No Brasil, ambas as Convenções foram aproveitadas e, observa-se ainda como fundamento para a proteção e prevenção do trabalho infantil, a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a CLT. No tocante ao Sistema Único de Assistência Social, salienta-se que ele representa a materialização no Brasil de um novo

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paradigma para as políticas de assistência social, e também um significativo avanço para as políticas sociais, inovando no seu gerenciamento e definindo espaços de articulação e monitoramento. Com a primazia do Estado no tocante às responsabilidades pela política de assistência social, o SUAS consolida-se como política pautada na continuidade, permanência e acesso universal às famílias, sendo estas o elemento central para todos os serviços oferecidos na proteção social.

Nesse sentido, há que se salientar que o processo de identificação e encaminhamento das situações que envolvem o trabalho infantil exige a atuação integrada das diversas instituições num sistema descentralizado, como funciona o SUAS. É preciso reconhecer que a efetiva identificação do trabalho infantil depende da ação articulada entre os órgãos do Sistema de Proteção, Controle e Fiscalização com a Rede de Atendimento Socioassistencial, de Saúde e Educação. Contudo, a estabilidade de tais políticas depende da previsão jurídica das competências e responsabilidades institucionais definidas em fluxos de identificação e encaminhamento dos casos de trabalho infantil no âmbito da política socioassistencial brasileira, tão necessária e ainda inexistente.

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Capítulo 4

O

TRABALHO INFANTIL NO MERCOSUL: a cooperação regional para a erradicação do trabalho infantil

Ana Paula Cordeiro Krug Acadêmica do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bolsista Iniciação Científica FAPERGS/RS. Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA/UNISC), da Universidade de Santa Cruz do Sul.

Rafael Bueno da Rosa Moreira Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA/ UNISC) e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera.

1 INTRODUÇÃO Os países pertencentes ao Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) apresentam um passado marcado por governos autoritários, formas de opressão e inúmeras ações contra os direitos humanos. As semelhanças também coincidem quanto à ocorrência do trabalho infantil, pois, de uma maneira geral, há desrespeito a diversos direitos humanos de crianças e adolescentes nos países pertencentes ao bloco.

68 Ana Paula Cordeiro Krug & Rafael Bueno da Rosa Moreira

Cada país vem avançando, no seu próprio ritmo, na luta para a erradicação do trabalho infantil, tendo por base as convenções internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), as declarações e convenções da Organização das Nações Unidas (ONU) com o tema central em direitos humanos, as políticas públicas regionais, bem como as suas Constituições.

No âmbito internacional, podem-se destacar como importantes passos no combate ao trabalho infantil: a instituição das Convenções 138, sobre a idade mínima para começar a trabalhar, e 182, sobre a erradicação das piores formas de trabalho infantil, da OIT, bem como a Convenção sobre os Direitos das Crianças da ONU. No âmbito regional do Mercosul, salientam-se o Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil – IPEC, a 2ª Declaração Presidencial sobre Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil no Mercosul, firmado por Brasil, Argentina e Uruguai, e o “Pair Mercosul”, que é uma Estratégia Regional de Enfrentamento ao Tráfico de Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual no bloco. A presente pesquisa tem como alvo a análise das estratégias desses três países para a erradicação do trabalho infantil, não sendo objeto do presente trabalho o Paraguai, devido à sua suspensão temporária do bloco. A investigação verificou fontes bibliográficas e documentais, a fim de ponderar as políticas públicas adotadas para a erradicação do trabalho infantil.

2

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS PRINCIPAIS CONVENÇÕES DA ONU E DA OIT QUE TRATAM SOBRE A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES

A mão de obra infantil, desde longa data, vem sendo explorada no âmbito mundial. Em diversas fases da humanidade tal atividade esteve presente. O caráter universal que tomou a proteção da criança e do adolescente, bem como a defesa con-

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 69 e Políticas Públicas

tra o trabalho infantil, foi de suma importância para a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes nos países do Mercosul. Assim, considera-se um dos primeiros passos a instituição, em 20 de novembro 1989, pela Organização das Nações Unidas, por meio de sua Assembleia Geral, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, ratificada pelo Brasil, mediante a promulgação do Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990, pelo Uruguai, por meio da Lei 16.137, de 28 de setembro de 1990, e pela Argentina, com a Lei 23.849, de 27 de setembro de 1990. A ratificação dessa Convenção possibilitou a inserção de diversos direitos de proteção às crianças e aos adolescentes às legislações nacionais. Cabe salientar, ainda, que a convenção em referência foi precedida por outras legislações internacionais que abordaram o assunto, ainda que indiretamente, como a Declaração de Genebra, a Declaração Universal dos Direitos das Crianças, o Pacto de São José da Costa Rica, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, entre outros, porém, dentre todos os documentos internacionais, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, da ONU, foi a que mais influenciou a América do Sul na iniciativa de uma efetiva proteção às crianças e aos adolescentes, a partir dos anos de 1990.

Após a Primeira Guerra Mundial, no ano de 1919, como parte do Tratado de Versalhes, é criada a Organização Internacional do Trabalho – OIT, com fundamento na paz social, e prestigiando uma estrutura tripartite, com representantes do governo, dos empregadores e dos trabalhadores. A partir daquele momento, foi intensificada a internacionalização do direito do trabalho, que persiste até os dias atuais por intermédio de sua eficaz e nobre atuação. Na primeira reunião da Conferência Internacional do Trabalho, em 1919, foram adotadas seis convenções, dentre as quais as Convenções número 5, sobre a idade mínima de catorze anos para o trabalho na indústria, e número 6, sobre a proibição do trabalho noturno a mulheres e menores de dezoito anos (OIT, 2013).

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Logo foram instituídas outras convenções, direcionadas aos direitos das crianças e dos adolescentes, como, por exemplo, as convenções sobre a idade mínima na indústria, de 1919; sobre o trabalho marítimo, de 1920; na agricultura, de 1921; no emprego não industrial, de 1932; e no trabalho subterrâneo, de 1965, entre outras, as quais foram substituídas gradualmente pela atual Convenção 138 da OIT, que se tornou o instrumento geral sobre o tema, abrangendo todos os casos, e tendo em caráter suplementar a Recomendação 146, que adota algumas proposições relativas à idade mínima de admissão ao emprego.

Enquanto nas Américas alguns países, como Suriname, México e Estados Unidos ainda não ratificaram a Convenção 138 da OIT, no Mercosul todos os países já o fizeram (IPEC, 2013), o que é o primeiro passo em busca da erradicação do trabalho infantil, objetivo comum dos países-membros da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A Convenção OIT 138, de 1973, entrou em vigor no plano internacional em 19 de junho de 1976. Foi ratificada pelo Uruguai em 02 de junho de 1977, pela Argentina, no dia 11 de novembro de 1996, e pelo Brasil, no dia 28 de junho de 2001 (IPEC, 2013).

Essa convenção, por meio de seus dezoito artigos, tem por fim a ser seguido por seus membros a criação de uma política nacional para abolir de forma efetiva o trabalho das crianças, elevando progressivamente a idade mínima de admissão a emprego ou a trabalho a um nível adequado ao pleno desenvolvimento físico e mental do jovem. A idade mínima referida não pode ser menor que aquela quando cessa a obrigação escolar, ou, em todo caso, a quinze anos, podendo, excepcionalmente, baixar a idade para catorze anos, nos casos onde os países membros não estejam com a economia e os meios de educação suficientemente desenvolvidos, e desde que com a prévia consulta às organizações de empregadores e trabalhadores. Quando o trabalho possa ser perigoso para a saúde, à segurança ou à moralidade, a idade para começar a trabalhar, defendida pela

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 71 e Políticas Públicas

convenção, não deverá ser inferior a dezoito anos, podendo, em caráter excepcional, ser autorizado o trabalho a partir dos dezesseis anos, o que não é aconselhável, mas sempre que fiquem plenamente garantidas a saúde, a segurança e a moralidade dos adolescentes. A Convenção OIT 182 sobre a proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação é outra das que tem por finalidade a erradicação do trabalho infantil no mundo, com ênfase nas piores formas de trabalho infantil. Em caráter complementar, foi editada a Recomendação 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ainda, conforme indica a OIT, a Convenção 182 não supera nem contradiz a Convenção 138, sendo uma esfera de ação prioritária a respeito do combate a algumas formas de trabalho infantil, formando parte da convenção sobre a idade mínima (OIT, 2002 apud LITTERIO, 2012, p. 16). Segundo os dados do Programa Internacional para a Erradicação do Trabalho Infantil (IPEC, 2013), somente Cuba não ratificou essa convenção nas Américas, sendo que a quase unanimidade de adesão dos países-membros é um bom passo na busca da abolição das piores formas de trabalho infantil. A Convenção 182, que data de 1999, foi ratificada, pelo Uruguai, no dia 03 de agosto de 2001, pela Argentina, no dia 05 de fevereiro de 2001 e pelo Brasil, no dia 02 de fevereiro de 2000 (IPEC, 2013).

O dispositivo internacional tem como objetivo a eliminação efetiva das piores formas de trabalho infantil, por meio de uma ação imediata e geral dos países que a ratificaram, tendo em conta a importância da educação básica gratuita e da necessidade de livrar crianças e adolescentes de todas essas formas de trabalho. Os países-membros devem elaborar e pôr em prática programas com a finalidade de eliminar as piores formas de trabalho infantil com a maior urgência possível. Então, o dispositivo em questão tem por intenção tutelar e proteger a pessoa menor

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de dezoito anos que esteja em situação de risco, por intermédio de ações governamentais e educacionais. Por fim, mas não de menor importância, é interessante destacar o caráter universal e assistencial da convenção, pois ela defende que os países-membros devem ajudar-se na aplicação de suas ações, por meio da maior cooperação e assistência internacional mútua, incluindo o apoio ao desenvolvimento social e econômico, os programas de erradicação da pobreza e a educação universal, conforme o disposto no artigo 8º da Conveção 182 (IPEC, 2013), pois é urgente e prioritário combater as piores formas de trabalho infantil.

2

ALGUNS REFLEXOS DAS CONVENÇÕES DA ONU E DA OIT NAS LEGISLAÇÕES NACIONAIS DA ARGENTINA, DO BRASIL E DO URUGUAI

A Convenção sobre os Direitos das Crianças, da Organização das Nações Unidas, e as Convenções 138 e 182, da Organização Internacional do Trabalho, foram de suma importância para o atual ordenamento jurídico nacional dos países do Mercosul, bem como para a criação e efetivação de políticas públicas que visam à erradicação do trabalho infantil.

Após a ratificação das referidas convenções, observa-se que o ordenamento jurídico de proteção da criança e do adolescente evoluiu nos respectivos países, assegurando uma proteção mais efetiva. Inicialmente, com a ratificação da Convenção da ONU, foi instituído nos países estudados o princípio de proteção integral de crianças e adolescentes. Na Argentina, há uma lei que garante os direitos das crianças e dos adolescentes (Lei 26.061), que se chama Lei de Proteção Integral dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes. Essa lei assegurou o direito à vida (art. 8º), o direito à dignidade (art. 9º), o direito à saúde (art. 14), o direito à educação (art. 15), entre outros. No caso do Brasil, a Constituição Federal, no seu artigo 227 (BRASIL, 1988), bem como a

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 73 e Políticas Públicas

Lei 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), expressam o princípio, assim como a garantia aos diversos direitos a crianças e adolescentes, caracterizando-os como um dever da família, da sociedade e do Estado, com absoluta prioridade. No que tange ao Uruguai, pode-se destacar o Código denominado “Código de la Niñez y la Adolescencia – Ley N° 17.823” (URUGUAI, 2004), que elenca diversos direitos, dentre os quais os dispostos no artigo 9º1. Após a ratificação das Convenções 138 e 182 da OIT, Brasil, Argentina e Uruguai adotaram comissões com a finalidade de erradicar o trabalho infantil, em consonância e integradas com o Programa Internacional para a Erradicação do Trabalho Infantil (IPEC) da OIT. No Brasil e na Argentina, a denominação adotada é de Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (CONAETI), tendo o mesmo nome e sigla nos seus respectivos idiomas, sendo instituída na Argentina no ano de 2000 e no Brasil no de 2002. As comissões foram as responsáveis por criar os planos nacionais, chamados, no Brasil, de Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Adolescente Trabalhador, e, na Argentina, de Plano Nacional para a Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Os dois planos trouxeram importantes evoluções de conteúdo sobre a matéria em seus países e, enquanto o plano brasileiro adotou os temas proteção ao trabalho adolescente e infantil, o plano argentino abordou somente a proteção ao último. No Uruguai, a comissão foi criada no ano 2000, sendo denominada de “Comité Nacional para la Erradicación del Trabajo Infantil”, tendo por finalidade coordenar e propor políticas e programas que visem eliminar o trabalho infantil. A referida comissão elaborou o “Plan de Acción para la Prevención y Erradicación del Trabajo Infantil en el Uruguay”.



1

Art. 9º. Todo niño y adolescente tiene derecho intrínseco a la vida, dignidad, libertad, identidad, integridad, imagen, salud, educación, recreación, descanso, cultura, participación, asociación, a los beneficios de la seguridad social y a ser tratado en igualdad de condiciones cualquiera sea su sexo, su religión, etnia o condición social.

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Outros dispositivos começaram a ser melhor tutelados com a ratificação das Convenções. Dentre eles podem-se citar que o Brasil aumentou a proteção às crianças e aos adolescentes no ano de 1998, por meio da Emenda Constitucional 20/98, que alterou a redação do artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal2, aumentando a idade mínima para dezesseis anos para começar a trabalhar, e estabelecendo em catorze anos a idade mínima para a exceção da condição de aprendiz, aumentando, assim, a proteção em relação ao último dispositivo constitucional e fixando uma idade inicial para o trabalho de aprendiz, o que não existia. Na Argentina, a Lei 26.390, de 2008, tratou sobre a proibição do trabalho infantil e proteção do trabalho adolescente elevando a idade mínima para começar a trabalhar para dezesseis anos. Já o Uruguai instituiu como idade mínima para começar a trabalhar aos quinze anos. Nos três países citados há uma idade mínima para iniciar a trabalhar nos tipos de trabalhos permitidos de forma regular, sendo proibidos trabalhos de pessoas menores de dezoito anos em qualquer uma das piores formas de trabalho, assim como nos trabalhos perigosos, penosos, insalubres ou noturnos. Assim, crianças e adolescentes possuem o direito de não trabalhar, para que não seja prejudicado o desenvolvimento físico, mental, social, psicológico e intelectual. A infância e a adolescência são períodos em que a pessoa encontra-se em desenvolvimento humano, sofrendo transformações biológicas, psíquicas, morais e socioculturais, sendo mais vulnerável do que as pessoas maiores de dezoito anos, por isso se justifica tal proteção. No entanto, em alguns casos, é permitido o trabalho de pessoas menores de dezoitos anos, e nestes, há o direito de trabalhar em condições de regularidade. Portanto, o trabalho será



2

Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXXIII - proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 75 e Políticas Públicas

autorizado para adolescentes desde que sejam cumpridos todos os aspectos de proteção ao trabalho, e, caso haja violação de um destes aspectos, o trabalho que era adolescente, ou seja, um trabalho permitido desde que observados seus requisitos, passará a ser considerado trabalho infantil, uma forma de trabalho proibida. Para concluir, se pode frisar que a proteção efetiva da criança e do adolescente é muito recente, e que somente após a ratificação das convenções da Organização Internacional do Trabalho e das Nações Unidas é o tema teve destaque pelas políticas nacionais, promovendo um novo marco jurídico e a instituição de políticas públicas de enfrentamento da questão. Estas são mais recentes ainda, estando em processo de implantação e de aperfeiçoamento, visto remanescer muitos focos de trabalho infantil a serem combatidos e existir muitas pessoas sem a conscientização desejada sobre o tema, o que necessita de mudança.

3

O COMPROMISSO REGIONAL NA ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL

O Mercado Comum do Sul auxilia na eliminação das dificuldades regionais dos países partícipes contra o trabalho infantil, gerando resultado quando as ações são realizadas de maneira não isolada. Com o intuito de unir esforços de maneira comum na região do Mercosul, o compromisso regional tende a apresentar melhores resultados na problemática em torno do trabalho infantil, tendo em vista que, ao diminuir a área de estudo ficam mais claros os pontos a serem relevados, podendo-se analisar mais de perto as causas da questão e as melhores ações a serem tomadas. Todos os países do bloco efetivaram a Declaração Sociolaboral do Mercosul, firmada em 1998, a Declaração dos Ministros do Trabalho do Mercosul sobre Trabalho Infantil, em 1999, a Declaração Presidencial dos Países do Mercosul sobre Erradicação

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do Trabalho Infantil, 2002, e outras declarações sobre a matéria, produzidas por organizações de trabalhadores e empregadores da região. Ainda, acordos do Subgrupo 10, na atuação da Comissão Parlamentar Conjunta (CPC), na Comissão Sociolaboral e nas Declarações Presidenciais (DRI; FRANZOI, 2010).

A cooperação regional entre os países do bloco culminou com a Declaração Presidencial sobre a prevenção e erradicação do trabalho infantil no Mercosul, que se destaca com efetivo resultado. De modo amplo, a Declaração estabelece o compromisso entre os governos do bloco, elaborando recomendações e metas para concretizar. Dentre os compromissos firmados é importante salientar a harmonização e a coordenação com as Convenções 138 e 182 da OIT com todos os atores sociais e sociedade civil, o compromisso com a educação, a saúde e a proteção integral dos direitos da infância e o fortalecimento da fiscalização. A segunda Declaração Presidencial sobre a prevenção e erradicação do trabalho infantil no Mercosul (2013c), divulgada em 2012, aponta melhorias até o presente momento, tendo como base as normas internacionais, reafirmando o compromisso, por parte dos países, da continuidade de ações na prevenção e erradicação do trabalho infantil, e salientando também a importância em intensificar os esforços nas ações regionais. Ainda, definem a participação da sociedade como essencial para atingir metas de forma efetiva.

Igualmente devem ser os esforços regionais para a implementação do programa PAIR Mercosul – Estratégia Regional de Enfrentamento ao Tráfico de Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual no Mercosul (MERCOSUL, 2013a), um programa inovador, que atua em rede, e pretende, com a cooperação simultânea internacional e interinstitucional, o enfrentamento da violência sexual e tráfico infantil em quinze cidades de fronteira dos países estudados, tendo como base de efetivação a cooperação internacional e a canalização de investimento público dos países envolvidos. Entre os objetivos gerais têm-se a

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articulação e a qualificação da intervenção das redes locais de proteção de crianças e adolescentes que sofrem com essa prática, assim como o desenvolvimento de diagnósticos e planos de ação locais. Como objetivos processuais têm-se o compartilhamento de estatísticas, bibliografia, documentos e registros administrativos sobre exploração sexual e tráfico para definir e prevenir tal prática, direcionar o investimento do programa e avaliar as ações em andamento.

O programa PAIR está fundamentado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, nos Acordos e Tratados Internacionais referentes a gênero e sexualidade, e na Convenção 182 da OIT. O organismo executor do programa PAIR Mercosul é a Fundação de Apoio à Pesquisa da Universidade do Mato Grosso do Sul FAPEC/ UFMS, no Brasil. Foram criados órgãos colegiados em dois níveis para a gestão do projeto: regional e sub-regional. Essa rede busca, com prioridade, formar um mecanismo permanente de consulta e de cooperação para obter melhor controle dessa região, e assim centralizar as informações. Na ata da reunião técnica e de coordenação do PAIR realizada em 2011, foi indicado que, na cidade de Foz do Iguaçu,

Os casos internacionais que envolvem violação de direitos de crianças e adolescentes estão sendo tratados unicamente como situações de recâmbio. É preciso sensibilizar as autoridades envolvidas nesse processo para se pensar o acolhimento dessas vítimas, bem como evidenciar essas informações para que se possam traçar estratégias de enfrentamento ao problema. (MERCOSUL, 2013b)

Asseverou-se também a falta de um plano municipal. Ainda, na cidade Santana do Livramento, que, por ser uma cidade com zona rural grande, é comum a narrativa de meninos e meninas serem trocados por terra nos assentamentos (MERCOSUL, 2013b).

78 Ana Paula Cordeiro Krug & Rafael Bueno da Rosa Moreira

Quando delimitamos o espaço para um compromisso regional, acaba-se por gerar melhores resultados em termos de evolução na luta contra o trabalho infantil. Nota-se que ao diminuir a área de abrangência fica mais fácil identificar as causas e modalidades presentes na região, e assim criar e aplicar as políticas públicas mais adequadas.

É importante salientar que a sociedade civil tem um papel fundamental tanto na prevenção como na erradicação do trabalho precoce, pois pode atuar como fiscal dessa prática, tendo em vista que estão mais próximos das atividades de trabalho infantil.

4 CONCLUSÃO

Neste capítulo, realizou-se uma abordagem sobre o combate ao trabalho infantil no Mercosul, explicitando algumas políticas públicas que visam sua erradicação, constatando-se que existe, de fato, um compromisso global com a finalidade de eliminar o trabalho infantil ainda existente na região do bloco.

Assim, se pode verificar que Brasil, Argentina e Uruguai se comprometeram com os organismos internacionais e instituíram em suas legislações nacionais dispositivos que aumentam a proteção de crianças e adolescentes, e que vêm contribuindo para o combate da exploração de mão de obra infantil.

Para avançar ainda mais, é necessário elaborar políticas integradas, que são, na verdade, políticas comunitárias, e políticas coordenadas, ou seja, entre os Estados, a iniciativa privada e a sociedade civil. É necessário também criar alternativas para as crianças e adolescentes e suas famílias, pois não basta a fiscalizar e/ou retirá-las da atividade econômica e não prestar suporte, sendo essencial tomar medidas efetivas nas causas da problemática, priorizando a educação, e criando condições de trabalho digno aos pais dessas crianças e adolescentes. Como consequência, as famílias não permanecerão no ciclo de po-

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 79 e Políticas Públicas

breza, sendo desnecessário incentivar os filhos a trabalharem para supostamente auxiliar na renda familiar. De maneira geral, é importante uma real implementação dos marcos jurídicos já existentes, pois verificou-se que os programas existem, mas ainda necessitam de efetivação.

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UNIDADE

II

ESTUDOS SOBRE VIOLÊNCIA

Capítulo 5

C

RIANÇAS EM GUINÉ-BISSAU: é possível a criação de um instrumento jurídico interno fundamentado na doutrina da proteção integral?

Josiane Rose Petry Veronese1 Professora Titular da disciplina Direito da Criança e do Adolescente, da Universidade Federal de Santa Catarina, na graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. Doutora em Direito. Pós-doutorado na Faculdade de Serviço Social da PUC/RS. Coordenadora do Curso de Direito da UFSC. Coordenadora do NEJUSCA – Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente e subcoordenadora do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade CCJ/UFSC. Autora de vários livros e artigos na área do Direito da Criança e do Adolescente. ([email protected])

Nancy C. P. da F. da S. Monteiro Djata Mestranda em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Inspetora Coordenadora do BCN-INTERPOL-Bissau. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – Nejusca e do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade CCJ/ UFSC.



1

Queremos registrar um agradecimento especial à pesquisadora Geralda Magella de Faria Rosseto, do Núcleo de Pesquisa Direito e Fraternidade da Universidade Federal de Santa Catarina, pela leitura cuidadosa do presente estudo, suas observações e contribuições, que nos pareceram extremamente relevantes.

84 Josiane Rose Petry Veronese & Nancy C. P. da F. da S. Monteiro Djata

1 INTRODUÇÃO Algumas práticas culturais presentes na sociedade de Guiné-Bissau nos motiva a enveredar por este estudo em busca de um instrumento jurídico formal capaz de dar resposta a uma proteção eficaz para as crianças e adolescentes daquele país.

Apesar de Guiné-Bissau ser Estado-parte signatário da Convenção Internacional dos Direitos das Crianças, porque ratificou o referido instrumento, não fez nenhuma reforma legislativa interna que visasse a sua adequação à referida Convenção. Exemplos disso, entre tantas outras violências a que são submetidas crianças e adolescentes, podemos destacar a situação das crianças talibés, o casamento forçado de adolescentes e a mutilação genital feminina, embora esta última já conte com uma lei que a proíbe. Como seria possível a construção de um caminho de modo a se obter uma reforma legislativa, de acordo com a Doutrina da Proteção Integral, que efetivamente respeite a condição da criança como sujeitos em processo de desenvolvimentos, os quais ensejam uma atenção especial, integral e especializada?

O capítulo está subdivido em três partes. A primeira apresenta o cenário normativo da Guiné-Bissau; a segunda trata especificamente da educação de crianças e adolescentes no país; e, a terceira parte, como a fraternidade pode atuar na responsabilização do outro, enquanto esse outro é nosso reflexo e coirmão.

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A REALIDADE NORMATIVA EM GUINÉ-BISSAU

Ao fazermos uma leitura da Constituição da República da Guiné-Bissau, de dezembro de 1996, de imediato percebe-se que não existe uma norma expressa a respeito da proteção integral de crianças e adolescentes. Ao contrário, podem-se concluir, elas constituem a camada vulnerável com que o Estado não está preocupado, pois a doutrina que embasa a estrutura normativa detém concepção menorista. Essa doutrina apreende o universo de crianças e adolescentes como coisas (“res”), e não como sujeitos

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 85 e Políticas Públicas

de direitos passíveis de promoção, proteção ou defesa, portanto, não está preocupada com uma dinâmica protetiva e garantidora de direitos, mas tão somente com uma postura reativa, controladora, por intermédio do poder judiciário no tocante às suas condutas quando violadoras das normas penais vigentes.

