Direitos Humanos e Internacionalismo Solidário: Perspectivas Antropológicas sobre o Papel da Organização das Nações Unidas na Reconstrução do Timor Leste

July 4, 2017 | Autor: Samara Guimarães | Categoria: Human Rights, Legal Pluralism, State Building, Timor-Leste Studies, Antropología Social
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DIREITOS HUMANOS E INTERNACIONALISMO SOLIDÁRIO: PERSPECTIVAS ANTROPOLÓGICAS SOBRE O PAPEL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NA RECONSTRUÇÃO DO TIMOR-LESTE

Autora: Samara Dantas Palmeira Guimarães ([email protected]) Afiliação Institucional: Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais, Centro Sócio–Econômico, Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais, Direito e Desenvolvimento. Ano: 2011. 9ª Semana de Relações Internacionais da UNESP – Faculdade de Filosofia e Ciências Local: Marília – São Paulo. RESUMO O objetivo fundamental do artigo é analisar a cooperação internacional com destaque no debate entre Direitos Humanos e “ocidentalismo”, sob uma perspectiva antropológica. De maneira geral, o trabalho analisará a maneira como conflitos sociopolíticos levaram à presença de membros de agências da Organização das Nações Unidas no Timor-Leste, apresentando a dificuldade para o início do processo de atuação internacional em solo timorense e a seletividade estratégica por parte da comunidade internacional, além de discutir a observância das particularidades na reconstrução de estados como o Timor, assim como a relevância ou não de impactos culturais sobre a consolidação do Estado. Todavia, certas atitudes coloniais identificadas nas práticas da instituição não observam os costumes e práticas locais e se opõem de certa forma à prática emancipatória. Neste sentido, faz-se interessante ressaltar a importância do uso de conceitos trazidos pela antropologia para uma compreensão mais holística sobre state-building, levando em consideração as perspectivas do povo timorense. Na construção do trabalho, serão utilizados conceitos relacionados à antropologia na abordagem sobre o dilema entre valores “universais” defendidos por agências da ONU versus as singularidades e especificidades dos países que recebem ajuda internacional, neste caso, o Timor-Leste. Na elaboração do artigo, será utilizada pesquisa bibliográfica e documental, onde serão abordados teóricos que levantam discussões sobre o papel dos Estados de colonização recente e seguem uma abordagem Construtivista nas Relações Internacionais, além de autores que discutem o pluralismo jurídico. Palavras-chaves: Timor-Leste, ONU, State-Building.

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Considerações Iniciais A missão de paz da Organização das Nações Unidas no Timor-Leste (UNMIT) atua no Timor-Leste desde 2006, e de acordo com o recente pronunciamento da Representante Especial do Secretário-Geral para o país Ameerah Haq1, a UNMIT já transferiu a responsabilidade do policiamento para a Polícia Nacional do Timor-Leste (PNTL) na maioria dos distritos administrativos, e no momento atual o foco da missão se dará no fortalecimento e capacitação da polícia. Porém, o pronunciamento de Haq também demonstrou preocupação com os níveis de violência doméstica e com combates entre grupos de jovens praticantes de artes marciais. Outro desafio que se forma é um desafio político, pois em 2012 ocorrerão eleições presidenciais e parlamentares, que provavelmente serão apoiadas pela ONU, pois o primeiroministro do Timor, Xanana Gusmão2 pediu ao Conselho de Segurança apoio para a realização das eleições. Neste sentido, é possível notar forte presença da ONU na formação do próprio país, pois a ONU tem estado presente no país desde que ele começou a ser reconstruído e segue presente no país para que os sonhos de paz e desenvolvimento do povo sejam cumpridos, de acordo com Xanana Gusmão, representando um posicionamento positivo como representante do país em relação a ONU. Todavia, certas atitudes coloniais identificadas nas práticas da instituição não observam os costumes e práticas locais e se opõem de certa forma à prática emancipatória. Neste sentido, faz-se interessante ressaltar a importância do uso de conceitos trazidos pela antropologia para uma compreensão mais holística sobre state-building, levando em consideração as perspectivas do povo timorense em relação. Perspectivas culturais e “globais” Marcel Mauss (1954), no livro intitulado “A dádiva”, apresenta a cooperação ao discorrer sobre tribos dispostas hierarquicamente em sociedades secretas que presenteavam 1 Disponível em: http://nacoesunidas.org/timor-leste-estabilidade-e-desenvolvimento-podem-levar-a-retiradada-missao-de-paz/. Acesso em: jul, 2011. 2 Discurso disponível em: http://www.brasil-cs-onu.com/. Acesso em: jul, 2011.

