Direitos Humanos, Exclusão Racional e Formação Jurídica

August 31, 2017 | Autor: Edson Joaquim | Categoria: Direito Penal, Direitos Humanos
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Direitos Humanos, Exclusão Racional e Formação Jurídica

Edson Joaquim Raimundo de Araujo Júnior Estagiário de Direito no Ministério Público Federal. Técnico Jurídico formado pela Escola Técnica Estadual de São Paulo. Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Em terrae brasilis, lutar pela efetivação dos Direitos Humanos ou ao menos tentar colocá-los no centro de uma discussão é motivo suficiente para ser tachado de “amigo dos bandidos”, “inimigo dos cidadãos de bem”, “defensor do direito dos manos”, entre outros títulos negativos. Infelizmente, este é o pensamento que impera em grande parte da sociedade brasileira, e é nesta parcela que se situam os seguidores fiéis do chamado senso comum. Neste sistema social marcado pelo senso comum o Bacharel em Direito recebe sua formação e é nele que atuará com a missão de fortalecer e implementar direitos, tendo em vista que provavelmente se tornará um “operador do Direito”, podendo ou não seguir uma das diversas carreiras jurídicas. Na memorável “Oração aos Moços”, o mestre Ruy Barbosa descreve com muita maestria qual é o primordial papel do advogado, são lições que podem e devem ser aplicadas indistintamente a toda sociedade brasileira como norte na construção de um Brasil mais justo, mais igual. Ruy Barbosa ensina que: “(...) Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado. Nelas se encerra, para ele, a síntese de todos os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejá−la. Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o conselho. Não transfugir da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. Não

antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. Não servir sem independência à justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniqüidade ou imoralidade. Não se subtrair à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. Não proceder, nas consultas, senão com imparcialidade real do juiz nas sentenças. Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura. Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade (...)” 1 No atual estágio de desenvolvimento do mundo, em que a globalização sufoca cada vez mais a identidade nacional impondo uma “cultura mundial”, é de fundamental importância a criação de uma cultura externa e interna (global) de respeito incondicional aos Direitos Humanos, sobretudo em democracias em consolidação como a brasileira, onde a efetivação de direitos é um desafio constante. Desta forma, o fenômeno da globalização/transnacionalização pode e deve abarcar a defesa intransigente dos Direitos Humanos como um de seus pilares. Ulrich Beck, sociólogo alemão em riquíssima conversa com Johannes Willms ao debaterem a importância da política em um mundo cada vez mais globalizado, assenta: “Johannes Willms: Por acaso existe um cenário – só como alternativa de pensamento – em que a política possibilite uma nova democracia na era global? Ulrick Beck: (...) no meu modo de ver, isso depende essencialmente da medida em que o projeto de economia global conseguir se ligar à uma nova visão política e cultural que, longe de acabar em nivelação, tenha como ponto central o reconhecimento da alteridade do outro e parta do princípio de que a economia só é 1

Barbosa, Rui. Oração aos moços / Rui Barbosa; edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. – 5. ed. – Rio de Janeiro : Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. Pág. 46/47. Disponível em: < http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_Oracao_aos_mocos.pdf >. Acesso em 01/11/2014.

possível no âmbito da democracia e de que, enfim, mesmo uma economia

“desterritorializada”

necessita

de

revitalização

da

democracia. Este é o projeto de uma política externa cosmopolita – desde que se entenda cosmopolitismo como o reconhecimento do outro, inclusive do outro estrutural, desde que ele seja compreendido como um projeto democrático que aspira à ampliação da democracia no espaço transnacional, isto é, a uma democracia experimental; e desde que esta seja concebida como a ordem estrutural da economia “desterritorializada”,

na

qual

se

restabelecem

os

padrões

da

humanidade por intermédio da política, ou seja, padrões de trabalho e vida dignos do ser humano e padrões de convívio com a natureza, padrões ecológicos, pois. “(grifamos)

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Nesta seara, é o caso do papel exercido pela Organização das Nações Unidas (ONU) com o fito de criar mundialmente uma “cultura de direitos”. Neste processo, pode-se destacar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, promulgada logo após os horrores das grandes guerras mundiais como seu marco fundamental. Não menos importante é a criação do Conselho de Direitos Humanos que exerce papel ímpar na discussão e ampliação da temática nos diversos Estados integrantes do órgão. Por tudo, é notável que a ONU exerça função primordial no fortalecimento do sistema global de proteção dos direitos humanos e na criação de uma cultura de respeito. No caso da América Latina, já no sentido de implementação e fortalecimento dos sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, tem-se a criação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos de 1969, mais conhecida como “Pacto de San José da Costa Rica”, que também criou mecanismos extremamente necessários para sua implementação: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (ComissãoIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), que nos últimos anos proferiu decisões inéditas condenando o Brasil por graves violações de Direitos Humanos.

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Beck, Ulrick. Liberdade ou Capitalismo/Ulrick Beck conversa com Johannes Willms, tradução de Luiz Antônio de Oliveira Araújo. –São Paulo: Editora UNESP, 2003. Pág. 55.

