DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA EM NOME DE QUEM

May 27, 2017 | Autor: Edna Raquel Hogemann | Categoria: Human Rights, Personality, Human Rights and Civil Liberties
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DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA EM NOME DE QUEM?
Edna Raquel Hogemann[1]

Desde o nascimento, toda criança terá direito a um nome e a uma
nacionalidade[2].

RESUMO
O presente ensaio tem por objeto uma análise reflexiva acerca da
importância do exercício do direito ao nome, consubstanciado na inscrição
do registro de nascimento junto ao cartório do registro civil. Introduz a
problemática do sub-registro, forma como se denomina a ausência do registro
civil, em nosso país, como uma realidade objetiva que coloca anualmente
milhares de crianças à margem da cidadania, sonegando-lhes direitos
fundamentais e revela a inexistência de números oficiais a respeito dos
adultos não registrados. Culmina por apontar a distinção entre vigência e
eficácia social da norma jurídica, revelando a necessidade de superar-se os
obstáculos que impedem a eficácia plena da lei 6015, Lei dos Registros
Públicos, como tarefa primordial para a concretização do princípio da
igualdade e o resgate da dignidade humana no Estado Democrático de Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos – Cidadania – Registro Civil

INTRODUÇÃO

O ser humano é único em sua essência e composição, indivíduo dotado
de direitos naturais, essenciais e absolutos, originários de sua própria
qualidade de ser humano, que se configuram como atributos indeclináveis de
sua personalidade. Compete ao Estado reconhecer, propiciar e salvaguardar a
cada um, aquilo que supre seus anseios e necessidades, respeitando e
assegurando sua individuação.
Essa individuação está instrinsecamente relacionada ao nome
civil do indivíduo. Sendo certo que nome civil é como se denomina, no
Direito, ao nome atribuído à pessoa física, considerado um dos Direitos
fundamentais do homem, desde seu nascimento, e que associa-se ao indivíduo
durante toda a sua existência e, mesmo após sua morte, continua a
identificá-lo. É composto de prenome, sobrenome e, em casos excepcionais,
do apelido ou alcunha.

1. DIREITOS HUMANOS, DIREITOS PARA QUEM?


A fórmula "direitos humanos" é uma maneira abreviada de mencionar
os direitos considerados como fundamentais da pessoa humana. Tais direitos
são fundamentais porque sem eles a pessoa humana apesar de ter uma
existência biológica não é capaz de desenvolver plenamente suas capacidades
de participar plenamente da vida social e comunitária.
A esse respeito, Bonavides faz menção a duas acepções propostas por
Hesse: uma mais ampla e outra mais restrita e normativa para a categoria,
que pode ser interpretada como sendo baseadas, respectivamente, num
critério material e num formal de caracterização. A mais ampla, ou seja,
material, seria a dos direitos que almejam "criar e manter os pressupostos
elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana". Já a mais
estrita e formal descreveria como "aqueles direitos que o direito vigente
qualifica como tais" (1998: 514).
Nesse último sentido, cabe registrar o contributo de Mello, ao
aduzir serem os "direitos do homem [...] aqueles que estão consagrados nos
textos internacionais e legais, não impedindo que novos direitos sejam
consagrados no futuro. [...] os já existentes não podem ser retirados, vez
que são necessários para que o homem realize plenamente a sua personalidade
no momento histórico atual" (2000: 772).
No âmbito material de caracterização, tanto Silva (1998: 182)
quanto Mello (2000: 771) fazem menção a apropriada e suficiente definição
de direitos humanos levantada por Pérez Luño (1979) "como um conjunto de
faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretiza as
exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais
devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos nos
âmbitos nacional e internacional".
Assim o é que, todo ser humano, independente de gênero, cor,
religião, opção sexual, política, ou qualquer outra designação
identificadora de sua origem ou relação cultural ou econômica, deve ter
asseguradas, desde o nascimento, as mínimas condições necessárias para se
tornar não somente útil à humanidade, como também deve ter a possibilidade
de receber os benefícios que a vida em sociedade pode proporcionar de
maneira equânime a todos, de sorte a que possa desenvolver plenamente todas
as suas potencialidades. Esse conjunto de condições e de possibilidades
associa as características naturais dos seres humanos, a capacidade natural
de cada pessoa pode valer-se como resultado da organização social. É a esse
conjunto que se designa direitos humanos.
Bielefeldt (2000, p.41) destaca a estreita relação dos direitos
humanos com a era moderna e o progresso científico e tecnológico que, se
por um lado proporcionou várias descobertas que provocaram uma enormidade
de formas distintas do viver humano, trazendo mais conforto e liberdade,
por outro também estabeleceu, através de uma dinâmica ímpar, uma série de
temores e mazelas, que deságuam na necessidade do reconhecimento dos
direitos humanos. O mesmo autor, referindo-se ao pensamento höffeniano, a
respeito dos direitos humanos na modernidade, revela que "eles não se
constituem apenas em conquistas da era moderna, ou em progresso modernista,
mas também em "contraponto ao moderno" (Höffe 1990):
Formulando mais precisamente: nos próprios direitos humanos se
reflete a embiguidade do moderno, pois surgiram da luta contra
uma injustiça na sociedade moderna e, ao mesmo tempo, constituem-
se em ethos político e jurídico de liberdade, que em sua
universalidade e seu espírito emancipacionsita são
característicos do moderno.


