Direitos Humanos em Quadrinhos: informação, educação e a autonomia do \"meio\"

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Direitos Humanos em Quadrinhos: informação, educação e a autonomia do “meio”



Prof. Dr. Vitor Blotta Departamento de Jornalismo e Editoração ECA-USP Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-USP, IEA-USP) Bruno Conrado Bacharel em História pela USP Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-USP, IEA-USP)

Resumo: Este artigo procura discutir o impacto dos quadrinhos sobre concepções de acesso à informação e educação em direitos humanos, por meio de análise de conteúdo de obras estatais e independentes da área. Para construir o ferramental analítico, iniciamos com breves retrospectivas históricas dos quadrinhos na Europa e no Brasil, com base em textos de Alan Moore e Waldomiro Vergueiro. Os elementos dos quadrinhos são então relacionados com aspectos de visibilidade, narrativa e identificação, sugerindo novas perspectivas de acesso à informação e educação. Os resultados da análise das obras indicam que está na autonomia e equilíbrio do “meio” dos quadrinhos em relação a outros discursos sua capacidade de inovar o acesso à informação e a educação em direitos humanos. Palavras-chave: Quadrinhos, direitos humanos, acesso à informação, educação em direitos humanos Abstract: This article discusses the impacts of comics on concepts of access to information and human rights education, through content analysis of state and independent works in the area. In order to build the analytical instruments, we begin with brief historical accounts of comics in Europe and Brazil having as bases texts by Alan Moore and Waldomiro Vergueiro. The distinctive elements of comics are hence related to aspects of visibility, narrative and identification, suggesting new approaches of access to information and human rights education. The analyses of the works indicate that the autonomy of the medium in relation to other discourses is what helps it to innovate access to information and human rights education. Keywords: Comics, human rights, access to information, human rights education

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Introdução O propósito deste texto é discutir os impactos de obras de quadrinhos sobre os conceitos de acesso à informação e educação em direitos humanos, por meio de análise de conteúdo de quatro obras da área. A pesquisa partiu das hipóteses de que os quadrinhos são capazes de fazer avançar uma perspectiva mais social e republicana de acesso à informação, derivada de críticas à unilateralidade dos fluxos de informação da comunicação de massa (Fischer, 1984), para além da dicotomia entre concepções liberais (não restrição ao acesso) e redistributivas (com vistas à eliminar desigualdades) de acesso à informação. Essa perspectiva republicana seria qualificada pelos quadrinhos a partir de seus elementos de visibilidade, narrativa e capacidade de gerar identificação entre leitor e personagens. Em termos de educação em direitos humanos as hipóteses são semelhantes. Por meio das dimensões estéticas e dramáticas dos quadrinhos, podem ocorrer relações de aprendizagem mais profundas entre estudantes, a partir identificações com as narrativas e conteúdos biográficos das obras. Essa abordagem difere da concepção mais tradicional de transmissão de conhecimento, aproximando das noções de emancipação e autonomia inspiradas em Paulo Freire a Theodor Adorno (Bittar, 2007). Para construir as ferramentas de análise das obras, foi necessário discutir as características distintivas dos quadrinhos e suas interfaces com acesso à informação e educação em direitos humanos. Isso foi feito por meio de uma breve retomada histórica do gênero na Europa e no Brasil, seguida de uma reflexão sobre esses elementos distintivos e seus impactos sobre os acesso à informação e educação (Partes I e II). Com base nos critérios resultantes, a Parte III do texto se debruça sobre quatro obras de quadrinhos relacionados a direitos humanos, duas delas produzidas pelo Estado e as outras duas por iniciativas 96