Provavelmente, poder-se-ia considerar que tal situação se justificava quando Guiné-Bissau era colônia de uma potência estrangeira – Portugal, mas, atualmente, ela é um país soberano que ratifica convenções internacionais no âmbito dos direitos humanos. A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, promulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1989, preconiza a proteção integral. No entanto, Guiné-Bissau continua com um único instrumento interno pertinente à temática, que é chamado Estatuto da Assistência Jurisdicional dos Menores de Ultramar, de 15 de setembro 1971. A própria designação da legislação por si revela que tipo de “proteção” o Estado dispensa para essa camada da população. Não obstante, a situação social de dominação e exploração em que se vivia com o colonialismo português mostrou-se paulatinamente preocupada com a condição da criança designada como “menor”, ainda que este primeiro olhar fosse tão somente no plano formal. Após a conquista da independência política, nada se fez no âmbito interno sobre essa camada vulnerável da população, nenhuma produção legislativa interna foi criada ou mesmo suscitada a sua criação, o que significa que o Estado Democrático de Direito de Guiné-Bissau não deu a importância devida que esse assunto merece. Basta darmos um pequeno salto para a capital Bissau, ou em outras pequenas cidades do interior do país, como, por exemplo, Bafatá, Gabu e Buba, para constatarmos meninas sem ir para escola e vendendo frutas na rua, e meninos pedindo esmola como criança talibé2, prática essa enraizada na cultura guineense.



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Talibé é uma palavra de origem árabe e significa discípulo ou seguidor; é o termo usado para um menino que é obrigado a mendigar pelas ruas como parte de sua educação corânica.

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Diante deste quadro somos levados a questionar: será que ainda nos dias de hoje a “cultura” pode ser invocada para permitir a violação dos direitos humanos? Entendemos que não, pois nenhuma violência pode ser justificada nas possíveis “tradições”, que, na realidade, não encontram um efetivo embasamento, antes, se situam como práticas que se auto e retroalimentam da própria violência em si. Segundo Fatumata Djau Baldé (2014), presidente do Comitê Nacional para o Abandono das Práticas Tradicionais Nefastas à Saúde da Mulher e da Criança:

[...] existe uma confusão entre a tradição e a religião islâmica, a maioria das pessoas que ainda sustenta esta continuidade diz ser uma recomendação do Islão, já se provou que não, [...] é fundamental continuar a sensibilizar e a educar a população para que haja uma mudança de comportamento, porque “muitas mulheres continuam esta prática por desconhecerem as consequências da mesma”.

Neste sentido, parece-nos de fundamental importância a mobilização social realizada por algumas ONGs – Organizações Não Governamentais – que trabalham com crianças na Guiné-Bissau; citem-se, entre outras: Associação Amiga das Crianças (AMIC), Plan Internacional, Orfanato Casa Emanuel, Sinin Mira Nassequê (que significa na língua mandinga “olhar para o futuro”). Esta ONG luta especificamente para a erradicação da mutilação genital feminina (excisão), praticada na sociedade guineense pelos mesmos grupos étnicos que fazem a prática da criança talibé, que é o grupo islamizado. No caso da mutilação genital feminina (excisão), já existe uma lei que proíbe a sua prática –Lei de 12.08.2011 – sancionada graças ao trabalho de luta e mobilização social (BALDÉ, 2014), promovendo a conscientização da camada da população que a pratica, por intermédio da ONG Sinin Mira Nassiquê junto às fanate-

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 87 e Políticas Públicas

cas3/4. Essa lei representa, efetivamente, uma grande conquista na seara da infância, pois as vítimas desses abusos são meninas.

Tal prática, da mesma forma como o problema de meninos mendigos, as crianças talibés, é considerada nefasta, e retrata um quadro de extrema violência. Portanto, como o Estado adota a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a permanência



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Fanatecas, mulheres que praticam mutilação genital feminina.

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“Os nomes da tortura são muitos: Kakia, no Togo, Sunna, no Sudão, Fanado, na Guiné-Bissau. Uma vez concretizada, a mutilação é irreversível. Se a vítima sobreviver irá sofrer consequências físicas e psicológicas. Apesar do esforço global para acabar com este crime contra os direitos humanos, a mutilação genital feminina, também conhecida pela sigla inglesa FGM, Female Genital Mutilation, continua ser praticada em pelo menos 28 países africanos, na Ásia e no Médio Oriente. Devido aos movimentos migratórios alastrou-se a outras partes do globo como a Europa e a América do Norte. A Alemanha, a França, o Reino Unido e Portugal não são excepção. Vivem na Europa meio milhão de meninas e mulheres que foram vítimas desta tortura. Em todo o mundo estima-se que o número de vítimas seja entre 100 a 140 milhões. [...] Existem muitas variações de mutilação genital feminina, também conhecida por FGM (do inglês, Female Genital Mutilation).[...] A Organização Mundial de Saúde estabeleceu quatro tipos principais: FGM de tipo 1, ou clitoridectomia, são todos os procedimentos que retiram o clítoris, parcial ou totalmente. A função do clítoris é dar prazer sexual à mulher. FGM de tipo 2, ou excisão, consiste em retirar não apenas o clítoris mas também os pequenos lábios (e por vezes também os grandes lábios); FGM de tipo 3, ou infibulação, que consiste em fechar a abertura vaginal. Pode ou não incluir a remoção do clítoris. FGM de tipo 4, nesta última categoria de FGM cabem todos os restantes tipos de mutilação que não têm qualquer objectivo médico, como perfurar, raspar ou queimar a zona genital. A mutilação genital feminina é mundialmente reconhecida como uma violação dos direitos humanos. [...] Sofrimento na hora do corte e risco da SIDA. Além do sofrimento atroz que a maioria delas sente no momento do corte, o doloroso processo de cicatrização da ferida é acompanhado com frequência de infecções, devido ao uso de utensílios contaminados, e dores ao urinar e defecar. Incontinência urinária e infertilidade são outras das sequelas comuns. O facto de serem usadas as mesmas facas ou lâminas para mutilar várias crianças acrescenta o risco de contrair o vírus da SIDA à extensa lista das consequências da mutilação. Os bebés também sofrem Além da mãe, também os recém-nascidos podem sofrer os efeitos nefastos da mutilação. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a taxa de mortalidade infantil é mais elevada em 55 por cento em mulheres que sofreram uma mutilação de tipo III (a infibulação, que consiste em fechar a abertura vaginal). A África Oriental, onde prevalecem as excisões faraónicas, é a zona do globo com o maior índice de mortalidade de mulheres e bebés durante o parto.” Disponível em: . Acesso em: 28 jul. 2014.

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desse cenário aponta que algo precisa urgentemente ser feito, sendo imperiosa uma gigantesca mobilização contra as violações sofridas por aqueles que não têm vez nem voz.

Outro fato que ocorre com muita frequência em Guiné-Bissau é de meninas serem estupradas pelos adultos que as enganam, dizendo que irão comprar as mercadorias que elas vendem. No caso dos meninos, não raras vezes, a mãe não concorda que o filho vá para as escolas corânicas, para tornar-se uma criança talibé, mas obriga-se a se submeter à vontade do marido porque a sua voz – a voz da mulher – é silenciada nessa sociedade onde ela também é vítima de violações. Um instrumento internacional, que de igual modo visa à proteção dos direitos das crianças é a Carta Africana dos Direitos e do Bem-Estar da Criança de 1990, da Organização da Unidade Africana – OUA – Doc. CAB/LEG/24.9/49, que entrou em vigor em 29 de novembro de 1999 (CARTA AFRICANA, 1999). Esse documento foi ratificado por trinta e sete países africanos. GuinéBissau ratificou o referido instrumento em 8 de março de 2005, e constituiu um Comitê de especialistas em direitos e bem-estar da criança, que monitora o cumprimento da Carta Africana do bem-estar da criança. No que concerne à Constituição da República da Guiné-Bissau, destaca-se a existência de um único artigo no texto constitucional africano ao qual é possível relacionar o direito da criança e do adolescente: Artigo 49, n° 1: “Todo o cidadão tem direito e dever à educação”.

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PENSANDO NA EDUCAÇÃO

A educação é um direito previsto no artigo 49 da Constituição da República da Guiné-Bissau, de 1996. A partir desse fundamento jurídico constitucional, não estaria esse Estado africano violando um direito fundamental, quando não contempla políticas públicas que promovam o direito à educação?

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 89 e Políticas Públicas

A resposta, nem sempre fácil, contempla muitas possibilidades, mas, em todas, no caso de Guiné-Bissau, é certa a violação, e inexistem razões que poderiam justificar a falta de políticas públicas voltadas à educação para crianças e adolescentes. De outro modo, na medida em que não há perspectiva de sua proteção, igualmente está ausente a sua promoção e defesa para a geração presente, quer sob a dinâmica do sistema de garantias, quer sob o viés doutrinário, constitucional e jurisprudencial (caso concreto) e, menos ainda, pode-se falar de um futuro, no qual a garantia da proteção integral voltada para a educação esteja presente na vida adulta. Atualmente, a grande maioria das nações do mundo investe em políticas educacionais como forma de capacitar crianças e adolescentes, para que possam desenvolver as suas capacidades e integrarem de modo pleno a sociedade em que vivem.

Na Guiné-Bissau, assiste-se a um quadro desolador: a sucessiva onda de greves dos professores (BISSAU, ANGOP, 2014) impossibilitou que as crianças tenham acesso à escola de forma contínua. Outro motivo que favorece os alunos a abandonarem as escolas se dá em razão das coletas de castanha de caju5, as quais são sazonais6, de sorte que muitas crianças deixam de estudar para entrar nessa atividade para venderem-nas, e assim obterem algum sustento para si e sua família. Esse quadro de exploração do trabalho infantil é mais um que se agrega à situação de flagrante violência em que se encontra a população infantoadolescente africana. O direito à educação implica também o direito à escola, embora esta não se constitua a única promotora da educação, mas é imprescindível no processo de formação humana. Um povo com um número insuficiente de escolas sem capacitação de excelên-



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“A economia da República da Guiné-Bissau (África Ocidental, com 1.6 milhões de pessoas) depende da pesca e da agricultura. A coleta de castanha de caju cresceu substancialmente (80.000 toneladas por ano). A Guiné-Bissau é o 6º exportador mundial de castanha de caju.” Disponível em: . Acesso em: 1º jun. 2014)

“A coleta da castanha de caju é realizada de março a julho.” Disponível em: . Acesso em: 1º jun. 2014)

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cia é um povo fadado ao ostracismo (VERONESE; OLIVEIRA, 2008, p. 100). Aliás, no universo do adolescente, segue importante ser destacado que, infelizmente, via de regra, o jovem somente ganha visibilidade quando pratica um ato delituoso. Em Guiné-Bissau, a idade para o início da responsabilidade penal é aos 16 anos, e a civil é aos 18. Como se pode pensar numa pessoa, que se encontra em peculiar estado de desenvolvimento, se, num momento, esse mesmo sujeito é maior e responsabilizado como se tratasse de um adulto, e, ao mesmo tempo, seja considerado menor para efeito civil? Eis uma gritante ambiguidade. O artigo 10 do Código Penal de Guiné-Bissau responsabiliza criminalmente pessoas singulares a partir do 16 anos de idade, e em nenhum momento se pensou em criar condições para que esses sujeitos – ganhadores da proteção com a Doutrina da Proteção Integral, que se advoga no âmbito internacional – pudessem ter uma intervenção diferenciada, que não a retributiva, comum do Direito Penal.

Na sociedade guineense, esses seres indefesos acabam por responder pela negligência por parte do Estado frente às resoluções de seus problemas sociais. Em consequência, muitos acabam por ingressar na criminalidade, posto que a maioria dos crimes cometidos por essa camada vulnerável da população diz respeito aos crimes de ordem patrimonial, tais como pequenos furtos, somado ao fato de também terem contato com as drogas e com o álcool, o que agrava ainda mais a sua condição de vulnerabilidade. A resposta do Estado e da sociedade é um clamor punitivo por meio de leis mais severas, como se isso bastasse para a resolução dos problemas. Segundo Veronese e Oliveira (2008, p. 104), O Brasil, assim como muitos países, tem sofrido, nos últimos anos, o fenômeno da inflação legislativa no campo penal. E o que isso significa? Significa que se criminaliza por ser a opção mais cômoda para o enfrentamento dos problemas sociais. Este uso indiscriminado e volumoso das leis penais acabou por tornar pesado e gigantesco

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 91 e Políticas Públicas

o Direito Penal, o que resulta numa série de problemas: cria-se a ilusão de que a proteção de certo interesse pela via formal solucionaria um problema que tem na questão socioeconômica a sua raiz; gera sobrecarga nos tribunais e consequente descrença no Poder Judiciário, com causas que poderiam ter uma solução “pacífica” em outras áreas do Direito, como a civil, a administrativa, a tributária, a estatutária. (Lei 8.069/90), etc.

No sistema penal da Guiné, os adolescentes são levados ao cumprimento de pena, após a prática de um delito, mediante atuação da tutela jurisdicional, o que não corresponde à respectiva realidade civil. Portanto, não há como se pensar que se trata de um sistema normativo protetivo, mas sim de um sistema que só age quando há violação à norma penal, e tem, essencialmente, um viés punitivo, na medida em que sequer existe uma preocupação com o desenvolvimento físico, psíquico e/ou mental adequado aos que vão responder e cumprir pela suposta pena. Assim, um adolescente que pratica um delito aos dezesseis anos estará fadado ao cumprimento de pena em estabelecimento prisional junto com os demais adultos infratores.

Entretanto, quando se pensa nesses sujeitos como novos sujeitos de Direito, não se pode ter a educação como instrumento de punição, mas educar com e para a liberdade, estimular a criatividade do adolescente, enfim, todos os mecanismos necessários a uma intervenção que tenha por objetivo a sua inserção social. De acordo com o pensamento de Alessandro Baratta (1999, p. 175), isso não se faz com os três RRR do discurso penal: ressocialização, reeducação e reintegração, conforme já demonstrado pelas inúmeras críticas do autor ao Direito Penal, à falência desse discurso. O autor citado faz severas críticas ao Direito Penal, que tem o papel de discriminar as camadas sociais desfavorecidas, reproduzindo o círculo vicioso da violência social, tornando-se, portanto, mero instrumento de dominação e injustiça. O sistema penal nada mais faz do que administrar a criminalidade, cooptando das clas-

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ses trabalhadoras a sua clientela habitual, não dispondo de meios e sequer o desejando, efetivamente, combater a criminalidade. Para Baratta (1991), se desejássemos um controle efetivo da criminalidade, isto não se daria por meio da Justiça Penal, seria necessário sair deste núcleo de controle e partirmos para o campo das políticas públicas. Nas suas palavras:

El Estado preventivo es entonces el “Estado de la Seguridad”, en el sentido en que esta expresión es usada por Hirsch en un significativo libro de 1980. Éste a su vez, no es sino la manera como la estructura política se adecua a las características de una sociedad que en forma cada vez más acelerada, conduce a situaciones de riesgo: es la forma política que asume la “sociedad del riesgo” tal como Beck ha definido nuestra sociedad. El Estado de la prevención o Estado de la seguridad, precisando entonces, es aquel en el que la producción normativa y los mecanismos decisionales también tienden a reorganizar-se permanentemente como respuesta a una situación de emergencia estructural. (BARATTA, 1991, p. 55)

Na Guiné-Bissau, a própria disposição da estrutura do órgão encarregado pelo tribunal, em se tratando de menores de 16 anos, é deficiente: a começar pela denominação, a “Vara de Menor” que é composta pelo Juiz, pelo Ministério Público como titular de ação penal, e pelo advogado. Não existe a figura do psicólogo, nem do assistente social, o que torna mais gravosa a situação desse sujeito, porque está ausente qualquer possibilidade ou estrutura de proteção.

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A PROPOSTA DE PAULO FREIRE: O PARADOXO DA OPRESSÃO VERSUS AUTONOMIA

Diante do que foi abordado nos tópicos antecessores, são muito oportunas as concepções, o modo de conceber o mundo, enfim, as perspectivas indicadas por Paulo Freire, que será sem-

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pre lembrado como um dos maiores pedagogos do Brasil, quiçá um real modelo de educação para países marcados por histórias de exploração e toda a ordem de opressão. A grande preocupação desse autor foi buscar uma concepção e, acima de tudo, um método capaz de educar para a liberdade. O ponto central da teoria pedagógica de Paulo Freire é o rompimento da opressão criada no intuito de manter determinadas posições sociais. A educação não pode ser instrumento de dominação, deve, de outro modo, funcionar como meio de emancipação e de libertação do homem. Portanto, a lógica do opressor e do oprimido em Paulo Freire assume o paradigma do conjunto, e, por assim dizer, da autonomia, na qual tanto o que pratica quanto o que recebe a opressão são sujeitos que precisam emancipar-se e usufruir de uma tal emancipação que justifique o assentamento de uma postura ética assentada com a realidade dos educandos e educados. Dessa anunciada autonomia decorre a importância do processo educacional libertador e emancipatório, “na apreciação dos problemas e no equacionamento de soluções” (FREIRE, 1997, p. 8) de tal forma que, “absolutamente convencido da natureza ética da prática educativa, enquanto prática especificamente humana” (FREIRE, 1997, p. 8), opressor e oprimido se deem as mãos em uma tarefa de pares, de iguais, de seres em fraternidade.

A imposição de uma forma pedagógica baseada na coerção e na perpetuação de determinadas práticas opressivas é característica ainda presente em nosso modelo educativo. Paulo Freire denomina de “concepção bancária” esta forma de pedagogia. O trecho seguinte demonstra muito bem sua matriz disciplinar e mostra como a educação ainda não conseguiu romper com certos vícios que continuam a ser promotores de preconceitos e desigualdades: Na concepção ‘bancária’ que estamos criticando, para qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimento, não se verifica e nem pode verificar-se esta superação. Pelo contrário, refletin-

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do a sociedade opressora, sendo dimensão da ‘cultura do silêncio’, a educação ‘bancária’ estimula e mantém a contradição.

Daí, então, que nela: a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; [...] e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; f) o educador é o que opta e o que prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição; g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador; h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; i)o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, j) que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos, estes devem adaptar-se às determinações daquele; k) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, meros objetos. (FREIRE, 1997, p. 33)

Para Paulo Freire, a educação é um processo em que não deveria existir educador e educando. Os seres humanos evolvidos na relação de educação aprenderiam um com o outro, sempre tendo por base o objeto a ser conhecido. A educação não significa alguém aprendendo e alguém ensinando, significa um processo mediante o qual ninguém tenta impor ao outro um conhecimento que já vem pronto. O conhecimento seria construído a partir da relação estabelecida entre as pessoas que buscam no respeito à liberdade de seu semelhante a razão para estabelecer o objeto e o modo como este será conhecido. É esse o conceito de educação construído por Paulo Freire: Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática ‘bancária’, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos. (FREIRE, 1997, p. 69)

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 95 e Políticas Públicas

O melhor método educativo na concepção pedagógica de Paulo Freire é o diálogo. Dialogar significa estabelecer relações com os outros e com o mundo; o diálogo é meio de aprofundar as dimensões da palavra, quais sejam: ação e reflexão. O diálogo, quando posto em prática, é instrumento capaz de trazer a igualdade entre os homens, pois, por meio dele, rompem-se os laços de opressão e criam-se laços de fraternidade, ou seja, em um diálogo sincero não há espaço para tentativas de dominação e de exploração por motivos econômicos, ideológicos ou de conhecimento. A confiança, base do processo educativo desse autor, somente pode ser alcançada pelo diálogo: “Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia” (FREIRE, 1997, p. 81).

O processo de interação existente entre os sujeitos agentes da educação é ressaltado por Paulo Freire como modelo de pedagogia. Somente por intermédio da busca conjunta do objeto cognoscível é que será possível se falar de educação. Por isso: “É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos educadores e povo, que iremos buscar o conteúdo programático da educação” (FREIRE, 1997, p. 87). Finalmente, é importante salientar a função criativa reservada à educação. Uma das características que distingue o homem dos outros animais é sua capacidade criativa. A transformação da vida gerada pelo processo educativo é fonte da criação e da ação transformadora do homem. “Com efeito, enquanto a atividade animal, realizada sem práxis, não implica criação, a transformação exercida pelos homens a implica” (FREIRE, 1997, p. 92).

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DIREITO E FRATERNIDADE

A revolução francesa de 1789 proclamou três princípios norteadores da vida político-social: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Esse momento faz lembrar Joaquín Herrera Flores:

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Em todo momento histórico e em toda formação social, surgiram faíscas humanizadoras, ou seja, antagonistas, que levantaram barricadas contra as plurais e multiformes máscaras com as quais disfarçaram-se os totalitarismos e autoritarismos que existiram no mundo. (FLORES, 2009, p. 109-110)

No entanto, a fraternidade, ainda que presente nessa tríade, foi aos poucos passando por um processo de esquecimento, diríamos que consciente, na medida em que um novo sistema ganha destaque no mundo: o sistema capitalista, centrado no individualismo. Inobstante a isso, a fraternidade requer a escuta do outro, e encontra-se centrada no tratamento de igual para igual dispensado ao meu próximo, não como um ser superior, mas como o eu que se põe no lugar do outro.

A liberdade e a igualdade são importantes na medida em que são complementadas pela fraternidade, sem a qual não se pode ser livre se não existem as condições básicas de sobrevivência e igualdade frente a situações que me faz desigual perante o outro; por isso a fraternidade é diferente da solidariedade. Enquanto na fraternidade há uma relação horizontal, de cumplicidade, de dinâmica social, na solidariedade ela é vertical, plasmada na subserviência (VERONESE; OLIVEIRA, 2011, p. 109 e ss.). A fraternidade expressa a dignidade de todos os seres humanos, que são considerados iguais, sendo-lhes assegurados plenos direitos fundamentais (políticos, individuais, culturais, sociais, entre outros), ao passo que a ideia de solidariedade implica a desigualdade dos seres ante a evidência que faz crer que uns poucos possuam muito mais que outros, tanto em bens como em direitos, e isso os torna superiores ou inferiores em relação àqueles. Para tanto, têm-se os indicativos apontados por Baggio (2008, p. 18):

Responder hoje à pergunta sobre a fraternidade requer um esforço coordenado e aprofundado por parte dos

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estudiosos e, ao mesmo tempo, uma disposição para a experimentação por parte dos agentes políticos. Colaboração que não pode ser improvisada nem planejada no escritório; ela nasce da realidade dos fatos, das escolhas de pessoas e de grupos que já estão agindo nesse sentido, começando a oferecer uma amostra de experiências de crescente relevância [...].

Tem-se ainda uma ponderação deveras significativa de Resta (2004, p. 16):

[...] a fraternidade recoloca em questão a comunhão de pactos entre sujeitos concretos com as suas histórias e as suas diferenças, não com os poderes e as rendas de posições que escondem o egoísmo através da abstração (dos procedimentos neutros, do poder de definição, da escolha da relevância dos temas da decisão, da cidadania).

Tomadas as referidas considerações para a realidade africana, é preciso levar em perspectiva a história de sua colonização, já que ela foi um sistema brutal imposto aos povos africanos, e também aos latinos, de exploração e desigualdade social, que naturalizou a violência que hoje é reproduzida gratuitamente nessas sociedades, sem a possibilidade de ver no outro a condição de semelhante. Por isso é importante resgatar o princípio da fraternidade nas sociedades africanas, uma vez que as questões dos direitos, sobretudo das camadas mais vulneráveis da população, são as mais fácies de serem atingidas pela violência, que de tanto serem reproduzidas passam a ser naturalizadas. O descaso com que são tratadas as crianças e adolescentes faz parte da distinção clara que fazemos dos nossos filhos e os filhos dos outros. Na medida em que trago o princípio da fraternidade para a esfera da relacionalidade, no filho do outro vejo meu filho, no rosto de cada criança e/ou adolescente que é violentado no seu direito mais básico, que é o de ser criança ou adolescente, atinge-se tanto a própria criança quanto o conjunto das crianças;

98 Josiane Rose Petry Veronese & Nancy C. P. da F. da S. Monteiro Djata

também, de igual modo e em medida crescente, os adolescentes e os adultos em uma proporção que, talvez, não tenhamos consciência e, nem mesmo o Estado a mantenha registrado em seus dados, permitindo a constatação trágica da falta de progresso histórico, em que seus sistemas normativos ou os organismos de defesa estão a engrossar os números alarmantes de suas estatísticas negativas. A violação de direitos subiu a uma escala sem precedentes, que começa por um pequeno gesto de falta de atenção, depois de ausência cuidados, de não existência de sistemas de garantias ou de aniquilamento de políticas públicas. De igual modo, observase o caso concreto da Guiné-Bissau, carecedora de instrumento de proteção integral por parte do Estado, ou da instituição de mecanismos de sistemas de garantias e da dinâmica de políticas públicas, que, numa onda crescente, culmina pela criminalização de adolescentes (ou até de crianças).

Com efeito, essa lógica nada aceitável e que insiste em sua propagação atinge a exata condição do ser em sua dignidade e qualidade de sujeito de direitos, carente de cuidados, de gestos de fraternidade que lhe cabe em face de ser criança e adolescente, e a quem é devido pelos adultos, por parte do Estado ou de uma política internacional, sob pena de, constantemente, em uma rede que afeta a continuidade e a permanência das gerações presentes e futuras, em sua condição humana de essência e magnitude.

6 CONCLUSÃO

A negligência do Estado torna inoperante a efetivação dos direitos, como o caso das crianças vendedeiras, das crianças talibés, das crianças mutiladas em sua dignidade sexual, ou mesmo submetidas aos casamentos forçados. Não advogamos a tese ingênua de que uma mudança simplesmente normativa irá provocar as mudanças necessárias na sociedade guineense, mas a formulação de um sistema legal que

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 99 e Políticas Públicas

contemple as dimensões presentes na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, bem como na Carta Africana dos Direitos e do Bem-Estar da Criança, de 1990, já se constituiriam em um marco concreto, e, a partir daí, o processo de reivindicação seria mais plausível.

