Direitos humanos, razoabilidade e decência em John Rawls

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DIREITOS HUMANOS, RAZOABILIDADE E DECÊNCIA EM JOHN RAWLS1 Ivan Rodrigues2

RESUMO Este artigo defende a tese de que a concepção rawlsiana de direitos humanos é, do princípio ao fim, tensionada entre razoabilidade e decência. Direitos humanos, em Rawls, são direitos não totalmente razoáveis e, porém, não totalmente irrazoáveis; antes, eles são razoavelmente não rejeitáveis universalmente e satisfazem as demandas mínimas de civilidade que se endereçam não só às relações entre os povos, mas também à estrutura básica de qualquer sociedade. Eles são direitos construídos para garantir universalmente que a cooperação social não será anulada e que os povos não se aliarão à opressão doméstica e à hostilidade internacional. A tensão entre razoável e decente pode explicar – defende-se – outras tensões centrais na concepção rawlsiana: aquelas entre política e moral, moral e ética, cidadãos e povos, universal e contextual, sistemas máximo e mínimo. PALAVRAS-CHAVE John Rawls. Direitos humanos. Racionalidade. Razoabilidade. Decência.

ABSTRACT This paper sponsors the thesis that Rawls’s conception of human rights is, from start to end, marked by the tension between reasonability and decency. Human rights, according to Rawls, are rights not entirely reasonable, but not entirely unreasonable; rather, they are universally reasonably non-rejectable insofar as they satisfy the bottom demands of civility that address both the relations between peoples and the basic structure of any society. They are only rights designed for the universal political guarantee that social cooperation will not be imploded, as well as that peoples will not down the slope of domestic oppression and international hostility. The primary tension between the reasonable and the decent can explain, it is maintained, other central tensions present in Rawls’s conception: those between politics and morality, morality and ethics, citizens and peoples, universal and contextual, maximum and minimum system. KEY-WORDS John Rawls. Human rights. Rationality. Reasonability. Decency.

1 Artigo elaborado na disciplina Filosofia Política IV, ministrada pelo Prof. Dr. Denilson Luís Werle no PPGFil/UFSC no primeiro semestre letivo de 2016. 2 Doutorando em Ética e Filosofia Política no PPGFil/UFSC. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3085919257774539.

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INTRODUÇÃO John Rawls preconiza uma concepção política, não humanista, de direitos humanos.

Trata-se de uma concepção não humanista porque ele não se interessa por conferir aos direitos humanos uma justificação moral que explicasse por que todo ser humano enquanto ser humano é titular de direitos humanos3. Trata-se de uma concepção política porque ele se dedica a conferir aos direitos humanos uma justificação alimentada por argumentos políticos, isto é, argumentos relacionados exclusivamente ao papel central dos direitos humanos na construção histórica de uma sociedade dos povos guiada pelos princípios razoavelmente não rejeitáveis de um direito dos povos (e desprovida da centralização burocrática de um estado mundial). Trata-se, em última análise, de uma concepção politicamente situada porque, nela, os direitos humanos não são senão direitos mínimos que todos os povos (inclusive aqueles sob o impulso de estados fora da lei) devem garantir como direitos internacionalmente invioláveis4: direitos que fornecem limites extremos cuja ultrapassagem torna lícitas a intervenção externa em uma comunidade política e a guerra para defender os próprios cidadãos5. Direitos humanos correspondem, portanto, a balizas impostas pela política internacional à política nacional. Este artigo objetiva mostrar e sustentar que a concepção rawlsiana de direitos humanos guarda uma referência fundamental ao armazém político das exigências razoáveis, assim como ao estoque político das ponderações decentes, de modo que os direitos humanos são marcados pela tensão entre a amplitude justificatória dos cidadãos razoáveis de democracias liberais, de um lado, e a contenção justificatória dos povos bem ordenados, de outro lado. Essa tensão entre horizontes justificatórios interligados (um mais expansivo, outro mais restritivo) repercute em e subjaz a outras tensões que também marcam a concepção rawlsiana, a saber, as tensões entre política e moral (direitos humanos são direitos políticos com um lastro moral não descartável),

Rawls “parece evitar qualquer apelo a uma concepção de interesses ou capacidades humanas básicas, ou à ideia de que há algumas características que todos os seres humanos têm e que fundamentam os direitos humanos. Em suma, [a concepção rawlsiana] parece ser uma tentativa de fundamentar uma lista de direitos humanos sem recorrer à ideia de humanidade, à ideia de que há algo de significância moral que é comum a todos os seres humanos. Em vez disso, [Rawls] pretende derivar uma lista de direitos humanos das características que uma sociedade deve ter para ser decente, ou digna de não intervenção” (BUCHANAN, 2006, p. 163). 4 A concepção rawlsiana substitui a ênfase nos titulares dos direitos humanos (a saber, os seres humanos como tais) pela ênfase na preocupação internacional pela violação dos direitos humanos. Essa substituição implica que “o ‘humano’ [em ‘direito humano’] refere não os portadores de direitos (e sua humanidade), mas a classe de pessoas para as quais violações desses direitos são propriamente um objeto de preocupação. Alguns direitos, pode-se pensar, são ou devem ser objeto de preocupação geral entre os humanos: Como Kant diz, ‘uma violação de direito em uma parte da terra é sentida em todas’” (WALDRON, 2013, p. 2). 5 A preocupação internacional inspirada pelos direitos humanos é prático-política: violar um direito humano é internacionalmente preocupante à medida que suscita ações por parte de todos os atores políticos (de indivíduos e associações a estados e organizações). “Assim, definimos um direito R como direito humano quando pensamos que não só a pessoa humana [atingida], mas também qualquer governo ou agência externa tem autoridade para responder à e talvez interferir na violação de R por outro governo” (WALDRON, 2013, p. 3). 3

