Direitos Reprodutivos e Direitos Humanos

May 23, 2017 | Autor: Ana Cláudia R. Cazé | Categoria: Direitos Humanos, Direito Internacional dos Direitos Humanos
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Os direitos reprodutivos da mulher brasileira: Uma visão do aborto sob a ótica dos direitos humanos e a problemática da sua legalização no Brasil Autor(a): Ana Cláudia RAMOS CAZÉ 1 Resumo A sociedade moderna vem, há muito tempo, promovendo debates e produzindo normas sobre os direitos reprodutivos da mulher, inclusive, quanto à questão do aborto, de modo que vários compêndios legais foram assinados por nações ao redor do mundo, para garantir que a mulher tenha o direito de decidir ter ou não filhos e quando tê-los, podendo, de forma voluntária, optar por interromper a gestação. No entanto, no Brasil, os preceitos legais estabelecidos em legislação universal e internacional, não vêm sendo cumpridos e as mulheres brasileiras são impedidas e repreendidas por uma legislação penal retrógrada e por questões de fulcro moral, religioso e de uma estratégia política de biopoder. Desse modo, milhares de mulheres morrem todos os dias em nosso país, devido à realização de abortos clandestinos, por não poderem exercer seus direitos sexuais, reprodutivos e humanos, de interromper a gestação. Palavra-chave: Direitos Reprodutivos, Direitos Humanos, Aborto, Biopoder. Introdução Há muito tempo, a sociedade contemporânea vem lutando pelos seus Direitos Sexuais e Reprodutivos, tendo como exemplos mais recentes de avanços nesta luta a Conferência sobre População e Desenvolvimento (CIPD) que ocorreu no Cairo, em 1994, na qual as nações concluíram que os direitos reprodutivos são direitos humanos e elemento fundamental para a promoção da igualdade de gênero, tendo o Brasil ocupado lugar de destaque na formulação do Programa de Ação do Cairo, objetivando a prática das decisões tomadas durante o evento. Tivemos também a emissão da Declaração dos Direitos Sexuais, em 1999, pela World Association for Sexual Health, em conjunto com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a qual objetivou assegurar a todos os seres humanos o direito ao desenvolvimento saudável da sexualidade, tendo em vista que a OMS considera a sexualidade como um direito fundamental e inerente à condição de ser humano. Também podemos citar os chamados “Objetivos do Milênio”, os quais foram criados pela Organização das Nações Unidas (ONU) na Declaração do Milênio, no ano 2000, com o objetivo de estabelecer metas a serem cumpridas por todas as nações membro, visando à promoção do desenvolvimento humano e a melhoria do destino da humanidade neste século. Dentre esses objetivos, encontra-se o objetivo da igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher. Por último, vale ressaltar o Painel sobre Direitos Sexuais, que resultou na Declaração de Direitos Sexuais da IPPF, elaborada 1

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais – UFCG, Pós-graduada em Gênero e Diversidade – UFPB, Assessora Jurídica e Elaboradora de Projetos – OSCIP Fundação Sistêmica, Mestranda em Direito Internacional – Universidade de Coimbra.