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àqueles que viviam ritos de passagem. Após certos ritos, os mais honrados deveriam retribuir a dádiva, dando continuidade ao ciclo. Tratando sobre costumes baseados na obrigação da partilha, que envolvem direitos e deveres, Mauss (1954) contribui para o entendimento do fenômeno da dádiva como parte das relações humanas entre grupos e indivíduos. Levi-Strauss, ao discorrer sobre a antropologia estrutural, afirma que “é a busca de invariantes ou de elementos invariantes entre diferenças superficiais.” (LEVI-STRAUSS, 1978, p. 16) De acordo com o autor, para o melhor entendimento de fenômenos muito complexos, é necessário o estudo das relações internas destes fenômenos, já que para analisar problemas de ordem cultural é recomendável a consideração de um grande número de variáveis. Ao abordar os povos sem escrita, considerados “primitivos”, Strauss (1978) levanta a ideia de que estes povos não vivem apenas para suprir suas necessidades básicas, mas também são movidos pelo “desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade em que vivem.” (LEVI-STRAUSS, 1978, p. 26) Porém, a maneira “totalitária da mente selvagem” (LEVI-STRAUSS, 1978, p. 28) de se atingir a compreensão difere dos cientistas, que buscam avançar por etapas. Provavelmente, uma das muitas conclusões que é possível extrair da investigação antropológica é que a mente humana, apesar das diferenças culturais entre as diversas facções da Humanidade, é em toda a parte uma e a mesma coisa, com as mesmas capacidades. (LEVI-STRAUSS, C., 1978, p. 30-31)

A partir do avanço dos processos de globalização e da consequente difusão de novos meios de comunicação em âmbito global, as fronteiras espaciais e temporais diminuíram, proporcionando também a difusão de práticas e costumes, e da expansão de agendas globais convergentes. Entretanto, seguindo o “desenvolvimento”, as desigualdades sociais e econômicas aumentaram, marcando o enfraquecimento, a dependência e até a padronização cultural de Estados considerados vulneráveis. Zygmunt Bauman (1999), ao tratar das “consequências humanas” da globalização, discute a mobilidade proporcionada pela globalização como potenciadora das relações humanas efêmeras, inseguras e incertas em um espaço artificial e mecânico. Neste sentido, a velocidade destes processos proporcionou liberdade e fortaleceu poucos, isolando ainda maiores parcelas da população mundial. O fortalecimento de nacionalismos e a necessidade de autoafirmação de alguns grupos, a expansão de grupos terroristas, o aumento do número de organizações não-governamentais, 3

