DIREITOS SOCIAIS E A PROTEÇÃO DOS INDÍGENAS: ANÁLISE SOB A ÓTICA DA TEORIA CRÍTICA

June 28, 2017 | Autor: Eduardo Gomes | Categoria: Democracy, Pueblos indígenas
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Joaçaba 2013

© 2013 Editora Unoesc Direitos desta edição reservados à Editora Unoesc É proibida a reprodução desta obra, de toda ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios, sem a permissão expressa da editora. Fone: (49) 3551-2000 - Fax: (49) 3551-2004 - www.unoesc.edu.br - [email protected]

Editora Unoesc Coordenação Débora Diersmann Silva Pereira - Editora Executiva Revisão metodológica:Bianca Regina Paganini, Débora Diersmann Silva Pereira, Giovana Patrícia Bizinela, Gilvana Toniélo, Maria Lúcia Gelain Projeto gráfico: Simone Dal Moro Capa: Daniely A. Terao Guedes

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

R382

Relações de trabalho e seguridade social no Brasil e na Alemanha : Tomo II / organizadores Robison Tramontina, Rogério Nery, Yuri Schneider. – Joaçaba: Editora Unoesc, 2013. – (Série Direitos Fundamentais Sociais) 294 p. ; il. ; 30 cm. ISBN 978-85-8422-007-6 1. Direitos fundamentais. 2. Seguridade social – Brasil – Alemanha. I. Tramontina, Robison. II. Nery, Rogério. III. Schneider, Yuri. IV. Série CDD 341.67 Universidade do Oeste de Santa Catarina Reitor Aristides Cimadon Vice-reitor Acadêmico Nelson Santos Machado Vice-reitores de Campi Campus de São Miguel do Oeste Vitor Carlos D’ Agostini

Campus de Videira Antonio Carlos de Souza Campus de Xanxerê Genesio Téo

Conselho Editorial Nelson Santos Machado Débora Diersmann Silva Pereira Jéssica Romeiro Mota Eliane Salete Filippim Marcelo Zenaro Jane Mary L. N. Gelinski Evelácio Roque Kaufmann Ieda Margarete Oro Cláudio Luiz Orço José Francisco Manta Bragança Gilberto Pinzetta

Organizadores Robison Tramontina Rogério Nery Yuri Schneider

Comissão Científica Rogerio Gesta Leal (Unoesc, Brasil) Rodrigo Goldschmidt (Unoesc, Brasil) Francesco Saitto (La Sapienza, Italia) Mercè Barcelò i Serramalera (UAB-Espanha) Elda Coelho Bussinguer (FDV, Brasil) Eduardo Biacchi Gomes (Unibrasil, Brasil) Christian Courtis (UBA, Argentina) Ivan Obando Camino (Talca, Chile)

A revisão linguística é de responsabilidade dos autores.

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO....................................................................................... 5 CAPÍTULO I - FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS DOS DIREITOS HUMANOS SOCIAIS ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS SOBRE O PROJETO POLÍTICO DA MODERNIDADE........................................................................................ 9 Otfried Höffe

COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAS ALÉM DO ÂMBITO DA JURISDIÇÃO NACIONAL – O AUXÍLIO DIRETO........................ 23 Alessandra Mizuta, José Maria Rosa Tesheiner

POLÍTICAS PÚBLICAS E O “FUZZYSMO” DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS: ANÁLISE CRÍTICA DO ARE 639.337/STF– ACESSO À EDUCAÇÃO........................................................................................... 39 Mônia Clarissa Hennig Leal, Rosana Helena Maas

ATIVISMO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO (IN) OPERANTE PARAOACOMPANHAMENTO DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS................................................................. 55 Adriana Maria dos Santos Pertel, Carlos Henrique Bezrra Leite

DICOTOMIA NA ANÁLISE SOCIOECONÔMICA BRASILEIRA: O ESTADO BUSCANDO SUPERAR UM DÉFICIT SOCIAL CONSAGRADO.................................................. 69 Manuella Rocha Magi, Gina Vidal Marcílio Pompeu

A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 3239/2003 CONTRA O DECRETO N. 4.887/2003 E OS RISCOS DE NOVA INVISIBILIZAÇÃO DOS QUILOMBOLAS: ANÁLISE SOB O ENFOQUE DAS CINCO LÓGICAS DE PRODUÇÃO DE NÃOEXISTÊNCIA DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS............................................................ 81 Lucas Pacif do Prado Muniz, Gilsilene Passon P. Francischeto

DIREITOS SOCIAIS E A PROTEÇÃO DOS INDÍGENAS: ANÁLISE SOB A ÓTICA DA TEORIA CRÍTICA.............................................................................................. 113 Eduardo Biacchi Gomes, Priscila Andreoti Ferreira

A DIGNIDADE HUMANA COMO CRITÉRIO PARA O CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: ANÁLISE CRÍTICA DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO............................................................................. 129 Mônia Clarissa Hennig Leal, Rogério Gesta Leal

CAPÍTULO II - ASPECTOS POLÊMICOS DAS RELAÇÕES DE TRABALHO E OUTROS TEMAS DE DIRETOS SOCIAIS A GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL-IMPERIALISMO E A PRECARIZAÇÃO DOS DIREITOS DOS TRABALHADORES: LIMITES E DESAFIOS................................................. 149 Newton Menezes de Albuquerque, Marcus Pinto Aguiar

CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIGNIDADE DO TRABALHO E MULTICULTURALIDADE....... 167 Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira

A JORNADA NORMAL DE TRABALHO NO DIREITO BRASILEIRO EM BREVE COMPARAÇÃO ÀS NORMAS INTERNACIONAIS................................................. 179 Gilberto Stürmer, Juliano Gianechini Fernandes

PROTEÇÃO CONTRA A DESPEDIDA ARBITRÁRIA COMO PRESSUPOSTO PARA A PLENA EFETIVAÇÃO DOS DEMAIS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES – ALGUMAS NOTAS PARA UMA DISCUSSÃO...................................................... 191 Ingo Wolfgang Sarlet, Monique Bertotti

EFICÁCIA E EFETIVIDADE DO DIREITO À LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO – O PROBLEMA DAS REDES SOCIAIS..... 207 Denise Fincato, Andressa Gudde

LEGISLAÇÃO INTERNACIONAL E NACIONAL DO DIREITO FUNDAMENTAL À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA....................................................................... 227 Isabelle Maria Campos Vasconcelos Chehab, Ana Maria D´Ávila Lopes

REFLEXÕES SOBRE O DIREITO À CULTURA E SUA EXPRESSÃO NOS DIREITOS HUMANOS NO QUE SE REFERE AO PROTAGONISTA DO ABUSO SEXUAL, SUAS ESTRATÉGIAS E O COMBATE À VIOLÊNCIA PEDOFÍLICA VIA POLÍTICAS PÚBLICAS..... 247 Maria Luiza Mello

CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS.................... 279 Rogério Gesta Leal, Daniela Riboli

APRESENTAÇÃO A obra coletiva que tenho a honra de apresentar Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II – Relações de Trabalho e Seguridade Social no Brasil e na Alemanha,  é resultado dos trabalhos dos grupos de pesquisa do PPGD/Mestrado da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc) com seus parceiros de outros Programas de Universidades nacionais e internacionais. Os autores dos artigos são seguramente alguns dos mais destacados pesquisadores sobre suas matérias, com grande competência teórica e aguçado espírito crítico, fruto, sem dúvida, de suas indignações diante das matérias que abordam e pesquisam já de longa data. A obra evidencia, de forma hialina o diálogo e a sintonia acadêmica plena com que os pesquisadores do Mestrado em Direito da Unoesc vêm realizando. O Tomo II da presente obra, que aborda os constantes estudos sobre Direitos Fundamentais Sociais, trabalha com questões de alta relevância acadêmica que estão diuturnamente na pauta de todos os países dos pesquisadores/autores envolvidos, mas que, ao serem convidados para dissertar sobre os aspectos atinentes sobre as relações de trabalho e seguridade social entre os dois países, Brasil e Alemanha, trazem profundas contribuições baseadas em suas experiências vivenciadas, o que eleva sobremaneira a importância dos escritos. O tema “Seguridade Social” é, indubitavelmente, tema que perpassa por longa data no cenário mundial, seja no terreno liberal ou social, do capitalismo ao socialismo. E os artigos apresentados neste livro estão articulados de maneira que abordam aspectos de discussão política, histórica, filosófica e dogmática. Não foi de forma abrupta que a Seguridade Social surgiu no mundo. Seu surgimento foi oriundo da necessidade social de se instaurar métodos de proteção contra os mais variados riscos à pessoa humana. Não seria inverídico afirmar que a composição de padrões para diminuir os reflexos das adversidades da vida, como as moléstias, ancianidade, fome, etc., pode ser compreendida como parte da própria teoria evolutiva que já era apontada por Darwin, no ponto em que se refere à predisposição de adaptação do homem para sobreviver. No nosso país, sabe-se, a definição de seguridade social foi ampliada, a partir da Carta Política de 1988, idealizada como “Constituição Cidadã”, enaltecendo-se, desde a sua elaboração e promulgação, de que todos deveriam (e devem) ter o direito aos benefícios que ela distribui e, por evidente, o dever concorrer – no sentido de contribuir – para garantir às gerações vindouras, a solidariedade. Esse ideário orientou políticas sociais, após a Segunda “grande” Guerra, principalmente nos Estados-nação mais adiantados economicamente; aquele conjunto de ideias encaminhou políticas sociais e transmutou aquelas sociedades em Estados de Bem-Estar Social (Welfare State). É relevante evidenciar que esse objetivo alcançado foi uma atitude estatuída das sociedades por intermédio do apoio à intervenção do Poder Estatal, e não um corolário da ação do mercado. Sem dúvida, temos nisso a base sobre a qual se firmou o incremento social e econômico das mais evoluídas sociedades.

Em se tratando da Alemanha, é oportuno lembrar que, já com Otto Von Bismark se instituiu naquele país, vários seguros sociais reservados aos trabalhadores. Em 1883, o seguro-doença, obrigatório para os trabalhadores da indústria, mantido pelas contribuições dos empregados, dos empregadores e do poder Estatal; em 1884, o seguro de acidente de trabalho, mantido pelos empregadores; em 1889, o seguro de invalidez; ou seja, as leis instituídas por Bismark, foram introdutórias para a criação da previdência social não apenas naquele país, mas no mundo. Buscava-se evitar as pressões sociais colocadas pelos trabalhadores, por meio de movimentos socialistas corroborados com a crise na indústria. Com sólidos conhecimentos acerca da origem e do desenvolvimento do Estado de Bem-Estar e da Política de Seguridade Social, os autores apresentam de forma clara e detalhada as circunstâncias e as características filosóficas, políticas e históricas que nos levam a perceber as ideias básicas e as várias linhas de evolução da conceituação e da ação das ideologias políticas que sustentam da abordagem. Dessa forma, nesta obra os autores retomam vários aspectos a respeito do tema proposto nos grupos de pesquisa do PPGD da Unoesc, trazendo com suas impressões críticas uma contribuição extremamente importante para a (re)construção e para o avanço das questões democráticas de Direitos Sociais. Por certo, não há que se negar que a significativa contribuição dos autores nos coloca diante de novas interrogações e de novas exigências, que passam a ser referência imperiosa para um debate ético e questionador sobre as práticas efetivas que restabelecem o verdadeiro sentido dos Direitos Fundamentais Sociais. Como afirmei no início, para mim, uma honra. Aos leitores, um deleite. Prof. Dr. Yuri Schneider

ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS SOBRE O PROJETO POLÍTICO DA MODERNIDADE Otfried Höffe

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1 INTRODUÇÃO A situação é espantosa: a expressão direitos humanos, ou seja, os direitos que competem aos seres humanos como tais, exigem, por si mesmos, a conexão com uma antropologia. Apesar disso, a filosofia raramente se ocupa dela. A antropologia filosófica, em seu ponto mais alto, não se interessou pelo tema. É em vão que se procura esta expressão nas obras de Scheler,1 de Plessner2 e de Gehlen.3 A fundamentação dos direitos humanos também não costuma recorrer à antropologia. As reflexões, a seguir, buscam superar esse duplo déficit, integrando o tema dos direitos humanos a uma antropologia filosófica e acrescentando considerações antropológicas ao debate a respeito dos direitos humanos. 2 UM DISCURSO JURÍDICO INTERCULTURAL Quem busca superar o duplo déficit pode se deparar com uma segunda circunstância espantosa: teme-se que um instituto jurídico que deveria beneficiar todos os seres humanos se converta em um imperialismo jurídico-cultural. Eles foram pensados mais radicalmente na modernidade europeia, embora não tenham sido descobertos nela, formando desde seu conceito uma parte daquela moral universalista que não privilegia nenhuma cultura jurídica em especial, e que, além disso, rejeita todo o tipo de privilégio particular. Os direitos humanos fazem parte do núcleo do direito internacional vigente desde a Carta das Nações Unidas e dos dois pactos de direitos humanos de 1966. Estes devem se tornar direito vigente para que sejam mais do que meras palavras sem força de efetivação, ou seja, devem fazer parte tanto da constituição escrita ou não escrita das coletividades singulares quanto da constituição de sua coexistência: a comunidade global. Mas quem reconhece estes direitos humanos apenas nessa forma, ou seja, como direitos fundamentais positivados do direito de cada Estado ou do direito internacional, desconhece seu estatuto jurídico-moral: eles pertencem ao ser humano somente porque ele é ser humano. O seu potencial crítico é reduzido e é desperdiçada, em nome dos direitos humanos, a possibilidade de desenvolver criticamente direitos fundamentais vigentes de fato. As primeiras declarações dos direitos humanos são especialmente conscientes de seu significado elementar. Tanto a Declaração de Direitos de Virgínia (1776) quanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) iniciam com direitos válidos ante-

Diretor do Centro de Pesquisa de Filosofia Política, Seminário Filosófico da Universidade Tübingen, Bursagasse 1, 72070 Tübingen; [email protected] 1 Scheler (1928). 2 Plessner (1928). 3 Gehlen (1940). *

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Otfried Höffe

riormente ao Estado. Elas assentam, em seguida, a fundamentação legitimadora de todo o poder do Estado: como todo o poder emana do povo, chega-se apenas em um terceiro passo à atividade do Estado, tanto no sentido da autolimitação do poder estatal quanto das funções positivas do Estado. Essa sequência reflete uma visão que ocupa o lugar de uma fixação dominante da teoria do Estado e dos direitos humanos sobre a crítica do Estado absolutista. Legitimadoramente, as reivindicações são primariamente feitas e concedidas pelos seres humanos de maneira recíproca: uma vez que os direitos humanos devem primeiramente proteger os seres humanos da arbitrariedade de seus semelhantes e apenas secundariamente do poder do Estado, estabelecido para a proteção dos direitos humanos, Kant4 explica que o único direito inato ao ser humano consiste na “[...] liberdade (independência em relação a uma arbitrariedade necessária de outro), à medida que, conforme uma lei geral, ele pode subsistir juntamente com qualquer outra liberdade.” Os seres humanos se reconhecem nos direitos humanos como membros da comunidade jurídica, como detentores de direitos iguais. O direito positivo e o conjunto dos poderes públicos, o Estado, são estabelecidos para garantir esse reconhecimento. Discursos jurídicos interculturais são recomendados para que se evite o mencionado imperialismo jurídico-cultural. Felizmente, os direitos humanos são apropriados para tais discursos desde o seu conceito, pois uma instituição jurídica que não desfavorece ou privilegia ninguém por seu gênero, ancestralidade, raça ou língua não pretende ser vinculada ao ocidente ou à sua modernidade. E como os direitos humanos são universalmente válidos, de acordo com seu conceito, e são, consequentemente, culturalmente invariáveis, pode-se até acusar os atuais discursos dos direitos humanos de sempre serem conduzidos preferencialmente no interior de apenas uma cultura, a euro-americana. Mas tal acusação não atinge o pensamento dos direitos humanos em si mesmo. Além disso, as outras culturas são livres para participarem dos discursos e tomarem como ponto de partida a sua própria cultura jurídica. Assim, elas se confrontam com a tarefa de que o discurso de direitos humanos surgido no Ocidente deve, ao sair da própria cultura jurídica, filtrar os elementos, cuja validade não é dependente da cultura, mas culturalmente invariável. Alguns temem que esse processo de filtragem resulte em uma “tirania do universal”. Esse temor tem como fundamento uma incompreensão: a confusão entre universalidade e uniformidade. A validade universal de princípios jurídicos não se confunde, de forma alguma, com o aplanamento das diferenças socioculturais. A existência das religiões e confissões não é ameaçada ali, em que a liberdade religiosa é declarada princípio jurídico universal. Ao contrário, o direito humano da liberdade religiosa garante aquilo que é assegurado pela positivação, um direito fundamental da liberdade religiosa: a convivência pacífica, ou seja, a coexistência do diverso. Mas ainda se pode perguntar por que uma instituição jurídica que surge de maneira especialmente acentuada no Ocidente, embora não tenha surgido exclusivamente nele, pode ser esperada de todas as outras culturas? Não há dúvida de que isso somente é admissível se a condição já mencionada for satisfeita e se não houver nenhuma instituição jurídica válida apenas particularmente. As exatas condições de seu surgimento são eviden4

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Kant (1968). Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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temente particulares: refugiados religiosos que se sentem ligados à sua terra natal, apesar do afastamento, na distante América do Norte, e que se mantêm vinculados a direitos herdados. Por não poderem mais reivindicar estes direitos como cidadãos britânicos, em razão da posição negativa da coroa britânica, eles buscam uma nova base reivindicatória e vão muito longe nessa busca. Eles não falam do grau subsequente, como, por exemplo, dos direitos de um cristão ou de um branco civilizado. Tratam, em vez disso, certamente inspirados pelo Iluminismo, que lhes era contemporâneo, de direitos do ser humano como ser humano. De acordo com isso, eles falham à medida que não têm dificuldades em continuar a praticar a escravidão e a negar às mulheres a igualdade de direitos. A esse breve olhar para as condições de surgimento segue uma negação determinada de que as experiências ocidentais possam ter um significado heurístico para a instituição jurídica dos direitos humanos, pertencendo a força de justificação apenas a argumentos válidos interculturalmente e independentes do Ocidente. Há, ainda, um argumento de estratégia de argumentação. Para convencer culturas às quais a instituição jurídica é amplamente desconhecida, é imprescindível uma argumentação indiferente à diferença destas culturas. Por esses motivos, ou seja, em virtude da essência dos direitos humanos e para elevar a força de convencimento, deve-se separar a legitimação da gênese, concentrar-se totalmente sobre a legitimação e encontrar para ela argumentos indiferentes à cultura ou válidos interculturalmente. 3 IMAGENS DO SER HUMANO OU ANTROPOLOGIA? Entre os motivos pelos quais os direitos humanos são considerados dependentes da cultura está a percepção de que eles estão ligados a uma determinada imagem do ser humano. Se esta percepção estiver correta, a essência dos direitos humanos se perde, pois uma imagem do ser humano se apresenta como judia, a outra, apenas aparentada com a primeira, como cristã, uma terceira como muçulmana, uma quarta como budista e uma quinta como confucionista; existem, por fim, em rígida oposição a todas as concepções de mundo religioso, as rigidamente ateias. A imagem de ser humano da modernidade europeia, por sua vez, é individualista e relativamente desprovida de história, enquanto a dos chineses e, de outra maneira, a dos africanos, é determinada por uma característica solidariedade em relação aos seus antepassados. De qualquer maneira, as imagens do ser humano são empiricamente dependentes da cultura. Assim, uma das imagens de ser humano pode ser tomada como a correta. Contudo, seria necessária uma medida para o que é correto, na qual não pode ser encontrada quando ocorre preferência a uma das culturas, normalmente a própria cultura. É necessária uma medida independente desta cultura. As imagens de ser humano, específicas do Ocidente, devem ser abandonadas e um conceito do ser humano, como tal, deve ser desenvolvido; é necessário, portanto, um direcionamento para a antropologia. De acordo com as palavras do filósofo Maïstre:5

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Maïstre (1884, p. 74).

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Otfried Höffe [...] o ser humano é uma ficção, a suposição de uma essência universal do ser humano, embora ele só exista em formas produzidas culturalmente. Não há nenhum ser humano no mundo. Vi em minha vida: franceses, italianos, russos etc. [...] Quanto ao ser humano, declaro que não o encontrei em minha vida.

Mesmo no caso de pensadores que não têm nada de conservadores, como Lukács6 e Horkheimer,7 impera o ceticismo. Nietzsche8 chamou o ser humano de “[...] mais indeterminado que qualquer outro animal,” e Dilthey9 afirmou que “[...] apenas a história dirá ao homem o que ele é.” Tal ceticismo, contudo, não resiste a uma prova mais detalhada. Contra o temor de que o ser humano seja fixado sobre uma essência histórica, a mais recente antropologia interdisciplinar mostra, para a biologia, conforme Eibl-Eibesfeldt,10 e para a pesquisa com primatas, de Waal11 e também Höffe,12 que é próprio do ser humano, conforme sua natureza, uma dinâmica que cria tanto a cultura no singular, o ser humano que não é apenas orgânico-natural, quanto a no plural, as formas historicamente distintas. Enquanto a existência natural do ser humano é marcada cada vez mais pela natureza, as formas produzidas culturalmente nunca se tornam totalmente livres das disposições orgânico-naturais. Duas particularidades se destacam muito cedo na história do ser humano em comparação com o animal: uma fraqueza e uma força. A primeira em sua constituição orgânica e instintiva tem déficits tão evidentes que se parece, apenas com um pouco de exagero, a um ser deficiente. Mas como tem, em contrapartida, o espírito como força, pode-se resumidamente diagnosticar: corpo fraco, espírito forte. Na verdade, os dois lados se entrelaçam e a fraqueza envolve a força: para que a inteligência tenha espaço, os dons orgânicos e, sobretudo, instintivos, não podem ser fixados a um ambiente estreitamente determinado. O diagnóstico correto não revela uma fraqueza orgânica e uma falta de instintos, mas abertura ao mundo em vez de fixação ao ambiente, e uma relação reflexiva com o mundo e consigo mesmo ao invés de realização imediata da vida. 4 INVERSÃO DO OLHAR ANTROPOLÓGICO Uma antropologia dos direitos humanos não precisa se perder em todas as sutilezas e ramificações das diversas disciplinas da pesquisa antropológica. Ela se concentra sobre as pressuposições antropológicas ou sobre os fundamentos de sua instituição jurídica. Para esse fim, ela inicia com a diferenciação de dois conceitos fundamentalmente diversos da antropologia. A filosofia clássica conhece, desde seus primórdios, ao menos desde Platão e Aristóteles, uma antropologia pretensiosa, normativa e até “perfeccionista”. Ela determina o ser humano a partir de funções ou de possibilidades que ele deveria perceber,

Lukács (1979, p. 204). Horkheimer (1988). 8 Nietzsche (1988). 9 Dilthey (1958, p. 226). 10 Eibl-Eibesfeldt (2004). 11 Waal (2006). 12 Höffe (2009). 6 7

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à medida que quer ser um ser humano exemplar ou um ser humano em sentido pleno e ter uma vida bem-sucedida ou uma existência carregada de sentido. Há dois perigos, na tentativa de determinar o ser humano exemplar. Por um lado, deve-se contar com diversos conceitos de exemplaridade, de maneira a se repetir a dificuldade própria à teoria dos direitos humanos em relação às diversas imagens humanas. Se ela diz respeito a toda uma cultura ou apenas a determinado grupo de pessoas não é decisivo aqui. Em todo o caso, o cientista e o filósofo correspondem a uma imagem, a outra, o herói de guerra; a uma terceira corresponde o santo ou o artista genial, ou o estadista de longa visão. Por outro lado, existe a tendência de que, afinal, apenas conta o ser humano que está de acordo com suas funções, o verdadeiramente humano. Ao ser humano não tão humano, como as mulheres, os escravos e os povos colonizados, por outro lado, é negada a humanidade plena e, por isso, os direitos fundamentais lhes são negados. Mas não é necessário que a antropologia perfeccionista seja derrotada por esse perigo. Ao contrário, a lógica argumentativa e conceitual a favorece. Não segue o conceito de ser humano perfeito que o ser humano imperfeito não é um ser humano, mas simplesmente que ele não o é de modo perfeito. Uma antropologia dos direitos humanos também escapa ao perigo de desacreditar os seres humanos supostamente não tão humanos, mas por outro motivo, mais profundo, por precisar de uma antropologia diferente, não de uma antropologia perfeccionista, mas de uma antropologia “elementar”. Ela deixa a pergunta em aberto sobre onde o ser humano encontra a si mesmo sem declarar que a antropologia perfeccionista é impossível ou que ela tenha pouco sentido; a antropologia dos direitos humanos se obriga a um rígido afastamento. Ela recusa todo o conceito normativo do ser humano e tem uma razão temática para isso. Quem pergunta por direitos do ser humano apenas como ser humano não se interessa pela humanidade realizada. Em seu livro, Aristóteles13 pergunta quais formas de vida deixam esperar uma vida bem-sucedida, feliz, e coloca essa expectativa em dúvida para uma vida de prazeres, para uma vida política, à medida que se trata para ele de reputação, e para uma vida de negócios. Embora possam ser apresentadas boas razões para esta dúvida, conforme Höffe,14 de maneira que pareça como plausível ao menos uma antropologia normativa negativa, que critique determinadas formas de vida, a antropologia dos direitos humanos dispensa todos os debates a esse respeito. A abstenção de toda a antropologia normativa, aparentemente um déficit, é, na verdade, uma vantagem, pois evita todos os fatores que poderiam perturbar a tarefa. Uma antropologia dos direitos humanos se concentra sobre o essencial para o seu tema e pode ser esperada igualmente das culturas diversas, porque deixa em aberto a pergunta pela humanidade exemplar, que está fora de sua esfera. Graças a essa abertura qualificada, a antropologia dos direitos humanos permite o direito a ser individualmente diferente e até mesmo de ser excêntrico, em primeiro lugar, às diferentes culturas, em segundo lugar, às diferentes subculturas no interior de uma cultura, ou às minorias, e, por fim, aos indivíduos no interior de ambas.

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Aristóteles (2006). Höffe (2009).

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Mas este direito não é ilimitado. A defesa de um pluralismo radical, apreciada entre alguns pensadores pós-modernos, parece frívola à luz dos direitos humanos. Como a pluralidade social buscada pode ser capaz de sobreviver se não houver nada além de pluralidade no social? Em oposição a um pluralismo abrangente, a uma historicização igualmente abrangente e a uma relativização, os direitos humanos declaram que certas condições não podem ser pluralizadas, historicizadas ou relativizadas. Com isso, modéstia e imodéstia se fundem em uma vinculação bem determinada. Cada elemento que estabelece um limite para todo o direito à pluralidade e à diversidade, a admissão pretensiosa de condições válidas acima da história, determinando o que é o ser humano, liga-se a uma condição para a pluralidade e para a diversidade, a saber, a uma recusa de todo conceito normativo de humanidade, a qual é determinada por sua tarefa. Esta vinculação é relacionada a uma inversão do olhar antropológico, que merece o título pretensioso reservado pela filosofia moderna às mudanças fundamentais: para fundar os direitos humanos, a antropologia precisa de uma revolução copernicana. Em vez de determinar o ser humano a partir daquilo que lhe traz felicidade, autorrealização ou uma vida carregada de sentido, a antropologia abandona todos os conceitos normativos e teleológicos. Em vez de se submeter a condições de aperfeiçoamento do humano, o pensamento dos direitos humanos se contenta com aquilo que torna possível o homem como homem. Em sua modéstia antropológica, ele se concentra sobre as condições iniciais do ser humano, sobre as condições da capacidade de agir (conditions of agency). E apenas em relação a isso eles merecem a conhecida qualificação: como elementos indispensáveis ao ser humano, os direitos humanos podem valer como inatos e imutáveis; eles têm estatuto antropológico. 5 ANTROPOLOGIA SOCIAL NEGATIVA Por se tratar de condições de possibilidade, é permitido utilizar a expressão recorrente desde Kant15 e falar de interesses transcendentais, ou, de maneira mais modesta, de interesses relativamente transcendentais. Mas apenas com eles a tarefa de legitimação ainda está subdeterminada. A condição legitimadora dos direitos humanos, um conceito universal do ser humano, já é conhecida no Ocidente há muito tempo. A tradição religiosa dominante conhece a determinação judaico-cristã do ser humano como imagem de Deus; a tradição secular, filosófica, conhece a determinação grega como zōon logon echon.16 Mas como nenhuma das duas tradições tirou consequências jurídicas disso, tanto a teologia judaica quanto a cristã, bem como a filosofia política, são exortadas à modéstia. Uma primeira modéstia exige a dispensa da gênese histórica, a segunda, a despedida de imagens do ser humano. A última e a terceira modéstia criticam os aplanamentos largamente difundidos da história das ideias e lembram que, por séculos, nem a filosofia

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Kant (1968). Animal racional. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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política vinda dos gregos nem a teologia judaico-cristã esgotaram suas possibilidades de fundamentar e consolidar os direitos humanos. Retornemos à tarefa legitimadora: pode-se falar genericamente de uma reivindicação apenas ali onde o outro tem de preencher esta reivindicação. Quem quer legitimar direitos, precisa, por isso, justificar os deveres correspondentes; quem quiser banir os direitos humanos, tem de justificar deveres humanos correspondentes. Dois momentos merecem ser acentuados nessa tarefa. Primeiramente, as pretensões não consistem em um sentido absoluto, mas em um sentido relativo. O direito humano ao corpo e à vida, por exemplo, não significa a pretensão humana – e a quem ela deveria ser dirigida? – de não morrer ou ao menos morrer em idade avançada, quando se está, como diz Abraão, “farto da vida”. O segundo momento é mais importante: o direito apenas relativo, mas não condicionado, direciona-se aos próximos, aos outros seres humanos, e exige deles, de cada um sem exceção, em uma atuação cujo mínimo consiste em uma atuação negativa, a recusa da violência. Nesse ponto, poderia ocorrer, a partir, por exemplo, do lado africano ou do chinês, em geral a partir do lado confucionista, a objeção de que os direitos humanos privilegiam a imagem de ser humano individualista do Ocidente. Se esta objeção estiver certa, são falhas as duas tarefas, a de uma antropologia e a dos discursos interculturais. Opõe-se a tal objeção a circunstância de que o exemplo e a integridade do corpo e da vida fazem parte do campo dos direitos individuais de liberdade, mas que ainda assim dependem da atuação dos outros seres humanos. Até mesmo os direitos de liberdade são fundamentados por uma antropologia social. Além disso, tanto a tradição africana quanto a chinesa proíbem a violência contra o próximo, uma proibição que pode ser vista em seu direito penal e em qualquer outro direito penal. Pelos dois motivos, a antropologia social e a proibição da violência, puníveis com pena, podem ser vistas como possíveis de serem fundadas de maneira culturalmente neutra e antropológica. Em relação ao gênero específico da antropologia social isso não é tão simples. Na tradição aristotélica da antropologia social ou, mais exatamente, política, a palavra-chave “esfera social” ou “esfera política” é preferencialmente entendida de maneira positiva, como ajuda mútua e complementação, em suma, como cooperação. Diante disso, a tradição hobbesiana acentua o lado negativo, a ameaça recíproca. Se entendido corretamente, contudo, este lado negativo da esfera social, a natureza conflitante do ser humano, não é uma alternativa para a natureza cooperativa, mas o seu complemento carregado de experiência: o ser humano tanto pode ser ferido quanto é capaz de violência, sendo, portanto, potencial agente e potencial vítima de violência. O conceito de “agente” deve ser entendido em um sentido amplo; “agente” é o sujeito capaz de agir, que pode ameaçar seu semelhante com violência, por meio da violência deliberada, da violência dissimulada ou de uma negligência consciente, como, por exemplo, a recusa de prestar um auxílio essencial à vida. Mas a capacidade para a violência pode ser recusada biologicamente: a pele do homem é sensível, suas mãos são adequadas para machucar. Em consequência disso, não se tem aqui uma imagem de ser humano dependente da cultura. É igualmente válida, de maneira neutra em relação à cultura, a compreensão de que a capacidade para a violência Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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não ameaça primeiramente as condições de realização da humanidade, mas as condições iniciais verdadeiras. A prova mais simples da validade intercultural consiste no direito penal, que, em praticamente todas as culturas, conta com delitos contra o corpo e a vida, punindo-os. Hobbes17 cunhou a antropologia do “ser tanto vítima quanto agente” com as palavras: “homo homini lúpus”.18 Os críticos o acusam de uma imagem de ser humano unilateral e pessimista. Para a antropologia dos direitos humanos essa acusação é injustificada. Pois, mais uma vez, de maneira modesta, a antropologia social negativa não é tomada como exclusivamente válida, mas novamente como antropologia parcial. É certamente falso que o ser humano seja apenas um lobo em relação ao seu semelhante. Seu grande opositor, Rousseau,19 não negará, com seu segundo discurso, que o ser humano também possa se tornar agressivo e ameaçar o corpo e a vida. Ainda que ele tenha razão e o ser humano não se destaque por um “impulso interior da comiseração”, uma compaixão natural em relação à miséria dos próximos, ele pode fazer ameaças, as quais podem se tornar uma ameaça existencial. A violência, ora indireta, ora direta, causada pelos homens aos seus semelhantes, não precisa ser afirmada como característica dominante do ser humano. Basta aquilo que está realmente certo: a violência é um risco que não deve ser excluído. Uma antropologiados direitos humanos faz referência ao perigo, à efetividade universal da capacidade para a violência, caso contrário, ela se absteria de todo o julgamento. Sem se deixar levar por uma avaliação positiva ou negativa, ela apresenta um elemento antropológico, comprovado interculturalmente carregado de experiência. A natureza social também tem o estatuto de um fato antropológico; a evidente comprovação: sem a ligação entre o homem e a mulher, sem o cuidado com as crianças, não há continuidade da vida humana. Mas que o outro fato seja privilegiado tem um motivo simples. Ali, onde as relações sociais consistem apenas da ajuda mútua e onde esta sempre ocorre de maneira espontânea e confiável, onde a natureza social positiva age e os direitos humanos perdem a sua condição de aplicação. A antropologia dos direitos humanos não acentua a antropologia social negativa em razão de uma imagem pessimista do ser humano. Responsável por isso é, muito antes, a tarefa de descobrir as condições iniciais da humanidade, que tornam primeiramente necessária a instituição jurídica dos direitos humanos. Porque o risco de conflito pertence indelevelmente à condição humana, a antropologia da cooperação e de uma vida bem-sucedida, da tradição aristotélica, não pode ser suficiente, e as instituições políticas não podem ser compreendidas preferencialmente a partir do desdobramento natural de impulsos sociais pré-dados. É necessária uma realização própria maior, embora o ser humano, como o apresenta convincentemente Aristóteles,20 é “naturalmente” um ser político, que precisa produzir a si mesmo como tal ser. Para que a sociedade surja, é necessário um reconhecimento mútuo dos membros naturais da comunidade jurídica. Os direitos humanos destacam uma parte pequena, mas bem determinada, dessa tarefa, o reconhecimento surgido da reciprocidade de uma caHobbes (1966). O homem é o lobo do homem. 19 Rousseau (1959). 20 Aristóteles (2006). 17 18

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mada elementar de interesses inatos. Antes de se ocupar das oportunidades de autorrealização, cuida-se das condições fundamentais da humanidade. 6 A TROCA TRANSCENDENTAL A seriedade existencial dos direitos humanos explica porque as condições fundamentais da humanidade estão em jogo. Mas ela não torna compreensível a paixão característica que comporta o protesto contra as violações de direitos humanos: um pacto não de decepção ou de desprezo, mas de indignação. A reação é justificada porque não se trata de quaisquer interesses inatos, mas do núcleo dos interesses inatos, cujo reconhecimento tem o caráter de uma reivindicação. Em geral, não se percebe que aparece um abismo entre uma predisposição antropológica, uma ameaça de interesses inatos e uma tarefa jurídico-moral, em reconhecer os interesses e protegê-los. Quem não vê o abismo e já supõe ter alcançado a meta, deve aprender com os críticos que galgou uma elevação anterior ao cume, pois este ainda deve ser conquistado, o qual está contido na pergunta: Por que alguém pode reivindicar de outra pessoa que ela lhe reconheça direitos indispensáveis. A resposta está na correlação entre direitos e deveres. O pensamento aqui determinante não concerne em geral apenas aos interesses inatos: há uma reivindicação moral sobre o reconhecimento de uma realização apenas ali, onde a realização ocorre não de maneira simples e direta, mas com cautela: sob a condição de que aconteça uma realização correspondente da outra parte. Uma vez que os direitos humanos significam uma pretensão, eles não representam um presente que se oferece mutuamente ou – por simpatia, compaixão ou súplicas – unilateralmente. Trata-se, muito mais, de uma doação que somente ocorre sob a condição de uma doação da outra parte. Os direitos humanos se legitimam a partir de uma reciprocidade pars pro toto: a partir de uma troca. Quem reivindica dos outros as realizações que apenas ocorrem sob a condição da realização da outra parte está no campo do dever humano. Inversamente, ele detém o direito humano à medida que efetivamente concretiza a realização que somente ocorre sob a condição da realização da outra parte. O momento transcendental, o interesse transcendental relativo, liga-se a um momento social, porque apenas se pode realizar um interesse indispensável na reciprocidade e por meio dela, então não se está mais livre em sua escolha. Ali, onde os interesses não podem ser abandonados e, além disso, estão ligados à reciprocidade de maneira irresoluta, ou seja, em uma reciprocidade inata ou em uma sociabilidade inerente; ali se comunica a impossibilidade de abandono com a reciprocidade, sendo a troca correspondente indispensável. Em regra, pensa-se no caso da reciprocidade em uma tomada e em uma doação positiva, em cooperação. Certamente, há também a forma negativa, a ameaça mútua. Ela forma a fundamentação antropológica do grupo de direitos humanos, objetivamente primeiro, os direitos de liberdade. Os direitos ao corpo e à vida, à propriedade, o direito a um bom nome e à liberdade religiosa podem ser reconstruídos como uma troca, a qual o ser humano não realiza com alguns, mas com todos os seres humanos. A própria capacidade de ser autor de violência é trocada pelo interesse de não ser vítima da violência de um

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estranho. Característico desta troca é que somente se pode realizar o próprio interesse por meio de uma realização negativa de outros e, aliás, de todos os outros. A nova e transcendental interpretação dos interesses humanos fundamentais torna outros fenômenos, como o martírio ou o suicídio, compreensíveis, como opções respeitáveis e não apenas irracionais. A sobrevivência não é considerada o bem supremo, quer-se tomar a decisão sobre um bem mais elevado, com o qual se prova, porém, um interesse pela vida. Enquanto aquele quer dizer, ele mesmo, se e eventualmente quando está cansado da vida, o outro quer decidir, ele mesmo, a que sacrifica a sua vida: por fidelidade à sua convicção religiosa ou política e não, por exemplo, para ser morto por um assaltante. Uma vez que o ser humano não é apenas um ser vivo, a capacidade de falar e pensar, por exemplo, também faz parte das condições de sua capacidade de agir. A capacidade de agir é, além disso, ligada a relações sociais positivas, a relações de cooperação. Pois, sem elas, o bebê carente de ajuda não se torna um ser humano com responsabilidade própria e com uma identidade pessoal, social e cultural. Desenha-se, assim, um segundo campo de interesses transcendentais. Conforme Höffe,21 uma grande parte dos direitos humanos pode ser reconstruída a partir de três aspectos: do ser vivo, do ser dotado de linguagem e razão e do ser cooperativo, pois estes três aspectos juntos possibilitam a capacidade para agir. De acordo com o liberalismo clássico, cada um deve ser aquele que conhece melhor os seus próprios interesses; desde Nietzsche e Freud esse ponto de vista é considerado ingênuo. O conceito também é destituído da aludida controvérsia; no interior de interesses elementares, chama-se transcendental uma camada que se tem, independentemente do ponto de vista, do gênero ou de ser devoto do cristianismo, do islã, de qualquer outra religião ou de nenhuma. O caráter singular está em não se querer nada diferente disso: ser capaz de agir. 7 ANTROPOLOGIA MAIS ÉTICA Nenhum direito humano se deixa legitimar a partir da antropologia. Quem quer obter afirmações do dever diante de afirmações do ser, comete um erro do tipo ser-dever. Elementos antropológicos são descritíveis, contudo, em um sentido mais amplo, os direitos humanos são de natureza normativa. O elemento normativo, ou mais exatamente, moral, presente no modelo de legitimação esboçado, destaca-se por uma notável despretensão. A modéstia praticada no lado descritivo da antropologia se reencontra, portanto, no momento normativo. Os direitos humanos são fundamentados por uma moral, a qual dispõe de duas vantagens. Ela não pertence apenas à moral do mais merecido, mas à moral do devido, à moral do direito ou à justiça. Além disso, ela se abstém das controvérsias comuns na ética, porque se contenta com uma ética da reciprocidade ou da justiça da troca. Não é porque um dá e o outro apenas toma que há direitos humanos, mas porque ocorre um recíproco tomar e dar, e

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porque há, adicionalmente, entre a doação de uma parte e a doação da outra parte um equilíbrio aproximado. Roetz22 destaca que os direitos humanos se baseiam em uma moral que se encontra em muitas culturas diferentes: no confucionismo e na Grécia antiga, em Anaximandro, no hinduísmo, na epopeia nacional indiana Mahabharata e no Velho e no Novo Testamento. É a moral da regra de ouro ou da reciprocidade que tem um papel em todas as culturas. Uma legitimação dos direitos humanos tem, portanto, essa estrutura: antropologia mais ética. A parte da ética não é problemática. À medida que os direitos humanos beneficiam a todos, bastam, para seu reconhecimento, as ponderações sobre vantagens. Mas elas se diferenciam de exigências comuns da esperteza por meio de uma característica que a retórica dos direitos humanos descreve como “inata”: a insubstituibilidade. Isso porque, há mandamentos da esperteza que, em vez de serem relativizáveis, são considerados absolutos, e porque os mandamentos somente podem ser realizados. Além disso, na reciprocidade, cada um tem de se submeter à sua reciprocidade. Com isso, confirma-se a correspondência de pretensões indispensáveis e, igualmente, culpabilidades indispensáveis. Mas ainda fica em aberto a pergunta sobre quem será admitido no círculo dos parceiros de troca. De acordo com o relativismo cultural radical de Rorty,23 os seres humanos não se distinguem, a princípio, dos animais, mas por causa de fatos culturais contingentes. De acordo com esse ponto de vista, os animais também deveriam ser admitidos na classe dos parceiros de troca e ali, onde isso não ocorresse, deveria ser feita a acusação análoga à de racismo, o “especismo”, o egoísmo de espécie. Na verdade, contudo, há mais do que uma diferença meramente cultural: um animal não realiza qualquer abandono da violência em virtude de uma capacidade para agir. Isso ocorre de maneira amplamente instintiva, por medo, adestramento ou por conta de uma ligação afetiva. De acordo com todo o saber atual, os animais não dispõem da precondição para a reciprocidade apta ao direito, da capacidade de imputação, no máximo em proporções muito reduzidas. Mas se a precondição deve ser preenchida mais veementemente, então se deveria pensar se ocorre também com os respectivos animais, como, por exemplo, os primatas, relações jurídicas, e se há, em seu âmbito, direitos humanos, os quais certamente precisariam de outro nome, e um direito penal. Contra o critério da capacidade de imputabilidade se faz a objeção de que seria excessivamente rígido, porque excluiria as crianças pequenas e as pessoas com deficiências mentais graves. Mas a capacidade de imputabilidade somente falta temporariamente às crianças, não definitivamente, o que considera uma troca de fase adiada. Isso ocorre de maneira diferente com as pessoas com deficiências mentais graves, as quais não se tornam imputáveis mesmo com a melhor ajuda. É com razão, contudo, que não parece plausível e até mesmo moralmente monstruoso que pessoas com deficiências mentais graves não mereçam uma proteção diferente da dos animais. Mas o motivo não está em uma arrogância de espécie, como afirmou apressadamente Singer.24 Há um argumento de justiça compen-

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Roetz (1995, p. 69-79). Rorty (1993, p. 116). Singer (1984).