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moral e ética (direitos humanos são direitos políticos moralmente lastreados que dependem de virtudes cosmopolitas), cidadãos e povos (direitos humanos são direitos de seres humanos que cabe a todos os povos satisfazer, proteger e fomentar), universal e contextual (direitos humanos valem universalmente, mas são tomados como princípio jurídico só por povos bem ordenados e, além disso, podem não ter solo fértil nos encurtamentos institucionais, sociais e econômicos dos povos não hostis, mas onerados), sistema máximo e sistema mínimo (direitos humanos não coincidem com o amplo rol de direitos básicos das democracias liberais, mas compõem um rol modesto de direitos urgentes). A tese deste artigo, em suma, é que a tensão entre razoabilidade e decência é o cerne da concepção rawlsiana de direitos humanos: direitos humanos são razoavelmente julgados como direitos imprescindíveis à construção de uma sociedade dos povos no mínimo decente, ou seja, não assombrada pelos extremos hediondos que são a guerra injustificável, o combate atroz e a invasão estrangeira direta ou indireta. Para tanto, cabe, em primeiro lugar, esclarecer como os direitos liberais – as liberdades fundamentais que os cidadãos de uma democracia liberal reconhecem uns aos outros – se ligam internamente à racionalidade e à razoabilidade (2, 3). Em segundo lugar, cabe clarificar o que é decência e sublinhar que ela é o uso da razão prática que os povos fazem para reconhecer os direitos urgentes de cada ser humano (4). Em terceiro lugar, cabe explicitar o estatuto conceitual dos direitos humanos em Rawls e como eles são direitos universais “decentemente razoáveis” (5, 6). Na conclusão, evidencia-se como a tensão entre o razoável e o decente impregna toda a concepção rawlsiana de direitos humanos.

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RACIONALIDADE, BENS PRIMÁRIOS E DIREITOS LIBERAIS Partes racionais, representantes dos cidadãos na posição original, buscam princípios de

justiça que, moldando a estrutura básica da sociedade doméstica, propiciem institucionalmente a efetivação da autonomia plena dos cidadãos: o florescimento racional e a cooperação razoável dos cidadãos. Essa busca por princípios de justiça objetiva fornecer aos cidadãos a asseguração política da mais robusta proteção e do mais amplo fomento: (i) das concepções de bem adotadas por eles, as quais (desconhecidas pelas partes, cobertas pelo véu de ignorância) são constituídas de interesses e fins últimos, de afeições e lealdades arraigadas, tanto quanto de visões de mundo filosóficas, religiosas e morais; (ii) da capacidade moral dos cidadãos de formar, revisar e seguir planos de vida valiosa; (iii) da capacidade moral dos cidadãos de propor e cumprir termos justos de cooperação social.

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Tal busca por princípios de justiça é alimentada e guiada pelo conhecimento – possuído pelas partes, guarnecidas com informações mínimas sobre teoria dos bens e psicologia humana – dos bens primários aos quais toda concepção de bem se inclina na medida em que os cidadãos normalmente preferem ter maiores quotas a ter menores quotas de bens primários. A partir do conhecimento dos bens que são socialmente básicos – liberdades fundamentais, oportunidades várias, posições e cargos, renda e riqueza, autoconfiança e autovalorização – as partes “devem tentar proteger suas liberdades, ampliar suas oportunidades e alargar seus meios de promover suas metas, sejam elas quais forem” (RAWLS, 1999, p. 123). Os bens primários, portanto, se apresentam às partes como um critério de escolha entre os princípios de justiça que a elas são oferecidos: as partes “tentam reconhecer princípios que impulsionem seu sistema de fins tanto quanto possível. Elas o fazem mediante a tentativa de obter para elas mesmas a maior lista de bens sociais primários, pois isso as habilita a promover mais efetivamente sua concepção do bem, qualquer que ela venha a ser” (RAWLS, 1999, p. 125). Entre os bens primários, as liberdades fundamentais são não só prioritárias em relação aos demais bens primários, mas também indispensáveis à salvaguarda e à promoção deles. As partes compreendem claramente que, sem liberdades fundamentais, os cidadãos se exporiam a um altíssimo risco de serem politicamente tolhidos quanto às concepções de bem que possam adotar, assim como quanto ao desenvolvimento e ao exercício de suas duas capacidades morais. As partes compreendem claramente que liberdades fundamentais são condições sociais sem as quais se torna ameaçada a possibilidade de autonomamente determinar as próprias finalidades, os próprios valores e as próprias cosmovisões: liberdades fundamentais garantem aos cidadãos que eles não serão supervisionados, censurados, perseguidos ou punidos por nutrir concepções do bem das quais a maioria ou os governantes divergem. Desse modo, as partes concordam em designar ao princípio de justiça que assegura as liberdades fundamentais primazia sobre outros princípios de justiça. Em última análise, isso implica que a estrutura básica da sociedade e, por conseguinte, todas as instituições sociais devem ser talhadas e operar estritamente na medida das liberdades fundamentais a fim de que os cidadãos gozem de autonomia para preencher um plano de vida reputada como digna. As liberdades fundamentais são reconhecidas pelas partes como o princípio de justiça primaz com base em sua racionalidade. Há, portanto, uma conexão interna entre racionalidade e direitos liberais: partes racionais mostram a prudência de diminuir as probabilidades políticas de opressão ética dos cidadãos mediante a eleição de direitos básicos como meios garantidores da autorrealização pessoal dos cidadãos. O que, pois, é “racionalidade” em Rawls?