Para que se possa mais objetivamente compreender o que significam
esses direitos humanos, basta dizer que correspondem a necessidades
essenciais da pessoa humana. Trata-se daquelas demandas naturais que se
apresentam da mesma forma para todos os seres humanos e que devem ser
atendidas para que a pessoa possa viver com a dignidade que devem ser
asseguradas a todas as pessoas. Assim, a título ilustrativo, a vida
configura-se como um direito humano fundamental, porque sem ela a pessoa
não existe. Então a salvaguarda da vida é uma necessidade objetiva de todas
as pessoas humanas. Mas, observando como são e como vivem os seres humanos,
percebe-se a existência de outras necessidades que são também fundamentais,
como a alimentação, a saúde, a moradia, a educação, e tantas outras coisas.

Muito embora existam tantas outras necessidades fundamentais,
carece apontar que esta pessoa humana para que esteja habilitada a
reivindicar e a ter a garantia de tais necessidades contempladas, precisa
ter uma existência formal que a distinga dos demais indivíduos no seio
social. Assim, cada ser humano, cada pessoa carece de ter reconhecida sua
condição de ser único e irrepetível, decorrência de uma "conscientização
ética do posicionamento moral de cada indivíduo que almeja ser reconhecido
e protegido em sua integridade pessoal, independente de seu papel na
sociedade"(Berger e outros 1975, p.75 e SS).
Esta individualização é um aspecto essencial da era moderna. Como
decorrência natural, tem-se então que todo ser humano precisa ser
reconhecido enquanto tal e, portanto, tem o direito a ter um nome, enquanto
designação que promova o seu reconhecimento social e o permita, na medida
em que inserto na ambiência político-cultural da sociedade, torná-lo apto a
ser titular de direitos e deveres nesta mesma ordem social.
Assim, o nome revela-se como o componente individual em que se
encerra a essência íntima de um ser humano. E se por um lado, o nome é o
que antecipa, precede e aparece anunciando a pessoa humana, é a primeira
impressão, é o que identifica, individualiza e torna conhecido aquele ser
humano, por outro, o nome civil revela-se como o elemento basilar a
habilitar a pessoa humana como titular de direitos e também de deveres na
ordem social e jurídica.

