Direitos humanos e suas violações: Representações e posições dos cidadãos

July 14, 2017 | Autor: Ana Barbeiro | Categoria: Human Rights Education, Social Respresentations
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Direitos humanos e suas violações: Representações e posições dos cidadãos





Ana Barbeiro1

Ao longo das últimas

relativamente a Timor-Leste), também já foi utilizado para

décadas, os direitos humanos

justificar algumas guerras (como no caso da última invasão

têm ocupado um lugar de im-

do Iraque pela coligação liderada pelos Estados Unidos).

portância crescente nos discur-

Por outro lado, pouco se fala sobre o modo como os ci-

sos sociais, políticos e mediáti-

dadãos comuns pensam e se posicionam em relação a

cos sobre as relações entre os

estas contradições. É neste sentido que a psicologia social

países (Dunne & Wheeler, 2004).

tem um importante contributo a dar para o estudo dos

Mas estes discursos são contraditórios, e se o tema dos direi-

direitos humanos. Antes de referir esse contributo, comefonte: http://tiny.cc/wlp8gw

tos humanos tem servido para movimentos sociais de

cemos por olhar com maior atenção algumas das contradições relacionadas com os direitos humanos.

pacificação e de ajuda humanitária (por exemplo, o da solidariedade popular em Portugal, no início dos anos 90,

1

Faculdade de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lausanne.

In-Mind_Português, 2010, Vol.1, N.º 4, 22-32

Barbeiro, Direitos humanos e suas violações 22

As contradições dos direitos humanos

tegidos; os direitos colectivos são considerados como os mais fracos (Weston, 1992). Um segundo paradoxo tra-

A história dos direitos humanos está intrinseca-

duz-se no facto de que frequentemente as limitações e as

mente ligada à reacção a situações de extrema violência.

violações dos direitos humanos não são sentidas como tal

Alguns dos exemplos mais conhecidos desta relação são:

(Crosby, 1984). O desrespeito pelos direitos humanos pa-

a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”,

rece acontecer aos “outros”, em países longínquos que

proclamada em 1789 no contexto da revolução francesa

não partilham os ideais democráticos do ocidente

contra o poder absoluto do soberano; a “Bill of Rights”,

(Moghaddam & Vuksanovic, 1990; Staerklé, Clémence &

em 1791, ligada à fundação dos Estados Unidos como

Doise, 1998). Uma terceira contradição relaciona-se com

nação; e a “Declaração Universal dos Direitos do Homem”,

as relações inter-grupais no seio das sociedades democrá-

em 1948, após a II Guerra Mundial.  Os direitos humanos

ticas, frequentemente caracterizadas pela dominação,

inscrevem-se, pois, na história das sociedades contempo-

marginalização e exclusão. Por exemplo, a segurança pa-

râneas e podem ser considerados como construções cul-

rece ser um direito que se sobrepõe a outros direitos civis,

turais de carácter universalizante (Claude & Weston, 1992).

seja sob um plano estritamente físico seja nas suas di-

Ao mesmo tempo, é possível considerar que não há direi-

mensões económicas e culturais. Certos discursos políti-

tos humanos sem violência, tratando-se de dois pólos de

cos centram-se na necessidade fundamental de seguran-

um mecanismo de regulação das relações entre as insti-

ça sentida pelos cidadãos para justificar a limitação dos

tuições (por exemplo o Estado) e os indivíduos (Barbeiro &

seus direitos, dos direitos de alguns grupos sociais ou

Machado, 2010).

mesmo o exercício de certas formas de violência (Landau

Como já foi referido, as dinâmicas que ligam os

direitos humanos e a violência são paradoxais. Em primeiro lugar, se no plano dos princípios os direitos humanos não são hierarquizáveis, a sua aplicação implica frequentemente que a protecção de certos direitos exija a limitação de outros (Drzewicki, 1998). A ponderação do valor de cada direito face aos outros varia consoante o contexto

et al., 2004). Assim, os direitos não se encontram uniformemente distribuídos nas hierarquias sociais, sendo mais fácil para os membros de alguns grupos usufruir de um leque alargado de direitos, enquanto que os membros dos grupos socialmente desfavorecidos têm acesso a um leque mais restrito (Staerklé, Delay, Gianettoni & Roux, 2007).

histórico e cultural. Alguns teóricos dos direitos humanos consideram também que os sistemas ideologico-politicos têm tendência a valorizar alguns tipos de direitos face a

Os direitos humanos como representações sociais

outros. Com efeito, pode falar-se de um diferencial de força de aplicabilidade entre três grandes categorias de direi-

tos 1:

os direitos civis e políticos, são considerados fortes;

direitos humanos deve muito a Willem Doise e seus cola-

os sociais, económicos e culturais são relativamente pro-

boradores. Durante as duas últimas décadas, esta equipa

1

No âmbito da psicologia social, o estudo dos

Ver Glossário para um desenvolvimento sobre a tipologia dos direitos humanos que os classifica em “gerações”.