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Racionalidade é a capacidade cognitiva prática que Rawls atribui às partes contratantes na posição original a fim de apresentá-las como aptas a eleger, entre os princípios de justiça disponíveis (alternativamente apresentados por liberalismo, utilitarismo e perfeccionismo), aqueles que mais firmemente respaldam as concepções de bem acalentadas pelos cidadãos, como também o desdobramento desacorrentado e o desempenho pleno das duas capacidades morais dos cidadãos: a capacidade moral de construção de uma vida que vale a pena ser vivida e a capacidade moral de cooperação social não opressiva, mas reciprocamente endossável e geralmente vantajosa6. A orientação racional ao florescimento do viver plenamente autônomo dos cidadãos impele as partes a eleger o princípio liberal de justiça de acordo com o qual cada cidadão é titular de iguais liberdades fundamentais que não são restringíveis ou relativizáveis por ponderações políticas, econômicas ou sociais, sendo absolutamente prioritárias em relação a elas. Além disso, racionalidade é a capacidade cognitiva prática atribuída por Rawls aos cidadãos (não às partes que os representam na posição original) a fim de apresentá-los como indivíduos que, de um lado, não são vazios de propósitos supremos, pertencimentos profundos e limites compreensivos, mas que, de outro lado, não são meros reprodutores de tradições dadas. Cidadãos racionais são capazes não unicamente de enraizar-se eticamente, mas também de autoafirmar-se eticamente: eles são capazes de interpelar e revisar as molduras éticas nas quais estão inseridos. Rawls (2005, p. 50-51) concebe o cidadão racional como dotado do poder de: (i) julgar e deliberar na persecução de fins e interesses próprios; (ii) escolher fins que realizem seu inteiro plano de vida e sejam coerentes entre si; (iii) não se circunscrever ao autointeresse, mas adotar interesses que beneficiem outros, pois, se nutrisse só interesses que beneficiassem a ele mesmo, ele se assemelharia a um psicopata.

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RAZOABILIDADE, RAZÃO PÚBLICA E DIREITOS LIBERAIS Cidadãos razoáveis, em uma democracia liberal, submetem suas doutrinas abrangentes

(profundamente divergentes) a uma concepção de justiça componente da razão pública e, nisso, reconhecem a prioridade do justo sobre o bom. A primazia dos termos justos de cooperação social inclui que eles (cidadãos razoáveis) reconheçam uns aos outros como titulares iguais de

Segundo Rawls (1999, p. 124), “uma pessoa racional é usualmente pensada como tendo um conjunto coerente de preferências entre as opções abertas a ela. Ela classifica essas opções segundo a medida em que elas promovem seus propósitos; ela segue o plano que mais (e não menos) satisfará seus desejos e tem a maior chance de ser executado exitosamente. A assunção especial que eu faço é que um indivíduo racional não sofre de inveja. Ele não está pronto a aceitar uma perda para ele mesmo desde que outros também percam”. O sentido político de racionalidade é um caso especial desse sentido usual. 6

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liberdades fundamentais enquanto direitos especificados constitucionalmente, regulamentados legislativamente e tutelados judicialmente. Uma doutrina abrangente, assim, não pode ser vista como razoável se a primazia das liberdades fundamentais não for nela absorvida e, além disso, não vier a constituir uma parte prioritária e não sobrepujável dela, uma parte com a qual todas as demais devem manter coerência. Assim, as liberdades fundamentais são assumidas por cidadãos razoáveis como tendo prioridade: (i) sobre outros bens, tais como metas políticas, proveitos econômicos e vantagens sociais; (ii) sobre a dinâmica democrática e seus produtos deliberados, tais como formulações constitucionais, normas legislativas e decisões judiciais. Cidadãos guiados pela razoabilidade não sacrificam as liberdades fundamentais em nome de alvos de reforma política, diretrizes de higidez econômica e resultados de bem-estar social. Cidadãos guiados pela razoabilidade não limitam as liberdades fundamentais a não ser em nome da realização delas mesmas, quer dizer, quando é necessário mitigar o exercício de uma para promover o exercício de outra, avaliada como mais importante sob circunstâncias concretas. Além disso, cidadãos que raciocinam com razoabilidade mantêm sua razão pública sob o padrão das liberdades fundamentais, isto é, não admitem que os procedimentos e os resultados das instituições democráticas se desviem delas. Cidadãos que se conduzem com razoabilidade correspondem a guardiães da prioridade política pré-constitucional dos direitos liberais: esses direitos valem até sobre a constituição, pois sua validade é reconhecida na posição original, a qual transcende a política fática, ou, pelo menos, não se reduz a ela (embora possa ser construída a partir do legado democrático-constitucional contido nela). Há, portanto, um nexo interno entre razoabilidade e direitos liberais: esses direitos são aqueles que cidadãos contemplam, atribuem uns aos outros, priorizam e guardam à medida que eles aspiram a uma cooperação social justa e refletem razoavelmente acerca do que devem uns aos outros enquanto pessoas livres e iguais dispostas a cooperar plenamente em uma sociedade cuja estrutura básica não seja opressiva. Noutras palavras: direitos liberais são aqueles que os cidadãos somente podem deixar de conferir-se mutuamente se abdicarem da razoabilidade, se, por exemplo, se confinarem a uma atitude autoritária, parasitária ou oportunista. Conservar-se razoável equivale a conservar não uma atitude altruísta, mas simplesmente uma atitude política não parcial e não unilateral: a rejeição de direitos liberais corresponde à adoção da parcialidade e da unilateralidade como parâmetros da cooperação social, o que, contudo, se reduz à adoção do politicamente inaceitável como critério político7. O que, pois, é “razoabilidade” em Rawls? 7

Rawls sublinha o nexo entre razoabilidade e direitos liberais ao frisar que a negação de direitos liberais corresponde à negação da reciprocidade (como critério de legitimidade política): “O critério de reciprocidade é