2. O DIREITO AO NOME

O nome é a representação da pessoa humana. À vida segue-se o
nome, identificador da pessoa, bem imediato que se lhe entrega. É o sinal
caracterizador e indispensável a toda pessoa, determinante de sua
personalidade pessoal e civil. É parte integrante da personalidade por ser
o sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se reconhece a
pessoa no seio familiar e da sociedade. E, por isto, não é possível que uma
pessoa exista sem esta designação pessoal. Deste modo, revela-se um dos
requisitos básicos de nossa existência social. Assim, não por acaso o
terceiro entre os direitos da criança, o nome civil, recebeu da Assembléia
das Nações Unidas importância similar à nacionalidade.
Constitui-se o direito ao nome como direito público subjetivo, que
subsiste justamente para restringir a ingerência do Estado aos direitos da
personalidade, como forma objetiva à realização do fundamento da liberdade,
sem a qual inexiste dignidade. O que se protege não é propriamente o nome,
mas a pessoa e sua dignidade, que seriam, através do nome, atingidas.
O nome é a primeira expressão da personalidade. Apresenta-se então
como um direito absoluto (oponível erga omnes), impenhorável,
imprescritível, inalienável, indisponível, inexpropriável, personalíssimo,
público, e relativamente transmissível (CC/2002, arts. 17 e 18), que
reflete e traduz a qualidade de ser pessoa[3].
No dizer de Caio Mário (2005, p.245) " O Código Civil de 16, sempre
pendeu para definir o nome como um direito significativo do indivíduo". Com
relação ao Código Civil de 2002, o nome se faz referência no art. 16. "Toda
pessoa tem direito ao nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome",
tornando assim mais fácil a acessibilidade e identificação do nome dentre
os direitos da personalidade. Ainda fazendo referência ao art. 16 do atual
Código Civil, o legislador define dois termos componentes do nome, sendo o
prenome e o sobrenome, patronímico ou apelido, sendo este relacionado a
estirpe ou tronco familiar e aquele sendo a identificação individual da
pessoa natural.
"Reconhecendo o direito ao nome, o Novo Código Civil,
implicitamente assegura a sua transmissibilidade de geração a geração"
(PEREIRA,2005.p.245), isto é, ao nascer, os genitores ou responsáveis levam
ao cartório de Registro Civil o nome do recém-nascido, este nome pertencerá
ao portador por toda a vida, tendo após a morte todos os direitos
resguardados."Ninguém, aliás, põe em dúvida que o direito condena a
usurpação de nome alheio e concede reparação civil àquele que sofrer daí um
prejuízo". (PEREIRA,2005, p.245).
A proteção do nome é estendida ao pseudônimo, conforme dispõe o
artigo 19 ( "O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção
que se dá ao nome."), reconhecendo-se assim uma posição doutrinária já
estabilizada. O dispositivo deixa claro que, ao se tutelar o nome, vai-se
além da simples afirmação de um direito ao nome enquanto tal e tutela-se um
verdadeiro aspecto do direito à identidade pessoal[4].
Consagrado enquanto um direito personalíssimo e fundamental, que
é dever do Estado Democrático de Direito tutelar, todo indivíduo tem
direito ao nome civil desde o seu nascimento, conforme previsto no Código
Civil de 2002 e na Lei de Registros Públicos.
O nome tem basicamente duas funções: individualizadora e
identificadora. A função individualizadora passar a existir da necessidade
de distinguir os indivíduos que compõem a sociedade; a segunda função
procede de um critério investigativo, na medida em que as relações sociais
se desenvolvem e seus titulares carecem ser identificados para os fins de
direitos e obrigações. A partir do reconhecimento destes dois aspectos,
consequentemente advém dois processos concomitantes que dizem respeito ao
nome civil, e que se relacionam com o direito público e o privado; um se
apresenta como instrumento meramente individualizador, enquanto o outro é
elemento assecuratório das relações jurídicas, na medida em que , todas as
pessoas ,singulares ou coletivas, integrantes de uma sociedade devem ser
registradas e passíveis de serem identificadas para os fins objetivados
pelo Estado, e neste contexto estão os de caráter civil, administrativo ou
criminal.
O nome, com todos os seus elementos, recebe o alento legal,
indeclinável, por ser direito inerente à pessoa. Os arts. 16 a 19, do atual
Diploma Civil pátrio confirmam a proteção do nome da pessoa natural, sinal
que representa a mesma no meio social, bem como do pseudônimo, nome atrás
do qual se abriga o autor de uma obra cultural ou artística. Isso, em
sintonia com as previsões anteriores da Lei de Registros Públicos (Lei nº
6.015/73) e da Lei de Direito Autoral (Lei nº 9.610/98).


