Direitos Humanos e Saúde Mental: Uma análise interdisciplinar do Caso

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Direitos Humanos e Saúde Mental: Uma análise interdisciplinar do Caso Damião Ximenes Lopes Fernanda de Magalhães Dias Frinhani Maria Inês Badaró Moreira Resumo Trata-se de pesquisa qualitativa com abordagem interdisciplinar sendo utilizada a metodologia de Estudo de Caso para análise do Caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil, primeira condenação brasileira no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O Brasil foi responsabilizado pela violação dos direitos à integridade pessoal, à vida, à proteção e às garantias judiciais. A sentença foi emblemática por ser a primeira e referir-se ao sujeito com sofrimento psíquico e por consolidar a força de particulares como agentes propulsores da defesa dos Direitos Humanos; revelou inúmeras omissões do Estado Brasileiro além de fragilidades em relação às demandas pelo reconhecimento dos Direitos Humanos. Palavras-Chave: Direitos Humanos; Sofrimento Psíquico; Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

Human Rights and Mental Health : An interdisciplinary analysis to case Damião Ximenes Lopes Abstract This paper consists in qualitative research with interdisciplinary approach being used method case study, for analysis of Damião Ximenes Lopes vs. Brazil , first Brazilian conviction in the Inter-American Human Rights System. Brazil was responsible for violating the rights to personal integrity, life, protection and judicial guarantees. The sentence was emblematic for being the first and refer to the subject with mental disorder and to consolidate the power of individuals as drivers of the defense of human rights officers; revealed numerous omissions of Brazil as well as weaknesses in relation to claims for the recognition of human rights. Key-words: Human Rights; mental disorder; Inter-American Human Rights System

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Doutora em Direitos Humanos. Mestre em Psicologia. Docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Santos, líder do Grupo Direitos Humanos e Vulnerabilidades; membro da Cátedra Sérgio Vieira de Mello.  Doutora e Mestre em Psicologia. Professora da Universidade Federal de São Paulo, Departamento de Política Pública Saúde Coletiva.

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Sumário Introdução ....................................................................................................................

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Método ..........................................................................................................................

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O Caso Damião Ximenes Lopes: Narrativa construída a partir de relatos e sentenças .........

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Análise dos dados: Onde o Direito e Psicologia se encontram .....................................

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Considerações Finais ......................................................................................................

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Referências ...................................................................................................................

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Introdução

O artigo apresenta análise interdisciplinar do Caso Damião Ximenes Lopes vs. Brasil, submetido ao sistema interamericano de proteção dos Direitos Humanos. Esta foi a primeira condenação do Estado brasileiro neste sistema. A indissociabilidade entre Saúde Mental e Direitos Humanos está presente desde os primórdios da luta por uma reforma psiquiátrica ao defender o cuidado em liberdade e ideais que subjazem as lutas e as conquistas atuais no âmbito da assistência ao sofrimento psíquico. As muitas denúncias sobre maus tratos, cárceres, abandono, e diversos exemplos iatrogênicos, durante o final da década de 1970 e 1980 que foram aproximando uma ação em Saúde Mental ao campo da luta pelos Direitos Humanos, uma vez que está intimamente comprometida com o cuidado em liberdade e com o resgate da cidadania. Tomando este caso exemplar percebe-se a importância da perspectiva interdisciplinar na busca por avançar em análises de fenômenos sociais complexos que demandam superação dos limites de um determinado saber científico. Para Japiassu (1976) quer se trate de pesquisa, ensino ou ações técnicas a interdisciplinaridade se constitui em uma importante reflexão sobre a fragmentação das disciplinas e um esfacelamento dos horizontes do saber. A interdisciplinaridade se apresenta sob forma de tríplice processo que podem ser assim resumidos: trabalha contra um 2

saber fragmentado, pulverizado numa multiplicidade crescente de especialidades, em que cada uma se fecha sem si mesmo; trabalha contra a esquizofrenia intelectual, entre uma universidade cada vez mais compartimentada e setorizada em detrimento de uma vida social cada vez mais dinâmica e complexa; e por fim, se impõe contra o conformismo das situações adquiridas e ideias recebidas ou impostas (p. 43). O autor salienta que a natureza das ciências humanas já está na origem de distintas colaborações e se caracterizam por uma ausência de hierarquia. Um dos grandes méritos da pesquisa interdisciplinar reside no fato de superar o dualismo persistente no mundo científico. Dentre os fundamentos de um trabalho interdisciplinar é preciso reconhecer o caráter parcial e relativo das disciplinas e das áreas de conhecimento. A supra exigência converte-se na necessidade de ultrapassar ou superar os limites de seus conhecimentos. Deste modo, este artigo articula duas áreas de conhecimento em busca de analisar o Caso Damião Ximenes Lopes, primeiro a ser sentenciado contra o Brasil após tramitar na Corte Interamericana de Direitos Humanos, tendo sido proferida a sentença em 04 de junho de 2006. A denúncia contra o Brasil de nº 12.237 foi recebida pela Secretaria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 22 de novembro de 1999, que em 1º de outubro de 2004, cumprindo o disposto nos artigos 50 e 61 da Convenção Americana de Direitos Humanos, submeteu-a à Corte. Ao condenar o Brasil, a Corte reconheceu a violação ao direito à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais e à proteção judicial no caso que apurou a tortura e a morte, aos trinta anos, de Damião Ximenes Lopes, portador de transtorno mental, durante sua internação em uma clínica psiquiátrica no município de Sobral/CE, à época filiada ao Sistema Único de Saúde. Referido caso se mostra relevante socialmente e de grande interesse científico por inaugurar as denúncias contra o Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos; por revelar ser o sistema internacional um importante mecanismo de defesa de direitos quando até mesmo os órgãos de Justiça se mostram omissos; por revelar a importância do Judiciário como órgão chamado a atuar diante da inércia das instituições públicas; por permitir uma reflexão acerca da importância da adoção de políticas públicas em Direitos Humanos que se mostrem efetivas como garantidoras de direitos; por expor e evidenciar a violência a que ainda são submetidas as pessoas vítimas de sofrimento psíquico no Brasil. 3