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Razoabilidade é a capacidade cognitiva prática que Rawls atribui aos cidadãos de uma democracia liberal a fim de apresentá-los como aptos ao reconhecimento e ao cumprimento do “dever de civilidade”, o qual os obriga a não impor politicamente versões unilaterais do ideal ético de vida boa, as quais podem ser acolhidas como verdadeiras por uns, mas repelidas como falsas por outros; assim como os obriga à tolerância recíproca no tocante ao pluralismo fático de doutrinas abrangentes politicamente não opressivas8. O dever de civilidade, reconhecido e cumprido por cidadãos que se orientam politicamente com razoabilidade, obriga-os a adotar uma concepção política de justiça que – sendo não somente eticamente neutra, mas também incorporada eticamente por cada cidadão razoável como uma parte privilegiada, não superável de sua doutrina abrangente – proponha o mais amplo sistema possível de direitos individuais, com isso objetivando a asseguração moral e jurídica de que todos os cidadãos respeitam uns aos outros como pessoas igualmente livres. Um cidadão, portanto, é irrazoável quando não se dispõe a cooperar socialmente não para alcançar o bem geral, mas, antes, simplesmente com reciprocidade; quando, em particular, não dispensa aos concidadãos o respeito por sua posição social de agente moral revestido com direitos básicos que protegem sua igual liberdade.

4.

DECÊNCIA, VIRTUDES COSMOPOLITAS E DIREITOS URGENTES Até aqui, foi evidenciado como racionalidade e razoabilidade, os dois poderes morais

dos cidadãos de uma sociedade doméstica, convergem complementarmente à construção das liberdades fundamentais de uma democracia liberal. Essas liberdades fundamentais, contudo, não se confundem com os direitos humanos, os quais não se erguem, na concepção rawlsiana, pelo “trabalho de equipe” do racional e do razoável. Antes, os direitos humanos, na concepção rawlsiana, apenas são explicáveis mediante a tensão problemática entre o razoável e o decente. Assim, a partir de agora, será evidenciado como tal tensão urde os direitos mínimos universais. Povos bem ordenados, em uma sociedade justa dos povos, submetem-se aos princípios universal e reciprocamente não rejeitáveis do direito dos povos e, nisso, reconhecem a prioridade da paz internacional e da autodeterminação nacional sobre as ambições imperialistas e as imposições desrespeitosas (não somente as culturais, mas também as políticas), cultivando duradouramente as virtudes cosmopolitas de comércio, diplomacia, tolerância, abertura à normalmente violado sempre que as liberdades básicas são negadas. Pois que razões podem, ao mesmo tempo, satisfazer o critério de reciprocidade e justificar a negação a algumas pessoas da liberdade religiosa, tratar outros como escravos, impor uma qualificação de propriedade ao direito de votar, ou negar o direito de sufrágio às mulheres?” (RAWLS, 2005, p. 447). 8 O limite da tolerância, segundo Rawls, reside no limiar que separa doutrinas abrangentes razoáveis de doutrinas abrangentes não razoáveis, quer dizer, aquelas que não propõem sua imposição política daquelas que aspiram a um reforço coercitivo politicamente ministrado.

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aprendizagem mútua e solidariedade. A primazia dos termos decentes da cooperação entre os povos não hostis inclui que eles compartilhem a assunção da intangibilidade de direitos urgentes dos seres humanos cuja violação grave autoriza recorrer a medidas interventivas e cuja ameaça séria autoriza a autodefesa bélica. Decência é tanto uma aquisição ética como um esclarecimento moral que Rawls atribui aos povos não fechados à cooperação civilizada9 a fim de apresentá-los como aptos a aderir e a observar os princípios fundamentais do direito dos povos. Trata-se, primeiro, de uma aquisição ética porque decência implica a filiação de um povo a um ethos pacifista e não intervencionista presente nas relações internacionais, especialmente entre as democracias liberais. Esse ethos é difundido na cultura de fundo, explícito no fórum público e exemplarmente reproduzido pelos chefes de estado que, subordinando interesses momentâneos e paixões impetuosas a diretrizes perenes de política internacional estável, encaixam-se no ideal do estadista. Trata-se, segundo, de um esclarecimento moral porque decência não se reduz a uma eticidade só contingente, ou seja, improvavelmente forjada nas práticas louváveis de povos vestidos de um regime político ocidental. Decência requer autovinculação ao apelo moral universal de princípios que não são meros apêndices de uma matriz ética etnocêntrica, mas são, ao mesmo tempo, universalmente cogentes (no sentido de não serem oponíveis com razoabilidade) e contextualmente reiteráveis (no sentido de poderem ser seguidos pelos diversos povos sem lhes desconsiderar as restrições éticas, institucionais, sociais e econômicas). Quando os povos que não se abandonam à hostilidade aderem aos princípios do direito dos povos, eles se mostram dispostos a empreender e perpetuar uma cooperação pacífica e não interferente entre sociedades bem ordenadas, mas não a instaurar e sedimentar uma democracia liberal mundial. Eles não estão inclinados a submeter-se a um estado global; ao contrário disso, eles estão inclinados a estabilizar politicamente seu profícuo intercâmbio espontâneo de forma que não caiam na armadilha desnecessária e indesejável de um estado global. Eles não apenas compreendem claramente – mediante seus representantes na posição original – que um estado global resultaria em uma colossal tirania, ou seria constantemente ameaçado por insatisfações e rebeliões; além disso, eles também manifestam a vontade de permanecer independentes e não

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A cooperação entre os povos é civilizada, no sentido kantiano, quando é regida por um direito justo. O sentido kantiano de civilização parece aplicar-se com precisão ao direito dos povos rawlsiano, o qual não pretende moralizar profundamente as relações internacionais, mas só as domesticar decentemente: “Somos cultivados em alto grau pela arte e pela ciência. Somos civilizados, talvez até o ponto de sermos sobrecarregados, por todas as sortes de decoro social e etiqueta. Mas muito ainda está a faltar antes de podermos ser considerados como já moralizados. Porque a ideia de moralidade ainda pertence à cultura; mas o uso dessa ideia que se resume somente a uma aparência de moral no amor da honra e na convencionalidade externa constitui apenas o ser civilizado” (KANT, 2009, p. 18).