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procurou compreender o modo como os cidadãos co-

tões sobre os seguintes aspectos: a compreensão do

muns se posicionam face aos direitos humanos e às suas

artigo por parte do participante; a facilidade e capacidade

violações. Nesta abordagem, os direitos humanos são

que o governo, os partidos políticos e os indivíduos teriam

conceptualizados como representações sociais 1 (cf. Doise,

em aplicá-lo; o nível de concordância com as ideias nele

20022).

Assim, a Decla-

expressas; e o nível de

ração Universal dos Di-

envolvimento colectivo

reitos do Homem, como

que os participantes

texto fundamental dos

estavam dispostos a ter

direitos humanos, pode

para fazer respeitar

ser vista como um con-

esse direito. No mesmo

junto de princípios (“idei-

questionário eram ainda

as-força”) visando orga-

recolhidas informações

nizar as relações de in-

sobre as tensões soci-

terdependência entre os

ais percebidas pelos

seres humanos.

Estas

interrogados, os seus

ideias-força não dizem

valores e as injustiças

respeito apenas aos

experienciadas.

textos legais e aos saberes dos especialistas,

Os resulta-

mas funcionam como

dos mostraram que,

referenciais para a estru-

nos diferentes países,

turação de saberes e

os direitos eram perce-

posições comuns entre

bidos de acordo com

os cidadãos, em diferen-

uma estrutura comum,

tes contextos nacionais

a qual traduzia também

(Doise, 2002; Doise,

a visão dos peritos

Spini, & Clémence,

acerca dos diferentes

1999).

tipos de direitos humanos. Porém, esta com-

Num estudo

preensão comum não

realizado em 35 países,

exclui a existência de

Doise e seus colabora-

fonte: http://tiny.cc/exp8gw

variações entre indiví-

dores (1999) interrogaram estudantes universitários acer-

duos e entre grupos nacionais quanto aos níveis de ade-

ca dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos

são e à valorização dos diferentes direitos. Os investigado-

Humanos. Para cada direito, foram colocadas oito ques-

res identificaram quatro tipos de posições em relação aos

1

Ver Glossário para uma definição de “representações sociais”.

2

Para uma revisão desta linha de investigação até ao fim dos anos 90, consultar a obra traduzida para Português “Direitos

do homem e força das ideias” (Doise, 2002). Este livro é de leitura relativamente acessível e nela se explica o conceito de representações sociais e a forma como foi aplicado ao estudo dos direitos humanos pela equipa liderada pelo autor.

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direitos: simpatizantes (os que aderiam mais fortemente a

grande importância os contextos de vida e as experiências

valores universalistas), personalistas (confiando mais em si

individuais na modelação destas visões. Um estudo mais

próprios do que no Estado para fazer valer os direitos),

recente realizado em 55 países acerca das percepções

cépticos (os mais pessimistas em relação à possibilidade

dos cidadãos sobre o respeito pelos direitos humanos no

de fazer respeitar os direitos humanos em geral) e gover-

seu país obteve resultados no mesmo sentido: a constata-

namentalistas (os que confiam nas instituições e acham

ção da existência de uma base comum de compreensão

que pouco podem fazer pessoalmente para reforçar o

dos direitos e de variações inter-individuais, inter-grupais e

respeito pelos direitos).

entre países (Carlson & Listhaug, 2007).

Ao nível inter-individual, estas diferentes posições

relacionam-se com as experiências de discriminação social, com os níveis de percepção de conflito social e

As posições dos indivíduos face às violações dos

com os valores que são mais importantes para os indiví-

direitos humanos

duos (Doise et al, 1999; Spini & Doise, 1998). Por exemplo, os indivíduos do grupo dos “cépticos” referem mais experiências pessoais de discriminação e têm uma maior percepção das tensões sociais.