Método

O método de Estudo de Caso tem se consolidado como método de pesquisa na área de Ciências Humanas e Sociais como investigação empírica que procura analisar um fenômeno contemporâneo, complexo e em profundidade, quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente evidentes (YIN, 2015). Uma de suas tendências seria o fato de poder iluminar decisões ou o modo como elas são implementadas a partir de seu acontecer. Assim, também haverá casos de indivíduos tomados isoladamente, casos de organizações e instituições complexas, processos, eventos ou de qualquer outra ordem desde que aponte uma situação que articula de modo a se apresentar como uma definição em duas faces. Por um lado, é uma pesquisa empírica de um caso em profundidade em que seus limites não estão facilmente distinguíveis e por outro, apresenta situação diferenciada com múltiplas fontes de evidências se beneficiando de proposições anteriores para sua análise. Nesta perspectiva, uma das características fundamentais do estudo de Caso Damião Ximenes é o fato de retratar uma realidade contemporânea complexa de modo profundo em um determinado contexto sócio histórico que o torna ímpar, sobre o qual é fundamental se debruçar. Além disso, os desdobramentos deste caso são notórios, seja nos aspectos jurídicos ou assistenciais, como também provoca transformações culturais diante do fenômeno. Segundo Ludke e André (1986) este método configura-se como um trabalho denso sobre um caso específico, delimitado com contornos claramente definidos pelo próprio desenrolar do estudo. Um caso é ao mesmo tempo similar e distinto de outros, no entanto o interesse incide naquilo que tem de único e particular. Por este motivo ao se estudar algo singular, com valor em si mesmo, adotamos a metodologia de estudos de caso. Dentre todos os elementos destacados nesta metodologia, apontamos a necessidade de buscar a maior variedade possível de fontes de informação para a composição do Caso. Para isso a narrativa apresentada a seguir foi elaborada a partir de documentos oficiais referentes à sentença do caso1, de relatos pessoais de Irene Ximenes Lopes Miranda 2 e relato de Milton Freire no livro Instituição Sinistra3. 1

As informações da narrativa do caso se baseiam na sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, do dia 04 de Julho de 2006. Caso Ximenes Lopes X Brasil. Acervo da Biblioteca Virtual de 4

De modo geral, os relatos de estudo de caso utilizam uma linguagem e forma mais acessível para apresentação da dinâmica daquilo que se deseja apresentar. Sendo assim podem ser apresentados de modos variados, tais como dramatizações, desenhos, fotografias, colagens, discussões etc. Os relatos escritos seguem um estilo informal, sendo possível utilizar diferentes modos de relatar o mesmo caso, dependendo do tipo de ênfase que se busca dar (LUDKE; ANDRÉ, 1986). Respeitando a abordagem interdisciplinar, optamos por apresentá-lo em forma de narrativa, distanciando do que usualmente é feito, em forma de relatório de sentença ou aos moldes de inquérito policial. A preocupação deve-se dirigir para uma transmissão clara, direta e bem articulada do caso e num estilo que se aproxime da vivência do leitor. Portanto pode-se dizer que o estudo de caso é construído durante o processo do estudo e se materializa enquanto caso a posteriori. A narrativa não é neutra, nem se dissocia da história, não se limita a ser apenas uma representação do fato ou da situação que anuncia. Uma vez construída, passa a ser parte da realidade e promove novos olhares para o fato (GEERTZ, 1983). Para Ricoeur (1994) contamos histórias em formato de narrativas porque as vidas humanas necessitam e merecem ser contadas, sobretudo “quando evocamos a necessidade de salvar a história dos vencidos e dos perdedores. Toda história do sofrimento clama por vingança e exige narração” (p. 116). Segundo este autor o humano se organiza por meio de narrativas que se configuram em uma trama constituída por seus diversos episódios, ligando-os entre si e coloca-os em relação Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. Disponível em www.direitoshumanos.usp.br. Acesso em 27/02/2014. Além de diversos relatos e estudos do caso. 2 Relato pessoal, escrito por Irene Ximenes Lopes Miranda para a Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência - APAVV. Disponível em http://www.apavv.org.br/casos/D/005.htm. Acesso em: 28 de fevereiro de 2014. 3 A Instituição Sinistra. Mortes violentas em Hospitais Psiquiátricos no Brasil. É um livro do Conselho Federal de Psicologia que relata diversas de mortes violentas ocorridas em hospitais psiquiátricos no Brasil. São cenas de torturas, de agressões físicas e de violações de direitos humanos que são inimagináveis àqueles que desconhecem a realidade escondida pelos muros desta instituição de violência. Dentre as inúmeras narrativas alarmantes, pode-se destacar o grito que ecoou na voz de Irene ao denunciar que o desejo desta instituição de violência era silenciar mais uma história que ficaria desconhecida e impune como tantas outras. Entretanto o grito de Irene Ximenes Lopes Miranda despertou olhares e interesses pela história de seu irmão, Damião Ximenes, que também é a história de diversos outros sujeitos que vivem a condição de sofrimento psíquico e passam por situações de humilhação em instituições de violência. 5