independentes. Ao final, concluímos a análise resumindo os resultados e levantando questões sobre as tensões do meio quadrinhístico com outros discursos, como o jornalístico e o político. Parte I - História e autonomia dos quadrinhos História dos quadrinhos na Europa: contracultura, luta de classes e diversidade de formatos Os quadrinhos são, desde sua origem, uma forma de contracultura. Segundo Alan Moore em seu texto Buster Brown at the Barricades (2012), os quadrinhos sempre foram vistos como corruptores morais e leitura dos “iletrados”. O renomado autor da 9a Arte defende que apesar da recente “boa reputação” que o “meio” procura manter, isso não deve fazer esquecer sua história obscura e seu caráter satírico e crítico em relação ao poder. Moore ensina que desde a Idade Média na Europa os cartuns e tiras de desenhos refletiram o submundo e o popular, representando de forma grotesca as figuras do poder. Da crítica panfletária às figuras do Antigo Regime à reprodução ainda separada de imagens e palavras pelas primeiras prensas mecânicas, as “tiras cômicas” tinham um caráter majoritariamente satírico (Booker, 2014). Durante a industrialização no século XVIII, já presentes em suplementos dos jornais, passaram a retratar os medos da vida cotidiana. Somente no final do século XIX, com o avanço das técnicas de impressão, que teriam surgido as primeiras publicações no formato comic book que hoje denominamos histórias em quadrinhos (Moore, 2012). No início do século XX, a discussão sobre classes sociais também cumpriu um papel importante na formação do “meio” dos quadrinhos, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. As rápidas mudanças nos padrões de sociabilidade e a emancipação de novos atores sociais, como 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

as mulheres e os jovens, expressaram-se em seus conteúdos. Foi somente então que os quadrinhos passaram a ganhar mais força e complexidade artística e narrativa, assumindo a alcunha de “romances gráficos” (graphic novels) (Moore, 2012). No pós-guerra, revistas dos EUA como Mad contestaram as politicas anticomunistas do Macarthismo, e mesmo com a Comics Code Authority, normativa que estipulou conteúdos proibidos para os quadrinhos no país em 1952, ainda foram produzidas narrativas inovadoras (Moore, 2012). A apropriação ideológica do “meio” e uma separação entre quadrinhos mainstream e alternativos, passa a ser visível com o patriotismo dos super-heróis de um lado, como Capitão América e a Liga da Justiça, e obras de contracultura, como os Freak Brothers. Robert Crumb e Art Spiegelman são alguns dos autores inspirados por essa dinâmica entre obras convencionais e críticas à moral e à política. A abertura maior nos anos 80 para os gêneros que ajudaram a criar, teria levado o “meio” a deixar de ser somente de uma “linguagem para crianças” (Moore, 2012). Próximos dos anos 2000, as séries de histórias futuristas como 2000AD tonaram-se as expressões mais frequentes dos quadrinhos. Seus temas distópicos correspondiam às incertezas e ceticismos com as medidas de austeridade econômica dos governos Thatcher e Reagan. Com a queda do muro de Berlim e a apropriação ainda maior por politicas neoliberais, a indústria passa a exigir novos criadores e formatos inovadores, capazes de se contrapor às obras mainstream sem deixar de vender. É o caso marcante de Watchmen (Moore e Gibbons, 1986-1987) Se Maus de Spiegelman (1986) é uma das expressões mais conhecidas de quadrinhos que tratam de graves violações de direitos humanos, Joe Sacco pode ser considerado herdeiro e aprofundador desse gênero, mais tarde assumindo a forma de “jornalismo em quadrinhos” 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