Mas, como chegar à ordem legislativa por meio de uma proposta de lei de parceiros sociais? Neste sentido, é imprescindível a mobilização social, realizada principalmente pelos organismos não governamentais, como é o caso da Associação dos Amigos das Crianças (AMIC), da Plan Internacional, do Orfanato Casa Emanuel, da Sinin Mira Nassiquê. Resta advertir que não se defende a intervenção violenta no Estado para modificar as práticas culturais dos povos africanos, mas a articulação e o diálogo sobre essas práticas culturais. É possível a criação de alternativas. Para isso, basta tomar os aspectos positivos da educação corânica, por exemplo, e retirar os aspectos violadores dos direitos humanos, como a mendicância, os castigos físicos, e deixar apenas a parte educacional sem violência para que não haja choque cultural. A ONG Sinin Mira Nassiquê trabalhou nesse sentido, entre 2001 e 2003, e em todo o país cinco fanados “Ki Kudjidu” foram realizados.

Esses fanados alternativos (MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA, 2014) mantinham o que o ritual tinha de positivo, eliminando as práticas nefastas que lhe eram associadas. Em 2010, reiniciou-se uma nova campanha contra a mutilação, que envolve cinco ONGs guineenses, através do projeto denominado DJINOPI, que significa “vamos para a frente”. O DJINOPI prevê apoios às fanatecas para que encontrem alternativas profissionais de modo que tenham um rendimento que as mantenham e, o que é muito importante, em termos de respeito à cultura, a manutenção do prestígio social. Algumas dessas fanatecas tornaram-se animadoras e trabalham nas comunidades para acabar com a excisão. Com isso, são mantidas as suas insígnias e resguardado seu papel de guardiãs da tradição, no entanto, consolida-se o abandono da

100 Josiane Rose Petry Veronese & Nancy C. P. da F. da S. Monteiro Djata

faca. Este novo modo de ser uma fanateca passa também pela educação, que vem apoiando o ensino das crianças, principalmente nas zonas rurais, onde a taxa de analfabetismo atinge 90 por cento (MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA, 2014).

Para Maria Domingas Gomes, “alfabetizando as pessoas, porque aquelas, que já têm escolaridade, sabem qual é a consequência da excisão e já não deixam as suas filhas” (MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA, 2014). Enfim, o direito da criança e do adolescente não foi recepcionado até o momento pela ordem jurídica guineense, em que pese o país ter ratificado a Convenção Internacional dos Direitos da Criança. As práticas quotidianas estão muito distantes de um efetivo respeito à condição de ser criança, haja vista as muitas violações a que são submetidas. Enquanto na Convenção Internacional dos Direitos da Criança há a previsão de um sistema de Proteção Integral, o sistema em vigor em Guiné-Bissau é ainda menorista e jurisdicionalizado.

Por isso, faz-se imprescindível e urgente adequar a legislação interna à normativa internacional. Assim, como houve uma mobilização social para empreender a luta de libertação nacional, com vistas a restaurar a dignidade do homem africano, nos mesmos moldes deve-se também fazer uma grande mobilização social para a conquista dos direitos negados a uma camada fragilizada na nossa sociedade, que são as crianças e os adolescentes.

REFERÊNCIAS

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MOVIMENTO PELAS CRIANÇAS E JOVENS DA GUINÉ-BISSAU aplaude levantamento da greve de professores. Disponível em: . Acesso em: 1º jun. 2014.

MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA - parte3: Guiné-Bissau diz sim à tradição e não à mutilação. Disponível em: . Acesso em: 29 maio 2014. PRINCÍPIOS BÁSICOS PARA FAZER NEGÓCIOS COM O CAJU. Disponível em: . Acesso em: 1º jun. 2014. LEI QUE PROÍBE MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2014.

VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, Olga Maria B. A. (Orgs.). Direitos na pós-modernidade: a fraternidade em questão. Florianópolis: Funjab, 2011. VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, P. C. Luciene. Educação versus Punição: a educação e o direito no universo da criança e do adolescente. Blumenau: Nova Letra, 2008.

Capítulo 6

O

USO DE CASTIGOS CORPORAIS COMO MÉTODO DE EDUCAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE

André Viana Custódio Pós-Doutor em Direito na Universidade de Sevilla/Espanha (2012). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002). Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor permanente nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul. Colaborador externo do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente (NEJUSCA/UFSC). Pesquisador do Grupo Políticas Públicas de Inclusão Social (UNISC) e Coordenador do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA/UNISC). Coordenador do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo CNPq. Fellow da Ashoka Empreendedores Sociais. Foi Coordenador Executivo do Instituto Ócio Criativo, Consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, do Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate à Fome e da Organização Internacional do Trabalho.

Felipe da Veiga Dias Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bolsista da CAPES (nº 12333/13-1) - Doutorado Sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Especialista em Direitos Fundamentais e Constitucionalização do Direito – PUC/RS. Professor da Faculdade Metodista de Santa Maria (FAMES), Santa Maria/ RS, Brasil. Integrante dos Grupos de Estudos em Direitos Humanos

104 André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias

de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo CNPq. Advogado.

Gustavo Kist Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo CNPq.

1 INTRODUÇÃO O tema abordado neste capítulo versa sobre a utilização de castigos físicos como suposta forma de educação, visando problematizar o dogma social de que não há outro meio para se educar melhor que a punição física. Por meio da análise de normas nacionais e internacionais referentes à temática, considerando também as políticas públicas presentes no município pesquisado de Venâncio Aires/RS, bem como explorando, por meio da pesquisa interdisciplinar, os resultados gerados pela violência quando utilizada para “educar”, busca-se compreender este complexo fenômeno que leva o amor a se transformar em violência física. O método utilizado na abordagem foi o dedutivo e, como método de procedimento, o monográfico, utilizando-se pesquisa bibliográfica e documental.

2

ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO AFETA À TEMÁTICA

Na seara nacional, a violência intrafamiliar foi reproduzida e até mesmo vista como um dever familiar, sendo tida como uma

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 105 e Políticas Públicas

demonstração de afeto, de preocupação (PRIORE, 2004). Desta forma, o histórico de legislações nacionais que tratavam da temática sempre trouxeram à criança ou ao adolescente a letra da lei apenas quando estes cometiam algum “crime” ou irregularidade (CUSTÓDIO, 2009), fazendo com que espancamentos de crianças e adolescentes fossem vistos com bons olhos pela sociedade sob a justificativa do pátrio poder. A Constituição Federal de 1988 foi o marco no plano nacional, adiantando-se à Convenção Internacional dos Direitos da Criança1, ao trazer a Teoria da Proteção Integral ao ordenamento jurídico nacional, acabando com a percepção jurídica de crianças e adolescentes como objetos disponíveis à vontade de seus responsáveis (CUSTÓDIO, 2009). Para fim deste trabalho, conceitua-se violência intrafamiliar como,

[...] toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação de poder à outra. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001, p. 17)

Em 1989, ocorre a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, a qual é o marco no âmbito internacional da proteção de crianças e adolescentes, sendo que o Brasil se tornou signatário dessa Convenção por meio da Lei 8.069/90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual completou a adoção da teoria da proteção integral no ordenamento jurídico pátrio (SCHREIBER, 2001).



1

Destaca-se que, para fins da Convenção, criança é todo sujeito até 18 anos, sendo uma adoção do legislador brasileiro a divisão entre criança e adolescente.

106 André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias

Tendo a teoria supracitada como base, entende-se que,

[...] todos os atos relacionados ao atendimento das necessidades da criança e do adolescente devem ter como critério a perspectiva dos seus melhores interesses. Essa perspectiva é orientadora das ações da família, da sociedade e do Estado, que nos processos de tomada de decisão, sempre, devem considerar quais as oportunidades e facilidades que melhor alcançam os interesses da infância. (CUSTÓDIO, 2009)

Muito embora a proteção integral esteja presente na Carta Política, em mecanismos internacionais e em legislação específica, o ordenamento jurídico pátrio ainda possui algumas legislações fundamentadas na visão de crianças e adolescentes como meros objetos (LEME, 2005). Percebe-se este caráter no Código Civil de 2002 (Lei 10.406), que em seu artigo 1.638 discorre sobre as causas que ocasionam a perda do poder familiar, Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I - castigar imoderadamente o filho; II - deixar o filho em abandono;

III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente. (BRASIL, 2002. Grifo nosso.)

Ao analisar o Código Civil de 1916 (Lei 3.071), percebe-se que este artigo já estava presente no Código Civil anterior2, sendo equivocamente recepcionado no atual, pois em seu inciso I faculta o uso de castigos limitado apenas ao conceito de moderado3 o qual é absolutamente subjetivo.



2 3

Para melhor compreensão, ver artigo 395 do Código Civil de 1916.

Neste contexto, a CIDH observa que, já que nas Américas o castigo corporal é concebido como uma prática “razoável” e “moderada”, sendo majoritariamente aceito e permitido como um método necessário para corrigir a conduta das

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 107 e Políticas Públicas

Destaca-se também o artigo 136 do Código Penal (Decreto-lei 2.848/40),

Art. 136. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina. (BRASIL, 1940. Grifo nosso.)

O artigo supramencionado limita a tutela penal ao conceito de abuso, o qual também é subjetivo; ainda destaca-se a incongruência aos mecanismos nacionais, visto que, ao analisarmos o artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente,

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. (BRASIL, 1990. Grifo nosso.)

percebe-se que há um conflito aparente de normas,

[...] entretanto, deve-se entender a aplicação de castigos físicos contra criança e o adolescente como violação dos direitos garantidos constitucionalmente e, violação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, devendo este ser considerado hierarquicamente superior aos demais diplomas

crianças e adolescentes, se configura uma situação de diferenciação não proporcional nem razoável a respeito dos menores de 18 anos. Isso faz com que só sejam punidos os casos de violência extrema ou que deixam marcas físicas em crianças e adolescentes. A CIDH observa que esta situação é contraditória, pois se esta prática for dirigida aos adultos não tem legitimidade; exemplo disso é que no direito interno existem disposições penais que proíbem toda forma de agressão e abuso contra adultos que se concretizam na tipificação de delitos de lesões e faltas contra a integridade pessoal. (OEA, 2009, p. 30)

108 André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias

utilizados e descritos neste capítulo, visto que possui a classificação de Lei Especial.

Dessa forma, todas as ações, sejam administrativas ou judiciais, devem pautar-se pelo paradigma da Proteção Integral e não pelo viés da legislação infraconstitucional. (LEME, 2009, p. 56)

Identifica-se uma grande evolução no ordenamento jurídico pátrio, entretanto, após séculos de reprodução, é latente a necessidade de políticas públicas ininterruptas visando à desconstrução da visão estigmatizadora sobre a população infanto-juvenil.

3

ANÁLISE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS REFERENTES À TEMÁTICA, PRESENTES NO MUNICÍPIO DE VENÂNCIO AIRES

As várias formas de violência são conexas, estando, pois, uma criança que sofre violência física mais sujeita a sofrer abuso sexual (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002). Por consequência, qualquer política contínua que tenha o condão de buscar o fim de alguma forma de violação de direitos de crianças e adolescentes está, mesmo que indiretamente, contribuindo para o fim da utilização de violência física como suposta forma de educar. Por conseguinte, políticas públicas, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), por meio de sua busca pelo fortalecimento de vínculos familiares, surtem efeito no âmbito da redução da violência intrafamiliar (BRASIL, PROGRA-MA DE ERRADICAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL, 2004). Percebeu-se também muito ativo o programa Primeira Infância Melhor (PIM, 2006), o qual busca a integração entre a sociedade e a família, a fim de buscar o desenvolvimento integral de crianças de até seis anos. Conclui-se esta breve explanação de políticas relevantes à temática destacando as atividades realizadas pelo Programa Atenção Integral à Família, realizado pelo Sistema Único de Assistência Social a partir de uma equipe multiprofissional, que

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 109 e Políticas Públicas

objetiva promover a garantia de direitos e sua inserção nos serviços da rede básica de proteção.

No que tange à erradicação da violência intrafamiliar, vê-se como poucas e tímidas as políticas que visam seu fim. Acreditando-se que por se tratar de uma forma de violência que, via de regra, ocorre no âmbito do lar, a única forma de se garantir o seu fim é por meio da sensibilização da sociedade, demonstrando os efeitos gerados pela violência.

Para tanto é válido lembrar que esse problema só terá um fim com a colaboração de todos, pois o dever de garantir o bem-estar de crianças e adolescentes é da família, da sociedade e do Estado. Destarte, ressalta-se o dever de todos de denunciar, por meio do Conselho Tutelar4 ou da Secretária de Direitos Humanos da Presidência da República por meio do disque 100, toda e qualquer violência verificada no âmbito familiar.

4

RESULTADOS GERADOS PELA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

A palavra família tem em sua origem a ideia de cuidado mútuo (VERONESE; COSTA, 2006). Partindo deste preceito, entendese que não há lugar para violência sob justificativa alguma, pois



4

A verdadeira prática educativa descaracteriza o erro como fim, e o concebe como meio viabilizador de um processo de transformação. A educação transcende o erro e edifica-se a partir dele. Corrige o ato e aposta no sujeito. Transforma, acredita, desperta a consciência, valoriza a liberdade, a diversidade, o respeito e a dignidade humana. Possibilita ao ser humano redescobrir a sua humanidade. (VERONESE; OLIVEIRA, 2008, p. 30)

Encontram-se os telefones do Conselho Tutelar de todas as cidades do Brasil no seguinte endereço eletrônico: .

110 André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias

Destarte, a utilização da violência física, mesmo que de forma que não gere danos visíveis no ato, pode causar efeitos severos a médio e longo prazo. Os estudos demonstram que pais autoritários, que têm condutas muito rígidas, tendem a gerar filhos retraídos, descontentes e apreensivos, instigando neles também raiva e hostilidade. Demonstram uma personalidade menos sociável e tendem a possuir menos autoconfiança, assim como se percebe que apresentam retardos escolares, dificuldade de expressão e até mesmo uma personalidade sociopata (VERONESE; COSTA, 2006). No mesmo sentido, Gauer et al. (2009, p. 265) lecionam:

[...] crianças que foram abusadas e negligenciadas apresentam um risco aumentado de serem presas por um crime violento quando adultos. Desta forma, os profissionais da área da saúde poderiam dar uma maior contribuição para a reeducação dos índices de violência. Porém, os resultados só ocorreriam para as próximas gerações.

Assim entende-se que as “palmadinhas”5 doem, por gerarem traumas não só físicos, mas também psicológicos, trazendo a ideia do obedecer, sem se fazer entender. Não geram maior compreensão ao indivíduo sobre determinado tema, apenas obriga-o a cumprir por se sentir incapaz de enfrentar determinada situação (VERONESE; OLIVEIRA, 2008).

5 CONCLUSÃO

Por muitos séculos, viu-se como dogma a necessidade da violência física na educação da população infantojuvenil, sendo que apenas em 1988, com a Carta Magna, é que se pode garantir, a todos, os direitos inerentes à sua condição humana, porém,



5

Ressalta-se a comum utilização de nomes pomposos que mascaram a violência física contra crianças, especialmente nos primeiros anos de vida da vítima.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 111 e Políticas Públicas

crianças e adolescentes, devido a uma série de fatores, dentre eles cita-se o cultural, ainda são vítimas de todas as formas de violência, a qual ainda é vista por muitos como um dever dos responsáveis. Percebido o caráter epidemiológico da violência na sociedade, entende-se como absolutamente necessárias políticas públicas destinadas à proteção de crianças e adolescentes, visto sua condição peculiar de sujeitos em desenvolvimento. Há necessidade de políticas públicas de caráter preventivo e restaurativo, de caráter educativo e legislativo, a fim de sensibilizar a sociedade, que hoje apoia os castigos físicos acreditando estar promovendo a educação, mostrando-a que a verdadeira aprendizagem se dá com erros e acertos, mas sobretudo com o direito de tê-los. A violência nunca é uma solução, pelo contrario, é a materialização da completa ausência de soluções.

REFERÊNCIAS

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112 André Viana Custódio & Felipe da Veiga Dias

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LEME, Luciana Rocha. A permissão dos “castigos moderados” no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Criciúma, 2005. 74f. Monografia de graduação – Departamento de Direito, Universidade do Extremo Sul Catarinense, 2005.

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SCHREIBER, Elisabeth. Os direitos fundamentais da criança na violência intrafamiliar. Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001. VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli M. M. da. Violência Doméstica: Quando a Vítima é a Criança ou Adolescente – Uma Leitura Interdisciplinar. Florianópolis: OAB/SC, 2006.

VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, Luciane de C. P. Educação Versus Punição: A Educação e o Direito no Universo da Criança e do Adolescente. Blumenau: Nova Letra, 2008.

Capítulo 7

B

ULLYING E A VIOLAÇÃO AO DIREITO À EDUCAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE1

Gláucia Gonçalves Rodrigues Graduada em Direito da Faculdade Meridional – IMED, Passo Fundo/RS.

Lívia Copelli Copatti Doutoranda em Direito pela Universidade Estácio de Sá – UNESA/ RS. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC/RS. Bacharel em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI/RS. Professora da Escola de Direito da Faculdade Meridional – IMED. Advogada.

1 INTRODUÇÃO É sabido que a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente são de suma importância para estabelecer garantias de acesso a direitos de crianças e adolescentes, uma vez que foi a partir da criação de tais normas que houve a quebra da antiga visão que se tinha quanto à concepção de “menor” que por longos anos prevaleceu no País.



1

O presente trabalho é decorrente do Trabalho de Conclusão de Curso de Direito elaborado pela primeira autora, Gláucia Gonçalves Rodrigues sob orientação da professora Lívia Copelli Copatti, segunda autora.

116 Gláucia Gonçalves Rodrigues & Lívia Copelli Copatti

Ultrapassada a fase de caracterização da criança e do adolescente como “menor”, despido de qualquer tipo de proteção por parte do Estado, surge hoje uma nova problemática acerca dos direitos dos infantes, que são as práticas de bullying. Para desenvolver a temática, primeiramente será feita uma análise do histórico e de alguns princípios que norteiam os direitos da criança e do adolescente e, na sequência, desenvolve-se a compreensão do bullying e dos envolvidos nessa prática – vítimas, agentes e espectadores. Por fim, é feito o estudo sobre o direito fundamental à educação e sua violação pelo bullying, assim como serão levantadas as possíveis medidas acerca dessa prática que podem ser adotadas para coibi-la, como a mediação, políticas públicas e a justiça restaurativa.

O desenvolvimento do presente capítulo está voltado para a plena compreensão do bullying como um fenômeno social que traz diversas violações aos direitos de crianças e adolescentes, mais especificamente ao direito à educação, demandando ações para sua prevenção.

2

ASPECTOS HISTÓRICOS E PRINCIPIOLÓGICOS DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Historicamente, a evolução da criança pode ser explicada dividida em fases, como o faz Jadir Cirqueira de Souza (2008, p. 55), em que cada uma é apresentada conforme a maneira como a criança era vista à época. Citando, são as fases: infanticida, de abandono, ambivalente, instrutiva, social e de ajuda (SOUZA, 2008, p. 55). Na fase inicial, a infanticida, as crianças eram vistas como sendo algo que não detinha importância, considerada “mais um” e não um sujeito de direitos como era visto o homem adulto. Nessa fase, muitas crianças acabavam sendo mortas, principalmente devido às dificuldades econômicas existentes à época, compreendida especialmente nos períodos entre a Antiguidade e o século IV (AJURIAGUERRA apud SOUZA, 2008, p. 55).

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 117 e Políticas Públicas

A fase seguinte se passa entre os séculos IV e XIII, e é chamada de fase do abandono, não havendo mais tantas mortes como na fase infanticida, mas ocorrendo o abandono dos filhos pelos pais, com as crianças largadas, deixadas à própria sorte. Nessa fase, os pais começaram a aceitar a ideia de que crianças também tinham alma, assim como eles, acabando por originar a fase seguinte, chamada de ambivalente, na qual a criança passa a ser tratada com mais carinho, mas ainda é vista somente como parte empregada da família, ocorrendo entre os séculos XIV e XVI (AJURIAGUERRA apud SOUZA, 2008, p. 55).

Após esse período, vem a fase instrutiva, que ocorre no século XVIII, quando os pais criam uma aproximação maior com os filhos, ainda que praticamente insignificante. Já no período social, que vigorou nos séculos XIX e XX, a aproximação cria laços de amor e de educação que são transmitidos aos filhos. Finalmente, chega-se à última fase, a de ajuda, ou seja, quando os próprios filhos passam a ajudar e a proteger seus pais (AJURIAGUERRA apud SOUZA, 2008, p. 55).

Ao observar de forma breve o percurso da criança e do adolescente na antiguidade, percebe-se que não tinham qualquer tipo de direito, não sendo considerados sujeitos de direito. Os cuidados que hoje as crianças possuem graças à proteção integral, que será vista na sequência, não existiam, pois eram simplesmente abandonadas à própria sorte, e como bem assegura Philippe Ariès (1981, p. 17), ao tratar sobre a descoberta da infância, até por volta século XII, anteriormente vista como a fase do abandono, não havia lugar para as crianças no contexto daquela sociedade. Essa visão evoluiu, sendo que o direito da criança e do adolescente atual rege-se pela doutrina da proteção integral e pelos princípios norteadores da infância e juventude, concretizados pela própria Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). As legislações anteriores à adoção da doutrina da proteção integral demonstravam que toda a criação jurídica existente

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se referia aos infantes como “menores”, com um aspecto apenas repressivo, já que “são raras as obras jurídicas que mostram a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes na perspectiva protecionista sem o uso dos ditamos do direito criminal” (SOUZA, 2008, p. 53). A evolução dos direitos de crianças e adolescentes acabou por passar pelos documentos que foram surgindo para sua proteção. Inicialmente foram no âmbito internacional de garantia, sendo que a principal é a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, documento no qual os direitos do homem começaram a aparecer e a se tornar fundamentados de alguma maneira, valorizando a concepção de pessoa, de felicidade, de família e também dando direitos àqueles que ainda não os tinham, surgindo a ideia da dignidade da pessoa humana.

Assim, é na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 que o direito da criança e do adolescente é primordialmente observado, em especial, nos seus artigos 25 e 26, onde se reconhece que necessitam de cuidados especiais, como o padrão de vida, saúde e principalmente a instrução, podendo ser entendida como o direito de convivência da criança ou adolescente no meio em que vive – escola e sociedade.

Mais tarde veio a concretização dos direitos pela Declaração dos Direitos da Criança, de 1989. Tal Declaração surge, assim, para tutelar os direitos de crianças e adolescentes que contêm certa fragilidade em comparação com os adultos, desde sua capacidade física e mental até seu próprio desenvolvimento, e proteção ao seu bem-estar. Na Declaração estão elencados dez princípios, sendo que o primeiro traz a ideia da proteção das crianças independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou quaisquer outras condições, tendo elas todos os direitos previstos na Declaração (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989).

Os princípios seguintes dizem respeito à proteção: direito à nacionalidade; aos benefícios da previdência social, assim

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como direitos relativos à saúde, tanto da mãe quanto da criança, trazendo a ideia de assistência médica, habitação e alimentação; cuidados especiais que a criança poderá precisar caso apresente alguma incapacidade, que pode ser física, mental ou social e, para isso, serão garantidos tratamentos e educação especial para auxiliar na efetivação da dignidade da criança ou do adolescente; desenvolvimento físico, mental e da personalidade da criança. Mas o que merece maior destaque e atenção para este estudo é o princípio de número sete, onde se observa: Princípio 7

A criança terá direito a receber educação, que será gratuita e compulsória pelo menos no grau primário. Serlhe-á propiciada uma educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a, em condições de iguais oportunidades, desenvolver as suas aptidões, sua capacidade de emitir juízo e seu senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade.

Os melhores interesses da criança serão a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e orientação; esta responsabilidade cabe, em primeiro lugar, aos pais. A criança terá ampla oportunidade para brincar e divertir-se, visando os propósitos mesmos da sua educação; a sociedade e as autoridades públicas empenhar-se-ão em promover o gozo deste direito. [...]

Princípio 9

A criança gozará de proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma.

Não será permitido à criança empregar-se antes da idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira em seu desenvolvimento físico, mental ou moral. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989. Grifo nosso.)

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O princípio número sete prevê o direito a uma educação de qualidade, sendo que a primeira responsabilidade pertence aos pais e, após, é à escola conjuntamente com a sociedade, fazendo com que a criança tenha plenas condições de desenvolver suas qualidades e ser um cidadão consciente de seus direitos e deveres. Também há a previsão do princípio nove, garantindo a proteção das crianças contra qualquer tipo de crueldade ou exploração, estando direcionado para a proteção contra a exploração no trabalho infantil, garantindo, além da integridade, o direito à educação, de forma que não seja violado pelo trabalho, que afasta crianças da escola.

Portanto, observa-se que a Convenção trouxe mecanismos importantes para a proteção e desenvolvimento das crianças e dos adolescentes e, com isso, possibilitou difundir nos países que a ratificaram medidas para a proteção desses sujeitos que necessitam tanto da atenção, carinho e respeito daqueles que são responsáveis por eles. No Brasil, o direito da criança e do adolescente veio primeiramente a partir de legislações como o Código de Menores de 1927, que foi aprovado pela “Associação Brasileira de Juízes de Menores, por ocasião das Comemorações relativas ao Ano Internacional da Criança, da Organização das Nações Unidas (ONU)” (CUSTÓDIO, 2009, p. 20). Com essa doutrina, os “menores” poderiam ser julgados quando cometessem infrações que tivessem cunho de irregularidade, não havendo na lei qualquer tipo de amparo jurídico de medidas protetivas, por exemplo, e aos que não cometessem irregularidades não havia nenhum cuidado especial (BRASIL, 1927).