com o enredo mais amplo articulado ao contexto vivido pelo narrador. Assim sendo, uma narrativa permite transformar o vivido em algo que possa ser compartilhado ao modo do narrador, permitindo que o narrado se transforme em um caminho que permite compreensão do que for compartilhado. Por esta via, não se busca interpretar o que se pretende narrar mas sobretudo permitir que um fato narrado possa se tornar repleto de sentidos e possa conduzir o leitor para a sua própria análise. A narrativa elaborada por nós neste artigo está impregnada do olhar dos narradores, que buscaram os fatos e desenharam o texto conduzindo o leitor à descoberta de cada detalhe vivido na história narrada. Com esses esclarecimentos metodológicos segue o Caso Damião Ximenes Lopes. O Caso Damião Ximenes Lopes4: Narrativa construída a partir de relatos e sentenças

Em uma família de poucos recursos e muitas privações que vivia no interior do Ceará, os gêmeos idênticos Cosme e Damião compunham os sete irmãos. O pai muito rude e severo impunha medo às crianças que em razão disso não ousavam desobedecer ou falar sem sua permissão. Os sete irmãos cresceram muito unidos, pois eram impedidos de ter amizades e juntos buscavam seguir uma infância difícil e comum a diversas crianças na mesma condição. Os gêmeos seguiam muito próximos até a adolescência, época em que apareceram alguns sinais de que algo diferente poderia ocorrer. Foi em março de 1998, que Damião apresentou sintomas estranhos que atemorizaram sua família e sua mãe o levou a Fortaleza para consultar. Em seu retorno, ainda impregnado com a medicação, se agitou dentro do carro, o que levou o motorista a uma colisão e Damião saiu andando sem rumos. A polícia foi acionada e o conduziu para a Casa de Repouso de Guararapes, local onde Damião havia sido internado anteriormente. Ao visitá-lo durante esta internação, sua irmã Irene pôde perceber as condições insalubres desta internação, ao ver muita sujeira e pessoas

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Sentença do caso Corte IDH. Caso Ximenes Lopes Vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2006. Serie C No. 149. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf. Acesso em: 02 de março de 2014. 6

entregues ao lixo andando completamente nuas. Nessa internação, sua mãe, dona Albertina, encontrou cortes, feridas nos tornozelos e no joelho de seu filho. Ao pedir explicação, a funcionária daquela casa de repouso disse ser consequência de uma tentativa de fuga. As poucas vezes em que Damião falava da violência sofrida e da situação que viveu no hospital foram consideradas ideias estranhas e pensamentos confusos, por aqueles que ouviam. Nas palavras da irmã: “Lamento profundamente por não ter acreditado no meu irmão, quando ele disse que o pessoal do hospital era ruim, e dos piores eram os enfermeiros, que batiam nos internos. Achei que ele estivesse com pensamento confuso.” (PEREIRA, 2001, p. 127). Após essa internação a situação de Damião se agravou muito, ficou desligado, sem ânimo, distante, não tinha disposição para qualquer atividade cotidiana. Para Irene transcorreu-se um ano muito difícil. E, no ano seguinte, Damião, por relatar náuseas, cessou a utilização dos medicamentos, o que veio a piorar consideravelmente os sintomas que apresentava. No dia 1º de outubro de 1999, sua mãe vendo o quadro se agravar e, temerosa do que poderia acontecer com o filho, o levou a uma consulta no hospital de Guararapes, mais uma vez. E sem ter como contornar a delicada situação, resolveu interná-lo naquele final de semana, acreditando que receberia melhores cuidados e acompanhamento médico. Segundo o relato da irmã em 04 de outubro, na segunda-feira, quando a mãe retornou para visita foi informada que Damião não poderia receber visitas. Apavorada adentrou pela clínica chamando por seu filho, quando o viu cambaleando de mãos amarradas em sua direção. Seu corpo estava sujo de sangue, urina e fezes; seu rosto apresentava sinais de espancamento. Caído aos pés da mãe dizia: polícia... polícia... Irene afirma que “uma faxineira do hospital contou para mamãe que presenciou tudo; os autores da violência foram os auxiliares de enfermagem e monitores de pátio” (PEREIRA, 2001, p.128). Aflita, a mãe pediu ajuda aos profissionais para limpá-lo e clamou socorro ao médico de seu filho para atendê-lo. No entanto, o mesmo apenas receitou a medicação injetável sem ao menos ir ver o paciente. D. Albertina voltou a ver seu filho com vida pela última vez naquele dia, 04 de outubro de 1999, quando o viu deitado de bruços ao lado da cama, completamente nu e com as mãos ainda amarradas para trás. Não pôde tocá-lo, por recomendação do enfermeiro que disse que ele havia tomado injeção e precisava dormir. Quando chegou à sua casa, a 72 km de Sobral, já havia 7