A título de exemplo, o caso Gomes Lund. “Guerrilha do Araguaia” versus Brasil julgado em meados de 2010 pela CorteIDH condenou o Brasil a promover a investigação dos diversos casos de desaparecimento forçados cometidos no âmbito da Ditadura Civil-Militar brasileira e principalmente a exigência de promoção da persecução penal dos agentes estatais envolvidos nos crimes de lesa-humanidade praticados: “O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e conseqüências que a lei preveja (...)” 3 No mesmo sentido, o voto fundamentado do Juiz ad hoc Roberto de Figueiredo Caldas: “(...) em prol da garantia da supremacia dos Direitos Humanos, especialmente quando degradados por crimes de lesa-humanidade, faz-se mister reconhecer a importância dessa sentença internacional e incorporá-la de imediato ao ordenamento nacional, de modo a que se possa investigar, processar e punir aqueles crimes até então protegidos por uma interpretação da Lei de Anistia que, afinal, é geradora de impunidade, descrença na proteção do Estado e de uma ferida social eternamente aberta, que precisa ser curada com a aplicação serena mas incisiva do Direito e da Justiça (...)” 4

Por tudo, é plenamente aceitável que os Direitos Humanos são de extrema importância para a vida em sociedade, pois asseguram condições mínimas para a sobrevivência humana frente aos diversos desafios que são impostos diariamente, a começar pelo próprio poder do Estado, que como a história demonstrou, não pode ser de forma alguma um poder ilimitado. Porém, no Brasil os direitos humanos não 3

Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH). Caso Gomes Lund “Guerrilha do Araguaia” e outros versus Brasil. Sentença proferida em 24 de novembro de 2010. Pág. 114. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em 01/11/2014. 4 Idem. Pág. 04.

alcançaram o reconhecimento que se espera de uma sociedade organizada democraticamente. Tal quadro não se limita ao cidadão comum, pois é possível encontrar (ainda que em menor número) profissionais de diversas áreas que não aceitam a importância da efetivação e constante valorização dos direitos humanos no cotidiano. O quadro é alarmante, pois em diversas oportunidades a violação dos direitos humanos é perpetrada por agentes que deveriam lutar incondicionalmente para protegê-los. É o caso de um Juiz Federal que recentemente afirmou em decisão liminar que umbanda e candomblé não são religiões e por isso não se poderia retirar de um site na internet vídeos que ofendiam os seguidores de tais crenças.5 Recentemente, um Promotor de Justiça defendeu textualmente, em razão de uma manifestação democrática, que a polícia militar deveria matar todos os manifestantes que ele por ser promotor do Tribunal do Júri da região, arquivaria os inquéritos policiais.6 O fato é que grande maioria de cidadãos comuns e principalmente de agentes públicos estão abandonando as premissas básicas da legalidade e da probidade em nome de uma questionável “justiça plena”, pois partem do pressuposto que o Estado é ineficiente para ser detentor do monopólio do poder punitivo e que os direitos humanos só existem para proteger criminosos, entre outras questões para além da justiça criminal. Não se pode olvidar que os meios de comunicação da atualidade, sobretudo a internet e a televisão, exercem papel fundamental na propagação e perpetuação no imaginário social de uma condenável cultura aversa aos direitos humanos. São diversas programações que criam estereótipos em face dos direitos humanos e daqueles que se apresentam como defensores de tais direitos, afrontando inclusive a Constituição Federal de 1988 que determina em seu artigo 221, inciso IV que os meios de comunicação social devem respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família. A título de exemplo, em um programa de notícias transmitido em rede

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Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-mai-21/juiz-recua-manifestacoes-religioes-africanasmantem-decisao. Acesso em 01/11/2014. 6 Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-jun-10/mp-sp-investigar-promotor-incitou-violenciamanifestantes> Acesso em 01/11/2014.

nacional, uma repórter âncora defendeu a atuação claramente ilegal de “justiceiros”, neste sentido: “O que resta ao cidadão de bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite” 7 Este quadro lamentável poderia ser evitado no Brasil se houvesse uma cultura sólida de educação em direitos humanos, da educação infantil até a pós graduação. Tal necessidade se torna mais evidente quando se trata da formação do Bacharel em Direito, pois é este profissional que irá lidar com diversas questões delicadas afetas aos direitos humanos, e uma formação jurídica crítica nesta seara é constitutivo do bom profissional. O atual modelo de ensino jurídico no Brasil mostra-se esgotado, não está sintonizado com as novas demandas sociais. É preciso fazer uma leitura da ciência jurídica para além de interpretações conservadoras do positivismo jurídico kelseniano, é preciso diálogo com as mais diversas ciências sociais como a ciência política, a filosofia, a sociologia e a economia. A interdisciplinaridade torna-se assim imperativo para o Direito em um futuro próximo, principalmente para o Bacharel em Direito que vivenciará tal momento. É um diferencial estar preparado para os desafios que a carreira jurídica proporcionará. Preocupada com a formação humanística dos bacharéis em Direito, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já discute junto ao Ministério da Educação (MEC) a inclusão de cadeira específica da disciplina Direitos Humanos na grade curricular dos cursos de Direito no Brasil 8. Assumindo papel de vanguarda, a OAB no seu “Exame de Ordem” exige dos candidatos conhecimentos específicos em Direitos Humanos. Em São Paulo a Universidade Presbiteriana Mackenzie, que abriga uma das mais tradicionais escolas de Direito do país, incluiu recentemente a disciplina Direitos Humanos na grade curricular do curso. 7