Se o conhecimento e a adesão aos direitos hu-

manos são amplamente partilhados, como se posicionam os cidadãos em relação às suas violações? Diversos estudos mostraram que, neste caso, o consenso diminui. Num

Ao nível dos contextos nacionais, as posições

estudo em cinco países, Clémence, Doise, De Rosa e

dos indivíduos variam de acordo com as suas percepções

Gonzalez (1995) verificaram que, perante algumas situa-

sobre a capacidade dos Estados e dos cidadãos para

ções concretas de violação dos direitos humanos, alguns

fazer respeitar os direitos humanos. Mas ao mesmo tem-

princípios permaneciam intocáveis: os inquiridos exprimi-

po, estas percepções relacionam-se também com o grau

ram atitudes de condenação e identificaram-nas como

efectivo de respeito pelos direitos humanos no próprio

violações dos direitos humanos. Os princípios postos em

país. Assim, para dar um exemplo, os indivíduos vivendo

causa nestas situações eram a proibição da tortura, a li-

em países onde é mais problemático o respeito pelos

berdade de opinião e o respeito governamental pelos direi-

direitos humanos têm uma elevada percepção da existên-

tos jurídicos e democráticos dos cidadãos. No entanto, a

cia de conflitos sociais e pouca confiança na capacidade

condenação das violações dos direitos humanos diminuiu

das instituições para fazê-los respeitar. Estes indivíduos

em outros tipos de situações, tais como: a expulsão de

situam-se no grupo dos “personalistas”. Por outro lado,

estrangeiros sob a acção governamental; a existência da

em países ditos “desenvolvidos”, com instituições mais

pena de morte na ordem jurídica; a intromissão na vida

activas na implementação dos direitos humanos, os parti-

privada dos indivíduos (da parte, do governos, no caso de

cipantes posicionam-se maioritariamente nos grupos dos

concessão da nacionalidade, e da parte das empresas, no

“simpatizantes” e dos “governamentalistas” (Doise et al,

caso de contratação de trabalho). Assim, outros princípios,

1999).

ligados ao controlo social por parte das instituições, foram

relativizados. Parecem existir alguns direitos que são con

Em suma, este estudo mostrou que os direitos

siderados invioláveis e outros que podem ser relativizados

humanos constituem representações largamente partilha-

em situações que opõem os interesses das instituições

das nas sociedades actuais; no entanto, a forma como

aos dos indivíduos e que se relacionam com o controlo

são vistos varia em função da pertença a diferentes grupos

social. Os participantes do estudo que relativizaram os

socio-culturais (neste caso, grupos nacionais), sendo de

direitos indicaram, nas respostas ao questionário, opiniões

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fonte: http://tiny.cc/z6p8gw

fatalistas sobre as relações sociais, tolerância às ingerên-

O desfasamento princípios-aplicação e a legitimação

cias das instituições na vida dos cidadãos e uma concep-

das desigualdades sociais

ção restritiva dos direitos individuais.

Dos estudos apresentados na secção anterior

Outros estudos mostraram que, em certas toma-

parece emergir que, também em relação às violações dos

das de decisão sobre a relação entre os direitos e as suas

direitos, o pensar dos cidadãos comuns se pauta por con-

violações, os indivíduos evocam as instituições simultane-

tradições semelhantes àquelas que já foram evocadas

amente como fonte e limite dos direitos (Doise, 2002; Spini

neste artigo, a propósito das abordagens teóricas aos

& Doise, 2005). Com efeito, alguns dos modos como as

direitos humanos. Trata-se de um desfasamento entre os

instituições limitam (ou mesmo desrespeitam) os direitos

princípios, na sua forma abstracta, e sua aplicabilidade

humanos, contribuindo para a manutenção da injustiça

(principle-application gap) (Jackman, 1978). No que res-

social, podem ser vistos como formas de violência – a

peita aos direitos humanos, este desfasamento está liga-

violência institucional (Barbeiro & Machado, 2010).

do, de acordo com Staerklé e Clémence (2004), a um dilema ideológico entre duas normas de justiça: a norma de sanção de actos condenáveis (aplicação baseada no

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contexto) e a norma de protecção dos direitos das pesso-