(Santos e Cavignato, 2013). Vide suas obras como Palestina (1996), O Mediador: Uma História de Sarajevo (2003) e mais recentemente Notas Sobre Gaza (2009). Foi então que, segundo Moore, “o médium estava finalmente se desenvolvendo para o instrumento inteligente, sofisticado e diversamente útil que ele foi feito para ser” (2012:24. Trad. livre). Assim, se a dimensão política e a diversidade de formatos são os critérios distintivos mais importantes dos quadrinhos para Moore (2012), passa a ser necessário questionar em que medida esses diferentes discursos que os atravessam podem também instrumentalizá-los. História dos quadrinhos no Brasil: cultura de massa, identidade nacional e antropofagia cultural Waldomiro Vergueiro é um dos estudiosos pioneiros a pensar os quadrinhos como área científica no Brasil. Sua leitura sobre a história do “meio” se nutre da crítica da indústria cultural (Horkheimer e Adorno, 1985), complementada pelas noções foucaultianas dos saberes-poderes para explicar as variações no status e na autonomia dos quadrinhos. Vergueiro (2011) argumenta que a referência cultural literária do Brasil é predominantemente europeia, enquanto que os quadrinhos são mais marcados pela exportação cultural de massas realizada pelos EUA no século XX, em ligação estreita com o cinema. Nesse processo, a influência europeia nos quadrinhos brasileiros é gradativamente superada pela americana, em forma e conteúdo, levando à produção de revistas próprias, fora dos jornais e seus suplementos. A partir de então, forma-se um mercado capaz de adotar o modelo comic-book dos EUA. A autonomia representada pelas publicações independentes dos jornais e periódicos confunde-se com a afirmação do padrão estadunidense nos quadrinhos nacionais. Vergueiro também interpreta a 97

história dos quadrinhos no Brasil como a passagem de um discurso “não competente” para “saber dominante”. Seu estudo sobre como o Brasil experimenta essa passagem explica também as dinâmicas culturais brasileiras e suas formas de estabelecer hierarquias entre linguagens “dominantes” e “assessórias” (2011). Esse deslocamento de um saber popular para saber dominante revela um problema que uma leitura crítica não pode se furtar a fazer: o fato de que a autonomia do meio dos quadrinhos ocorre somente quando há essa distinção entre “baixa” e “alta” cultura. Esse aparente paradoxo de que os quadrinhos somente ganham autonomia ao assumir um caráter não popular, só pode ser contornado por uma relativização dessa distinção, tomando-a como a especialização de um saber capaz de congregar gêneros mais populares e mais sofisticados. Mesmo com expressões mais contemporâneas e sofisticadas, os conteúdos satíricos e transgressores continuam a vicejar nos quadrinhos. A força de sua linguagem influencia até mesmo mudanças nos jornais, como no exemplo da expressão Yellow Journalism, aparentemente referência do quadrinho dos EUA Yellow Kid, para retratar o fenômeno do jornalismo de fait diver, ou de “amenidades” (Booker, 2014). Outro tópico fundamental abordado nos estudos de Vergueiro é a construção de um quadrinho nacional concomitante à formação de uma “identidade brasileira”. Nesse processo, os elementos de crítica política e dos costumes da sociedade brasileira também são ressaltados, em alguns casos de maneira claramente “antropofágica”, no sentido oswaldiano do termo (Andrade, 1976), como o personagem de origem africana Benjamin, inserido por autores brasileiros na adaptação brasileira de Buster Brown (Chiquinho). Vergueiro (2008) entende que o passo final para o estabelecimento da 98

autonomia dos quadrinhos no Brasil for a formação de uma comunidade de pesquisadores e um conjunto de estudos e cursos acadêmicos de graduação e pósgraduação sobre quadrinhos. A Influência de obras como Comics and Sequential Art (Eisner, 1985) e Understanding Comics (McCloud, 1993) e seu reconhecimento nas universidades brasileiras significa que os quadrinhos se consolidaram como arte autônoma e linguagem específica de compreensão do “real”. Por fim, é importante notar, ainda com Vergueiro (2011), que a autonomia dos quadrinhos no Brasil não pode ser compreendida como uma sobreposição a outros saberes, ou uma independência plena com relação aos discursos de outras esferas sociais e culturais. Tratase, para usar a linguagem de Bourdieu, de um campo que disputa com outros sua legitimidade como arte e saber autônomos. Parte II - Discussão conceitual e critérios de análise Quadrinhos como forma de comunicação do direito e de reconhecimento social A valorização recente de obras em quadrinhos para caracterizar biografias, atos históricos e questões de relevância social, como os direitos humanos, representa uma tendência de se qualificar o acesso à informação como uma liberdade positiva. Isto é, o uso dos quadrinhos para a promoção de temas sociais demonstra não só um interesse do Estado e de atores sociais no fornecimento de informações de interesse público, mas também uma preocupação de envolvê-las como elementos narrativos e visuais capazes de promover identificações. Numa esfera pública em que predomina uma comunicação mediada por imagens (Habermas, 2006; Debord, 1997, Eisner, 1985), não só as chances de instrumentalização e “sensacionalismo” estão em jogo, mas também de transcender o monitoramento mais informativo e 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