3. O NOME E A DIGNIDADE DO SER HUMANO


A República tem como fundamento basilar a dignidade da pessoa
humana, na leitura do art. 1º da Constituição Federal. Esta dignidade
fundamenta-se na consciência de bem viver, na conformidade das imposições
sociais. Não se discute da relevância do esforço pessoal para a construção
do sentido da vida humana, mas não será o único elemento cimentador da
dignidade. Muito pretende o Estado no alimentar e prover, com meios
eficientes, o cidadão em suas empreitadas. O meio familiar tem a primeira
preponderância neste caminhar. O meio social, em que necessariamente se
desenvolvem a personalidade e a vida, igualmente projeta-se essencial nas
conquistas individuais. Vale ressaltar que a individualidade se projeta no
meio de vida através do nome, ao qual se agregam outros elementos provindos
da modernidade. Poderá a identificação recorrer a cifras e códigos, sempre
desaguando no nome, conjunto de partes que vão personalizar o cidadão. é
preciso harmonizar constrangimentos com a imposição da norma vinda na Lei
N. 9.708, de 18 de novembro de 1998, cujo art. 1º alterou o art. 58 da Lei
nº 6.015, lendo-se: O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua
substituição por apelidos públicos notórios. § único. Não se admite a
adoção de apelidos proibidos em Lei.
Oportunamente Coulanges (1919:187) aponta que na Idade Média, até
ao século XII, o nome verdadeiro era o de batismo, ou nome individual, e os
nomes patronímicos só apareceram bem mais tarde, como nomes de terras, ou
como sobrenome. Entre os antigos foi precisamente o contrário. Ora esta
diferença relaciona-se, se observar-se bem, com a diferença das duas
religiões. Para a antiga religião doméstica, a família era o verdadeiro
corpo, o verdadeiro ser vivo do qual o individuo era apenas um membro
inseparável: assim o nome patronímico foi o primeiro em data e o primeiro
em importância. A nova religião, pelo contrário, reconhecia ao individuo
uma vida própria, uma liberdade completa, uma independência inteiramente
pessoal e não lhe repugnava de modo nenhum isolá-lo da família: por isso, o
nome de batismo foi o primeiro e durante muito tempo o único. Definido o
prenome como o que antecede o nome de família, ensina Ceneviva (1999:135),
normalmente não é ele substituído, mas aumentado com o apelido notório, em
qualquer tempo, a depender apenas da iniciativa do interessado. Os exemplos
de conhecimento público mostram que usualmente o prenome se mantém, seguido
do apelido. Sendo duplo o prenome, com a agregação torna-se triplo ou
quádruplo, sem limitação. Criticou o mesmo publicista a redação legal
(ibidem), que preferiu o qualificativo definitivo ao imutável, lido no
diploma anterior; afirmou mais que de definitivo nada tem o prenome, sendo
a inalterabilidade dosada pelos pretórios. Aquele novo dispositivo não
revogou o art. 57 da Lei: Qualquer alteração posterior do nome, somente por
exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será
permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-
se o mandado e publicando-se a alteração pela imprensa. Nem o art. 56: O
interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá,
pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não
prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será
publicada pela imprensa. Neste a pretensão será deduzida em juízo no curso
dos 21 anos de idade, não após; na regra do art. 57 admitir-se-á mudança a
qualquer tempo, motivadamente, por iniciativa do interessado.
Vê-se, pois, que a alteração do prenome, englobado no nome,
viabiliza-se perfeitamente para evitar situações constrangedoras. Este
constrangimento provém quase inteiramente da consciência do ser humano; ele
é quem sofre com o apelativo com que o chamam, muitas vezes apresentando-se
estranho tal sentir aos olhos de terceiros.