pela Federação Internacional de Planejamento Familiar (IPPF), em 2008, com a missão de orientar e dar suporte ao desenvolvimento dos direitos sexuais e à integração destes aos direitos humanos. Em todos estes compêndios, foram definidos parâmetros para o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, sendo estes compreendidos como ramificação dos direitos humanos, direito à liberdade, à igualdade e à dignidade da pessoa humana, sendo o Brasil membro ativo nessas reuniões e signatário de todas as declarações resultantes das mesmas. Dessa forma, torna-se incompreensível que, em pleno século XXI, o ordenamento jurídico pátrio ainda não tenha regulamentado a legalização do aborto no Brasil, visto que, além desta omissão corroborar para o descumprimento de preceitos legais, temos altos índices de mortalidade de mulheres devido ao elevado número de abortos clandestinos que são realizados todos os dias. No entanto, ainda assim, os direitos reprodutivos da mulher brasileira estão sendo refutados, não só o direito a uma gestação segura e saudável, mas também o direito à livre escolha de levar até o fim ou não a gestação também contando com assistência médica do governo em caso de escolha negativa. Metodologia A pesquisa bibliográfica realizou-se através de documentação indireta, tendo sido consultadas várias literaturas relativas ao assunto em estudo e artigos publicados na internet que possibilitaram que este trabalho tomasse forma para ser fundamentado. Segundo Marconi e Lakatos (1992), a pesquisa bibliográfica é o levantamento de toda a bibliografia já publicada em forma de livros, revistas, publicações avulsas e imprensa escrita. A pesquisa bibliográfica desenvolveu-se pelo método de abordagem hipotéticodedutivo e dialético. Quanto aos métodos de procedimento, foram utilizados os métodos histórico, estatístico, crítico e comparativo. Após o levantamento bibliográfico e de campo, procedeu-se a leitura analítica do material, a qual compreendeu as análises textual, temática e interpretativa. Resultados e Discussões I. Os direitos reprodutivos e humanos da mulher e a problemática da legalização do aborto no Brasil

Sabemos que a problemática da legalização do aborto no Brasil está longe de ser uma questão legal, mas sim motivada por razões de origem religiosa, burocrática, preconceituosa e, principalmente, política. Esta última, como ferramenta maior da repressão biológica da mulher, vitimada como homicida, ao lutar por um direito inerente à sua própria natureza, pelo fato de apenas ela ser capaz de gerar outro ser. Esta dominação social e política da mulher é denominada pelo sociólogo francês Michael Foucault (1978) de biopoder, que nada mais é que,

o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder. (p.3)

Para Foucault, Os mecanismos de poder são parte intrínseca de todas essas relações, são circularmente o efeito e a causa delas, mesmo que, é claro, entre os diferentes mecanismos de poder que podemos encontrar nas relações de produção, nas relações familiares, nas relações sexuais, seja possível encontrar coordenações laterais, subordinações hierárquicas, isomorfismos, identidades ou analogias técnicas, efeitos encadeados que permitem de uma maneira ao mesmo tempo lógica, coerente e válida o conjunto dos mecanismos de poder e apreendê-los no que podem ter de específico num momento dado, durante um período dado, num campo dado. (p. 4 e 5)

Desta forma, podemos compreender a relação de biopoder estatal como uma estratégia política, sob a figura dos nossos representantes do legislativo, os quais tem exercido repressão ante os direitos reprodutivos relacionados à livre prática do aborto pelas mulheres brasileiras, mesmo diante de um rol de leis de caráter internacional e de acordos firmados pelas Nações Unidas, objetivando o fiel cumprimento dos direitos da humanidade. A normatização dos direitos sexuais no mundo veio para afirmar que o exercício da sexualidade faz parte da própria natureza humana e, consequentemente, compõe os direitos à saúde e aqueles inerentes à pessoa humana, o que significa dizer que os seres humanos são livres para vivenciar e gerir suas vidas sexuais e reprodutivas, bem como expressar sua identidade sexual. Segundo a Declaração dos Direitos Sexuais da IPPF (2008), Os direitos sexuais são compreendidos por um conjunto de direitos relacionados à sexualidade que emanam dos direitos à liberdade, igualdade, privacidade, autonomia, integridade e dignidade de todas as pessoas. (p. iv)

Bem como admite que, Estes direitos incluem liberdade, igualdade, privacidade, autonomia, integridade e dignidade de todas as pessoas; princípios reconhecidos em muitos instrumentos internacionais que são particularmente relevantes para a Sexualidade. Direitos Sexuais oferecem uma abordagem que inclui, mas vai além da proteção de identidades particulares. Direitos sexuais garantem que todos tenham acesso a condições que permitam a plenitude e a expressão da sexualidade livre de qualquer forma de coerção, discriminação ou violência e dentro de um contexto de respeito à dignidade. (p. 10)

Dentre os direitos sexuais, temos também os chamados direitos reprodutivos, os quais admitem que todos os seres humanos possam escolher livremente como, com quem, onde e quando casarão, ou não, bem como a escolha de ter, ou não ter filhos.