quantitativo sobre direitos humanos. Com inspiração nas obras de Habermas sobre direito e democracia deliberativa (1996, 2009), é possível entender que tão importante quanto garantir direitos individuais de comunicação e participação, é a necessidade de o Estado e outros entes sociais municiarem a esfera pública com informações e conteúdos qualificados. Trata-se de uma prática de acesso à informação, ou mais amplamente de “comunicação do direito”, sem a qual as pessoas não podem exercer de maneira plena seus direitos de comunicação, participação e fiscalização do poder (Blotta, 2013). Com os elementos narrativos e visuais dos quadrinhos é possível qualificar essa demanda republicana por acesso à informação, gerando identificações mais profundas com experiências de sofrimentos de outros e despertando aquilo que Honneth (2003) denomina reconhecimento social; para Rorty a solidariedade (Raeber, 2012). Parece estar nesta capacidade de apresentar fatos de modo visual e narrativo o diferencial dos quadrinhos em termos de um acesso à informação qualificado sobre direitos humanos. A partir desses elementos facilita-se a aproximação de culturas distintas, visões de mundo e histórias de vida que de outro modo seriam apresentados como “blocos de informação”. Não é por acaso que o trabalho de Joe Sacco em Notas sobre Gaza (2009) nasce de seu inconformismo com um relatório extremamente fragmentado e meramente informativo da ONU sobre um massacre de civis palestinos por soldados israelenses ocorrido nos anos 50, próximo ao local onde hoje é a Faixa de Gaza. Mas como o potencial de instrumentalização política ou afetiva dos quadrinhos não pode ser negligenciado, sua análise deve levar em conta as tensões de seus elementos visuais, narrativos e transgressores com os discursos informativos e educativos presentes nas 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

obras. Caso seus elementos distintivos sejam sobrepostos por esses discursos, corre-se o risco de instrumentalização, e com isso, perda da autonomia do “meio”. Quadrinhos como forma de transgressão política e estética O texto de Moore discutido na parte I destacou o caráter transgressor e a variabilidade de formatos do meio dos quadrinhos. Isso significa que além de sensível a injustiças políticas e sociais, sua variabilidade pode garantir maior impacto no tratamento de alguns assuntos, como direitos humanos. Essa característica mais atual de variabilidade de formatos e gêneros também pode ser caracterizada como um potencial de ruptura e transgressão à própria estética do “meio”. Nesse passo, podemos verificar se as obras a serem analisadas desafiam os próprios modelos prévios de se fazer quadrinhos, estendendo seus potenciais linguísticos e criando novos formatos, ou se tratam-se de pressões informativas ou educativas exageradas sobre o “meio”. Para analisar esses elementos, portanto, é necessário perguntar em que sentido essas obras rompem como normas e costumes políticos e sociais, vis a vis com as formas mais tradicionais dos quadrinhos. Quadrinhos como forma de aprendizagem pela experiência com o outro Os potenciais educativos dos quadrinhos, segundo Vergueiro e Santos (2012), derivam da facilitação da compreensão trazida pela suavização da linguagem e diagramação. Por isso seriam complementares ao texto didático. Com essa facilitação do acesso, os quadrinhos potencializam identificações dos leitores com as narrativas, podendo superar nesse quesito os romances literários, tidos por Rorty como o “gênero da democracia” (Raeber, 2012). Vale lembrar novamente, contudo, que a ideia da educação como emancipação 99

por meio dos quadrinhos também nos leva ao problema da instrumentalização da arte ou dos quadrinhos em nome de interesses “externos” ao “meio”. Benjamin (1975) já havia alertado sobre essa questão ao pensar na autonomia da obra de arte na era de sua reprodutibilidade. Dado que a arte – como a arte sequencial - está sempre ligada às suas formas e interesses de produção, seu equilíbrio com outros discursos talvez seja o critério principal de avaliação de seus potenciais educativos e informativos.