3. O REGISTRO CIVIL COMO GARANTIDOR DE DIREITOS DA PESSOA


O direito apresenta-se como um instrumento fundamental através do
qual as pessoas podem interagir no seio social, a partir dos diversos
papéis que possa representar enquanto tal. É através do direito que as
pessoas podem relacionar-se e, sempre que necessário, buscar a proteção
jurídica.
Dispõe o Código Civil que a personalidade civil começa com a vida,
mas é preciso fazer prova deste existir que se inicia. Sem o devido
registro civil do recém nascido, há a sonegação do primeiro direito da
cidadania, o de ter um nome identificador do indivíduo que ao mesmo tempo
habilita-o como titular de direitos e obrigações na ordem jurídica que o
direito estabelece. Só por meio do registro de nascimento é possível à
população, por exemplo, adentrar o sistema da rede pública do Governo
Federal, ter seus direitos básicos garantidos[5].
O serviço de registro público é o único serviço estatal
inteiramente comprometido com a consecução da garantia da publicidade,
autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos (CF, art. 236; LRP,
art. 1º; Lei nº 8.935, de 1994, art. 1º). O registro público nasceu para
servir à pessoa, espelhando os fatos jurídicos relativos à vida em sua
dinâmica. O registro público não é mero repositório de fatos engessados nas
linhas de leis escritas; é, e sempre será, o retrato fiel da vida, este
grande laboratório divino de mudanças sucessivas e infinitas, a serviço do
qual o direito humano justifica a sua existência, como insubstituível
elemento edificante e pacificador.
O registro civil de nascimento inegavelmente desempenha um papel
estratégico como fator de expressão relacionado à cidadania. Os registros
públicos de nascimentos, realizados nas serventias de pessoas naturais, são
os documentos que conferem aos brasileiros a formalização de sua existência
para o Estado e a sociedade em geral[6]. Evidentemente, a existência do
indivíduo independe da sua formalização, porém, o seu primeiro
reconhecimento legal e social ocorre através do registro de nascimento.
A universalização do registro civil no Brasil foi imposta pelo
Decreto nº 9.886, de 7 de março de 1888, que instituiu a obrigatoriedade do
registro de nascimento, casamento e óbito em ofícios do Estado, criados e
delegados a privados.
Nos termos da Lei nº 6015/73 para todo nascimento deverá ser dado o
registro no lugar de ocorrência do parto e que o prazo legal para
providenciá-lo é de 15 dias para o pai, prorrogado por mais 45 dias para a
mãe, na falta ou impedimento do pai. Para os nascimentos ocorridos em
locais distantes mais de 30 quilômetros da sede do cartório, o prazo para
fazer a declaração é de até três meses. Com a Lei nº 9.053, de 25 de maio
de 1995, acrescenta-se, na redação anterior, que o registro pode ser dado
também no lugar de residência dos pais.
A partir de 1990, passou a ser necessária a declaração de
nascimento para proceder ao registro em cartório; documento denominado
Declaração de Nascido Vivo, impresso fornecido pelo Ministério da Saúde e
preenchido no local do hospital ou casa de saúde onde ocorreu o nascimento.
A ausência desse documento ou em caso de nascimento em local não servido
por casa de saúde, a declaração de nascido vivo poderá ser suprida por
documento que ateste o fato, desde que firmado por duas testemunhas.
Importante esclarecer que a Constituição Federal, de 1988, assegura
o registro civil gratuito de nascimento, direito, aliás, reforçado com a
promulgação da Lei nº 9.534, de 10 de dezembro de 1997, estendendo a
gratuidade a todas as pessoas, indistintamente.
No Brasil, o registro civil é também um direito assegurado pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), conforme Art.10, inciso IV, que
estabelece que hospitais e estabelecimentos de atenção à saúde devem
"fornecer declaração de nascimento onde constem necessariamente as
intercorrências do parto e do desenvolvimento do neonato".
No entanto, segundo dados do IBGE, nosso país ainda têm um alto
índice de pessoas sem registro civil e anualmente milhares de crianças
deixam de ser registrados em razão de diversos fatores, dentre os quais
aqueles relacionados ao aspecto monetário, à filiação ilegítima, à falta de
tempo, à ignorância sobre a importância do registro civil, ao
desconhecimento das leis, à negligência, à distância do domicílio ao
cartório e ao grau de instrução dos pais. A falta de certidão de nascimento
exclui crianças e adolescentes de direitos garantidos, que vão desde o
recebimento de doses de vacinas até a inclusão em benefícios do governo,
importando em exclusão absoluta à cidadania. O Registro Civil de Nascimento
revela-se então como o primeiro passo para o pleno exercício da cidadania.
O registro de nascimento é, por via de conseqüência, um direito que
concede direitos.