e as estruturas transnacionais das megacorporações trazem à tona debates entre os teóricos das relações internacionais sobre o enfraquecimento ou não do poder do Estado. (BAUMAN, 2008) Seguindo uma visão institucionalista das relações internacionais, Instituições internacionais surgem em grande parte para facilitar a cooperação autointeressada, reduzindo a incerteza e estabilizando expectativas dos Estados, que vão depender em parte da natureza e força das instituições internacionais. Uma das várias contribuições de Robert Keohane (1993) para as Relações Internacionais é a noção de que as Instituições internacionais facilitam a cooperação através da provisão de informações e redução dos custos das transações, destacando interesses mútuos para a cooperação. Porém, além de alianças tecnológicas e econômicas, há a cooperação cultural, e neste sentido destacaremos as intervenções humanitárias nas operações de paz e, mais especificamente, na reconstrução de Estados como o Timor-Leste. Antropologia e humanitarismo A Organização das Nações Unidas mantém agências especializadas para lidar com a repatriação de refugiados3, cooperar em funções relacionadas à reorganização do aparelho Estatal, manter a segurança pública, ou construir instituições básicas, dependendo da situação do Estado ajudado. Além destas atribuições, estas agências realizam trabalhos sociais que levam em consideração o reconhecimento da pluralidade cultural. Entretanto, durante o processo de reestruturação de um país será que é possível não interferir nas práticas culturais do mesmo? O problema maior não reside na interferência, mas sim na sobreposição de práticas culturais. Além disso, é difícil estabelecer uma relação de cooperação entre iguais em contextos de desigualdades nos processos de elaboração do conhecimento e de acesso às tecnologias, como já foi citado Neste sentido, podemos citar a importância da língua como afirmação de identidade, e das oportunidades alcançadas por Portugal no Timor-Leste. Além do debate existente sobre a universalidade dos valores fundamentais que igualam a todos, a visão da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) sobre cultura parece muito distante da realidade de alguns países, apesar de defender a pluralização cultural, ser contra o etnocentrismo, questionar o Estado-nação 3 ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados.

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monolítico e afirmar a diversidade cultural dos povos. It is culture that gives man the ability to reflect upon himself. It is culture that makes us specifically human, relational beings, endowed with a critical judgment and a sense of moral commitment. It is through culture that we discern values and make choices. It is through culture that man expresses himself, becomes aware of himself, recognizes his incompleteness, questions his own achievements, seeks untiringly for new meanings and creates works through which he transcends limitations.4 (UNESCO, 1982, p. 1)

Sobre a questão do “ocidentalcentrismo” na defesa dos direitos humanos, Ana Lúcia Schrtizmeyer sugere uma “adesão crítica e sem culpa que supere um tal relativismo paralisante” (SCHRTIZMEYER, 2008, p. 9) destacando a impossibilidade de destruirmos a marca cultural e ocidental dos direitos humanos, mas sim buscar suas melhores potencialidades. Nesse sentido, as contribuições da antropologia para o humanitarismo são várias devido ao caráter de reflexão, diálogo e respeito às diferenças (relativismo cultural), que caracterizam a ciência. Débora Diniz (2001) aborda a questão da mutilação genital feminina como uma questão que vem incomodando antropólogos, pois levanta o debate entre os limites da tolerância, do relativismo. A autora questiona algo de inalienável no humano e consequentemente nos grupos culturais, trazendo a ideia de que a “categoria direito humano é histórica, social e culturalmente localizada.” (DINIZ, 2001, p. 58) A antropologia utiliza termos metodológicos próprios, como a justificativa da alteridade, que critica o imperialismo como ditador da verdade sobre padrões culturais e legitimador de crenças; e a estratégia de estranhamento de questões externas aos analistas, que se distanciam moral e culturalmente na análise de outras culturas, abstraindo suas próprias crenças e juízos de valor. Outra ferramenta antropológica seria o relativismo cultural, ideologia que “justifica as diferenças em termos culturais, ou seja, que assume as premissas culturais como verdadeiras.” (DINIZ, 2001, p. 60) O debate sobre os limites da tolerância cultural é complexo e extenso, e remete à defesa dos direitos humanos como parte da agenda de diversos Estados, defendidos por militantes e membros de organizações internacionais. 4 “É cultura que dá ao homem a habilidade de refletir sobre si mesmo. É cultura que nos faz especificamente humanos, seres relacionais, dotados de julgamento crítico e sentido moral de comprometimento. É através da cultura que discernimos valores e fazemos escolhas. É através da cultura que o homem se expressa, toma consciência de si mesmo, reconhece sua incompletude, questiona suas próprias realizações, procura incansavelmente por novos significados e cria obras através das quais ele transcende limitações.” Traduzido livremente pela autora.