Mais tarde, surgiu a Doutrina da Situação Irregular do Menor, que foi instituída pela Lei 6.697, de 10 de outubro de 1979, superando o anterior Código de Menores de 1927. A partir da Lei de 1979 surgiu o primeiro norte do que hoje é conhecido como princípio do melhor interesse, pois, como se observa no Código

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de Menores de 1979, o seu artigo 5º determinava que: “na aplicação desta lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado” (BRASIL, 1979). Ao observar este dispositivo legal, é possível verificar que os interesses da criança começam a surgir, timidamente, mas que acabou por desenvolver um dos princípios basilares do direito da criança e do adolescente.

O Código de Menores de 1979 veio com o principal objetivo de dar “assistência, proteção e vigilância a menores” conforme expressa o artigo 1º. Mas o caráter desse Código era mais para repreender “menores” que se encontrassem em situações irregulares e, para isso, especificou quais seriam estas situações em seu artigo 2º, destacando-se o inciso I, que tratava do menor que estivesse “privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las;[...]” (BRASIL, 1979). Como pode ser observado, as principais características se mostram no modo que a criança e o adolescente eram vistos à época, sendo um objeto sem qualquer tipo de amparo legal, tendo visibilidade apenas quando cometiam irregularidades como as descritas acima. Essa perspectiva foi sendo esvaziada com o avanço social e por meio das lutas democráticas para garantir direitos a crianças e adolescentes, principalmente na década de 1970 e 1980 (PINHEIRO, 2004, p. 346). Essas movimentações políticas tinham como principal objetivo a criação de uma nova Constituição brasileira, e junto a esses movimentos sociais estavam aqueles que lutavam em defesa dos direitos dos “menores”, fazendo nascer a ideia da proteção integral (CUSTÓDIO, 2009, p. 25). A implementação dos direitos da criança e do adolescente na Constituição Federal de 1988 trouxe o amparo há tempos pleiteado pelos movimentos sociais, e a primeira ideia de pro-

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teção integral e outros princípios até então novos para a atual Constituição.

Para maior compreensão do tema em estudo, é de suma importância conhecer, além do breve histórico do direito da criança e do adolescente, alguns princípios que regem o direito da criança e do adolescente como um todo; são eles: o princípio da proteção integral, o princípio da prioridade absoluta e o princípio do melhor interesse. O princípio da proteção integral está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana. Ana Paula Motta Costa (2012, p. 128) esclarece que a proteção integral, “base jurídica das convenções internacionais de que o Brasil é signatário, tem seus desdobramentos em um conjunto de direitos, cujos titulares são os adolescentes brasileiros, em sua generalidade de especificidade”.

A Constituição Federal de 1988 observou para os direitos da criança e do adolescente a fundamentação no princípio da dignidade da pessoa humana, mas não se esqueceu de incorporar, também, fundamentações sobre direitos humanos e sobre a Convenção Internacional dos Direitos da Criança (COSTA, 2012, p. 128).

Na Constituição Federal, o princípio da dignidade da pessoa humana é visto como um dos basilares, sendo a dignidade uma qualidade essencial de todo e qualquer ser humano, característica que o define como sujeito de direitos. Crianças e adolescentes logicamente são indivíduos e, portanto, deve ser tal princípio estendido a eles.

Crianças e adolescentes têm sua dignidade reconhecida e seus direitos estabelecidos, mas, por encontrarem-se numa condição peculiar de desenvolvimento físico e cognitivo, essa fase demanda amparo, proteção e cuidado especiais, sendo isto responsabilidade da família, da sociedade e do Estado (COSTA, 2012, p. 131).

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O princípio da proteção integral é o que mais se encontra em ordenamentos internacionais voltados para a proteção da criança e do adolescente (COPATTI, 2011, p. 65). No ordenamento jurídico brasileiro, tal princípio pode ser encontrado no artigo 227 da Constituição Federal de 1988 e também nos artigos 1º e 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Com a inserção desse princípio no ordenamento jurídico, além do reconhecimento de seus direitos, trouxe também:

[...] reflexos muito claros não somente no que se refere aos conceitos e limites jurídicos sobre crianças e adolescentes, mas também no âmbito social, ético e moral, com o pleno reconhecimento de que seus direitos básicos devem ser garantidos e que isto é um dever do Estado, através de políticas públicas (sociais, econômicas, administrativas, judiciárias), da sociedade (atuação para que os direitos sejam concretizados) e da própria família (locus privilegiado do desenvolvimento da personalidade da criança e de onde advêm os valores que levará por toda a vida), atuando assim, como “gestores da implementação” de condições ao pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes pelo sistema integrado de garantia de direitos. (COPATTI, 2011, p. 70)

Portanto, fica assim evidenciada a importância do princípio da proteção integral, pois acaba sendo exatamente contrária àquilo que anteriormente era visto como lei, como o antigo Código de Menores de 1979, com a sua ideia de situação irregular, passando, então, a ter caráter protetivo ao assegurar à criança e ao adolescente todos os seus direitos, ou seja, todos aqueles que são seus por direito e mais aqueles que são direito de todos.

O princípio da prioridade absoluta foi observado primeiramente na Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1959, no seu princípio oitavo, e se refere à proteção e socorro das crianças em quaisquer circunstâncias, mostrando assim que as crianças detêm de amparo prioritário (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES

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UNIDAS, 1989). No âmbito brasileiro, tal princípio está elencado no artigo 227 da Constituição Federal, e cuja responsabilidade da prioridade na proteção e socorro às crianças é da família, da sociedade e do Estado, para assim garantir sua dignidade e os cuidados de que necessitam.

No Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), esse princípio é aparece de maneira mais clara no artigo 4º que diz ser responsabilidade da família, da comunidade e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos dos infantes. No parágrafo único há referência a esta prioridade, sendo notada também nos casos em que existir “situações conflituosas” (COPATTI, 2011, p. 83), ou seja, quando o direito a ser buscado pertencer à seara dos direitos da criança e do adolescente contra outro direito, mesmo que ambos sejam direitos fundamentais, a preferência é o atendimento ao direito dos infantes. Art. 4º [...] Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. (BRASIL, 1990. Grifo nosso.)

O Estatuto, portanto, como lei especial, tem a singular missão de proteger e resguardar os direitos da criança e do adolescente, mas é necessário, também, compreender que, quando houver direitos divergentes entre si, será preciso utilizar o método da ponderação (ROSSATO; LÉPORE; CUNHA, 2010, p. 98).

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Exemplo dessa situação pode ser citado nos casos em que haja urgência de atendimento público pelo Sistema Único de Saúde, sendo os pacientes um adolescente e um idoso. Ambos têm direito à prioridade, mas ela acaba por ser relativizada se colocada uma contra a outra. Portanto, a prioridade absoluta continua sendo como uma garantia absoluta, mas esse princípio, que também é norma, quando em conflito com outro princípio ou norma, deve ser analisado por meio do método de Alexy, ou seja, a ponderação, conforme explica Luís Roberto Barroso (2011, p. 357):

Como se sabe, ela se desenvolve por via de um raciocínio silogístico, no qual a premissa maior – a norma – incide sobre a premissa menor – os fatos -, produzindo um resultado, fruto da aplicação da norma no caso concreto. Como já assinalado, esse tipo de raciocínio jurídico continua a ser fundamental para a dinâmica do Direito. Mas não é suficiente para lidar com as situações que envolvam colisões de princípios ou de direitos fundamentais.

Por este ponto de vista sobre o que é a ponderação, verifica-se que nos casos em que há um direito da criança e do adolescente, que, em tese, é absoluto, precisa ser “relativizado” por outro direito também muito importante para o caso concreto. Por mais que Barroso entenda que a ponderação não seja o suficiente nos casos de colisões de conflitos, é justamente aí que ocorrem tais “relativizações”. A ponderação apresenta três etapas importante para sua descrição, sendo a primeira “detectar no sistema de normas relevantes para a solução do caso, identificando eventuais conflitos entre elas” (BARROSO, 2011, p. 358); a segunda etapa diz respeito ao exame dos fatos, “as circunstâncias concretas do caso e sua interação com os elementos normativos” (BARROSO, 2011, p. 359), pois é no momento em que há o caso que a norma ou o princípio será colocado à prova. Mas é na terceira etapa que “a ponderação irá singularizar-se” (BARROSO, 2011,

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p. 359), pois, nesta fase, tem-se a decisão de qual a norma ou direito fundamental será utilizado, qual irá se sobressair, ficando a outra a cargo do princípio da proporcionalidade.

Faz-se necessário observar que a ponderação é aquilo que existe de mais importante no conflito entre princípios, ainda mais quando se trata de direitos da criança e do adolescente pelo princípio da prioridade absoluta.

Assim, sempre que possível, deverá ser aplicado o princípio da prioridade absoluta para garantir e concretizar os direitos de crianças e adolescentes, previstos em diversos documentoslegaisinternacionaisenacionais,semprevisandoobem-estar e a dignidade de crianças e adolescentes. Junto aos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta está o princípio do melhor interesse da criança. Esse princípio atinge todo o sistema jurídico nacional e tem como efeito condicionar a interpretação ampla das normas. Na prática, a sua aplicação impede abusos de poder pela parte mais forte da relação jurídica nos assuntos que envolvem a criança, visto que, nesse caso, a criança é parte hipossuficiente, merecedora de proteção jurídica ampliada. Tal princípio teve como berço a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança que o estipulou em vários artigos e também o dispôs no próprio preâmbulo, reconhecendo “a importância da cooperação internacional para a melhoria das condições de vida das crianças em todos os países, especialmente nos países em desenvolvimento” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989). Assim é também disposto em artigos específicos ao longo da Convenção, como o artigo 37, ao estabelecer o que os Estados-partes deverão zelar pelo melhor interesse da criança. Outro artigo que menciona esse princípio é o 40.2 da Convenção, ao dizer que a proteção será dada pelos Estados-partes caso alguma criança ou adolescente tenha infringido leis penais.

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A Declaração dos Direitos da Criança também menciona como um de seus princípios o melhor interesse da criança, demonstrando assim a sua importância para regular as relações jurídicas que envolvem a criança e o adolescente, sendo “a diretriz a nortear os responsáveis pela sua educação e orientação” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1989).

É possível verificar nestes dois artigos citados, juntamente ao que se refere no preâmbulo da Convenção, que o melhor interesse da criança está retratado numa abrangência ampla, mas se encontra normatizado na Constituição Federal (art. 227) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 3º) apenas de forma indireta. Entretanto, somando-se aos outros princípios, como a proteção integral e a prioridade absoluta, forma uma rede capaz de prover a tão necessária defesa e proteção dos direitos da criança e do adolescente, preservando seu bem-estar e sua dignidade. Após este breve apontamento histórico sobre os princípios do direito da criança e do adolescente, fica mais clara a compreensão do objeto principal da pesquisa, que é estudo do bullying nas escolas. Os parâmetros estudados até aqui serão de fundamental importância para o entendimento dos temas a seguir abordados, que será o direito à educação, o direito à convivência familiar e comunitária, o bullying, assim como medidas para eliminar essa prática nas escolas.

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BULLYING: ANÁLISE DE UMA NOVA VIOLÊNCIA

Nos dias atuais é muito comum se observar o quão corriqueira a violência se tornou, podendo ser vista comumente na mídia e até mesmo dentro de casa. Mas, há um tipo de violência que vem crescendo a cada dia e que tem chamado a atenção das famílias, da sociedade e dos poderes públicas, a fim de se encontrar soluções e prevenção, e que normalmente tem sua ocorrência no ambiente escolar: o bullying.

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O bullying é uma grave violência cometida por criança contra outra criança, muitas vezes porque presencia agressões em sua própria casa, praticadas por adultos, e devido a essa influência podem levar a agressividade para o ambiente da escola, lugar de maior convivência com outras crianças, prejudicando não só a vítima, como também a si mesma. Infelizmente, as escolas, os professores e os pais ainda não estão totalmente preparados para lidar com essa problemática.

Assim, torna-se necessária a contextualização histórica do bullying e depois a análise dos comportamentos dos envolvidos na prática. O bullying nasceu da palavra inglesa bully, que significa, pelas palavras de Brenda Morrison (2006, prefácio) [...] brigão, valentão, arruaceiro. O termo é hoje amplamente utilizado no Brasil para identificar as ações daqueles que têm o desejo consciente e deliberado de maltratar outra pessoa mais fraca, ou colocá-la sob permanente tensão, impondo-lhe sofrimento físico ou psicológico.

O termo “Bullying foi cunhado pelo pesquisador norueguês Dan Olweus, a fim de conhecer as atitudes agressivas, perpetradas de forma recorrente entre pares, que causam sofrimento, isolamento e dor” (ABRAMOVAY; CALAF, 2010, p. 34), exatamente como compreendido nos dias atuais. A partir daí iniciaram-se os estudos sobre o bullying em âmbito internacional, sendo que Olweus buscava maneiras de combater essa forma de agressão, tendo criado projetos para a erradicação do fenômeno. O bullying recebe outras nomenclaturas, conforme explicita Fante (2005, p. 27-28. Grifos da autora.):

Em alguns países, existem outros termos para conceituar esses tipos de comportamentos. Mobbing é um deles, empregado na Noruega e Dinamarca; mobbning, na Suécia e na Finlândia. Esses termos são utilizados com significados e conotações diferentes. Sua raiz inglesa, mob, refere-se a

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um grupo grande e anônimo de pessoas que geralmente se dedica ao assédio. Quando, porém, uma pessoa atormenta, hostiliza ou molesta uma outra, o termo utilizado para caracterizar esse comportamento é mobbing. Mesmo não sendo um termo adequado do ponto de vista lingüístico, mobbing é empregado para definir uma situação na qual um indivíduo, sozinho ou em grupo, ridiculariza um outro. Na França, denominam harcèlement quotidién; na Itália, de prepotenza ou bulismo; no Japão, é conhecido como yjime; na Alemanha, como agressionem unter shülern; na Espanha, como acoso y amenaza entre escolares; em Portugal como maus-tratos entre pares.

No Brasil, é utilizado o mesmo termo que em muitos países, ou seja, o bullying, compreendido como atitudes repetitivas de condutas violentas feitas de uma pessoa, neste caso, uma criança ou adolescente, contra outra.

Por ser um assunto de caráter relativamente novo, a sua definição se confunde muito com todo o histórico já observado, mas o termo bullying tem como principal definição “atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo (bully: valentão) ou por um grupo com o objetivo de intimidar ou agredir pessoas incapazes de se defender” (TRINDADE, 2012, p. 392).

Nesse mesmo contexto, Cleo Fante (2005, p. 28) entende como definição universal, que o bullying “é um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas que ocorrem sem motivação evidente, adotado por um ou mais alunos contra outro(s), causando dor, angústia e sofrimento”. Outro autor que pode ser citado pela sua dedicação ao estudo do bulliyng é Gabriel Chalita (2008, p. 81), para quem bullying é quando a pessoa se utiliza da “superioridade física para intimidar, tiranizar, amedrontar e humilhar outra pessoa”. Mas não é apenas superioridade física que encoraja uma pessoa a submeter outra mais fraca, pois algumas se valem do fato de se considera-

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rem “mais inteligentes”, tratando, portanto, as demais como se fossem inferior, o que também se caracteriza como bullying.

O bullying tem recebido atenção nas últimas décadas, principalmente porque a população começou a visualizar e a estudar com mais cuidado esses casos de violência e não porque não ocorria a violência nas escolas. Na verdade, ela sempre existiu, o problema é que, de uma forma ou de outra, o que acontecia é que a prática passava totalmente despercebida aos olhos da sociedade, do Estado e porque não, também da própria família.

Chalita (2008, p. 82), assim como Meier e Rolim (2013, p. 34), subdivide o bullying em duas maneiras, conhecidas como bullying direto e bullying indireto. O primeiro caso é mais comum entre meninos, posto que é o xingamento, o contato físico, com empurrões, tapas, entre outros, sem esquecer dos apelidos, muitas vezes, ofensivos. É a forma verbal e física de bullying, conseguindo a vítima identificar quem foi o agressor. Já, no segundo caso, a maior ocorrência é entre meninas e crianças mais novas, tratando-se principalmente de agressões verbais, com fofocas e boatos negativos sobre a vítima e/ou familiares delas, e nessa situação a criança vítima vai preferir o isolamento a continuar na presença daqueles que a maltrataram.

Com o avanço das tecnologias, há a presença frequente da internet entre jovens, crianças e adolescentes, principalmente nas redes sociais. Muitas vezes o que é exposto nesses locais virtuais acaba prejudicando a “vida real” desses jovens. Esse tipo de violência está sendo chamado de cyberbullying, fazendo crer que o bullying “evoluiu”, expandindo-se dos muros das escolas para alcançar o meio virtual. Dessa forma, as agressões não cessam quando a criança ou o adolescente sai da escola, atingindo a vítima em qualquer lugar em que esteja.

Cyberbullying é toda aquela ofensa, violência verbal, psicológica, que de forma repetitiva acomete crianças e adolescentes. Esse tipo de violência é muito mais rápida e muito mais “impac-

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tante, eis que se difunde mais rapidamente e atinge um número consideravelmente maior de pessoas e concomitantemente em diferentes locais” (FORTES; LIMA, 2011, p. 8).

O cyberbullying é praticado com mais frequência entre os adolescentes porque eles dominam melhor o meio virtual que crianças. Pela facilidade “de ocultar identidade e porque, mesmo quando estas são expostas, as agressões não ocorrem presencialmente”, a incidência desse tipo de agressão está aumentando (MEIER; ROLIM, 2013, p. 35). O bullying que ocorre na escola tende a permanecer somente naquele local ou nos arredores. Por outro lado, o cyberbullying é diferente, tornando possível difundir a violência de forma global, como a publicação de um vídeo transmitido pelos canais da internet e funcionando como um meio para a ampliar a difamação da vítima.

É possível observar então que a problemática está na sociedade, vista aqui na concepção de comunidade de ensino e na forma em que as crianças e adolescentes têm o seu acesso à internet, se utilizando dessa ferramenta, muitas vezes de forma cruel, para ofender e agredir outras crianças ou adolescentes.

O bullying tem como uma importante característica o silêncio, pois a vítima, na maioria dos casos, não se pronuncia quanto à sua ocorrência. A forma com que a criança interage com a família e na escola pode ser um indício a ser percebido por pais e professores. O mesmo ocorre nos casos do agressor e do espectador. A observação do comportamento dos jovens, portanto, é de extrema importância para se detectar a presença do bullying. A vítima, ao se deparar com esse tipo de violência, resolve não contar nem aos pais nem aos professores, por medo de ser julgada “fraca” ou de ser considerada motivo de piada entre os colegas. Em outras circunstâncias, a vítima acaba acreditando serem verdadeiros os insultos sofridos, aceitando-os, o que agrava ainda mais o fato violento.

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Se a vítima conta sobre as agressões, e a família, ao tentar intervir a fim de amenizar a dor da criança ou do adolescente, sem estar preparada para esse tipo de situação, pode dificultar ainda mais o problema (FANTE, 2005, p. 70). A solução em relação a esse dilema é os pais estarem mais presentes na vida do filho no ambiente escolar, buscando informações sobre o que se passa na escola, medida que poderia diminuir consideravelmente o número de situações de bullying. Algumas características mais comuns às vítimas de bullying podem ser traçadas como aquelas pessoas “solidárias, com baixa autoestima, fraca supervisão dos pais e cuidadores, tímidas, oprimidas, com sentimento de aniquilação, introvertidas” (TRINDADE, 2005, p. 393), o que acaba delineando um perfil de quem tem maior potencialidade para sofrer bullying.

Cléo Fante (2005), assim como Ana Beatriz Barbosa da Silva (2010, p. 37), definem algumas diferenças entre as vítimas que sofrem bullying, classificando-as como vítima típica, vítima provocadora e vítima agressora.

A primeira, vítima típica, é aquela pessoa que apresentam pouca sociabilidade com o meio onde se encontra, podendo ser a própria instituição de ensino ou o ambiente doméstico e são mais tímidas. Manifesta, segundo Silva (2010), “marcas” que acabam por salientar o indivíduo diferente dos outros, incluídas aí as características físicas ou até mesmo as relacionadas a credo, raça ou outras distinções.

Essa violência não apresenta nenhuma justificativa para os seus atos e, caso venha a existir, são as mais fúteis possíveis (SILVA, 2010, p. 38). Assim, a vítima típica é aquela que sofre a violência de maneira repetitiva, mas que, por ser frágil perante os agressores, mantém-se em silêncio; caracteriza-se como mais sensível, com problemas de autoestima, dificuldades de aprendizado ou de socialização e com maior facilidade de relacionamento com pessoas adultas do que com pessoas da sua idade (FANTE, 2005, p. 71).

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A segunda é classificada como vítima perturbadora (FANTE, 2005, p. 72) ou vítima provocadora (SILVA, 2010, p. 39). É vista como aquela criança ou adolescente que atrai as agressões mais pela reação que ela provoca aos agressores; é aquela que tenta “arrumar briga”, mas que de fato não agride. Para esse caso tem-se como principais vítimas as crianças e/ou adolescentes que apresentam algum tipo de déficit de atenção ou hiperatividade, posto que muitas vezes elas não conseguem manter a sua concentração e terminam por irritar seus agressores. Embora involuntários seus movimentos, a culpa pela briga recai sobre essa criança, pois dá a entender que foi ela quem a iniciou e, mesmo sabendo que a criança apresenta Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), os agressores se aproveitam dessa situação de fragilidade para agredir. Já o terceiro tipo de vítima, denominado vítima agressora, acaba por reproduzir os maus-tratos que recebe dos agressores, buscando indivíduos mais fracos do que ela para reproduzir aquilo que sofre no ambiente escolar, o que acaba por se transformar, como diz Cleo Fante (2005, p. 71-72), “numa dinâmica expansiva, cujos resultados incidem no aumento do número de vítimas”.

Uma característica bastante comum às vítimas é a falta de amigos ou a quantidade deles é bem reduzida perante os outros colegas de escola, pois preferem ficar sozinhas. Além disso, estão sempre querendo agradar, gastam mais em presentes ou qualquer outro tipo de objeto no intuito de impressionar o próximo, que pode ser mais um colega de aula ou o próprio agressor com fim de tentar terminar com as agressões (SILVA, 2010, p. 48-49). Todas essas características devem ser observadas tanto pela família, em casa, como no ambiente escolar, pelos educadores e funcionários. Quanto ao agressor, pode ser tanto menino ou menina, apresentando, segundo Silva (2010, p. 43), “traços de desrespeito e maldade e, na maioria das vezes, essas características estão associadas a um perigoso poder de liderança que, em geral, é obtido ou legitimado através da força física ou de intenso assédio psicológico”.

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O carecimento de supervisão e a falta de afeto desestruturam ainda mais a criança e/ou o adolescente que está em fase de desenvolvimento físico, emocional e cognitivo (SILVA, 2010, p. 44), sendo esses fatores potenciais desencadeadores de todas essas características observadas, uma vez que não há um norte na orientação, e a escola não pode fazer esse papel, que é da família.

Também há outras características que devem ser observadas tanto no ambiente escolar como no familiar, principalmente pelos pais. Fante (2005, p. 74) e Silva (2010, p. 50) relacionam as mais comuns: • Começam com brincadeiras de mau gosto, que rapidamente evoluem para gozações, risos provocativos, hostis e desdenhosos. • Colocam apelidos pejorativos e ridicularizantes, em explícito propósito maldoso. • Insultam, difamam, ameaçam, constrangem e menosprezam alguns alunos. • Fazem ameaças diretas ou indiretas, dão ordens, dominam e subjugam seus pares.

• Perturbam e intimidam, utilizando-se de empurrões, socos, pontapés, tapas, beliscões, puxada de cabelos ou de roupas. • Estão sempre se envolvendo, de forma direta ou velada, em desentendimentos e discussões entre alunos, ou entre alunos e professores. • Pegam materiais escolares, dinheiro, lanches e quaisquer pertences de outros estudantes, sem consentimento ou até mesmo sob coação.

No ambiente doméstico também se deve atentar sobre as características mais visíveis de um bullie. Em muitos casos, os agres-

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sores apresentam atitudes agressivas com os pais, são violentos dentro de casa, não conseguem respeitar a hierarquia existente familiar, posto que o bullie se vê como sendo a própria autoridade. Muitos desses agressores se comportam em casa como se nada houvesse acontecido de diferente na escola, e isso dificulta identificar os indícios de suas atitudes agressivas em outros locais. É clara, portanto, a necessidade de se observar os comportamentos com mais cuidado, como é o caso de voltarem para casa portando algo que antes não era seu ou de quantia em dinheiro que os pais não haviam dado anteriormente (SILVA, 2010, p. 50-51). O chamado espectador é quem “presencia o bullying, porém não sofre nem o pratica. Representa a grande maioria dos alunos que convive com o problema e adota a lei do silêncio por temer se transformar em novo alvo” (FANTE, 2005, p. 73). O medo de quem observa a violência é grande, pois gera a possibilidade de ele se transformar em mais uma vítima desta humilhação. Silva (2010, p. 46) classifica-os em espectadores passivos – aqueles que têm medo de ser uma vítima; ativos – os que incentivam o bullying; e neutros – sem qualquer sensibilidade. Assim, a prática do bullying, como apresentada, é maléfica para crianças e adolescentes e abrange mais do que a vítima e o agressor, também os espectadores e os familiares, sendo de extrema importância a percepção pela família de qualquer atitude diferente que possa indicar o bullying. Um dos direitos que pode acabar sendo violado com o bullying é a educação e a continuidade da criança ou adolescente na escola, assunto que será analisado na sequência.

4

DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO E O BULLYING

A educação é um direito fundamental da criança e do adolescente. O direito de frequentar, ter acesso e permanecer em uma escola está disposto tanto na Constituição Federal de 1988 (arts.

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205 a 214), quanto no próprio Estatuto da Criança e Adolescente (arts. 53 a 58). O direito à educação é essencial para a construção do ser humano, ainda mais quando se trata de crianças e adolescentes, não devendo o problema do bullying ser ignorado.