4. O SUB-REGISTRO – UMA MAZELA SOCIAL


O sub-registro de nascimento é definido pelo IBGE como o conjunto
de nascimentos não registrados no próprio ano da ocorrência ou até o fim do
primeiro trimestre do ano subseqüente. Muito embora, como já anteriormente
dito, o nome e a nacionalidade sejam direitos fundamentais do ser humano,
os dados oficiais revelam que no primeiro ano de vida dos brasileiros,
12,7% (409 mil pessoas) não são registrados, conforme relatório do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2006.
A situação apresenta-se ainda mais dramática nos Estados das
regiões Norte e Nordeste. Em Roraima, a taxa chega a 42,8% - a maior do
país. No Piauí, é de 33,7%; e em Alagoas é de 31,6%[7]. Estima-se que, a
cada ano, cerca de 400 mil crianças não são registradas. O estudo indica
que os mais prejudicados são os moradores das zonas rurais em virtude das
distâncias a serem percorridas até os cartórios.
Este foi o caso de dona Esperidiana[i], simpática octogenária, que
acompanhada do bisneto, procurou o serviço de primeiro atendimento do
Escritório de Assistência Jurídica Gratuita – ESAG, do Campus São João de
Meriti, do Curso de Direito, da Universidade Estácio de Sá/RJ, no final de
2008.
Na verdade, dona Esperidiana originalmente buscara atendimento no
ESAG visando uma aposentadoria, pelo fato de haver trabalhado como babá por
mais de cinquenta anos para uma mesma família. No entanto, quando o
estagiário que a atendeu solicitou-lhe seus documentos, ela revelou que não
os possuía. Não tinha carteira profissional, não tinha identidade, não
tinha CPF, nem registro de nascimento. Seus pais não tiveram condições de
registrá-la e ela também nunca teve condições para tal, até porque nem
sabia muito bem o que isso era, nem para que servia. Só sabia cuidar de
crianças. Tanto é assim, que teve quatro filhas, doze netos e três
bisnetos.
Diante disso, o estagiário esclareceu a senhorinha que necessário
se fazia promover um processo judicial para que ela pudesse ter o seu
registro tardio autorizado, como também o de suas filhas, na medida em que
deduziu também elas não deveriam ter registro de nascimento, pois a
inexistência de registro materno inviabilizava o registro civil da prole.
Dona Esperidiana, para espanto não somente do estagiário, mas de
todos os demais presentes que ouviam sua história, revelou que suas filhas
não precisariam comparecer para regularizar nada, pois possuíam certidão de
nascimento. E como era possível? Simples. A vizinha de dona Esperidiana
havia "emprestado" seu nome e, graças a essa demonstração de generosidade,
suas filhas foram registradas.
O caso real acima apresentado revela com clareza solar como a
pobreza e a exclusão social colocam por terra todos os valores consagrados
do Estado Democrático de Direito e transformam em meras caricaturas
instituições basilares como o nome, a família, o direito de sucessão, o
patrimônio e tantas outras garantidoras deste mesmo Estado.
Chega a ser risível, se não fosse trágico, que uma mãe para
garantir que suas filhas sejam integradas a ordem social e jurídica - ordem
esta lastreada por um conjunto de normas que têm por vocação regulamentar e
orientar a vida em sociedade assim como, legitimar o poder político e
jurídico -, contraditoriamente tenha que as violar. Isto porque, para
atribuir a existência civil de suas filhas como pessoas, existência esta
prevista em lei, dona Esperidiana e sua solidária vizinha, precisaram
violar essa mesma lei, com a naturalidade própria dos ignorantes, dos que
ignoram porque nunca a eles foi dado o conhecimento de seus direitos, mas
que precisam encontram saídas a fim de superar a adversidade.
Dona Esperidiana não conseguia perceber qualquer irregularidade no
fato de sua vizinha haver registrado suas filhas. "Afinal o nome é dela e
ela pode dar prá qualquer um", defende. Dona Esperidiana não sabe ler nem
escrever e nem soube explicar o significado da palavra cidadania, mas sente
na pele a falta de seus direitos mais básicos. Ela afirma que o pior mesmo
é viver sem os documentos. É como se não existisse de fato. Por isso,
apelou para a ajuda da amiga e vizinha. Não queria que suas filhas tivessem
a mesma sina que ela tivera durante toda a sua vida, porque "gente sem
documento não é ninguém".
Para Zilda Arns, em matéria intitulada "Legião de invisíveis",
publicada no jornal O Globo, de 29 de dezembro de 2009, a certidão de
nascimento para o pobre é "a porta de entrada para a cidadania, mas ela
tem estado fechada". Dona Esperidiana, encontrou uma janela para suas
filhas.
Irdeane Pereira de Souza, de 15 anos, também faz parte desta legião
de invisíveis, como dona Esperidiana. Irdeane procurou a Pastoral da
Criança, em São Paulo, para promover o registro tardio e também registrar
seu filho Lucas, de quatro meses.
Nascida em Caxias (MA), Irdeane mudou-se para Polvilho em maio,
ainda grávida. Não sabia que precisava de documentos:
- Na viagem, ninguém me pediu nada. Nunca na vida me pediram
documento. Agora, aqui em São Paulo, me disseram que podem até
dizer que roubei o meu filho. Vou parar na polícia, presa.
Cidadania é isso, poder ser presa? (negrito nosso). ( O Globo, o
País, 2008:3).




Não há, no Brasil, estatísticas oficiais sobre os brasileiros
adultos sem registro civil. Inexistem sequer estimativas.
Ciganos, nômades, indígenas, caboclos e quilombolas figuram
facilmente entre aqueles a quem é negado o direito fundamental da cidadania
pela ausência do registro civil, muito embora, entre 2000 e 2007, segundo o
IBGE, tenha havido uma redução progressiva dos sub-registro de nascimento,
para 18,1%.
Buscando a redução destes percentuais para menos de 5%, a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos lançou uma campanha nacional para o
registro civil e a documentação básica no ano de 2008, que terminou em
meados de dezembro. No entanto, a despeito de revelar-se como uma
importante iniciativa governamental, a campanha nacional para o registro
civil esbarra em alguns obstáculos que se revelam entraves importantes para
que sejam alcançadas as metas pretendidas: o primeiro deles é apontado pela
médica Zilda Arns, fundadora da Pastoral da Criança e reconhecida como "a
brasileira com mais ampla experiência na luta pela cidadania dos mais
pobres no país"( O Globo, o País, 2008:3). Trata-se do fato de o Brasil
possuir um sistema privado de cartórios ainda não informatizados. Com
isso, fica muito difícil conseguir os dados de pais e mães provenientes de
outros municípios ou estados e que não tenham em mãos seus registros de
nascimento. Outro obstáculo, não menos relevante, é a exigência da
comprovação de domicílio fixo pelos cartórios. Isto deixa de fora
indígenas, ribeirinhos, ciganos, quilombolas e outros povos.