área é o estudo das relações hierárquicas inter-grupais. A

as que cometem esses actos (aplicação baseada nos di-

psicologia da legitimação visa explicar como algumas ati-

reitos). Assim, mesmo se as pessoas estão de acordo

tudes, crenças e estereótipos permitem legitimar e manter

com os princípios gerais dos direitos humanos, têm em

certas formas de organização social (baseadas na desi-

conta os contextos e os indivíduos aos quais se aplicam

gualdade), fornecendo uma sustentação ideológica aos

esses direitos. Numa das suas pesquisas, Staerklé e

sistemas sociais e políticos. Entre os elementos de base

Clémence (2004) mostraram que, em situações concretas,

desta ideologia podem referir-se as crenças na causalida-

se os indivíduos cometeram actos susceptíveis de conde-

de e no controlo pessoal dos acontecimentos, num siste-

nação (tais como tráfico de drogas e homicídio), haverá

ma social meritocrático, numa “ética protestante” do tra-

uma tendência a ser mais tolerante com a violação dos

balho e a crença num mundo justo 2 (Jost & Hunyady,

seus direitos. No entanto, esta tendência também não é

2003). Assim, a aceitação da ordem social pelos membros

consensual: no seu estudo, os investigadores verificaram

dos grupos favorecidos e pelos dos grupos desfavoreci-

que se a maior parte dos participantes seguia a lógica

dos pode repousar na partilha de uma “motivação para a

precedente (aplicação baseada no contexto), outros con-

justificação do sistema”. As injustiças

denavam a violação dos direitos dos indivíduos pelas insti-

acrescentar-se, as violações dos direitos humanos) são

tuições, independentemente dos actos desses indivíduos

explicadas, racionalizadas e justificadas de modo a que as

(aplicação baseada nos direitos). Num outro estudo reali-

pessoas sejam vistas como merecedoras da posição

zado em Portugal sobre a aceitação do uso de tortura e

social que ocupam e do tratamento que recebem. A “teo-

de violência policial pelas instituições governamentais foi

ria da justificação do sistema” é precisamente uma das

também verificado este desfasamento. Dependendo das

abordagens da psicologia da legitimação que sublinha a

situações (perigo iminente para as populações, desordem

“função paliativa” das ideologias da justificação (Jost &

social) ou do tipo de actores envolvidos (terroristas, crimi-

Banaji, 1994; para uma revisão recente ver Kay et al.,

nosos) alguns princípios eram relativizados, restringindo os

2007). Deste modo, se o desfasamento entre os princípios

direitos dos indivíduos em favor de um maior controle do

de justiça social (ou dos direitos humanos) e as injustiças

Estado (Barbeiro, Spini & Machado, 2010).

sentidas ou presenciadas quotidianamente podem causar

sociais (e, pode

um mal-estar nos indivíduos, uma forma de lidar com esse Assim, o contexto e o “tipo de actores” envolvidos parece

mal-estar é fazer apelo a um sistema de crenças que justi-

essencial para a tomada de posição sobre as violações

fique esta dissonância.

dos direitos humanos. Se, como foi dito, os direitos humanos são princípios abstractos visando regular as relações sociais, é precisamente nas dinâmicas sociais que a explicação para este desfasamento deve ser procurada.

Conclusão



Algumas teorias sobre as relações inter-grupais,

Neste artigo apresentaram-se alguns contributos

designadas genericamente por “psicologia da legitima-

da psicologia social para o estudo dos direitos humanos.

ção”1 (Jost & Major, 2001), apresentam perspectivas inte-

Esta disciplina tem contribuído para compreender os mo-

ressantes sobre esta questão. Um aspecto fulcral desta

dos como os cidadãos comuns concebem e se posicionam em relação aos direitos humanos e às suas violações.

1

Ver Glossário para mais esclarecimentos sobre a “psicologia da legitimação”.

2

Ver Glossário sobre o conceito de “crença num mundo justo”.

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Uma possível aplicação dos resultados destes

estudos diz respeito à forma como se aborda a educação para os direitos humanos. Não é suficiente educar para os princípios; é central trabalhar sobre a sua aplicabilidade em contextos concretos e situações específicas. É também importante abordar, neste âmbito, as relações intergrupais, o modo como se constroem as imagens da ordem e da desordem social, as crenças e as normas de justiça... enfim, na educação para os direitos humanos não se podem ignorar as representações sociais sobre os actores envolvidos nas situações concretas e quotidianas em que os princípios dos direitos humanos se deparam com limitações à sua aplicabilidade1.