um telefonema do hospital solicitando sua presença com urgência, pois Damião, aos seus 30 anos, havia morrido e, segundo o laudo de seu médico, teria sido uma morte natural resultante de uma parada cardiorrespiratória (PEREIRA, 2001, P. 128). Este poderia ser o final de uma história triste, semelhante a outras tantas, cujo laudo atesta morte natural, suicídio ou traumas acidentais em tentativa de fuga. Entretanto, não foi o que ocorreu. Irene Ximenes Lopes levantou-se indignada, iniciando uma luta incansável contra todos os envolvidos na morte de seu irmão. Para ela, a morte de Damião teria outro sentido. Junto a outros familiares foi até a delegacia local e deu queixa, solicitando novo laudo pericial. Essa tentativa não alterou as informações sobre a causa da morte, pois o médico legista era o mesmo médico que atendera seu irmão e que foi o responsável pelo laudo de morte natural. Em seguida o corpo foi enviado para necropsia no Instituto Médico Legal (IML) de Fortaleza e voltou com o resultado de “causa indeterminada, sem elementos para responder”. Não satisfeita com essa realidade, Irene Ximenes buscou esclarecimentos sobre o que ocorrera com Damião, queria identificar e responsabilizar os envolvidos na morte do irmão. Incansável, Irene Ximenes tornou pública a humilhação, o desrespeito, a violência, os maus-tratos e a crueldade que imperava naquela clínica e que era um dos exemplos, entre vários existentes no país. Com esse ato, lançou olhares para o sistema de política pública de saúde mental, pois, segundo ela, “neste sistema, inocentes parecem perder a vida e tudo fica no anonimato. Provas nunca existem. Assim como eu, muitos clamam por justiça e estão prontos a dar seu depoimento... as famílias das vítimas são pessoas pobres, sem voz e sem vez e a impunidade continua” (PEREIRA, 2001 p. 133). Para conquistar seu intento, encaminhou cartas a vários órgãos públicos de saúde, desde a Secretaria Municipal de Sobral, Secretaria de Estado até o Ministério da Saúde; relatou os fatos a diversos órgãos de Direitos Humanos, além de diversas entidades ligadas à saúde, justiça e direitos humanos. Foram mais de duzentas cartas enviadas a diferentes entidades, até que a morte de Damião Ximenes chegou à Anistia Internacional e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. No âmbito local, iniciou-se a sindicância para apurar essa morte e responsabilizar os culpados. A Casa de Repouso de Guararapes passou por auditorias, foi interditada e desativada pelo governo estadual, após investigação da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia 8

Legislativa do Estado do Ceará. Esses procedimentos de responsabilização administrativa e penal iniciados não deram resultados práticos até a denúncia do caso para o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Em 22 de novembro de 1999, Irene apresentou petição individual contra o Estado brasileiro, por violação aos Direitos Humanos e pela morte de seu irmão, Damião Ximenes Lopes. A Comissão remeteu o caso ao Estado no final de 1999, concedendo 90 dias para que o Brasil respondesse sobre o esgotamento prévio dos recursos internos, o que não ocorreu. Em 09 de outubro de 2002, após quase três anos, diante da falta de resposta e sendo verificada a presença dos requisitos de admissibilidade consignados no art. 46 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos5, a Comissão admitiu a denúncia, fazendo com que a tortura, a violência e a morte de Damião Ximenes se tornassem uma questão internacional. Em 08 de outubro de 2003, a Comissão, no 118º Período Ordinário de Sessões 6, concluiu que o Estado era responsável pela violação dos direitos consagrados nos artigos 5 (Direito à integridade pessoal), 4 (Direito à vida), 25 (Proteção judicial) e 8 (Garantias judiciais) da Convenção Americana, em conexão com o artigo 1.1 do mesmo instrumento, no que se refere à hospitalização de Damião Ximenes Lopes em condições desumanas e degradantes, às violações a sua integridade pessoal e ao seu assassinato, bem como às violações da obrigação de investigar, do direito a um recurso efetivo e das garantias judiciais relacionadas com a investigação dos fatos. A Comissão recomendou ao Estado diversas medidas visando a reparação das violações. Em 31de dezembro do mesmo ano, comunicou oficialmente ao Brasil, fixando o prazo de dois meses para que este informasse sobre as medidas adotadas. O Brasil apresenta as medidas até então adotadas, e os autores, alegando a insuficiência das mesmas, encaminham, em março de 2004, petição à Comissão sustentando a necessidade de envio do caso à Corte, alegando que o Brasil de fato havia feito eventuais e pequenas ações referentes ao caso, mas que não havia 5

BRASIL, Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Brasília: Diário Oficial da União, 09 nov. 1992, artigo 46. Em resumo: esgotamento prévio dos recursos internos ou quando o acesso aos recursos internos for impedido ao presumido prejudicado; apresentação no prazo de seis meses a partir da notificação da decisão definitiva (quando há decisão); que o caso não esteja pendente de outro processo de solução internacional. 6 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, Caso Damião Ximenes Lopes X Brasil. Disponível em: www.direitoshumanos.usp.br/index.php/.../option.../view,category. Acesso em: 14 de junho de 2014. 9