1. Esta obra foi posteriormente publicada em versão ampliada sob o título de Notas de Um Tempo Silenciado, com um epílogo que traz informações sobre a pesquisa realizada pelo autor em cada capítulo (Porto Alegre: Besouro Box, 2015).

Parte III - Análise das obras estatais e independentes Para a análise que se segue, foram selecionadas duas obras de quadrinhos com temas de direitos humanos financiadas pelo Estado e duas produzidas por mídias independentes. Essa escolha buscou evidenciar possíveis contrastes em seus potenciais informativos e educativos, dadas as exigências normativas de cada um. Todas foram publicadas ao menos nos últimos dez anos e têm um evidente intuito de promoção de temas diversos sobre direitos humanos. As quatro obras escolhidas foram: Os Direitos Humanos, de Ziraldo (2008), financiada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; HQ SPE da Unesco, de Eddy Barrows e outros autores, pelo Ministério da Saúde (2013); Pátria Armada Brasil, de Robson Vilalba (2014), publicada no Jornal Gazeta

do Povo, de Porto Alegre, na ocasião dos 50 anos do Golpe Militar de 1964, e Meninas em Jogo, de Alexandre de Maio (2014), da plataforma digital Pública. Não foi levada em conta a diversidade de formatos das publicações. Das obras estatais, Os Direitos Humanos foi impressa no modelo clássico de quadrinhos e também está disponível em formato digital, enquanto que a HQ SPE, embora produzida para impressão no mesmo formato, acabou não sendo aprovada para impressão pelo Ministério da Saúde, restando somente em versão digital. Das obras independentes, Pátria Armada foi publicada em cinco edições diárias do jornal Gazeta do Povo1 ao passo que Meninas Armadas foi produzida como reportagem digital em quadrinhos. Obra Estatal 1 - Os Direitos Humanos Ziraldo/Ministério da Educação A história em quadrinhos “Direitos Humanos” (2008) escrita por Ziraldo em colaboração com o Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Direitos Humanos não tem formato narrativo. A finalidade central da obra é claramente educativa, de ampla circulação gratuita, onde há explicações acerca de diversos temas da área que formam a cidadania. Tais textoa são complementados por breves quadros que apresentam a personagem Menino Maluquinho e sua turma em situações que elucidam o tema de forma lúdica.

Figuras 1 e 2

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Obra Estatal 2 - Projeto HQ SPE Histórias em quadrinhos - Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas O projeto da Unesco em parceria com o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação é formado por um conjunto de seis revistas de histórias em quadrinhos que são escritos e desenhados por uma série de artistas diferentes, com destaque

para o volume inicial que é assinado por Eddy Barrow, desenhista brasileiro com trabalhos para a editora DC Comics. Os quadrinhos também são acompanhados por um Guia para os professores, que busca orientar o uso em sala de aulas, além de um CD Rom com atividades interativas, como jogos de perguntas e respostas. Com uma linguagem jovem e acessível, os volumes abrangem temas de sexualidade colocando luz sobre a discussão em homossexualidade, gravidez indesejada, a prevenção contra o vírus HIV e DST. As histórias são claramente narrativas e levantam as questões por meio de dúvidas dos personagens, que discutem os temas enquanto decidem montar uma revista para informar melhor a escola, após a demissão de um professor de História que pede um trabalho sobre homossexualidade ao longo das sociedades.