O direito à educação básica e de qualidade teve seu início há muito tempo, remontando às primeiras sociedades politicamente organizadas. Na Grécia e em Roma acreditava-se mais no poder do intelecto do que no trabalho braçal; o conhecimento daquela época, porém, era acessível apenas àqueles que dispunham de valiosas quantias. Segundo Gorczevski (2009), após a tomada de Constantinopla pelos turcos, a cultura romana foi fragmentada, mas seus costumes não desapareceram por completo devido à continuidade de ações por parte da Igreja, principal responsável por manter a tradição da educação, vinculada ao clero. Mas, mesmo assim, a educação continuava sendo um direito das minorias, posto que somente quem fazia parte da Igreja usufruía desse privilégio. Observa-se que em nenhum momento dessa fase as crianças aparecem, posto que naquela época, como anteriormente mencionado, elas não detinham quaisquer direitos, muito menos à educação, que era exclusiva do clero.

A popularização da educação teve início no século XVI, quando, na Europa, aconteciam diversas transformações, tendo como maiores interessados os iluministas que viam na educação a possibilidade de um mundo novo, embora tenha sido apenas na segunda metade do século XVIII que o direito à educação venha a receber caráter jurídico (GORCZEVSKI, 2009, p. 213). Alguns anos após a Declaração dos Direitos da Criança, mais especificamente em 1989, surge a Convenção sobre os Direitos da Criança, com o intuito de proteger os direitos da criança, e evidentemente o direito à educação foi previsto, devendo o Estado oferecê-lo, principalmente na educação básica, de forma obrigatória e gratuita a todos (CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DA CRIANÇA, 1989).

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 137 e Políticas Públicas

O direito à educação, no Brasil, segundo Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2012, p. 591), foi disponível em 1824, na Carta Imperial, em seu artigo 179, XXXII, a qual previa a necessidade de ensino básico (primário) de forma gratuita para todos os cidadãos. Entretanto, também houve um retrocesso no texto constitucional de 1891 com o cerceamento do direito à educação, o que felizmente não vigorou nas demais Cartas Constitucionais. A partir de 1934 o direito à educação passou a constar de forma mais presente, evoluindo até chegar ao que hoje se conhece na atual Constituição Federal.

Do texto do artigo 6º da Constituição, verifica-se que a educação representa um dos direitos sociais a ser observado e, por isso, está vinculada às Garantias e Direitos Fundamentais, sendo, portanto, um direito de todos. Conforme Tavares (2012, p. 878), “o direito à educação obriga o Estado a oferecer o acesso a todos os interessados, especialmente àqueles que não possam custear uma educação particular”. Um dos princípios basilares do direito à educação se encontra no artigo 206 da Constituição Federal, quando, em seu inciso I, refere: “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, que, relacionado ao presente estudo ganha maior relevância, posto que, com a prática do bullying cada dia é mais frequente as crianças e adolescentes sentirem necessidade de sair do local que lhes perturba, a escola. A Constituição Federal atribui competência para legislar sobre a educação à União, no artigo 22, inciso XXIV, a fim de estabelecer as “diretrizes e bases da educação” (BRASIL, 1988), o que foi feito efetivamente por meio da Lei 9.394 de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Por meio dessa legislação, divide-se a responsabilidade da educação entre família, Estado e instituição de ensino, conforme disposto no artigo 2º: Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimen-

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to do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1996. Grifo nosso.)

É direito da criança e do adolescente ir e permanecer na escola, porém, quando há ocorrência de casos de bullying, o acesso a esse direito fica limitado, pois a criança ou o adolescente perde a vontade de retornar à escola e, na maior parte das vezes, não comenta que está sofrendo atos de violência. Como bem observado, o direito à educação é função não somente do Estado, mas também da família e da sociedade, conforme dispõem diversos textos legais, como Constituição Federal, Código Civil e Estatuto da Criança e Adolescente. Portanto, torna-se importante analisar alguns aspectos inerentes ao direito à educação, que é o direito à convivência comunitária e à permanência na escola, que também acabam sendo violados em casos de ocorrência de bullying. Toda criança, para ter um pleno desenvolvimento, necessita “crescer e desenvolver-se no contexto de uma família e de uma comunidade” (COSTA, 2012, p. 173), estando tal ideia consolidada na Constituição Federal no seu artigo 227:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988. Grifo nosso.)

Tal convivência se faz necessária para que a criança e o adolescente possam construir, tanto na escola como no âmbito familiar, sua personalidade social e cultural, tendo condições de se tornarem adultos com mais noção de coletividade e de visão do outro, que com ele interage e convive.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 139 e Políticas Públicas

Além do mais, após a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, fica ainda mais consolidado o direito da criança a ter uma convivência digna com sua família e com a sociedade em si, sendo possível verificar isso em dispositivo próprio no Capítulo III, artigo 19:

Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes. (BRASIL, 1990. Grifo nosso.)

O direito à convivência familiar e comunitária é visto como asseguram Rossato, Lépore e Cunha (2010, p. 150) como sendo um direito “ao nível de direito fundamental”, posto ser extremamente necessário para a formação e desenvolvimento de crianças e adolescentes para a vida adulta. Portanto, a convivência familiar e comunitária, com viés escolar, torna-se essencial à criança e ao adolescente, ressaltando-se a responsabilidade dos pais ou de qualquer outra pessoa da família, assim como da escola, diante dos seus filhos e alunos, para o desenvolvimento pleno e sadio.

É essencial ressaltar algumas medidas que podem ser tomadas quando se verifica a prática de bullying, como a mediação e a justiça restaurativa, bem como políticas públicas visando coibir tal prática. Quando se trata de criança ou de adolescente, o distanciamento devido à falta de convivência comunitária prejudica o seu desenvolvimento normal, pois é nessa fase que eles aprendem a se socializar com outras pessoas, outras crianças, seus iguais. Esse conflito pode nascer para as crianças em diferentes situações, mas, em sua maioria, começa a partir de observações feitas por elas próprias, sentindo-se que não se encaixam naquilo que aprenderam no seio familiar, ou quando elas mesmas formam

140 Gláucia Gonçalves Rodrigues & Lívia Copelli Copatti

conceitos equivocados, compreendendo-se como sendo diferente e, portanto, merecendo ser repudiadas.

Para que o conflito possa ser solucionado, “depende do reconhecimento das diferenças e da identificação dos interesses comuns e contraditórios” (VASCONCELOS, 2011, p. 20) sendo a mediação uma forma de resolução do conflito que pode aparecer antes mesmo de ocorrer a prática do bullying, podendo, por isso, ser um meio para que as crianças possam compreender as suas diferenças e aceitá-las. A mediação pode ser entendida como uma prática na qual um terceiro que não tem nenhum conhecimento acerca do litígio auxilia na obtenção de uma solução para o problema apresentado (BRASIL, 2009; VASCONCELOS, 2011). Os próprios indivíduos que participam da sessão de mediação é que entrarão em um consenso que necessita ser, obrigatoriamente, vantajoso, justo e igualitário para ambas as partes. Na mediação, o “resultado do conflito é o ‘ganha-ganha’ e não o ‘ganha-perde’ do processo tradicional” (AMARAL, 2009, p. 89).

Não há no “processo” de mediação a utilização de uma hierarquia, diferenciando-se do Judiciário (VASCONCELOS, 2011, p. 42). Além disso, não há que se observar o tempo de duração de uma mediação, uma vez que é um momento de reflexão entre os mediandos e, para que haja a solução do conflito, é necessário investir no tempo. Existem algumas características acerca da mediação que devem ser apontadas: voluntariedade, confidencialidade, flexibilidade e participação ativa (AMARAL, 2009, p. 94). Por meio da voluntariedade, os mediandos devem aceitar se submeter à mediação e escolher um determinado mediador para o conflito; quanto à confidencialidade, significa que aquilo que for falado na mediação não será divulgado, salvo se durante a sessão houver a comunicação de um crime; o procedimento da mediação é mais flexível e compõe-se de acordo com a abertura das partes e, não há mediação sem que haja a participação efetiva dos mediandos,

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 141 e Políticas Públicas

pois são eles que irão encontrar a melhor solução para o litígio que os separa.

Quando se trata de conflitos envolvendo crianças e adolescente é necessário um cuidado maior e a participação dos pais é fundamental. A escola deve(ria) oferecer cursos de mediação com pessoas capacitadas no assunto para auxiliar a todos os professores, funcionários e pais, a fim de conhecerem-na um pouco e praticar a mediação antes mesmo da ocorrência da prática do bullying.

A mediação poderá ser utilizada, portanto, em conflitos que ainda não geraram nenhum tipo de violência de um contra o outro, sendo uma forma de prevenir a ocorrência do bullying e de aproximar possíveis alunos vítimas, agressores ou espectadores, facilitando a conversação e o entendimento entre eles.

Além disso, são necessárias políticas públicas para que se tenha uma conscientização sobre esse novo problema enfrentado pelas escolas e crianças, devendo toda a comunidade, professores, alunos, pais e funcionários estarem conscientes da existência do bullying no ambiente de ensino e trabalhar para a sua solução. Carpenter e Ferguson (2011, p. 247), ao tratarem dos programas de conscientização, dizem que é preciso que alguns conceitos estejam bem claros para todos; são eles: • O que é o bullying; • Como ele ocorre;

• Por que ele ocorre com vítimas de características específicas ou pertencentes a determinados grupos; • Diferenças entre o bullying praticado entre meninos e entre meninas; • O que é o cyberbullying e por que é um problema;

• O que o aluno deve fazer caso se torne vítima de bullies;

• O que o aluno deve fazer caso suspeite ou presencie um caso de bullying;

142 Gláucia Gonçalves Rodrigues & Lívia Copelli Copatti

• Como denunciar;

• Qual deve ser a postura e as providências de professores e administradores diante de casos de bullying.

A melhor forma para combater a prática de bullying é adotar medidas, observando programas que foram eficazes em outras instituições de ensino ou que trouxeram, de certa forma, resultados positivos acerca da prática e que ela tenha diminuído após a execução do programa.

Uma medida dada como exemplo por Carpenter e Ferguson (2011, p. 247-249) é organizar uma espécie de declaração de compromisso, a qual o aluno deve assinar no início do ano letivo, o que faz com que a criança e/ou o adolescente crie uma espécie de reforço na sua conscientização do que seja o bullying. A melhor forma de ser feita a declaração de compromisso é em conjunto com os professores. Há também outra forma de tratar esse fenômeno com o auxílio dos pais, pois são eles que podem ajudar na redução do bullying nas escolas, mas, infelizmente, muitos não veem dessa maneira, pois não sabem o quão importante são na diminuição desse processo. Um programa também sugerido é a criação de um conselho ou grupo de apoio entre os alunos, tendendo a melhorar a vida das crianças e adolescentes (CARPENTER; FERGUSON, 2011, p. 249).

Atividades feitas em grupo fazem com que a criança e o adolescente conheçam melhor o outro, sua maneira de agir, suas diferenças e semelhanças. Tais ações são necessárias e ajudam no processo de aprendizagem, auxiliam na ideia e percepção da criança de pertencimento ao grupo e à sociedade (CARPENTER; FERGUSON, 2011, p. 251). Também o que pode ser colocado como ideia para diminuir a incidência de casos de bullying na escola é fazer um monitoramento nas chamadas “áreas de risco”, assim denominadas

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por Carpenter e Ferguson (2011, p. 252). Seu desenvolvimento seria com a realização de pesquisas (anônimas), a fim de descobrir quais os locais da escola onde há o maior índice de violência entre os alunos. Após descobertos esses locais, eles passam a ter uma maior proteção. Devem-se observar as práticas, identificar a origem do problema e auxiliar para que seja resolvido o quanto antes, de maneira que não haja nenhum trauma para ambas as partes, o que, com o trabalho em conjunto, será mais fácil de realizar. Por fim, a chegada da violência ao meio escolar revelou uma realidade até então não sentida ou com pouca atenção, que é a falta de preparo de algumas escolas para lidar com a violência, especialmente com o bullying. Assim, uma das maneiras para diminuir a incidência ou a repetição de tal prática é, por exemplo, a Justiça Restaurativa. A ideia da justiça restaurativa nasceu, segundo Vasconcelos (2012, p. 179),

[...] nas últimas décadas do século passado, é um resgate de práticas imemoriais da Nova Zelândia, da Austrália, de regiões do Canadá e de outras tradições, que inspiram várias abordagens e procedimentos de caráter interdisciplinar.

A Justiça Restaurativa tem como intuito, como o próprio nome diz, restaurar as relações entre as partes em conflito. Além de vítima e ofensor, a comunidade também pode ser vista como uma das “partes” no conflito. No caso do bullying, podese dizer que a comunidade escolar consequentemente passa a fazer parte do conflito, por motivos óbvios. Da mesma forma que a mediação, a Justiça Restaurativa também se utiliza de um mediador em busca da solução pacífica entre os envolvidos (VASCONCELOS, 2012, p. 179). No Brasil, especificamente no Rio Grande do Sul, existe um programa chamado “Justiça para o Século 21 – Instituindo Práti-

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cas Restaurativas”, sendo o pioneiro criado em Porto Alegre, na Lomba do Pinheiro, em 2005, com o intuito de diminuir o índice de violência ocorrida naquela região. Porto Alegre, juntamente a outras cidades, foi escolhida pelo Relatório do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (ILANUD), como local para a instalação do plano piloto do programa Justiça Restaurativa (FELIZARDO, 2013, p. 71; VASCONCELOS, 2012, p. 183). Vasconcelos (2012, p. 192-194) entende que todos os envolvidos no ambiente escolar devem estar capacitados e dispostos a auxiliar e utilizar as vias possíveis de diálogo entre os alunos que necessitam das práticas restaurativas, principalmente em escolas de Ensino Fundamental, porque é nessa fase que o estudante passa mais tempo na escola em comparação ao Ensino Médio. Quando há a observação do conflito entre adolescentes, a resolução pode ser buscada pela Justiça Restaurativa com os chamados Círculos Restaurativos, que é um dos métodos utilizados. Felizardo (2013, p. 72) conceitua o círculo restaurativo como “um encontro voluntário entre os envolvidos no conflito, a comunidade escolar e o facilitador do círculo”.

Desta forma, com a percepção de que o bullying é um problema, faz-se necessário buscar sua redução e total erradicação, para que sejam preservados os direitos de crianças e adolescentes e, em especial, o direito à educação, pois é a base para o bom desenvolvimento social, inclusive profissional, de qualquer pessoa.

5 CONCLUSÃO

Por meio da pesquisa desenvolvida no presente capítulo, foi possível compreender de forma breve um dos fenômenos mais novos vistos no ordenamento jurídico, que é o bullying. Pela compreensão das concepções históricas do papel da criança e do adolescente na sociedade, perpassando por seus princípios e di-

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 145 e Políticas Públicas

reitos até chegar aos dias atuais, o que se percebe é que, por mais que os direitos das crianças e dos adolescentes tenham evoluído, ultrapassando a ideia de considerá-los objetos de direito, para que ganhassem o status de sujeitos de direito, ainda há desafios a serem vencidos. O comportamento violento, o tratamento preconceituoso e depreciativo observado em crianças e jovens pode estar ocultando falhas em sua educação, e por isso, a priori, não se pode culpá -los, mas, sim, ajudá-los. É necessário, portanto, um olhar atento dos responsáveis pela criação e cuidado para com a criança e o adolescente, não somente da família, mas também da comunidade em que vivem, e do Estado, no sentido de prestar assistência a elas para que uma simples brincadeira não se torne um trauma para outras pessoas.

Com a prática do bullying resta clara a violação de diversos direitos das crianças e dos adolescentes vítimas, como o direito à educação como um dos mais importantes e que tem relação mais direta com o bullying. A pessoa vítima do bullying acaba perdendo a vontade de frequentar a escola e, muitas vezes, acaba repetindo o ano ou sendo transferido de instituição, ou, ainda, abandonando os estudos, sendo tais fatos graves violam toda a compreensão e o conhecimento que a escola pode repassar à criança, além do espírito de coletividade, pois tem a convivência comunitária privada pelo medo do bullying. Foram apresentadas algumas medidas possíveis para a diminuição da ocorrência do bullying e para a recuperação dos direitos violados, citando-se como principais e, mais eficientes, a mediação, a justiça restaurativa e as políticas públicas de conscientização.

A mediação pode ser considerada uma forma de prevenção da prática do bullying na escola, posto que, para ser utilizada, não pode haver nenhum tipo de violência evidenciada entre os alunos. Para que a mediação cumpra o seu papel, é necessário o envolvimento de educadores, pais, funcionários e dos próprios

146 Gláucia Gonçalves Rodrigues & Lívia Copelli Copatti

alunos, adotando-se medidas preventivas para que o bullying não venha a ocorrer no ambiente escolar.

Outra medida estudada neste capítulo foi a Justiça Restaurativa, que tem como ideia principal a de, assim como a mediação, colocar os indivíduos conflitantes frente a frente e fazê-los entender que tal prática não é aceita no ambiente de ensino e nem em qualquer outro. Os Círculos Restaurativos fazem parte desse método não judicial de resolver conflitos, pois evidenciam e valorizam o diálogo entre as partes, fazendo com que o agressor compreenda a extensão do dano causado, bem como a vítima consegue compreender os motivos que levaram o agressor a ter tal comportamento. A Justiça Restaurativa, portanto, ajuda que as partes possam voltar a conviver. O Direito precisa caminhar para formas que não mais necessitem tanto do Judiciário e que mesmo assim sejam legais. A mediação e a Justiça Restaurativa podem ser vistas como caminhos novos a se percorrer, principalmente quando são identificadas práticas de bullying.

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Capítulo 8

A

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DE PAIS CONTRA FILHOS: apontamentos sobre a história, políticas públicas e a proteção jurídica da criança e do adolescente

Gustavo Kist Acadêmico do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo CNPq.

Luciana Rocha Leme Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES. Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Professora de Direito Processual Constitucional na Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e de Direito Constitucional no Centro Universidade Barriga Verde (Unibave). Integrante do Grupo de Pesquisa em Direitos e Políticas Públicas de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA), da UNISC, e do Núcleo de Estudos em Estado, Política e Direito (NUPED), da UNESC. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infanto-juvenis”, financiado pelo CNPq.

152 Gustavo Kist & Luciana Rocha Leme

1 INTRODUÇÃO O tema abordado por este capítulo realiza uma explanação sobre a violência sofrida por crianças e adolescentes até a adoção da teoria da proteção integral. Abrange a legislação afeta à temática ao longo da história, assim como as políticas públicas capazes de mudar a visão cultural de que bater em criança educa. Conclui-se tratando da posição da Organização dos Estados Americanos quanto à temática.

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APONTAMENTOS HISTÓRICOS SOBRE A INFÂNCIA

A violência contra crianças chegou ao Brasil nas naus portuguesas, nas quais normalmente as crianças embarcavam como pajens1 ou grumetes2 e eram obrigadas a tolerar os mais variados tipos de abusos. Cerca de 20% da população das embarcações era composta por crianças. A alta taxa de mortalidade era devida, em grande parte, aos hábitos utilizados logo no início de suas vidas, como, por exemplo, envolver a criança em panos grossos e apertados e, ainda, ao fato de que logo que cresciam seus dentes sua alimentação passava a ser parecida com a dos adultos. Devido a esses fatores, apenas 50% das crianças nascidas vivas completavam sete anos de idade (RAMOS, 2004, p. 19-23). A mortalidade infantil excessiva fazia com que as crianças fossem vistas como pouco mais que animais e, logo recebiam os trabalhos mais perigosos, pois, no caso de morte, a perda seria menor. Nos casos de naufrágio, a possibilidade de sobrevivência que já era pouca para os adultos, fazia-se menor ainda para as crianças. Ramos (2004, p. 21) destaca outro aspecto do (des)va-



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Normalmente, eram crianças de famílias pobres protegidas pela nobreza que acompanhavam os nobres, o que lhes dava maiores condições de sobreviver porque tinham acesso ao mercado negro de alimentos das embarcações.

Eram crianças e adolescentes de famílias pouco abastadas, as quais normalmente os entregavam visando sua ascensão financeira, assim como seu soldo. Nas naus, ainda recebiam os piores serviços e salários.

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lor da criança: “Um barril de água ou biscoito, segundo a ótica quinhentista, tinha prioridade de embarque no batel sobre os pequenos não pertencentes à nobreza”.

Quando chegaram ao Brasil, os jesuítas passaram a acreditar que nesta terra deveriam construir o paraíso, e que os índios eram como “papel branco”, no qual seria criada a nova cristandade. Era comum o desejo dos nativos de entregarem seus filhos para que fossem ensinados pelos padres, com o intuito de realizarem aliança com estes. Foram então criadas escolas que ensinavam os índios a ler, escrever e, consequentemente, a deixar seus costumes, como, por exemplo, o canibalismo praticado por algumas tribos, a nudez e poligamia, visando assim formar a nova cristandade sonhada pelos religiosos (CHAMBOULEYRON, 2004, p. 55-56). Logo os jesuítas foram percebendo a dificuldade de evangelização dos nativos e passaram a adotar o modelo de escola europeia vigente, baseado na delação, vigilância constante e na utilização de castigos físicos, como se pode compreender pelo texto abaixo reproduzido:

Nas aldeias administradas pelos jesuítas, Mem de Sá mandara fazer tronco e pelourinho, “por lhes mostrar que têm tudo o que os cristãos têm”, como escrevia Dom Sebastião e também, “para o meirinho meter os moços no tronco quando fogem da escola”. (CHAMBOULEYRON, 2004, p. 62-63)

Como se depreende deste relato, a aplicação de castigos físicos, nas áreas em que os jesuítas estavam presentes, era costumeira, com a ressalva de que a punição não fosse executada por membros da companhia (CHAMBOULEYRON, 2004). Conforme a companhia prosperava, aumentava o número de escolas e de alunos que as frequentavam. Entretanto, os padres enfrentavam dois grandes problemas. O primeiro dizia res-

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peito ao fato de os índios serem nômades e, com isso, mudavamse para áreas não catolizadas e voltavam aos antigos costumes. O segundo problema era a puberdade dos meninos, pois, segundo os religiosos da época, durante essa fase, muitos deixavam de frequentar as aulas, começavam a beber e a participar de atos reprovados pela igreja. Esses problemas fizeram com que a violência empregada para fins de educação aumentasse: Fortalecia-se aos poucos a convicção de que os índios só se converteriam se fossem sujeitos a alguma autoridade, daí o constante apelo ao poder da Coroa, para a consecução da conversão dos índios. Inclusive, do ponto de vista do ensino dos meninos índios, essa perspectiva coincidia com a estruturação de um rígido sistema disciplinar, como vimos, que, no mesmo sentido que o próprio repensar da disciplina desde o século XV, dependia de uma vigilância constante, da delação e dos castigos corporais. (CHAMBOULEYRON, 2004, p. 69)

Na segunda metade do século XVI, juntamente com a descoberta da infância, os padres passaram a elaborar estratégias visando à catequização de crianças, visto que seriam a nova geração de adultos. Surgem escolas maiores, possibilitando a continuidade dos estudos (CHAMBOULEYRON, 2004).

[...] assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama, ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes. Essa sociedade de adultos hoje em dia muitas vezes nos parece pueril: sem dúvida, por uma questão de idade mental, mas também por sua questão de idade física, pois ela era em parte composta de crianças e de jovens de pouca idade. [...] Essa indeterminação da idade se estendia a toda a atividade social: aos jogos e brincadeiras, às profissões, às armas. Não existem representações coletivas onde as crianças pequenas e grandes não tenham seu lugar, amontoadas num cacho pendente do pescoço

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de mulheres, urinando num canto, desempenhando seu papel numa festa tradicional, trabalhando como aprendizes num ateliê, ou servindo como pajens de um cavaleiro. (ARIES, 2006, p. 156-157)

A infância foi vista até o século XVII como uma fase de transformações, evoluções e mortalidade infantil. Nesse século, iniciaram-se as grandes mudanças que culminaram no início do reconhecimento da infância. No entanto, vale lembrar que O sentimento de infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças: corresponde à consciência da particularidade infantil, essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo do jovem. Essa consciência não existia. (ARIES, 2006, p. 99)

A partir desse momento, foram criadas roupas específicas para crianças, especialmente das altas classes sociais, e também suas imagens passaram a figurar em retratos pintados. As crianças, por sua ingenuidade, gentileza e graça, revelaram-se uma fonte interessante de distração e relaxamento para os adultos. Desta forma, começou-se a demonstrar abertamente aquele sentimento que antes era comum apenas às mulheres encarregadas de cuidar das crianças. Este sentimento ficou conhecido como “paparicação”, e revoltava a muitos moralistas e educadores. O principal motivo da indignação era o fato de que agora as crianças realizavam suas refeições junto aos adultos e seus “péssimos modos” os irritavam profundamente. Para eles, as crianças criadas dessa maneira seriam mal educadas e fariam apenas o que desejassem (ARIES, 2006). Após a entrada da criança na vida familiar e passada a eclosão de toda novidade, passa-se a ter a preocupação de fazer com que ela se transforme em pessoa honrada, proba e racional (ARIES, 2006).

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Ao iniciar o século XVIII, os sentimentos de “paparicação” e a moralização unem-se à preocupação com a higiene e a saúde física, visto que antes a preocupação com o corpo era destinada aos doentes, não havendo preocupação com o corpo daqueles considerados sãos (ARIES, 2006).

Passou-se a repugnar a ideia de que a infância deveria ser metodicamente humilhada e, pouco a pouco, tornou-se habitual não mais chicotear os alunos nas aulas de retórica. As práticas de delação em favor do mestre foram aos poucos abandonadas e, após 1763, toda a organização escolar francesa já não fazia mais uso de castigos físicos como forma de educação (ARIES, 2006). Começou a reorientação do sentimento de infância, agora esta não mais era vista pelo que não tinha, pelo que não podia. Passava-se no velho mundo a construir a forma de educação vigente no século XIX. O final do século XVIII e o início do século XIX foram marcados por grandes mudanças no que tange à educação. Passou-se a ter a preocupação com a idade contada em anos desde o nascimento, e passou-se a difundir a ideia da extensão da escolaridade às meninas (ARIES, 2006).