cumprido com as recomendações da Comissão. Em 30 de setembro, atendendo à solicitação dos peticionários, o Caso é encaminhado para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil pela violação. O Brasil foi responsabilizado pela violação de direitos à integridade pessoal, à vida, à proteção judicial e às garantias judiciais. Com isso houve ampla exposição das máculas do sistema de saúde, com as mortes em hospitais psiquiátricos que ficaram visíveis a todo mundo. Também ficou exposta a omissão dos órgãos de investigação e de justiça no Brasil na proteção dos Direitos Humanos e das liberdades individuais. Segundo Carneiro e Lima Junior (2010) inicialmente, o Brasil apresentou exceção preliminar acerca do não esgotamento dos recursos internos, o que o Tribunal considerou extemporânea. Ao longo do processo, o Brasil chegou a reconhecer o desrespeito à Convenção Americana, garantiu tomar providências para melhorar as condições das instituições psiquiátricas do país e ofereceu uma pensão vitalícia à mãe da vítima que foi rejeitada pela família. A Corte declarou em sua sentença que o país violou sua obrigação geral de respeitar e garantir os direitos humanos; violou o direito à integridade pessoal de Damião Ximenes e de sua família e os direitos às garantias judiciais e à proteção judicial a que têm direito seus familiares, exigindo do Estado a reparação dos danos. A sentença definiu as medidas de reparação a serem cumpridas pelo Brasil, sendo dividida em reparação por danos materiais no valor de R$ 51.850,00, a serem pagos para sua mãe e irmã, por danos imateriais no valor de R$ 125.000,00 pagos a sua mãe e irmãos, R$ 10.000,00 de custas, determinações completamente cumpridas pelo Brasil. Determinou ainda ser dever do Estado publicar a sentença no Diário Oficial, o que foi cumprido, além de investigar os fatos em tempo razoável e estabelecer programas de capacitação dos profissionais que atuam em saúde mental, parcialmente cumprido pelo Brasil (ROSATO; CORREIA, 2011). O Brasil foi responsabilizado internacionalmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por violar dispositivos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos no ano de 2006 (PAIXÃO et all, 2007) 7. Este fato histórico foi considerado uma referência para a proteção dos direitos humanos, daqueles que vivem a condição de sofrimento psíquico grave. 7

A Corte reconheceu ter havido violação aos direitos consagrados nos artigos 4.1 (direito à vda), 5.1 (respeito à integridade pessoal) e 5.2 (direito a não ser submetido a tortura, nem a penas ou tratos cruéis, 10

Análise: Onde o Direito e a Psicologia se encontram

O estudo de caso em Direito se apresenta como uma opção adequada para a análise de um caso paradigmático e multifacetado, por permitir o diálogo entre o fato social em suas diversas dimensões, e o Direito. Para a Psicologia existe uma longa tradição de estudos clínicos para desenvolver análises generalistas a partir de casos delimitados e exemplares que permitam elaboração de constructos teóricos. Neste estudo, compreendemos que assumir a análise interdisciplinar se faz fundamental na medida em que permite a superação do antagonismo entre conhecimento e objeto pesquisado, permitindo a fusão entre o saber técnico e o mundo real (ALMEIDA PRADO, 2010). Neste estudo foi feita a análise focada na Psicologia e no Direito, por evidenciarem a complexidade do fenômeno e permitirem um olhar compartilhado entre a visão humana e jurídica do mesmo. Os debates que envolvem a proteção dos Direitos Humanos no Brasil passam necessariamente pela reflexão acerca da adesão do país ao Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos, com especial destaque para o Sistema Interamericano de Proteção. A adesão acabou por colocar o Brasil como possível demandado perante Cortes Internacionais e a análise de casos paradigmáticos se mostra fundamental para propiciar uma leitura ampla e objetiva das violações aos Direitos Humanos perpetradas pelo Brasil. Para melhor entender o caso Damião Ximenes na perspectiva jurídica, nos interessa o Sistema Interamericano de proteção dos direitos humanos (Carta OEA, preâmbulo), formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, órgão autônomo da OEA (HANASHIRO, 2001) e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O sistema de monitoramento interamericano garante aos particulares a possibilidade de ingressarem com petições individuais perante a Comissão (art. 44), respeitados os requisitos de admissibilidade previstos no artigo 46 da Convenção. A Comissão pode encaminhar o caso à Corte. Atualmente a Comissão atua com base em três pilares: sistema de proteção individual; monitoramento da situação dos direitos humanos nos Estados Membros e atenção a linhas

desumanos ou degradantes) da Convenção Americana, e também por violação ao artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos). 11

temáticas prioritárias8. Dentre as competências ampliadas em razão da adoção da Convenção, a mais importante talvez seja a que se refere à possibilidade de particulares ingressarem com petições individuais perante a Comissão (art. 44), que, dentre os mecanismos de monitoramento, é o que mais aproxima os cidadãos, que por ventura tiveram seus direitos violados, do sistema de proteção9, respeitados os requisitos de admissibilidade previstos no artigo 46 da Convenção. A Comissão ainda tem a competência de submeter casos à Corte, competência restrita à Comissão e aos Estados-partes que aderiram a esta possibilidade (art. 61), não sendo possível que particulares submetam o caso diretamente à Corte. Importante ressaltar que só será submetido à Corte casos que tenham como parte, Estados que tenham expressamente reconhecido sua competência. A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi instituída pela Convenção Americana, tendo sido instalada em 1979, na Costa Rica. Possui duas jurisdições, a consultiva e a contenciosa. O escopo da jurisdição consultiva é interpretar a Convenção e outros tratados de direitos humanos. É uma função preventiva, de persuasão e elaboração, podendo a Corte ser consultada inclusive por países que não aderiram a Convenção, reforçando “os princípios e a interpretação dos instrumentos de proteção aos direitos humanos que devem orientar o sistema interamericano, criando uma ‘espécie de jurisprudência emergente” (HANASHIRO, 2001, p. 39). A segunda e mais importante jurisdição da Corte, é a Contenciosa, criada para resolver conflitos referentes às violações dos direitos humanos e aplicar a Convenção Americana em casos individuais. Essa função é muito importante por tirar a proteção dos direitos humanos do mero plano de compromisso moral, passando à jurisdicialização desses direitos, decretando obrigação legal a ser cumprida pelo Estado que reconhece a competência da Corte10 e que tenha violado algum direito. 8