CONCLUSÃO


Kant nos ensina que "o estado de paz entre os homens não é um
estado natural. Portanto, ele precisa ser buscado" (1968: 348 e ss). A
tarefa da constituição de uma ordem fundada na liberdade e na paz, consiste
na razão de ser da existência social da humanidade. Mas de nada vale a
existência de uma ordem jurídica de liberdade igual se não alcança ao
conjunto dos homens e mulheres de uma sociedade.
O artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos
dispõe que : "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e
direitos". Em similar sentido, a Constituição Federal de 1988, em seu
artigo quinto preconiza que "todos são iguais perante a lei". No entanto, o
que foi possível perceber ao longo do presente ensaio é que em nosso país
alguns são mais iguais que outros, na medida em que centenas de milhares de
brasileiros são colocados à margem da própria existência civil pela
ausência do registro de nascimento[ii].
Aqui o que se encontra na realidade objetiva e dinâmica do dia a
dia da cidade e do campo são casos crassos de ausência de eficácia social
da norma jurídica.
A doutrina do egolismo jurídico de Carlos Cóssio (1964), elimina
do plano a questão acima apontada, apenas distinguindo entre vigência e
validade do direito, no que concerne à sua existência. Entende que, em tal
âmbito de compreensão da norma, noções como positividade, vigência,
eficácia, observação faticidade e efetividade são expressões jurídicas
sinônimas.
Por seu turno, a doutrina do sociologismo jurídico se orienta de
maneira díspar, identificando vigência com eficácia. Vigente é neste
sentido, o direito que obtém, em realidade aplicação eficaz o que se
retirou da conduta dos homens em sociedade e não o que se obtém da fria
letra da norma jurídica, sem ter obtido força real bastante para impor-se
aos homens em sociedade.
Não obstante uma observação mais apurada leva à percepção pela
qual vigência e eficácia são conceitos diferentes. O direito vigente é a
norma ou o conjunto de normas promulgadas e publicadas regularmente para
entrar em vigor em determinada época, é a existência específica de uma
norma. Este é o caso da Lei 6015, de 31 de dezembro de 1973, lei dos
Registros Públicos, quando dispõe que o registro civil das pessoas
naturais, no registro civil de pessoas naturais, é obrigatório, em face da
Lei, destacando-se os de nascimento, referidos nos artigos 50 e segs.,
produzindo várias conseqüências jurídicas. Como conceber então essa legião
invisível à qual anualmente se incorporam 400 mil novos brasileirinhos
fadados à negação de sua cidadania?
A eficácia do direito, por conseguinte, como conceito diverge da
positividade e da vigência; é o poder da norma jurídica de produzir
efeitos, em determinado grau; em maior ou menor grau, concerne à
possibilidade de aplicação da norma e não propriamente à sua efetividade.
Esse significado de eficácia a distingue, ao mesmo tempo, de
vigência e, mesmo, de positividade: aquela respeita à norma existente, em
dada circunstância histórica; esta representa a característica do direito
regente da conduta humana.
De nada valerá para as Esperidianas, as Irdeanas e para os Lucas
espalhados pelos rincões desse Brasil afora a existência de normas que
consagrem em verso e prosa os tão preciosos Direitos Humanos e a Cidadania
enquanto não houver, objetivamente, uma política que dê eficácia ao
conteúdo de toda esta normativa. Revela-se assim urgente e necessário a
superação dos obstáculos consubstanciados pelo burocratismo e a falta de
vontade política que impedem a eficácia plena da lei 6015, Lei dos
Registros Públicos, tarefa sine qua non para a concretização do princípio
da igualdade e o resgate da dignidade humana no Estado Democrático de
Direito.
Mais do que nunca, casos como os apontados no presente ensaio
revelam que, em matéria de Direitos Humanos, seja a que título for, se
percebe a distância ainda existente em nosso país entre a lei, o direito e
a justiça social.