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satória: como as crianças são postas no mundo com conhecimento de sua necessidade de ajuda e apesar dela, elas têm direito à ajuda, geralmente limitada no tempo e, no caso das deficientes, a uma ajuda permanente. E se esta ultrapassa a capacidade dos pais, entra em ação um dever de solidariedade do respectivo grande grupo. A precondição da capacidade de imputabilidade não basta mesmo no “caso normal” de pessoas imputáveis, pois esta capacidade deve, em princípio, ser formada e, posteriormente, ser efetivamente realizada. Para isso, duas realizações são necessárias, as quais serão aqui apenas mencionadas: uma realização própria e uma realização dos outros. É necessário tanto o reconhecimento de si mesmo como imputável quanto o correspondente reconhecimento pelos outros. Ambas as realizações perfazem uma tarefa que eu chamo de protojustiça.25 Para Rorty,26 o pensamento de que o “[...] pertencimento a nossa espécie biológica traria consigo certos direitos” é uma espécie de “consolo metafísico”, o qual seria dispensado pelo pragmatista. A legitimação mostra, por um lado, que o pertencimento não fundamenta por si mesmo nenhum direito, apenas a atuação conjunta de argumentos antropológicos e éticos, e, por outro, que não apenas o pragmatista dispensa o consolo metafísico, mas também o teórico dos direitos humanos. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Nikomachische Ethik. Tradução Ethica Nicomachea. Hamburgo: I. Bywater, 2006. ______. Politik. Tradução O. Gigon. Munique: W. D. Ross, 1957. CONFUCIUS: The original analects: sayings of Confucius and his successors. Tradução E. Bruce Brooks e Taeko Brooks. New York, 1998. DILTHEY, Wilhelm; SCHRIFTEN, Gesammelte. Zur Weltanschauungslehre. Stuttgart, 1958. v. 8. EIBL-EIBESFELDT, I. Die Biologie des menschlichen verhaltens: grundriß der Humanethologie. Munique: Blank Media, 2004. GEHLEN, Arnold. Der mensch: seine natur und seine stellung in der welt. Wiesbaden: Akademische Verlagsgesellschaft Athenaion, 1940. HOBBES, Thomas. Leviathan oder stoff: form und gewalt eines bürgerlichen und kirchlichen Staates. Berlin: Neuwied, 1966. HÖFFE, Otfried. Demokratie im Zeitalter der Globalisierung. München: Beck, 2002. ______. Lebenskunst und Moral oder Macht Tugend glücklich? München: Beck, 2009.

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COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS ALÉM DO ÂMBITO DA JURISDIÇÃO NACIONAL – O AUXÍLIO DIRETO Alessandra Mizuta* José Maria Rosa Tesheiner**

1 INTRODUÇÃO A proteção dos direitos fundamentais ocorre em diversos níveis e são de tamanha relevância que foram introduzidos na Constituição Federal com força vinculante. Em decorrência de sua origem e repercussão política, a solução de conflitos envolvendo os direitos fundamentais não é simples. Dimoulis e Martins (2011) destacam que não importa em que sentido sejam tomadas as decisões pelo Legislativo ou pelo Judiciário, sempre produzirão efeitos políticos. Não obstante a inegável importância da atuação do Legislativo e do Executivo em prol destes direitos, a judicialização das demandas para garantir a efetividade dos direitos fundamentais (em especial dos direitos sociais) ocorre cada vez em maior quantidade. O fato é que sendo parte dos efeitos da globalização a universalização das demandas, as barreiras geográficas impostas pelo poder de jurisdição não deve representar um empecilho para a concretização dos direitos sociais. Para melhor compreensão, importa esclarecer que inicialmente serão abordadas questões em torno da efetividade dos direitos sociais, ou seja, de que forma o direito brasileiro se comporta diante da garantia e realização de tais direitos, para na sequência, demonstrar que, para o pleno gozo dos direitos sociais, é imprescindível a cooperação internacional, diante da relativização das barreiras geográficas frente à globalização. Por direitos fundamentais entende-se aqui os positivados na Constituição Federal de uma nação soberana. Portanto, diante da relevância e essencialidade dos direitos, o constituinte os elevou a condição de fundamentais. Também serão abordados (ainda que de forma superficial) os direito humanos. Isto porque se trata de direitos indispensáveis para a vida humana. OIs direitos naturais são relacionadas à dignidade, liberdade e igualdade positivados nas declarações e convenções internacionais, mas não introduzidos expressamente nas Constituições. Considerando que tanto os direitos humanos, quanto os direitos fundamentais garantem os direitos sociais, torna-se necessário abordá-los em ambas as dimensões (na-

_______________ * Doutoranda pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul em Teoria Geral da Jurisdição e Processo; Mestre pelo Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA); Especialista em Direito Privado pelo Instituto Brasileiro de Estudos Jurídicos (IBEJ3); Rua Universitária, Parque Balonismo, 92425900, Torres, Rio Grande do Sul, Brasil; alessandra.mizuta@ gmail.com ** Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, com projetos de pesquisa na área dos processos coletivos; Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul; [email protected]

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cional e internacional, portanto, enquanto direitos fundamentais, bem como enquanto direitos humanos). Não obstante o uso pela doutrina da terminologia Direitos Humanos Fundamentais, que abrange as esferas nacional e internacional de positivação (entre eles Alexandre Morais e Manoel Gonçalves Ferreira Filho), é aqui utilizada a expressão direitos fundamentais significando os direitos positivados na Constituição Federal e, portanto, abrangendo a esfera nacional; e direitos humanos, para a internacional. Assim, o presente artigo tem como objetivo apresentar de forma introdutória como a proteção dos direitos fundamentais ocorre no âmbito do território nacional, esclarecendo-se em seguida como o período da segunda guerra mundial representou uma quebra de paradigma na defesa destes direitos. Em sequência serão apresentados os efeitos da globalização no que diz respeito à eficácia dos direitos sociais, demonstrando que se faz imprescindível a cooperação internacional, devendo esta ocorrer de forma organizada para garantir a otimização das comunicações havidas entre as nações. No último segmento, trataremos do auxílio direto, expressamente previsto no Projeto do Código de Processo Civil, na versão aprovada pela Câmara dos Deputados em 25 de março de 2014 (PROJETO DE LEI N. 8.046/2010), modo mais recente de cooperação judicial internacional, que se soma à carta rogatória e à homologação de sentença estrangeira. 2 PROTEÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO AMBITO DO TERRITÓRIO NACIONAL Nunca esteve tão em voga se falar em direitos fundamentais, com maior ênfase aos direitos sociais. Os atos preparatórios à Copa do Mundo realizada no Brasil vieram acompanhados de forte movimento social, mais precisamente de protestos populares ocorridos nos meses de junho e julho de 2013 e demonstraram a insatisfação da população em especial quanto aos direitos à saúde e à educação. As reivindicações, que se estenderam até a realização do evento (durante o período da Copa com menor força), colocaram em evidência o discurso há tempo propagado por Sarlet 2010 (ano), ao mencionar que a crise de efetividade que afeta os direitos sociais (vinculados à exclusão social e falta de capacidade prestacional dos Estados) serve como fio condutor da crise dos demais direitos (entre eles o próprio direito a vida, integridade física, liberdade sexual, entre outros). Oportuno que se consigne, ainda, que a crise dos direitos fundamentais não se restringe mais a uma crise de efetividade, mas alcança inclusive a esfera do próprio reconhecimento e da confiança no papel exercido pelos direitos fundamentais numa sociedade genuinamente democrática. (SARLET, 2010, p. 8).

Ainda que se observem políticas públicas voltadas a assegurar tais direitos, havendo regulamentação por meio de legislação infraconstitucional visando a concretizar tais projetos, a desconfiança e ineficiência da prestação torna necessária a intervenção do Poder Judiciário como vigilante dos Direitos Fundamentais.

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Inobstante doutrina em sentido contrário, Sarlet (2008, p. 168) esclarece que o poder Constituinte de 1988 reconheceu “um conjunto heterogênio e abrangente de direitos (fundamentais)” sendo eles fundamentais, rotulando-os como direitos sociais e que abrangem direitos prestacionais ou positivos, bem como defensivos ou negativos. E avança no sentido de que o artigo 5º, § 3º, da Constituição (chamada cláusula de abertura, o que a tornaria uma norma geral inclusiva), possibilita que se considerem fundamentais outros direitos sociais além daqueles expressamente elencados como tais pela Constituição Federal, defendendo ainda, a elevação a esta condição dos direitos humanos previstos nos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Em decorrência de sua posição privilegiada, e de estarem imunes à supressão ou ao esvaziamento arbitrário pelos órgãos estatais, os direitos fundamentais devem ser diretamente aplicáveis. A controvérsia quanto à autoaplicabilidade gira em torno dos direitos econômicos, sociais e culturais, em decorrência de supostamente não estarem inclusos entre os dispostos no artigo 60, § 4°, inciso IV, da Constituição Federal. Como os direitos sociais têm por objeto prestações por parte do estado (embora não se trate de direitos exclusivamente prestacionais), a dimensão econômica ganha grande importância. Assim, a destinação e distribuição de bens materiais teria como verdadeira barreira fática a limitação de recursos do Estado. Ou seja, a efetivação dos direitos sociais estaria vinculada à disponibilidade de recursos materiais ou, conforme convencionado pela doutrina, à reserva do possível. Segundo Sarlet 2010, as decisões em torno da garantia dos direitos fundamentais deve ocorrer com base na Constituição Federal e não nos caixas do Estado. Diante disto, aponta como critérios balizadores a adequação e a proporcionalidade em sentido estrito. Em sentido contrário, Timm (2013) entende que os direitos econômicos e sociais previstos na Constituição Federal não possuem eficácia vinculante, servindo apenas como diretrizes para orientar o legislador, já que a sua concretude está vinculada à legislação ordinária. Neste aspecto, estaria a sua efetivação vinculada à previsão orçamentária. Por estarem os direitos econômicos e sociais vinculados a “soberania orçamentária do legislador”, torna-se necessária lei que estabeleça políticas públicas e consequente empenho da despesa por parte da Administração. Enquanto o mínimo existencial não depende de lei ordinária, e portanto, não se encontra sob a observância da reserva do possível, o mesmo não se pode dizer dos direitos sociais. A consequência seria que a judicialização do mínimo existencial permite ao Judiciário a entrega de tutela independente de questões orçamentárias, enquanto para os direitos sociais adequada seria a condenação do Estado à implementação de políticas públicas, e não o deferimento de tutela individual.

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3 OS DIREITOS SOCIAIS ALÉM DAS FRONTEIRAS - A QUEBRA DE PARADIGMA COM A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL Entre os séculos VIII e II a.C. vários filósofos (entre eles Zaratustra, Buda, Confúcio e Dêutero-Isaías) já adotavam “códigos de comportamento baseado no amor e respeito ao outro” (RAMOS, 2014, p. 32), o que pode ser compreendido como o estágio embrionário da afirmação dos direitos humanos. Já no séc. XVIII, as revoluções inglesa, americana e francesa trouxeram as primeiras afirmações claras em suas declarações de Direitos. Neste período, houve o rompimento com o modo tradicional de pensar a política, passando da ótica dos governantes para a perspectiva dos governados, dando indícios da construção do regime democrático da Idade Contemporânea, privilegiando os direitos naturais do homem. A ideia de direitos humanos internamente nos Estados passou por um longo processo de maturação, diferentemente de sua universalização, que tem uma lógica própria. Entretanto, é inegável que sua mundialização foi decorrente do severo colapso dos direitos humanos com o advento da segunda guerra mundial (1939-1945). Os atos de crueldade praticados contra o homem demonstraram a necessidade de sua proteção em âmbito internacional. Com o término do conflito houve a primeira manifestação dessa proteção por meio da Carta das Nações Unidas (ou Carta de São Francisco) de 1945, que criou a Organização das Nações Unidas (ONU) em substituição à Liga das Nações, com força o suficiente para promover negociações sobre conflitos internacionais, evitando guerras, promovendo a paz e os direitos humanos. Logo em seu preâmbulo, a Carta deixa clara a intenção de reagir às barbáries da guerra e a intenção de assegurar a proteção dos direitos fundamentais do homem. NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).

Em 1948 a ONU adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que, não obstante sua influencia e importância histórica, não possuía efeito vinculante, mas serviu de base para importantes tratados, estes sim com força legal, entre eles o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966). No centro do pensamento dos direitos humanos estão a vida e a dignidade do homem, bem como os direitos necessários para ter sua vida em liberdade, igualdade e dignidade, para tanto lhe sendo assegurados os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e coletivos. 26

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Assim, estes direitos que, antes da segunda guerra mundial eram objeto de preocupação legislativa nacional, depois dela passaram a ganhar tutela em âmbito internacional. Como consequência, embora no início do século XIX já se possa falar na cultura global de cooperação, foi após a Segunda Guerra que a cooperação se dinamizou, conforme previsão na Carta da ONU, em seu artigo 1º, §3. Artigo 1. Os propósitos das Nações unidas são: §3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; [...] (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).

A cooperação está prevista nos artigos 13, 55 e 56 da Carta da ONU, com ênfase no dever dos Estados de promover a cooperação no campo jurídico para solucionar os problemas nos terreno econômico, social, cultural, educacional, sanitário e conexos. Artigo 13 1. A Assembléia Geral iniciará estudos e fará recomendações, destinados a: a) promover cooperação internacional no terreno político e incentivar o desenvolvimento progressivo do direito internacional e a sua codificação; b) promover cooperação internacional nos terrenos econômico, social, cultural, educacional e sanitário e favorecer o pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião. CAPÍTULO IX COOPERAÇÃO INTERNACIONAL ECONÔMICA E SOCIAL Artigo 55 Com o fim de criar condições de estabilidade e bem estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as Nações Unidas favorecerão: a) níveis mais altos de vida, trabalho efetivo e condições de progresso e desenvolvimento econômico e social; b) a solução dos problemas internacionais econômicos, sociais, sanitários e conexos; a cooperação internacional, de caráter cultural e educacional; e c) o respeito universal e efetivo raça, sexo, língua ou religião. Artigo 56 Para a realização dos propósitos enumerados no Artigo 55, todos os Membros da Organização se comprometem a agir em cooperação com esta, em conjunto ou separadamente. (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945).

Para assegurar a cooperação internacional, os Estados organizam-se horizontalmente, firmando acordos, convenções, tratados e contratos que expressem as normas e valores aos quais se identifiquem e por isso voluntariamente dão seu consentimento, comprometendo-se ao seu cumprimento. Vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal adotou posicionamento no sentido de atribuir aos direitos humanos (previstos nos tratados internacionais) hierarquia infraSérie Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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constitucional. Embora reconheça que devam prevalecer sobre as demais normas infraconstitucionais internas, nega-lhes a condição de direitos fundamentais. 4 RELATIVIZAÇÃO DAS FRONTEIRAS COMO CONSEQUÊNCIA DA GLOBALIZAÇÃO Ao impor a proibição da autotutela (admitindo-a somente em raríssima exceções, como por exemplo, a legítima defesa e o desforço imediato), o Estado tomou para si o monopólio da jurisdição. Dessa forma, passa a ser seu dever/poder solução aos conflitos apresentados pelos jurisdicionados. Ainda que existam outras formas de solução de conflito, e que cada vez mais se busque incentivar a utilização de métodos alternativos, cabe ao Poder Judiciário promover a pacificação social e o bem estar comum, sub-rogando-se na vontade das partes e impondo a sua decisão. Conforme visto, os direitos fundamentais representam um limite à atuação do Estado. Outro limite decorre da existência de outros Estados igualmente soberanos. Diante disto, tem-se que a soberania dos Estados tradicionalmente representou barreiras geográficas para a atuação do Poder Judiciário. Desta forma, haveria uma barreira intransponível quando, para a efetivação do direito, fosse necessária colaboração de outro Estado soberano. Mas, a concepção de que a concretização do direito basta-se pela atuação da jurisdição interna encontra-se há tempo ultrapassada em decorrência da globalização. A dinâmica das relações econômicas, sociais e informativas ganham novos contornos, pois deixam de ser vistos estritamente sob a ótica nacional, passando a uma escala mundial. Dentro desse novo cenário, o debate acerca dos direitos sociais ganha força, já que a sua concretude exige a intervenção dos entes estatais. Embora os direitos sociais sejam compostos por direitos prestacionais e defensivos, merece maior atenção da doutrina aqueles que dependem de uma atuação do Estado. O mesmo debate acerca da aplicabilidade imediata dos direitos sociais amparados pela Constituição Federal (e, portanto, fundamentais), alcançam também os direitos sociais previstos nos tratados internacionais (diretos humanos). De forma idêntica, a ausência de efetividade decorrente da inexistência de normas que indiquem os meios pelos quais tais direitos serão implementados no âmbito internacional acaba por manter o debate mais no campo teórico, do que no campo prático. Daí novamente a importância do Poder Judiciário, pois se o planejamento estratégico falha na entrega de medidas para compensação das desigualdades fáticas entre as pessoas, deve a jurisdição promover a igualdade para que a sociedade reconheça todos como membros de uma mesma organização política. Mas esta efetivação torna-se ainda mais complexa se considerada a sociedade global. Sob outra perspectiva, Teixeira (2008, p. 33) percebe como efeito da globalização a transferência de poder soberano do público para o privado. Para ele, estaria ocorrendo

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“[...] uma contínua e não plenamente declarada transferência dos atributos da soberania econômica do Estado para a tutela de agentes não-estatais cujo comprometimento político e social é desconhecido.” Embora sua análise acerca da globalização acabe abordando a atuação das agências reguladoras, o aspecto de sua doutrina que nos importa é o aspecto econômico, já que para os diretos sociais esta é uma importante faceta. Com o surgimento da sociedade da informação, no século XX, em que as informações são transmitidas de forma instantânea e em que a interação acontece de forma intensa, tanto de forma presencial, quanto de forma virtual, as fronteiras geográficas são não mais do que obstáculos simbólicos para a livre circulação de serviços, de bens e de capitais. Enquanto o direito internacional privado tem como temática central o debate acerca do direito comercial e econômico, o direito internacional público liga-se por alguns valores básicos compartilhados pela sociedade internacional, relacionados com os direitos humanos, difundidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos. Consequência da interação dentro de um cenário globalizado, são também os conflitos jurídicos transnacionais e para solucioná-los o Estado soberano, que antes se limitava a administrar tensões dentro de seu próprio território, deve agora lidar com questões envolvendo uma perspectiva internacional. Torna-se necessário relativizar a noção de soberania, para abranger a sociedade global, sendo a cooperação internacional a saída para tornar possível o exercício de direitos que ultrapassam as fronteiras dos Estados. O alargamento e aprimoramento da cooperação jurídica internacional surgem como reflexo da preocupação dos Estados em mitigar os efeitos negativos da globalização no que se refere à concretização da Justiça nas relações internacionais. Institutos tradicionais como a Extradição e a Carta Rogatória foram aperfeiçoados ao mesmo tempo em que novos mecanismos foram criados para melhor adaptar a cooperação jurídica às necessidades atuais. (Manual de cooperação jurídica internacional e recuperação de ativos. BRASIL, 2012, p. 20).

Ainda que se esteja diante da ausência de uma autoridade supranacional de direito que torne possível a compatibilização de soberania dos Estados com suas obrigações internacionais, alguns direitos ultrapassam os limites territoriais dos Estados e que são compartilhados globalmente. Assim, a soberania do Estado dá lugar à cooperação, dada a existência de valores comuns, como o respeito às disposições humanitárias internacionais. 5 A NECESSÁRIA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS Diante da crescente atenção voltada aos direitos humanos e fundamentais, da importância que ganhou o Estado para assegurar o acesso a tais direitos e da relativização das barreiras geográficas decorrentes do processo de globalização, o Legislativo e o Executivo avançam reunindo esforços pela cooperação internacional. A busca pela concretização dos direitos sociais materializa-se pela participação das convenções e negociações internacionais e por políticas públicas em defesa dos direitos do homem. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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Embora venha caminhando de forma mais tímida, o Judiciário também vem buscando integrar-se em prol da cooperação internacional. De um modo geral, a atuação do Poder Judiciário envolvendo questões que ultrapassam a soberania do Estado ocorre de forma burocrática e morosa, mas, acena-se uma mudança de mentalidade, por meio da previsão e implementação do auxílio direto. Nesse particular, vale enfatizar que a noção legalista positivista, que via no legislador a única locomotiva do direito, e no juiz tão somente o meio pelo qual as leis se concretizava, encontra-se ultrapassada. A atuação do operador do direito (em especial do magistrado) ganhou papel ativo na formação do direito, evoluindo de tal forma que a hermenêutica jurídica passa a ser reconhecida por seu papel criativo e normativo da atividade jurisdicional. O Judiciário passa a ser visto como essencial para o desenvolvimento do Direito. Embora não desprestigiando a atividade legislativa, ela por si não é mais tida como suficiente, passando o Judiciário a exercer papel fundamental para a sua efetivação. E para cumprir sua atribuição de promover a justiça, o Estado precisa cercar-se de mecanismos que lhe possibilitem alcançar bens e pessoas que eventualmente não se encontrem em seu território. Assim, não somente o debate acerca da questão orçamentária deve preocupar, mas também a necessária cooperação jurídica internacional para que ocorra a efetivação dos direitos. A cooperação jurídica internacional deixa de ser uma cortesia e passa a ser tida como essencial para a própria manutenção da soberania do Estado. Além da Organização das Nações Unidas (ONU), que trata da proteção dos direitos humanos de forma global, foram criados sistemas regionalizados, que coexistem harmoniosamente. O Brasil integra o sistema interamericano que possui como principal instrumento Convenção Americana de Direitos Humanos (conhecido por “Pacto de San José da Costa Rica”, 1969). Nele, reconhece-se os direitos do homem independentemente de sua nacionalidade, estando eles atrelados simplesmente à condição de pessoa humana. Com esta noção, o Pacto complementa as previsões nacionais, assegurando a proteção do homem também no âmbito internacional, o que somente se torna possível pela cooperação. Artigo 26 - Desenvolvimento progressivo Os Estados-partes comprometem-se a adotar as providências, tanto no âmbito interno, como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969).

Sob uma análise técnica, em princípio, a cooperação jurídica internacional funda-se em tratado internacional (art. 26 do Projeto). Independe, porém, de tratado internacional, a homologação de sentença estrangeira (art. 26, § 2o). Também independentemen30

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te de tratado internacional, podem realizar-se no Brasil atos de cooperação internacional com base em reciprocidade (art. 26, § 1o). Os principais atos de cooperação internacional dizem respeito ao cumprimento de sentença estrangeira, ao cumprimento de carta rogatória e ao auxílio direto. A cooperação jurídica internacional para execução de decisão estrangeira dá-se por meio de carta rogatória ou de ação de homologação de sentença estrangeira, de acordo com o art. 972 (RT. 40). O auxílio direto, apesar do nome, não ocorre por comunicação direta entre o juiz brasileiro e a autoridade estrangeira. É exigida a intermediação de duas autoridades centrais, a brasileira e a estrangeira. O pedido de cooperação jurídica internacional oriundo de autoridade brasileira competente é encaminhado à autoridade central para posterior envio ao Estado requerido para lhe dar andamento (art. 37). O pedido de cooperação oriundo de autoridade brasileira competente e os documentos anexos que o instruem são encaminhados à autoridade central, acompanhados de tradução para a língua oficial do Estado requerido (art. 38). Quando encaminhado ao Estado brasileiro por meio de autoridade central ou por via diplomática (o que não ocorre no pedido de homologação de sentença estrangeira, que é formulado pela parte), considera-se autêntico o documento que instrui pedido de cooperação jurídica internacional, inclusive tradução para a língua portuguesa, dispensando-se a juramentação, autenticação ou qualquer procedimento de legalização (art. 41). Dependendo da matéria de que se trata, a função de autoridade central pode ser exercida por órgãos diversos. Na falta de designação especifica no respectivo tratado, no Brasil, essa função compete ao Ministério da Justiça exercer (art. 26, § 4o). A cooperação jurídica internacional pode ter por objeto: I – citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial; II – colheita de provas e obtenção de informações; III – homologação e cumprimento de decisão; IV – concessão de medida judicial de urgência; V – assistência jurídica internacional; VI – qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira (art. 27). Depende particularmente de tratado a prática de ato coercitivo, como arresto e sequestro, rogado por Estado estrangeiro. Para atender aos pedidos de cooperação, o Brasil exige: I – o respeito às garantias do devido processo legal no Estado requerente; II – a igualdade de tratamento entre nacionais e estrangeiros, residentes ou não no Brasil, em relação ao acesso à justiça e à tramitação dos processos, assegurando-se assistência judiciária aos necessitados; III – a publicidade processual, exceto nas hipóteses de sigilo previstas na legislação brasileira ou na do Estado requerente; IV – a existência de autoridade central para recepção e transmissão dos pedidos de cooperação; V – a espontaneidade na transmissão de informações a autoridades estrangeiras (art. 26). Outrossim não se praticam atos que contrariem ou que produzam resultados incompatíveis com as normas fundamentais que regem o Estado brasileiro (art. 27). ou que configurem manifesta ofensa à ordem pública (art. 39). A compreensão destes instrumentos, equivale a possibilitar o alcance aos direitos sociais em demandas transnacionais. Por este motivo, passa-se a explica-los de forma individualizada. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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6 AUXÍLIO DIRETO Cabe o auxílio direto, lê-se no Projeto de Lei 8.046/2010 (n versão aprovada pela Câmara dos Deputados em 25/3/2014), quando a medida não decorre diretamente de decisão de autoridade jurisdicional estrangeira a ser submetida a juízo de delibação no Brasil (art. 28). A solicitação é encaminhada pela autoridade central estrangeira à autoridade central brasileira, na forma estabelecida em tratado (art. 29). Tem sido usual nos tratados, o Projeto estabelece presunção de autenticidade dos documentos encaminhados pela autoridade central (art. 29, in fine), dispensando-se, pois, ajuramentação, autenticação ou qualquer procedimento de legalização (art. 41). Hipótese importante de auxílio direto ocorre quando a autoridade estrangeira solicita decisão da autoridade judicial brasileira, caso em que, recebido o pedido de auxílio, a autoridade central o encaminha à Advocacia-Geral da União, que requer a medida ao juízo federal do lugar em que deva ser executada. Cabe ao Ministério Público Federal requer a medida, se indicado como autoridade central, nos termos do tratado celebrado pelo Brasil. Observe-se que, nesses casos, a decisão é do juiz brasileiro, ainda que deva atender ao estabelecido em tratado celebrado pela Brasil. Cabe referir aqui especialmente os pedidos, formulados pela Advocacia-Geral da União, perante Juiz Federal, de retorno de criança indevidamente conduzida para o Brasil, ou aqui, retida, por um de seus pais. Em que outros casos cabe o auxílio direto? Nos termos do artigo 30 do Projeto, o auxílio direto pode ter por objeto: I – citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial; II – obtenção e prestação de informações sobre o ordenamento jurídico e sobre processos administrativos ou jurisdicionais findos ou em curso; III – colheita de provas, salvo se a medida for adotada em processo, em curso no estrangeiro, de competência exclusiva de autoridade judiciária brasileira; IV - qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira. “O auxílio direto inclui, em especial, as medidas cautelares e antecipatórias aforadas diretamente no Brasil, que possuam fundamento em processo no exterior (v.g., quebras de sigilo).” (PERLINGEIRO, 2011, p. 299). Nesses casos, autoridade central brasileira comunicar-se-á diretamente com suas congêneres e, se necessário, com outros órgãos estrangeiros responsáveis pela tramitação e pela execução de pedidos de cooperação enviados e recebidos pelo Estado brasileiro, respeitadas disposições específicas constantes de tratado (art. 31). Em outras palavras, dispensa-se a intervenção da Embaixada e do Ministério das Relações Exteriores. Estabelece o artigo 32 que, no caso de auxílio direto para a prática de prestação jurisdicional que, segundo a lei brasileira, não exija prestação jurisdicional, a autoridade central adotará as providências necessárias para o seu cumprimento (art. 32). Incluem-se, entre esses casos, a notificação extrajudicial, a obtenção e prestação de informações sobre o ordenamento jurídico e sobre processos administrativos ou jurisdicionais findos ou em curso e qualquer medida extrajudicial não proibida pela lei brasileira.

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No cível, poder-se-ia pensar no uso de justificação proposta pela Advocacia Geral da União, com vistas à produção de provas para avaliação por juiz estrangeiro, mas não parece que se possa lançar mão de expediente semelhante no crime. Dispondo-se Juiz Federal a ouvir testemunhas, independentemente de exequatur do STJ, em atendimento a pleito de órgão judicante de Genebra, para instruir processo criminal em curso na Suíça, foi interposta reclamação, atendida pelo Vice-Presidente daquele Tribunal, por decisão liminar, que foi, todavia, cassada pela Corte Especial, ao julgar agravo regimental interposto pelo Ministério Público. Impetrado habeas-corpus, decidiu o Supremo Tribunal Federal que a prática de atos decorrentes de pronunciamento de autoridade judicial estrangeira, em território nacional, objetivando o combate ao crime, pressupõe carta rogatória a ser submetida, sob o angulo da execução, ao crivo do Superior Tribunal de Justiça, não cabendo potencializar a cooperação internacional a ponto de colocar em segundo plano formalidade essencial à valia dos atos a serem praticados (STF, 1a. Turma, HC 85.558, Min. Marco Aurélio, relator, j. 04/04/2006). Continuar-se-á a exigir exequatur do Presidente do Superior Tribunal de Justiça para citação, intimação e notificação judicial, para a colheita de provas e para a execução de medida cautelar eventualmente admitida por tratado celebrado pelo Brasil. O problema, aqui, é de ordem constitucional. Embora não haja dispositivo constitucional estabelecendo em que casos a rogatória é exigível, nossa tradição é no sentido de exigi-la para todos esses atos. Contudo, o Projeto abre as portas para o entendimento (que nos parece o melhor) de que a rogatória e o consequente exequatur do STJ será exigível apenas para atos de natureza coercitiva, como a execução de medida cautelar, podendo proceder-se à citação e à colheita de provas por auxílio direito, ainda que limitadamente ao cível. 7 CONCLUSÃO Sendo os efeitos da globalização percebidos a olhos vistos, forçou a adaptação de todos os relacionamentos e em todas as áreas de conhecimento, a tal ponto de provocar uma quebra de paradigma para organização do Estado e o Direito. Para assegurar a prestação jurisdicional em tempo razoável, como instrumento para garantia dos direitos e garantias fundamentais, o Estado precisou adaptar-se, relativizando sua soberania para que seus braços pudessem alcançar o Direito mesmo quando este ultrapassa as fronteiras geográficas. Assim, para assegurar a tutela dos direitos fundamentais nas relações sociais globalizadas, tornou-se necessário pensar em formas de interação cooperativa. Os sistemas processuais adaptaram-se para solucionar controvérsias não restrita ao espaço estatal com o intuito de garantir a concretização dos direitos. Os instrumentos cooperativos constituem um imperativo de preservação da própria soberania, que, ameaçada pela complexidade das relações jurídicas na sociedade contemporânea, não mais se sustenta em condições de exclusão e isolamento. Entretanto, os instrumentos disponíveis no ordenamento jurídico pátrio eram todos de alta complexidade, burocráticos e morosos. O auxílio direto, embora não dispense

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a intermediação de uma autoridade central, apresenta-se mais simples, menos burocrático e mais célere. A essencialidade dos direitos exige o rompimento das barreiras que impeçam sua concretização. O auxílio direto constitui um avanço, mas não se pode negar que falta percorrer ainda um longo caminho até que se alcance a almejada cooperação da Carta da ONU de 1945. REFERÊNCIAS ABADE, Denise Neves. Direitos fundamentais na cooperação jurídica internacional. São Paulo: Saraiva, 2013. ANDOLINA, Italo Augusto. La cooperazione internazionale nel processo civile. Profile della esperienza europea: verso un modelo de integrazione trans-nazionale. Revista de processo, São Paulo, ano 22, n. 88, p. 108-127, out./dez. 1997. ANDOLINA, Italo Augusto. Spazio di libertà, sicurezza e giustizia e cooperazione giudiziaria in materia civile. Revista de Processo, São Paulo, v. 35, n. 183, p. 224-238, mai. 2010. ARAUJO, Nadia de. A Conferência de Haia de Direito Internacional Privado: reaproximação do Brasil e análise das convenções processuais. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 35, p. 189, out. 2012. ARAUJO, Nadia de. Cooperação jurídica internacional no Superior Tribunal de Justiça: comentários à Resolução n. 9/2005. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. ­­­ARAUJO, Nadia de. Prefácio. In: CASELLA, Paulo B.; SANCHEZ, Rodrigo E. (Org.) Cooperação Judiciária internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: controle político-social e controle jurídico no espaço democrático. In: SARLET, Ingo Wolfgang; TIMM, Luciano Benetti (Org.). Direitos Fundamentais: orçamento e “reserva do possível”. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. BOCHENEK, Antônio Cesar; DALAZOANA, Vinícius. Supremo Tribunal Federal: aprimoramento das funções da justiça e good governance. Revista de Direito Brasileiro, ano 3, v. 5, p. 114-141, maio/ago. 2013. BORGES, Antônio de Moura; MACHADO, Carolina de Paiva Queiroz. A quebra do sigilo bancário no procedimento das cartas rogatórias: a posição do Judiciário brasileiro. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONSELHO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO E CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ (CONPEDI), 18., 2009, Florianópolis. Anais... Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. BORN, Gary B.; RUTLEDGE, Peter B. International civil litigation in United States Courts. USA: Wolters Kluwer Law & Business, 2011.