Site oficial da OEA. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/mandato/que.asp. Acesso em: 03 de março de 2014. 9 O sistema de monitoramento é ainda composto de relatórios periódicos (art. 42), de adesão automática, e pelas comunicações interestatais (art. 45), que são de adesão facultativa por parte dos Estados. 10 No site oficial da Comissão Americana de Direitos Humanos, consta quadro de adesão de cada Estado ao Pacto e à competência da Corte. O Brasil reconheceu a essa competência em 10/12/1998, nos termos a seguir: “O Governo da República Federativa do Brasil declara que reconhece, por tempo indeterminado, como obrigatória e de pleno direito a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em todos os casos relacionados com a interpretação ou aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conformidade com o artigo 62, sob reserva de reciprocidade e para fatos posteriores a esta declaração”. 12

A estrutura do sistema interamericano possibilitou à família de Damião Ximenes ingressar com o caso perante a Comissão e posteriormente este órgão apresentar o caso à Corte. A discussão acerca das condições de admissibilidade previstas no artigo 46 da Convenção (CARNEIRO; LIMA JUNIOR, 2014) será feita no texto, sobretudo o que se refere ao esgotamento prévio dos recursos internos (Item 1, alínea a). Este ponto merece atenção em razão do curto espaço de tempo entre a morte de Damião Ximenes, ocorrida em 04/10/1999 e a denúncia perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, recebida em 22/11/1999. Considerar o esgotamento dos recursos internos no prazo de menos de dois meses só é possível quando são verificadas diversas omissões. Desde a morte de Damião Ximenes, a família buscava explicações e não se conformava com o laudo médico que declarava ter sido a morte natural, em decorrência de uma parada cardiorrespiratória. Não aceitava o fato das agressões sofridas por Damião serem omitidas dos relatos oficiais. Polícia Civil, Instituto Médico Legal, Secretarias de Saúde Municipal e Estadual, Ministério da Saúde, Assembleia Legislativa foram órgãos acionados pela família, mas que não deram respostas sobre a violência sofrida por Damião. Sem o reconhecimento de que a morte não foi natural, não seria possível a abertura de um inquérito para a investigação da mesma, o que negava de antemão o acesso da família ao Judiciário. O dever do Estado de iniciar ex officio uma investigação séria, imparcial e efetiva foi substituído pelo descaso em esclarecer os fatos, levando grave sofrimento à família. A violação do direito à integridade psíquica e moral dos familiares evidenciou-se em razão do sofrimento imposto pelas violações dos direitos de Damião e pelo sofrimento adicional decorrente na omissão das autoridades em investigar imediatamente os fatos. Reconheceu a Corte, que os tribunais domésticos negaram à família de Damião o efetivo acesso à justiça. Mesmo depois da denúncia, as omissões continuaram. A Comissão, no final de 1999, remeteu ao Brasil o caso, para que se manifestasse no prazo de noventa dias. O Brasil não se manifestou apesar de ter sido prorrogado o prazo por três vezes, e a Comissão, verificando o preenchimento dos requisitos de admissibilidade, admitiu a denúncia por meio do Relatório de

Disponível em http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/d.Convencao_Americana_Ratif..htm. Acesso em 05/03/2014. 13

Admissibilidade, em 09/10/200211. No relatório, além de reconhecer os requisitos de admissibilidade, entre eles, o de esgotamento prévio dos recursos internos, a Comissão recebeu a petição em relação aos fatos denunciados referentes à violação dos artigos 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade física), 11 (proteção da honra e da dignidade), 25 (direito a um recurso judicial) além da violação ao artigo 1 (obrigação de respeitar os direitos contidos na Convenção). Merece ainda atenção a responsabilização do Estado por ações ou omissões tanto aquelas atribuíveis a funcionários ou órgãos estatais, quanto as praticadas por terceiros, sobretudo se autorizados a exercer atribuições de autoridade governamental, como ocorre na atenção à saúde. Nesse último caso, a responsabilidade se dá em razão de fatos diretamente imputáveis ao Estado. Na sentença, a Corte entendeu que é dever dos Estados regulamentar e fiscalizar a assistência à saúde, seja o serviço prestado público ou privado, visando à garantia da proteção à vida e à integridade pessoal. Regulamentar, inspecionar, investigar, processar e solucionar são algumas das ações atribuídas aos Estados com vistas à promoção dos direitos humanos, no caso em tela, referentes ao direito à saúde. O fato de Damião ter sido submetido à tortura e morto dentro de uma instituição de saúde, reforça a urgência em reforma na atenção ao portador de transtorno mental. A decisão da Corte, baseada na Convenção, reforça a garantia de não ser o indivíduo arbitrariamente privado de sua liberdade, mas também o dever dos Estados de criar um marco jurídico que de forma incisiva iniba a prática de tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, de atos atentatórios à vida. Também reconheceu a Corte a necessidade do paciente psiquiátrico ser ouvido, sendo, quando possível, respeitada pelo médico e pelas autoridades, sua vontade (PAIXÃO, 2014, p. 15). A sentença no caso Damião Ximenes foi emblemática por ser a primeira, por referir-se a sujeito com sofrimento psíquico, por consolidar a força de particulares como propulsores da defesa de direitos humanos. Mas, não é suficiente para barrar as graves violações de direitos impostas a usuários e familiares do sistema de atenção à saúde mental. A história de Damião Ximenes é simbólica na medida em que expôs a realidade vivida por milhares de pessoas com sofrimento psíquico grave que estavam confinados em instituições 11