Conforme o relatório da Conferência Internacional da População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), “a saúde reprodutiva inclui a capacidade de desfrutar de uma vida sexual satisfatória e sem riscos de procriar e a liberdade para decidir fazêlo ou não, quando e com que frequência” (Cap. VII, 7.2) Em 2004, o Plano Nacional de Políticas Públicas da Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres, da Presidência da República do Brasil, estabeleceu como uma das prioridades no que diz respeito à Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos, 3.3. Promover a atenção obstétrica, qualificadas e humanizadas, inclusive a assistência ao abortamento em condições inseguras, para mulheres e adolescentes, visando reduzir a mortalidade materna, especialmente entre as mulheres negras. (...) 3.6. Revisar a legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez. (p.63)

Assim sendo, confirmamos a teoria de que o impedimento para a legalização do aborto, no ordenamento jurídico brasileiro, não é legal e sim, política, pois o próprio governo já estabeleceu como regra a assistência ao aborto e a revisão da legislação que trata como crime a interrupção da gestação realizada por força de vontade da gestante. Os direitos humanos, como a própria terminologia pressupõe, são aqueles inerentes à própria condição humana, são os direitos que promovem a liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa humana e que independem de fatores como raça, credo, sexo ou orientação sexual. Desta forma, convencionou-se a nível mundial que os direitos sexuais e reprodutivos são parte integrante de tais direitos. Assim sendo, concluímos que, sendo os direitos sexuais e reprodutivos, também direitos humanos, estes passam a gerar obrigações para todos os países signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tais como o Brasil. Dentre estas obrigações, encontra-se a de incluir em sua norma nacional os preceitos estabelecidos na lei universal, bem como nas demais convenções das quais assinem ou façam parte e que tratem desta matéria. Dessa forma, o Brasil incluiu em sua legislação pátria, com força de emenda constitucional, todos os decretos, tratados, convenções e acordos internacionais, dos quais foi signatário, assim como criou sistemas regionais de proteção aos direitos humanos, com o objetivo de ampliar e fortalecer a aplicação destes em todo o território nacional. Dentre estas medidas, temos o Programa Nacional de Direitos Humanos, instituído pelo Decreto nº 4.229, de 13 de Maio de 2002, o PNDH II, datado de maio de 2002 que, entre outros temas, tratou especificamente da questão dos direitos humanos e direitos reprodutivos em seu segundo capítulo. O mesmo compreende ações para a

efetivação e execução das legislações internacionais às quais o Brasil se associou. Vale destacar o item 179, o qual propõe o “alargamento dos permissivos para a prática do aborto legal, em conformidade com os compromissos assumidos internacionalmente pelo Estado brasileiro, para a promoção da igualdade da mulher”. Os direitos sexuais, os direitos reprodutivos e os direitos humanos prescrevem, indiretamente, o direito à igualdade sexual. Esta igualdade pressupõe a inexistência de qualquer forma de distinção entre os sexos, promovendo a autossuficiência da mulher. Desta forma, entende-se que a mulher possui o direito intrínseco de exercer livremente o controle do seu corpo e de sua sexualidade. Ao pensarmos desta forma e, somando-se ao fato de que a mulher, pela sua própria natureza, é a única capaz de gerar outra vida e que tem o direito, estabelecido em lei, de fazê-lo quando e como bem entender, deveria ter também o direito de, mesmo estando gestante, decidir, por ato voluntário, por suas condições ou convicções, interromper a gestação. A mulher deve poder optar por não ter filhos naquele momento, visto que possui, conforme dispõe o Artigo 9 da Declaração dos Direitos Sexuais da IPPF, o “Direito de optar por casar ou não casar; constituir família; decidir ter ou não ter filhos, e como e quando tê-los” (p. vii). Do mesmo modo a World Association for Sexual Health e Organização Mundial de Saúde também aduzem que a mulher tem direito à escolha reprodutiva livre e responsável e a decisão de ter ou não filhos, como determina a Declaração dos Direitos Sexuais, a mulher tem 12. O direito a decidir sobre ter filhos, o número de filhos e o espaço de tempo entre eles, além de ter informações e meios para tal. Todos têm o direito de decidir ter ou não ter filhos, a quantidade destes e o lapso de tempo entre cada criança. O exercício desse direito requer acesso a condições que influenciam e afetam a saúde e o bem-estar, incluindo serviços de saúde sexual e reprodutiva relacionados à gravidez, contracepção, fertilidade, interrupção da gravidez e adoção.( p.3)