No entanto, como bem definido por Custódio (2009, p. 11), no Brasil, diversos fatores contribuíram para a instalação de um sistema unicamente assistencialista:

As transformações políticas por ocasião da instalação da república, aliadas à inserção do ideário positivista e do pensamento higienista no Brasil do século XIX, deram início a outras práticas políticas, tais como a construção de um modelo de institucionalização pela via da criminalização, inaugurando o modelo menorista de intervenção sobre a infância brasileira.

O século XX no Brasil foi marcado pela tentativa de controle sobre a infância. Os filhos de famílias menos abastadas financeiramente passam a ser vistos como “menores”, como delinquen-

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tes em potencial e, é chegada a hora de “realizar uma limpeza”. A fim de evitar que essas crianças se tornassem criminosos, perigo difundido na época, criou-se o Decreto 17.943-A, de 12 de outubro de 1927, que instituiu crimes como o de vadiagem e libertinagem. O Código de Menores de 1927 transcreveu para a lei os pensamentos das elites da época (CUSTÓDIO, 2009), como na definição abaixo: Art. 28. São vadios os menores que:

a) vivem em casa dos paes ou tutor ou guarda, porém, se mostram refractarios a receber instruccão ou entregar-se a trabalho sério e util, vagando habitualmente pelas ruas e logradouros publicos; b) tendo deixado sem causa legitima o domicilio do pae, mãe ou tutor ou guarda, ou os logares onde se achavam collocados por aquelle a cuja autoridade estavam submettidos ou confiados, ou não tendo domicilio nem alguem por si, são encontrados habitualmente a vagar pelas ruas ou logradouros publicos, sem que tenham meio de vida regular, ou tirando seus recursos de occupação immoral ou prohibida. (BRASIL, 1927)

Mesmo o Estado conhecidamente não tendo condições de oferecer uma política pública capaz de gerar resultados positivos, mantinha-se a repressão e a antiga visão que recai sobre o então chamado “menor”, passando a ser visto como em situação de “irregularidade” com o Código de 1979. Desta forma, a visão moralista e elitista era mantida.

Impressionante como a ideologia da Ditadura Militar caminhava na contramão da história, inclusive quanto à regulação normativa das condições de vida da população infanto-juvenil. Em 1979, mesmo ano em que se iniciavam as discussões internacionais acerca da necessidade de se repensar a condição da infância no mundo (discussões estas que culminaram com a aprovação da Convenção Internacional dos Direitos da Criança em 1989), o Brasil

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editava seu novo Código de Menores baseado na Doutrina da Situação Irregular. Enquanto o mundo começava a compreender que a criança não é mero objeto, mas pessoa que tem direito à dignidade, ao respeito e à liberdade, a legislação brasileira perpetuava a visão de que crianças e adolescentes se igualavam a objetos sem autonomia, cujos destinos seriam traçados pelos verdadeiros sujeitos de direitos, isto é, pelos adultos. (CUSTÓDIO, 2009, p. 22)

Esse cenário passa a sofrer modificações no Brasil a partir dos anos 80, com discussões no âmbito dos movimentos sociais com vistas a abandonar a doutrina da situação irregular e buscar uma alternativa, o que acabou por acontecer com a Constituição Federal de 1988, a qual, em seu artigo 2273, determina: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988)

Em 1990, devido à necessidade de lei específica para regulamentar o artigo 227 da Constituição Federal e da Convenção Internacional sobre Direitos da Criança das Nações Unidas de 1989, surge a Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Esta lei completa a adoção da Doutrina da Proteção Integral no ordenamento jurídico pátrio, fazendo com que a criança e o adolescente tenham seus direitos reconhecidos internamente. Entretanto, é fato que apenas a criação de leis, embora seja importante, não muda a atitude de grande parte da população.



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Esse artigo foi modificado pela Emenda Constitucional nº 65 de 2010, visando à inclusão do jovem no rol de sujeitos de direitos a serem especialmente protegidos pela sociedade, pela família e pelo Estado.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 159 e Políticas Públicas

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POLÍTICAS PÚBLICAS VISANDO O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR

Como visto, por centenas de anos, a violência contra crianças e adolescentes foi algo comum, e aceito tanto pela legislação quanto pela sociedade. Entretanto, em 1988, com a adoção da doutrina da proteção integral, aboliu-se o apoio legislativo à violência contra a população infantojuvenil. Porém, mesmo ocorrida esta mudança legislativa, grande parte da sociedade continua a apoiar essa violência, tanto por ignorar a condição peculiar de desenvolvimento em que elas se encontram quanto a ainda arraigada cultura de violências que acompanhou a educação dos filhos por vários séculos. Por esses motivos, fica clara a importância da Convenção sobre Direitos da Criança (1989) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) estabelecendo normas que priorizem o melhor interesse da criança. Visando fazer com que a sociedade perceba que crianças e adolescentes devem ser protegidos e estar a salvo de toda e qualquer forma de violência, devem-se implantar políticas públicas preventivas, não mais assistencialistas como foi no passado, agora visando à erradicação desta violência por meio do entendimento de seus danos, assim como demonstrando outras maneiras de educar, que não gerem consequências futuras ao seu desenvolvimento físico, emocional e cognitivo.

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A PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES CONTRA OS CASTIGOS CORPORAIS NO ÂMBITO INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em seu relatório sobre castigos corporais e direitos das crianças e adolescentes de 2009, traz a seguinte definição:

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A CIDH adota a definição proposta pelo Comitê dos Direitos da Criança4, que, em sua Observação Geral N° 8 adotada em 2006, definiu o castigo “corporal” ou “físico” como “todo castigo em que se utilize a força física e que tenha por objetivo causar certo grau de dor ou mal-estar, ainda que seja leve”. Na maioria dos casos, trata-se de bater nas crianças (tapas, bofetadas, surras) com a mão ou com algum objeto: chicote, vara, cinto, sapato, colher de pau, etc., mas também pode consistir, por exemplo, em dar pontapés, sacudir ou empurrar as crianças, arranhá-las, beliscá -las, mordê-las, puxar os cabelos ou as orelhas, obrigá-las a ficar em posições incômodas, produzir-lhes queimaduras, obrigá-las a ingerir alimentos fervendo ou outros produtos (por exemplo, lavar suas bocas com sabão ou obrigá-las a comer alimentos picantes). (OEA, 2009, p. 8)

Cabe ainda ressaltar que somente três países-membros da OEA, até 2009, criaram em seu ordenamento jurídico leis específicas visando à expressa proibição do uso de violência física contra crianças e adolescentes, tanto em ambientes públicos quanto privados, como é o caso do Uruguai em 2007, da Venezuela em 2007 e da Costa Rica em 2008, fato que foi sanado no Brasil recentemente com a denominada “Lei da palmada” (OEA, 2009, p. 16). No Brasil, foi sancionada, em 27 de junho de 2014, a Lei 13.010/14, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelecendo como direito ser educados e cuidados sem que sofram castigos físicos e qualquer outra forma de tratamento cruel ou degradante. É inegável que a aprovação e a sanção da lei representa avanço significativo no tocante à proteção de crianças e adolescentes no âmbito das relações intrafamiliares, no entanto, percebe-se a necessidade de ações articuladas entre os diversos atores do Sistema de Garantia de Direitos para que a lei não tenha seus efeitos limitados.



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Salienta-se que para as Nações Unidas, considera-se criança todo o ser humanos até os 18 anos. A diferenciação entre criança e adolescente foi adotada pela legislação brasileira.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 161 e Políticas Públicas

A discussão sobre a proibição da violência enquanto forma de educação já deveria se mostrar avançada, tendo em vista o lapso temporal entre a promulgação da Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o nível a que as políticas públicas de proteção à infância se encontram neste momento, o que permite que se afirme que atualmente a discussão deve-se pautar no sentido de dar efetividade à normatização estabelecida, ou seja, os entes federados têm o compromisso de elaborar políticas públicas com vistas “a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes” (BRASIL, 2014). Salienta-se que essas políticas não devem centralizar-se apenas na seara punitiva do sistema penal, mas caracterizar-se pela intersetorialidade necessária à construção de uma cultura de educação não violenta.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos ressalta que esta situação é contraditória, visto que os demais países punem toda e qualquer forma de violência quando cometida contra adultos e, quando a vítima é criança e adolescente, na maioria dos casos, só é tratada com punição quando a violência deixa marcas visíveis. Assim, verifica-se, ainda, a existência do desrespeito ao princípio da não discriminação e da igual proteção de crianças e adolescentes perante a lei (OEA, 2009). A Comissão sugere em seu relatório algumas medidas que devem fazer parte de estratégias visando à erradicação da violência física como forma de educação contra crianças e adolescentes, salientando que estas devem ser tanto legislativas quanto educativas, com vistas ao reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, assim como a criação de mecanismos de defesa que garantam sua proteção quando tiverem seus direitos violados naqueles países em que estes não exijam (OEA, 2009). Neste sentido, as medidas legislativas devem proibir a violência em todas as suas formas, abolindo leis com texto compos-

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to por liberações de castigos, mesmo quando moderados, bem como adotar normas que explicitamente proíbam toda e qualquer violência física contra crianças e adolescentes, tendo em vista que o castigo físico sempre é cruel e fere a dignidade da pessoa humana (OEA, 2009). Quanto às medidas educativas, deve-se educar tanto adultos quanto crianças e adolescentes para que adotem métodos de disciplina que não sejam embasados na violência, assim como se deve promover o conhecimento dos direitos de crianças e adolescentes e dos mecanismos de defesa desses direitos. A promoção da proteção, garantia e defesa dos direitos de crianças e adolescentes deve ocorrer por meio de campanhas públicas que mostrem os malefícios trazidos pelos castigos físicos, bem como por políticas públicas e respeito por parte do Poder Judiciário ao cumprimento da lei (OEA, 2009).

5 CONCLUSÃO

Como foi visto neste capítulo, embora tenha havido avanços na proteção dos direitos de crianças e adolescentes, a violência física como forma de educação ainda é algo aceito pela sociedade. Isto se deve à reprodução dessa violência por um longo período. No âmbito nacional, percebe-se que mesmo sendo signatário da Convenção da ONU sobre Direitos da Criança, a Constituição proibindo toda e qualquer forma de violência e ainda existindo o ECA, persistem as dificuldades na concretização dessas garantias, devido ao fato de a sociedade não ver a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e sim como objetos, o que, conforme a visão social, faz com que as essas agressões não sejam vistas como violência. A legislação pátria ainda mantém resquícios de autorização legal do uso da violência como forma de educar crianças e adolescentes, como é o caso do Código Penal (art. 136) e do Código Civil (art. 1.638), por não terem ainda substituído em seus textos expressões como “castigar imoderadamente”.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 163 e Políticas Públicas

No que tange ao tema políticas públicas, tratou-se de focar na ideia da construção destas de forma preventiva, visando tornar a sociedade, que hoje não percebe a agressão a crianças e adolescentes como violência, a maior aliada na efetivação dos direitos inerentes à condição humana, assim como à condição de sujeitos em fase peculiar de desenvolvimento. Por meio do entendimento e da realização de campanhas é possível promover mudanças culturais, assim como está sendo feito em relação a não agressão às mulheres.

Concluiu-se comparando a situação em que se encontram os demais países americanos no que concerne ao tema violência contra crianças e adolescentes, com base no relatório da OEA (2009), que no Brasil, apesar dos avanços, ainda deixa a desejar em alguns aspectos, como se percebe ao ver o caráter recente e controverso da lei específica proibindo os castigos físicos.

REFERÊNCIAS

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CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In: DEL PRIORI, Mary (Org.). História das Crianças no Brasil. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 55-83.

CUSTÓDIO, André Viana. Direito da criança e do adolescente. Criciúma: Unesc, 2009. DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. 1789. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2012. DEL PRIORI, Mary (Org.). História das Crianças no Brasil. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

OEA. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria sobre os Direitos das Crianças. Relatório sobre castigo corporal e os Direitos Humanos das Crianças e Adolescentes: promovendo a defesa e o respeito dos direitos humanos das crianças e adolescentes nas Américas. 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2012. ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança. 1989. Disponível em: . Acesso em 10 maio 2012.

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ONU. Pacto Internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais. 1966. Disponível em: . Acesso em: 06 maio 2012. ONU. Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. 1966. Disponível em: . Acesso em: 06 maio 2012.

RAMOS, Fabio Pestana. A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesas do século XVI. In: DEL PRIORE, Mary (Org.). História das Crianças no Brasil. 4. ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 1953.

Capítulo 9

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HIPERDIRECIONAMENTO MIDIÁTICO NA INTERNET DA “CRIMINALIDADE INFANTIL”: dados da estigmatização de crianças e adolescentes pela nova mídia digital

Felipe da Veiga Dias Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Bolsista da CAPES (nº 12333/13-1). Doutorado Sanduíche na Universidad de Sevilla (Espanha). Especialista em Direitos Fundamentais e Constitucionalização do Direito – PUC/RS. Professor da Faculdade Metodista de Santa Maria (FAMES). Santa Maria – RS. Brasil. Integrante dos Grupos de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens e do Núcleo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social. Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo CNPq. Advogado.

Priscila Menezes Acadêmica do Curso de Direito da Faculdade Metodista de Santa Maria (FAMES).

1 INTRODUÇÃO Hodiernamente, vivencia-se na sociedade brasileira certo pânico social perante o crescente índice de criminalidade e violência, de feitio sensacionalista, difundido pelos veículos de comuni-

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cação, despontando em rápidas expansões de ações contra a criminalidade, tendo em vista uma suposta violência que assombra a população e a coloca em confronto com o próprio Estado de Direito. Com o crescente aumento dos casos exibidos pela mídia referente à prática de atos infracionais perpetrados por crianças e adolescentes, o tema acende uma vasta discussão de que a punição seria tão ou mais importante quanto a prevenção, vindo à tona a questão da redução da maioridade penal tão difundida e aclamadas pelos jornais.

A pesquisa tem como foco principal o dilema contemporâneo do hiperdirecionamento midiático, no qual a mídia se apresenta como um sistema difusor de “verdades” e “mentiras”, dependendo do ponto de vista que é abordado, podendo criar vilões e heróis instantaneamente. Especificamente, por meio de uma pesquisa realizada no primeiro semestre do ano de 2013, abrangendo os meses de janeiro, fevereiro e março, nos sites G1 e R7, demonstra-se a existência de uma disposição tendenciosa reducionista de culpabilizar o envolvimento de crianças e adolescentes no aumento da criminalidade. Dessa forma, apresenta-se, aparentemente, a confusão midiática na direção de misturar os discursos da seara penal e do direito da criança e do adolescente, podendo resultar na estigmatização e no prejuízo da proteção integral da infância no Brasil. Posto isso, impõe-se a investigação teórica e dos dados pesquisados, de maneira a dispor acerca do quadro do hiperdirecionamento midiático de punição da infância, em especial no tocante à mídia digital (internet).

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FUNDAMENTOS NORMATIVOS DO DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

Consagra-se, a partir da Constituição Federal de 1988, em face do artigo 227 (BRASIL, 1988), uma nova percepção da infância e adolescência em reconhecimento de sua cidadania, regularizada pela consolidação de uma legislação especial, com a promul-

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gação da Lei Federal 8.069/90, o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de julho de 1990 (BRASIL, 1990). Constituído por 267 artigos, garantindo e determinando a crianças e adolescentes, direitos, deveres e responsabilidades, assim como para o Estado, a família e a sociedade. Estes dispositivos legais proporcionam um significativo processo de reordenamento institucional, com a integração da proteção integral (CUSTÓDIO, 2008) na efetivação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, reconhecendo seu status de sujeito de direitos. O ECA revogou o Código de Menores, o qual se restringia a tutelar o direito do “menor” quando se encontrasse em situação irregular, sendo omisso acerca de crimes e infrações praticadas contra crianças e adolescentes, além de medidas públicas limitadas ao âmbito da Política Nacional de Bem -Estar Social (Funabem) (CUSTÓDIO, 2009, p. 16-23). Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente é orientado pelo princípio, sem distinção, de que todas as crianças e adolescentes desfrutam dos mesmos direitos, e pressupõe obrigações (deveres) ajustadas com a peculiar condição de pessoas em desenvolvimento. Ademais, Saraiva (2003, p. 62), no que confere à estrutura do Estatuto, cita os três grandes sistemas de garantias presentes.

a) o Sistema Primário, que dá conta das Políticas Públicas de Atendimento a crianças e adolescentes (especialmente os arts. 4° e 85/87); b) o Sistema Secundário, que trata das Medidas de Proteção dirigidas a crianças e adolescentes em situação de risco pessoal ou social, não autores de atos infracionais, de natureza preventiva, ou seja, crianças e adolescentes enquanto vítimas, enquanto violados em seus direitos fundamentais (especialmente os arts. 98 e 101); c) o Sistema Terciário, que trata das medidas socioeducativas, aplicadas a adolescentes em conflito com a Lei, au-

168 Felipe da Veiga Dias & Priscila Menezes

tores de atos infracionais, ou seja, quando passam à condição de vitimizadores (especialmente os arts. 103 e 112).

Houve uma regulamentação da política de atendimento à infância e adolescência no País. Isso significa que crianças e adolescentes são reconhecidos como cidadãos brasileiros, independentemente de classe social ou situação em que se encontram, reservando diferenciação somente no que se refere aos procedimentos aplicados em caso de ocorrência de ato infracional.

O Estatuto da Criança e do Adolescente é subdividido em duas partes: o Livro I, intitulado “Parte Geral”, versa sobre a proteção integral à criança e ao adolescente, no qual são abordados os direitos fundamentais, tal qual o disposto no artigo 227 da CF/88. Trata ainda dos regimes de proteção básica no que se compromete com a prevenção de ocorrência ou de ameaça de violação de seus direitos. O Livro II do ECA, “Parte Especial”, trata da legislação destinada ao atendimento do adolescente autor de ato infracional, mostrando, assim, a possibilidade de responsabilização do adolescente. Dividindo o tratamento dos adolescentes infratores em duas vertentes: para os indivíduos de até 12 anos (considerados crianças de acordo com o seu art. 2º), o Estado disponibiliza a aplicação das medidas de proteção (art. 101); para os entre 12 e 18 anos, determina a aplicação das medidas protetivas ou socioeducativas, elencadas no artigo 112, que estabelece desde uma simples advertência até a internação em estabelecimentos juvenis específicos (BRASIL, 1990).

Diante disso, vislumbra-se um aporte normativo complexo e vasto na proteção da infância no Brasil, ao mesmo tempo em que se afasta completamente a alusão de inexistência de responsabilização por ações danosas; porém, frisa-se que o pensamento do Estatuto e da Constituição é sempre socioeducativo para os casos em que crianças ou adolescentes entram em conflito com a lei, estando, por isso, completamente afastados do tratamento punitivo do sistema penal comum.

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A INFLUÊNCIA DA MÍDIA NA CONSTRUÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA

É de conhecimento geral a preocupação do País no cenário moderno com o crescente avanço da criminalidade em todas as esferas da sociedade brasileira, sendo retratada cotidianamente nos veículos de comunicação. Mas sua forma hiperdirecionada/ sensacionalista em elevados índices de certos estereótipos vem causando grande temor na população geral, sendo um dos mais marcantes a infida ideia de que os responsáveis pela caótica situação do País, os grandes autores da criminalidade atuante hoje, seja formada por crianças e adolescentes.

A mídia, com propósito de conquistar maiores índices de audiências, ajuda na construção da cultura do medo frente à criminalidade, abraçando tal tema como mola propulsora de seus noticiários, acarretando grande comoção popular e, conforme assinala Mello (1999, p. 138), não se limitando somente a informar, mas também tomando partido, julgando e condenando. Aprofunda-se desta maneira o temor e a ignorância do público, usando artifícios como mensagens e códigos profundamente estereotipados, podendo assim induzir premissas a serem seguidas por meio da construção da opinião pública, dominando pela primazia do espetacular.

Comumente, tais reportagens realçam apenas a execução do crime e o seu desenlace, podendo ser contabilizadas as poucas vezes em que se exploram as causas que levaram o autor a cometê-lo. Mostrando quase sempre as consequências e não as causas do problema.

Constata-se, dessa forma, uma grande instabilidade da opinião pública, a qual é conduzida, por vezes, pelo discurso midiático (apesar de não ser impossível um entendimento contrário a tal discurso). A comprovação das afirmativas recém-mencionadas é feita por Araújo (2003), ao relatar alguns casos célebres ocorridos no final da última década: a) o sequestro

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de Roberto Medina – que deu causa à edição da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90); b) o caso dos policiais flagrados por cinegrafista amador agredindo gratuitamente populares em Diadema – episódio do qual resultou a Lei de Tortura (Lei 9.455/97); c) o assassinato da atriz Daniela Perez – que culminou em alterações tornando mais rígida a Lei dos Crimes Hediondos; entre outros casos. Neste sentido, pontua Ana Lúcia Sabadell (2002, p. 212),

[...] a maior parte dos cidadãos possui uma imagem parcial e incompleta sobre o sistema jurídico e, dessa forma, as respostas não refletem um conhecimento ou uma realidade do direito, mas somente uma opinião confusa e ideológica. A pessoa comum não possui conhecimento suficiente para analisar, por exemplo, se a Justiça combate eficientemente a criminalidade ou se os juízes são imparciais. Se for perguntado, o cidadão tentará generalizar em base às poucas experiências pessoais e, sobretudo, repetindo a opinião veiculada pela mídia, que dá particular destaque aos problemas e escândalos (exemplo: “corrupção de juízes”) e nunca noticia o cotidiano normal do sistema jurídico. Assim sendo, os questionários relativos à opinião sobre o direito em geral reproduzem o “senso comum” difundido pela mídia, ou seja, refletem estereótipos e visões “sensacionalistas”’, não descobrem a opinião “pessoal” de cada interrogado e seguramente não permitem constatar a “realidade” do direito.

Neste diapasão, Genro Filho (1987, p. 187) adestra que a ruptura da unidade, da totalidade na exposição jornalística, torna os homens objetos inconscientes das estruturas de dominação que instituem cotidianamente. Cogita-se dizer que a mídia é uma poderosa seringa a injetar conceitos e valores em um público passivo e (quase sempre) obediente. Em outras palavras, conduzindo “verdades” hegemônicas, como se fossem “verdades” reais e absolutas, “condenando” até mesmo antes de uma sentença condenatória transitada em julgado.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 171 e Políticas Públicas

Diante do (induzido) clamor social em relação ao adolescente infrator, no calor dos acontecimentos, ainda com a consciência pedindo vingança e justiça, não falta quem apresente soluções simplistas como a redução da maioridade penal, com o argumento de que seria a única maneira de combater a “crescente” criminalidade infantojuvenil, como se esta fosse uma solução para uma realidade estruturalmente marcada pela falta de concretização de direitos fundamentais.

Assim, infelizmente, esse discurso punitivo e contraposto à proteção integral, contribui para o crescimento do número de defensores de propostas que visam à redução da imputabilidade penal. Almeida (2009, p. 5) cita uma pesquisa de opinião pública realizada pelo Data Senado em 2007 sobre a violência no Brasil, mostrando que 87% dos entrevistados defendem a diminuição da maioridade penal. A opinião dos entrevistados se divide da seguinte forma: 36% acham que a maioridade penal deve diminuir para 16 anos, 29%, para 14 anos, 21% defendem a diminuição para 12 anos e 14% acreditam que a maioridade penal não deveria existir, sendo a punição aplicada da mesma forma para pessoas de todas as idades.

Neste norte, este tipo de sustentação alicerça-se em discursos estigmatizantes com a utilização destes por parte da mídia, remontando a chamada teoria da rotulação social, na qual se busca um alvo para o processo de exclusão (neste caso, crianças e adolescentes) e, para tal finalidade os instrumentos penais são extremamente eficientes (BARATTA, 2002, p. 88).

As pretensas propostas, como a redução da idade penal, se chocam com a questão constitucional, pois tal redução ofenderia cláusula pétrea da vigente Constituição do País, o que, além da sua impossibilidade, ainda implicaria um aumento da crise do sistema penal. Não obstante, resta ainda a demonstração da pro-

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liferação desse discurso punitivo por parte da mídia1, de modo a fomentar a estigmatização da infância no Brasil, em especial aqui se atém à produção da mídia na internet.

4

MÍDIA NA INTERNET E A COMPOSIÇÃO DA ESTIGMATIZAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES: UMA PESQUISA DE DADOS ONLINE

Não há como negar que os debates em torno da tão polêmica redução da maioridade penal vêm ganhando, nestes últimos meses, cada vez mais destaque nos veículos de comunicação. A intensa divulgação de notícias associadas ao tema da criminalidade praticada por crianças e adolescentes tem acabado por banalizar a problemática, fazendo com que a mídia exponha fatos ainda mais sensacionalistas e chocantes para a população, que, acuados pela sensação divulgada, defendem o aumento e o recrudescimento das sanções penais.

Diante da postura midiática de errônea conexão entre o pensamento de expansão do direito penal (SÁNCHEZ, 2011) como alternativa à violência e a finalidade distinta do direito da criança e do adolescente, buscou-se executar uma demonstração da estigmatização causada pelo atual discurso midiático punitivista e a efetivação e a proteção da infância no Brasil. Deste modo, foi adotado como panorama de análise o campo da internet, de maneira a restringir o espectro dos meios de comunicação. A pesquisa aqui apresentada adotou o modelo por amostragem, tendo em vista a impossibilidade de colher a totalidade de notícias na rede mundial de computadores, bem como tem por objetivo expor uma tendência punitiva no discurso da mídia na seara da infância (uso de fundamentos de medo e risco)2, 1

Os riscos e danos desse discurso midiático punitivo são retratados em recente obra de Zaffaroni (2012).