Glossário

fonte: http://tiny.cc/pat8gw

De seguida, sintetizam-se os aspectos fulcrais destes contributos. Apesar de um consenso alargado sobre a importância dos direitos humanos para cidadãos que vivem em diferentes contextos, também se verifica uma aceitação da sua violação. Esta concessão em relação aos princípios

Gerações dos direitos humanos: a forma mais usual de classificação dos direitos humanos é a tipologia por “gerações”. Os direitos de primeira geração (civis e políticos) foram institucionalizados a partir das Revoluções do séc. XVIII. Implicam um recuo da acção do Estado e são consi-

parece basear-se numa tomada de decisão que tem em

derados direitos fortes. Os direitos económicos, sociais e

conta os aspectos contextuais da situação concreta de

culturais (de segunda geração, reforçados progressiva-

violação. Estes aspectos contextuais dizem respeito, por exemplo, às características e à pertença grupal dos indivíduos cujos direitos estão a ser violados; à avaliação da gravidade da violação (especialmente se ameaçadora da paz e da ordem social); e ao perpetrador da violação dos direitos (sendo que às instituições é conferida maior margem de tolerância). De acordo com os contributos das teorias da legitimação social, o estudo das relações inter-

mente após a Segunda Guerra Mundial) têm um potencial de aplicabilidade relativo, pois implicam um papel activo das instituições para a sua concretização. Os direitos colectivos, de desenvolvimento recente nas convenções internacionais, são os direitos fracos (Weston, 1992). Exemplos destes são o direito ao ambiente e os direitos das minorias e grupos dominados (mulheres, deficientes, migrantes, minorias étnicas). Esta classificação tem sido cri-

grupos pode ser uma chave importante para a compreen-

ticada por justificar a atribuição de um peso diferente aos

são do modo como os indivíduos ponderam estes factores

vários tipos de direitos, legitimando o facto de os Estados

contextuais.

1

Para um exemplo de programa de educação para os direitos humanos, consultar Barbeiro (2007). Neste artigo é relatada

uma forma de contextualizar os problemas de direitos humanos no exercício da profissão de psicólogos e na deontologia da profissão, através de diversas actividades de pesquisa e discussão com alunos da licenciatura em psicologia.

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não se empenharem igualmente na concretização de to-

também manter a crença de que o mundo é justo (Jost &

dos.

Hunyady, 2005) (cf. infra).

Representações sociais: o conceito de representações

Crença num mundo justo: de acordo com Lerner

sociais foi proposto por Moscovici (1961/2004), num estu-

(1980), os seres humanos têm uma “necessidade

do sobre a forma como o senso-comum se apropriou de

fundamental” de acreditar que o mundo é justo, que cada

alguns conceitos da psicanálise. No presente artigo utiliza-

um tem o que merece, e que se alguns se encontram em

se a teorização de Doise, Clémence e Lorenzi-Cioldi

situações desfavoráveis é porque de algum modo contri-

(1992). Segundo estes investigadores, as representações

buíram para isso. Esta crença permite que indivíduos se

sociais são “mapas mentais” que organizam as relações

esforcem para ultrapassar as dificuldades quotidianas,

simbólicas entre os indivíduos. Estas “imagens cognitivas”

esperando que no futuro o seu esforço possa ter uma

não são puramente individuais, mas são construídas e

justa recompensa. Se bem que Lerner postule que esta

partilhadas no seio dos grupos, fazendo parte dos siste-

crença é universal, considera que a forma como os dife-

mas colectivos de compreensão do mundo. Apesar de

rentes grupos sociais concebem um “mundo justo” de-

terem uma organização comum, podem variar entre indiví-

pende das normas de justiça de cada grupo.

duos e entre os grupos. As representações sociais funcionam como princípios que organizam as tomadas de posição dos indivíduos em relação aos fenómenos sociais. Por exemplo, as posições de maior ou menor tolerância às

Referências

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In-Mind_Português, 2010, Vol.1, N.º 4, 22-32

Barbeiro, Direitos humanos e suas violações 31

Autora Ana Barbeiro licenciou-se em psicologia na Universidade do Porto, tendo prosseguido os estudos de mestrado em psicologia da justiça na Universidade do Minho. Actualmente é assistente na Universidade de Lausanne, estando integrada no laboratório interdisciplinar de investigação sobre os “percursos de vida” (Labo Pavie), onde desenvolve o doutoramento. Na sua investigação procura articular as abordagens da psicologia da justiça, da psicologia social e da life course research, centrando-se especificamente nas representações sociais dos direitos humanos e nas experiências de violência institucional dos imigrantes. E [email protected]

In-Mind_Português, 2010, Vol.1, N.º 4, 22-32

Barbeiro, Direitos humanos e suas violações 32

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