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Internacionalismo solidário no Timor-Leste José Manuel Pureza (2003) ao discorrer sobre novas referências para o internacionalismo solidário, utiliza o Timor-Leste como exemplo para explicar estas referências. Portugal, antigo colonizador do Timor, em 1974 adota a doutrina legal das Nações Unidas, abraçando a ideia do serviço público internacional como elemento de sua identidade no sistema internacional e concretamente adotando a legislação em julho de 1975 em relação ao Timor, a Lei 7/75, que consagrava um programa de descolonização para o território português. A Guerra Fria foi responsável pela aceitação da ocupação Indonésia no Timor e do genocídio timorense, o que sucinta a questão da legitimidade e efetividade do posicionamento dos membros do conselho de segurança da ONU, que ignoraram questão timorense durante 23 anos, incitando o interesse estratégico de uma potência regional como a Indonésia, que tinha posição geopolítica estratégica para o combate à expansão comunista da região. No momento em que os Estados Unidos formalmente sinalizaram a prioridade atribuída ao interesse estratégico ao absterem-se da votação em 1976, ficou claro que a comunidade internacional não tinha mais como se eximir do internacionalismo solidário. (PUREZA, 2003) O autor (PUREZA, 2003) destaca que o esquecimento tático da legitimidade por parte da comunidade internacional permitiu à Indonésia, importante produtora de petróleo importante para aliados-chave dos Estados Unidos como Japão e Austrália, ter liberdade para usar a efetividade dos fatos consumados como argumento. Nesse sentido, o caso do Timor nas Relações Internacionais questionou o modo como se estabelece o contraste entre o pragmatismo realista baseado na geopolítica estratégica e o idealismo que valoriza o papel constitutivo das obrigações formais e pode não atender às realidades do poder. A realpolitik e políticas de poder se encaixariam nas categorias realistas na percepção de uma ilha extremamente pobre que não foi contemplada rapidamente pelo cumprimento dos princípios básicos do Direito Internacional. (PUREZA, 2003) O Direito Internacional desempenhou papel preponderante na emancipação do povo timorense, em que o papel das resoluções das Nações Unidas aprovadas congelaram as pretensões Indonésias e mantiveram a tese de que Portugal se mantinha como potência administradora do Timor até que o país demonstrasse ato genuíno de autodeterminação. A 6

seletividade da ONU no caso timorense durante a ocupação da Indonésia é assim criticada no sentido de apresentar um intervencionismo internacional a favor de uma lógica unilateral. (PUREZA, 2003) A Igreja teve um papel preponderante na defesa da especificidade cultural dos timorenses e como pilar de resistência à ocupação, exigindo referendo de autodeterminação e de preservação da identidade do povo. Outro movimento de solidariedade na primeira fase pró-independência até o final da década de 80 foi caracterizado pela militância individual da Austrália e também pelo movimento português, graças a sua função de intermediador entre a resistência no território e no exterior, exercendo suas funções de potência administradora impedindo certos acordos de autoridades indonésias, além dos movimentos e luta contra a ditadura da Indonésia. (PUREZA, 2003) O massacre ocorrido em Santa Cruz em 1991 teve ampla cobertura pela mídia internacional, podendo ser considerado o momento fundamental de internacionalização do caso, de acordo com o autor (PUREZA, 2003), pois projetou o movimento de independência para a Ásia. A partir disso, as redes de solidariedade especializadas pelo mundo se estenderam, e deu-se o surgimento de ONGs voltadas para o processo de descolonização timorense. O autor (PUREZA, 2003) ressalta que os verdadeiros protagonistas da causa timorense no terreno diplomático foram os países africanos de língua portuguesa – PALOPS, com destaque para Moçambique, que apesar de limitações de ordem material, apoiaram a manutenção da questão timorense na agenda de diversas organizações intergovernamentais. Ao citar António Monteiro, participante ativo na luta pela evolução das decisões Nações Unidas que retrata o período como uma fase em que os interesses políticos estavam do lado da Indonésia com seus membros influentes na comunidade internacional, e os princípios estavam ao lado de Portugal e de Timor-Leste; Pureza (2003) sucinta uma discussão sobre a questão dos interesses políticos e o peso dos princípios de direitos humanos nos processos de decisão da comunidade internacional, e especificamente na representatividade da ONU como instância multilateral de decisão e ação política. Apenas em uma terceira fase, de 1986-1997, após Portugal ser admitido na Comunidade Europeia, os resultados concretos da diplomacia portuguesa foram revelados com caráter militante, como as iniciativas de apoio às ONGs e pela atividade diplomática que solidificava os movimentos de solidariedade, mais atuante em fóruns internacionais de defesa dos direitos humanos para a luta dos timorenses. (PUREZA, 2003) 7