Disponível em: < http://www.prsp.mpf.mp.br/prdc/sala-de-imprensa/noticias_prdc/24-09-14-2013-mpfentra-com-acao-contra-o-sbt-por-declaracoes-de-rachel-sheherazade-em-apoio-a-acao-de201cjusticeiros201d-no-rio>. Acesso em 01/11/2014. 8 Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-fev-27/ensino-direitos-humanos-incluido-faculdadesdireito> . Acesso em 01/11/2014.

São pequenas atitudes que alteram significativamente a formação dos bacharéis, afastando-os de um pensamento calcado no senso comum ao fornecer-lhes um aprendizado crítico em direitos humanos. É preciso que os cidadãos em geral, sobretudo os operadores do Direito, abandonem a “menoridade” e passem a pensar por si mesmos, na concepção kantiana de racionalidade, pois pensar de forma crítica – isto é, ser capaz de reconhecer e formular bons argumentos – é uma prática fundamental para o exercício pleno da cidadania e da democracia. Mas, apesar de ser uma necessidade tão universal, infelizmente a intimidade com o pensamento crítico não é uma realidade para grande parte da população brasileira, que, por conta disso, fica exposta a todo tipo de falácias e argumentação enganosa, mergulhando assim em uma incômoda exclusão racional. 9 Como ensina o inesquecível Rudolf Von Ihering “o direito é um trabalho incessante, não somente dos poderes públicos mas ainda de uma nação inteira”

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por isso não é suficiente que somente os bacharéis em Direito tenham acesso a uma formação pautada na valorização e efetivação dos direitos humanos, é preciso que toda a sociedade brasileira, nos seus mais diversos nivelamentos tenham pleno acesso ao conhecimento em matérias fundamentais para a correta prática cidadã, é preciso que todos tenham plena consciência de que são sujeitos de direitos, sem distinção de qualquer natureza. O Direito não pode ser uma pura teoria, e sim uma força viva que movimente corações e mentes no difícil caminho da construção de uma sociedade brasileira e mundial mais justa, mais plural e mais solidária em que conviver em plena paz perpétua não seja uma mera utopia.

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Disponível em: < http://agencia.fapesp.br/combate_a_exclusao_racional/11013/>. Acesso em 01/11/2014. Ihering, Rudolf Von, 1818-1892. A Luta pelo Direito/Rudolf Von Ihering; tradução João Vasconcelos. São Paulo: Martin Claret, 2009. (coleção a obra-prima de cada autor; 47). Pág. 23.

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BIBLIOGRAFIA

1. Agência FAPESP. Disponível em: http://agencia.fapesp.br/inicial/ Acesso em: 01/11/2014. 2. Barbosa, Rui. Oração aos Moços / Rui Barbosa; edição popular anotada por Adriano da Gama Kury. – 5. ed. – Rio de Janeiro : Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997. Disponível em: < http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/FCRB_Rui Barbosa_Oracao_aos_mocos.pdf>. Acesso em 01/11/2014. 3. Beck, Ulrick. Liberdade ou Capitalismo/Ulrick Beck conversa com Johannes Willms, tradução de Luiz Antônio de Oliveira Araújo. –São Paulo: Editora UNESP, 2003. 4. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo (USP). Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/. Acesso em 01/11/2014. 5. Carvalho, José Murilo. Cidadania no Brasil: O longo caminho/ José Murilo de Carvalho – 14ª Ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. 6. Comparato, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos/Fábio Konder Comparato. – 7ª. Ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2011. 7. Conectas Direitos Humanos. Disponível em: http://www.conectas.org/. Acesso em 01/11/2014. 8. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH). Caso Gomes Lund “Guerrilha do Araguaia” e outros versus Brasil. Sentença proferida em 24 de novembro de 2010. Disponível em: < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf>. Acesso em 01/11/2014. 9. Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. 1934- Direitos Humanos Fundamentais/ Manoel Gonçalves Ferreira Filho. – 13ª. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. 10. Kant, Immanuel, 1724-1804. À paz perpétua/ Immanuel Kant; tradução de Marco Zingano. Porte Alegre, RS: L&PM, 2010. 11. Observatório da Imprensa. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/>. Acesso em 01/11/2014.

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12. Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional/Flávia Piovesan. – 14ª Ed., rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013.

13. Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos/André de Carvalho Ramos. – São Paulo: Saraiva, 2014. 14. Revista Eletrônica Consultor Jurídico. http://www.conjur.com.br/. Acesso em 01/11/2014.

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