Informações constantes do informe 38/02, da CIDH, referente ao Informe de Admissibilidade da Petição nº 12237, disponível em http://cidh.org/annualrep/2002sp/Brasil.12237.htm. Acesso em 05/03/2014. 14

psiquiátricas e também evidenciou o grande equívoco existente na crença de que estes hospitais pudessem ser considerados como espaço de cuidado em saúde. Este caso também mostrou uma grande ferida social secular, expondo a violência a que qualquer cidadão pode estar sujeito. Na perspectiva da Psicologia com foco na atenção ao portador de sofrimento psíquico, podemos dizer que o Brasil iniciou tardiamente a reflexão sobre o modelo asilar e hospitalocêntrico da política pública em saúde mental após mais de dois séculos de exclusão e abandono desde a inauguração do primeiro hospício no Rio de Janeiro, em 1858 (RESENDE, 1987). Enquanto a Europa e outros países repensavam as bases da exclusão e o resgate dos direitos, no Brasil as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pelo aumento substancial de pessoas internadas em hospitais privados com convênio público e controle frouxo de internação. O tempo médio de permanência nos hospitais era bastante elevado e as internações envolviam questões financeiras, sociais e familiares. Somente ao final de 1970 surgiram as críticas à ineficiência e ao caráter privatista da política pública de saúde, após denúncias de fraude no sistema de financiamento dos serviços e denúncias de abandono, violência e maus-tratos. Até este período não se criticavam os pressupostos que subsidiavam o asilamento e a psiquiatria, mas seus excessos e desvios (RESENDE, 1987). Nesse contexto, a lei de reforma psiquiátrica brasileira foi gestada e enviada ao congresso no ano de 1989. Até sua promulgação em 2001, esta lei sofreu inúmeras alterações chegando ao que temos hoje na Lei n.º 10.216 (BRASIL, 2001) que redireciona a atenção em saúde mental e oferece proteção às pessoas com sofrimento psíquico sem qualquer forma de discriminação. Além disso, responsabiliza o Estado pelo desenvolvimento de políticas de saúde mental, pela assistência e promoção de ações de saúde, com participação da sociedade e da família; restringe a indicação da internação, indicando que todo tratamento deverá ter por finalidade permanente a reinserção social (BRASIL, 2001, art. 3º). Do ponto de vista de estruturação da assistência em saúde mental, a década de 1990 pode ser considerada como uma etapa de consolidação dos processos que compõem hoje a rede de atenção psicossocial brasileira. Neste período os municípios, com o incentivo do governo federal, iniciaram a organização de políticas locais de manutenção do cuidado ao sofrimento psíquico, evitando a internação ou afastamento de sua localidade ou familiares (TENÓRIO, 2002). 15

Juridicamente é fundamental a compreensão de que a condenação do Brasil em referido caso deveu-se às inúmeras omissões do Estado Brasileiro, sobretudo no que tange ao direito de acesso à justiça. Mais do que uma decisão que reconheça as graves violações de direitos impostas aos portadores de sofrimento psíquico, o Caso Damião Ximenes revelou o despreparo do Brasil em relação às demandas pelo reconhecimento dos Direitos Humanos. Não podemos negar, no entanto, que, na seara da saúde mental, foi uma grande conquista. Verificar a atuação de órgãos de proteção dos direitos humanos num cenário em que comumente é negada voz ao sujeito com sofrimento psíquico, tratado como alienado mental, mas sendo, sobretudo, considerado pela família, pelo Estado e pela comunidade como um alienado de direitos, alienado de desejos, alienado de políticas que o reconheçam como sujeitos de direitos, é um avanço. Além de ter sido o primeiro caso levado à Corte Interamericana em que o Brasil foi responsabilizado por todas as violações mencionadas anteriormente, também contribuiu para gerar urgência na organização dos serviços de atenção psicossocial aos sujeitos acometidos por sofrimento psíquico grave no âmbito loco-regional. A cidade de Sobral-CE viveu intensa transformação no âmbito da saúde pública, tendo sido fechada a Casa de Repouso Guararapes, após intervenção. Houve grande empenho na estruturação de uma rede de saúde pública que contemplasse o sofrimento psíquico em suas várias instâncias. Até o ano de 1999, a Casa de Repouso Guararapes constituía-se como o único serviço de atenção à saúde mental prestado à população de toda a macrorregião Norte do Estado do Ceará. Em 10 de julho de 2000, a Casa de Repouso Guararapes, após várias outras denúncias de maus-tratos e torturas a pacientes, foi descredenciada pelo SUS e consequentemente, foi realizada uma nova estruturação do sistema de atenção à saúde mental no município (QUINDERÉ, 2010). Além disso, também impulsionou o olhar mais rigoroso para o que ocorre dentro de instituições psiquiátricas em todo Brasil. Atualmente o Ministério da Saúde estabelece a constituição de uma Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde. A RAPS é composta por equipamentos e serviços que prestam assistência em saúde mental aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS): Atenção Básica em Saúde; Atenção Psicossocial Especializada; Atenção de Urgência e Emergência; Atenção Residencial de Caráter Transitório; Atenção 16