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POLÍTICAS PÚBLICAS E O “FUZZYSMO” DA EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS: ANÁLISE CRÍTICA DO ARE 639.337/STF – ACESSO À EDUCAÇÃO1 Mônia Clarissa Hennig Leal* Rosana Helena Maas**

Resumo O presente trabalho tem como foco o Agravo Regimental do Recurso Extraordinário n. 639.337/SP, do Supremo Tribunal Federal, que discute a política pública referente à matrícula de crianças de até cinco anos de idade em unidades de ensino infantil, mais precisamente, o fato de serem matriculadas em unidades próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus representantes legais. O objetivo é analisar, criticamente, a partir da referida decisão, como o “fuzzysmo” (expressão cunhada por Canotilho), isto é, a vagueza e a indeterminação, ainda se fazem presentes na fundamentação dos votos; no caso sob comento, pode-se verificar que os seus conceitos centrais, tais como o controle de políticas públicas e a legitimidade jurisdicional, o embate entre reserva do possível e mínimo existencial e a proibição de retrocesso social como obstáculo constitucional, são trabalhados de maneira deficiente, vaga, sem concretude. Frente a isso, traz-se a necessidade de uma teoria jurídica adequada aos direitos sociais fundamentais e ao controle de políticas públicas relacionadas a esses direitos, visto que as teorias provenientes da ciência política não são suficientes para enfrentar os problemas de compreensão, interpretação e concretização dos direitos fundamentais sociais e de suas prestações. Palavras-chave: Controle jurisdicional de Políticas Públicas. Direitos fundamentais sociais. Metodologia fuzzy. Supremo Tribunal Federal. Public policies and “fuzzysm” of fundamental social rights’ effectiveness: critical analysis of are 639.337/stf- access to education Abstract This work focuses on the appreciation of the ARE no. 639.337/SP, from the Brazilian Federal Supreme Court, discussing public policy involving the access of children under five years, more precisely in units of kindergarten next to their residence or work address. The objective is to analyze, critically, how “fuzzysm” (in the terms as referred by CaPós-Doutora na Ruprecht-Karls Universität Heidelberg (Alemanha); Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (com pesquisas realizadas junto à Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, na Alemanha). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul; Avenida Independência, 2293, Santa Cruz do Sul, 96815-900, Rio Grande do Sul, Brasil; [email protected] ** Mestre e Doutoranda em Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul; Professora da Universidade de Santa Cruz do Sul; Advogada; [email protected] 1 Este artigo é resultante das atividades desenvolvidas junto ao Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional aberta” (CNPq), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), estando inserido no projeto de pesquisa “Judicialização e controle jurisdicional de Políticas Públicas: contributo para uma gestão sistêmica da saúde a partir de uma cooperação entre os Poderes e atores sociais”, financiado pela FAPERGS, com recursos do Ministério da Saúde, no qual as autoras atuam na condição de coordenadora e de pesquisadora, respectivamente. *

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notilho) is still present in the fundaments of the decision; particularly in this case, the central concepts, such as judicial review of public policies and its legitimacy, the conflict between the cost of rights and existential minimum and prohibition of social backlash as a constitutional obstacle are poorly, vaguely, handled. So, it is necessary to develop an adequate legal theory related to judicial review of public policies as instruments of social rights implementation, since the traditional theories, mostly built from political science perspective, are not sufficient to address the problems of interpretation and concretization of fundamental social rights. Keywords: Judicial review of Public Policies. Fundamental social rights. Fuzzysm. Brazilian Federal Supreme Court. 1 INTRODUÇÃO A omissão e a ineficácia das políticas públicas que buscam efetivar os direitos fundamentais sociais é tema de análise e discussão corrente entre os Tribunais Estatais e o próprio Supremo Tribunal Federal. Assim sendo, através da decisão do Agravo Regimental do Recurso Extraordinário n. 639.337/SP, referente a matrículas de crianças de até cinco anos em creches e em pré-escola próximas as suas residências ou ao do endereço de trabalho de seus responsáveis legais, realiza-se uma análise crítica sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal ao decidir sobre as políticas públicas de direitos fundamentais sociais. Verificaram-se três questões pertinentes a serem perscrutadas, sendo elas: o controle de políticas públicas e legitimidade jurisdicional; o embate entre reserva do possível e mínimo existencial; e, a proibição do retrocesso social como obstáculo constitucional. Pretende-se com a “metodologia fuzzy”, de Canotilho, realizar uma nova leitura, análise dos temas que são, correntemente, discutidos em matéria do controle de políticas públicas. Alerta-se, porém, que se irá observar os conceitos centrais da decisão, de como eles são tratados de maneira deficiente, mas não o mérito da mesma. 2 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA: A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO AGRAVO REGIMENTAL DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 639.337/SP No Agravo Regimental do Recurso Extraordinário n. 639.337/SP figuram, como agravante, o Município de São Paulo e, como agravado, o Ministério Público do Estado de São Paulo. Trata da temática de política pública envolvendo a educação infantil, em que o Município de São Paulo, por meio de sentença, foi obrigado a matricular crianças em unidades de ensino próximas a sua residência ou do endereço profissional dos seus responsáveis, sob pena de multa diária. O Recurso de Agravo foi improvido, devido à nova realidade abarcada pelo Município de São Paulo envolvendo matéria de fato, visto que não cabe ao Supremo Tribunal Federal discutir tal natureza de matéria em questão de Recurso Extraordinário, atribuição esta do Tribunal a quo. Manteve-se a decisão agravada. No voto do Ministro Relator Celso de Mello podem-se notar, por sua vez, três pontos centrais: controle de políticas públicas e legitimidade jurisdicional; embate entre reserva do possível e mínimo existencial; e proibição do retrocesso social como obstáculo constitu-

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cional. Nesse sentido, mencionar-se-ão, na sequência, os trechos mais importantes referentes a esses aspectos, para, em seguida, trazerem-se as reflexões e críticas que se pretende. Observa-se que o Ministro Relator assevera que o direito à educação, como direito de segunda geração ou dimensão, impõe ao Poder Público um dever de prestação positiva, consistente num “facere”, em virtude de que o Estado só irá se desincumbir criando condições positivas que propiciem aos seus titulares o acesso pleno ao sistema educacional, incluído, aí, o acesso, em creche e pré-escola, às crianças de até cinco anos. Prosseguindo, tem-se que o direito à educação não pode ser comprometido pela inação do Estado, visto que configura um nítido programa a ser implementado mediante a adoção de políticas públicas consequentes e responsáveis. Ademais, a decisão da ADPF/45 foi citada - marco no que diz respeito ao controle de políticas públicas, decisão esta também de relatoria do Ministro Celso de Mello - com o intuito de afirmar que o Supremo Tribunal Federal, frente à dimensão política da jurisdição constitucional, não pode demitir-se e nem abster-se do “gravíssimo” encargo de tornar efetivos os direitos de segunda geração ou dimensão, quais sejam, os direitos econômicos, sociais e culturais. Ainda, sob fundamento da ADPF/45, o Ministro assevera que não se inclui no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário, e nas do Supremo Tribunal Federal, a atribuição de formular e de implementar políticas públicas, visto que primariamente essa tarefa cabe ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo. Todavia, alerta que, ainda que excepcionalmente, o Poder Judiciário pode, sim, agir em defesa dos direitos fundamentais: Impede assinalar, contudo, que tal incumbência poderá atribuir-se, embora excepcionalmente, ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame.

Seguindo, verifica-se o argumento no sentido de que não é lícito ao Poder Público criar obstáculos artificiais que revelem o propósito de fraudar, arbitrariamente, em desfavor de pessoas e dos cidadãos, as condições mínimas de existência. Também, tem-se que o município de São Paulo não poderá demitir-se, abster-se, do mandado constitucional juridicamente vinculante previsto no artigo 208 da Constituição e que representa fator de limitação de discricionariedade político-administrativa do Poder Público, principalmente condizente ao direito básico de índole social que é a educação, não esse direito, dessa forma, ser comprometido. Observa-se, ainda, quanto ao tema do controle de políticas públicas, que o objetivo não é atribuir, indevidamente, ao Poder Judiciário, uma intrusão nas esferas relacionadas aos demais Poderes; tal atitude é justificada, porém, por fazer prevalecer a primazia da Constituição, que muitas vezes é desrespeitada pela omissão dos Poderes Públicos. Assim, ao Supremo Tribunal Federal cabe suprir as omissões inconstitucionais dos órgãos estatais e adotar medidas que objetivam restaurar a supremacia da Constituição, sendo que, dessa forma, nada mais está fazendo que cumprir com o seu papel de “respeito incondi-

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cional pela autoridade da Lei Fundamental da República”. Verifica-se o argumento de que o Poder Judiciário não pode, quando os órgãos se omitem ou retardam o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação constitucional, reduzir-se a um papel de pura passividade. Ademais, encontra-se a advertência de que, na matéria ora discutida, ou seja, a educação infantil, o Supremo Tribunal Federal vem emitindo decisões no sentido de neutralizar os efeitos nocivos, lesivos e perversos da inatividade governamental, em situações nas quais a omissão do Poder Público veio a representar um inaceitável insulto aos direitos básicos assegurados pela Constituição, em que o exercício estava sendo inviabilizado por irresponsável inércia do Estado. Feitas essas considerações sobre a matéria de controle de políticas públicas na decisão, passa-se, agora, a referir sobre o tema da reserva do possível e do mínimo existencial, também suscitados na fundamentação da referida decisão. Nesse sentido, cabe trazer que, na visão do Ministro, Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Veja-se que, em tal hipótese, tem-se que o Poder Público não pode criar obstáculos artificiais que revelem o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação de condições mínimas de existência aos cidadãos. Observa-se, também, que o Ministro tem o cuidado de deixar claro que não desconhece que a destinação de recursos, devido a sua escassez, faz instaurar situações de conflito, cabendo ao Estado o encargo de superá-los, mediante opções de determinados valores em detrimento de outros igualmente relevantes, fazendo com que o Poder Público tenha, em face da insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, que realizar verdadeiras “escolhas trágicas” em decisões governamentais, cujo parâmetro fundado na dignidade da pessoa humana deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial. Dessa maneira, verifica-se na decisão que a cláusula da reserva do possível encontra limitação na preservação constitucional do mínimo existencial, que representa emanação direta do postulado da dignidade da pessoa humana. Sobre a reserva do possível, alerta ainda para o fato de que tal cláusula não pode ser invocada pelo Estado a fim exonerar-se, dolosamente, do cumprimento de suas obrigações constitucionais, principalmente quando dessa conduta governamental negativa puder resultar nulificação ou aniquilação de direitos constitucionais de essencial fundamentalidade. Finalizando, trazem-se algumas considerações acerca do último ponto que se irá abordar neste artigo, qual seja, o princípio da proibição de retrocesso, que, em tema de

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direitos sociais, impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelos cidadãos ou pela conformação social em que vivem. Trata-se de verdadeira dimensão negativa dos direitos sociais de natureza prestacional, como é a educação, impedindo que os níveis de concretização das prerrogativas a ele inerentes, uma vez atingidas, venham a ser posteriormente reduzidas ou suprimidas pelo Estado. E, dessa forma, o Ministro destaca que, no caso em análise, é de indiscutível primazia reconhecer, quanto aos direitos das crianças e adolescentes, a ineficácia administrativa, o descaso governamental para com os direitos básicos dos cidadãos, a incapacidade de gerir recursos públicos, a incompetência na adequada implementação do programa orçamentário. O Estado possui um dever inafastável de conceder o direito à educação, que compreende, também, o fornecimento de creches públicas e de ensino pré-primário às crianças de até cinco anos de idade, sob pena de tal omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental da cidadania. Esses foram os excertos tidos como importantes para a análise crítica e reflexões que se farão a seguir, referentes ao tema do controle de políticas públicas, do embate entre a reserva do possível e o mínimo existencial e a proibição do retrocesso social como obstáculo constitucional. 3 CONTROLE DE POLÍTICAS PÚBLICAS: A LEGITIMAÇÃO DA INTERVENÇÃO JURISDICIONAL O primeiro ponto de convergência que surge quando se fala em garantia de direitos sociais pelo Poder Judiciário diz respeito à separação dos poderes, isso porque, no Estado Constitucional, a jurisdição constitucional ganhou importância como garantidora da Constituição e dos direitos fundamentais; mas, em decorrência disso, também é acusada de violar o princípio da separação de poderes, com decisões ativistas, em um contexto caracterizado pelo fenômeno de judicialização do direito e da política. No que tange a essa atuação, duas questões devem, contudo, ser consideradas: a capacidade institucional, ou seja, que às vezes a matéria possui dimensões fáticas complexas, ultrapassando a alçada do direito (como no caso de assuntos técnicos e científicos, por exemplo); e os efeitos sistêmicos da decisão, sua abrangência e interferência em setores públicos (SUNSTEIN, 2008); o que faz Barroso (2009, p. 12) afirmar que “[...] o Judiciário quase sempre pode, mas nem sempre deve intervir.” Frente a isso surge, então, a questão: qual é o papel do Poder Judiciário na garantia dos direitos fundamentais sociais? Menciona-se que, originariamente, na concepção cunhada por Kelsen, a sua função era apenas de fiscalização e de controle, ou seja, o Tribunal Constitucional atuaria na forma de legislador negativo, fazendo tão-somente um “filtro” em relação às leis contrárias à Constituição, excluindo-as do sistema jurídico (LEAL, 2007). Dessa forma, sua tarefa não seria a de criar a norma, mas apenas interpretá-la, o que não levaria a disputa entre os poderes, havendo respeito a sua separação e independência (RUIZ, 2010). No que se refere ao controle de políticas públicas, o discurso do Supremo Tribunal Federal consiste no fato de que – e de maneira diferente não foi na decisão ora analisada -, frente à dimensão política da jurisdição constitucional, não pode abster-se de concreti-

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zar os direitos econômicos, sociais e culturais, direitos de segunda dimensão. E, por isso, apesar de não se incluir no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário, e nas do Supremo Tribunal Federal em particular, a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (visto que, primariamente, essa tarefa cabe ao Poder Legislativo e Executivo), excepcionalmente tal incumbência poderá ser atribuída ao Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem aos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, como sucede na espécie ora em exame – o direito à educação, segundo o Ministro Relator. Então, o que se observa é que, em caráter excepcional, o Supremo Tribunal Federal, apesar de afirmar que com isso não fere o princípio da separação de poderes, pode atuar nas competências reservadas aos demais Poderes Públicos e na discricionariedade administrativa e legislativa. Verifica-se, nesses casos, que o Tribunal pode realizar o controle de políticas públicas quando detectar omissão ou ineficácia das políticas públicas. Esse é o discurso. Todavia, se apenas em caráter excepcional o Supremo Tribunal Federal poderá assim atuar, qual é a regra? E quais são as exceções? E melhor: quem as dita? Chega-se, assim, ao ponto que se pretende discutir. E, para esse fim, utiliza-se Canotilho (2004), quando trabalha com a noção de “metodologia fuzzy” relacionada aos direitos sociais. Fuzzy em inglês significa “coisas vagas”, “indistintas”, “indeterminadas”. O autor afirma que, sobre a dogmática e a teoria jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais, pesa uma carga metodológica de vaguidez, indeterminação e impressionismo. Dessa forma, a censura do fuzzysmo lançada aos juristas significa, basicamente, que eles não sabem do que estão falando quando abordam os complexos problemas dos direitos de segunda geração ou dimensão. Para ele, a ignorância é tanto fática quanto técnica e jurídica. É nesse sentido que se correlaciona a decisão ora analisada, pois é nesse ar de vaguesa, de imprecisão, que parecem ser tomadas as decisões referentes às políticas públicas de direitos fundamentais sociais. Percebe-se, nitidamente, a falta de uma teoria jurídica para as políticas públicas – há, mais, teorias provenientes da ciência política, que não são suficientes, contudo, para enfrentar os problemas de compreensão, interpretação dos direitos fundamentais sociais e de suas prestações - para permitir um controle adequado pelo Poder Judiciário, assentado em critérios técnicos e jurídicos. Essa falta de uma teoria adequada acaba, muitas vezes, reforçando a noção de discricionariedade dos Poderes Públicos e diminuindo, por sua vez, as possibilidades de fiscalização e de controle pelo Judiciário. Assim, ao estar vinculado unicamente à Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal fica submetido, na verdade, a sua própria concepção acerca da Constituição, já que cabe a ele a interpretação última da Carta Política, constituindo-se ele, em última análise, no dizer de Böckenförde, no “Senhor da Constituição” (Herr der Verfassung) (BÖCKENFÖRDE, 1999). No caso do controle de políticas públicas, por sua vez, o Supremo Tribunal Fe-

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deral assevera que apenas em caráter excepcional poderá realizar tal controle, em caso de ineficácia e omissão; quem dita a excepcionalidade, contudo, é o próprio Supremo. Canotilho (2004) continua seu raciocínio referente à metodologia “fuzzy” afirmando que, especialmente em matéria de políticas públicas, há uma perda de foco, uma confusão, isso no sentido de seu conceito e de sua extensão, que vem a comprometer o entendimento próprio das mesmas e o seu controle: Um outro exemplo: quando o Presidente e o Vice-Presidente do Tribunal Constitucional da Alemanha discutem o valor jurídico-constitucional do embrião afirmando um que o embrião é vida humana e outro que o embrião é apenas um “conjunto de células de cor framboesa” não estarão a demonstrar de forma exuberante a doença infantil do fuzzysmo infantil? (CANOTILHO, 2004, p. 125).

Dessa forma, volta-se novamente ao questionamento antes assinalado: qual o papel do Poder Judiciário? Ser auto-contido, ativista, legislador negativo ou legislador positivo (não terminando e nem querendo restringir aqui as opções)? De maneira alguma se pretende dar cabo a essa grande tarefa no presente artigo, todavia quer-se chamar atenção para o fato de como o discurso jurídico referente aos direitos fundamentais sociais e ao controle de políticas públicas é permeado por uma confusão cuja culpa, todavia, não pode ser atribuída apenas ao Poder Judiciário. Não só isso, verifica-se certa confusão entre os direitos sociais e as próprias políticas públicas de concretização desses direitos sociais. Há uma indeterminação do conteúdo dos direitos (“camaleões normativos”, na expressão cunhada por Joseph Isensee, que, por outras palavras, significa a instabilidade e imprecisão normativa de um sistema jurídico aberto, consistente na ideia de que a referência dos direitos sociais se encontra em normas de caráter aberto, vagas, dotadas de uma abertura metodológica que reforça ainda mais a insegurança), indeterminação esta que explicaria um “transformismo normativo” que, permite que o discurso jurídico se transforme em um discurso político-constitucional baseado em programas concretizadores de diretivas políticas. Ocorre, assim, uma politização dos direitos sociais, passando-se de um discurso jurídico para um discurso político. De outro lado, tem-se que uma Constituição pode ser uma “ordem fundamental” e, no entanto, deixar “questões abertas” à decisão política. Isto porque, no dizer de Queiroz (2006), num sistema constitucional pluralista, as normas consagradas dos direitos fundamentais sociais devem configurar-se como normas “abertas”, de modo a possibilitar diversas concretizações, o que faz, por sua vez, surgir o problema na interpretação constitucional. Outrossim, não há como não trazer, segundo Canotilho (2004, p. 125), o ponto nevrálgico do moderno Estado de Direito Social no contexto ora analisado: O Estado de Direito pretendeu dar uma resposta ao uso ilegítimo de poder; o Estado social procurou resolver o problema da falta de dinheiro e, portanto, o problema da pobreza. Agora o , o , o preocupa-se com a ignorância e ileteracia científica. Bastará um platónico e à para resolver o problema básico do ! E o que fazer quando, hoje, em alguns países se acumulam as três faltas: a falta de controle de poder e da violência, a falta de dinheiro e a falta do saber? Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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Dessa forma, acredita-se que tais inquietações serão supridas apenas quando houver uma pedra fundamental dos direitos sociais. Como diz o próprio Canotilho (2004, p. 99), “[...] é necessário um alicerçar juridicamente”, dar concretude aos mesmos e, juntamente, adotar uma teoria jurídica das políticas públicas, para que se possa realizar o seu devido controle. Realizadas essas considerações, fazem-se, agora, outras sobre a decisão, mais precisamente no que se refere às teorias, de origem germânica, referentes ao mínimo existencial e à reserva do possível, critérios operacionais utilizados para a concretização dos direitos sociais pelos Tribunais. 4 O EMBATE ENTRE O MÍNIMO EXISTENCIAL E A RESERVA DO POSSÍVEL E SUAS INCONSISTÊNCIAS No que tange ao embate entre o “mínimo existencial” e a “reserva do possível”, na atual conjuntura, frente às decisões dos Tribunais brasileiros (e aqui não só se refere apenas o Supremo Tribunal Federal), o discurso parece estar consolidado, aproximando-se, quase, de um fórmula matemática, visto que em havendo o embate entre o mínimo existencial e a reserva do possível, o resultado tende a ser, reiteradamente, a garantia do primeiro, assim, justamente em fórmula: mínimo existencial x reserva do possível = mínimo existencial. Ocorre, contudo, que tais teorias muitas vezes são utilizadas apenas em termos retóricos, não se verificando ou especificando as reais questões que envolvem o mínimo existencial, quais são os fatores que pesam contra a efetivação do direito no caso concreto e qual a incidência da reserva do possível, ou seja, o que é razoável, em face das circunstâncias, exigir-se do Estado, e não o que a reserva orçamentária do Estado poderá realizar (ou supõe-se que possa realizar).2 E, na decisão sob comento, não foi diferente: entre o mínimo existencial das crianças e de seus representantes legais em ter garantida a vaga na escola infantil próxima as suas residências e local de trabalho e a reserva do possível do município de São Paulo, o resultado foi a prevalência do mínimo existencial. Novamente, contudo, está-se diante de um discurso vago, que carece de precisão, pois afirma-se que “o mínimo existencial vem proteger, consolidar a dignidade da pessoa humana”; porém onde está a concretude da dignidade da pessoa humana? Qual o alicerce de sustentação do mínimo existencial, considerando-se os elementos da decisão? Para o fim de se avançar nas considerações, expõe-se o seguinte trecho da decisão aqui analisada:

Interessante trazer, aqui, o que menciona Canela referente à teoria da reserva do possível, pois, diferente da maneira com que vem sendo tratada essa teoria, isto é, como forma de limitação, escusa, à realização dos direitos fundamentais demandados em juízo, o autor traz a lume a questão que a reserva do possível deve operar como um indicativo, um sinal de alerta para o Estado, no sentido de que a sua dotação orçamentária precisa ser ajustada. Dessa forma, o que se observa é uma “inversão” em seu papel. Veja-se: “A teoria da ‘reserva do possível’, por conseguinte, reconhece a evidência de que o Estado necessita de recursos financeiros para a realização dos direito. Todavia, labora em equívoco ao justificar a inação do Poder Judiciário – quando não das demais formas de expressão do poder estatal – no fato econômico-financeiro.” (CANELA JUNIOR, 2011, p. 232). 2

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Políticas públicas e o “fuzzysmo” da efetividade... A noção de mínimo existencial, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito a segurança.

O que se verifica é que o direito à educação, enquanto direito fundamental, integra o mínimo existencial. Essa é a afirmativa. Novamente, verifica-se que, sendo direito fundamental, independente da forma de concretização, compõe o mínimo existencial de cada pessoa. Ocorre, contudo, que o direito das crianças de até cinco anos de serem matriculadas em unidade de ensino infantil próximas de sua residência ou do endereço de trabalho de seus responsáveis legais (que constituía o pedido principal da ação) não foi discutida, apenas o direito à educação em si. Ademais, quando é trabalhada a teoria do mínimo existencial, a teoria é tratada de forma abstrata, vaga, indeterminada, em caráter mais retórico do que propriamente argumentativo. As mesmas críticas poderiam, por sua vez, ser lançadas à reserva do possível, todavia aqui cabem maiores explicações. Começa-se pelo fato de que é errôneo conceber-se a reserva do possível apenas ligada às reservas financeiras do Estado, pois ela apresenta, segundo Figueiredo e Sarlet (2008), uma tríplice dimensão: a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição de receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas; e, envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta quadra, também da sua razoabilidade. Assim sendo, a reserva do possível não pode ser compreendida apenas como uma teoria que possui o seu núcleo na questão orçamentária do Estado, ela envolve, também, a proporcionalidade e a razoabilidade das prestações, relacionando-se àquilo que o indivíduo pode pretender exigir da sociedade nesse sentido. Entretanto, no Brasil, a reserva do possível vem sendo compreendida de modo diverso daquele originariamente cunhado pelo Tribunal Constitucional alemão por ocasião da decisão conhecida com numerus clausus - cujo objeto de controvérsia era o artigo 12, §1º, da Lei Fundamental de Bonn, que assegura a todos os alemães o direito de escolher livremente a sua profissão, o local de trabalho e o seu lugar de formação, em vista do número limitado de vagas para o curso de Medicina –, na qual, pela primeira vez, foi empregado o conceito, associado, notadamente, à noção de razoabilidade, mais do que a questões financeiras e à disponibilidade de recursos econômicos. O próprio Supremo Tribunal Federal já advertiu que a reserva do financeiramente possível – expressão utilizada para a teoria no seu “jeitinho” brasileiro - constitui a exceção no sistema jurídico brasileiro, somente podendo ser alegada quando acompanhada de prova que declare a escassez alegada – ADPF 45 (ADPF 45 MS/DF – DISTRITO FEDERAL, MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRESEITO FUNDAMENTAL, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, JulgaSérie Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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mento: 29/04/2004). Dessa forma, a teoria somente terá êxito quando objetivamente aferível a escassez apresentada (BOLESINA; LEAL, 2013). No mais, quanto ao embate entre o mínimo existencial e a reserva do possível, cabe esclarecer que, em qualquer das hipóteses, a decisão deverá contar com dados concretos; em não sendo assim, não há justificativa para o acolhimento da alegação de reserva do possível (BOLESINA; LEAL, 2013), especialmente porque se trata de um elemento que implica na restrição à realização dos direitos fundamentais e, nessa perspectiva, precisa ser exaustivamente demonstrado (NOVAIS, 2003). Nesse rumo, o conceito de reserva do possível impõe uma exigência racional, através de elementos lógicos e sistemáticos da interpretação de preceitos constitucionais. Entretanto, não se trataria de uma restrição eventualmente admissível apenas em um viés de incapacidade financeira do Estado, mas de uma restrição necessária às regras constitucionalmente estabelecidas para as restrições dos direitos, liberdades e garantias, condizente com a necessidade e a proporcionalidade, devendo salvaguar o conteúdo de satisfação desse direito (QUEIROZ, 2006). Tanto a doutrina quanto o discurso do próprio Supremo Tribunal Federal vão no sentido de que, para se constatar a reserva do possível, deve-se contar com dados concretos, que a escassez deve estar comprovada. Todavia, o que se observa na decisão ora analisada é que, na realidade, nenhum dado concreto foi trazido na fundamentação da decisão. Novamente, é possível perceber-se, aqui, as noções de vagueza e de vazio metodológico destacadas por Canotilho (2004), quando assevera que os juristas não sabem do que estão falando (ou, no caso dos juízes, decidindo) quando abordam os complexos problemas dos direitos sociais. Na mesma linha, porém com o foco mais voltado à temática das políticas públicas, Breus (2007, p. 167-168) afirma que existe a necessidade de um aprofundamento teórico sobre a questão: E isso se deve, em parte, porque os direitos sociais, voltados à realização das metas e objetivos designados pela Constituição, dependem de opções políticas que implicam o dispêndio de recursos, cada vez mais escassos, mas também em parte porque inexiste um maior aprofundamento teórico acerca das políticas públicas, que são os instrumentos de que dispõe o Estado, na forma de Administração Pública, para a realização dos Direitos Fundamentais sumariados na Constituição. [...] a disciplina das políticas públicas igualmente necessita da construção de uma dogmática jurídica adequada para a sua concretização; e por decorrência dos próprios Direitos Fundamentais.

Há, assim, conforme já referido, uma indeterminação, um discurso que prescinde de concretude quando o que está em jogo é o controle jurisdicional de Políticas Públicas. Poder-se-ia, ainda, dizer, que a fórmula é que talvez esteja incorreta, pois o embate não deveria se dar entre o mínimo existencial e a reserva do possível – aspecto financeiro, mas entre o mínimo existencial (associado à noção de dignidade humana) e a razoabilidade da reserva do possível, associada àquilo que se poderia exigir, esperar, em termos de prestação, do Estado e da própria sociedade. Trata-se, portanto, da “[…] reserva de lo posible, en el sentido de aquello que los particulares pueden exigir razonablemente de la 48

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sociedad.” (GRIMM, 2006, p. 172). Dessa maneira, ao se avaliar o dever do Estado, é preciso que se tome como referência se é razoável exigir-se tal tipo de prestação, tendo-se em conta os demais direitos fundamentais e suas exigências: “[...] se pregunta si al Estado le es exigible el cumplimento de su deber de protección teniendo en cuenta otros derechos fundamentales.” (GRIMM, 2006, p. 172). E, a partir disso, destaca-se algo que se considera de grande importância na decisão: o objeto da demanda, ou seja, o direito à educação em si ou o direito ao acesso à educação; ou, ainda, o direito à acessibilidade à educação? Explica-se. O caso aqui analisado não diz respeito propriamente a uma negativa ao direito à educação, pois o que se postula é o direito de crianças de até cinco anos frequentem unidades próximas de suas residências ou do endereço de trabalho de seus representantes legais, isto é, não se está negando educação a essas crianças e nem o acesso à educação, apenas a acessibilidade das mesmas a determinadas unidades de ensino mais próximas. No entanto, em nenhum momento tal fato foi levantado na decisão, havendo menção apenas ao direito puro à educação, como se para essas crianças não houvesse vagas em nenhuma unidade de ensino do município de São Paulo. Diante disso, questiona-se: é razoável ao município de São Paulo ter que construir mais unidades de ensino – pois, se as crianças não estão sendo matriculadas próximas as suas residências e ao trabalho de seus representantes legais, imagina-se que lá não haja vagas? Ou, ainda: é razoável que, não por falta de vagas, mas por uma questão de localização, novas unidades de ensino sejam construídas e outras fiquem vazias? O fornecimento de transporte adequado a esses alunos não poderia, também, ser considerado uma solução possível (especialmente se a demanda apresentada fosse contingencial, temporária)? Esses juízos é que não aparecem evidenciados na fundamentação da decisão. Nesse contexto, traz-se a manifestação de Timm (2008), quando afirma que o Brasil não é um país rico, assim não basta o Poder Judiciário mandar fazer que o Poder Executivo irá “dar um jeito”, irá efetivar esse direito, em vista da contínua afirmação de que dinheiro há, mas este é mal administrado. Nesse rumo, é possível perceber-se a falta de uma hermenêutica adequada à efetividade dos direitos sociais, pois, do contrário, os resultados não serão razoáveis e nem racionais: [...] confiar na simples interpretação de normas consagradas de direitos sociais para, através do procedimento hermenêutico de atribuição de significado e enunciados linguístico-normativos, deduzir efetividade dos mesmos direitos. Os resultados a que se chega não são razoáveis e nem racionais e acabam por produzir efeitos contrários aos pretendidos. Assim, por exemplo, dizer que o e o são dimensões do postulado pela dignidade da pessoa humana e derivar o como um resultado da interpretação do preceito constitucional garantidor deste direito, só pode ter como consequência a capitulação da das normas constitucionais perante a facticidade-económico social.

Bem, inúmeras outras interrogações caberiam, todavia compreende-se que, no presente caso, a fórmula tradicional do Supremo Tribunal Federal deixa a desejar (pelo Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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menos da forma como é operacionalizada e aplicada em termos de argumentação e de fundamentação), restando evidente que o discurso do mínimo existencial e da reserva do possível é um discurso vazio, que necessita de mais elementos para ser auferível, pois constatações meramente abstratas não lhe conferem o suficiente conteúdo, pois, conforme Breus (2007, p. 173), “[...] as políticas públicas não dependem apenas da sua viabilidade econômica, mas também de sua coerência jurídica e institucional.” E isto se aplica também à atuação do Judiciário. Realizadas essas considerações, passa-se, agora, ao último ponto a ser analisado na decisão em estudo, referente à proibição de retrocesso social, enquanto princípio balizador da concretização de direitos fundamentais sociais pela via das políticas públicas. 5 A PROIBIÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL: QUE RETROCESSO? O título do último assunto de análise já torna claro o tema que será discutido, qual seja, o conteúdo do princípio que consagra a vedação do retrocesso social, que, nas poucas laudas da decisão, é configurado como aquele que impede que, em sede de direitos fundamentais de caráter social, sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela sociedade. Dessa forma, uma vez concretizados, não podem ser suprimidos ou reduzidos esses direitos pelo Estado. É também entendido como forma de progresso social, pois o direito deve ter sua abrangência ampliada conforme as condições sociais e econômicas do país melhorem (WATANABE, 2011). Além disso, é configurado como forma de eficácia protetiva dos direitos fundamentais, com a garantia da Constituição, pois trata do impedimento, de instrumento jurídico de bloqueio de atos não retrocessivos, dos Poderes Públicos, exigindo um desenvolvimento ou a manutenção dos níveis gerais de proteção social alcançados pela atuação do Estado (BREUS, 2007). Outro ponto a ser mencionado sobre o referido princípio diz respeito ao fato de que ele caracteriza uma dimensão negativa dos direitos fundamentais sociais, impondo limitações ao legislador e ao Estado em geral, visto que proíbe o retrocesso de um direito já conquistado pela sociedade, que não pode ter suas garantias diminuídas/retiradas: [...] a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos social de natureza prestacional (como o direito à educação e à saúde, p. ex.), impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venha a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. (QUEIROZ, 2006, grifo nosso).

Nesse sentido, poderia a não-matrícula de crianças em em unidades de ensino nas proximidades de suas residências ou de onde seus responsáveis legais trabalham ser compreendida como um retrocesso social? Ir-se-á se manter um direito já conquistado? Percebe-se, na decisão, a deturpação do sentido real do princípio ora analisado, quando Ministro Relator traz que “[..] que, em tema de direitos fundamentais de caráter

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social, impede que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive [...]”. No mesmo sentido, ainda, veja-se: [...] a ineficiência administrativa, o descaso governamental com direitos básicos do cidadão, a incapacidade de gerir os recursos públicos, a incompetência na adequada implementação da programação orçamentária em tema de educação pública, a falta de visão política na justa percepção, pelo administrador, do enorme significado social de que se reveste a educação infantil, a inoperância funcional dos gestores públicos na concretização das imposições constitucionais estabelecidas em favor das pessoas carentes não podem nem devem representam obstáculos à execução, pelo Poder Público, notadamente pelo Município (CF, art. 211, §2º), da norma inscrita no art. 208, IV, da Constituição da República, que traduz e impõe, ao Estado, um dever inafastável, sob pena de ilegitimidade dessa inaceitável omissão governamental importar em grave vulneração a um direito fundamental a cidadania e que é, no contexto que ora se examina, o direito à educação, cuja amplitude conceitual abrange, na globalidade de seu alcance, o fornecimento de creches públicas e de ensino pré-primário “às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (CF, art. 208, IV, na redação dada pela EC nº 53/2006) (BRASIL, 2011).

Entende-se, portanto, que o que foi discutido não foi o direito das crianças de até cinco anos possuírem atendimento em pré-escola próxima a sua residência ou do trabalho dos seus representantes legais, mas apenas o direito puro à educação, como se fosse a educação que se estaria negando a essas crianças. Dando continuidade, assevera-se com Canotilho (2004) que quando se tem em foco a realização de direitos sociais, a não-reversibilidade deve ser observada. Este princípio, segundo o autor, pressupõe um progresso, um aumento contínuo de prestações sociais. No entanto, tal princípio deve ser relativizado, visto que não se sustenta de forma incondicionada, o que não quer significar, por vez, a “desrazoabilidade” por parte do legislador. Assim, retrocessos são permitidos na medida em que não sejam desproporcionais, se considerados em face do contexto em que estão inseridos, de mudanças significativas na condição fática do Estado, como, por exemplo, uma crise financeira aguda. Mas entende-se que este não é exatamente o ponto central da decisão ora analisada, em virtude do fato que já se sustentou que ela não vem, prima facie, discutir o direito à educação, mas sim à acessibilidade das crianças a unidades de ensino próximas as suas residências ou do local de trabalho de seus responsáveis legais. Não se faz possível visualizar, portanto, no que consistiria, exatamente, o “retrocesso” no caso sub judice, havendo o conceito, ao que parece, sido invocado de forma completamente descontextualizada. Ademais, conforme Queiroz (2006), a Constituição obriga os Poderes Públicos à aprovação de medidas legislativas e de outras naturezas frente aos recursos disponíveis, de forma progressiva: La dogmática de los derechos fundamentales se ajusta aquí a la tarea de preparar el mínimo imprescindible de contenido positivo para cualquier derecho fundamental concreto: mínimo que forma, a la vez, el límite de la interpretabilidad de los componentes jurídico-objetivo de los derechos fundamentales, así como de los límites competenciales entre política y justicia. Esto reduciría al mínimo el riesgo de discrecionalidad en la interpretación. (GRIMM, 2006, p. 173).