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submissos a intrusões violadoras de sua autodeterminação. Na adesão ao direito dos povos, os povos, portanto, absolutamente não se ocupam com moldar uma estrutura básica da sociedade estatalmente centralizada de acordo com princípios de justiça, mas se ocupam com muito menos que isso: ocupam-se só com prover a suas relações florescentes uma moldura política talhada unicamente para que o florescer de sua cooperação recíproca não seja extirpado pela barbárie das guerras injustas e pelo temor das intervenções arbitrárias. A tarefa da qual as partes representantes dos povos têm de desonerar-se na posição original “internacional” é qualitativamente distinta da tarefa que cabe às partes representantes dos cidadãos na posição original “doméstica”. Ali, na segunda posição original, as partes representam povos inteiros e estão orientadas a selecionar princípios que tornem a cooperação entre os povos perenemente viável e no mínimo decente: a tarefa que as partes devem executar é estabelecer princípios que propiciem às relações internacionais uma “estabilidade decorosa”, de modo que elas possam desenvolver-se não sobre o vetusto tabuleiro das estratégias estatais de expansão autointeressada (que observa os estados estrangeiros como inimigos traiçoeiros a serem submetidos e controlados), mas sob uma justiça internacional mínima que compreende os povos como dispostos a desempenhar esforços cooperativos em busca “limpa” de vantagens mútuas, como também a assumir responsabilidades internacionais que demonstrem boa-fé e consistência, civilidade e respeito, empatia e incentivo. Porém, aqui, na primeira posição original, as partes representam cidadãos como pessoas livres e iguais dentro de uma sociedade fechada, pensada como totalmente isolada das demais sociedades. Assim, a tarefa que as partes devem realizar é estabelecer princípios que tornem a cooperação entre os cidadãos geral e reciprocamente não rejeitável na medida em que igualmente propícia ao desenvolvimento do plano de vida valiosa de cada cidadão. O padrão de justiça que ilumina a primeira posição original é o razoável, mas o padrão de justiça evocado na segunda posição original é só o decente10. A segunda posição original não é (utópica e) completamente insuflada pela razoabilidade, mas é (realista) e prudentemente desenhada pela decência: as partes não pretendem, nela, instaurar o melhor dos mundos, mas só zelar por um mundo civilizadamente admissível. Em termos comparativos, na sociedade

Rasmussen (2004, p. 537) sugere que “a razoabilidade exerce um papel central em The law of peoples”. Essa sugestão é consistente com a insistência textual de Rawls, ao longo de The law of peoples, sobre a capacidade moral dos povos de razoabilidade, sobre a não redução dos povos à sagacidade racional dos estados, sobre a índole razoável do direito dos povos e da sociedade dos povos. Entretanto, defendo que a decência é tão protagonista quanto a razoabilidade na justiça internacional, pois, sem o standard da decência, a sociedade dos povos não seria inclusiva dos povos não liberais (e se limitaria a um clube fechado dos povos liberais), sequer os princípios do direito dos povos seriam aceitáveis por sociedades não democrático-liberais (e se limitariam a transferir literalmente os princípios liberais domésticos à arena internacional). 10

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liberal, a justiça é maximamente exigente; na sociedade dos povos, a justiça é só minimamente exigente: “Penso a decência como uma ideia normativa do mesmo tipo que a razoabilidade, embora mais fraca (isto é, ela cobre menos que a razoabilidade)” (RAWLS, 2001, p. 67).

5.

O ESTATUTO RAWLSIANO DOS DIREITOS HUMANOS Antes de mostrar como os direitos humanos, em Rawls, estão tensionados entre

exigências razoáveis expansivas e ponderações decentes restritivas, cabe iluminar a silhueta conceitual dos direitos humanos em Rawls. Cabe, ainda, trazer a lume o caráter problemático do desenho conceitual rawlsiano. Formulando-se brevemente, direitos humanos, em Rawls, são direitos: (a)

Quanto aos titulares: possuídos por todos os seres humanos enquanto membros

integrantes de povos que, imersos em um mundo apertado por laços globalizantes, cindido por disparidades econômicas, desigualdades sociais, diferenças culturais e desacordos políticos e transido por estratégias autointeressadas dos estados, não podem deixar de proteger os direitos urgentes que a justiça internacional demanda; (b)

Quanto aos destinatários: vinculantes de todos os povos, não apenas dos povos

bem ordenados (povos liberais e povos hierárquicos decentes), mas também dos povos arredios ao direito dos povos e desacoplados da sociedade dos povos, pois os direitos humanos contêm uma urgência concreta que não é elidida meramente pela rejeição arbitrária de um povo aos princípios razoavelmente não rejeitáveis do direito dos povos e à participação de boa-fé na sociedade dos povos; (c)

Quanto ao objeto: referidos a graus mínimos de fruição de bens universalmente

fundamentalíssimos. Tais bens são aqueles que preenchem necessidades urgentes de todo ser humano, a saber, vida, liberdade, propriedade e igualdade formal; (d)

Quanto à justificabilidade: respaldáveis tanto por argumentos realistas segundo

os quais eles já encontram (transbordante) expressão no direito internacional disponível, como por argumentos utópicos segundo os quais eles são os critérios exclusivos da legitimidade da guerra e da mitigação coercitiva da soberania estatal. Em ambas as vertentes, os argumentos empregáveis são argumentos (estritamente) políticos: “Os direitos humanos não devem ser justificados em termos de uma doutrina abrangente particular religiosa, filosófica ou moral, pois fazer isso seria causador de divisão em um mundo pluralista” (HINSCH, STEPANIANS, 2006, p. 118); (e)