REFERÊNCIAS


ARNAUD, A. e FARIÑAS DULCE, M. J. Introdução a Análise Sociológica dos
Sistemas Jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
BIELEFELDT. Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos, RS: Unisinos, 2000.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional 7 ed. São Paulo:
Malheiros, 1997.
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada, 13ª ed., SP,
Saraiva, 1999.
COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga, 2ª ed., vol. 1º, Lisboa, Livraria
Clássica Editora, 1919.
IBGE. Estatísticas do Registro Civil 2007. Comunicação Social, Brasília, 04
de dezembro de 2008.
O GLOBO. Legião de Invisíveis, Caderno o País, p. 3, 29 de dez 2008.
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público 13
ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. 1. 24ª
edição, Rio de Janeiro: Forense, 2005.
PÉREZ LUÑO, A. E. et al., Los Derechos Humanos, significación, estatuto
jurídico y sistema, Sevilla, Publicaciones de la Universidad de Sevilla,
1979.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo 15 ed. São
Paulo: Malheiros, 1998COSSIO, Carlos. Teoría egológica del derecho y el
concepto juridíco de liberdad. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1964.


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[1] A autora é doutora em Direito, professora da graduação e do programa de
Pós-graduação do Curso de Direito e Coordenadora Geral de Iniciação
Científica e Pesquisa da UNESA e pesquisadora da FAPERJ.
[2] Declaração dos Direitos da Criança, art. 3° - Adotada pela Assembléia
das Nações Unidas de 20 de novembro de 1959 e ratificada pelo Brasil;
através do art. 84, inciso XXI, da Constituição, recepcionados o disposto
nos arts. 1º da Lei nº 91, de 28 de agosto de 1935, e 1º do Decreto nº
50.517, de 2 de maio de 1961.

[3] Não há, no Código Civil brasileiro de 1.916, menção ao direito ao nome.
Considerava-se que o nome civil não constituiria um direito pessoal porque
"não é exclusivo da pessoa e porque os apelidos de família são suficientes
para individualizá-la".

[4] Neste ponto também cabe menção ao Código Civil italiano, que dispõe em
seu artigo 6: "Diritto al nome. — Ogni persona ha diritto al nome che le è
per legge attribuito. Nel nome si comprendono il prenome e il cognome."Como
também observa-se o reflexo do Código Civil italiano, que assim prevê, no
artigo 9. "Tutela del pseudonimo. — Lo pseudonimo, usato da una persona in
modo che abbia acquistato l'importanza del nome, può essere tutelato ai
sensi dell'art. 7.
[5] O registro de nascimento, obrigatório e gratuito, é imprescindível para
que a pessoa possa provar a nacionalidade brasileira, filiação e idade. E,
enquanto não feito, o recém-nascido não pode ser atendido em posto de saúde
para vacinação ou ser matriculado em creche ou escola. Além disso, sem
registro de nascimento não se pode tirar cédula de identidade (RG), título
de eleitor, carteira de trabalho ou certificado de reservista, ou seja,
quem não é registrado não pode tirar nenhum documento.

[6] Em nosso país, a atribuição de conferir aos indivíduos o seu primeiro
registro de identificação, a partir do qual o cidadão passa a ser
reconhecido formalmente pelo Estado e a sociedade em geral, é, na maioria
das Unidades da Federação, delegada ao setor privado, sob a fiscalização
das Corregedorias Estaduais de Justiça. A finalidade do sistema é oferecer
prova segura e certa do estado das pessoas, fixando de modo indelével os
principais fatos da vida humana, sendo, de interesse para a Nação, o
registrado e os terceiros que mantêm relação com ele. No caso do
assentamento de nascidos vivos, as serventias dão, através da expedição do
registro e sua certidão, publicidade ao nascimento do indivíduo e,
conseqüentemente, do cidadão.
[7] Norte e Nordeste mantiveram subregistros de 18,1% e 21,9%,
respectivamente, em 2007.
A Região Sul tem a melhor cobertura de registros de nascimento, com
percentual de sub-registro de apenas 1,4%, em 2007. A Região Sudeste teve
significativa oscilação para cima nos anos de 2001 e 2002, retomando a
tendência de queda em 2003. Seus percentuais, porém, sempre se posicionaram
abaixo da estimativa para o conjunto do País, atingindo a proporção de
5,5%, em 2007.

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[i] Trata-se de um nome fictício, ora atribuído, a fim de preservar a
identidade da assistida pelo Núcelo do Prática Jurídica do Curso de
Direito, da Universidade Estácio de Sá, em São João de Meriti.
[ii] Segundo as estatísticas do IBGE, a cada ano, 400 mil crianças deixam
de ser registradas no país, muito embora a tendência seja a desse número se
reduzir.
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