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Assim sendo, os direitos fundamentais sociais possuem um conteúdo mínimo que não pode ser diminuído, porém a sua “irreversabilidade” deve ter em conta que o Estado possui recursos limitados, não podendo resolver todos os problemas de uma só vez (QUEIROZ, 2006), outros direitos também carecem de concretude, havendo uma arena de disputa entre todos os direitos fundamentais sociais e entre eles mesmos, pois a saúde compete com a educação e esta compete em níveis e formas de concretização diferentes dentro do próprio direito (educação para crianças e educação para adolescentes, por exemplo). Por fim, observa-se que em cada item de análise do presente trabalho verificou-se uma deficiência teórica, uma certa deturpação dos conceitos centrais da decisão, no tocante à sua aplicação e operacionalização. E, é isso que se observa de maneira geral quando são tomadas as decisões referentes às políticas públicas de direitos fundamentais sociais: há falta de bases sólidas para dar efetividade aos direitos fundamentais sociais e uma teoria jurídica para o controle de políticas públicas; existe uma perda de foco, uma confusão, no conceito e extensão dos direitos sociais fundamentais, o que compromete o seu próprio controle. 6 CONCLUSÃO Frente ao estudo realizado na decisão que obriga o município de São Paulo a matricular crianças em unidades de ensino infantil próximas de suas residências ou do endereço de trabalho de seus representantes legais, foi possível constatar que os conceitos ou argumentos-chave nela aduzidos (tais como legitimidade para o controle de políticas públicas, mínimo existencial frente à reserva do possível e princípio da vedação de retrocesso social), carecem de precisão teórica, pois são trabalhados de maneira deficiente, com vagueza e de forma confusa. Primeiro, porque o foco da discussão não era o direito à educação propriamente dito, mas sim a sua acessibilidade; segundo, pelo fato de que não há parâmetros concretos que permitam o controle de políticas públicas, assim como não há contornos específicos do alcance dos direitos sociais, e, dessa forma, deve-se concordar, uma vez mais, com Canotilho, quando menciona que os juristas não sabem muitas vezes do que estão a falar, fazem uma análise superficial, sem realizar as devidas ponderações necessárias, havendo muitas vezes uma ignorância fática, técnica e jurídica no tocante às políticas públicas de realização de direitos sociais, que acabam por transformar-se em verdadeiros “camaleões normativos e judicializados”. Para encerrar, cabe, então, uma última pergunta: há remédio para a síndrome do fuzzysmo e arma de combate aos camaleões normativos? Acredita-se, nesse sentido, que a construção de uma teoria jurídica adequada do controle jurisdicional de Políticas Públicas, enquanto instrumentos de concretização dos direitos fundamentais sociais são um passo imprescindível; contudo, essa tarefa não é apenas do Poder Judiciário - que assim como coloca a exceção, também atribui a regra – mas sim compartilhada entre os operadores do Direito e os Poderes, através de um diálogo, baseado numa noção de cooperação.

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ATIVISMO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO (IN) OPERANTE PARA O ACOMPANHAMENTO DAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS Adriana Maria dos Santos Pertel* Carlos Henrique Bezerra Leite**

Resumo Demonstra que, a inoperância legislativa gera necessidade das minorias terem seus direitos fundamentais garantidos através do ativismo judicial, no qual se fez presente no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4277 e da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, que equiparou à união estável heterossexual a união estável formada por par homoafetivo, diante dessa releitura do artigo n. 226, § 3º da Constituição da República Federativa do Brasil, que reconhece a união estável como entidade familiar, podemos concluir que não há empecilho do casal homoafetivo habilitar-se diretamente ao casamento civil. Palavras-chave: União estável. Ativismo judicial. Casamento civil homoafetivo. Judicial activism as instrument (in)operative to the monitoring of social changes Abstract This paper intends to demonstrate, through the legislative inaction the necessity that minorities have cocerning the guarantee of their fundamental rights through judicial activism, which can be observed in judgment of Direct Action of Unconstitutionality (ADI) n. 4277 and of the Petition for Violation of Fundamental Precept (ADPF) n. 132, which equated to heterosexual consensual marriage the homosexual consensual marriage, rereading the article n. 226, §-3 of the Brazilian Constitution of 1988, which recognizes the consensual marriage as a kind of family. Thus, we can conclude that there is no hindrance for an enabling to the direct civil marriage of the. Homoaffective couple. Keywords: Consensual marriage. Judicial activism. Homoaffective civil marriage. 1 INTRODUÇÃO Próxima de completar 24 (vinte e quatro) anos de existência, a CRFB - Constituição da República Federativa do Brasil continua, ostensivamente, irradiando sua força normativa sobre todos nós. Afinal, como Lei Maior do Estado Democrático de Direito, compete a ela definir a estrutura orgânica do ente estatal, regular as relações públicas e privadas e impor importantes e necessários limites, a fim de garantir proteção aos direitos fundamentais. _______________ * Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória. Especialista em Direito Civil e Processo Civil pelo Centro Universitário do Espírito Santo; [email protected] ** Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado e Doutorado) em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória, Espírito Santo. Rua Doutor João Carlos de Souza, 779 Bairro Santa Lúcia, 29056290, Vitória, Espírito Santo, Brasil; [email protected]

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Entretanto, é claro que a realidade social enfrentada pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 não é a mesma vivenciada nos dias atuais. Naquela época, não se imaginava, por exemplo, na inclusão de concepção de família as uniões formadas por pares homoafetivos. Também não se cogitou, à época, que grandes conflitos nacionais seriam decididos pelo Judiciário, pois, atualmente tem uma ampliação de tarefas. Atribuímos essas alterações no direito à mutação decorrida da nova visão do papel do Estado, que passou a ter o dever de efetivar os direitos individuais de forma objetiva e subjetiva. Neste sentido, estamos diante de grande volume de demandas, que - diante de uma série de fatores que não cabe aqui analisar, pois não é objetivo deste artigo – o judiciário tem dado respostas tardias, inadequadas e às vezes, se queda silente. Esse aspecto faz com que as demandas sejam impelidas às cortes superiores, gerando assim um ativismo judicial, e não raro a invasão de um poder da República, na jurisdição do outro. Desta forma, se faz necessário abordar o diálogo entre as tríplices funções, e em especial o ativismo judicial, realizado pelo Supremo Tribunal Federal – STF, questionando-se se suas decisões lesionam o princípio da separação dos poderes. Para isso examinamos o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 132, ocorrido em 05 de maio de 2011, no qual os ministros do Supremo Tribunal Federal reconheceram a união estável homoafetiva, equiparando-a a união estável heterossexual. Reconhecendo aquela como entidade familiar, prevista no artigo 226 § 3º da CRFB. As ações foram ajuizadas na Corte Suprema, guardiã da Carta Política, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República e pelo Governador do Rio de Janeiro. A ADI n. 4277 buscou a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar e pediu que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis heteroafetivas fossem estendidos aos companheiros nas uniões homoafetivas. Já a ADPF n. 132 pedia ao Tribunal que fosse aplicado às uniões homoafetivas de funcionários públicos do Rio de Janeiro, o regime jurídico das uniões estáveis, previsto no artigo 1.723 do Código Civil Brasileiro, sob a alegação de que o não reconhecimento da união homoafetiva contraria preceitos fundamentais como igualdade e o princípio da dignidade da pessoa humana, previstos na CRFB. Operando o ativismo jurisdicional o STF legislou, entendendo que uma vez existente a união de duas pessoas, mesmo que do mesmo sexo, se for fundada na comunhão plena de vida e interesses, de forma pública, contínua e duradora, esta, alcança o patamar de família, e, consequentemente é considerada uma união estável. Dessa forma, o presente estudo pretende demonstrar que o STF ao preencher o vácuo legislativo, reconhecendo como entidade familiar às uniões de pessoas do mesmo sexo, não o faz sem legitimidade, e sim com o propósito de garantir direitos a minorias não albergadas pelo legislador. Garantindo uma leitura atual da ordem democrática oriunda de 1988, na qual a democracia não é aquela feita para a maioria e, sim, aquela que é feita para todos. Pois bem, as uniões de pessoas do mesmo sexo, já são reconhecidas como uniões estáveis, entretanto a partir da nova leitura dada ao artigo 226 § 3º da CRFB, na qual o STF

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reconhece as uniões homoafetivas como entidades familiares, há a possibilidade direta do casamento civil homoafetivo? Para este trabalho a opção metodológica escolhida foi o método histórico dialético. A escolha do método dialético deve-se ao fato de que é apropriado para a realização de pesquisas voltadas para a investigação de fenômenos que estão em constante mudança. As contradições e os conflitos, para a dialética, são relevantes para o desenvolvimento e transformação da sociedade, no qual o objeto deve ser estudado na sua essência (KROHLING, 2009a, p. 31, 2009b, p. 15). Em relação à coleta de dados, foram utilizadas as pesquisas de fontes documentais e bibliográficas, sobretudo focando as decisões do Supremo Tribunal Federal – STF. Dito isto, passemos à breve análise da atuação dos poderes da República. 2 RELEITURA DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES Antes de abordar o tema do ativismo jurisdicional, mister se faz apontar o princípio da separação dos poderes e seu o alcance e conteúdo nos tempos atuais. Um dos princípios constitucionais mais conhecido e que enriqueceu primeiramente o constitucionalismo europeu, para depois proliferar na doutrina constitucional do liberalismo, foi o princípio da separação dos poderes,1 que tem como crença a garantia das liberdades individuais. O princípio nasce no Estado Moderno, como forma de inibir o poder absoluto concentrado na figura de uma única pessoa, que se confundia com o Estado, apesar de ser difundida na obra de Montesquieu, que o empregou nitidamente, como técnica de salvaguarda da liberdade, conheceu, todavia precursores, já na antiguidade, idade média e tempos modernos (BONAVIDES, 2000. p. 136). Mas foi Montesquieu que, além de distinguir funções, também foi o pioneiro em atribuí-las, a órgãos distintos, harmônicos e independentes. Esta divisão funcional do poder originou a doutrina do sistema de freios e contrapesos, na qual os atos do Estado ou são gerais ou especiais. Por meio da função legislativa são praticados os atos gerais, que consiste na produção de regras gerais e abstratas. Já os atos especiais são praticados por meio da função executiva e consistem na atuação concreta na sociedade, dentro dos limites estabelecidos pelos atos gerais. Ao final, cabe à função judiciária fiscalizar o respeito aos limites de cada uma dessas competências. Isto posto, para Montesquieu a lei assume uma concepção soberana e imutável (MONTESQUIEU, 2002, p. 167), distinguindo-se, em sua concepção lata, dos demais atos humanos fundados na vontade individual. Nessa perspectiva que Montesquieu desenvolveu a Teoria da Separação dos Poderes. A teoria desenvolvida nos revela que a liberdade está condicionada à separação entre as funções executiva, legislativa e judicial, persistindo na ideia de que a união de poderes permite a elaboração de leis tirânicas, que serão aplicadas igualmente de forma tirânica (MONTESQUIEU, 2002, p. 166, 172).

Não cabe aqui tecer a evolução histórica do princípio em comento, apenas delinear a ideia, para que possamos fazer a releitura da separação dos poderes como forma de efetivação da Constituição no Estado Democrático de Direito. 1

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Entretanto, há de se ponderar que a teoria de Montesquieu foi consagrada em um momento histórico - o do liberalismo – em que se objetivava o enfraquecimento do Estado e a restrição de sua atuação na esfera da liberdade individual. Na qual se postulava um ordenamento político impessoal, concebido consoante as doutrinas de limitação do poder. Nesse passo, Canela Júnior (2009, p. 59) defende que a teoria da separação dos poderes foi concebida, para assegurar a existência de um governo moderado, mediante distribuição de atividades do Estado e consequente controle recíproco entre suas formas de expressão, portanto trata-se de “contenção do poder pelo poder”. Depreende-se, deste modo, que a teoria da separação dos poderes tinha como escopo o controle do poder. Montesquieu desejava evitar a concentração de poderes, de tal forma que os direitos e liberdades fundamentais fossem resguardados da ingerência arbitrária do poder. “Esses três poderes deveriam formar um repouso ou uma inação. Mas, como, em virtude do movimento necessário das coisas, eles são obrigados a caminhar, serão também forçados a caminhar de acordo.” (CANELA JUNIOR, 2009, p. 173). A construção da teoria em tela serviu para conter a permanente intromissão da realeza nas decisões dos juízes que, por sua vez, não poderiam aceitar, mormente em virtude da ocasião histórica – Revolução Francesa em que os direitos e liberdades individuais estavam sendo garantidos. Dessa forma a finalidade inicial das constituições era limitar o poder político e organizar o Estado. Ocorre que, em virtude de alguns outros acontecimentos históricos, dentre os quais destacamos a Revolução Industrial, essa concepção sofreu grandes transformações. Isto porque, as massas operárias, ganharam lugar de destaque na sociedade, iniciando, assim, o processo de transição entre o Estado Liberal e Social. Diante desse cenário, houve uma mudança da concepção do Estado e seus objetivos. Agora, o Estado existe para atender ao bem comum e, consequentemente, satisfazer direitos fundamentais e, em última análise, garantir a igualdade material entre os componentes do corpo social (GRINOVER, 2009, p. 37). Inicia-se, assim, a assimilação de temas políticos pelo Poder Judiciário uma vez que o Estado, diante de seus novos objetivos, necessita de meios que atuem para efetivação dos mesmos. Resta convencionado o que foi designado como political questions, nos Estados Unidos, acts of State, na Grã-Bretanha, actes de gouvernanment, na França, e justizfreien Hoeitsakte, na Alemanha (GRINOVER, 2009, p. 64). Tal movimento foi iniciado com a decisão proferida pela Suprema Corte dos EUA no caso Marbury v. Madison, 5 U.S 137, de 1803 (GRINOVER, 2009, p. 64) que, por sua vez, deu origem ao sistema de controle de constitucionalidade e alterou a função do Poder Judiciário, até então concebida conforme a Teoria de Montesquieu. Nesse momento o Poder Judiciário, deixa de ser um mero aplicador da lei, “[...] a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que desta lei não podem moderar nem a força e nem o rigor” (MONTESQUIEU, 2002, p. 172) para também analisar a sua adequação no ordenamento jurídico. É certo que esta nova tarefa do Poder Judiciário criou desconforto e dificuldades para ser aceita ensejando reações, por significar, justamente, uma inserção em questões reservadas aos poderes Legislativo e Executivo. Todavia, registramos que o controle de constitucionalidade não constitui, evidentemente, ato de imposição de vontade dos órgãos jurisdicionais sobre as demais formas 58

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de expressão do poder estatal. Trata-se de dever constitucional explicitamente conferido ao Poder Judiciário por ocasião da instituição do próprio Estado. No que concerne ao Brasil, Streck (1988) aponta que: O que determina a atuação do Poder Judiciário, como forma de expressão do poder estatal, é a salvaguarda pró-ativa do bem comum. E, neste sentido, a tese substancialista afirma que a justiça constitucional deve assumir uma postura intervencionista. Não se trata de “judicialização política” e das relações sociais, mas do cumprimento dos preceitos e princípios ínsitos aos direitos fundamentais sociais e ao núcleo político do Estado social previsto na Constituição de 1988.

Nesse sentido que se faz necessário o destaque do princípio da separação dos poderes positivado no artigo 2º da CRFB de 1988 ao estabelecer que: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Bem como, o inciso XXXV do art. 5º que estabeleceu: “[...] a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” Dessa forma, a Constituição brasileira consagrou tanto o princípio da separação dos poderes quanto à ampla tutela judicial dos direitos. Cabe destacar as ponderações de alguns autores ao reconhecerem que não somente a lei, mas também atos, inclusive omissivos, do Poder Legislativo e Executivo não podem ficar sem controle. A reflexão feita por Streck (1988, p. 323), a partir promulgação da CRFB de 1988, é que uma vez diante da nova ordem jurídica as “[...] inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito.” Cappelletti (1999, p. 47), por sua vez, já apontava a necessidade de um Judiciário diferente do tradicional: A dura realidade da história moderna logo demonstrou que os tribunais – tanto que confrontados pelas duas formas acima mencionadas de gigantismo estatal, o legislativo e o administrativo – não podem fugir de uma inflexível alternativa. Eles devem de fato escolher uma das duas possibilidades seguintes: (a) permanecer fiéis, com pertinácia, à concepção tradicional, tipicamente do século XIX, dos limites da função jurisdicional, ou (b) elevar-se ao nível dos outros poderes, tornar-se enfim o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco administrador.

Disso se extrai que a omissão total ou inércia das funções de poder podem e devem ser apreciadas pelo Poder Judiciário, assumindo este uma posição distinta da tradicional, possibilitando efetivação de direitos fundamentais. Essa ampliação do poder Judiciário se deu em razão da necessária existência de um contrapeso entre os poderes. Entretanto, revela o supracitado autor (1999, p. 47) que existem graus de criatividade que não podem ser deturpados com uma total liberdade do intérprete da lei, pois se isto ocorre estará o Poder Judiciário ocupando o lugar do papel do legislador numa efetiva liberdade como aplicador da lei. Para Cappelletti (1999), a representatividade plena é um conceito utópico, daí a necessidade da legitimação democrática ao Poder Judiciário para a criação do direito jurisprudencial. Nesse contexto, percebe-se a nova postura do Poder Judiciário, no qual deixou de ser apenas um mero aplicador da lei e passou a interpretar o sentido da lei desvinculada Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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da vontade do legislador. Bem como que a nossa realidade brasileira foi dada uma nova leitura a separação dos poderes, há, portanto, em nosso país uma separação de funções e não de poderes (FREIRE JUNIOR, 2005, p. 37). De acordo com tal reflexão, será abordado o ativismo do Supremo Tribunal Federal. 3 O ATIVISMO JUDICIAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL É sabido que na ampliação do quadro de sujeitos atuantes no Poder Judiciário, se observa a democratização desse meio de atuação pública, seja para implementar direitos constitucionais previstos na Constituição, que é bastante agradável aos olhos, mas materialmente não são realizados ou para discussão dos interesses do Estado Democrático de Direito. Olhando a evolução histórica a partir de 1988 o Supremo Tribunal Federal, como guardião constitucional, tem desempenhado um papel ativo na vida institucional brasileira na tomada de decisões, consequentemente houve uma expansão de autoridade do Supremo pautada em função de um efetivo respeito à dignidade da pessoa humana, de um bem comum social, e de um aumento eficiente da liberdade do cidadão. O Supremo, na função de tribunal constitucional, tem por obrigação julgar, por via de ação direta, a constitucionalidade de atos normativos e leis produzidas tanto no âmbito federal, como estadual. Destaca-se no Brasil, a competência para apreciar a constitucionalidade de emendas à Constituição,2 essa competência lhe confere a autoridade para emitir a última palavra sobre assuntos constitucionais no nosso sistema político. Outro evento de extrema importância na valorização e aperfeiçoamento nos processos de controle de constitucionalidade foi a possibilidade de entidade ou órgão, com profundo interesse em uma questão jurídica pudessem intervir como Amicus curiae, movidos por um interesse maior que o das partes litigantes. Com isso, novas vozes passaram a ecoar no Tribunal, aumentando seu caráter pluralista, bem como sua voltagem política, enquanto palco de solução de conflitos anteriormente mediados pelo corpo político (VIEIRA, 2008, p. 448). Partindo do pressuposto de que vivemos em um Estado Democrático e em uma sociedade pluralista, não se pode aceitar que a nossa Constituição Federal seja hermética e, portanto, alheia aos reais desejos da sociedade por ela regida. Neste sentido, Peter Häberle (2002, p. 03) afirma que a [...] interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os intérpretes jurídicos “vinculados às corporações” [...] e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo, elemento resultante da sociedade aberta e um elemento formador ou constituinte dessa sociedade [...] Os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.

Quando estas ameaçarem a integridade do amplo rol de cláusulas pétreas, positivado no artigo 60, § 4º, da Constituição.

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Ativismo judicial como instrumento (in) operante para o acompanhamento...

Dessa forma, entende-se que a sobrevivência do Estado Democrático de Direito é a possibilidade de pluralização dos entendimentos acerca de questões políticas, sociais e econômicas. São os costumes levantados por Habermas (2003, p. 301-303) como forma de estabilização das relações jurídicas, no qual o direito precisa normatizar os conflitos em cada momento histórico. Essa interpretação realizada pelo Poder Judiciário, de certa forma permite que a Constituição como instrumento vivo (SMEND, 1985, p. 133) possua uma força dinâmica que se altera com o passar do tempo e de acordo com as novas realidades oriundas do povo. Sem que haja a necessidade de alteração do corpo textual, apenas do seu sentido. Entretanto devem-se observar quais os limites da Corte, principalmente ao fazer a interpretação conforme a Constituição, pois não pode o interprete ultrapassar o objetivo que o legislador, inequivocamente, pretendeu alcançar com a regulamentação. Nesse ponto para Moreira (2007, p. 93), a Constituição é posta como um simulacro: A simulação consiste na tentativa de transformar um consenso sobre a forma de constituir e ordenar o sistema jurídico, obtido em um dado momento histórico, em algo atemporal [...] do qual os questionamentos e problemas posteriores são solucionados pela remissão inconteste e necessária a tal estrutura.

Seguindo esta linha de raciocínio o texto constitucional, para sua realização deve ser interpretado, tendo em vista que a interpretação é um fenômeno histórico e datado, portanto, o sentido que se dá a Constituição varia de contexto histórico para contexto histórico, sendo assim, variante no tempo. Na mesma linha de raciocínio, a Ministra do Supremo Tribunal Federal, Rocha (1991, p. 55) afirma que a Constituição não pode configurar algemas das futuras gerações a decisões e definições jurídico-políticas passadas. E, para Häberle, a Constituição é um contínuo processo de interpretação e atualização do texto constitucional, promovida por todos aqueles que compõem a sociedade e que fazem o meio no qual estão inseridos. Daí que em tempos de neoconstitucionalismo (MAIA, 2009, p. 7-8) é incumbida nova tarefa ao poder judiciário, pois através de suas decisões, exercendo ativamente as funções que lhe foram atribuídas ele alarga direitos as minorias não contempladas pelo legislador. Interpretando a Constituição e a realidade constitucional, de forma que o processo de interpretação das normas constitucionais possa integrá-las à realidade social. Portanto, o ativismo judicial exige dos onze ministros que compõe a Suprema Corte, a adoção de alguns cuidados, uma vez que ao mesmo tempo em que ela representa um importante e, quiçá, indispensável instrumento (in) operante para a garantia de perpetuação da eficácia da Constituição Federal, pode acabar sendo utilizado para legitimar a realização de indesejáveis arbitrariedades. Nesse sentido é que Canotilho (1992, p. 237) enfatiza a necessidade de se respeitar os limites estabelecidos no texto primitivo que fora redigido pelo constituinte e, principalmente, o arcabouço estrutural por este construído. Assim, o renomado constitucionalista português defende que

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Adriana Maria dos Santos Pertel, Carlos Henrique Bezerra Leite [...] uma coisa é admitirem-se alterações do âmbito ou esfera da norma que ainda se podem considerar susceptíveis de serem abrangidas pelo programa normativo [...],3 e outra é legitimarem-se alterações constitucionais que se traduzem na existência de uma realidade constitucional inconstitucional, ou seja, alterações manifestamente incomportáveis pelo programa da norma constitucional. Uma constituição pode ser flexível sem deixar de ser firme. A necessidade de uma permanente adequação dialéctica entre o programa normativo e a esfera normativa justificará a aceitação de transições constitucionais que, embora traduzindo a mudança de sentido de algumas normas provocado pelo impacto da evolução da realidade constitucional, não contrariam os princípios estruturais (políticos e jurídicos) da constituição.

Dessa forma, cumpre destacar que os limites à interpretação constitucional devem ser fielmente observados por todos os intérpretes da Constituição, inclusive, por óbvio, o Supremo Tribunal Federal, a quem o constituinte entregou o salutar papel de guardião da nossa Lei Maior, reservando, contudo, de forma expressa, a função de legislar ao Poder Legislativo. Assim, verifica-se a relevância de abordarmos no próximo capítulo o julgamento da ADI n. 4277 e ADPF n. 132 equiparando os direitos dos casais homoafetivos aos heterossexuais. 4 O JULGAMENTO DA ADI N. 4277 E ADPF N. 132 No Brasil, pode-se afirmar que a manutenção da abertura do sistema constitucional, proposta por Häberle é totalmente viável e verificável, haja vista que além de possuir diversas regras, ele é permeado por vários princípios explícitos e implícitos e é exatamente essa abertura que permite as constantes e indispensáveis modificações do Texto Constitucional, sem, contudo, deixar de serem preservados a sua supremacia e os valores da certeza e da segurança jurídica (ZANDONADE, 2001, p. 199). Nesse ponto, entendemos que o titular desse “poder constituinte difuso” não deve ser considerado apenas os órgãos encarregados de aplicar o direito, mas sim todos os indivíduos que estão submetidos à força normativa de certo Texto Constitucional, conforme acertadamente defendido por Peter Häberle (ZANDONADE, 2001, p. 13) com sua sociedade aberta de intérpretes. Nesse sentido as relações homoafetivas que atualmente constituem uma das modalidades de núcleo familiar conjugal, ganharam visibilidade no Brasil e seguindo uma tendência mundial, foram reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal, através do julgamento da ADI n. 4277 e ADPF n. 132, que decidiu de forma histórica, por unanimidade, pelo reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo, concluindo que o direito a união independe das práticas sexuais dos casais. O entendimento de Garcia e Ragazzi (2011, p. 177-192) aponta para a seguinte indagação:

“Programa normativo” foi a expressão usada por Friedrich Müller para se referir ao texto da norma, ou seja, à letra da lei. 3

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Ativismo judicial como instrumento (in) operante para o acompanhamento... [...] a quem realmente interessa o não reconhecimento de direitos aos casais homoafetivos [...] indaga-se onde é que sobraria espaço, ou qualquer fundamento que seja de interpretação constitucional, para impedir que os casais homoafetivos tenham acesso aos mesmos direitos que os casais heterossexuais? [...]

As indagações dos autores supracitados em um país que se diz democrático são de grande relevância, tendo em vista que o reconhecimento de direitos aos casais homoafetivos, não implicará em restrição de direitos aos casais heterossexuais. Somente a intolerância explica o modo como vem sendo tratado às questões homoafetivas. Extrai-se pelo julgamento do Supremo Tribunal Federal que é a Constituição da República o sustentáculo da aplicabilidade da família plural, que vai além daquelas previstas constitucionalmente, portanto, no julgamento da ADI n. 4277 e ADPF n. 132, a maioria dos onze ministros que compõem a Corte Suprema fizeram uma interpretação do artigo 1.726 do Código Civil de 2002, conforme a Constituição da República de 1988. Diante dessa realidade, a Corte ao realizar o controle constitucional, não nos parece que preservou a lei, interpretando-a constitucionalmente válida, rejeitando as inválidas, e sim auferiu algo a mais, realizando uma interpretação além do que exposto no texto, uma vez que idênticos o artigo 17234 do Código Civil de 2002 e o artigo 226 § 3º5 da Constituição da República. Nas palavras de Streck e Lima (2011), o procedimento do Supremo Tribunal Federal foi fazer uma “verfassungskonforme Auslegung”6 bem à brasileira. Contudo, e levando em conta que, em um sistema democrático, a Suprema Corte tem o “direito” de errar por último, cabe, a partir daí, traçar os horizontes que se abrem (ou que se fecham) com a nova decisão. Daí a relevância de estudos que possibilitam essa adaptação da Carta Política às transformações sociais de ocorrência ininterrupta em todo o mundo. Se a Corte errou ou acertou em sua interpretação não é a intenção deste estudo, e sim sua implementação. 4.1 O SIGNIFICADO DO SENTIDO E DO ALCANCE DO JULGAMENTO DA ADI N. 4277 E ADPF N. 132 Constatadas a necessidade e a possibilidade de serem realizadas modificações na Constituição Federal brasileira, cabe analisar como essas interpretações podem ser concretizadas, uma vez que apenas alterou o sentido da norma constitucional, permanecendo intacto o texto redigido pelo constituinte. Haja vista que, se a Suprema Corte deu uma nova leitura ao instituto da união estável, em conformidade a Constituição, assim como seus elementos, não há como o judiciário e a sociedade não reconhecer os direitos inerentes desta decisão, inclusive sua conversão em casamento civil, entre pessoas do

Artigo 1723 do código civil brasileiro de 2002 : é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 5 Artigo 226 da CRFB: A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 3º: para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 6 A expressão cunhada por Häberle em sua obra Hermenêutica constitucional a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição é “verfassungsinterpretaion”, portanto percebe-se uma critica de Lenio ao STF no emprego da palavra “verfassungskonforme Auslegung”. 4

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mesmo sexo, para aqueles que comprovarem a união estável, conforme direitos e deveres decorrentes das uniões estáveis heterossexuais. Nesse sentido, verifica-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, através de sua Corregedoria Geral da Justiça, publicou no Diário da Justiça, em 03 de janeiro de 2012 o Provimento n. 001/2012, orientando e adotando regras para as serventias de foro extrajudicial que facilitam a vida de casais homoafetivos que querem formalizar a união homoafetiva em casamento civil. Portanto, basta requererem a conversão em cartório. Ademais, por que não dizer que diante da interpretação do Supremo Tribunal Federal, no qual a união estável entre pessoas do mesmo sexo foi reconhecida, por unanimidade, qual o impedimento para que elas se habilitem diretamente ao casamento civil? A Suprema Corte deixou em aberto a possibilidade de casamento, o que vem ocasionando decisões desencontradas de juízes de primeira instância. Consequentemente só haverá uma decisão uniforme em todo país se houver lei autorizando o casamento ou se o Supremo Tribunal Federal, mais uma vez for provocado, através do controle de constitucionalidade. Corrobora com este entendimento o julgamento realizado pela 4ª Turma do STJ em 25 de outubro de 2011, que pela primeira vez decidiu, por maioria, que um casal homoafetivo poderá habilitar-se para o casamento civil. Entretanto a decisão não tem força para vincular outros casos. Logo, como já exposto, pode-se utilizar da interpretação constitucional que alterou o alcance, o sentido ou o significado do preceito legal do artigo 226 § 3º, em decorrência da aplicação direta dos princípios constitucionais, para interpretar que não há óbice para a habilitação direta ao casamento por casais homoafetivos? Vislumbra-se que sim. Afinal, os institutos do casamento civil, bem como da união estável são regimes jurídicos que visam regulamentar a família conjugal, logo, vez reconhecida à união homoafetiva como família conjugal, é óbvio que não há a necessidade de um casal homoafetivo provar a união estável para se habilitarem diretamente ao casamento civil. Uma vez que, o casamento traz consigo um status jurídico de reconhecimento e possui alguns aspectos distintos da união estável. Conceder este e negar aquele instituto aos pares homoafetivos é reduzir suas capacidades de escolhas, e seus exercícios autônomos de pretensões. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Assim, é clara a atividade legiferante do Poder Judiciário, precisamente do Supremo Tribunal Federal, com grande destaque nas atividades de impacto constitucional. Com uma expansão significativa, após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Percebe-se que através dos tempos cada poder teve sua glória, portanto agora é a vez e a hora do Poder Judiciário, que diante do ativismo judicial, para concretização dos direitos fundamentais, ultrapassa os limites de sua função para inovar na ordem jurídica, criando uma nova arena de discussões e de decisão política e jurídica. Mas, diante da inércia dos demais poderes, essa expansão do Poder Judiciário não pode ser vista necessariamente como algo pernicioso e, sim como um meio paliativo para solução dos conflitos, ou seja, o ativismo judicial desempenha um grande papel nesse

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movimento de garantia da eficácia das normas constitucionais, diante de um Poder Legislativo inoperante. Diante de todo exposto, observa-se que no julgamento da ADI n. 4277 e ADPF n. 132, ocorreu uma autêntica reforma da Constituição sem alteração do texto, atestada pela Corte Suprema. Entretanto, percebe-se a relevância da interpretação constitucional realizada pelo Poder Judiciário, tendo em vista a falta de legislação, diante da necessidade de a Constituição manter-se em consonância com a realidade social que vive em ininterrupta transformação. Do ponto de vista puramente formal, os artigos 226, §3º da CF/88 e 1.726 do CC/02 determinam obrigatoriamente ao Estado Brasileiro que facilite a conversão da união estável em casamento civil, logo, donde reconhecida a união homoafetiva como união estável, tem-se ordem constitucional que permite a sua conversão em casamento. Já do ponto de vista material, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, desde que preenchidos todos os requisitos da união estável, que, diga-se de passagem, são os mesmos requisitos necessários para o reconhecimento da união estável heterossexual. Desta feita, o Supremo Tribunal Federal ao elevar ao patamar de família conviventes homoafetivos, além de permitir a conversão da união homoafetiva em casamento, também não discorreu sobre qualquer empecilho para o casamento civil direto, uma vez que os dois institutos são regimes jurídicos que visam regulamentar a família conjugal, logo entende-se que tanto a conversão dos conviventes homoafetivos para a união estável, quanto o pedido de habilitação direto para o casamento civil é perfeitamente viável. Não há razão para desprezar as diretrizes do nosso ordenamento que impõe os direitos à igualdade e à dignidade a todos os cidadãos brasileiros, sem qualquer exclusão ou distinção. Apesar de serem minoria, os homoafetivos são detentores de todos os direitos fundamentais vigentes no ordenamento jurídico-constitucional, o que exclui qualquer deliberação majoritária. Ademais, é importante salientar que o reconhecimento do casamento civil homoafetivo não acarreta quaisquer prejuízos ao casamento enquanto instituição, mas tão somente permite um acesso mais igualitário e democrático a essa instituição jurídica por todos, vez que tal instituto continuará sendo concebido como uma comunhão de vida entre duas pessoas, decorrente de um ato solene, gerador de direitos e deveres aos cônjuges. Negar a possibilidade dos casais homoafetivos a terem acesso ao casamento civil é excluir e discriminar uma minoria, sem qualquer fundamento no Direito. REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 10. ed. São Paulo: Malheiros. 2000. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 05 jan. 2011. BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. In: Vade Mecum. 9. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2010.

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DICOTOMIA NA ANÁLISE SOCIOECONÔMICA BRASILEIRA: O ESTADO BUSCANDO SUPERAR UM DÉFICIT SOCIAL CONSAGRADO Manuella Rocha Magi* Gina Vidal Marcílio Pompeu**

Resumo O presente artigo tem como fito demonstrar a contradição econômico-social que permeia a realidade brasileira, tecendo críticas acerca da forma como as políticas públicas estão sendo realizadas e demonstrando que para a concretude dos direitos sociais basilares é necessário que ações positivas governamentais tenham permanência e que estimulem a educação e o ensino de qualidade. Em especial, fora feita uma análise do programa de governo Bolsa Família, que completa dez anos de existência, e que traz resultados positivos, mas também preocupantes, quando cria um novo direito social, o direito de renda, baseado em uma atuação filantrópica do Estado, ao invés, de habilitar o cidadão para o mercado de trabalho age como um incremento da exclusão social. Palavras-chave: Desenvolvimento Social. Crescimento Econômico. Bolsa Família. Exclusão Social. Dichotomy in the analysis of brazilian socioeconomic reality: state seeking a deficit overcome social consecrated Abstract This article aims to demonstrate the economic and the social contradiction in the Brazilian reality, making criticism about how the public politics are being carried out and demonstrating that for the implementation of social corners is necessary permanent positive governmental actions and encourage for education and teaching quality. In particular, it was made an analysis of the government program Bolsa Família, which completes ten years of existence, and it brings positive results, but also disturbing ones, when creates a new social right, the right to income, based on a philanthropic activities of the State, instead to enable the citizen to the labor market, acting as an increase in social exclusion. Keywords: Social Development. Economic Growth. Bolsa família program. Social Exclusion. 1 INTRODUÇÃO No último século, o Brasil apresentou uma extraordinária ascensão em seu setor econômico, fomentado por políticas estatais de crescimento tecnológico e concentração de capital no setor produtivo. Acreditava-se que esse aperfeiçoamento dos setores finan__________________ * Pós-graduada em Direito Processual Civil e Gestão Processual pela Escola Superior de Magistratura do Estado do Ceará; Mestranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza. ** Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará; Professora do Programa de Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza; Avenida Washington Soares, 1321, Edson Queiroz 60811-341 , Fortaleza, Ceará, Brasil; [email protected]

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ceiros iria ter como consectário lógico a formação de um capital humano que fosse capaz de se desenvolver sem a necessidade de ações positivas do Estado Democrático de Direto. Durante o século XIX a aspiração ao Estado democrático vai-se definindo, até se transformar, já no século XX, num ideal político de toda a Humanidade, fazendo com que os regimes políticos mais variados e até contraditórios entre si afirmem ser melhores do que os demais por corresponderem mais adequadamente às exigências do Estado Democrático. (DALLARI, 2003, p. 300).

A ideia utópica de que houvesse um crescimento econômico acompanhado na mesma medida por um incremento significativo dos direitos sociais levou a um abismo histórico entre estes, o que resultou em péssimas condições de vida para uma parcela significativa da população do país. O artigo científico busca demonstrar uma contradição presente na sociedade brasileira, que de um lado pode ser considerada como modelo econômico-financeiro a ser seguido pelos países emergentes, possuindo reconhecimento na seara internacional; e que de outro, possui vergonhosos índices sociais, estando no mesmo patamar de Estados com crescimento econômico retardado. Essa dicotomia faz com que a população possua em seu texto constitucional direitos individuais e sociais positivados, porém ineficazes, já que as atividades governamentais não buscam garantir de forma plena direitos inerentes ao ser humano enquanto ser social. A Constituição Federal Brasileira de 1988- CF/88- representou um importante avanço em termos de reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais, prevendo um regime jurídico de proteção diferenciado a essa categoria de direitos. (DUARTE, 2012, p. 421).

Neste prisma, o estudo ora realizado relata uma experiência brasileira que consagrou-se como programa social, já que no ano de 2013, completa dez anos de existência, o Bolsa Família, e que possui como objetivo último a eliminação da extrema pobreza que aflige parte dos cidadãos brasileiros. Não obstante ratifica-se a importância imediatista desse tipo de fomento social através do repasse financeiro direto àqueles que preenchem os requisitos exigidos pela Lei n. 10.836 de 09 de janeiro de 2004, sem contudo, deixar de tecer críticas acerca da não eliminação do ciclo da miséria e sim, da criação de uma classe social que exige do Estado recursos como forma de compensação histórica da marginalização sofrida. O Governo Federal traz para si mais uma função, a filantropia, e não reafirma a necessidade de incentivar de forma concreta o pilar do desenvolvimento, ou seja, o direito a educação de qualidade e ao trabalho digno. A metodologia utilizada fora um estudo descritivo-analítico, desenvolvido através de pesquisa, quanto ao tipo bibliográfica, incluindo não apenas obras jurídicas, mas também das Ciências Sociais e Políticas que abordam o assunto em análise, assim como artigos de revistas especializadas nestas áreas, dissertações, relatórios e informações constantes

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Dicotomia na análise socioeconômica brasileira...

em sítios eletrônicos oficiais; e documental, abrangendo o estudo de normas nacionais e internacionais, bem como dados publicados por fontes oficiais. 2 UM CAPITALISMO DEMOCRÁTICO O Brasil, no século XXI, enfrenta uma disparidade entre desenvolvimento social e crescimento econômico fruto da falta de investimento em políticas públicas efetivas e duradouras que viabilizassem, ao longo de sua história constitucional, uma mudança estrutural na sociedade. Percebe-se, ao longo dos últimos anos, que houve uma transformação econômica ascendente, o que fez com que o país deixasse os quadros de extrema pobreza para tornar-se um centro desenvolvido com uma economia estável e credibilidade internacional sendo considerado, em 2013, como a 6ª maior economia mundial. Quadro 1 – Ranking das maiores economias mundiais (PIB Nominal) Posição

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Estados Unidos

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China

China



Japão

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Alemanha

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França

França



Reino Unido

Brasil



Brasil

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Fonte: Brasil… (2013).