O objetivo do material era a distribuição nas escolas, mas foi vetado pelo então Ministro da Saúde Alexandre Padilha, de acordo com reportagem do site www.estadao.com.br/saude, de 13 de março de 20132, “por não trazer

as mensagens que sua pasta quer reforçar: que aids não tem cura e que a prevenção é indispensável”. Ao abordar o tema, a obra se preocupa mais com a inclusão e o fim do preconceito contra pessoas que são 2. Último acesso em 21/01/2016. soropositivo.

O material é diretamente educativo e tem abordagem infantil, oferecendo uma primeira aproximação do leitor com termos como “sociedade”, “cidadania” e “direitos” de forma lúdica, com o auxílio das tiras com Maluquinho e sua turma. Talvez um uso mais amplo da linguagem gráfica e narrativa no lugar dos textos tornasse o material mais atrativo, porém a linguagem simples traz o tema de forma palatável e convidativa para a criança ou público nãofamiliarizado com o tema.

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Figuras 3 e 4

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Obras independentes Obra Independente 1 - Pátria Armada Brasil

Figuras 5 e 6

Criado por Robson Vilalba e publicado como um material especial do jornal Gazeta do Povo de Porto Alegre em lembrança dos 50 anos do golpe militar no Brasil, Pátria Armada Brasil é um conjunto de histórias que protagonizam personagens e movimentos que atuaram no período como resistência contra o poder ditatorial. As histórias têm grande destaque pela arte visual e usam majoritariamente um narrador onisciente e ora testemunhal, além de quadros explicativos que explicitam os contextos das narrativas. Existe na obra um evidente teor jornalístico, pois se preocupa com episódios factuais que, embora restritos a diálogos, são apresentados de forma narrativa e com proximidade do gênero ação. O autor mistura trechos de reportagens da época, 102

discursos e excertos de documentos oficiais, além de depoimentos à Comissão Nacional da Verdade. O trabalho venceu o prêmio Vladmir Herzog de Anistia e Direitos Humanos de 2014 na categoria Arte. Obra Independente 2 - Meninas em Jogo Em maio de 2014, a Agência Pública de Reportagem e Jornalismo Investigativo lança digitalmente a obra Meninas em Jogo, escrita por Andrea Dip e ilustrada pelo renomado desenhista brasileiro Alexandre De Maio, como parte do projeto Copa Pública. A história em quadrinhos apresenta a reportagem da jornalista em busca de mapear esquemas de exploração sexual de meninas no Ceará em virtude da realização da Copa do Mundo de Futebol que aconteceria entre junho e julho daquele ano. 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

Figuras 7 e 8

Com um formato comparável a Notas Sobre Gaza de Joe Sacco, a obra é contada em primeira pessoa pela autora/jornalista, que relata sua experiência entre delegacias especializadas e ONGs, onde consegue ter acesso a uma amplitude de dados que expõe em quadros explicativos, mas que não estão narrativamente incluídos na história. Trechos de entrevistas também são recurso recorrente da autora, quando o formato narrativo é usado com mais presença. Um destaque é a entrevista de meninas resgatadas por uma ONG atuante no tema. Por ser uma obra criada para o meio digital, essa ruptura dos enquadramentos tradicionais do formato impresso não atrapalha a linguagem de imagens e textos típica dos quadrinhos, embora a expanda para além de quadros normais ao permitir close ups e outras formas de leitura. Análise comparativa por tópicos A fim de realizar uma análise mais vertical das obras, esta parte final foi dividida em cinco tópicos decorrentes das reflexões históricas e teóricas das partes I e II. Discursos Didáticos e Narrativos: predominância narrativa com rigor histórico No centro da discussão sobre as histórias em quadrinhos como um meio válido para novas narrativas de 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