2

Nesse sentido, importantes são as contribuições das obras de Bauman (2008) e Beck (2010).

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 173 e Políticas Públicas

quando há o envolvimento de crianças e adolescentes em atividades “criminosas”. Os dados utilizados no estudo provieram da análise de matérias jornalísticas publicadas nos sites G1 - Portal de notícias da Globo (G1, 2013) e R7 - Canal de notícias da Rede Record (R7, 2013), realizada no primeiro semestre de 2013, focando os meses de janeiro, fevereiro e março.

No mês de janeiro, permitiu-se evidenciar que no site de notícias G1 foram relatadas 57 reportagens de crianças e adolescentes envolvidos de alguma maneira com a criminalidade. Destas, foram publicadas 20 notícias de crimes de homicídios tentados e consumados, 19 ligados ao tráfico de drogas, 13 que abrangiam furtos e roubos, três com porte ilegal de armas, duas relacionadas a incêndios a transporte público, duas a esquartejamento, uma atrelada a latrocínio, uma relacionada a sequestro, uma a cárcere privado e uma por contrabando. Ainda foi possível ter uma ideia da idade dos jovens envolvidos em cada crime. No que cabe ao homicídio, apenas em uma notícia não foi relatada a idade do autor; nas outras, o maior índice de cometimentos ficou na base de idade dos 16 anos, com o número de sete, em seguida vêm os que contavam com 15 e 14 anos, obtendo o mesmo número de quatro; os com 17 anos foram responsáveis pelo equivalente a três notícias, e por último, com 13 anos, com duas infrações.

O segundo delito mais cometido relatado nas notícias do G1 em janeiro foi o de tráfico de drogas, cuja idade predominante foi de 15 anos, com sete infrações; em seguida, 16 anos com seis; 17 anos com o equivalente a quatro; 14 anos com três, 13 e 12 anos sendo responsáveis por uma; e em três reportagens não foram relatadas as idades dos adolescentes envolvidos. Ao reportar furtos e roubos, foi obtido o maior índice sem informação de idade. Dos 13 crimes, em oito notícias não foram citadas as idades dos envolvidos em nenhum momento, e nas que foram, os adolescentes com 17 anos cometeram quatro, e com 16 anos, uma infração.

174 Felipe da Veiga Dias & Priscila Menezes

Marca também o mês de janeiro os atentados ao transporte público, quando foram publicadas duas reportagens sobre incêndio a ônibus; destas, um responsável tinha 16 anos e na outra não houve divulgação de idade. Foram evidenciadas também nesse mês reportagens relacionadas aos crimes de esquartejamento, latrocínio, sequestro, cárcere privado e contrabando. Já no que confere o portal R7, o número de reportagens no mesmo mês foi bem inferior, se comparada com o outro site, sendo apenas oito reportagens relacionadas a crianças e adolescentes envolvidos com alguma forma de violência e criminalidade.

Igualmente ao portal de notícias G1, o homicídio foi tido como o mais reportado, com o número de três; em seguida vem o crime de furto e roubo, com dois; tráfico de drogas, estupro e porte ilegal de armas, com uma reportagem cada. No que se refere ao homicídio, os envolvidos tinham idades de 17, 16 e 14 anos com o mesmo número de um crime.

Nos crimes de furto e roubo houve um crime divulgado com autor de 17 anos e o outro sem menção a idade. Referente ao mês de fevereiro, no site G1, houve um total de 68 reportagens sobre crianças e adolescentes envolvidas de alguma forma com violência ou criminalidade, sendo perceptível um pequeno aumento no número de reportagens se comparado ao mês anterior.

Neste mês houve uma inversão na posição dos crimes mais cometidos, ficando como mais publicadas notícias envolvendo roubos e furtos com o número de 21, tráfico de drogas com o segundo lugar, com 20, seguido do homicídio tentado ou consumado com 11, porte ilegal de armas com nove, sequestro com cinco e incêndio com dois. Igualmente, aduz-se que o número de notícias sem a informação da idade do adolescente autor teve um crescimento expressivo, agora abrangendo um total de 21 notícias. Roubo e furto foram os delitos mais relatados nesse mês, com 10 notícias, cuja idade predominante foi 15 anos.

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 175 e Políticas Públicas

No mesmo período de fevereiro, mas no site R7, houve também um aumento na quantidade de reportagens, com um número significativo de 27 registros.

Aqui, em primeiro lugar, ficaram empatados os crimes de homicídios tentados e consumados juntamente com roubos e furtos, com o equivalente a nove crimes; em seguida vem o tráfico de drogas, reportado oito vezes; e, por fim, incêndio, sequestro e porte ilegal de armas, com um crime cada.

No homicídio, foi reportado um número de três notícias sem menção da idade dos adolescentes autores; os adolescentes com 17 e 14 anos foram responsáveis igualmente pelo mesmo número de duas infrações; e os com 15 e 12 anos com o equivalente de uma cada. No que se refere a março, último mês pesquisado, observou-se a representação de 49 notícias de criminalidade e violência no site G1, o menor montante do período analisado. Mais uma vez houve uma inversão dos crimes mais praticados, ficando o homicídio tentado ou consumado em primeiro lugar com o equivalente a 16; em seguida vem roubos e furtos, com número de 14; após, tráfico de drogas, com 13; porte ilegal de armas, duas; lesão corporal e vandalismo com uma notícia.

No que alude ao homicídio, houve duas reportagens em que não foram mencionadas as idades dos adolescentes autores, e o maior cometimento de homicídios tentados ou consumados ficam com os adolescentes de 17 anos, sendo responsáveis por seis; logo em seguida vêm os que contavam com 16 anos, sendo incriminados por quatro; os de 15 anos por três; e por fim os de 14 e 12 anos, por duas infrações. Em roubos e furtos, houve o maior número de reportagens em que não existia menção de idade, num total de sete, e os maiores autores reportados tinham 17 anos com o equivalente a cinco; os adolescentes de 15 e 16 com a quantidade igualitária de quatro; e por fim os de 14 anos, com uma.

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Em março, no site R7, houve uma diminuição de reportagens se comparada ao mês anterior, neste sendo perceptível um total de 13. Repartidas em homicídios tentados ou consumados com cinco; furtos e roubos com o total de quatro; tráfico de drogas, lesão corporal, incêndio a transporte público e latrocínio igualmente com uma. Contudo, aduz-se que referente ao homicídio tentado ou consumado foram três reportagens sem informação, e adolescentes com 17 e 14 com uma cada. Assim, a pesquisa analisou um total de 218 reportagens relacionadas à violência ou à “criminalidade” cometida por crianças e adolescentes. Destas notícias, as mais veiculadas no decorrer dos três meses pesquisados foram de homicídios tentados ou consumados, com o equivalente a 64 reportagens; em segundo lugar roubos e furtos, com o total de 63; e por fim tráfico de drogas com 62. As idades predominantes dos adolescentes autores foram de 17 anos com 59 infrações, em seguida os de 16 anos chegando a 54; e de 15 anos com 38. O levantamento permitiu corroborar a prática de um jornalismo de baixa investigação, quando muito, detendo-se apenas em evidenciar os fatos, sem sequer identificar a idade dos envolvidos, como se pode notar pela quantidade de 75 reportagens sem menção de idade.

Evidenciou-se uma clara distinção no tratamento da infância, especialmente quando está encontra-se ligada à “criminalidade”, sendo, portanto, distinto do tratamento dado à infância, quando esta se encontra no lugar de vítima. A distinção também é vista na nomenclatura utilizada pela mídia: “menor” nos casos de autoria de ato infracional, e “criança e adolescente” nas situações em que é vítima, o que acaba por criar um novo rótulo para os sujeitos, como visto. A mídia, por meio de suas manchetes e imagens impactantes, tem o condão de emitir verdades absolutas, sendo responsável pela instauração de estereótipos dignos de perseguição, cominados a determinadas pessoas a partir da seleção que as rotula, constituindo a criminalidade emanada

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 177 e Políticas Públicas

da influência mútua entre ação e reação social, de modo que o ato será etiquetado como desviante por meio da sua natureza e de seu efeito no corpo social.

Não raro, os veículos de comunicação abordam com um grau elevado de perplexidade as questões relacionadas com a criminalidade, ressaltando a dificuldade em encontrar soluções ou amenizar os problemas relacionados a crianças e adolescentes nos seus envolvimentos em atos infracionais. Foi possível perceber que muitos jornalistas desconhecem o Estatuto da Criança e do Adolescente, na parte que toca ao sistema socioeducativo, pois noticiam casos como se não houvesse nenhuma lei específica para tais indivíduos ou como se esta fosse ineficaz. Comprovou-se-se que a mídia inverte a verdadeira raiz do caos social quando pronuncia que a criminalidade é a causa dos problemas para a sociedade, ao invés de a sociedade ser a causadora dos problemas da criminalidade.

5 CONCLUSÃO

A partir da pesquisa, do estudo e da análise da literatura, pode-se perceber uma distância entre as bases constitucionais do direito da criança e do adolescente e a produção midiática no Brasil. Desta forma, entende-se pela errônea conjugação dos planos criminal e da infância, apesar de seus objetivos distintos, por parte dos meios de comunicação, os quais apresentam discursos estigmatizantes no sentido do hiperdirecionamento midiático. Assim, tornou-se perceptível ao longo da pesquisa que os adolescente são tão ou mais vítimas de homicídios do que acusados, e que há uma nítida diferenciação no tratamento dado pela mídia em suas reportagens. Isso porque, quando existe algum infante ocupando a posição de vítima, não se depara com a abordagem da mídia no mesmo estado de indignação e celeuma social quanto à incidência de episódios em que o infante é o transgres-

178 Felipe da Veiga Dias & Priscila Menezes

sor (retratado como “menor”), resultado do sensacionalismo midiático repressor e punitivo.

Portanto, percebe-se um discurso expansivo punitivo predominante na mídia, a qual estabelece uma figura estereotipada da infância sobre a questão criminal, apresentando-se em franca contradição com as bases constitucionais e do direito da criança e do adolescente, ao mesmo tempo em que merece a crítica não apenas pela conduta discriminadora dos infantes, mas também por utilizar os novos mecanismos de informação, como a internet, para expandir o preconceito e os danos à infância no Brasil.

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Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 179 e Políticas Públicas

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GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987.

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Capítulo 10

A

SPECTOS SOCIOCULTURAIS SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Felipe Jappe de França Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA/UNISC). Advogado. ([email protected])

Matheus Silva Dabull Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA/UNISC) e do Grupo de Pesquisa Políticas Públicas de Inclusão Social (UNISC). Participante do projeto de pesquisa “A violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes e as políticas públicas: a imperiosa análise do problema para o estabelecimento de parâmetros de reestruturação do combate às violações aos direitos infantojuvenis”, financiado pelo CNPq. Advogado. ([email protected])

1 INTRODUÇÃO Desde 1999, a redução da idade penal vem sendo discutida pelo Congresso Nacional brasileiro, em diferentes Propostas de Emenda à Constituição Federal (PECs). O presente capítulo têm como objeto de discussão as Propostas de Emenda Constitucional que almejam a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Não se pretende abordar

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sua constitucionalidade ou não, mas, identificar e contextualizar os fatores sociais, políticos e econômicos que interferem direta e indiretamente em tais propostas.

Para delinear o assunto proposto, o texto versa sobre a notável evolução normativa brasileira no tocante à proteção de crianças e adolescentes como detentores de direitos e cuidados especiais a partir da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; os mecanismos de manutenção e condescendência sociais na violação de tais direitos, como fatores determinantes da atual marginalização; bem como propostas de políticas públicas de fomento a novas práticas de atendimento dos direitos de crianças e adolescentes, visando alcançar os objetivos não atingidos pelas supostas emendas. Na conclusão, são abordados os principais pontos alcançados pela pesquisa e meios alternativos para a garantia de uma sociedade mais responsiva pelos seus cidadãos. O método de abordagem utilizado será o dedutivo com base na teoria da proteção integral, e o método de procedimento é o monográfico. As técnicas de pesquisa serão bibliográficas e documentais. O estudo está inserido no Grupo de Estudos em Direitos Humanos de Crianças, Adolescentes e Jovens (GRUPECA/UNISC), do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).

2

A NOTÁVEL EVOLUÇÃO NORMATIVA BRASILEIRA NO TOCANTE À PROTEÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COMO DETENTORES DE DIREITOS E CUIDADOS ESPECIAIS A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988

A história brasileira, desde a colonização portuguesa, foi “marcada pela negação de um lugar específico para a infância, decorrente da ausência do reconhecimento da condição peculiar

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 183 e Políticas Públicas

de desenvolvimento que pudesse diferenciar a infância da fase adulta” (CUSTÓDIO, 2009, p. 11). As primeiras tentativas de intervenção sobre a infância, nos séculos XVI a XVIII, foram meras reproduções de modelos europeus, e se caracterizaram como “experiências políticas que pretendiam dar respostas aos anseios e desejos de uma sociedade que pretendia construir um novo mundo” (CUSTÓDIO, 2009, p. 11). Somente no século XX, o direito da criança restou incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, com a aprovação do Código de Menores de 1927. Nele, foi fixada a idade mínima de 14 anos para responsabilizar e aplicar sanções pela prática de ato infracional. Ainda, previa que os “menores” jamais poderiam cumprir pena juntos com condenados adultos, e que, para estes, a idade de 18 a 21 anos constituía circunstância atenuante (MARANHÃO; GOMES, 2007, p. 3).

As premissas referidas restaram mantidas pela Consolidação das Leis Penais de 1932 e pelo Código Penal de 1940, o qual decretou que “os menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial” (art. 23). Posteriormente, em 1979, uma nova roupagem do Código de Menores (Doutrina do Menor em Situação Irregular) revogou a legislação anterior e manteve a inimputabilidade absoluta até os 18 anos de idade. Até então, a proteção aos “menores” no Brasil

[...] caracterizou-se pela imposição de um modelo que submetia a criança à condição de objeto, estigmatizando-a como em situação irregular, violando e restringindo seus direitos mais elementares, geralmente reduzindo-a à condição de incapaz, e onde vigorava uma prática não participativa, autoritária e repressiva representada pela centralização das políticas públicas. (CUSTÓDIO, 2009, p. 22)

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O “direito do menor” não era o direito de todas as crianças e adolescentes no que se refere à sua proteção, mas, ao contrário, era dirigido à aplicação de sanções àqueles com menos de 18 anos que se encontravam, como era chamada na época, em situação irregular.

Na década de 1980, com o fortalecimento dos movimentos sociais no Brasil, mudanças começaram a ser exigidas no que diz respeito aos direitos e mecanismos de proteção dos “menores”, fase que teve o seu ápice com o processo de elaboração da nova Constituição. Nesse sentido, o “direito do menor” (com o Código de Menores - Doutrina do Menor em Situação Irregular) foi superado pelo Direito da Criança e do Adolescente, com a consolidação da Teoria da Proteção Integral pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 227 (BRASIL, 1988). Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência família e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Como bem ressalta Custódio (2009, p. 26),

A Constituição da República Federativa do Brasil e suas respectivas garantias democráticas constituíram a base fundamental do Direito da Criança e do Adolescente, inter -relacionando os princípios e diretrizes da teoria da proteção integral, e, por consequência, provocaram um reordenamento jurídico, político e institucional sobre todos os planos, programas, projetos, ações e atitudes por parte do Estado, em estreita colaboração com a sociedade civil, nos quais os reflexos se (re)produzem sobre o contexto sócio-

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-histórico brasileiro. A formulação de uma base epistemológica consistente possibilitou à doutrina da proteção integral reunir tal conjunto de valores, conceitos, regras, articulação de sistemas e legitimidade junto à comunidade científica, que a elevou a outro nível de base e fundamentos teóricos, recebendo, de modo mais imediato, a representação pela ideia de Teoria da Proteção Integral.

A Teoria da Proteção Integral

[...] desempenha papel estruturante no sistema, na medida em que o reconhece sob a ótica da integralidade, ou seja, o reconhecimento de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e, ainda, direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, que se articulam, produzem e reproduzem de forma recíproca. (VERONESE, 2003, p. 439)

Assim, pode-se afirmar que a Teoria da Proteção Integral se constitui no princípio basilar do Direito da Criança e do Adolescente.

A Constituição Federal de 1988, ao recepcionar o direito da criança e do adolescente em seu texto, “evidenciou a necessidade de reformulação da legislação especial infraconstitucional para crianças e adolescentes, como condição para o alinhamento entre os avanços da normativa internacional, da própria construção normativa constitucional e a legislação ordinária” (SPOSATO, 2009, p. 7). Eis que, dois anos após a Constituição, entra em vigor a Lei 8.069/90, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual instrumentaliza a Teoria da Proteção Integral. Em sua parte geral (arts. 1º-69), o Estatuto da Criança e do Adolescente traz um conjunto de normas disciplinadoras dos direitos fundamentais, destinando sua parte especial prerrogativas para a implantação do sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente.

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Assim, estabeleceu um conjunto normativo de disposições que envolvem a garantia dos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária visando garantir a proteção contra qualquer forma de exploração, tal como a exploração do trabalho infantil ou de qualquer outra forma decorrente da violência e da negligência. Pretende deste modo concretizar os princípios e diretrizes da teoria da proteção integral com vistas à superação da cultura menorista instalada nas instituições brasileiras durante todo o século XX. (CUSTÓDIO, 2009, p. 43)

Portanto, é inegável a relação intrincada entre a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. “Contemporâneos ao consenso na comunidade das nações acerca da necessária proteção especial às crianças e adolescentes, ambos caracterizam-se pelo forte teor programático de suas disposições” (SPOSATO, 2009, p. 7).

No Estatuto da Criança e do Adolescente, especificamente, percebe-se que o legislador se utilizou de normas de eficácia contida, dependentes de futura regulamentação e da necessária implementação de políticas públicas. De modo uníssono, traduzem a afirmação histórica dos direitos humanos.

As mudanças de paradigma introduzidas pela Doutrina da Proteção Integral no ordenamento jurídico brasileiro podem ser sintetizadas em seis aspectos principais (SPOSATO, 2009, p 9-10): a) reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos; b) institucionalização da participação comunitária por intermédio dos Conselhos de Direitos, com participação paritária e deliberativa para traçar as diretrizes das políticas de atenção direta à infância e juventude;

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 187 e Políticas Públicas

c) hierarquização da função judicial, com a transferência de competência aos Conselhos Tutelares para agir diante de ameaça ou violação de direitos da criança no âmbito municipal; d) municipalização da política de atendimento;

e) eliminação de internações não vinculadas ao cometimento – devidamente comprovado – de delitos ou contravenções;

f) incorporação explícita de princípios constitucionais em casos de cometimento de ato infracional, prevendo-se a presença obrigatória de advogado e a participação do Ministério Público nos atos pertinentes.

Enfim, importa reconhecer que a constitucionalização operou substantivas transformações, começando pela superação da categoria de menoridade – como desqualificação e inferiorização de crianças e jovens, agora em condições de igualdade perante a lei –, e passando pela incorporação do devido processo legal e dos princípios constitucionais como norteadores das ações dirigidas à infância e, ao mesmo tempo, limites objetivos ao poder punitivo sobre jovens em conflito com a lei. No campo da responsabilização pelo cometimento de ato infracional, às pessoas entre 12 e 18 anos, definidas como adolescentes, são aplicadas medidas socioeducativas, conforme previsto no artigo 112 do ECA. Já as crianças, ou seja, aqueles com idade inferior a 12 anos, a quem for imputado o cometimento de ato infracional, são aplicadas medidas de proteção (ver arts. 101 e 105, do ECA), executadas por algum programa específico de atendimento. Nesses programas também são incluídos pais e responsáveis pela criança/adolescente, a fim de que possa ser prevenida a reincidência.

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MECANISMOS DE MANUTENÇÃO E CONDESCENDÊNCIA SOCIAIS NA VIOLAÇÃO DE DIREITOS, COMO FATORES DETERMINANTES DA ATUAL MARGINALIZAÇÃO

A maioridade penal não pode ser compreendida a partir de uma única causa, pois se trata de uma tentativa de solucionar problemas complexos, determinados pela conjugação de inúmeras variáveis. Portanto, alguns aspectos podem auxiliar na compreensão dos motivos pelos quais ainda esse assunto é submetido a enaltecidas discussões.

Muito embora o breve resgate do contexto histórico da legislação sobre o tema revele o descaso e a marginalização de crianças e adolescentes desprovidos de oportunidades e descartados da sociedade, nem de longe reflete o mínimo de conhecimento sociocultural e político necessários para compreender e solucionar as mazelas cultural e política que enfrentamos diária e historicamente construída pela própria sociedade, e que, ao negar tal desprestígio, não consegue corrigir seus erros.

Dentre alguns aspectos que envolvem a discussão, é sem dúvida a questão da pobreza de grande parte da sociedade um elemento fundamental na construção do problema, mas não exclusiva. Suprir as necessidades básicas relativas à subsistência, saneamento básico, saúde, educação e complementação de recursos que contemplem a condição mínima de cidadania são requisitos essenciais a serem alcançados para a concretização efetiva do objetivo que a sociedade ora almeja: a erradicação da marginalidade infantojuvenil.

Nesse contexto, sabe-se que a sociedade contemporânea alimenta o mercado capitalista de exagerado consumo e, políticas públicas direcionadas aos interesses ideológicos de minorias liberais; de igual forma, mantém diferenças extremamente rigorosas de classes sociais, ostentando seus interesses sob o artifício da diminuição desse paradigma. No entanto, suscita atingir

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tal objetivo, “’higienizando” (VERONESE; CUSTÓDIO, 2013) a sociedade, retirando forçosamente da visão pública o produto o qual é responsável e negando condições de resgate sobre o fruto mal educado.

Aspectos diretamente vinculados a fugir de tal responsabilidade ligam a desmarginalização de adolescentes à inclusão deles em atividades laborativas, já debatidos pela literatura como inverdades ou “mitos”, criados exclusivamente para manutenção do controle da sociedade alijada das oportunidades. Dentre tais mitos podemos destacar os lembrados por Veronese e Custódio (2013): “é melhor trabalhar do que roubar”, “é melhor trabalhar do que ficar nas ruas”, “trabalhar desde cedo acumula experiência para o futuro”, “é melhor trabalhar do que usar drogas”, “trabalhar não faz mal a ninguém”, com intuito, mais uma vez, de higienizar e controlar de maneira opressiva, parte da sociedade desprovida do direito a ter direitos. Muito embora os mecanismos acima citados insistam em se manter, não sustentam seus objetivos por motivos óbvios. São discursos falaciosos que vislumbram tão somente a manutenção da desigualdade social historicamente sustentada pelas minorias detentoras de poder econômico. Não obstante, um velho discurso se ascende, reduzir a maioridade penal como sendo a solução de todos os problemas envolvendo a violência e a marginalidade infantojuvenil, histórica e racionalmente ineficaz, o qual enaltece a inobservância dos direitos humanos de crianças e adolescentes esforçadamente reconhecidos ao final do século passado. Nesse breve debate, salta aos olhos a insensibilidade humana e talvez a ignorância consciente da sociedade não empenhada na real compreensão de que crianças e adolescentes são detentores de direitos e cuidados especiais e, acima de tudo, carecedores de um complexo modo de educação e cultura capaz de lhes proporcionar um patamar mínimo de oportunidades que os desviem do caminho da marginalização e da perda da essência do ser humano enquanto cidadãos.

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A história parece repetir, da mesma forma e intensidade, a insensibilidade humana que se arrasta pelos séculos, na inexistência de promover meios de ascensão social, de educação e cultura, eternizando-se sem que atitudes enérgicas sejam tomadas. O descaso e os episódios com relação à violação de direitos humanos são os mesmos, observados através da história como prejuízos sociais, provenientes dos regimes econômicos de exploração que ainda se perpetuam por gerações.

Imaginar um maior rigor penal ou editar novas leis com objetivo de, mais uma vez, castigar cidadãos pela falta de oportunidades e de mecanismos de conhecimento e educação, no mínimo, é uma visão cruel e simplista, na medida em que não se terá como resposta um resultado efetivo, menos ainda, humano. Promover a igualdade social e a harmonia do convívio em sociedade, sem marginalidade, e com equiparação de oportunidades entre todos os cidadãos é uma matéria complexa, mas talvez seja esse o principal problema a ser debatido, e não a própria marginalidade. O tema trata da alteração dos fundamentos de ordem social, econômica, cultural e política. Fundamentos alicerçados até então por uma cultura que une elementos conscientes e inconscientes, sobrevindos da nossa história enquanto país emergente, que é marginalizado e explorado, e que hoje, marginaliza e explora. É irrelevante e principalmente ineficaz a criação ou a mudança de leis para garantia da “higienização” social, e da garantia de direitos humanos fundamentais (SARLET, 2009, p. 29). Uma nova cultura social e política fazem-se indispensáveis, para desenraizar métodos transgressores e transformá-los em práticas efetivas de exercício da cidadania participativa e reconhecida (SANTOS, 2010, p. 106), alcançando o patamar de igualdade social tão almejado pela maior parte da sociedade e, a eliminação da violência, ora intolerada. Veronese e Oliveira destacam (2008, p. 49):

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O medo é impositivo, suscita um desiquilíbrio psicológico e físico, exerce uma ação de fora para dentro no indivíduo e o leva, pela incapacidade ou impossibilidade de enfrentá-lo, à obediência. A prática de educar pelo medo, pela punição, atua fortemente, predeterminando uma ação ou um comportamento através da inibição de outros. [...].