Entretanto, haja vista o antagonismo existente entre crescimento e desenvolvimento, em uma análise dos índices sociais essenciais como miséria, educação, saúde, mortalidade infantil, saneamento básico, dentre outros; o Brasil ainda possui inúmeros desafios a serem concretizados antes que seja considerado pelos órgãos internacionais como um Estado social satisfatório. Nesse diapasão, percebe-se que o Brasil em sua ordem jurídica suprema consagra o capitalismo como modelo econômico a ser seguido por aqueles que encontram-se ditando os percalços da política financeira institucional. Afirma Grau (2006, p. 312) que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema econômico, o sistema capitalista. A ordem econômica nacional brasileira consagra, fundamentalmente, o sistema de economia capitalista, na medida em que se funda na propriedade dos meios de produção (CF, arts 170, II e 5º , XXIII), no trabalho livre (art. 5º , XIII), na organização da empresa e na atividade do empresário, com preferência, em favor da empresa privada, para a exploração da atividade econômica, sendo princípios seus, o da liberdade de iniciativa, da livre concorrência e o da lucratividade. (FERREIRA, 2003, p. 50).

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Destarte, os ditames básicos desse liberalismo seriam a livre concorrência e uma intervenção estatal minimalista, prevendo uma autorregulação do mercado e consequentemente um desenvolvimento satisfatório do capital humano. Complementa Singer (2004) que a ascensão do sistema capitalista pode ser caracterizado como o desenvolvimento realizado sob a égide do grande capital e moldado pelos valores do livre funcionamento dos mercados, das virtudes de competição, do individualismo e do Estado mínimo. O desenvolvimento econômico é um fenômeno histórico que passa a ocorrer nos países ou estados-nação que realizam sua revolução capitalista, e se caracteriza pelo aumento sustentado da produtividade ou da renda por habitante, acompanhado por sistemático processo de acumulação de capital e incorporação de progresso técnico. Uma vez iniciado o desenvolvimento econômico tende a ser relativamente automático ou auto-sustentado, medida em que no sistema capitalista os mecanismos de mercado envolvem incentivo para o continuado aumento do estoque de capital e de conhecimentos técnicos. (BRESSER-PEREIRA, 2006, p. 1).

Percebe-se, porém, que a aceleração do crescimento econômico e o investimento em progresso técnico em um modelo neoliberal puro, por si só, é insuficiente para alterar sobremaneira a qualidade de vida dos cidadãos. Nas palavras de Bresser-Pereira (2006, p. 8), cabe ao estado e a seu governo, em cada momento, estabelecer o delicado equilíbrio entre o desenvolvimento e a distribuição, entre os lucros e os salários, entre os investimentos e as despesas sociais. Enuncia Pompeu (2012, p. 12), o desenvolvimento econômico nem sempre coaduna com desenvolvimento sustentável e humano. Para Pikalo (2007, p. 32), it has been show that economic development does not bring improved human rights practices on its own.1 Assim é necessário estabelecer, numa visão de progresso econômico equilibrado, superávits financeiros e melhoria da qualidade de vida da população. Tentando contrabalancear dois pilares historicamente consagrados; a igualdade e a liberdade; direitos inerentes ao homem como ser social. Nos ensinamentos de Pompeu (2009, p. 130), há um duelo entre os direitos de desenvolvimento individual, situados na esfera da liberdade, e os direitos à efetivação do bem estar coletivo por meio dos direitos sociais (saúde, educação, moradia, trabalho...) inseridos na esfera da igualdade. Já Cruz (2009, p. 6) enuncia que essa nova visão está na pauta da doutrina mais avançada, que entende serem necessários esforços para democratizar o capitalismo e torná-lo solidário, superando a idéia de acumulação individual, ou de grupos, em detrimento do conjunto da sociedade global. Em um contexto jurídico, a Constituição de 1988 está estruturada a partir da ideia da constituição como um plano de transformações sociais e do Estado, prevendo, em seu texto, as bases de um projeto nacional de desenvolvimento (BERCOVICI, 2011, p. 575). Assim traz como seu vértice diretivo a necessidade de conciliação entre a ordem econômica e a social, quando elenca em seu artigo 1º que são fundamentos da República Federativa tanto os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa como a dignidade da pessoa humana.

Já fora demonstrado que o desenvolvimento econômico por si só não traz consigo uma melhora nos direitos sociais humanos. 1

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Dicotomia na análise socioeconômica brasileira... À busca da realização do bem-estar a Constituição apresta a sociedade e o Estado, busca que se há de empreender não em nome de uma ideologia, mas como imposição de determinações históricas que são mais do que ideológicas. O alcance do bem-estar é historicamente, o mínimo que tem a almejar a sociedade brasileira. (GRAU, 2006, p. 312).

Destarte, a Lex Fundamentalis elenca em seu corpo direitos sociais a serem implementados pelos dirigentes, representantes eleitos pelo sufrágio universal, resachando um Estado totalmente abstencionista, e prevê a ordem liberal como modelo econômico, não autorizando, em um mesmo diapasão, um Estado intervencionista pleno. Complementa Sousa (2010, p. 447): Os direitos sociais são, na realidade: os direitos à segurança social, ao trabalho, ao salário condigno à assistência social, à liberdade sindical, às condições humanas justas e saudáveis de trabalho, da maternidade, da infância e da família, à subsistência, ao vestuário, à habitação, à saúde, educação e bens culturais.

Buscando-se um equilíbrio intermediário que possibilitasse tanto crescimento econômico como desenvolvimento social, o Estado Brasileiro, pode ser considerado como regulatório, visando em último caso o bem estar de seu povo. Argumenta-se que não é conveniente deixar o mercado entregue a si próprio (talvez por se entender que ele não é, afinal, o tal mecanismo natural, intocável e acima de toda a suspeita) e proclama-se a necessidade de o estado definir o seu estatuto jurídico ( o estatuto jurídico do mercado ). Esta responsabilidade pública de regular (ou responsabilidade pública de garantia ) seria, ainda, uma forma de intervenção do estado na economia, permitindo apresentar o estado regulador como um estado ativo (até mesmo um estado dirigista) no domínio da economia, que passaria a ser, como dissemos, uma economia de mercado regulada ou uma economia social de mercado. (NUNES, 2011, p. 414).

Assim, em notas a garantir aos seus cidadãos direitos que ultrapassem os meramente individuais, a ordem jurídica pátria consagrou um capitalismo democrático, exigindo do Estado não apenas condutas negativas, mas comportamentos e medidas políticas positivas no sentido de concretizar os direitos sociais basilares, tentando estabelecer um padrão mínimo de qualidade de vida. 3 BRASIL SOLIDÁRIO O Brasil, como já discorrido no tópico anterior, apresentou, nas últimas décadas, um crescimento econômico que o possibilitou ser considerado como uma economia mundial de destaque, firmando-se, por consequinte, no mercado internacional. Em contraposição, esse progresso experimentado, não fora acompanhado no mesmo ritmo pela melhoria de vida da população, possuindo ainda um IDH (índice de desenvolvimento humano) de 0,73 e ocupando, em 2012, a 85ª posição no ranking global.

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Manuella Rocha Magi, Gina Vidal Marcílio Pompeu Tabela 1 – Ranking IDH Global 2012 Ranking IDH Global

País

IDH 2012

1

Noruega

0,955

2

Austrália

0,938

3

Estados Unidos

0,937

4

Países Baixos

0,921

5

Alemanha

0,920

6

Nova Zelândia

85

Brasil

0,919 [...] 0,730

Fonte: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (2013, grifo nosso).

A Constituição Federal de 1988 elenca direitos básicos dos cidadãos que tiveram sua concretude reiteradamente postergada pelos representantes do povo, que por muitas vezes esvaziaram os preceitos vinculantes da Ordem Suprema, dando prioridade a questões individuais em contraposição as necessidades coletivas. Hesse (1991, p. 20) que a força que constitui a essência e a eficácia da Constituição reside na natureza das coisas, impulsionando-a, conduzindo-a e transformando, assim, em força ativa. Continua Hesse (1991, p. 20) que quanto mais o conteúdo de uma Constituição lograr corresponder a natureza singular do presente, tanto mais seguro há de ser o desenvolvimento de sua força normativa. Neste contexto, em uma tentativa de equiparar esse destaque econômico excepcional e a necessidade de profundas mudanças sociais, tendo como perspectiva a concretude da solidariedade, o Governo Federal há dez anos, intensificou uma política pública de repasse financeiro direto a população, na expectativa de melhorar os índices de desenvolvimento humano e incrementar em última análise o consumo. Essa visão utilitarista é defendida por Barr (2004, p. 61), the utilitarian aim is to distribute goods so as to maximize the total utility of society’s members.2 Políticas sociais constituem um subconjunto das políticas públicas relacionado a ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado e se relacionam à distribuição de benefícios sociais para reduzir as desigualdades estruturais decorrentes da trajetória do desenvolvimento socioeconômico, usualmente nas áreas de educação, saúde, previdência, habitação, saneamento etc., e executadas sob a responsabilidade do Estado. (CASTRO et al., 2009).

Na gestão de Fernando Henrique Cardoso, iniciou-se, de forma modesta, esse repasse monetário através de programas sociais como Cartão Alimentação, Bolsa Alimentação e Auxílio Gás. Entretanto, fora no período de governo de Luis Inácio LULA da Silva e de Dilma Roussef que fora ampliada essa política, com vistas a tentar promover uma maior inclusão social e minimizar a miséria, visando em última análise, contornar um déficit social histórico consagrado.

2

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O objetivo utilitarista é distribuir bens de modo a maximizar a utilidade total dos membros da sociedade. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

Dicotomia na análise socioeconômica brasileira...

O Programa Bolsa Família fora instituído em 2003, visando um alívio imediato da pobreza de uma parcela significativa da população, tendo como sustentáculo um repasse de dinheiro condicionado, ou seja o Governo Federal incrementa a renda destes miseráveis desde que sejam cumpridos os requisitos legais ligados a saúde e educação. Tenta-se desta maneira romper com o ciclo da pobreza. O Programa Bolsa Família implantado em outubro de 2003 e promulgado em 2004 com a criação da lei nº 10.836 de 09 de janeiro de 2004 pela gestão do presidente Luis Inácio Lula da Silva tem por princípio norteador o combate à fome e à pobreza no país, resultado da unificação dos Programas de Garantia de Renda Mínima (PGRM), Bolsa Alimentação, Bolsa Escola e Programa Auxílio-Gás, que tem a pretensão de uma gestão descentralizada, com destaque para a intersetorialidade entre os entes federados, com a participação comunitária e o controle social. (CALDEIRA, 2008, p. 21).

Para participar do programa, por meio de um cadastro único, é necessário preencher 3 (três) requisitos; um critério de renda, um indicador de pobreza e a presença de condicionantes. O primeiro refere-se a uma renda per capita de R$ 70,00 (setenta reais) mensais; o segundo trata da presença de crianças e adolescentes no seio familiar e o terceiro; são condicionantes que caso não preenchidas retiram destes miseráveis o direito ao benefício, como por exemplo, a frequência regular em escolas para crianças e adolescentes e participação de programas de orientação nutricional e assistência preventiva a saúde para crianças e gestantes. A condicionalidade pode encorajar os beneficiários a investirem em formação de habilidades para não dependerem do programa no futuro. No entanto, as condicionalidades do Bolsa Família não tenderiam a estimular este tipo de comportamento, caso seu cumprimento se devesse mais ao medo de perder o benefício que por uma busca de melhora. (BRITO, 2011, p. 43).

Com vista a aperfeiçoar essa política pública, em 2011, o Bolsa Família fora incorporado ao Plano Brasil Sem Miséria, que propunha a meta de que nenhum brasileiro iria ganhar por mês menos de R$ 70,00 (setenta reais) até 2014, incrementando assim o valor recebido mensalmente pelas famílias. Em 2013, esse programa social que concedeu um maior incentivo na redução direta da extrema pobreza, comprometendo cerca de 24 milhões por ano, o que corresponde a 0,46% da economia nacional, completa um marco histórico de 10 anos, mostrando-se eficiente em alguns aspectos e ganhando destaque nas pesquisas alienígenas, como ocorrera na Revista Britânica The Lancet nestes termos: In the past 15 years, Brazil has undergone notable social and public health changes, including a large reduction in child mortality. The Bolsa Familia Programme (BFP) is a widespread conditional cash transfer programme, launched in 2003, which transfers cash to poor households (maximum income US$70 per person a month) when they comply with conditions related to health and education. Transfers range from $18 to $175 per month, depending on the income and composition of the family.3 (RASELLA et al., 2013).

Nos últimos 15 anos, o Brasil passou por notáveis mudanças sociais e na saúde pública, incluindo uma enorme redução dos índices de mortalidade infantil. O Programa Bolsa Família (PBF) é um programa bastante difundido de transferência 3

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Manuella Rocha Magi, Gina Vidal Marcílio Pompeu Figura 1 – Bolsa Família: aumento dos benefícios

Fonte: MDS (2013). Gráfico 1 – Bolsa Família: expansão do Programa

Fonte: MDS (2013).

condicionada de recursos, lançado em 2003, que transfere dinheiro a população miserável (com renda máxima de R$ 70,00 por pessoa no mês) quando estes completam as condições relacionadas a saúde e educação. A transferência está entre R$18,00 a R$ 175,00 por mês, dependendo da necessidade e composição da família. 76

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Dicotomia na análise socioeconômica brasileira...

Em linhas gerais, esse programa trouxe benefícios para a população mais carente, como, por exemplo, a redução da mortalidade infantil, melhoria na educação, na saúde, na desnutrição infantil, minimizou o índice de evasão dos alunos nas escolas, dentre outros. Esses avanços, entretanto, ainda são primários face ao acumulo das necessidades da coletividade no decorrer do tempo e são imediatistas tentando socorrer aqueles que são mais miseráveis, sem contudo, capacitá-los para um mercado de trabalho extremamente competitivo. A inserção nesse mercado de trabalho, na visão de Rosanvallon (1998, p. 63) é visto como a pedra angular da luta contra a exclusão. Essa parcela da população não aprende a se sustentar sozinha, tendo em mente que como o Estado a negligenciou no decorrer dos séculos, possui o direito subjetivo a renda, acreditando-se vítima do sistema e não buscando sair desse ciclo de miséria. Há uma distorção da Vontade da Constituição (Wille zur Verfassung) que elenca como direito básico, não esse repasse monetário, e sim o direito a educação e ao trabalho. Em uma análise a longo prazo, esses programas que não prestigiam de forma efetiva a educação e o labor como primados basilares de um Estado Democrático de Direito consolidam uma exclusão ascendente, criando um setor social que é sustentado pelo Estado e gerando uma acomodação em sua situação de miséria. O Estado traz para si nova função, a filantropia. Em vista da incompatibilidade entre os ajustes estruturais da economia e os investimentos sociais do Estado legitimada pelo ideário neoliberal, o discurso da cidadania e dos direitos sociais foi substituído pelo discurso humanitário da filantropia. As políticas sociais adquiriram então um perfil “despolitizado, privatizado e refilantropizado”. (YASBEK, 2004, p. 3).

Desta maneira, como política de socorro imediato da população, o Programa social Bolsa Família, está contribuindo mesmo que de forma discreta na melhoria de vida daqueles que se encontram a margem da exacerbada pobreza. Não obstante, há uma necessidade de coadunar junto a este, programas sociais outros que viabilizem a inserção dessa parcela da população no mercado de trabalho, garantindo, de forma efetiva que esses ditos miseráveis passem a não mais depender do Estado para exercer direitos inerentes ao homem, rompendo de forma concreta com o ciclo da pobreza. 4 CONCLUSÃO O Brasil, hodiernamente, ganhou grande visibilidade internacional, destacando-se como a 6ª maior economia mundial em 2013. Apesar do crescimento econômico experimentado, o desenvolvimento social ficou a míngua das grandes potências mundiais, tendo sido constatado em 2012, que o Índice de Desenvolvimento Humano ainda está em 0,73, ocupando, deste diapasão, a 85ª posição no ranking global. Percebe-se que crescimento econômico não condiz necessariamente com uma melhoria dos índices sociais basilares e que nem um Estado Liberal puro, nem um Estado Social exclusivo, são suficiente para manter um equilíbrio entre ascensão econômica e

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qualidade de vida da população. Seria então necessário um Estado regulatório para minimizar o abismo existente entre crescer e se desenvolver conscientemente. Há 10 anos, o Governo Federal intensificou um programa de repasse direto de recursos para a população mais miserável incluída em um cadastro único, o Bolsa Família, tendo como objetivo primordial o combate direto a miséria e a tentativa de rompimento do ciclo da pobreza. Estudos demonstraram que houve um incremento satisfatório no decorrer destes anos em fatores como a redução da mortalidade infantil, melhoria na educação, na saúde, na desnutrição infantil, minimizou o índice de evasão dos alunos nas escolas, dentre outros. Percebe-se, porém, que essa política social de repasse monetário é imediatista e superficial não atingindo de forma profunda o cerne da miséria. O indivíduo passa a ser sustentado pelo Estado, criando a imagem de que o Estado tem o dever de reparar a exclusão outrora implantada, instituindo-se um novo direito básico, o direto de renda. Estes cidadãos não estão sendo habilitados a concorrer no mercado de trabalho, sendo em última análise excluídos do sistema. Conclui-se então que diante do descaso governamental aos direitos básicos do homem, elencados no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, e com vistas a minimizar o sofrimento de parcela da população marginalizada, programas como o Bolsa Família, são importantes como alívio imediato, porém devem ter duração certa, para que não sejam condicionantes na preservação do ciclo da miséria. Ademais é imprescindível que essa concessão de renda esteja interligada a uma prestação cívica retributiva. Poder-se-ia correlacionar esse desembolso a limpeza de praças, a plantação de árvores, a trabalho voluntário em dias determinados em instituições carentes, dentre outros. Isso posto, imprescindível seria criar programas sociais que tratassem o vértice da exclusão e preservação da pobreza extrema entre gerações, meios que viabilizassem uma educação básica de qualidade conduzindo a inserção no mercado de trabalho e incentivando um desligamento do cidadão a máquina estatal. REFERÊNCIAS BARR, Nicolas. Economics of the Welfare State. 4. ed. Oxford, UK: Oxford University Press, 2004. BERCOVICI, Gilberto. Política econômica e direito econômico. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas, Fortaleza, v. 16, n. 2, p. 562-588, jul./dez. 2011. BRASIL deve recuperar posto de 6ª maior economia em 2013, mostra FMI. G1, 2013. Disponível em: . Acesso em: 03 out. 2013. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O Conceito histórico de desenvolvimento econômico. Fundação Getulio Vargas, 02 mar. 2006. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2013.

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Dicotomia na análise socioeconômica brasileira...

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A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 3239/2003 CONTRA O DECRETO N. 4.887/2003 E OS RISCOS DE NOVA INVISIBILIZAÇÃO DOS QUILOMBOLAS: ANÁLISE SOB O ENFOQUE DAS CINCO LÓGICAS DE PRODUÇÃO DE NÃO EXISTÊNCIA DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS Lucas Pacif do Prado Muniz* Gilsilene Passon P. Francischeto**

Resumo Objetiva-se analisar os riscos de nova invisibilização dos quilombolas representados pela ADI n. 3239/2003. Demonstram-se os direitos dos quilombolas na Constituição de 1988. São os direitos de titulação dos quilombos (art. 68 do ADCT), o direito à cultura (arts. 215 e 216 da CRFB) e o direito à memória (arts. 215 e 216 da CRFB). Analisou-se a sociologia das ausências de Santos (2010), para permitir a compreensão do paradoxo jurídico vivido pelos quilombolas. Estudou-se as cinco lógicas de produção de não existência encontradas na sociologia das ausências e descobriu-se que são hábeis a revelar formas de pensar impostas pela hegemonia da razão metonímica. Foram vistos os principais questionamentos da ADI n. 3239/2003. Com base no aporte teórico, analisaram-se esses pontos e chegou-se à conclusão de que as cinco lógicas de produção de não existência operam sobre os argumentos contidos na nessa ação. Refletiu-se sobre o tema desse estudo, porque poderia levar ao entendimento de situação de visibilidade plena dos quilombolas. Resultou a reflexão na identificação de duas dimensões da invisibilidade quilombola: a jurídica que é decorrente das previsões de seus direitos na Constituição, cuja efetivação se realiza pelo Decreto n. 4.887/03, e a substancial que são os reflexos da primeira na realidade, provocando efetiva emancipação social. Esta foi considerada em processo de ascensão. Após análise dessas especificidades concluiu-se que a referida ação põe sim em risco de nova invisibilidade os quilombolas seja esta jurídica ou substancial, observando-se as nuanças de cada dimensão. Palavras-chave: Inconstitucionalidade. Quilombolas. Riscos. 1 INTRODUÇÃO Acredita-se que a maioria das comunidades quilombolas no Brasil, atualmente, está apreensiva, uma vez que vive um paradoxo jurídico provocado pela Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3239 de 2003 que, por sua vez, questiona o Decreto n. 4.887 de 2003. Essas comunidades, formadas em sua maioria por descendentes de ex-escravos que fugiam à época da escravidão, para as matas, como forma de luta e resistência ao ______________ * Graduando em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória, Espírito Santo; Integrante do Grupo de Pesquisa Invisibilidade Social e Energias Emancipatórias em Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Vitória; lucaspacif2009@hotmail. com ** Pós-doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Coimbra; Doutora pela Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro; Professora da Graduação, Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito de Vitória; Professora orientadora e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Invisibilidade Social e Energias Emancipatórias em Direitos Humanos da Faculdade de Direito de Vitória; Rua Gilardi Martins de Oliveira, 779, Santa Luzia, 29056-295, Vitória, Espírito Santo, Brasil; gilsilenepasson@ ces.uc.pt

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regime de escravidão, depois de muito lutarem conquistaram o direito de titulação dos quilombos, que são as terras nas quais estão formadas, direitos de proteção à cultura e à memória que também são garantidos pela Carta de 1988. O anseio por emancipação e visibilidade social que esses direitos constitucionais representaram para essas comunidades não é crível de ser mensurado, porém, ousa-se dizer que é certo que representaram a concretização de um sonho antigo desse povo de serem inseridos efetivamente na sociedade brasileira, tendo respeitados os seus modos viver e de ser. As suas formas de manifestação cultural, de manifestação religiosa, de percepção de mundo. A visibilidade jurídica se tornou mais palpável com o advento do Decreto Presidencial n. 4.887 de 2003 que traz entendimentos diferenciados, que permitem a coexistência de referências diversas dentro da sociedade. Uma das principais características na efetivação dos direitos dos quilombolas refere-se à possibilidade de autoatribuição para a identificação individual e coletiva dos quilombolas, bem como para a demarcação de suas terras. Já no tocante a visibilidade substancial, que são os reflexos da visibilidade jurídica na realidade, provocando a inserção dos quilombolas na sociedade, ao advento do decreto referido, experimentou um processo de ascensão. Essa visibilidade, porque acontece no mundo dos fatos é mais lenta e por isso é um longo processo longe de ser considerado concretizado cenário atual dos povos quilombolas. Mesmo assim, tornou-se mais possível de se tornar realidade e concretizar o sonho da emancipação social. Diante do exposto, poderíamos dizer que se chegou a um patamar de grandes conquistas e efetivação dos direitos quilombolas, o que sinaliza positivamente para a consolidação da emancipação social desses povos com a consequente saída deles da invisibilidade. Não obstante, conforme se verá neste estudo, a ADI n. 3239 de 2003 carrega argumentos que representam riscos de recolocar esses povos e comunidades em situação de nova invisibilidade social, mesmo que ainda não a tenham plenamente. Em outras palavras, situação de nova invisibilidade jurídica e substancial. Dessa forma, o presente estudo pretende analisar os riscos de nova invisibilização dos quilombolas que poderiam ser provocados pela referida ação. Essa análise se realizará tendo-se como base teórica o procedimento da sociologia das ausências de Santos (2010) que apresenta cinco modos de produção de não existência que são capazes de demonstrar que as energias e experiências desperdiçadas na atualidade são, na verdade, produzidas como invisíveis pela razão metonímica. Nesse sentido, é preciso refletir sobre o tema proposto, pelo que se lança a seguinte indagação: Considerando que os quilombolas alcançaram visibilidade jurídica e estão em fase de ascensão quanto à visibilidade substancial haja vista a contribuição trazida pelo Decreto n. 4.887/03 que é instrumento de efetivação de seus direitos e impulsionador na concretização dessas visibilidades, a ADI n. 3239/03 que questiona esse decreto representa riscos de recolocar os quilombolas em nova situação de invisibilidade social? É no intuito de esclarecer a indagação feita acima que se tentará demonstrar se as lógicas de produção de não existência estão presentes na ADI n. 3239 de 2003. Se exitosa essa tentativa serão demonstrados os motivos que fundamentam esses possíveis riscos re82

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presentados pela mencionada ação para os quilombolas, qual seja o de reproduzi-los como não existentes e, portanto, invisíveis perante a sociedade brasileira. O método de raciocínio utilizado para a pesquisa é o dedutivo e a técnica de pesquisa utilizada é a bibliográfica. Assim se parte da premissa da existência dos direitos quilombolas que os colocam, de certa forma, em visibilidade social. Depois se avança para analisar se a ameaça a esses direitos, pela mencionada ação, pode provocar uma nova situação de invisibilidade a esses povos. 2 OS DIREITOS DOS QUILOMBOLAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: O SONHO DE EMANCIPAÇÃO SOCIAL TORNA-SE JURIDICAMENTE POSSÍVEL 2.1 A FORMAÇÃO DOS QUILOMBOS E O DIREITO PREVISTO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 À TITULAÇÃO DAS TERRAS Os quilombos, no Brasil, foram formados durante o período escravocrata que se findou oficialmente em 1888. Tradicionalmente, foram formados por ex-escravos que fugiam para as matas como forma de resistência à opressão dos trabalhos forçados e em busca de uma nova vida em liberdade. O quilombo era uma entre muitas formas de resistência à escravidão existente à época, como, por exemplo, o suicídio, as insurreições, as revoltas coletivas. Obviamente, com o passar do tempo o quilombo adquiriu outros significados que não somente aquele inicial de resistência ao trabalho forçado. Começou a ser formado por aqueles negros insatisfeitos com a forma de vida que lhe impuseram os senhores da época e se mantém até aos dias de hoje, já com os remanescentes e descendentes daqueles negros que estavam escravos. Todavia, tanto em tempos passados quanto em tempos presentes a essência continua a mesma. É o sonho de liberdade e de viver distante da opressão. É o sentimento de pertença ao grupo e à terra que ocupam e que um dia ocuparam seus antepassados. Nesse sentido: Os quilombos eram, tradicionalmente, agrupamentos formados por escravos fugidos, em locais isolados e de difícil acesso. Atualmente, o termo passou a designar as terras habitadas por negros e originadas de doações de antigos senhores, de fazendas abandonadas com escravos, de terras da Igreja, e, com o decreto da abolição, terras doadas a ex-escravos, etc. […] Atualmente, essas comunidades integram o campesinato brasileiro. Como camponeses, apresentam algumas características específicas: são agrupamentos negros, tiveram origem durante a escravidão e se mantiveram na terra por mais de um século. Mas a terra que eles habitam não é uma terra qualquer. Trata-se de uma terra de uso comum. O valor da terra para esses grupos remete à satisfação de suas necessidades, que incluem suas tradições e sua herança cultural. Organizaram normas próprias, que fazem parte de sua vida e são respeitadas e reconhecidas pelos seus membros. Como veremos em seguida, são laços que unem e expressam sua identidade, seus costumes e sua história. (CARRIL, 1997, p. 10-12).

O conceito acima serve para demonstrar que viver no quilombo é mais do que ocupar um espaço de terra. Há impregnado na vida do quilombola toda uma história de lutas e de tradições. Os significados que o quilombo representa na vida de um quilomboSérie Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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la certamente não podem ser mensurados, mas o que pode ser percebido é que há uma relação dinâmica entre estes e as terras que ocupam. As terras de quilombo identificam uma comunidade unida por laços comuns e os quilombolas se sentem pertencentes a elas. Imprescindível esclarecer que os quilombolas não viviam absolutamente apartados da sociedade da época. Em que pese formação de muitos quilombos em matas distantes, os quilombolas se reinventavam conquistando e ampliando espaços de autonomia dentro do sistema escravagista. Dessa forma: De maneira nenhuma tão-somente viveram à margem do sistema escravista. Criaram e recriaram espaços no interior dos diversificados mundos da escravidão. Os mundos quilombolas acabariam por modificar profunda e paulatinamente os mundos que permaneceram escravos. (GOMES, 2006, p. 26).

É importante a colação trazida acima para mostrar que os quilombolas não estavam somente fugindo da situação de escravidão. A fuga para as matas não era uma atitude apenas defensiva e sim uma forma inicial de resistência que ganharia força e novos significados para a futura intervenção no sistema escravagista com a consequente alteração de suas estruturas. Há alguns autores que pensam diferente do que transcrito linhas acima. Diferente no sentido de enrijecerem os argumentos de que os quilombolas envidavam suas fugas somente como uma negação aos trabalhos forçados dentro do regime escravista. Fugiam para não serem submetidos aos trabalhos degradantes. “Era reação organizada de combate a uma forma de trabalho contra a qual se voltava o próprio sujeito que a sustentava.” (MOURA, 1981, p. 87). Sem embargo aos que veem o quilombo apenas como unidade de resistência ao trabalho forçado, o importante é considerar os processos de reinvenção dos quilombos, sabendo que aqueles negros eram inconformados com aquela situação e demonstravam isso à classe senhorial tornado a relação senhor versus escravo não muito tranquila, mas sim bastante turbulenta, uma vez que: A escravidão não foi nenhum universo idílico e muito menos foram harmoniosas as relações entre senhores e escravos. Existiram, sim, enfrentamentos e embates quase sempre permeados pela violência. Porém, os cativos não foram apenas personagens “coisificados” pela dominação. Procuraram, sempre que possível, interferir nos processos em que a vida deles estava envolvida. […] Longe de serem atípicos – no Brasil e no restante das Américas -, registram-se episódios de levantes, fugas coletivas e quilombos nos quais os escravos procuraram fazer valer seus interesses, ainda que isso não significasse de imediato o fim da escravidão. (GOMES, 2006, p. 281-282, grifo nosso).

A história que é passada nas escolas, por vezes, coloca o escravo, o quilombola, enfim os negros à época escravizados em uma situação de passividade louvável, mas como visto acima, essa passividade não existia dessa forma porque era impossível de ser suportada por aqueles negros. A visão um tanto romântica do período escravocrata, de certa forma, não deixa de esconder que existiram conflitos constantes entre os senhores e os escravos. Dissimula84

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damente, acaba por passar a imagem de pessoas conformadas com toda a situação degradante a que eram submetidas. Essa forma de se contar a história tem força para manter ainda hoje os negros quilombolas em uma situação, perante a sociedade, de “coitados” merecedores de assistência por serem descendentes de um povo fragilizado. Mas certamente não foi assim uma vez que: Ao longo da escravidão e da pós-emancipação em várias sociedades coloniais e pós-coloniais nas Américas não faltam evidências sobre variadas formas de protesto. Fugas, justiçamentos de feitores e senhores, revoltas nas fazendas, insurreições urbanas, quilombos etc. constituíram alguns modos de enfrentamento. […] A interferência no dia a dia das variadas relações do domínio senhorial podia se dar desde a sabotagem individual na unidade produtiva, barganhas, paternalismo, rituais de poder, fugas provisórias, apadrinhamento até à insurreição aberta. Forjavam-se de modo complexo e multifacetado, uma vez que homens e mulheres escravizados agenciavam sua vida com lógicas próprias entre experiências sociais concretas em cada sociedade. (GOMES, 2006, p. 8, grifo nosso).

O certo é que os quilombolas não ficaram de braços cruzados talvez à espera de um “messias” que viesse para tirá-los da escravidão, muito pelo contrário “[...] sonhavam com a terra e com a emancipação, agiram em função desses sonhos e mudaram o rumo da própria vida.” (GOMES, 2006, p. 306). Ante ao que fora exposto acima se afirma que os direitos dos quilombolas foram conquistados com muita luta e com muita garra e é certo que também com muita esperança de que era possível sair da exclusão social e obterem a tão almejada emancipação. Juridicamente o sonho de emancipação social tornou-se realidade e possível com a previsão, na Constituição de 1988, do direito à concessão dos títulos dos quilombos que está expressamente no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais e Transitórias (ADCT). A presença do art. 68 no ADCT se deve, principalmente, à vontade dos quilombolas de fazerem parte, efetivamente, da sociedade brasileira enquanto cidadãos. Vontade essa traduzida nas várias formas de resistência e lutas por seus direitos como meios de saírem de uma situação de invisibilidade social provocada pelo longo período de escravidão no Brasil. Nesse sentido: Foi a condição de ser negro que garantiu o artigo 68 da Constituição, coroando um passado de lutas nos quilombos que retorna hoje para que esses grupos possam encontrar um lugar na sociedade, mesmo participando das regras que lhes são impostas. É possível ser negro porque existe uma base material de sua história e cultura que é o território. As terras de negros são a prova histórica de que as comunidades negras participam da vida social, permitindo retirar da terra os alimentos, a moradia e as relações sociais. Mas a luta pelas terras de negros apenas começa e é necessária para garantir esse patrimônio e dar continuidade à sua história. (CARRIL, 1997, p. 67).

O texto constitucional, em seu art. 68 do ADCT prescreve que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (BRASIL, 2012, p. 85).

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O direito à concessão dos títulos das terras aos quilombolas está preconizado, também, em outras partes do ordenamento jurídico brasileiro, conforme se vê no art. 31 da Lei n. 12.288 de 20 de julho de 2010, o Estatuto da Igualdade Racial que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” Ainda há no ordenamento jurídico um importante decreto que cuida de regulamentar os procedimentos para a concretização dos direitos dos quilombolas no tocante à titulação das terras. Trata-se do Decreto n. 4.887 de 2003 que tem sido objeto de críticas por alguns, estando inclusive sofrendo questionamento sobre sua constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, conforme será visto adiante. Por agora, é suficiente trazer alguns comentários a seu respeito que é o assunto do próximo item. 2.2 O DECRETO N. 4.887/2003 COMO ATO ADMINISTRATIVO REGULAMENTADOR DOS PROCEDIMENTOS DE TITULAÇÃO DOS QUILOMBOS O mencionado decreto, conforme já dito linhas acima, foi editado para estabelecer procedimentos sobre como se fará a titulação das terras aos quilombolas. Titulação já prevista na Constituição de 1988 como já apontado. Traz importante procedimento para o reconhecimento e demarcação dos quilombos que é o critério de autoatribuição previsto em seu art. 2º, in verbis: Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. (BRASIL, 2002, p. 4).

Os critérios de autoatribuição previstos no decreto servem para iniciar o procedimento de titulação às terras. Assim, os quilombolas podem participar da demarcação de seus territórios, bem como se autodeclarar como quilombolas para receberem o título da terra. O conteúdo do art. 2º do Decreto 4.887/2003 é carregado dos valores preconizados na CRFB/88 de respeito aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, os critérios de autoatribuição estão relacionados ao sentimento de pertença dos quilombolas às terras que ocupam, uma vez que suas identidades são forjadas nesses espaços. Estão, do mesmo modo, os critérios de autoatribuição, harmônicos a outros direitos dos quilombolas, como o direito à cultura previsto na Constituição de 1988: Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. […] Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de

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Como se extrai dos artigos acima transcritos, os direitos dos quilombolas estão atravessados na Carta Constitucional, sendo que é possível dizer que os direitos à titulação das terras e à cultura são convergentes, podendo-se inferir que se assegurando o direito à titulação assegura-se o direito à cultura, e que para que o direito à cultura seja exercido há de se garantir a titulação das terras. O que fora dito acima é o que está no Texto Constitucional, mesmo que de outra forma. E o Decreto n. 4.887/2003 vem para concretizar esses direitos. Evidente que o dito decreto traz outros procedimentos a serem observados estabelecendo, inclusive, limites aos critérios de autoatribuição: Art. 3º Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.§ 1º O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto. (BRASIL, 2003, p. 4).

Diante do exposto, até o momento, e pelas colações trazidas vê-se que o referido decreto é um ato administrativo que regulamenta diretamente o art. 68 do ADCT que segundo Daniel Sarmento (2010, p. 282): […] é legítimo concluir que o art. 68 do ADCT contém autêntica norma consagradora de direito fundamental, o que torna inequívoca a incidência do disposto no art. 5º, § 1º, do texto magno, segundo o qual “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicabilidade imediata”. Tal comando implica, antes de tudo, que os direitos fundamentais não dependem de concretização legislativa para surtirem os seus efeitos. Tratando-se de direito fundamental, a própria Constituição pode ser invocada diretamente, independentemente da edição de lei regulamentadora. Em outras palavras, a inércia do legislador não tem o condão de frustrar a possibilidade de fruição imediata do direito fundamental pelo seu titular. (grifo nosso).

Sendo o art. 68 do ADCT de aplicabilidade imediata, somente resta concluir que: O Decreto n. 4.887/03 trata do processo administrativo referente à aplicação do art. 68 do ADCT pela Administração Pública Federal. Este processo outra coisa não é senão a concretização, no âmbito específico da questão dos quilombos, dos princípios e regras gerais estabelecidos pela Lei 9.784/99, que disciplinou o processo administrativo da União. É verdade que existem singularidades na questão quilombola que exigem regramentos procedimentais próprios. Foi exatamente por isso que se tornou necessária a edição do Decreto 4.887, o qual sem afastar-se um milímetro da principiologia e dos regramentos gerais do processo administrativo

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Lucas Pacif do Prado Muniz, Gilsilene Passon P. Francischeto federal previstos na Lei 9.784/99, adaptou-o às especificidades do domínio empírico sobre o qual deveria incidir. (SARMENTO, 2010, p. 283).