Quanto à função política: de um lado, limitadores das possibilidades

justificáveis de empreender guerra e de interferir na resolução nacionalmente autônoma dos

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negócios domésticos; de outro lado, garantidores a todos os seres humanos de um acesso mínimo a bens universalmente fundamentalíssimos11; (f)

Quanto à exigibilidade moral: exigíveis a partir de um pano de fundo moral, pois

os direitos humanos não se resumem a termos contratuais válidos apenas para os povos que se submetem ao direito dos povos. Eles também valem para os povos que se recusam a ingressar na sociedade dos povos por recusarem os padrões decentes de pacificidade e não interferência injustificável. A exigibilidade moral dos direitos humanos, portanto, transborda os limites contratuais de formação e aplicação do direito dos povos; (g)

Quanto às pressuposições éticas: nutridos pela disposição dos povos a fazer

florescer suas relações mútuas mediante a aplicação metódica e incessante: (i) do comércio em vez da rapinagem; (ii) da diplomacia em vez da intransigência beligerante; (iii) da tolerância em vez da depreciação desrespeitosa e da padronização coativa; (iv) da abertura a aprender dialogicamente em vez do fechamento etnocêntrico; (v) da solidariedade em vez do ensimesmamento materialmente excludente e da indiferença despertadora de ressentimentos. Cada uma dessas sete qualificações que configuram o estatuto rawlsiano dos direitos humanos é, porém, (profundamente) problemática: (A)

Quanto aos titulares, o estatuto rawlsiano é problemático porque deixa entrever

um pano de fundo moral (necessário para alargar a titularidade dos direitos humanos para os seres humanos que não pertencem aos povos integrantes da sociedade dos povos) que, porém, não é plenamente desdobrado, pois Rawls está interessado só em uma concepção política de direitos humanos, não em uma fundamentação moral deles; (B)

Quanto aos destinatários, o estatuto rawlsiano é problemático porque inclusive

os povos fora da lei, inimigos da sociedade dos povos, são vinculados pelos direitos humanos, isto é, por um princípio do direito dos povos, cuja legalidade, porém, é forjada contratualmente somente pelos povos bem ordenados; (C)

Quanto ao objeto, o estatuto rawlsiano é problemático porque uma concepção

política centrada na função político-internacional dos direitos humanos (como é a concepção rawlsiana) não consegue desenvolver-se sem tomar emprestado um procedimento próprio de uma concepção humanista: o recurso a características humanas básicas cuja necessidade de

Rawls destaca três funções políticas dos direitos humanos: “1. Seu cumprimento é uma condição necessária da decência das instituições políticas e da ordem jurídica de uma sociedade. 2. Seu cumprimento é suficiente para excluir a intervenção justificada e coercitiva por outros povos, por exemplo, mediante sanções diplomáticas e econômicas, ou, em casos graves, mediante a força militar. 3. Eles fixam um limite ao pluralismo entre os povos” (RAWLS, 2001, p. 80). 11

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proteção e promoção é tão premente que justificaria a criação de direitos universalmente válidos; (D)

Quanto à justificabilidade, o estatuto rawlsiano é problemático porque só

argumentos políticos não parecem dar conta da complexidade dos direitos humanos, os quais não se esgotam em suas funções políticas, mas também apresentam um lastro moral que não pode ser totalmente lançado fora, pois dele depende, pelo menos em parte, a própria cogência política universal dos direitos humanos. Direitos humanos parecem ser direitos originariamente morais que devem ser politicamente traduzidos e reforçados; (E)

Quanto à função política, o estatuto rawlsiano é problemático porque encurta

demais o espectro das funções políticas dos direitos humanos. Direitos humanos não são politicamente relevantes apenas nas relações cooperativas entre os povos, mas também fora dessas relações, ou seja, para apátridas, refugiados, movimentos sociais, protestos populares, desobedientes civis, contestações efêmeras, críticas sociais, organismos transnacionais. Direitos humanos parecem ser critérios ubíquos de legitimidade política, invocáveis e usáveis em qualquer arena política; (F)

Quanto à exigibilidade moral, o estatuto rawlsiano é problemático porque não

constitui uma abordagem satisfatória da validade moral dos direitos humanos, limitando-se à investigação de seu papel político-internacional; (G)

Quanto às pressuposições éticas, o estatuto rawlsiano é problemático porque, se

os direitos humanos dependem de uma eticidade internacional emblematicamente urdida nas relações entre as democracias constitucionais, a face moral dos direitos humanos esmaece-se mais ainda, assim como sua vinculatividade universal (de todos os povos) torna-se ainda mais questionável.

6.

DIREITOS HUMANOS “DECENTEMENTE RAZOÁVEIS” Os direitos humanos, em Rawls, incorporam uma tensão permanente entre razoabilidade

e decência. Por um lado, eles não podem ser razoavelmente rejeitados, ou seja, eles têm validade universal à proporção que não podem ser levantadas contra eles objeções razoáveis, tais como objeções de etnocentrismo e imperialismo. Eles mantêm validade universal na medida em que correspondem a necessidades urgentes de todo ser humano que não podem ser negadas, muito menos insatisfeitas razoavelmente. Por outro lado, os direitos humanos não equivalem àqueles direitos básicos que cidadãos razoáveis e racionais em uma sociedade liberal eticamente plural e politicamente neutra reconhecem uns aos outros: eles não se confundem com aqueles direitos que asseguram autorrealização autônoma e respeito mútuo (por cada plano de vida pessoal) a