Hospitalar; Estratégias de Desinstitucionalização; e Reabilitação Psicossocial. Deste modo, a atenção Psicossocial Especializada cabe aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), com equipe multiprofissional que deve se orientar pela ótica interdisciplinar com vistas ao acolhimento às pessoas com transtornos mentais graves e persistentes e às pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo, e não-intensivo. Atualmente são mais de 2400 CAPS distribuídos em todos os estados do país (Brasil, 2015). O CAPS se tornou importante espaço de suporte para o cuidado do sofrimento psíquico grave em seus municípios, uma vez que esta modalidade de serviço é responsável por manter o indivíduo em sua família e comunidade de origem, mesmo em momentos de sofrimento psíquico intenso, pois essa modalidade de serviço deve possuir leitos para atender, em regime de internação diária ou em tempo integral, nos casos em que o usuário está vivendo momentos de crise. Além de estruturar novos serviços, há também a integração das ações em saúde mental nas Unidades Básicas de Saúde, com equipes matriciais para dar suporte ao trabalho das equipes de Estratégia de Saúde da Família (ESF). Trabalhando de modo integrado, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) deve se posicionar, na rede de cuidados, como um articulador estratégico e trabalhar em conjunto aos demais equipamentos de saúde e sociais Ainda que tenhamos uma ampla rede para o acolhimento do sofrimento psíquico, nos dias atuais ainda encontramos demanda no âmbito da saúde mental em que outros jovens estão sendo retirados de seus lares e vivendo regime de isolamento em que cenas tão violentas retornam às páginas policiais. Por isso é fundamental que se fortaleça a articulação entre Justiça e Saúde, como os movimentos já iniciados entre o Ministério da Saúde e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH), nos últimos anos, com vistas a garantir a dignidade do portador de transtorno mental e não para legitimar práticas opressivas e excludentes. O compartilhamento de saberes deve ser instrumento de ampliação de direitos, de preenchimento de lacunas, de produção de soluções que tenham como foco a vida e a dignidade do indivíduo. Uma vez que, muitas vezes, o pedido de internação ou afastamento solicitado pelos familiares vem inserido em um delicado momento de crise ou de fragilidade de todos os envolvidos que mascaram a real necessidade de se compreender a situação. Precipitam-se ações judiciais que poderiam ser solucionadas ou encaminhadas no âmbito dos serviços de saúde. É 17

importante esta análise para que um momento de desespero do familiar não se transforme em um destino tão cruel como foi o de Damião, e de muitos outros que tiveram o mesmo fim.

Considerações finais

Os Direitos Humanos se constituíram em um significativo e importante mote de formulação de políticas expressando um conjunto de reivindicações para a vida social e política, um reposicionamento dos valores guias da vida social e a produção de novas utopias. Não só na saúde, mas interferindo na formulação de Políticas Públicas fundantes em nossa sociedade, dos quais a Psicologia e seus profissionais comprometidos com os preceitos de construção de cuidados em liberdade não podem se afastar. Diante da aproximação e a vivência cotidiana com a exclusão social e com os absurdos da realidade da vida dessas pessoas que foram desveladas com o movimento de reforma psiquiátrica no Brasil, a Psicologia conseguiu desvelar e se posicionar diante da crueldade das instituições de asilamento onde a perpetuavam a dominação, o abandono e a violência, tendo o hospital como baluarte da assistência psiquiátrica clássica. A sentença no caso Damião Ximenes foi emblemática por ser a primeira, por referir-se a sujeito com sofrimento psíquico, por consolidar a força de particulares como propulsores da defesa de direitos humanos ao transformar a sua dor privada em uma causa pública. Revelou que a advocacia em Direitos Humanos ainda é muito mais efetiva por meio de organizações não governamentais. Mas, não é suficiente para barrar as graves violações de direitos impostas a usuários e familiares do sistema de atenção à saúde mental. No entanto, ainda que simbólico, também mostrou uma grande ferida social secular, expondo a violência a que qualquer cidadão pode estar sujeito. Este caso também expôs a realidade vivida por milhares de pessoas com sofrimento psíquico grave que estavam confinados em instituições psiquiátricas e também evidenciou o grande equívoco existente na crença de que estes hospitais pudessem ser considerados como espaço de cuidado em saúde. Fundamental, por fim, ressaltar, que as conquistas alcançadas por usuários, familiares e serviços de atenção ao portador de sofrimento psíquico grave nos últimos anos significaram grandes avanços no cuidado e respeito aos direitos humanos, mas ainda não são suficientes para 18

acabar com a institucionalização, às vezes mascarada por novas formas de instituições totais, como as comunidades terapêuticas, e por novas formas de legitimação do asilamento, as internações compulsórias. Alertados para isso, mostra-se fundamental que os saberes aqui apresentados mantenham o diálogo. Que Psicologia e Direito encontrem, nas suas faltas, a complementaridade com vistas à proteção dos Direitos Humanos. Que o conhecimento produzido na academia potencialize a luta de usuários, familiares e sociedade civil organizada na proteção de conquistas consolidadas, na reivindicação de novos direitos, no alerta para possíveis violações, na abertura de agenda para novas lutas.

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