Com base no entendimento trazido acima, conclui-se que mesmo depois da consagração dos direitos dos quilombolas na CRFB/88 passaram-se aproximadamente 13 anos sem que se houvesse a regulamentação que aconteceu, primeiro em 2001, pelo Decreto n. 3.912 e depois, em 2003, pelo Decreto n. 4.887 este consagrando os critérios de autoatribuição. Diante disso, veem-se as dificuldades enfrentadas por esses grupos que, desde que chegaram a terras brasileiras experimentam o amargor da exclusão social. Quando foi abolida a escravidão em 1888 praticamente nada foi feito, em termos de políticas estatais, para se pensar que aqueles negros e os quilombolas também mereciam emergir socialmente. Não bastasse, depois de anos de lutas, quando os quilombolas veem a possibilidade jurídica de concretização de seus direitos, eles ainda precisaram esperar mais tempo para que fossem regulamentados, ou seja, aproximadamente 13 anos e mesmo assim com muitos embaraços, porque a edição do Decreto n 4.887 de 2003 não significou emancipação social material e definitiva. Conforme se verá mais adiante, tal decreto é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3239/2003, sendo que representa uma ameaça aos direitos tão penosamente conquistados pelos quilombolas. Todavia, há de ser mostrado ainda outro importante direito dos quilombolas, qual seja, o direito à memória que será estudado no próximo tópico. 2.3 O DIREITO FUNDAMENTAL À MEMÓRIA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988 E A SUA APLICAÇÃO ÀS COMUNIDADES QUILOMBOLAS Antes de se apontar o direito à memória na CRFB/88 é importante trazer alguns conceitos metajurídicos sobre a memória para que se compreenda de forma mais adequada esse direito. Há vários conceitos sobre o que seja memória. É possível encontrar mais conceitos nas áreas da biologia, da neurociência, da psicologia, entre outras áreas do conhecimento. Até mesmo o senso comum pode apresentar o conceito do que é a memória, e isso se percebe a todo o momento porque as pessoas sempre se referem a ela. Exemplo disso é quando alguma pessoa diz que não está boa da memória porque anda muito esquecida. Expressões como essa mostram que é comum para a sociedade entender que a memória é o local em que se guardam informações.Essa concepção não está equivocada, pelo contrário, é um dos conceitos do que seja memória porque “[...] é a aquisição, a formação, a conservação e a evocação de informações […] aquisição é também chamada de recordação, lembrança, recuperação. Só lembramos aquilo que gravamos, aquilo que foi aprendido.” (IZQUIERDO, 2002, p. 10, grifo nosso). O conceito transcrito acima é um dos muitos que existem. Por isso é possível inferir que não há um conceito unívoco do que é memória. Dessa forma, é importante destacar que a depender do tema estudado conceitos diferentes podem ser utilizados. Para o estudo em tela o conceito de memória é de caráter social uma vez que os conceitos trazidos por outras áreas do conhecimento tendem a valorizar a memória num

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plano bastante individualizado. Compreender a memória pelo aspecto social permite afirmar que o meio social influenciará a formação da memória do indivíduo. Dessa forma: Suspeitamos, então, de uma visão da memória como faculdade mental, ou como capacidade individual, natural, transmitida biologicamente, que durante muito tempo dominou a psicologia tradicional e os estudos nas áreas biológicas e neurológicas. Tanto a noção da memória humana enquanto faculdade mental, com raízes na filosofia idealista e dualista, quanto a que a define como propriedade do cérebro que retém, conserva e recupera dados, com pressupostos mecanicistas que guiam experimentos em psicologia e nas neurociências, deixam de lado os aspectos da atividade consciente que se formaram ao longo da história social da humanidade. [...] No entanto, o que tentamos problematizar é o papel atribuído aos aspectos sociais nesses estudos. Embora os modelos neuropsicológicos e cognitivos tentem abarcar a natureza dinâmica da memória, eles não ultrapassam o nível interno do processo, guiados por pressupostos biológicos. Mesmo aqueles que tentam considerar o contexto social deixam escapar marcas da dicotomia individual/social. Questionamos, em nosso texto, o enfoque reducionista de algumas teorias nas neurociências e na psicologia que se atém aos aspectos biológicos da recordação. Como é possível considerar somente o funcionamento cerebral/ mental como responsável pelo processo, com repercussões comportamentais, se o desenvolvimento do homem é essencialmente social? Em muitos trabalhos, as funções psíquicas humanas são analisadas apenas no nível individual ou, quando os fatores sociais são considerados, o fundamento é mecanicista, separando-as do contexto social mais amplo e do momento histórico. A partir do pressuposto de que é possível separar o indivíduo da sociedade, abstraem-se as condições psicológicas humanas, é vista, em muitas abordagens, de forma histórica […] (BRAGA, 2000, p. 15-17, grifo nosso).

Com base no texto acima se afirma, então, que é mais conveniente estudar a memória sob o prisma sociológico, pois, assim se pode compreender o indivíduo enquanto absorvendo todas as influências do meio social, sendo então a sua memória forjada nesse meio e não proveniente, apenas, de heranças genéticas, por exemplo. O referido texto serve para demonstrar também que a memória precisa ser compreendida como algo forjado no meio social e não, absolutamente, inata. A análise da memória sob o prisma social, além do mais, permite o conceito de memória individual, que segundo Halbwachs (2006, p. 72): Examinemos agora a memória individual. Ela não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si, determinados pela sociedade. Mais do que isso, o funcionamento da memória individual não é possível sem que esses instrumentos que são as palavras e as ideias, que o indivíduo não inventou, mas toma emprestado de seu ambiente. Não é menos verdade que não conseguimos lembrar senão do que vimos, fizemos, sentimos, pensamos num momento do tempo, ou seja, nossa memória não se confunde com a dos outros. Ela está muito estreitamente limitada no espaço e no tempo.

Percebe-se que o autor descreve a memória individual como existente senão dentro do contexto social, limitada no espaço e no tempo. Por isso se pode afirmar que a

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memória individual existe senão dentro do contexto da memória coletiva. Esta serve de referência para formar a memória individual com suas peculiaridades em cada pessoa. Oportuno então, trazer o conceito de memória coletiva, pelo que: […] é o grupo visto de dentro e durante um período que não ultrapassa a duração média da vida humana, que de modo geral, lhe é bem inferior. Ela apresenta ao grupo um quadro de si mesma que certamente se desenrola no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele sempre se reconheça nessas imagens sucessivas. A memória coletiva é um painel de semelhanças, é natural que se convença de que o grupo permaneça, que tenha permanecido o mesmo, por que ela fixa sua atenção sobre o grupo e o que mudou foram as relações ou contatos do grupo com os outros. Como o grupo é sempre o mesmo, as mudanças devem ser aparentes: as mudanças, ou seja, os acontecimentos que ocorreram no grupo, se resolvem em semelhanças, pois parecem ter como papel desenvolver sob diversos aspectos um conteúdo idêntico, os diversos traços essenciais do próprio grupo. (HALBWACHS, 2006, p. 109).

O conceito de memória social, como foi visto, adéqua-se perfeitamente às comunidades quilombolas, haja vista serem comunidades com passado comum, com laços comuns de parentesco e de ligação a terra que ocupam. De laços culturais e religiosos compartilhados por longo tempo. Além disso, o quilombo tem um mesmo significado para os quilombolas desde o período escravocrata, qual seja o de resistência à opressão e de luta pela liberdade. Essas e outras características comuns fazem com que os quilombolas se sintam pertencentes à comunidade e, consequentemente, ao local em que vivem. No que está exposto no parágrafo anterior se consolida a memória coletiva de comunidades quilombolas, memória esta que vem passando desde tempos antigos até aos dias de hoje e que permitem fazer reviver na memória desses grupos todo o passado e o presente comum. As comunidades atuais, compostas majoritariamente por descendentes daqueles ex-escravos fugidos guardam na memória coletiva aquilo que lhes foi contado sobre seus ancestrais. Por isso, mesmo que os grupos antigos não existam mais no plano fático, subsistem na memória dos atuais grupos. Pelo fato de o mesmo sentimento ter atravessado gerações e permanecido na memória coletiva e individual dos quilombolas, é que se pode afirmar que a comunidade é a mesma, uma vez que ainda leva adiante a luta pela liberdade e pela emancipação social para que sejam os seus integrantes contemplados com seus direitos. Do mesmo modo, reside na memória individual de cada indivíduo que se reconhece quilombola este mesmo sentimento de pertença ao local em que habitam, às comunidades nas quais estão inseridos. Isso porque a formação da memória individual de cada um tomou como referência a cultura, a forma de trabalho, a religiosidade e outras características presentes em cada comunidade quilombola. Feitas essas considerações veja-se o direito à memória, consagrado na Constituição de 1988: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade bra-

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A ação direta de inconstitucionalidade n. 3.239/2003... sileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; […] § 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. (BRASIL, 2012, p. 69, grifo nosso).

Conforme se pode ver, o legislador constitucional destinou proteção à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. A proteção aqui é dada diretamente à cultura desses grupos, incluindo-se os quilombolas, porém implicitamente pode-se dizer que é nesse artigo é que está consagrado o direito à memória. Há autores que sustentam mesmo a existência do direito fundamental à memória, como, por exemplo, Fabiana Santos Dantas quando aduz que: “[…] pode-se afirmar que o direito à memória existe e consiste no poder de acessar, utilizar, reproduzir e transmitir o patrimônio cultural, acumular conhecimentos e aperfeiçoá-los através do tempo.” (DANTAS, 2010, p. 66). Assim, aplicando-se aos quilombolas esse direito fundamental à memória poder-se-ia dizer que têm o direito de acessar à sua memória individual e coletiva e terem a liberdade de praticarem a cultura, a religião e suas formas de viver e de ser em seus territórios e, consequentemente, perpetuarem tais práticas no decorrer do tempo alcançando assim gerações presentes e futuras. O direito das comunidades quilombolas de recorrerem às suas memórias, e a partir disso as colocarem em prática por meio da cultura e por meio de seus modos de ser e de fazer revela, também, um caráter libertador da cultura hegemônica que lhes foi imposta e permite desse modo, a reafirmação de suas identidades enquanto comunidades quilombolas. Nesse sentido: O direito à memória representa a busca por alternativas à imposição uniformizadora e, portanto, a possibilidade de libertação de estruturas enclausurantes do presente com a revelação de sua natureza histórica desleal. A memória traz em si, portanto, a possibilidade de reverter as incongruências do presente por meio do inconformismo com o passado trazido à tona. O direito à memória se funda no potencial desnaturalizador de um passado injusto que carrega suas virulentas consequências no tempo, prolongando-se ao presente e estendendo sua pretensão ao futuro. (MACHADO, 2012, p. 22-23).

Diante do que fora exposto, é fácil concluir que o direito à memória tem grande importância para comunidades quilombolas, uma vez que tem potencialidade capaz de abarcar os direitos de acesso à terra e o direito à cultura dos quilombolas, uma vez que sem lhes garantir o direito à memória, não há garantia do direito à cultura e ainda, não há como se efetivar o direito à cultura senão nos quilombos. Ademais, o direito à memória ao abarcar uma gama de direitos quilombolas, permite, conforme foi citado anteriormente, a insatisfação com o passado de agruras vivido por esses grupos e através disso promove a libertação dessas comunidades, pois somente trazendo à tona esse histórico comum vivido pelos quilombolas é que se condensarão energias capazes de direcionar esses grupos rumo à contínua luta pela emancipação social e na medida em que esta for acontecendo provocará nas comunidades a sensação de verdadeira liberdade.

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Chega-se ao final desse item em que se estudou o direito à memória aplicado aos quilombolas, bem como ao final do capítulo no qual se estudou dois outros importantes direitos dos quilombolas, quais sejam o direito de titulação dos quilombos e o direito à cultura. A partir de agora, oportuno se faz analisar a problemática pensada para esse trabalho que são os possíveis riscos de nova invisibilização de comunidades e indivíduos quilombolas Brasil afora. 3 A SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS DE BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS COMO FONTE HÁBIL A EXPLICAR O PARADOXO JURÍDICO RELACIONADO À CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DOS QUILOMBOLAS Antes, porém, de adentrarmos efetivamente na problemática desse estudo, é importante tecer alguns comentários sobre a sociologia das ausências de Santos (2010), para se tentar compreender o que seria o risco de invisibilização dos quilombolas. Isso porque as cinco lógicas de produção de não existência estão estreitamente relacionadas à teoria da sociologia das ausências. Dessa forma, a sociologia das ausências precisa, antes de tudo, ser compreendida dentro da crítica a um modelo de racionalidade, qual seja a crítica à razão indolente feita pelo autor, segundo o qual: A indolência da razão criticada neste capítulo ocorre em quatro formas diferentes: a razão impotente, aquela que não se exerce porque pensa que nada pode fazer contra uma necessidade concebida como exterior a ela própria; a razão arrogante, que não sente necessidade de exercer-se porque se imagina incondicionalmente libre e, por conseguinte, livre da necessidade de demonstrar a sua própria liberdade; a razão metonímica, que se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria prima; e a razão proléptica, que não se aplica a pensar o futuro, porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superação linear, automática e infinita do presente. (SANTOS, 2010, p. 95-96, grifo nosso).

Como se vê indolência da razão se manifesta de quatro formas agindo assim, sobre áreas diferentes no seio da sociedade. Dessa forma impõe formas de pensar, de agir, de ver e de ser hegemônicos enquanto despreza a riqueza das experiências que existem na sociedade em geral. Despreza o que outras culturas podem oferecer no tocante ao conhecimento, a religião, as práticas culturais e formas de ver o mundo. Este estudo se aterá a discorrer sucintamente sobre a forma de indolência da razão manifestada pela razão metonímica porque é a partir dela é que serão analisados os cinco modos de produção de não existência e perceber como é suficientemente capaz de permear argumentos capazes de colocar os quilombolas em nova invisibilidade. A razão metonímica então é: [...] obcecada pela ideia da totalidade sob a forma da ordem. Não há compreensão nem acção que não seja referida a um todo e o todo tem absoluta primazia sobre cada uma das partes que o compõem. Por isso, há apenas uma lógica que governa tanto o comportamento do todo como o de cada uma das suas partes. Há, pois,

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A ação direta de inconstitucionalidade n. 3.239/2003... uma homogeneidade entre o todo e as partes e estas não têm existência fora da relação com a totalidade. As possíveis variações do movimento das partes não afectam o todo e são vistas como particularidades. (SANTOS, 2010, p. 97).

O que Santos (2010) coloca sobre a razão metonímica é de fácil percepção, embora pareça que não. Basta olhar a nossa volta e perceber, por exemplo, que o padrão de se produzir o conhecimento é hegemônico, ou seja, rigorosamente, por meio da ciência. Que há padrões de beleza estabelecidos na sociedade, sendo eleito o europeu em detrimento de outras belezas, entre outras situações, sendo que o que é imposto como o referencial também é parte de um todo. É nesse sentido que o autor, ao discorrer sobre a razão metonímica, afirma que: A forma mais acabada de totalidade para a razão metonímica é a dicotomia, porque combina, do modo mais elegante, a simetria com a hierarquia. A simetria entre as partes é sempre uma relação horizontal que oculta uma relação vertical. Isto é assim porque, ao contrário do que é proclamado pela razão metonímica, o todo é menos e não mais do que o conjunto das partes. Na verdade, o todo é uma das partes transformada em termo de referência para as demais. É por isso que todas as dicotomias sufragadas pela razão metonímica contêm uma hierarquia: cultura científica/cultura literária; conhecimento científico/conhecimento tradicional; homem/mulher; cultura/natureza; civilizado/primitivo; capital/trabalho; branco/ negro; Norte/Sul; Ocidente/Oriente; e assim por diante. (SANTOS, 2010, p. 97-98).

Importante a colocação trazida, notadamente quando o autor fala sobre a combinação da simetria com a hierarquia. Talvez essa combinação “elegante” é que não permite que muitos vejam que esta serve para esconder a pretensão de se hierarquizar, mesmo sendo parte do todo, em detrimento das demais partes. Essa hierarquia é que acaba por desprezar outras experiências produzidas pelas partes quando não se adequam ao que é determinado pela hierarquicamente superior. Traga-se como exemplo dessa hierarquia hegemônica um grupo de música tradicional africana, chamado UGC Gospel Choir, da África do Sul. Um dia desses descobri esse grupo por acaso na internet e enquanto assistia a apresentação algo curioso veio-me! É que se tratava de música tradicional, mas toda a produção estava submetida a exigências musicais preconizadas pela teoria musical ocidental. As vozes eram dividias como em coros barrocos. Os instrumentos, também, vários deles, não me pareceram tradicionais africanos, mas sim tipicamente ocidentais porque, por exemplo, havia teclado e piano. A estrutura do show em geral era predominantemente europeia, com holofotes, backing vocal, etc. Penso que o que se deveria esperar de uma apresentação tradicional africana não era o que estava vendo naquele momento, mas o que vi talvez explique o que Santos (2010) está a falar sobre as dicotomias que acabam por estabelecer hierarquias. No caso em comento, era factível que a cultura tradicional africana apresentada estava hierarquicamente submetida a ditames ocidentais da música, da arte e da cultura. A experiência apresentada acima pode ser também explicada pelo autor quando aduz que: “[...] a razão metonímica, que se reivindica como a única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outros tipos de racionalidade ou, se o faz, fá-lo apenas para as tornar em matéria prima.” (SANTOS, 2010, p. 95). Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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Como consequências daquilo que é provocado pela razão metonímica o autor aponta duas como principais: Em primeiro lugar, como não existe nada fora da totalidade que seja ou mereça ser inteligível, a razão metonímica afirma-se uma razão exaustiva, exclusiva e completa, muito embora seja apenas uma das lógicas de racionalidade que existem no mundo e seja apenas dominante nos estratos da compreensão do mundo constituídos ou influenciados pela modernidade ocidental. A razão metonímica não é capaz de aceitar que a compreensão do mundo é muito mais do que a compreensão ocidental do mundo. Em segundo lugar, para a razão metonímica nenhuma das partes pode ser pensada fora da relação com a totalidade. O Norte não é inteligível fora da relação com o sul, tal como o conhecimento tradicional não é inteligível sem a relação com o conhecimento científico ou a mulher sem o homem. Assim, não é admissível que qualquer das partes tenha vida própria para além da que lhe é conferida pela relação dicotómica e muito menos que possa, além de parte, ser outra totalidade. Por isso a compreensão do mundo que a razão metonímica promove não é apenas parcial, é internamente muito selectiva. A modernidade ocidental, dominada pela razão metonímica, não só tem uma compreensão limitada do mundo, como tem uma compreensão limitada de si própria. (SANTOS, 2010, p. 98).

É um tanto curioso essa forma de se impor da razão metonímica, uma vez que se revela demasiadamente egoísta em relação a outras experiências existentes no mundo, bem como nas sociedades locais. Se se pode fazer alguma comparação, a razão metonímica é tal qual aquela pessoa que tem inveja de outra e que se sente inferiorizada, talvez por pensar que seja menos capaz. A partir disso, começa a se planejar para superar aquela outra pessoa, não importando o que tem de fazer para conquistar isso ao ponto de até mesmo submeter autoritariamente essa pessoa e outras que estão à sua volta. Assim, segundo Santos (2010, p. 98). “[...] a razão metonímica é [...] a resposta do Ocidente apostado na transformação capitalista do mundo, à sua marginalidade cultural e filosófica em relação ao Oriente.” Acontece que essa forma de agir da razão metonímica esconde fraquezas iguais às daquelas pessoas que só conseguem estarem bem se forsubmetendo outras pessoas. A pretensão de totalidade imposta pela razão metonímica além de ser a causa de sua expansão mundo afora é também, como dito, a causa de sua fraqueza que segundo Santos (2010, p. 99-100): Mas em qualquer destas pulsões está presente a totalidade que, por truncada, tem de ignorar o que não cabe nela e impor a sua primazia sobre as partes que, para não fugirem ao seu controlo, têm de ser homogeneizadas como partes. Por isso, a pulsão da fraqueza é também uma manifestação de força, a força de quem reivindica para si o privilégio de se declarar fraca. Porque é uma razão insegura de seus fundamentos, a razão metonímica não se insere no mundo pela via da argumentação e da retórica. Não dá razões de si, impõe-se pela eficácia da sua imposição. E eficácia manifesta-se pela dupla via do pensamento produtivo e do pensamento legislativo; em vez da razoabilidade dos argumentos e do consenso que eles tornam possível, a produtividade e a correção legítima.

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Continua o autor a insistir na crítica à razão metonímica e traz à baila um tema crucial para se entender os motivos de essa razão operar dessa forma sobre o mundo. É que a razão metonímica diante da forma como tem que agir para se sustentar desconsidera experiências e energias contemporâneas. É como se só tivesse olhos para o futuro, e como se pretende autossuficiente não se importa com os problemas do presente ou se se importa é no sentido de que no futuro conseguirá resolver todas as questões. Com isso, outras energias que poderiam ser utilizadas na solução de várias questões na atualidade são desprezadas. Em suma, a razão metonímica em sua monocultura de raciocínio, contrai o presente e alarga demasiadamente o futuro, conforme se vê: Começa a ser evidente que a razão metonímica diminuiu ou subtraiu o mundo tanto quanto o expandiu ou adicionou de acordo com as suas próprias regras. Reside aqui a crise da ideia de progresso e, com ela, a crise da ideia de totalidade que a funda. A versão abreviada do mundo foi tornada possível por uma concepção do tempo presente que o reduz a um instante fugaz entre o que já não é e o que ainda não é. Com isto, o que é considerado contemporâneo é uma parte extremamente reduzida do simultâneo. O olhar que vê uma pessoa cultivar a terra com uma enxada não consegue ver nela senão o camponês pré-moderno. [...] A contracção do presente esconde, assim, a maior parte da riqueza inesgotável das experiências sociais no mundo. [...] A pobreza da experiência não é expressão de uma carência, mas antes a expressão de uma arrogância, a arrogância de não se querer ver e muito menos valorizar a experiência que nos cerca, apenas porque está fora da razão com que a podemos identificar e valorizar. (SANTOS, 2010, p. 100-101, grifo nosso).

Ante o exposto é que se pode concluir, com Santos (2010), que a não valorização das diversas experiências existentes tem implicância direta nas diversas crises existentes no mundo e, principalmente, nas Américas porque possui inúmeras riquezas culturais devido aos diversos povos nelas existentes, mas a todo o momento esses povos, detentores dessas ricas experiências,precisam se insurgir contra os modelos hegemônicos de dominação em diversas áreas na vida social. Há uma força advinda desses diversos grupos que formam a contra hegemonia e se insurgem contra o que está estabelecido almejando reconhecimento e emergência social. No Brasil, podem-se citar diversos grupos, como, por exemplo, os índios, os negros e, no caso do presente estudo, os quilombolas. Juntos, embora lutando por ideais diferentes, concentram energias contra algo que lhes é comum, ou seja, contra o poder hegemônico que lhes quer adequar ao modelo de vida predominante, minando assim suas práticas culturais e suas formas de viver e de ser. Continuando, o autor ao propor um novo modelo de racionalidade que se contraponha a razão indolente fala em razão cosmopolita que está fundada em três procedimentos meta-sociológicos, quais sejam: “[...] a sociologia das ausências, a sociologia das emergências e o trabalho de tradução.” (SANTOS, 2010, p. 94). Dos procedimentos citados acima pelo autor, nos interessa para o presente estudo o da sociologia das ausências, uma vez que: [...] a razão metonímica, apesar de muito desacreditada, é ainda dominante, a ampliação do mundo e a dilatação do presente tem de começar por um procedi-

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Lucas Pacif do Prado Muniz, Gilsilene Passon P. Francischeto mento que designo por sociologia das ausências. Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto é, como uma alternativa não-credível ao que existe. O seu objeto empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais convencionais, pelo que as sua simples formulação representa já uma ruptura com elas. O objetivo da sociologia das ausências é transformar as ausências em presenças. Fá-lo, centrando-se nos fragmentos da experiência social não socializados pela totalidade metonímica. (SANTOS, 2010, p. 102, grifo nosso).

Dessa forma, o autor propõe o procedimento da sociologia das ausências como procedimento capaz de influenciar no aproveitamento das experiências que são desperdiçadas pela operação da razão metonímica, porque enquanto esta, concentrando as energias no futuro, contrai o presente e invisibiliza as experiências existentes, produzindo-as como não existentes, a sociologia das ausências traz uma nova proposta, dentro da ideia da razão cosmopolita que prega o contrário, isto é, a expansão do presente e a contração do futuro. O procedimento da sociologia das ausências, então, para buscar uma solução para o desperdício da experiência fornece mecanismos que permitem ver com clareza as razões desse desperdício. Por meio desse procedimento se torna possível enxergar o modo como age a razão metonímica, porque se encarrega de fornecer elementos para isso, com vistas a combater a invisibilidade por ela provocada. Portanto, é por meio da sociologia das ausências é que se pode descobrir que a não existência é produzida de formas variadas, especificamente, segundo Santos (2010), de cinco formas que são as cinco lógicas apresentadas por ele conforme se estudará no próximo item. 3.1 AS CINCO LÓGICAS DE PRODUÇÃO DE NÃO EXISTÊNCIA A razão metonímica, conforme já demonstrado linhas acima, produz a não existência das experiências que não se adequam ao que é ditado como o referencial. Simplesmente despreza as riquezas que existem no presente e não consegue compartilhar com outras partes experiências que poderiam ser aproveitadas. Em vez disso, opera no mundo sempre se autoproclamando como a única forma de raciocínio credível. Com base no que fora dito sobre essa razão, percebe-se que ela opera em várias áreas, melhor dizendo em todas, no mundo todo. Assim, tem ingerência no conhecimento, nas artes, na cultura, na religião, enfim, em todas as estruturas sociais. Por isso é que Santos (2010, p. 102) é categórico ao afirmar que: Não há uma maneira única ou unívoca de não existir, porque são várias as lógicas e os processos através dos quais a razão metonímica produz a não-existência do que não cabe na sua totalidade e no seu tempo linear. Há produção de não existência sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível. O que une as diferenças lógicas de produção de não-existência é serem todas elas manifestações da mesma monocultura racional.

E a partir dessa colocação o autor começa a distinguir cinco modos de produção de não existência que serão vistos a seguir:

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A primeira lógica deriva da monocultura do saber e do rigor do saber. É o modo de produção mais poderoso. Consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, respectivamente [...] Tudo o que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente. A não existência assume aqui a forma de ignorância ou de incultura. A segunda lógica assenta na monocultura do tempo linear, a ideia de que a história tem sentido em direção únicos e conhecidos. Esse sentido e essa direção têm sido formulados de diversas formas nos últimos duzentos anos: progresso, revolução, modernização, desenvolvimento, crescimento, globalização. Comum a todas estas formulações é a ideia de que o tempo é linear e que na frente do tempo seguem os países centrais do sistema mundial e, com eles, os conhecimentos, as instituições e as formas de sociabilidade que neles dominam. Esta lógica produz não existência declarando atrasado tudo o que, segundo a norma temporal, é assimétrico em relação ao que é declarado avançado. É nos termos desta lógica que a modernidade ocidental produz a não-contemporaneidade do contemporâneo, a ideai de que a simultaneidade esconde as assimetrias dos tempos históricos quenela convergem. O encontro entre o camponês africano e o funcionário do Banco Mundial em trabalho de campo ilustra esta condição. Neste caso, a não existência assume a forma de residualização [...] (SANTOS, 2010, p. 102-103, grifo nosso).

A primeira lógica apresentada age, assim, nas áreas do conhecimento. Dessa forma, dita as regras de como se produzir o conhecimento. A ciência é a principal manifestação dessa lógica, uma vez que se arroga a mais completa forma de saber existente no mundo. Isso é mais comum do que muitos podem pensar. Basta recorrer à realidade social para visualizar a ação dessa lógica. Prova disso é que muitas práticas medicinais de muitos grupos a exemplo dos índios, no Brasil, não são aceitas porque tem que se submeterem ao rigoroso crivo das regras científicas, sendo que não são aprovadas e por isso esse tipo de conhecimento, que poderia muito contribuir para toda a sociedade brasileira é produzido como não existente. A razão metonímica, manifestada nesta lógica, não consegue enxergar que talvez essa experiência possa ser proveitosa e somar, junto com a medicina, na melhoria da saúde de toda a população brasileira. Na ciência do direito essa lógica também age com muita veemência, principalmente, na interpretação do direito,pelo aplicador,que também é produção do conhecimento científico jurídico. Assim, a monocultura do saber induz formas únicas de se interpretar as normas engessando, muitas vezes, o operador do direito que pode aplicar mal a norma no caso concreto. Dessa forma, desconsidera todo o dinamismo dos fatos sociais que deve ser levado em conta quando da produção do conhecimento jurídico. Já a lógica do tempo linear despreza a ideia de tempos múltiplos e reduz o tempo à linearidade. Assim, concebe o passado como não digno de ser observado porque já ultrapassado e obsoleto. O passado é tido como algo que não deve ser repetido porque somente o futuro é que merece atenção. O olhar para o passado, por vezes, é nostálgico e ao invés de ser reinventado, para a melhoria do presente, é ignorado. O presente é contraído e as experiências contemporâneas são produzidas como não existentes. Diferentemente, o futuro é sobremodo alargado sendo que nele são depositadas todas as esperanças, todas as expectativas. No futuro, somente no futuro, são

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depositadas as expectativas de progresso e de uma vida melhor para humanidade e, enquanto isso, energias contemporâneas são desperdiçadas e o passado não é reinventado no presente, também, para o fortalecimento dessas energias. Não obstante, continua Santos (2010, p. 103-104, grifo nosso) a explicar outras lógicas de produção de não existência: A terceira lógica é a lógica da classificação social, que assenta na monocultura da naturalização das diferenças. Consiste na distribuição das populações por categorias que naturalizam hierarquias. A classificação racial e a classificação sexual são as mais salientes manifestações desta lógica. Ao contrário do que sucede com a relação capital/trabalho, a classificação social assenta em atributos que negam a intencionalidade da hierarquia social. A relação de dominação é a consequência e não a causa dessa hierarquia e pode ser mesmo considerada como uma obrigação de que é classificado como superior (por exemplo, o “fardo do homem branco” na sua missão civilizadora). Embora as duas formas de classificação (raça e sexo) sejam decisivas para que a relação capital/trabalho se estabilize e se difunda globalmente, a classificação racial foi a mais profundamente reconstruída pelo capitalismo [...] De acordo com esta lógica, a não-existência é produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural. Quem é inferior, porque é insuperavelmente inferior, não pode ser uma alternativa credível a quem é superior. A quarta lógica [...] é a lógica da escala dominante. Nos termos desta lógica, a escala adoptada como primordial determina a irrelevância de todas as outras possíveis escalas [...] A globalização é a escala que nos últimos vinte anos adquiriu uma importância sem precedentes nos mais diversos campos sociais. Trata-se da escala que privilegia as entidades ou realidades que alargam o seu âmbito a todo o globo e que, ao fazê-lo, adquirem a prerrogativa de designar entidades ou realidades rivais como locais. No âmbito desta lógica a não existência é produzida sob a forma do particular e do local. As entidades ou realidades definidas como particulares ou locais estão aprisionadas em escalas que as incapacitam de serem alternativas credíveis ao que existe de modo universal ou global.

Na terceira lógica, que é a da classificação social, as diferenças existentes são tidas como naturais, porque são naturalizadas por essa lógica. Assim, por exemplo, na sociedade Brasileira, os negros e os negros quilombolas são tidos como uma classe de pessoas que são inferiores naturalmente. Até mesmo algumas ações que são destinadas à inserção dos negros ou dos quilombolas são tidas muitas vezes como um fardo que a sociedade tem de carregar e não como uma política de estado que vise à efetivação de direitos de pessoas materialmente desiguais na sociedade brasileira. No mesmo sentido, a lógica da escala dominante, eficientemente produz como não existentes realidades locais, como é o caso dos quilombolas, porque não se adequam perfeitamente a escala dominante que é a globalização que age fortemente na destruição de culturas locais por meio da imposição da cultura ocidental que é a mais adaptável aos seus interesses. Por fim, será apresentada a quinta lógica de produção de não existência, que segundo Santos (2010, p. 104): [...] a quinta lógica [...] é a lógica produtivista e assenta na monocultura dos critérios de produtividade capitalista. Nos termos desta lógica, o crescimento econô-

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A ação direta de inconstitucionalidade n. 3.239/2003... mico é um objetivo racional inquestionável e, como tal, é inquestionável o critério de produtividade que mais bem serve esse objetivo. Esse critério aplica-se tanto à natureza como ao trabalho humano. A natureza produtiva é a natureza fértil num dado ciclo de produção, enquanto o trabalho produtivo é o trabalho que maximiza a geração de lucros igualmente num dado ciclo de produção. Segundo esta lógica, a não-existência é produzida sobre a forma do improdutivo que, aplicada à natureza, é esterilidade e, aplicada ao trabalho é preguiça ou desqualificação profissional.

Essas são as cinco lógicas de produção de não existência explicadas pelo autor e que funcionam, então, como produtoras de invisibilidade de experiências e energias que são visíveis no mundo fático, porém por não se adequarem ao paradigma dominante devem ser tidas como não credíveis e não existentes e, por conseguinte, tornam-se energias desperdiçadas. Continua o autor, no âmbito da sociologia das ausências, a explicar cinco ecologias que operam substituindo as monoculturas acima transcritas, são elas: “A ecologia dos saberes [...] A ecologia das temporalidades [...] A ecologia dos reconhecimentos [...] A ecologia das trans-escalas [...] A ecologia das produtividades [...]” (SANTOS, 2010, p. 105-113). A análise dessas ecologias não será objeto desse estudo. O que é importante frisar é que elas operam em contraponto, cada uma delas, às monoculturas presentes nas cinco lógicas de produção de não existência transcritas linhas acima. Conforme apresentado no título desse item, a sociologia das ausências é hábil para auxiliar na compreensão do paradoxo jurídico vivido pelos quilombolas porque fornece elementos teóricos que fazem com que se perceba que a razão metonímica nas suas formas de produção de não existência opera sobre os argumentos previstos na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3239 de 2003, contra o Decreto n. 4.887 de 2003. Enquanto é perceptível no mencionado decreto a presença de procedimentos que concretizam dispositivos constitucionais que existem com a finalidade de emancipação social dos quilombolas, e, consequentemente, esses procedimentos servem como mecanismos desinvisibilizadores, a referida ação traz, em sentido contrário, argumentos capazes de operar nova invisibilização das comunidades quilombolas, porque influenciados pela razão metonímica. Assim por meio da sociologia das ausências é que se pode clarificar como a razão metonímica age na produção de não existência, conforme visto acima quando forem apresentadas as cinco lógicas de se produzi-la. No próximo tópico, serão abordados os riscos de nova invisibilização dos quilombolas, com base no que foi fornecido até agora pela teoria da sociologia das ausências de Santos (2010). Esses riscos serão estudados tomando-se os argumentos contra o Decreto n. 4.887 de 2003 presentes ADI n. 3239 de 2003 e analisando-os à luz das cinco lógicas de produção de não existência apresentadas acima. 4 A ADI N. 3.239 DE 2003 E OS RISCOS DE UM NOVO PROCESSO DE INVISIBILIZAÇÃO DAS COMUNIDADES QUILOMBOLAS

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A ADI n. 3.239 de 2003 foi ajuizada na Suprema Corte pelo Partido da Frente Liberal (PFL), atualmente, Democratas. Os argumentos nela presentes são direcionados a demonstrar que o Decreto n. 4.887 de 2003 fere dispositivos da Carta Magna de 1988. Todavia, conforme se pretende demonstrar neste tópico, esses argumentos trazem consigo forças invisibilizadoras direcionadas às comunidades quilombolas e capazes, se forem acolhidos, de obstar o processo de visibilidade social inaugurado com o advento da Constituição de 1988 e regulamentado pelo decreto questionado. Convém ressaltar que não há intenção de se fazer críticas românticas e abstratas quanto a esta questão que é tão importante para os negros quilombolas. A sucinta análise que será realizada com base nas cinco lógicas de produção de não existência serve para trazer à tona as energias invisibilizadoras que seriam capazes de provocar retrocesso aos direitos conquistados pelos quilombolas no atual ordenamento jurídico. Como se está a falar de riscos de nova invisibilização dos quilombolas por meio das cinco lógicas de produção de não existência cabe trazer a explicação sobre a invisibilidade do negro em geral, mas perfeitamente aplicável aos quilombolas, dada por Leite (1996, p. 41), que aduz que: “A invisibilidade do negro é um dos suportes da ideologia do branqueamento, podendo ser identificada em diferentes tipos de práticas e representações.” Continua a autora a explicar a noção de invisibilidade que é utilizada por muitos autores, destacando a primeira vez em que o termo apareceu, sendo que: A noção de invisibilidade, utilizada por vários autores para caracterizar a situação do negro, foi utilizada pela primeira vez na literatura ficcional americana por Ellison (1190) para descrever o mecanismo de manifestação do racismo nos Estados Unidos, sobretudo na entrada dos ex-escravos e seus descendentes no mercado de trabalho assalariado e as relações sociais decorrentes de sua nova condição e status. Ellison procura demonstrar que o mecanismo da invisibilidade se processa pela produção de um certo olhar que nega sua existência como forma de resolver a impossibilidade de bani-lo totalmente da sociedade. (LEITE, 1996, p. 41).

Com base nisso, conclui Leite (1996, p. 41): Ou seja, não é que o negro não seja visto, mas sim que ele é visto como não existente. É interessante observar que este mecanismo, posteriormente percebido também no Brasil, ocorre em diferentes regiões e contextos, revelando-se como uma das principais formas de o racismo se manifestar. Como um dispositivo de negação do Outro, muitas vezes inconsciente, é produtor e reprodutor do racismo. A invisibilidade pode ocorrer no âmbito individual, coletivo, nas ações institucionais, oficiais e nos textos científicos.