comunicação do direito, está a maneira como essas obras realizam essa tarefa que outrora seria apresentada em uma matéria jornalística ou material didático com poucos recursos visuais. A adaptação para uma nova linguagem não está somente em rechear os textos com imagens, mas em alinhar os dois por meio de uma narrativa concisa que revele as questões de maneira fluida e não necessariamente direta. Dito isso, exceto a Cartilha de Direitos Humanos, que é mais uma cartilha do que propriamente uma história em quadrinhos, todas as obras priorizaram em maior ou menor grau o elemento narrativo ao didático. A cartilha Direitos Humanos em Quadrinhos tem seus momentos narrativos protagonizados pelo Menino Maluquinho, embora os elementos visuais sejam auxiliares ao texto, que é o recurso principal da obra. A HQ SPE da Unesco é dividida em partes e as personagens se cruzam entre as histórias, mantendo o fio narrativo e a familiaridade com o leitor. Contudo, por se tratar de um material pensado para as escolas, entrega os temas e questões de maneira mais plana, sem subtexto. As personagens dessa obra são basicamente pilares de cada um dos problemas a serem abordados e os diálogos. Apesar de soarem coloquiais, são pensados de maneira a expor os problemas e os responder de maneira clara e informativa. 103

Já Meninas em Jogo, por ser uma reportagem em quadrinhos, é o que mais contém elementos informativos, visto que dados e depoimentos precisam ser apresentados com autenticidade e credibilidade. Ainda assim, isso não é feito de maneira a comprometer a narrativa, vivida e contada em primeira pessoa pela jornalista Andrea Dip. O projeto Pátria Armada Brasil também tem a necessidade do rigor jornalístico, neste caso de contextualização histórica e respeito às fontes, muitas vezes biografias ou documentos oficiais. Suas histórias são por vezes apresentadas por um narrador onisciente e outras vezes por testemunhos, mas sempre fiel às fontes e citando as obras originais no rodapé. Discursos de transgressão: política no conteúdo e na prática As duas obras independentes, por serem oriundas de jornalismo investigativo, naturalmente tem a inclinação maior para um discurso de denúncia e transgressão, cada um à sua maneira. O Pátria Armada se baseia em depoimentos da Comissão da Verdade e denuncia desaparecimentos e torturas, assuntos que ainda pouco tratados na história do país. Meninas em Jogo procura denunciar casos contemporâneos. Ambos abordam questões que direta ou indiretamente se relacionam com figuras públicas e políticas e reconhecem os limites da exploração dos temas abordados, seja pela sensibilidade da questão de desaparecimentos e assassinados não esclarecidos ou por dificuldade de acesso à informação por barreiras burocráticas. A HQ SPE, apesar de ter sido barrada pelo Ministro da Saúde, não apresenta conteúdos transgressores propriamente ditos, mas o fato de ter sido barrada pelo Ministério da Saúde indica que a questão dos estigmas sociais dos soropositivos ainda é tabu. Esse contraste entre a posição do governo e da obra reforça esse elemento transgressor, e com isso os quadrinhos cumprem novamente esse papel de 104

desestabilização do poder. Já a Cartilha de Direitos Humanos, embora toque diversas vezes em temas que seriam possibilidades de discussão em seu potencial transgressor, não o faz, possivelmente porque tem em vista um público-alvo infantil. Potencial educativo ou pedagógico: apelo ao lúdico e a narrativas As obras estatais foram elaboradas distribuição em escolas, e por isso têm um potencial pedagógico mais forte, a despeito dos públicos distintos. Enquanto a Cartilha de Direitos Humanos apresenta de maneira lúdica e simples os conceitos que trabalha, por meio da intervenção das personagens da turma do Menino Maluquinho, a HQ SPE traz um manual para o professor e CD-ROM interativo, com plano pedagógico abrangente, apesar de nunca ter sido efetivamente distribuído. Suas linguagens parecem adequadas aos públicos destinados e não os subestimam. Já as iniciativas independentes tem uma linguagem textual mais intricada, apta para uso educativo no Ensino Médio, se tanto. Seus propósitos são mais diretamente informativos do que didáticos, assim podendo servir como material de apoio mais do que diretamente didático. Ao mesmo tempo, poderiam promover experiências educativas indiretas e complementares a atividades educacionais tradicionais, a partir do envolvimento dos leitores com as narrativas. Os conteúdos informativos também podem levar a interesse em aprofundamento nos temas. Representação e Identidade: recursos do cotidiano e narradores A maneira com que as personagens são retratadas e as relações entre si e com os temas são fundamentais para a absorção do conteúdo a ser transmitido, bem como para a identificação com os leitores. Em Meninas em Jogo, ao narrar a história da reportagem na pessoa da jornalista, a identificação do leitor é alguém que está descobrindo junto com 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