Em 5 de maio de 1999, foram assinados três acordos entre Portugal e a Indonésia. O primeiro (acordo principal), que teve o secretáriogeral da ONU como testemunha, destinou-se fundamentalmente a criar um quadro para a realização de um genuíno ato de autodeterminação em Timor-Leste, por intermédio de uma consulta popular sobre o estatuo de autonomia especial. O segundo acordo, também assinado pelas Nações Unidas, regula os principais aspectos do processo eleitoral (…) Finalmente, o acordo sobre a segurança visa concretizar as obrigações, especialmente da Indonésia, na garantia da manutenção da ordem durante e após a realização do referendo. (PUREZA, 2003, p. 544)

A crise financeira inciada em 1997 na Indonésia foi aproveitada pela diplomacia portuguesa a fim de conseguir compromisso jurídico indonésio sob auspícios da ONU, e Timor-Leste tornou-se fundamental neste período transitório indonésio. A mobilização da opinião pública e das redes de informação globais, além da grande manifestação que ocorreu na Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, parecem ter contribuído com o discurso do embaixador estadunidense à época, que garantiu o posicionamento dos Estados Unidos em assumir as suas responsabilidades em favor do povo timorense. (PUREZA, 2003) Após vinte e quatro anos de opressão, o povo timorense pôde exercer seu direito à autodeterminação com possibilidades de um desenvolvimento sustentado. Portugal, até a consumação formal de independência timorense, manteve autoridade jurídica, e a Indonésia transferiu sua autoridade para a ONU, que criou a Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET), abrangendo três áreas de competência: governo e administração pública, reabilitação humanitária e de emergência e militar. Para alguns autores como James Traub, a UNTAET mantém uma atitude colonial, como ensaio das funções onusianas de combinação de motivações pós-westfalianas, no sentido da defesa universal dos direitos humanos com perspectivas ocidentais como a construção de Estados-Nação a partir de situações caóticas. (PUREZA, 2003) Desse modo, uma inquietação do autor (PUREZA, 2003) é que a atitude colonial se opõe à prática emancipatória, e neste sentido faz-se interessante ressaltar a importância do estudo antropológico para uma compreensão maior sobre as perspectivas do povo timorense em relação ao intervencionismo internacional interligado ao estudo da política externa exercida pelos países colaboradores. Nesse sentido, através da verticalização da cooperação internacional e do avanço de intervenções humanitárias, a ideia de doação de Mauss (1954) ganha outros significados, mas mantém a estratégia de manejo de relações de poder. De acordo com Kelly C. Silva (2008), as 8

Organizações não governamentais que monitoram esse campo aventam que o interesse político e econômico é o que fomenta cooperação. A intolerância é característica de todo sujeito que tem alguma crença. A condição de nossas crenças é circunscrever o mundo, deixando, com isso, parte do mundo fora do nosso espectro do aceitável. É impossível ser totalmente tolerante. Mas isso não quer dizer que por ser a condição da moralidade em alguma medida a intolerância, nós não precisamos de defender a tolerância. (DINIZ, 2001, p. 61)