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cada cidadão em uma sociedade aberta à diversificação ética, orientada à tolerância e provida de uma razão pública não impregnada de uma doutrina abrangente. Os direitos humanos, para Rawls, não são meios que cidadãos razoáveis e racionais empregam para proteger e promover o florescimento de sua autonomia plena: enquanto autores independentes de uma vida valiosa, assim como enquanto membros cooperantes de uma sociedade justa que lhes propicie um bem comum à medida que lhes proporcione ser e fazer aquilo que não podem efetuar sozinhos. São os direitos liberais que cumprem a função política de proteção e promoção da autonomia plena dos cidadãos, mas não os direitos humanos. O estatuto rawlsiano dos direitos humanos é, antes, muito menos exigente que o estatuto rawlsiano dos direitos liberais em termos individualistas. Em termos individualistas, os direitos humanos só garantem uma satisfação mínima de necessidades urgentes. Que essas necessidades não sejam satisfeitas minimamente desmascara a imposição social de gravíssimas mutilações da autonomia plena dos cidadãos e, assim, traduz que a estrutura básica da sociedade doméstica é superlativamente opressiva e, pois, indigna do respeitoso reconhecimento internacional: “Um sistema social que viola esses direitos não pode especificar um esquema decente de cooperação social e política. Uma sociedade escravocrata carece de um sistema de direito, pois sua economia escravocrata é dirigida por um esquema de comandos impostos pela força. Falta-lhe a ideia de cooperação social” (RAWLS, 2001, p. 65). As necessidades urgentes que Rawls implicitamente pressupõe como sendo objeto dos direitos humanos, portanto, são as necessidades partilhadas por todo ser humano que, se não forem minimamente satisfeitas, apontam a completa ausência de cooperação social e, ao invés disso, a presença de uma estrutura social básica modelada para proporcionar benefícios apenas a alguns mediante o sacrifício metódico de outros, uma estrutura social básica que só poderia ser acolhida por alguns cinicamente (os beneficiários, os senhores de escravos) e que, contudo, contaria com a rejeição razoável veemente de outros (os sacrificados, os escravizados). A lista rawlsiana de direitos humanos evidencia que apenas constituem direitos humanos aqueles cuja violação numerosa (ou desestabilizadora) implica que uma sociedade degenera em um sistema insuportavelmente opressivo: Entre os direitos humanos estão o direito à vida (aos meios de subsistência e segurança); à liberdade (a ser livre de escravidão, servidão e trabalho forçado, assim como a uma medida suficiente de liberdade de consciência para assegurar a liberdade de religião e pensamento); à propriedade (propriedade pessoal); e à igualdade formal como expressa pelas regras da justiça natural (isto é, que casos similares sejam tratados similarmente) (RAWLS, 2001, p. 65).

Uma sociedade que sistematicamente (ou agudamente) submetesse cidadãos à fome, à miséria, à violência, ao genocídio, à escravidão, à servidão, ao trabalho compulsório, ao trancafiamento

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religioso e dogmático da consciência, à expropriação ou a tratamentos formais arbitrariamente desiguais constituiria uma sociedade que não só fracassa em satisfazer necessidades inadiáveis e profundas dos seres humanos como tais de modo casual (ou desculpável), mas que, antes, se reduz a uma máquina mastodôntica de violação dos direitos humanos. Desse modo, “nenhuma sociedade que falha em proteger esses direitos pode razoavelmente alegar que promove o bem comum de seu povo e pode requerer obediência como uma questão de obrigação, em lugar de uma questão de força bruta” (HINSCH, STEPANIANS, 2006, p. 124). Desse ponto de vista individualista, direitos humanos, para Rawls, são direitos mínimos que não podem ser violados sistematicamente (ou agudamente) sem que a estrutura básica da sociedade doméstica se converta em um aparelho ameaçador de dominação truculenta12. Nesse sentido, a sociedade aparece internacionalmente como disruptiva, inspiradora de preocupação, pois, se sua estrutura básica normaliza tratamentos atrozes de seus próprios cidadãos (abriga a possibilidade hedionda de seus próprios cidadãos serem massacrados caprichosamente), então não há expectativas sólidas de que a sociedade, domesticamente cruel, será internacionalmente civilizada, incessante e consistentemente aliada à manutenção da paz universal. Em um mundo cada vez mais globalizado, a truculência interna é cada vez menos provável de aparecer apenas como assunto exclusivamente doméstico, mas é cada vez mais capaz de transbordar fronteiras e provocar receios, desconfianças, contestações e até reprimendas internacionais. Por excelência, esse é o ponto de vista rawlsiano sobre os direitos humanos: trata-se do ponto de vista político-internacional. Direitos humanos, consoante Rawls, são aqueles direitos cuja violação sistemática (ou aguda) não é internacionalmente indiferente, mas, antes, afeta tão nefandamente a sociedade dos povos (com seu projeto político de construção histórica de uma cooperação no mínimo decente entre todos os povos) que passa a oferecer um critério razoável para a intervenção humanitária, a autodefesa e a domesticação da condução da guerra. O que interessa a Rawls, por conseguinte, não é estabelecer um catálogo de direitos que todos os povos deveriam assimilar (atribuir a seus cidadãos) para serem povos razoavelmente justos. Não é a justiça razoável da estrutura básica de cada sociedade que interessa a Rawls. É a justiça mínima das relações internacionais que lhe interessa – um índex de direitos que todos os povos deveriam assimilar para se tornarem membros acreditáveis e respeitáveis, no mínimo decentes, da sociedade dos povos: membros dispostos a uma cooperação internacional que se ampara, em última análise, na ausência de truculência na estrutura básica de cada sociedade.

12 Ou, como diria um intérprete notório da filosofia rawlsiana: “Direitos humanos são concebidos como uma classe especial de direitos que especificam os padrões mínimos de instituições políticas decentes” (FREEMAN, 2003, p. 47).