Apesar de tudo isso, no Brasil, a prática abortiva voluntária ainda se encontra tipificada no Código Penal como sendo prática criminosa. Vale salientar que a nossa legislação penal se encontra ultrapassado, tendo em vista que data do ano de 1940 e que o artigo que trata do crime de aborto, o artigo 124, teve sua última alteração no ano de 2004. Esta criminalização do aborto voluntário produz uma série de malefícios à mulher, tanto na questão moral, ao deixá-la vulnerável, vítima de preconceitos e da moral interna e social. Mas também a atinge fisicamente visto que, para fazer um aborto, a mulher tem que se submeter a clínicas clandestinas ou a pessoas inaptas, em locais impróprios e sem estrutura, ao invés de receber a devida assistência médica do Estado. Além disso, essa situação coloca na mulher todo o peso e responsabilidade pelo ato que venha a produzir, posicionando-a em situação desigual perante o homem.

Portanto, juntando todos esses fatores, percebe-se claramente que a não regulamentação do aborto só tem causado prejuízos às mulheres brasileiras. Considerações Finais Conclui-se, portanto, que a problemática da legalização do aborto no Brasil não é uma questão legal, pois, conforme aduz a legislação universal, os direitos reprodutivos e sexuais da mulher são assegurados também às mulheres brasileiras, a exemplo do que já ocorre em outros países ao redor do mundo, como França e Uruguai, neste último onde o aborto está normatizado desde 2012 e desde então foram realizados 6.676 abortos e não houve nenhuma morte ao contrário do que ocorre em nosso país, onde cerca de 850 mil a Um milhão de abortos são feitos todos os anos, e dentre estes cerca de 250 mil mulheres morrem em decorrência da clandestinidade e da falta de assistência, segundo dados do Ministério da Saúde. Contudo, a questão é meramente política, pois o nosso legislativo é composto por diferentes bancadas que se atêm a questões de fundo religioso, moral e de controle social. o chamado biopoder de Foucault, que exerce uma repressão social perante o direito individual que a mulher tem assegurado, em documentos assinados pelo próprio Estado, de decidir, segundo suas condições biopsicossociais, se deseja ter ou não ter filhos. Referências BRASIL. CÓDIGO PENAL - DECRETO-LEI 2848/40 | Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940. _______. Presidência da República. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES. – Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004. _______. PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS – PNDH Decreto nº 4.229, de 13 de Maio de 2002. FOUCAULT, Michel, 1926-1984. SEGURANÇA, TERRITÓRIO, POPULAÇÃO : CURSO DADO NO COLLEGE DE FRANCE (1977-1978); tradução Eduardo Brandao; revisão da tradução Claudia Berliner. São Paulo : Martins Fontes, 2008. IPPF – International Planned Parenthood Federation. DIREITOS SEXUAIS: UMA DECLARAÇÃO DA IPPF / IPPF - INTERNATIONAL PLANNED PARENTHOOD FEDERATION; Edição em Português de BEMFAM. – Rio de Janeiro: BEMFAM, 2009. MARCONI, Marina de Andrade e LAKATOS, Eva Maria. FUNDAMENTOS DE METODOLOGIA CIENTÍFICA. São Paulo, 1992. Ed. Atlas. Disponível em: < http://pt.slideshare.net/praetece/lakatos-marconi-fundamentos-de-metodologiacientifica>, Acesso em 24 de abr. de 2015. OS OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO DO MILÊNIO. Disponível em: < http://www.pnud.org.br/odm.aspx>, Acesso em: 24 de abr. de 2015.

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