As colações trazidas corroboram sobremaneira com o que tem sido colocado nesse estudo, uma vez que se pode concluir que os quilombolas são vistos, mas, como não existentes por boa parte da sociedade brasileira, notadamente ao se verificar os argumentos expostos na ADI n. 3.239 de 2003. Ainda, tomando-se por base a citação acima, se poderia dizer que de modo geral a indolência da razão em sua forma metonímica está, desde a chegada dos negros no Brasil, produzindo a não existência destes enquanto indivíduos e enquanto comunidades.

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Estenda-se esse raciocínio às comunidades quilombolas que, além de produzidos como não existentes no macro grupo que forma a comunidade negra, são vistos como não existentes enquanto quilombolas coletiva e individualmente. Seja por meio de ações institucionais que são direcionadas a manterem na invisibilidade os quilombolas, seja por meio de omissões como no caso da inércia na efetivação dos direitos constitucionais desses grupos, ambas as situações demonstram a monocultura na forma de raciocínio que não é capaz de enxergar a importância da concretização desses direitos tanto para as comunidades quilombolas quanto para a sociedade brasileira. Neste momento, oportuno elencar as principais alegações de inconstitucionalidade presentes na ADI n. 3.239 de 2003 e apontar sob qual lógica de produção de não existência estão sedimentadas. É certo que a razão metonímica prepondera sobre todos os argumentos da mencionada ação direta. Afirma-se isso,com base no conteúdo teórico já apresentado. Não se pretende, por isso, elaborar um rol taxativo e restritivo sobre qual é a lógica que opera sobre tal ou qual argumento, mas sim separar alguns fragmentos de texto e identifica-los com pelo menos uma das cinco lógicas propostas por Santos (2010) na tentativa de clarificar o tema, produzindo, então, uma análise mais concreta. Diante disso, vejamos a primeira alegação de inconstitucionalidade: III – Do uso indevido da via regulamentar Ao pretender regulamentar diretamente, sem supedâneo em lei formal, o art. 68 do ADCT (“O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, incisos IV e VI, alínea “a”, da constituição e de acordo com o disposto no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”), o Decreto nº 4.887/2003 incorreu em autonomia ilegítima. O texto constitucional dá aos decretos e regulamentos, segundo o disposto no art. 84, IV, da constituição a função de fiel executar as leis, conferindo-lhe, portanto, natureza de instrumento normativo secundário, que tem sua validade dependente de lei formal. Ao dispensar a mediação de instrumento legislativo e dispor ex novo, o ato normativo editado pelo Presidente da República invade esfera reservada à lei, incorrendo em manifesta inconstitucionalidade. (BRASIL, 2013, grifo nosso).

Entendemos que a lógica da monocultura do saber prepondera sobre essa primeira alegação, porque eleger a lei como a única forma de se concretizar direitos estabelecidos na Constituição de 1988 é entendimento que vem sendo superado no ordenamento jurídico brasileiro diante da já difundida teoria da força normativa da Constituição. É sabido, com base na teoria já exposta,que a razão metonímica se consolida, principalmente, pela força, pois “[...] impõe-se pela eficácia da sua imposição. E essa eficácia manifesta-se pela dupla via do pensamento produtivo e do pensamento legislativo.” (SANTOS, 2010, p. 100). Conforme se pode perceber a argumentação de inconstitucionalidade do Decreto n. 4.887 de 2003 como a via regulamentar indevida transfere somente para a lei a competência até mesmo para estabelecer procedimentos, o que não seria necessário. Transparece nesse argumento a incompreensão por parte dos idealizadores da mencionada ação direta que tal decreto estabelece procedimentos para a efetivação de direitos previstos na Constituição de 1988.

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A lógica da monocultura do saber, nesse caso, obsta que se faça uma interpretação contemporânea do direito. Uma interpretação, que sem desrespeitar as regras do ordenamento jurídico brasileiro, abarque os conceitos de multiculturalismo étnico, político, científico, entre outros. Em outras palavras, pela submissão a essa monocultura, o pensamento dos idealizadores da mencionada ADI, que imbuídos, é claro de outros interesses, também sob a égide da razão metonímica, pela lógica produtivista, por exemplo, não é capaz de romper com o paradigma dominante para reconhecer os direitos dos quilombolas, por meio de uma interpretação ampliativa e social do direito. Além do mais, por força da monocultura do saber, a tarefa de lançar mão da hermenêutica jurídica a fim de aplicar o direito contemporâneo que contemple toda a diversidade existente no Brasil, especificamente, no caso dos quilombolas, é tarefa praticamente impossível, o que se vê bem claro no dispositivo apontado como inconstitucional. Um entendimento que demonstra romper com essa lógica é o de Daniel Sarmento quando defende que o Decreto n. 4.887 de 2003 é ato administrativo que regulamenta o art. 68 do ADCT (SARMENTO, 2010, p. 282). Mencione-se, ainda, que o referido decreto está harmônico com o que vem decidindo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem firmando jurisprudência no sentido de se conceder títulos a comunidades tradicionais como de indígenas e de descendentes de ex-escravos, como, por exemplo, no caso da comunidade tribal negra Moiwana, no Suriname: [...] em face do exposto, a jurisprudência desta Corte para as comunidades indígenas e seus direitos comuns à propriedade, nos termos do artigo 21 da Convenção, também deve aplicar-se aos membros da comunidade tribal Moiwana, sendo que a ocupação tradicional da aldeia Moiwana e terras vizinhas – que tem sido reconhecida e respeitada durante anos pelos clãs N’djuka e comunidades indígenas vizinhas (supra para 86,4.) – deve ser suficiente para obter o reconhecimento estatal da propriedade. As fronteiras exatas do território, no entanto, só podem ser determinadas após consulta com as comunidades vizinhas […] (CORTEIDH, 2005, grifo nosso, tradução nossa).

Como se vê não nos parece indevido o uso do decreto em comento, muito pelo contrário, é um ato administrativo coerente com o que estabelece a CRFB/88, bem como com decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Percebe-se no bojo desse decreto ao menos uma tentativa de se romper com a monocultura do saber, uma vez que harmoniza critérios de autoatribuição dos quilombolas que atende à ideia de multiculturalismo, juntamente com critérios científicos quando prevê estudos antropológicos e históricos, por exemplo. Enfim, traz à tona a possibilidade do diálogo das formas de conhecimento, chamando a atenção da ciência do direito para uma nova forma de aplica-lo, qual seja a forma desprendida de um único modo de se produzir o conhecimento jurídico e, portanto, de se aplicar os direitos dos quilombolas. Vejamos agora, o segundo principal item apontado como inconstitucional:

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A ação direta de inconstitucionalidade n. 3.239/2003... IV – Da desapropriação inconstitucional Segundo o Decreto n.º 4.887/2003, caso as terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas localizem-se em área de domínio particular, cabe ao INCRA proceder a sua desapropriação. [...] Ante o enunciado constante do art. 68 do ADCT, descabe ao Poder Público desapropriar a área, visto que a propriedade decorre diretamente da Constituição. [...] Ou seja, não há que se falar em propriedade alheia a ser desapropriada para ser transferida aos remanescentes de quilombolas, muito menos em promover despesas públicas para fazer frente a futuras indenizações. As terras são, desde logo, por força da própria Lei Maior, dos remanescentes das comunidades quilombolas que lá fixam residência desde 5 de outubro de 1988. O papel do Estado limita-se, segundo o art. 68 do ADCT, a meramente emitir os respectivos títulos. (BRASIL, 2013, grifo nosso).

Entendemos que nesse item sobressai a lógica da monocultura do tempo linear, uma vez que fica claro nos argumentos presentes na ADI n. 3.239 de 2003 que são enfáticos ao afirmarem que, eventualmente, só teriam o direito à titulação às terras os “remanescentes” das comunidades quilombolas, fazendo-se interpretação restritiva, que até mesmo retoma a lógica apresentada no item anterior. Assim, depreende-se que seria impossível utilizar-se do instituto da desapropriação para conceder títulos a quem não teria esses direitos porque o tempo passou e o direito à titulação então não subsiste porque foi somente para aquela época. É clara a ideia da linearidade do tempo, bem como da evolutividade. Ao taxar a desapropriação para a concessão dos títulos com inconstitucional, os idealizadores da mencionada ação não consideram a história dos negros no Brasil, notadamente dos quilombolas. Em que pese não haver remanescentes, no sentido estrito da palavra há os descendentes que continuam a viver nos quilombos e dessa forma fazem com que a história de seus antepassados convirja no tempo presente. Só é possível essa compreensão, a partir do entendimento de que o tempo não é somente linear, porque este considera o que é passado como atrasado, obsoleto, antiquado. Por essa linha de entendimento, as comunidades quilombolas atuais são vistas como tradicionais num sentido de sociabilidade retrógrada local e não merecedora, portanto, de credibilidade pela sociedade brasileira global e, consequentemente, é produzida como não existente porque não acompanhou o “desenvolvimento”. O Decreto n. 4.887 de 2003 rompe com essa ideia de linearidade do tempo mantido pela monocultura do tempo linear e traz para o caso dos quilombolas a possibilidade da coexistência de tempos, permitindo que o passado convirja no presente de forma atualizada e, ainda, permitindo que o passado permaneça na memória dos quilombolas e que afirmem assim a identidade deles no tempo presente perpetuando-se essa mesma identidade para as futuras gerações. Entendemos que claramente paira, do mesmo modo, sobre o discurso apresentado neste item a quinta lógica de produção de não existência, qual seja, a lógica produtivista. Nem é preciso descer a maiores detalhes para lembrar que várias teorias explicam que a forma como a propriedade é conhecida nos tempos atuais foi elemento basilar para a institucionalização do capitalismo.

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Todavia, não se tem a intenção de aprofundar na discussão do sistema capitalista. Mas o que deve ficar consignado é que a propriedade e produtividade estão ligadas intrinsecamente. Sobre a proteção à propriedade basta verificar o art. 5º, caput, e art. 5º, XXII. A propriedade então é tida como o patrimônio de determinado indivíduo ou pessoa jurídica e é patrimônio que compõe as riquezas de pessoas, podendo essas, livre disporem, alienarem, comprarem, etc. A produção de não existência, nesse caso, reside na incompreensão do modo de relacionamento que o quilombola tem com a terra que habita. Os quilombolas vivem coletivamente nas terras. Das terras, tiram o sustento para a sobrevivência individual e de todo o grupo. Os quilombos, também, são os locais em que ocorrem manifestações culturais e religiosas desses negros. Muitos nascem, crescem, envelhecem e morrem nos quilombos. O que se quer dizer é que esses negros tem o sentimento de pertença a terra e à comunidade e estão ligados por lações de parentesco e laços culturais, além da memória coletiva que os identificam e os mantém em unidade. Esclarecendo, a concepção da propriedade pelos quilombolas é diferente da concepção consagrada na constituição e é por isso que os títulos serão concedidos para que os quilombolas continuem nelas habitando. Os quilombos não se incorporarão ao patrimônio dos quilombolas. Até porque a forma como veem as terras é diferenciada, sendo que possuem, portanto, a noção de propriedade comum. A Corte Interamericana de Direitos Humanos que interpreta a Convenção Americana de Direitos Humanos tem o entendimento de que o direito de propriedade preconizado na referida convenção: […] abrange o direito ao reconhecimento da propriedade comunal por populações indígenas e também por outras comunidades étnicas, como os grupos negros formados por descendentes de escravos, dotados de cultura e tradições próprias. Tal orientação decorre do reconhecimento da importância que têm as terras tradicionalmente ocupadas para estes grupos, que, muito mais que mero patrimônio, são pressuposto para a sua a (sic) continuidade e florescimento, de acordo com a sua cultura e o seu modus vivendi. (SARMENTO, 2010, p. 285, grifo nosso).

Ocorre que pela operação da lógica produtivista, os argumentos trazidos na ADI n. 3239 de 2003 mostram que o entendimento hegemônico da propriedade não poderia permitir outra forma de concepção desta no território brasileiro. Ao que tudo indica, é a preocupação por parte de alguns proprietários deter que “perder” parte de terras particulares para a concessão do título aos quilombolas. Isso ocorrendo, certamente a produtividade estará prejudicada. É que pela lógica produtivista uma terra, por exemplo, precisa produzir bastante para ser considerada fértil. Ao se conceder o título a alguma comunidade, talvez se pense que a terra seria dada para um grupo que não a faria produzir nada e isso seria um desperdício. Situações como essa são inaceitáveis num mundo conduzido pela lógica produtivista que incute na mentalidade de grandes proprietários de terras a necessidade de acumularem muito mais para produzirem mais. Nesse sentido, os argumentos presentes na mencionada ação arrimados pela lógica produtivista são capazes de manterem na invisibilidade as comunidades quilombolas se

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acaso convencerem aos ministros da Suprema Corte deque não pode haver outra forma de concepção da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque pela monocultura dos critérios de produção capitalista, os seus idealizadores não veem outro modo de “produção” como uma alternativa credível e passível de ser aproveitado em coexistência, ainda, com outras formas. Veremos a seguir, dois itens presentes na ADI n. 3239 de 2003 que podem ser analisados conjuntamente haja vista a similitude nas alegações: V – Da configuração inconstitucional dos titulares do direito á propriedade definitiva O Decreto n. 4.887/2003 elege como critério essencial para a identificação dos remanescentes titulares do direito a que se refere o art. 68 do ADCT a atuo-atribuição. Em outras palavras, o texto regulamentar resume a rara característica de remanescente das comunidades quilombolas numa mera manifestação de vontade do interessado [...] À toda evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado nas terras importa radical subversão da lógica constitucional. Segundo a letra da constituição, seria necessário e indispensável comprovar a remanescência – e não a descendência – das comunidades dos quilombolas para que fossem emitidos os títulos [...] Ademais, somente fazem jus ao direito, os remanescentes que estivessem na posse das terras em que se localizavam os quilombos no período da promulgação da Constituição. De outra parte somente tem direito ao reconhecimento [...] o remanescente que tinha e demonstrava, à época da promulgação do texto constitucional, real intenção de dono. VI – Da configuração inconstitucional das terras em que se localizavam os quilombos A caracterização das terras a serem reconhecidas aos remanescentes das comunidades quilombolas também enfrenta problemas ante a sua excessiva amplitude e sujeição aos indicativos fornecidos pelos respectivos interessados [...] Parece evidente que as áreas a que se refere a Constituição consolidam-se naquelas que, conforme estudos históricos antropológicos, constatou-se a localização efetiva de um quilombo. Desse modo, descabe, ademais, sujeitar a delimitação da área aos critérios indicados pelos remanescentes (interessados) das comunidades dos quilombos [...] Sujeitar a demarcação das terras aos indicativos dos interessados não constitui procedimento idôneo, moral e legítimo de definição. (BRASIL, 2013, grifo nosso).

Inicialmente, cabe salientar que ambos os itens atacam os critérios de autoatribuição previstos no decreto questionado. O primeiro item ataca o critério de autoatribuição enquanto operante no autorreconhecimento do indivíduo como quilombola. Já no segundo item, a autoatribuição é atacada enquanto operante sobre a comunidade, quando da participação na demarcação das terras que por direito são terras de quilombo. Nesse sentido, em ambos os itens é perceptível a preponderância das lógicas da classificação social e da escala dominante. A lógica da classificação social é percebida quando se ataca, principalmente, o critério de atuoatribuição aplicado à identificação dos remanescentes que tem direito à titulação dos quilombos, bem como à comunidade quando da participação na demarcação do território. Nesse caso, o discurso tenta demonstrar a impossibilidade do indivíduo e da comunidade de se autodeclararem quilombolas. Como a autoatribuição pelo indivíduo, no início do procedimento de titulação das terras, significa reconhecimento e acolhimento da Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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diversidade cultural e respeito aos direitos dos quilombolas, essa lógica se insurge como força extremamente eficiente para manter na invisibilidade os quilombolas. Do mesmo modo ocorre quando da aplicação da autoatribuição para o autorreconhecimento e, consequentemente, a demarcação de uma comunidade quilombola. O quilombola então, porque é naturalmente inferior, não pode exercer um direito de se autodeclarar porque é uma “afronta ao texto constitucional”. Quem diz que é e quem não é quilombola é a Constituição, segundo o texto da mencionada ação. Na verdade, o que está em xeque é a possibilidade, por meio de autorreconhecimento, de emancipação social dos quilombolas e a consequente saída destes de uma posição subalterna consolidada. Exsurge a argumentação da referida ação em consonância com outros argumentos que ajudam a manter os quilombolas em situação de invisibilidade que são os argumentos de igualdade preconizada na Constituição de 1988. Ocorre que essa igualdade é formal e se for levada ao extremo consolidará a subalternidade hierárquica dos quilombolas no Brasil que é retroalimentada há tempo, uma vez que nos anos que antecederam a promulgação da Constituição de 1988, e até mesmo depois de sua promulgação, pouco se fez para que se oportunizasse a inserção efetiva do negro e do quilombola na sociedade, sendo ao contrário mantidos em condição inferior às classes dominantes. O decreto vem exatamente minar esse entendimento formalista, sustentado pela razão metonímica, quando prevê critérios de autoatribuição para a posterior concessão dos direitos dos quilombolas, pois somente assim será possível a emergência social desses negros. É pela via do reconhecimento que se poderá aproximar de uma efetivação da igualdade material no ordenamento jurídico brasileiro que respeite, inclusive, a ideia de multiculturalismo. Por entender que a titulação seria somente para os remanescentes – em sentido estrito – os argumentos da ADI mostram que os descendentes de quilombolas estão, de certa forma, em pares de igualdades com o restante da sociedade brasileira e por isso esses argumentos são capazes de demonstrar a incompreensão por parte de seus idealizadores de que há uma situação material de desigualdade que gerou a invisibilidade e a subalternidade hierárquica dos quilombolas até os dias de hoje. Há, ainda, várias afirmações que decorrem dessa lógica, inclusive, aquela que propaga que o negro é inferior porque é naturalmente inferior. Por muitas vezes já ouvi de alguns colegas que as comunidades formadas por europeus são mais desenvolvidas porque estes são mais inteligentes e mais trabalhadores, e que os negros são menos desenvolvidos porque são mais preguiçosos e não se preocupam com nada. É fácil perceber que o discurso por si só é todo influenciado pela forma de pensar ocidental e, consequentemente, despreza qualquer outra forma de ver o mundo como é o caso dos quilombolas que tem percepções de mundo e de vida diferentes dos demais grupos formadores da sociedade brasileira. Pensamentos como os transcritos no parágrafo anterior servem para mostrar que essa lógica está impregnada no pensamento das pessoas e, portanto, no pensamento dos idealizadores da ação em comento. Mas o que se conclui, é que essa lógica naturaliza mesmo as diferenças sociais existentes na sociedade brasileira. Tenta colocar em pares de igualdade com a sociedade, 106

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dominada pelo pensamento ocidental, comunidades quilombolas altamente inferiorizadas e subalternizadas em todos os aspectos pela influência da razão metonímica. Essa invisibilidade dos quilombolas produzida está naturalizada pela lógica da classificação social na sociedade brasileira e, por conseguinte, no conteúdo da ADI n. 3239 de 2003 e, assim, tem força para recolocar os quilombolas em situação de invisibilidade. Quanto a lógica da escala dominante esta se faz perceber, nos mesmos itens,quando se vê a ênfase dada a letra constitucional para qualificar quem é e quem não é quilombola. Segundo os argumentos presentes na mencionada ação, “a rara característica de quilombola” é determinada pela Constituição de 1988, apenas. Nesse sentido, a escala dominante se manifesta através da imposição e expansão da realidade tida como universal e global em detrimento de realidades locais, nesse caso a dos quilombolas. Dessa forma, a impossibilidade de reconhecimento aos titulares dos direitos quilombolas, enquanto indivíduos e comunidades, que transparece nos argumentos da ADI n. 3.239 de 2003, também encontra supedâneo na lógica da escala dominante e, dessa forma, são os quilombolas considerados realidades locais não merecedoras de credibilidade e, portanto, produzidas como não existente. O texto do Decreto n. 4.887 de 2003 é no sentido contrário dessa lógica, uma vez que ao concretizar os direitos de titulação dos quilombos reconhece a possibilidade da convivência das diversas realidades. Deixa transparecer a possibilidade da coexistência de partes e rompe com a ideia da submissão de realidades produzidas como locais à realidade hegemônica universal ou global. Diante do exposto, chegamos ao final dessa breve análise e a esse ponto, é perceptível que essas cinco lógicas identificadas pontualmente nos principais argumentos de inconstitucionalidade da ADI n. 3.239 de 2003 se entrelaçam e podem operar simultaneamente sobre todo o texto da ação. Isso é assim porque todas elas decorrem da razão metonímica que, se comparando às cinco lógicas estudadas, é a macro forma da monocultura do raciocínio que produz aquilo que existe como não existente. Pensando nisso é que se fez essa verificação para descobrir como as cinco lógicas operam sobre o texto da ação direta em comento. Mas o que seria então a nova situação de invisibilidade social dos quilombolas a que teria força de levar a ADI n. 3.239 de 2003? Ao se ler essa pergunta, em primeiro momento, se poderia pensar que os quilombolas alçaram a emancipação social e, portanto, a visibilidade social. Por isso é preciso explicar o que está por de trás dessa pergunta, uma vez que por essas poucas palavras, certamente, não é possível clarificar o que se quis dizer. Por quê? Oportuno, então, deixar claro que entendemos que os quilombolas ainda não emergiram na sociedade brasileira, ou seja, não alcançaram a visibilidade social plena que deveria há muito tempo ter sido concretizada pela emancipação social destes,através da aplicação e efetivação de seus direitos estatuídos na Constituição de 1988. Para esclarecer o problema proposto neste estudo, que trata dos riscos de nova invisibilidade – repita-se, o que poderia levar ao entendimento equivocado de que os quilombolas estão em plena visibilidade social – buscamos, então, a compreensão de que: Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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Primeiro, os quilombolas alçaram, depois de muito lutarem, a visibilidade jurídica, embasada nos dispositivos que preveem os seus direitos, tanto na Constituição de 1988, tanto no Decreto n. 4.887 de 2003, conforme já foi estudado em tópicos anteriores. Segundo, os direitos dos quilombolas previstos constitucionalmente, ao serem contemplados no decreto em comento, fizeram com o que um processo de visibilidade substancial ascendesse, revelando a estes a realidade da emancipação, atingindo um grau, talvez, nunca contemplado antes. Isso porque várias comunidades já foram reconhecidas.1 Terceiro, o ajuizamento da ADI n. 3.239 de 2003, assim, traz riscos de “nova invisibilização” dos quilombolas no caso de ser acolhida em sua totalidade pela Suprema Corte. Quarto, o ajuizamento da ADI n. 3.239 de 2003, então, traz riscos de “nova invisibilização” dos quilombolas mesmo no caso de ser acolhida parcialmente pela Suprema Corte. Diante do exposto, podemos fazer algumas reflexões. a) Considerando a visibilidade jurídica dos quilombolas no caso de a ação direta ser julgada procedente em sua totalidade isso seria suficientemente capaz de recolocar os quilombolas em nova situação de invisibilidade jurídica. Isso porque, possivelmente, o legislador, que teria então de cumprir o mandamento constitucional de efetivação de direitos dos quilombolas, como já tem demonstrado, demoraria muito para colocar em prática esses direitos. E se eventualmente legislasse sobre o assunto os interesses da elite dominante certamente se fariam presentes nessas normas, fazendo com que o conteúdo constitucional fosse esvaziado. Possivelmente, os argumentos trazidos na ADI n. 3239 de 2003 seriam utilizados na elaboração dessas normas, porque seriam chancelados pela Suprema Corte. Fatalmente, estaríamos diante de enorme retrocesso jurídico, uma vez que a hegemonia da razão metonímica seria manifestada, mais uma vez, como energia embargadora da emergência social. Além disso, exsurgiria com mais força, nos domínios da ciência jurídica consolidando uma única forma de se interpretar a ciência do direito, no que toca às questões multiculturais o que seria de grande prejuízo para o alargamento da compreensão do direito. b) Ao se considerar o processo de visibilidade substancial em ascensão, conforme proposto anteriormente, e no caso de a referida ação direta reputar-se acolhida totalmente pelo Supremo Tribunal Federal, é evidente que esse processo será obstado. Certamente, é nessa dimensão substancial que os efeitos de eventual acolhida se faria sentir com mais intensidade, uma vez que desde o período escravocrata esses negros lutam por reconhecimento de direitos e perto de vê-los acontecer pelas vias jurídicas tem de experimentar, novamente, o amargor da rejeição social. Essa visibilidade substancial mesmo que em baixo grau, que por si só é mais lenta, estaria fadada ao não acontecimento. Seriam eles então “integrados” à sociedade brasileira global? Não é tranquilo pensar o que significaria a derrocada do mencionado decreto na Suprema Corte. Os

Segundo informações disponíveis no sítio eletrônico da Fundação Palmares existem atualmente, no Brasil, mais de 1.500 Comunidades Quilombolas certificadas. 1

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quilombolas, é possível conjecturar, continuariam à margem da sociedade em situação de “nova invisibilidade” e esta aconteceria mais uma vez legitimada pelo Estado e embasada na razão metonímica. c) A acolhida mesmo que parcial da referida ação direta da mesma forma como foi exposto acima, significaria retrocessos jurídicos capazes de produzir nova invisibilidade jurídica e também invisibilidade substancial. Qualquer dos itens, se declarados inconstitucionais, seriam capazes de provocar prejuízos e embargos na forma alargada de se produzir a ciência do direito, bem como no processo de visibilidade substancial dos quilombolas, conforme explicado acima. Em outras palavras, significaria a timidez e o medo de reforçar o rompimento com a monocultura do raciocínio operado pela razão metonímica o que serviria para reforça-la como hegemônica e assim consolidá-la ainda mais. É preciso enfatizar que talvez, se é que é possível medir, o grau de nova invisibilidade seria menor na dimensão jurídica, porque na dimensão substancial considerando que não há visibilidade efetiva, qualquer rejeição pela Suprema Corte provocaria agravamento significativo na situação dos quilombolas. Chega-se ao final desse estudo e o que se percebe é que o procedimento da sociologia das ausências de Santos (2010), que permitiu trazer à tona as cinco lógicas de produção de não existência operadas pela razão metonímica, deixa claro que os argumentos veiculados estão impregnados do pensamento hegemônico decorrente dessa razão. Portanto, é possível concluir que a ADI n. 3.239 de 2003 realmente representa riscos de recolocar na invisibilidade social os quilombolas enquanto indivíduos e comunidades porque se for aceita pela Suprema Corte, permitirá a consolidação do entendimento hegemônico da ciência do direito sob a égide da razão metonímica. Se tal ocorrer, todo o esforço levado a efeito pelos quilombolas retrocederá a um patamar insignificante. Da mesma forma, todo o esforço de rompimento com a razão metonímica estaria frustrado, uma vez que as concepções de multiculturalismo, de propriedade comunal, e de autoatribuição restariam enfraquecidas em razão do fortalecimento poderoso dessa monocultura do raciocínio que eventual decisão significaria. 5 CONCLUSÃO Após o estudo realizado chega-se à conclusão de que a ADI n. 3239 de 2003 representa perigo às comunidades quilombolas pelo fato de veicular argumentos que, se aceitos pela Suprema Corte, seriam suficientemente capazes de provocar nova situação de invisibilidade social aos quilombolas. Concluiu-se que se a mencionada ação for acolhida totalmente os quilombolas, que conquistaram a visibilidade jurídica, voltarão à invisibilidade jurídica. Consequentemente, a visibilidade substancial em processo de ascensão, conforme fora estudada, seria obstada em um momento que é tão importante para essas comunidades haja vista estarem presenciando mudanças relacionadas à emancipação social.

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Da mesma forma, quanto à possibilidade de acolhimento parcial da ação, concluiu-se que também seria suficientemente capaz de provocar invisibilidade jurídica e substancial, chamando-se atenção para as nuanças desse possível acolhimento. É que se poderia pensar numa nova invisibilidade parcial tanto jurídica,quanto substancial. No caso da substancial seria muito grave, mesmo um acolhimento parcial porque ainda está em processo de consolidação. O procedimento da sociologia das ausências, ao fornecer elementos teóricos para a identificação de que sobre os argumentos da ADI n. 3239 de 2003 operam as cinco lógicas de produção de não existência operadas pela razão metonímica, foi imprescindível para que se chegasse à conclusão desses riscos de nova invisibilidade quilombola. Por fim, cabe ressaltar que o paradoxo jurídico vivido pelos quilombolas é perceptível na situação exposta, uma vez que ao mesmo tempo em que, com muita luta, conquistaram direitos e alcançaram o status de visíveis juridicamente, há a ADI quilombola, que ameaça recolocá-los em situação de invisibilidade social. Da mesma forma ocorre com a visibilidade substancial, porque ao mesmo tempo em que o decreto questionado contém instrumentos emancipadores e torna possível a efetivação dos direitos quilombolas, a mencionada ação oferece riscos de obstar esse processo de visibilidade social, ameaçando, igualmente, fazê-los voltar à situação de invisibilidade material da qual sequer saíram efetivamente. REFERÊNCIAS BRAGA, Elizabeth dos Santos. A constituição social da memória: uma perspectiva histórico-cultural. Ijuí: UNIJUÍ, 2000. BRASIL. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2012. BRASIL. Decreto n. 3.912 de 10 de setembro de 2001. Regulamenta as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos e para o reconhecimento, a delimitação, a demarcação, a titulação e o registro imobiliário das terras por eles ocupadas. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 11 set. 2001. Seção 1, p. 6. Disponível em: . Acesso em: 06 dez. 2013. BRASIL. Decreto n. 4.887 de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 2003. Seção 1, p. 4-5. Disponível em: . Acesso em: 05 dez. 2013.

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DIREITOS SOCIAIS E A PROTEÇÃO DOS INDÍGENAS: ANÁLISE SOB A ÓTICA DA TEORIA CRÍTICA Eduardo Biacchi Gomes* Priscila Andreoti ferreira**

Resumo O presente artigo tem como objetivo analisar a internacionalização dos direitos humanos sob seu viés tradicional universalista, e contextualizar a proteção dos indígenas a partir de uma conotação critica do universalismo dos direitos humanos. A proteção internacional dos indígenas e sua vulnerabilidade no contexto global, é um tema muito debatido no plano dos direitos humanos por se tratar de uma cultura muito particular, e isso acaba gerando frutos negativos de discriminação. A aplicação dos direitos humanos deve considerar todas as diferenças no que tange a identidade dos indígenas. No Brasil o tema vem sendo tratado com muito cuidado tanto na seara da discriminação, quanto na luta por melhores condições de proteção para essas pessoas em respeito à sua tradição cultural, otimizando, assim, a efetivação dos direitos fundamentais e sociais através da convenção 169 da OIT. Palavras-chave: Direitos Sociais e Internacionalização dos Direitos Humanos. Teoria crítica dos direitos humanos. Discriminação racial. Vulnerabilidade indígena. Convenção 169 da OIT. 1 INTRODUÇÃO A proteção internacional dos direitos humanos deve estar presente em todas as sociedades e povos a fim de garantir direitos essenciais à vida, condições mínimas para a manutenção de sua existência, sendo primordial que sua aplicação seja efetiva independente de raça, cultura, status, situação econômica ou qualquer outra distinção capaz de criar discriminação e desigualdade entre os povos. À todas as pessoas os direitos fundamentais devem ser garantidos independentemente do lugar que estejam inseridas. Existem inúmeras situações que levam um povo ou um país a necessitar da segurança que os direitos humanos elenca, diante disso, a órbita dessa pesquisa mostra a necessidade em promover todos esses direitos às minorias vulneráveis, sendo os indígenas o foco dessa pesquisa. Neste ponto, torna-se importante mencionar a existência de uma diversidade cultural na sociedade ocidental em que, muitas vezes, determinada sociedade que possui uma cultura distinta da maioria é vítima de discriminações dentro do mundo globalizado.

______________ * Pós-Doutor em estudos culturais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná; Professor de Direito Internacional e Direito da Integração das Faculdades Integradas do Brasil; Professor Titular de Direito Internacional Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Professor Adjunto de Direito Internacional da Faculdade Internacional de Curitiba; Professor vinculado ao Grupo de Pesquisa Pátrias (Faculdades Integradas do Brasil); Rua Konrad Adenauer, 442. Bairro Tarumã, 82820-540, Curitiba, Paraná; [email protected] ** Mestranda em Direito pela Faculdades Integradas do Brasil em Direitos Fundamentais e Democracia. Especialista em Teoría Crítica de los Derechos Humanos pela Universidad Pablo de Olavide, UPO, Sevilla, Espanha; Advogada; pry_ [email protected]

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Assim torna-se importante a existência de mecanismos jurídicos para proteger o direito das minorias, como é o caso dos indígenas. O presente artigo analisa os direitos humanos no plano internacional, contextualizando-o entre a teoria tradicional dos direitos humanos, o universalismo, e seu ponto fraco no que tange a proteção de povos indígenas, tendo em vista que as necessidades fundamentais desses povos não podem ser generalizadas. Em defesa desse argumento um ponto a ser desenvolvido é o da teoria crítica dos Direitos humanos, que vai na contramão da teoria tradicional ao defender uma desconstrução e inovação dos direitos humanos num contexto de diversidade cultural globalizada. Pensando sob um aspecto discriminatório o Brasil ratificou as Convenções 107 e 169 da Organização Internacional do Trabalho, de forma a resguardar os direitos culturais e sociais dos indígenas. Sendo uma a convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, e a outra a convenção 169 da OIT que trata propriamente do tema dos Povos Indígenas e Tribais, nesse documento os direitos humanos é resguardado a partir das necessidades mais particulares dos indígenas, sendo prova inclusive, de que os direitos humanos possui o dever de proteger as pessoas de maneira contextualizada, pois nem sempre o direito por uma vida digna para um é o igual para outro. 2 DIREITOS HUMANOS NO PLANO INTERNACIONAL: VALIDADE DO UNIVERSALISMO CULTURAL? Muitos dos princípios basilares dos direitos humanos se fizeram na égide do “jusnaturalismo” (FERRAZ JUNIOR, 2004, p. 172), uma corrente tradicional do pensamento jurídico que acreditava na existência de um direito natural reconhecido pela “razão do homem”. [...] entende-se por jusnaturalismo toda postura que afirme a existência, para além e acima do direito positivo, de uma ordem preceptiva de caráter objetivo, imutável e derivada da natureza, a qual não podem contrariar os mandamentos dos homens e na qual encontra esse direito humano sua fonte e fundamento. (FERNÁNDEZ-GALIANO, 2001, p. 419-420, tradução livre).

No jusnaturalismo os direitos resguardados ao homem eram considerados “naturais”, bastando-se tão somente nascer para adquiri-los, pode-se afirmar que esta corrente defende a ideia do universalismo dos direitos humanos, como valores únicos e anteriores a existência do homem e que, portanto, devem ser aplicados para toda a sociedade. Discussões dessa vertente foram elencadas na “Escola do Direito Natural e das Gentes”, lugar onde se desenvolveram inúmeras teses construídas para aperfeiçoar os direitos do homem. Como filósofos e juristas da época podem ser citados Bartolomé de las Casas, Francisco de Vitória e Hugo Grócio, que inclusive contribuíram para a construção do Direito Internacional Público, ao examinar o conceito de guerra justa e guerra injusta. A incorporação dos “Direitos do Homem” só foi ter início no “liberalismo”, período em que havia grande interesse de regular e garantir os direitos individuais em conjunto com a liberdade. Essa doutrina nasceu no século XVIII, e foi o centro das primeiras dis114

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cussões políticas sob um viés essencial e fundamental, especialmente com a eclosão da Revolução norte-americana, 1776 e a francesa no ano de 1789. Lafer em sua obra: A Reconstrução dos Direitos Humanos, salientou que: “Na história do pensamento ocidental, os Lineamentos Fundamentais da Filosofia do Direito, de Hegel, que datam de 1821, marcam não apenas o início da maior difusão da nova denominação, mas também uma importante etapa da dissolução do paradigma do direito natural.” (LAFER, 1999, p. 41). No entanto, houve um processo crítico no que tange a nomenclatura “direitos do homem”, o qual trazia uma roupagem preconceituosa por parecer não apreciar direitos às mulheres, nesse sentido Ferreira Filho salientou que: “O feminismo conseguiu o repúdio da mesma, acusando-a de machista.” (FERREIRA FILHO, 2004, p. 14), visto que partia da premissa de um direito restrito que não abrangia todas as pessoas independentes do sexo como entendimento fisiológico. Perante essa crise, ocorreu uma inevitável transformação, que além de atingir a expressão “Direitos do Homem”, afetou também o conteúdo desses direitos, mudança que ocorreu de maneira gradual e lenta, passando a ser chamada de “Direitos Fundamentais”, abrangendo, portanto, os direitos à toda pessoa humana sem caracterizar um termo possivelmente discriminatório. Os princípios fundamentais passou a compor a constitucionalização de várias sociedades tomando uma roupagem diferente em cada lugar, nesse sentido Alexy demonstrou em sua obra “Teoria de los Derechos Fundamentales” que: A distinção entre regras e princípios claramente demonstram colisões de regras. É comum as colisões de princípios e regras e conflitos selecionarem duas normas aplicadas de forma independente, levando a resultados inconsistentes, ou seja, duas decisões judiciais devem ser contraditórias. (ALEXY, 2002, p. 87).1

A implementação dos direitos fundamentais nas constituições dependiam de aceitação política para possuírem vínculo e serem positivadas no ordenamento jurídico em questão, não abrangendo de fato esses direitos em todas as constituições com homogeneidade, o que consequentemente desconstruía o almejo da universalização dos direitos humanos, nesse sentido salientou Ferreira Filho que: O pacto social, para estabelecer a vida em sociedade de seres humanos naturalmente livres e dotados de direitos, há de definir limites que os pactuantes consentem em aceitar para esses direitos. A vida em sociedade exige o sacrifício que é a limitação do exercício dos direitos naturais. (FERREIRA FILHO, 2004, p. 12).