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A facticidade política da estrutura social básica de cada membro da sociedade dos povos como esquema não redutível à dominação mediante força bruta alimenta a própria viabilidade de um direito dos povos. Sem decência social, o direito dos povos se pulveriza em mera quimera, já que decência social é o padrão mais baixo de justiça: “O respeito pela decência humana é uma condição de justiça, ainda que não todas as sociedades decentes sejam justas (em um sentido democrático liberal)” (FREEMAN, 2003, p. 45). A decência não exaure toda a justiça, mas representa o mínimo de justiça que os povos devem satisfazer para que sua estrutura social básica seja digna de deferência respeitosa e para que possam ser tolerados como membros iguais da sociedade dos povos. Os direitos humanos são concebidos por Rawls a partir do critério de decência, o qual é razoável, mas não atinge o elevado grau de rigor da razoabilidade dos cidadãos de uma democracia liberal quando eles se atribuem liberdades fundamentais. Enquanto, na posição original “doméstica”, as partes estão incumbidas de estabelecer os direitos que mais realizam a liberdade e a igualdade dos cidadãos, as partes, na posição original “internacional”, estão orientadas a consolidar somente os direitos que protegem as condições mínimas das quais todo ser humano urgentemente carece para viver uma vida livre e igual. Rawls, assim, consegue alcançar seu objetivo teórico de “desconectar a defesa dos direitos humanos do liberalismo, como também de qualquer doutrina abrangente, a fim de fortalecer o argumento em favor deles no nível internacional” (AUDARD, 2007, p. 257). O estatuto rawlsiano dos direitos humanos está, em última análise, entre o inteiramente irrazoável e o inteiramente razoável: direitos humanos são aqueles direitos que os povos devem reconhecer para não patinarem na ladeira da completa irrazoabilidade, mas que não os compele a saltar até o nível da completa razoabilidade. Que a satisfação dos direitos humanos seja um princípio do direito dos povos não é, de modo algum, um meio de pressionar povos não liberais à conversão ao liberalismo político (e à importação das liberdades fundamentais da justiça como equidade), mas é apenas um limiar de decência aquém do qual um povo não liberal se reduz a refém e/ou a instrumento da barbárie.

7.

CONCLUSÃO A concepção rawlsiana de direitos humanos pode ser vista como um campo minado no

qual as minas são explosivas tensões entre política e moral, moral e ética (no sentido de moral convencional, Sittlichkeit), cidadãos e povos, universalismo e contextualismo, sistemas máximo e mínimo de direitos. Todo esse campo minado, no entanto, pode ser decifrado a partir daquela tensão primária que inspira e limita conceitualmente a integralidade da concepção rawlsiana: a tensão entre o razoável e o decente.

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Quanto à tensão entre política e moral, os direitos humanos rawlsianos são direitos que só existem enquanto direitos politicamente construídos, mas que, ao mesmo tempo, têm uma força moral que os torna existentes (e geradores de deveres) também para os povos que não participam e se recusam a participar de sua construção política. Eles existem e são vinculantes também para os povos fora da lei (refratários ao direito dos povos) porque eles não podem ser razoavelmente recusados por tais povos, já que só denotam requisitos decentes de cooperação internacional. Assim, eles se tornam tanto mais razoavelmente irrecusáveis quanto menos razoavelmente demandantes eles são, ou seja, quanto mais eles traduzem parâmetros elementares de cooperação social geral. Quanto à tensão entre moral e ética, os direitos humanos rawlsianos têm um pano de fundo moral (ao qual Rawls só faz referência furtivamente) e, ao mesmo tempo, dependem de um substrato ético faticamente encontrável nas relações admiráveis entre as democracias liberais. Esse substrato ético é indispensável para alimentar a vinculatividade política dos direitos humanos, pois mostra que uma cooperação internacional minimamente justa não é uma utopia ultramundana. Os direitos humanos enquanto diretrizes decentes de cooperação internacional já estão aí, operantes e frutíferos nas relações exteriores democrático-liberais, não obstante essas diretrizes decentes sejam razoavelmente cogentes inclusive onde ainda se encontrem emperradas e estéreis (ou insatisfatoriamente eficazes). Quanto à tensão entre cidadãos e povos, os direitos humanos rawlsianos respondem a necessidades básicas dos cidadãos, mas não a todas as necessidades básicas deles: respondem somente àquelas necessidades básicas individuais que devem ser supridas para que um povo inteiro não esteja subjugado por uma estrutura social básica superlativamente opressiva (ou insuportavelmente injusta). Enquanto os cidadãos podem exigir razoavelmente que todas as necessidades básicas que eles socialmente têm sejam supridas, um povo só precisa decentemente prover a satisfação das necessidades básicas socialmente urgentes, as quais toda cooperação social (liberal ou não liberal, interna ou externa) deve satisfazer para contar como cooperação social. Quanto à tensão entre universalismo e contextualismo, os direitos humanos rawlsianos são universalmente válidos, apesar de contextualmente forjados, isto é, forjados apenas pelas partes representantes dos povos bem ordenados na segunda posição original. É que a decência social que eles incorporam é universalmente não rejeitável de modo razoável. Além disso, a decência social que eles incorporam abre espaço para que os diferentes povos (liberais e não liberais) moldem decentemente sua cooperação social doméstica e não possam ser acusados razoavelmente de aniquilar as garantias internacionais de boa-fé e civilidade.

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Por último, quanto à tensão entre sistemas máximo e mínimo de direitos, os direitos humanos rawlsianos não são tão numerosos e amplos quanto os direitos liberais domésticos porque eles não podem ser construídos à luz da racionalidade e da razoabilidade dos cidadãos, mas só podem ser construídos à luz da razoabilidade e da decência dos povos.

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