ela aquela tema e cruzando as informações conforme são apresentadas. A identificação também ocorre conforme as personagens entrevistadas contam suas experiências pessoais no mundo da exploração sexual, tema pouco conhecido desta maneira pelo grande público. Em Pátria Armada Brasil, o tema ditadura militar, inúmeras vezes tratado na produção cultural nacional, é abordado por meio de histórias individuais e locais menos conhecidas. Por meio delas é que se estabelece o cenário sócio-político daquele período e o reconhecimento de fatos mais conhecidos da história nacional. A cartilha Os Direitos Humanos traz o Menino Maluquinho em situações do cotidiano da criança, como brincar de polícia e ladrão ou se machucar e precisar ir ao pronto-socorro, para explicar os direitos básicos de segurança e saúde, facilitando assim o auto-reconhecimento dos pequenos leitores nessas situações. O recurso é semelhante ao trabalho da HQ SPE, que se passa quase inteiramente entre colegas de escola e no ambiente escolar, o que facilita a identificação com as personagens, potencializada pela ausência de um narrador onisciente e diálogos mais naturais, apesar de sem maiores subtextos e ambiguidades. Formatos: autonomia dos quadrinhos como forma de acesso à informação e educação A autonomia do formato é tópico essencial para verificar como a linguagem dos quadrinhos e a sintonia entre os recursos textuais e visuais facilitam o acesso à informação e experiências de identificação. À exceção da Cartilha Os Direitos Humanos, todas as obras tem um comprometimento fiel com o formato dos quadrinhos, fazendo uso da arte sequencial à serviço de histórias visuais e textuais, independente das tensões entre discurso didático e narrativo. As duas obras independentes, ambas provindas do jornalismo, são as que mais usam quadros 9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

explicativos e notas de rodapé, mas nenhuma vez esses recursos interrompem ou prejudicam as narrativas. O projeto HQ SPE é o que mais valoriza a autonomia da linguagem, contextualizando na narrativa todas as informações que tem a passar, embora as obras independentes sejam mais similares ao formato de Graphic Novels, pelo cuidado maior no conceito artístico da produção. Conclusões A análise das quatro obras permitiu identificar a força dos elementos narrativos e da variabilidade de formatos do “meio”, mesmo quando se tratam de obras mais educativas produzidas por órgãos do Estado, ou mais informativas de iniciativas independentes. À exceção da obra mais infantil, todas contém elementos evidentes de crítica social. Na medida em que os públicos são levados em conta nas criações, estudos sobre recepção também poderão complementar a validade das análises. Um dos resultados importantes foi verificar que as características básicas dos quadrinhos não são desconsideradas em função dos interesses mais ou menos informativos ou educativos das obras. Ao contrário, o uso da sintonia entre palavras e imagens, a predominância narrativa, a capacidade de gerar familiaridade enquanto traz novos conteúdos aos leitores e as interfaces com narradores e personagens reais e fictícios, demonstram que manter os potenciais comunicativos do “meio” pode ser, se não a melhor, uma maneira fundamental de se atingir os objetivos de informar e educar. Por isso foi possível concluir que é a autonomia da forma dos quadrinhos, ressaltada pelos estudiosos e autores citados, incluindo seu caráter transgressor, o que lhes permite romper com perspectivas mais tradicionais de acesso à informação e educação. Para o avanço do campo dos direitos humanos, o uso do “meio” dos quadrinhos se revela cada vez mais indispensável. 105

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9ª Arte  São Paulo, vol. 5, n. 1, 1º semestre/2016

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