Parece óbvio tal raciocínio, mas é imperioso um ajuste na legislação com relação aos motivos causadores da não observância dos direitos humanos fundamentalmente reconhecidos à maioria, estendendo-os a todas as classes sociais, para, a partir daí, reclamar comportamentos de cidadãos com mesmas bases educacionais, sociais e culturais. A autoconsciência que se cria neste exercício pode ser entendida como única saída racional, lógica e indiscutível de resolução do tema de forma definitiva e eficaz. A não ser, evidentemente, que não seja essa a intenção do legislador. Reconhecer o caminho trilhado e recriminar os erros do passado passam a funcionar como uma mola propulsora na defesa de uma nova cultura, agora lúcida, avigorando e fortalecendo as reformas sociais, políticas e jurídicas para o surgimento de outro modelo de compreensão social frente à problemática apresentada e, a partir desse entendimento amplo, racional e límpido, representar uma advertência permanente para toda a sociedade, arraigando-se como caráter ético e moral.

Portanto, resta observada a importância do cidadão reconhecer-se enquanto figura fortemente influente na consecução e promoção das desigualdades sociais e da violência ora debatida. Bem como, de forma ética e moral, se colocar na posição de agente transformador do meio social no qual convive, passando a agir de maneira mais lúcida, contribuindo no efetivo combate à violência, reestabelecendo, contudo, o compromisso de uma condição de igualdade social mais justa, a partir da preservação das capacidades individuais de cada cidadão, a uma educação mais justa, bem como a outros elementos indispensáveis à sua formação plena, cheia de possibilidades e oportunidades.

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POLÍTICAS PÚBLICAS DE FOMENTO A NOVAS PRÁTICAS DE ATENDIMENTO E PREVENÇÃO DOS DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES, VISANDO ALCANÇAR OS OBJETIVOS NÃO ATINGIDOS PELAS SUPOSTAS EMENDAS

Talvez o principal objetivo a ser alcançado pelas políticas públicas que efetivamente resgatam os valores de uma sociedade pacífica seja debater suficientemente a respeito do tema. Não se pode acreditar em um debate que contemple analisar medidas imediatistas que tão somente sirvam para plantar uma suposta solução momentânea, sem eficácia prolongada, e tampouco empenhada com a dignidade dos seres humanos, detentores de cuidados especiais, nem preocupada com a efetiva qualidade de vida prolongada socialmente.

As causas da violência e da desigualdade social não são passíveis de solução com a adoção de leis penais severas. As ações no campo da educação, dentro de seu universo infindável, é que demonstrarão ser efetivas na diminuição da vulnerabilidade de centenas de milhares de adolescentes ao crime e à violência. A discussão não deve ter como objetivo primordial a idade em que se devem colocar adolescentes na cadeia, e sim, em como combater a criminalidade e a violência. Em como proteger crianças e adolescentes da vulnerabilidade e da desigualdade que sofrem diariamente. Em que ordem de prevalência os seus direitos garantidos constitucionalmente são colocados. A repressão, historicamente debatida e conhecida como não eficaz na solução dos problemas, deve ser suficientemente levada ao conhecimento de todos, de modo a esclarecer que a violência, a ameaça, e outros mecanismos de opressão, não previnem e não corrigem o cidadão que não possui dignidade e, portanto, não teme sua perda, tampouco sua vida.

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A população em geral sofre com a falta de educação e conhecimento de seus direitos, e talvez esse emburrecimento seja intencionalmente provocado, servindo de maneira a justificar práticas repressoras no controle de uma cultura que, por ignorância ou por intenção, não se desenvolve para o conhecimento de todos.

As políticas públicas devem dar cuidado especial às questões que envolvem informações em sentido geral, como educação, saúde, saneamento básico e uma cultura que, de toda forma, colabora decisivamente para o desenvolvimento de crianças e adolescentes ora marginalizados. Vislumbra-se “a efetivação de um modelo de Estado capaz de superar a crise dos projetos de modernidade e civilização, marcados pelas precárias condições de atendimento à população, [...]”; é necessária a “efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, com acessos universais, capazes de garantir oportunidades de superação de desigualdades” (CUSTÓDIO, 2011, p. 70). Diante do debate exposto, propõe-se a construção de uma nova educação com bases culturais relativas às causas da violência que assolam nossa sociedade, e não, de maneira opressora e desumana, propalar uma falsa justiça como meio adequado e eficaz de resolver problemas historicamente admitidos. O que se pretende é promover medidas de incentivo, nas quais “destacamse os temas do desenvolvimento e da inclusão social” (SCHMIDT, 2008, p. 2.309).

O reconhecimento de que a autoria da violência social parte de cada um dos cidadãos que compõem a sociedade é um indicativo de que estaremos no caminho certo para solução dos conflitos. Isso significa não nos reconhecermos apenas como coadjuvantes, mas também como atores, indispensáveis na construção de uma nova sociedade, a qual respeita indistintamente os seres que a compõem e, acima de tudo, proporciona oportunidades iguais a seus membros, conseguindo assim, alcançar a igualdade social e principalmente o respeito aos direitos de todos independentemente de classes sociais.

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5 CONCLUSÃO Estabelecida a análise do tema sobre bases históricas, culturais e sociais, embora não sobre sua constitucionalidade, restanos abreviar algumas considerações para reflexão de forma mais abrangente.

A redução da maioridade penal de 18 para 16 anos não representa o fim da violência, mas, pelo contrário, contribui para punir ainda mais os adolescentes já penalizados com a desigualdade social que, em tese, impulsiona o jovem ao cometimento de atos infracionais. Atenção especial deve ser dada não a alteração de leis, no intuito de aumentar sua severidade, mas, considerar que o Estado e a sociedade não têm cumprido o seu dever de assegurar os direitos de crianças e adolescentes, e isso tem se refletido na delinquência juvenil. Criminalizar o adolescente com penalidade no âmbito carcerário seria maquiar a verdadeira causa do problema, desviando a atenção com respostas simplórias, inconsequentes e desastrosas para a sociedade.

O Estatuto da Criança e do Adolescente não é omisso com relação a adolescentes autores de atos infracionais, pois os responsabiliza, aplicando medidas socioeducativas, e incluindo também a sua família em programas sociais, a fim de que possa ser prevenida a reincidência. Portanto, cabe sim, exigir e pôr em prática a aplicação efetiva dessas medidas, assim como o investimento em saúde e educação de qualidade, e de políticas públicas que extingam as desigualdades sociais absolutamente.

A única alternativa plausível de solucionar, de forma definitiva, a violência social infantojuvenil é crer na capacidade de regeneração do adolescente quando beneficiado em seus direitos básicos e pelas oportunidades de desenvolvimento integral de valores que dignificam os seres.

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REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05.10.1988. Disponível em: Acesso em: 25 jul. 2012. CUSTÓDIO, André Viana. Direito da Criança e do Adolescente. Criciúma: Unesc, 2009. CUSTÓDIO, André Viana; SOUZA, Ismael Francisco de. Direitos da Criança e do Adolescente e Políticas Públicas: A Erradicação do Trabalho Infantil Doméstico no Brasil. In: COSTA, Marli Marlene Moraes da; RODRIGUES, Hugo Thamir (Orgs.). Direito e Políticas Públicas VI. Curitiba: Multideia, 2011. MARANHÃO, D. B.; GOMES, L. R. Menoridade Penal. Revista dos Tribunais Online. Ciências Penais, v. 7, jul. 2007.

SANTOS, Boaventura de Sousa et al. (Org.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia. Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. SCHMIDT, João P. Para Entender as Políticas Públicas: Aspectos Conceituais e Metodológicos. In: REIS, J. R.; LEAL, R. G. (Org.). Direitos sociais e políticas públicas: desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008. Tomo 8. SPOSATO, Karyna Batista. A Constitucionalização do Direito da Criança no Brasil como barreira à redução da idade penal: visões de um Neoconstitucionalismo Aplicado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 80, set. 2009.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Humanismo e infância: a superação do paradigma da negação do sujeito. In: MEZZAROBA, Orides (Org.). Humanismo Latino e Estado no Brasil. Florianópolis: Fundação Boiteux; Treviso: Fondazione Cassamarca, 2003. VERONESE, Josiane Rose Petry; CUSTÓDIO, André Viana. Trabalho Infantil Doméstico no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013.

VERONESE, Joseane Rose Petry; OLIVEIRA, Luciane de Cássia Policarpo. Educação Versus Punição: A educação e o direito no universo da criança e do adolescente. Blumenau: Nova Letra, 2008.

UNIDADE

III

POLÍTICAS PÚBLICAS

Capítulo 11

E

STATUTO DA JUVENTUDE E ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: políticas públicas conflitivas ou dupla proteção?

Aline Casagrande Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Linha de Pesquisa: Políticas Públicas de Inclusão Social. Pósgraduada em Direito Civil pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. Professora da Faculdade Palotina – FAPAS, Santa Maria/RS. Advogada. ([email protected])

Rodrigo Flores Fernandes Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista em Direito Civil pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Especialista em Direito Imobiliário pela Faculdade de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul – FADERGS. Professor das Faculdades Integradas São Judas Tadeu. Sócio do Escritório de Advocacia Flores Fernandes Advogados e Membro do Grupo de Estudos sobre os Direitos da Criança, Adolescente e Jovem – GRUPECA – sob a coordenação do Professor Pós-Doutor André Viana Custódio. ([email protected])

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APORTES INICIAIS

Na história da sociedade brasileira, a infância e a juventude sofreram restrições em seus direitos fundamentais, por vezes sendo tratadas como uma coisa, um objeto, como no século XVI;

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outras vezes,em razão da perpetuação dos bens de família, passou-se a respeitar mais os seus direitos, despendendo-se assim certos afetos em relação à infância e juventude.

A realidade da juventude no século XVI restou marcada pela desvalorização e desapego por parte da sociedade e, principalmente, por parte dos pais, que, em face da realidade vivida, não tinham afetos pelas suas crias, diante da fragilidade que representava a tenra idade. Já no século XVII, durante o período colonial, o jovem passou a ter maior importância pela percepção dos adultos no que se refere à perpetuação, ou seja, a juventude passou a ser mais controlada e ter mais responsabilidades impostas pelos mais velhos em razão da continuidade dos ofícios dos adultos. (FERNANDES, 2013, p. 15)

Ocorre que, em pleno século XXI, está latente ainda a construção dos direitos da juventude. Direitos estes que pretendem corrigir um equívoco histórico nos direitos fundamentais em relação aos jovens na República Federativa do Brasil, pois estes não foram até então contemplados com legislações que obrigassem os Poderes Legislativo e Executivo a incluírem, em suas agendas políticas, tais direitos.

No ano de 2013, instaurou-se um momento favorável para a discussão dos direitos da juventude, tendo em vista que há mais de vinte anos movimentos sociais da juventude ocupam espaços públicos requerendo a sua emancipação, ou seja, os jovens, desde a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tentam demonstrar que suas demandas, seus anseios, seus desideratos não são os mesmos que os dos adolescentes. Assim, a confusão conceitual entre adolescente e jovem está instaurada no contexto histórico e perpetuada pela promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Por isso, desde a Constituição Federal de 1988, a compreensão jurídica de juventude restou limitada à adoles-

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cência e, portanto, as pessoas com idade até 18 anos de idade. É interessante notar que o uso do termo juventude, mesmo no art. 24, XV, da Constituição Federal é até no Estatuto da Criança e do Adolescente, nos arts. 4º e 59, estão fazendo referência indireta ao termo adolescente. De igual modo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, quando trata do tema justiça nos artigos 140, 141, 145 e, também nos artigos seguintes, denomina de Justiça da Infância e da Juventude e, portanto, mais uma vez, correlaciona os termos adolescência e juventude como idênticos. (CUSTÓDIO, 2008, p. 204)

Com a instituição do Estatuto da Juventude (Lei 12.852, de 05 de agosto de 2013), cabe a análise se há conflito entre os direitos defendidos nesta lei com os já estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), bem como se há uma sobreposição de direitos, ou seja, se não há a necessidade de criação de direitos de juventude, uma vez que tais direitos já estariam defendidos no Estatuto da Criança e do Adolescente.

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AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE PROTEÇÃO AO JOVEM NA REALIDADE PÓS-CONSTITUINTE

Os jovens restaram esquecidos pelo legislador constituinte de 1988, uma vez que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, quando da sua promulgação, estabeleceu no artigo 227: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL. CF/88. Grifo nosso.)

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Assim os que ficaram assegurados nos direitos e garantias fundamentais, segundo o que estabelece a Constituição da República Federativa do Brasil, foram as crianças e os adolescentes e não os jovens.

A Constituição da República Federativa do Brasil perpetuou uma confusão conceitual que já pairava no ordenamento jurídico brasileiro nas décadas anteriores, apesar de haver sempre na história do País um protagonismo juvenil. Os jovens sempre tiveram uma atuação política ativa, o que, muitas vezes, em um contexto social e político, restou manipulado para denegrir o comportamento dos jovens, classificando-os como rebeldes, inconsequentes e todos os outros estigmas que serviram para tornar pejorativa a motivação juvenil contra um sistema estabelecido. Com a promulgação da Emenda Constitucional n. 65, de 13 de julho de 2010, inicia-se uma nova fase dos direitos de juventude na República Federativa do Brasil, pois o termo “jovem” restou incluído ao artigo 227.

Necessária é a explicação do artigo 227 no contexto da Constituição da República Federativa do Brasil, uma vez que tal artigo disciplina a teoria da proteção integral, ou seja, por meio da inclusão do termo “jovem”, a juventude encontra-se amparada com absoluta prioridade nos seus direitos fundamentais, bem como estabelece o referido artigo que tal direito é dever da família, da sociedade e do Estado:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) (BRASIL, CF/88)

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Neste contexto, instaurou-se no País uma situação que é de extrema importância aos direitos de juventude, uma vez que os jovens passam a ser vistos de forma diferenciada pela Constituição da República Federativa do Brasil, que declara, pela redação do artigo 227, que a juventude é digna de proteção integral, bem como que a “lei estabelecerá: I – o estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens”, pois, se não fosse assim, não teria motivo de existir a Emenda Constitucional 65, de 13 de julho de 2010.

Em uma primeira análise, resta claro o animus do legislador com a Emenda Constitucional 65/10, que é diferenciar a juventude da adolescência. Porém, a mesma emenda constitucional determinou que fosse criado o Estatuto da Juventude, que ocorreu com a edição da Lei 12.853, de 5 de agosto de 2013, instrumento que disciplina o que é jovem, bem como determina quais são os direitos a serem amparados e as formas que as políticas públicas devem ser alcançadas aos jovens. O Estatuto da Juventude recentemente aprovado não gerou muita repercussão na sociedade brasileira, pois muito pouco se discute das causas da juventude e muito trabalho há para, com este novo marco legislativo, sedimentar os direitos de juventude na República Federativa do Brasil. Mas, deste contexto, podem ser depreendidos alguns aspectos, oriundos do Projeto de Lei Complementar 98, de 20 de outubro de 2011, convertido no Estatuto da Juventude (Lei 12.853/13), como distinguir o “jovem” para o ordenamento jurídico brasileiro, diferente do adolescente e do adulto. O artigo 1º do Estatuto da Juventude (Lei 12.853/13) estabelece:

Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude (Sinajuve).

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§ 1º Para os efeitos desta Lei, são consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade. (BRASIL, 2013)

Assim, o “jovem”, para o ordenamento jurídico brasileiro, é, conforme o que se depreende do Estatuto da Juventude, pessoa entre 15 e 29 anos de idade. Neste sentido, cria-se um grande debate, qual seja: o Estatuto da Juventude não está criando direitos para uma parte da população que já se encontra amparada, os adolescentes? E, não está regredindo na questão, no momento que torna os adultos de 18 a 29 anos, jovens? A questão resolve-se na análise dos Estatutos, tendo em vista que ambos foram criados em momentos históricos e objetivos totalmente distintos.

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DOIS ESTATUTOS: CONFLITO OU DUPLA PROTEÇÃO?

Da análise da competência dos Estatutos: da Criança e do Adolescente e da Juventude, inicia-se pelo § 2º do artigo 1º do Estatuto da Juventude (Lei 12.853/13), que estabelece:

§ 2º Aos adolescentes com idade entre 15 (quinze) e 18 (dezoito) anos aplica-se a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e, excepcionalmente, este Estatuto, quando não conflitar com as normas de proteção integral do adolescente. (BRASIL, 2013)

Logo de início, o Estatuto da Juventude demonstra que não há qualquer tipo de sobreposição em relação às disposições dos Estatutos, bem como que as normas disciplinadas no Estatuto da Criança e do Adolescente permanecem em vigor para os jovens de 15 a 18 anos. O disposto nesse parágrafo é de fundamental importância, uma vez que deixa clara a validade de ambos os sistemas de pro-

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teção. Outro ponto a ser ressaltado é que os espaços ocupados pelos Estatutos são totalmente distintos, ou seja, é cada um no seu quadrado.

Para se compreender tal questão, faz-se necessário entender a evolução da sociedade brasileira, para a qual não basta apenas garantir direitos aos adolescentes e jovens até os 18 anos, pois, ao adentrarem o mundo adulto, ficam em um limbo legislativo, ou seja, a partir dos 18 anos não há outras legislações que garantam políticas públicas para aqueles que foram iniciados no mundo adulto. Neste sentido, também é possível concluir que se o recém-adulto não tem qualificação para se inserir no mercado de trabalho, estará fadado ao esquecimento social.

A sociedade brasileira atual está permeada de jovens adultos que se enquadram nessas características. Muitos são oriundos das camadas sociais menos favorecidas, que tiveram acesso restrito à educação, e muitos também foram prejudicados vivenciando situação de trabalho infantil, o que só fez alimentar o ciclo da pobreza. Essa imagem do jovem, entretanto, não pode ser mais aceita como sendo um retrato fiel e verídico ou correto dos jovens na sociedade contemporânea. A chamada sociedade do conhecimento está exigindo, cada vez mais, recursos humanos com alta especialização e capacidade de adaptação às novas tecnologias. Tais exigências aplicam-se pontualmente aos jovens que assumem responsabilidades na vida mais cedo do que em épocas anteriores. (BAQUERO, 2004, p. 124-25)

Neste sentido, traça-se a importância dos Estatutos: o da criança e do adolescente, valorizando a infância e o início da juventude, para que não sejam objetos de exploração, mas sim de proteção integral por parte do ordenamento jurídico brasileiro; o outro, da Juventude, estabelecendo princípios a serem seguidos para o cuidado com os jovens e também assegurando a obrigato-

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riedade de implantação de políticas públicas que garantam o desenvolvimento da juventude na República Federativa do Brasil.

O aprofundamento no estudo do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) demonstra que o seu desiderato foi romper com o modo que a legislação e a sociedade brasileira como um todo estigmatizavam a criança e o adolescente: Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurandose-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. (BRASIL, 1990)

No contexto social da época em que a República Federativa do Brasil estava vivendo, o Estatuto da Criança e do Adolescente se fazia necessário para romper com a ideia enraizada de que a criança e o adolescente só mereceriam cuidados do Estado quando estivessem em situação irregular. Essa ideia vigorou durante anos na história do Brasil, e atualmente ainda se encontram resquícios dessa doutrina, na sociedade brasileira. Denota-se claramente a postura do legislador ao editar o Estatuto da Criança e do Adolescente, pois chega a ponto de normatizar que a criança e o adolescente “gozam de todos os direitos inerentes à pessoa humana”, ou seja, de forma inequívoca, o Estatuto está afirmando para a sociedade do ano de 1990, recémsaída de uma ditadura militar, que as crianças e os adolescentes tinham que ser vistos como seres humanos!

E, assim, neste contexto social, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) adentrou a sociedade brasileira, disciplinando os direitos das pessoas até os 18 anos de idade, com vistas a enraizar naquela sociedade princípios como: prioridade absoluta, proteção integral, da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, da municipalidade.

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Cabe o esclarecimento que não se está afirmando que o Estatuto da Criança e do Adolescente não se amoldou ao tempo ou que foi uma lei para somente um contexto social, não. O Estatuto da Criança e do Adolescente foi e é uma lei necessária para a criança e para o adolescente, que ao longo dos anos se aperfeiçoa para atender às demandas voltadas a essa faixa etária. Nos últimos anos, recebeu atualizações para fortalecer princípios como: convivência familiar, responsabilidade parental, ouvida e participação progressiva e do melhor interesse.

Posto isso, resta claro que a juventude não está representada no Estatuto da Criança e do Adolescente, bem como que o Estatuto da Criança e do Adolescente não tem o intuito de normatizar as demandas e os anseios atuais da juventude. E para que os anseios, demandas e demais desideratos dos jovens contassem no Estatuto da Criança e do Adolescente, seria necessário praticamente mudar a lei. O que se tornaria demais temeroso, tendo em vista que descaracterizaria os direitos já conquistados e o contexto histórico disposto na Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.

Assim, a aprovação do Estatuto da Juventude (Lei 12.853, de 2013), é uma verdadeira emancipação dos jovens no Brasil, em razão de que deixaram de ser confundidos, principalmente no âmbito das políticas públicas, com os adolescentes. Esta nova forma de um possível Estado democrático deve assentar em dois princípios. O primeiro é a garantia de que as diferentes soluções institucionais multiculturais desfrutaram de iguais condições para se desenvolverem segundo a sua lógica própria. Ou seja, garantia de igualdade de oportunidades às diferentes propostas de institucionalidade democrática. Por outro lado, deve-se não só garantir a igualdade de oportunidades aos diferentes projetos de institucionalidade democrática, mas também – e é este o segundo princípio de experimentação política – garantir padrões mínimos de inclusão que tornem possível a cidadania ativa necessária a monitorar, acompanhar

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e avaliar os projetos alternativos. Estes padrões mínimos de inclusão são indispensáveis para transformar a instabilidade institucional em campo de deliberação democrática. (SANTOS, 2011, p. 79)

O Estatuto da Juventude traça de forma inicial as demandas da juventude brasileira. Assim, por meio de seus artigos, podemse entender quais são os direitos que são garantidos à juventude. Ressalta-se que o objetivo primário do Estatuto da Juventude é fomentar, provocar e obrigar a formulação de políticas públicas aos jovens. No artigo 2º, o Estatuto da juventude disciplina os princípios voltados aos jovens brasileiros: Art. 2º O disposto nesta Lei e as políticas públicas de juventude são regidos pelos seguintes princípios: I – promoção da autonomia e emancipação dos jovens;

II – valorização e promoção da participação social e política, de forma direta e por meio de suas representações; III – promoção da criatividade e da participação no desenvolvimento do País;

IV – reconhecimento do jovem como sujeito de direitos universais, geracionais e singulares; V – promoção do bem-estar, da experimentação e do desenvolvimento integral do jovem; VI – respeito à identidade e à diversidade individual e coletiva da juventude; VII – promoção da vida segura, da cultura da paz, da solidariedade e da não discriminação; e VIII – valorização do diálogo e convívio do jovem com as demais gerações.

Parágrafo único. A emancipação dos jovens a que se refere o inciso I do caput refere-se à trajetória de inclusão, liberdade e participação do jovem na vida em sociedade, e não ao instituto da emancipação disciplinado pela Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). (BRASIL, 2013)

Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 209 e Políticas Públicas

Os princípios demonstram que as demandas dos jovens são diversas daquelas estabelecidas no Estatuto da Criança e do adolescente. Este fato irá, por consequência, refletir na ampliação dos direitos envolvidos, conforme estabelece o Estatuto: direito à educação; direito à profissionalização, ao trabalho e à renda; direito à diversidade e à igualdade; direito à saúde; direito à cultura; direito à comunicação e à liberdade de expressão; direito ao desporto e ao lazer; direito ao território e à mobilidade; direito à sustentabilidade e ao meio ambiente; direito à segurança pública e ao acesso à justiça (BRASIL, 2013).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da análise do contexto histórico brasileiro na criação de cada Estatuto, é possível depreender que não dialogam da mesma forma na questão de formulação de políticas públicas.

Assim, quando o objetivo é a formulação de políticas públicas para que um segmento da sociedade possa, juntamente com os outros, gozar plenamente dos direitos da Constituição da República Federativa do Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente não cumpre o papel legislativo para o atual contexto dos jovens brasileiros. Desta forma, acertada é a formulação do Estatuto da Juventude, pois corrige uma confusão conceitual que por anos assola a história do Brasil, qual seja: adolescência e juventude.

O Estatuto da Juventude promove e promoverá cada vez mais a realização de políticas públicas voltadas para o jovem e para a realidade que o jovem está vivenciando, em razão das novas tecnologias e novos direitos.

A conclusão que se impõe é que não há conflito de leis e nem dupla proteção legislativa, uma vez que, conforme demonstrado no presente trabalho, são anseios, demandas e desideratos distintos, o que, por consequência, produzirá políticas públicas distintas, porém extremamente necessárias.

210 Aline Casagrande & Rodrigo Flores Fernandes

REFERÊNCIAS BAQUERO, Marcello. Um caminho “alternativo” no empoderamento dos jovens: capital social e cultura política no Brasil. In: BAQUERO, Marcello (Org.). Democracia, Juventude e Capital Social no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 2004. BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2013.

BRASIL. Constituição da República de 1988. Art. 227. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2013. BRASIL. Lei 12.853, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude - SINAJUVE. Disponível em: . Acesso em: 12 jul. 2014. BRASIL. Projeto de Lei 98, de 2011. Institui o Estatuto da Juventude, dispondo sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude, o estabelecimento do Sistema Nacional de Juventude e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2013.

CUSTÓDIO, André Viana. Direitos de juventude no Brasil contemporâneo: perspectivas para afirmação histórica de novos direitos fundamentais e políticas públicas. In: WOLKMER, Antonio Carlos; VIEIRA, Reginaldo de Souza (Orgs.). Estado, Política e Direito: relações de poder e políticas. Criciúma: Unesc, 2008.

FERNANDES, Rodrigo Flores. Direitos de Juventude: Análise das políticas públicas no Brasil contemporâneo. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-graduação em Direito Mestrado e Doutorado, Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2013. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2011.

S.O.S. Humanidade Alma de artista Coração no coração do povo. Solidário com sua alegria, solidário com sua dor. Sentir cada lágrima Escutar cada grito Em forma de gemido ou de canção. Nas veias teu próprio sangue Sob teus pés o mesmo chão. (Josiane Rose Petry Veronese)

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