De acordo com a autora (DINIZ, 2011), no contexto do Timor, a dádiva internacional é interpretada como meio de os Estados saldarem dívidas históricas, a exemplo de Portugal que colonizou o Timor por aproximadamente 430 anos; Austrália e Japão que invadiram o Timor durante a Segunda Guerra Mundial ou os Estados Unidos da América, que forneceram armamento para a Indonésia durante a ocupação militar do território timorense. No caso do Timor, a operação da ONU é considerada por muitos um sucesso, mas há uma dívida de penhor moral das grandes potências que foram coniventes com a ocupação Indonésia e o genocídio do povo timorense por tempo prolongado. A Indonésia é forte produtor de petróleo que ocupa posição geográfica estratégia e tem como aliados o Japão e a Austrália, aliados-chave para os Estados Unidos; fatos que tornaram os processos de cooperação mais lentos. José Pureza ao criticar a seletividade de uma coligação de Estados durante a ocupação de Timor-Leste, aborda a intervenção humanitária como “pretenso direito” (PUREZA, 2003, p. 529), questionando se há algo de novo na seguinte sugestão: As posições favoráveis a tal direito invocam a falência do princípio clássico de não-ingerência e a sua gradual substituição por um direito, tipicamente pós westfaliano, de forçar o cumprimento dos direitos humanos básicos onde quer que ocorram violações grosseiras e em larga escala, recorrendo à força se necessário. (PUREZA, 2003, p. 529)

Os timorenses permaneceram na agenda internacional pela ação de movimentos de solidariedade e mobilização da opinião pública. Outro ponto importante ressaltado é a participação da Igreja Católica como instituição que defendia a especificidade cultural dos timorenses, proporcionando ajuda humanitária, denunciando violações dos direitos humanos, e exigindo a autodeterminação e “preservação da identidade do povo”. (PUREZA, 2003, p. 535) 9

Considerações finais O massacre de Santa Cruz, divulgado maciçamente pela CNN, responsável em parte pela internacionalização do caso, marcou o fortalecimento dos movimentos de independência. Nesse sentido, os cinco países africanos de língua oficial portuguesa (PALOPS) se aproximaram do Timor-Leste por uma característica cultural comum, a língua, e desempenharam papel importante na “retaguarda diplomática” da luta timorense. Com destaque para Moçambique, os países africanos de língua portuguesa foram os principais protagonistas da causa do Timor no terreno diplomático, ganhando maior destaque que a ONU à época. (PUREZA, 2003) A Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste (UNTAET) opera em três áreas: “governo e administração pública, reabilitação humanitária e de emergência e militar.” (PUREZA, 2003, p. 546) Nesse caso, a atitude da ONU de construção de Estadosnação apresenta uma faceta colonial, por implementar instituições e regras que seguem os moldes ocidentais e não observam plenamente a situação dos povos locais. “Em primeiro lugar, por mais benevolente que se arrogue, a atitude colonial é o oposto da prática emancipatória.” (PUREZA, 2003, p. 547) Neste sentido, o trabalho ressaltou a importância do estudo antropológico para uma compreensão maior sobre as perspectivas do povo do Timor-Leste em relação ao intervencionismo internacional interligado Em 2000, Sérgio Vieira de Mello recebeu do Conselho de Segurança da ONU um mandato para governar o Timor por mais de dois anos. Sérgio Vieira exerceu a paradiplomacia dentro das competências timorenses, mediando conflitos, criando redes de participação e ação conjunta. (POWER, 2008) A militância dos direitos humanos pensada universalmente vem sendo questionada pois invoca valores ocidentais e democráticos como liberdade e igualdade, que não são identificados por todas as nações do mundo, que possuem diferentes formas de governo e práticas culturais que podem ser inaceitáveis para alguns. Porém, os direitos humanos também se refletem nos movimentos sociais dos povos por emancipação política, como vimos no Timor-Leste, inspirados pela autodeterminação dos povos, pelo relativismo cultural, e pela luta pela afirmação de direitos civis e pela defesa do “Estado que personifique o coletivo”. (TURNER, 1994, p. 229) 10

Ainda sobre a dádiva da cooperação, é válido ressaltarmos que os maiores financiadores da reconstrução do Timor foram os países que tiveram “responsabilidade direta pelo destino histórico do território”, (SILVA, 2008, p. 25) e deixaram marcas na formulação da identidade cultural dos povos timorenses. Referência bibliográfica ACNUR/UNHCR. La protecion a refugiados y el papel del ACNUR. Disponível em: http://www.eacnur.org/. Acesso em: jul. 2011. ACNUR/UNHRC.

Operation

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On

South

Sudan.

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