A limitação do direito natural existe porque nem todos possuem oportunidade de exercer esse direito, pois segundo o que defende a política do liberalismo é preciso ter

“La distincíon entre reglas y princípios se muestra clarísimante em las colisiones de princípios y em los conflictos de reglas. Común a las colisiones de princípios y a los conflictos de reglas e selecho de que dos normas, aplicadas independientemente, conducen a resultados incompatibles, es decir, a dos juicios de deber ser jurídico contraditórios.” 1

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primeiro a aceitação efetiva de cada constituição, para então, exercitar o que o direito natural prevê. Isso ocorre porque cada constituição evolui de maneira distinta, contemplando transformações irregulares em cada sociedade. Diante disso, gradualmente o homem se fez detentor de direitos, podendo ser considerado como destaque deles “os direitos fundamentais”, que se positivou na sociedade no transcorrer de suas etapas históricas. Grandes filósofos deram início às discussões referentes à doutrina dos direitos fundamentais, e aos poucos ela foi se expandindo e se renovando conforme as necessidades civis, políticas, culturais, econômicas, sociais entre outras tantas, a fim de assegurar sua presença entre todos os povos e tempos. De acordo com as necessidades políticas e sociais, os governos incorporaram em suas constituições muitas passagens de direitos fundamentais consideradas importantes ao véu dos direitos humanos. Mas ainda assim, haveria uma diferença entre os direitos humanos e os direitos fundamentais, que segundo Melina Girardi Fachin, “[...] os direitos humanos e fundamentais são categorias que apenas fazem sentido se determinadas histórica e temporalmente, não é logicamente possível atribuir-lhes um fundamento absoluto e puro.” (FACHIN, 2009, p. 24). Tal passagem revela que esses direitos são históricos, não há como pensar em direitos fundamentais sem fazer uma análise dos direitos humanos, não é algo absoluto, um incorpora o outro, de acordo com Flores (1995, p. 27): “Descobrir o processo pelo qual nós podemos captar nossa própria essência, é dizer, descobrir o processo a partir do qual nós, seres humanos, damos sentido a nossas exigências, necessidades e valoração mais genéricas.”2 Tais direitos foram sendo positivados em determinadas constituições, mas havia uma ambição no sentido de propagá-los em todas as sociedades independente de sua aceitação política. Criou-se, portanto, a idéia de que tais direitos fossem de todos os indivíduos, almejando uma dissipação internacional para superar a ideia de direitos fundamentais e passar a ser chamado de “direitos humanos”, que segundo Sarlet, são diferentes no que tange o seu campo de abrangência: [...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado estado, ao passo que a expressão direitos humanos guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoca caráter supranacional. (SARLET, 2005, p. 35-36).

“[...] descubrir el proceso a partir del cuál nosotros podemos captar La esencia de los mismos; es decir, descubrir el proceso a partir del cuállos seres humanos dotamos de sentido a nuestras exigências, necesidades y valoraciones más genéricas.” (Tradução livre). 2

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Dessa sorte, os Direitos humanos se tornou um foco importantíssimo no plano internacional, sendo o destaque a criação de novas possibilidades de defesa da dignidade da pessoa humana, elencando diversas declarações no sentido de protegê-la. Ora, uma das mais famosas declarações fora a de 1948 “A Declaração Universal dos Direitos Humanos”, sendo esta segundo Ferreira Filho (2004, p. 19), “Por um século e meio o modelo de excelência das declarações”, e isso não somente por ser a mais abrangente de todas, mas por ser referência na preocupação com a liberdade e os direitos do Homem. Pode-se verificar, portanto, que a noção de universalidade dos Direitos Humanos está longe de ser aceita dentro de nossa sociedade, sendo necessário, portanto, a busca de um consenso quanto a construção dos respectivos direitos. 2.1 CONSENSO SOBRE A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS Diante do desafio pela universalização dos direitos humanos, o grande objetivo indubitavelmente estaria em alcançar sua efetiva proteção, nesse sentido Piovesan (2006, p. 123) salienta que: A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteger os direitos humanos.

A atenção voltada na esfera internacional se deu pelo fato da proteção dos direitos Humanos ser o princípio da base constitucional de qualquer sociedade democrática de direito, questões relacionadas aos direitos fundamentais do homem se integravam cada dia mais no sistema internacional de direitos humanos, sendo considerados direitos primordiais para a sustentação da existência digna de cada pessoa. No decorrer dos séculos a necessidade dos direitos humanos se fez cada dia mais significativa nas sociedades contemporâneas, notando que no seu processo histórico evolutivo e interesses foram se modificando conforme as características específicas de cada povo. Em face disso, podemos dizer que esses direitos não eram considerados absolutos, tendo em vista que haviam grandes diferenças culturais, religiosas, étnicas como também econômicas. Nesse sentido, Bobbio (2004, p. 20), em sua obra “A Era dos Direitos”, salienta que: [...] entre os direitos humanos, como já se observou várias vezes, há direitos com estatutos muito diversos entre si. Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há a exigência de não serem limitados nem diante de casos excepcionais, nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano.

Apesar dos direitos humanos viabilizar a proteção restritamente às pessoas, entre os estatutos das sociedades e suas diretrizes, por serem nitidamente diversos, não haveria a possibilidade de sustentar um direito absoluto, no entanto, há que se defender a prevalência de um direito universal, que independente das diversas necessidades individuais Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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que cada sistema adota, não deixam de ser direitos que se valem à qualquer pessoa, a fim de assegurá-las uma vida digna, podendo evolver qualquer sistema independente de suas especificidades. Em torno dessa perspectiva o que rege os direitos humanos é o consenso sobre a sua característica universal (BOBBIO, 2004, p. 22), esta que o próprio nome já promove por ser direitos de generalidade e totalidade, que valem para qualquer “ser humano” onde quer que ele esteja inserido. Partindo de tal premissa, a universalidade se formou através de um processo histórico evolucionista desenvolvido em 3 (três) fases. Esse processo constituiu a evolução dos direitos humanos de forma aprofundada, cujo marco inicial da universalidade foi delineado após a 2º guerra mundial, momento histórico marcado pela prática de atrocidades cometidas à pessoa humana, sendo incomensuráveis os modos de violações promovidas em face dos princípios universais de proteção. Diante desse momento considerado violento, os governos passaram a se preocupar mais pontualmente com a proteção dos direitos à dignidade da pessoa humana, tentando superar a complexidade da questão que nas palavras de Peres Luno: [...] os direitos humanos aparecem como um conjunto de faculdades e instituições em cada momento histórico a fim de concretizar as exigências da liberdade, dignidade e igualdade humana, as quais devem ser juridicamente reconhecidas e positivadas no plano internacional e nacional.” (PÉREZ-LUÑO, 2002, p. 48).3

Antes da Segunda Guerra Mundial, já havia existido a primeira fase da internacionalização dos direitos humanos, qual se manifestou na luta contra a escravidão e a regulação dos direitos do trabalhador. A pretensão de ter um caráter universal não afasta desta visão a sua natureza de classe social. Pelo contrário, a universalidade desses direitos surge quando a burguesia consegue instituir como conquista sua determinados anseias que podem ser, aí sim, universalizados na batalha contra o absolutismo. (LEAL, 2000, p. 40).

Diante dessa batalha houve reformas nas leis trabalhistas, levando em conta a garantia da dignidade da pessoa humana como direitos fundamentais, os quais cada dia mais se confirmaram como direitos universais. As grandes etapas da humanidade foram compostas por muitos momentos marcantes que almejavam transformações, as quais só ocorreram por conta dos abusos à dignidade humana delineados na revolução industrial. A passagem dos direitos humanos à categoria de direitos universais e positivos pode ser identificada com a Declaração Universal de 1948 quando, entre, seus princípios irradiam-se para rodos os homens e principializa-se a construção de um arcabouço jurídico capaz de viabilizar o asseguramento dos mesmos diante de sua violação, no sentido de que, neste caso, Tenha-se a possibilidade não apenas de resistir, mas de buscar a sua proteção jurídica. (LEAL, 2000, p. 39).

”[...] los derechos humanos aparecen como um conjunto de faculdades e instituiciones que, em cada momento histórico, concretan lãs exigências de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nível nacional e internacional.” 3

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A primeira preocupação entre os governos estava em implementar essa universalidade de direitos para depois se estabelecer uma dinâmica especial de proteção. Nesse sentido, Comparato (2005, p. 40) defende que: “A eclosão da consciência histórica dos direitos humanos só se deu após um longo trabalho preparatório, centrado em torno da limitação do poder político.” Tornando um grande desafio as instituições governamentais propagarem a proteção dos direitos universais de modo homogêneo. Todavia, para eficaz proteção dos direitos indígenas no plano internacional, a universalização dos direitos humanos não é a melhor opção, tendo em vista que estamos falando do direito à dignidade de um povo que vive em uma cultura totalmente peculiar, não podendo simplesmente ter seu direito generalizado. Em defesa desse argumento, pode-se utilizar como alicerce dos povos indígenas a teoria crítica dos direitos humanos, de forma a tutelar a proteção dos direitos sociais dos referidos grupos minoritários. 3 UMA NOVA CONCEPÇÃO DE DIRETOS HUMANOS: TEORIA CRÍTICA E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS O desenvolvimento teórico até então apresentado faz ressaltar o que se convencionou chamar teoria tradicional dos Direitos Humanos, a qual se resume, em linhas gerais, na ideia de que eles devem ser aplicados universalmente para garantir a toda pessoa direitos essenciais que chamamos de “fundamentais”, sem levar em consideração os perigos da generalização. Surge então uma teoria crítica dos Direitos humanos, visando desconstruir o discurso tradicional e despertar uma atenção crítica sobre a matéria ao defender a necessidade de se tomar cuidado com a ideia de universalismo, vez que existem diversos sistemas desses direitos. A teoria universalista pode ser perigosa ao generalizar a aplicação dos direitos humanos, principalmente quando afirma que todos têm direito a essa proteção independente da cultura ou peculiaridades do estilo de vida que levam, é justamente nesse ponto que reside sua falha, pois acaba desconsiderando as particularidades de cada povo. De vício semelhante padece o jusnaturalismo e a tese de que basta nascer para se adquirir direitos, seja qual for a justificativa dada para isso, como a “razão do homem”. Mesmo o conceito positivista e pós-positivista são teorias complicadas, pois os direitos humanos não são sempre os mesmos para todos os povos e segundo a teoria crítica, não estão apenas como meras normas, mas partem ainda de processos institucionais e sociais. A compreensão dos direitos humanos exige que se reconheça neles uma complexidade de vários níveis, quais sejam: cultural (no sentido de serem os atuais direitos humanos uma expressão do fenômeno cultural ocidental), empírica (dependem da participação de cada pessoa em sua construção), jurídicas (não são criados pelo direito positivo), científica (é insustentável a neutralidade axiológica em sua construção), filosófica (há interferência filosófica no estudo dos direitos humanos), política (que há influências sociais na construção das instituições) e econômica (que o neoliberalismo age inviabilizando a

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prática desses direitos como consequência de seus mecanismos de operação), bem como um novo pensar. Pensar es “pensar de otro modo”, problematizar la realidad, identificar lo que en ella hay de problemático. Esta forma de pensamiento requiere, por tanto, fundar nuevas formas de acercarse tanto teórica como prácticamente al mundo. (HERRERA FLORES, 2005, p. 50).

São fatores necessários para que uma teoria crítica dos direitos humanos prospere: um ponto de vista realista, que analise objetivamente o fenômeno dos direitos humanos, sem deixar de ser otimista, apresentando soluções para os problemas que se verifiquem (HERRERA FLORES, 2005, p. 187);44 e ainda o uso da linguagem como instrumento de conscientização que desperta a todos da necessidade de mudança no mundo: La teoría crítica se piensa como momento teórico de la praxis ordenada a la sociedad buena, justa y racional. Por esta razón, se sabe guiada por el interés emancipador y desde el futuro anticipado de la sociedad libre sin injusticia, juzga la situación presente como contradictoria y se empeña en transformarla. La teoría no es ya contemplación ni investigación científica, sino forma de vida. (MARDONES, 1985, p. 32).

Para teoria crítica, o direito fundamental se baseia em três elementos indispensáveis para um mínimo existencial ético, sendo o primeiro baseado no direito à integridade física, que haja proteção material nesse sentido, o outro trata-se da satisfação das necessidades, podendo ser qualquer uma, no caso dos indígenas satisfazer a necessidade cultural dos seus rituais passa ser essencial. O terceiro elemento é o direito de reconhecimento, seja de uma nacionalidade, de uma identidade própria, ou qualquer outra forma que uma sociedade se apresente. A teoria crítica possui o compromisso com uma perspectiva crítica, que posteriormente pode ou não através dela, surgir uma nova teoria, refletindo as teorias a partir da prática, pois quando materializadas no contexto concreto, é possível verificar sua verdadeira necessidade. É partindo dessa análise que se faz possível a sua transformação de maneira equilibrada e igualitária. Diante desse atual contexto histórico, é preciso viabilizar uma desconstrução da teoria tradicional, desestabilizá-la com o intuito de transformá-la, esse é justamente o ponto nodal, pois não se trata simplesmente de descartar a teoria tradicional, mas sim transformá-la. As lutas sociais ocorrem através de pequenos e grandes processos, portanto, não é preciso aceitar uma teoria como única e pura, até porque esses processos ocorrem em diversos contextos históricos sociais, culturais, políticos entre outros, sendo necessário inovar os direitos humanos de modo que esses possam alcançar de maneira justa todas as pessoas.

“Ser realistas e inmanentes no supone aceptar pasivamente “lo que hay”, sino actuar críticamente sobre la realidad. Asumiendo, por lo menos, tres compromiso: 1) desenterrar continua y permanentemente lo que queda olvidado/ ocultado; 2) establecer de un modo constante relaciones y vínculos que han sido negados; y 3) señalar recurrentemente cursos alternativos de acción social y de reflexión intelectual.” 4

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A idéia de transformação deve ser bem trabalhada com vistas ao viés crítico, pois não basta colocar os direitos humanos no contexto histórico e somente atualizá-lo conforme as necessidades condicionadas pelo momento, é importante destacar que apresentar esses direitos de modo “neutro” não é uma solução, é preciso concretizar materialmente elencando a possibilidade de eternizar as práticas dos direitos humanos. “Pensar um novo direito”, essa é a metodologia do uso alternativo do direito, que trata de colocar operadores dessa seara – juristas, magistrados entre outros – para aplicar a norma a serviço de um projeto social que vise a emancipação popular. É um desafio trabalhar com os direitos coletivos em uma sociedade que tem como paradigma os direitos individuais, mas a proposta esta em pensar e, portanto, alcançar uma construção social problematizando-a. Isso se faz através dos conceitos da teoría critica dos direitos humanos: visibilizar, desestabilizar e transformar num processo dialético de tese, antítese e síntese. Percebe-se que o alcance dos direitos humanos para com os indígenas se dá mais propriamente através da teoria critica dos direitos humanos do que pelo tradicional direito universal. Já que se trata de um povo que vive em condições muitas vezes muito diferentes da maioria, e por isso, não devem receber a proteção e direitos humanos através de um direito universal, mesmo porque esse alcance não é completo e totalmente aceito. Para tanto, o Brasil tem sido um país que acredita nos direitos humanos e na sua essência desde que aplicado de maneira igualitária e plena se estiver ao alcance de todas as pessoas e povos, observando peculiarmente suas reais necessidades, exemplo disso são as convenções ratificadas que veremos em seguida no próximo tópico. 3.1 A CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL Em 1965 foi adotada pela ONU (Organização das Nações Unidas) a Convenção Internacional Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. O combate ao racismo foi um tema muito debatido no âmbito internacional, vez que é determinante no que concerne a promoção de diferenças fisiológicas como também étnicas e culturais, existem várias formas de discriminação nesse aspecto, sendo que tais diferenças raciais são fontes de graves violações aos direitos humanos. No pensamento de Piovesan (2010, p. 42): Vale dizer, a discriminação significa toda distinção, exclusão, restrição ou preferência, que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o exercício, em igualdade de condições, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico, social, cultural, e civil ou em qualquer outro campo. Logo, a discriminação significa sempre desigualdade.

Desde sempre a sociedade é formada por inúmeras e variadas culturas, cada uma delas com suas diferenças, como no caso dos indígenas. Assim as diferenças encontradas são inúmeras, sendo que muitas vezes, a os valores culturais universais tendem a se sobrepor sobre valores culturais específicos.

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As pessoas não precisam mais sair de casa para entrar em contato com outros povos e culturas, e logo entram em choque com as diferenças sociais, raciais, entre outros fatores que podem elencar a discriminação nesse sentido Piovesan (2010, p. 53) denota que: Quanto aos direitos consagrados pela convenção, destacam-se o direito à igualdade perante a lei, sem qualquer distinção de raça, cor, origem, nacionalidade ou etnia; o direito ao tratamento equânime perante os Tribunais e perante todos os órgãos administradores da justiça; o direito a recursos e remédios judiciais quando da violação a direitos protegidos pela convenção; o direito à segurança e à proteção contra violência; o direito de votar; a proibição de propagandas e organizações racistas; o direito ao acesso a todo lugar ou serviço de natureza pública; proibida qualquer discriminação; além do exercício de outros direitos civis, políticos, sociais, econômico e culturais, que deve ser garantido sem qualquer discriminação.

A implementação de leis que resguardem essas garantias de um modo próprio depende da observância política de um Estado, é preciso combater o racismo no mundo, mas é preciso erradicá-lo primeiro internamente, pois as discriminações nascem dentro de determinadas culturas. Como consequência no Brasil foi aprovada a Lei n. 12.288/10 contra a Discriminação Racial, em seu artigo 1º há uma série de vedações em face da discriminação racial, e seus reflexos em diversos setores, assim seja: Art. 1o Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Parágrafo único. Para efeito deste Estatuto, considera-se: I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada. (BRASIL, 1989).

Ainda no Brasil, antes da aprovação da Lei n. 12.288/10, no ano de 1989, foi aprovada a Lei de n. 7.716, que versa sobre os crimes resultantes de preconceito de raça ou cor. O Brasil é grande representante no que concerne o combate ao racismo, isso pode ser explicado de uma forma muito particular, vez que nosso povo é composto por uma grande diversidade de raças, etnias e tribos, onde permeiam grandes diferenças étnicas, sociais, econômicas, culturais, fisiológicas, entre outras que se diferenciam de forma muito vulgar em nossa sociedade. Segundo Alves (1994, p. 55): Prevê, por outro lado a possibilidade de “discriminação positiva” (a chamada “ação afirmativa”): a adoção de certas medidas especiais de proteção ou incentivo a grupos ou indivíduos com vistas a promover sua ascensão na sociedade até um nível de equiparação com os demais.

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Se olharmos sobre um prisma antropológico, percebemos que há uma espécie de valoração da cultura indígena por se tratar de patrimônio cultural, todavia no geral essas sociedades se deparam com uma “lente preconceituosa”, vista dos olhos das pessoas que vivem em locais urbanizados. Por isso as discussões nessa seara são tão importantes, pois além de mostrar a necessidade de tolerância e igualdade entre todos os povos, demonstra também que de alguma forma somo todos diferentes com necessidades parecidas, mas nem sempre literalmente iguais. Para tanto, existe uma convenção pensada especialmente para os povos indígenas e tribais como veremos a seguir. 3.2 A CONVENÇÃO 169 DA OIT E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS A partir da convenção de Genebra nasceram diversos instrumentos de proteção dos direitos humanos, dentre eles a recomendação sobre populações indígenas e tribais, nascendo, portanto a Convenção 169 da OIT, que por sua vez entrou em vigor no Brasil no ano de 2004. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1989). A importância dessa Convenção para os povos indígenas é incalculável em vários aspectos de preservação étnica e cultural, segundo Marés “O valor dos bens culturais, assim, têm a magnitude da consciência dos povos a respeito de sua própria vida.” (SOUZA FILHO, 1997, p. 36-37). Tendo em vista, que todo o costume, cultura, crenças, valores, língua mãe, entre outros fatores, são de extrema importância para a manutenção de tribos e populações indígenas que estão espalhadas pelo mundo. A aplicação simples e direta da proteção dos direitos humanos, a toda política voltada pela não discriminação entre povos e raças, a promoção dos direitos fundamentais, a toda pessoa independente de cor, religião, e todos os outros elementos elencados em nossa Constituição Federal, infelizmente não alcançam de maneira uniforme à todos, por isso a teoria crítica se aproxima mais da realidade fechada dos povos indígenas. A vulnerabilidade dos indígenas é muito mais particular se comparada com as outras pessoas de modo geral. São muitas as peculiaridades a serem consideradas neste universo, e isso ocorre porque nem todos os indígenas são conhecidos, sabe-se que existem diversas tribos incomunicáveis e ate hoje inacessíveis. Sob essa conotação, considerando também as tribos conhecidas que se comunicam e revindicam seus direitos, há uma preocupação em protegê-las na sua vulnerabilidade mais peculiar, que em sua maioria não são reconhecidas pelo direito como fundamental a manutenção dos costumes indígenas. Sob essa ótica no Artigo 3o da convenção 169 da OIT ressalta que: [...] 1. Os povos indígenas e tribais deverão gozar plenamente dos direitos humanos e liberdades fundamentais, sem obstáculos nem discriminação. As disposições desta Convenção serão aplicadas sem discriminação aos homens e mulheres desses povos. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1989).

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Fato é que não se trata apenas dos indígenas em si, mas uma gama de microesferas tribais, onde cada uma contempla seus próprios costumes, cultura, língua entre outras diversidades. Preocupando-se com esses fatores é que a convenção 169 da OIT, se faz essencial na promoção da proteção e garantia dos direitos humanos e fundamentais ensejando ao governo um papel protagonista como se refere o Artigo 2o da convenção em que: 1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1989).

Quando o governo assume essa responsabilidade, é importante que haja uma comunicação e participação dos povos ou comunidade indígena, pois somente com essa intermediação é que se pode extrair informações suficientes para promover a proteção do que é fundamental para esses povos, a fim de tentar preservar ao máximo a integridade cultural e territorial dessa gente. Portanto, outro ponto importante do artigo 2o da convenção discorre que, 2. Essa ação deverá incluir medidas; a) que assegurem aos membros desses povos o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população; b) que promovam a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições; c) que ajudem os membros dos povos interessados a eliminar as diferenças sócio - econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1989).

A Convenção 169 da OIT é um marco no que tange a proteção e promoção das tradições indígenas, articulando ainda diversos dispositivos que contemplam o direito do trabalho sob um prisma de igualdade, responsabilidade social, e econômica. É preciso proteger os indígenas, elencar de fato o que defende esta Convenção, que reflete os direitos humanos, direito fundamentais, dignidade, e consequentemente a preservação dessa Cultura tão rica que é trazida pelos povos indígenas nas sociedades contemporâneas. MULTICULTURALISMO, ou cultura local, outros valores. Convenção 169 reconhece trabalho do indígena e a ligação com a terra que é histórico e o conceito difere de propriedade. Autonomia indígena e consultas. 4 CONCLUSÃO A proteção dos direitos humanos se mostra mais evoluída no plano internacional nos últimos tempos devido às necessidades em estabelecer um direito universal, todavia, muitos povos por serem culturalmente diferentes não são completamente contemplados por esse universalismo.

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Diante dessa problemática a teoria crítica dos direitos humanos, que defende a aplicação dos direitos humanos de maneira contextualizada e de acordo com a necessidade própria de muitos povos em diferentes lugares, é a mais próxima da realidade dos povos indígenas e tribais. A internacionalização dos direitos humanos obteve destaque na intenção de criar tratados, convenções e legislações para combater a discriminação das minorias vulneráveis, incluindo de maneira taxativa a sociedade indígena. Atualmente os governos elencam este assunto com maior pontualidade devido à pressão internacional que outros países promovem, considerando que a Organização das Nações Unidas faz uma abordagem intervencionista no papel de apresentar aos países propostas para melhorar a condição humana. A Convenção 169 da OIT é um exemplo de documento internacional, todavia, seu texto precisa ser colocado em prática, respeitando a Cultura indígena. Para isso é necessário mais políticas públicas que afirmem os povos indígenas e equilibre a sociedade de forma igualitária como meta para um futuro melhor. É obrigação do Estado garantir esses direitos e ampliá-los a ponto de possibilitar o alcance a toda e qualquer necessidade de identidade cultural, tornando todos iguais com os mesmos direitos sem distinção. Tais objetivos são possíveis por meio de novos dispositivos legais que estejam de acordo com as reais necessidades do momento, sabendo que o principal alicerce dos direitos dos indígenas nasce dos direitos humanos e toda sua transformação ao longo do tempo. Pois é preciso pensar no novo, e nas necessidades dos povos sob um olhar próximo da sua realidade, pensando sempre de modo solidário, esta considerada um laço que liga as sociedades do mundo todo, pois todos somos iguais, e nada mais justo que lutarmos por direitos inerentes ao alcance de todos sem distinção de raça, cor, sexo, etnia, ou qualquer outra característica que nos diferencia uns dos outros. REFERÊNCIAS ALVES. José Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos Como Tema Global. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1994. ANAYA, James. Los pueblos indígenas en el derecho internacional. Madri: Trotta, 2005. ARAÚJO, Luis Ivani Amorim. Curso de Direito Internacional Público. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004. BICUDO, Hélio. Direitos Humanos e sua proteção. São Paulo: FTD, 1997. TRINDADE, Antônio Augusto Cançado (Ed.). A Incorporação das Normas Internacionais de Protecção dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro. Brasília, DF, 1996.  CARVALHO, Amilton Bueno de. Anuário Ibero-Americano de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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A DIGNIDADE HUMANA COMO CRITÉRIO PARA O CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: ANÁLISE CRÍTICA DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO1 Mônia Clarissa Hennig Leal* Rogério Gesta Leal**

1 INTRODUÇÃO O tema do controle jurisdicional de Políticas Públicas, associado a fenômenos como a judicialização da Política e do Direito, é objeto de discussão, especialmente no que concerne aos limites de atuação do Judiciário na garantia dos direitos fundamentais e sua relação com os demais Poderes. Assim, o objetivo do presente artigo consiste em analisar, criticamente, como o Supremo Tribunal Federal brasileiro emprega o conceito de “dignidade humana” como critério e como fundamento para sua atuação, utilizando-o como elemento de legitimação de suas decisões. Para tanto, em um primeiro momento, são enfrentados os aspectos próprios da judicialização e sua relação com o papel da jurisdição constitucional no contexto do Estado Democrático de Direito; na sequência, é abordado o tema das Políticas Públicas em sua condição de locus privilegiado de relação entre Direito e Política; ao final, faz-se a crítica proposta, buscando-se identificar alguns dos elementos operacionais utilizados para tanto. Pretende-se, assim, contribuir para uma melhor compreensão e visualização de alguns aspectos controvertidos relacionados ao tema, para que, a partir deles, se possa avançar na busca de respostas e na construção de novos caminhos relacionados à atuação do Judiciário no controle jurisdicional de Políticas Públicas. 2 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E JUDICIALIZAÇÃO DO DIREITO COMO CONTEXTO PARA O CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS A jurisdição constitucional somente teve espaço na Europa2 a partir do pós-guerra de 1919, dominada por dois “conceitos” principais. O primeiro transparece na Constitui-

Pós-Doutora pela Ruprecht-Karls Universität Heidelberg (Alemanha); Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (com pesquisas realizadas junto à Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, na Alemanha); Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul; Avenida Independência, 2293, 96815-900, Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul; [email protected] ** Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina; Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul; Professor titular da Universidade de Santa Cruz do Sul. Professor e pesquisador do programa de pesquisa, extensão e pós-graduação da Universidade do Oeste de Santa Catarina; Avenida Independência, 2293, 96815900, Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul; [email protected] 1 Este artigo é resultante das atividades do projeto de pesquisa “Controle jurisdicional de políticas públicas: o papel e os limites do Supremo Tribunal Federal na fiscalização e na implementação de políticas públicas de inclusão social – análise crítica e busca de novos mecanismos/instrumentos para uma atuação democrática e cooperativa entre os Poderes”, vinculado ao Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional aberta” (CNPq), do qual a autora é coordenadora, e desenvolvido junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas (CIEPPP) (financiado pelo FINEP), ligado ao Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). 2 Apesar de a ideia de um controle da constitucionalidade – na via difusa – já haver sido desenvolvida em momento histórico anterior, no caso Marbury v. Madison, em 1803, nos Estados Unidos, esta noção não foi transportada para a Europa, que acabou incorporando um controle de natureza concentrada, cuja competência para o juízo de inconstitucionalidade pertence a um único órgão, o Tribunal Constitucional. *

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ção da República de Weimar (ROBBERS, 1990. p. 262),3 que instituiu, em seu texto, um Tribunal ao qual foram confiados os conflitos entre os poderes constitucionais, especialmente aqueles condizentes com a organização federal. Já o segundo é o sistema austríaco, idealizado por Kelsen (SCHMITT, 1934; SCHMITT, 1996; KELSEN, 2008, p. 576-628; KELSEN, 1929)4 e incorporado à Constituição daquele país em 1920, que veio, mais tarde, apesar das modificações sofridas, a consagrar-se, definitivamente, no segundo pós-guerra, notadamente nos países afetados pelos regimes totalitários, como Alemanha, Espanha e Itália. Houve, no entanto, ao longo desse processo, certo afastamento, por parte dos Tribunais Constitucionais europeus, do modelo de controle concentrado proposto por Kelsen (SANCHEZ, 1998, p. 67), que passou a incorporar e adquirir novas dimensões. A atual atividade jurisdicional desses Tribunais ultrapassa uma função meramente “negativa” de controle, vindo a adquirir uma dimensão construtiva e criativa, assentada na necessidade de concretização dos princípios e dos direitos fundamentais insculpidos nos textos das Constituições, para o que se desenvolvem recursos e instrumentos hermenêuticos que viabilizem e instrumentalizem essa tarefa, ainda que isto implique numa “transposição” das funções que tradicionalmente lhe foram reservadas. Diante de tal quadro, não tardaram as críticas ao que se convencionou chamar de “ativismo judicial”, estando a maioria delas assentada no argumento do paternalismo (MAUS, 2000, p. 183-202; DENNINGER, 1990) desses Tribunais, que passam a ser, na designação de Böckenförde (1999, p. 132), os “senhores da Constituição” (Herren der Verfassung). Tem-se, nesse sentido, um fenômeno de “judicialização”, que resulta de um processo histórico, próprio do constitucionalismo democrático e do assim chamado “neoconstitucionalismo” (POZZOLO, 2010, p. 167), que tem por base múltiplos fatores (LEAL, 2012. p. 34-57; BARROSO, 2009), tais como a centralidade da Constituição e a preocupação com sua força normativa, associada a aspectos como o caráter principiológico, a supremacia e a dimensão objetiva dos direitos fundamentais (tidos como vinculantes, levando à construção de conceitos como a Austrahlungswirkung (SCHLINK, 1989) e a Drittwirkung (SCHWABE, 1971), que, somados, conduzem a uma ampliação e a uma transformação da natureza da atuação da jurisdição constitucional (ZAGREBELSKI, 2010, p. 429). Dá-se, assim, um “deslocamento” do eixo de tensão entre os Poderes, representeada por um “protagonismo” do Judiciário (LEAL, 2007),5 que resulta de uma confluência de fatores que conduzem a uma transferência de decisões estratégicas sobre temas fundamentais (tradicionalmente reservadas à esfera política e deliberativa) a este Poder, fazendo com

A Constituição da República de Weimar, de 1919, é marcada por uma preocupação com a unidade do país, ainda não definitivamente consolidado após a sua unificação, em 1871, e fragmentado em virtude dos efeitos nefastos da guerra; neste contexto, a Constituição adquire uma conotação política e é vista como um elemento de integração. Assim, estabelece-se uma preocupação com a sua proteção, na figura de um órgão encarregado de sua proteção. 4 É interessante destacar, ainda, no que tange à conformação do controle de constitucionalidade na Europa, o acirrado debate que se estabeleceu, no final da década de 1920, em meio às discussões sobre a Constituição de Weimar, entre Hans Kelsen e Carl Schmitt, no sentido de determinar a quem melhor caberia a competência de zelar pela Constituição, sendo que o primeiro defendia a existência de um Tribunal Constitucional, autônomo, desvinculado dos demais Poderes, enquanto que o segundo atribuía ao Führer esta tarefa, defendendo ser esta uma tarefa de natureza política, e não jurisdicional. 5 No Estado Liberal, este “protagonismo” era representado pelo Poder Legislativo, tido como representativo da volonté générale, encarregado de criar as leis, elemento central do Positivismo; já no Estado de Bem-Estar Social, este destaque se transfere para o Executivo, ao qual se atribui uma atuação positiva, pautada por uma Constituição dirigente. 3

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que o Direito seja, cada vez mais, um Direito judicial, construído, no caso concreto, pelos magistrados.6 Está-se, por conseguinte, diante de um processo de judicialização que se dá em dois sentidos: a) judicialização da Política; e b) judicialização do Direito. A aproximação e a relação entre Direito e Política, contudo, não é nova. Segundo Grimm (2006, p. 3-20), a tensão entre ambos sempre existiu, variando no tempo (em determinados momentos históricos, a Política subjugou o Direito, em outros o contrário); mas ainda que se alter(n)em, a tensão entre eles é insuprimível. Mas esta relação, que era vista com certa naturalidade em momentos históricos anteriores (WIEACKER, 1980),7 ganhou uma nova dimensão no âmbito do Positivismo, em que se institui uma separação institucional e funcional entre ambos, associada à noção de separação dos Poderes: à Política (Legislativo), por meio de um processo de elaboração racional das leis, de cunho voluntarista, compete a fixação do conteúdo do Direito, cuja aplicação – desvinculada da Política – se dá pela via do Judiciário. Nesse contexto, a Escola da Exegese (HENKEL, 1978, p. 61) se encarrega de conformar uma ideia de interpretação legalista desvinculada de qualquer noção política ou moral. A separação entre Direito e Política no nível da aplicação do direito é, contudo, uma separação de cunho institucional (e não propriamente real, possível). Isso não significa, portanto, que, na prática, o procedimento de aplicação judicial do direito seja, também internamente, apolítico. A Justiça se constitui em um poder político, mas se diferencia da Política porque não toma decisões de antemão dentro de um âmbito normativamente restrito, nem persegue objetivos políticos próprios. Neste contexto, a jurisdição constitucional se constitui em um caso especial, pois, embora seja institucionalmente parte do Poder Judiciário, se encontra muito mais próxima da Política do que os seus demais órgãos, porque o objeto de regulamentação da Constituição e, portanto, o objeto de controle do Tribunal Constitucional, consiste na própria Política (BERCOVICI, 2003. p. 103; LEAL, 2007),8 sendo que as suas normas possuem um caráter de princípio mais forte, ampliando, assim, a margem de interpretação e exigindo processos de concretização mais abertos; daí estas fronteiras serem mais tênues (GRIMM, 2006, p. 16).

A inovação não reside, aqui, na compreensão da jurisprudência como fonte do Direito, mas sim em sua relevância e fundamentalidade, pois ela passa, neste processo, de fonte supletiva a elemento central de conformação da ordem jurídica, pois a atuação do magistrado, no caso concreto, se afigura como determinante para a conformação do direito, por meio de uma atividade criativa, construtiva, de integração do texto normativo com a realidade. Percebe-se, portanto, uma transformação na compreensão da atividade interpretativa (associada à virada linguística e à chamada “Nova Hermenêutica”), bem como uma transformação do próprio Direito, que, ao adquirir um caráter principiológico e valorativo, vinculado, notadamente, aos direitos fundamentais, demanda uma atuação diferenciada do julgador na sua conformação e concretização. É nesta perspectiva, portanto, que se pode falar de uma certa aproximação entre os sistemas da common law (jurisprudencial) e da civil law (legalista), pois este último vem, progressivamente, reconhecendo maior espaço e relevância à atividade jurisdicional, vinculada à aplicação do direito – ainda que legislado – ao caso concreto. Sobre a viragem lingüística e seus reflexos na interpretação, HEIDEGGER (1986) e GADAMER (1972). A respeito da “Nova Hermenêutica” e da jurisprudencialização do direito, ver KOCH (1986); ISENSE (1996); também CITTADINO (2002. p. 17-42). 7 Como o Direito, na Antiguidade, por exemplo, possuía uma dimensão associada a um direito natural, superior, a atividade política relacionada à sua criação não possuía um caráter tão acentuado, estando ambos, antes, mais vinculados do que separados. 8 As Constituições do Século XX são políticas, e não apenas estatais; elas assumem conteúdo político, ou seja, englobam os princípios de legitimação do poder, e não apenas de sua organização. O campo constitucional é, por conseguinte, ampliado para abranger toda a sociedade, e não só o Estado. 6

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Já a judicialização do Direito, que vem associada à da Política e possui causas comuns a ela, vem representada pelo aumento de importância das decisões judiciais no âmbito de um Direito de natureza principiológica (BAYÓN, 2010, p. 291), próprio do neoconstitucionalismo, e que demanda, cada vez mais, uma atuação judicial no sentido de sua interpretação e de sua concretização (BÖCKENFÖRDE, 1991, p. 186).9 As ponderações entre direitos fundamentais, a necessidade de determinação, no caso concreto, do sentido e do alcance dos direitos previstos no texto constitucional,10 tudo isto faz com que a jurisprudência ganhe espaço como fonte do Direito, constituindo-se em um importante espaço de criação do Direito. Apesar de ainda se ter um sistema baseado na civil law, a lei já não é mais a sua fonte exclusiva; dá-se, assim, uma certa aproximação com o sistema da common law.11 O Estado Democrático estar-se-ia transmutando, assim, em um “Estado Jurisdicional” (Jurisdiktionsstaat) (ISENSEE, 1996. p. 1085),12 uma vez que os novos textos constitucionais, ao incorporarem princípios típicos do Estado Democrático de Direito, asseguram o espaço necessário para interpretações construtivistas por parte da jurisdição – e em particular da jurisdição constitucional (CITTADINO, 2002, p. 18) que resultam, por sua vez, numa tendência de “agigantamento” (SÁNCHEZ, 1998, p. 58) do papel desempenhado pela jurisdição dentro desta nova ordem. Apesar de os efeitos destes fenômenos poderem ser identificados e percebidos, de uma forma geral, em diferentes níveis e em diferentes ramos do Direito, em alguns deles esses elementos se fazem ainda mais evidentes, como é o caso dos direitos sociais e das Políticas Públicas, onde o tensionamento entre Direito e Política se traduz na reiterada discussão acerca dos limites e da legitimidade de atuação do Judiciário no seu controle e garantia. 3 AS POLÍTICAS PÚBLICAS COMO LOCUS PRIVILEGIADO PARA A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E DO DIREITO No que se refere à inter-relação entre Direito e Política e, portanto, à judicialização da Política no atual contexto democrático, o âmbito das Políticas Públicas aparece como um foco privilegiado de análise, em virtude de seu objeto e de sua natureza, pois, enquanto instrumentos de atuação – política – voltados à realização dos direitos fundamentais (jurídicos),

Acerca dos conceitos de “interpretação” (Interpretation) e de “concretização” (Konkretisierung), interessante destacar a distinção traçada por Böckenförde, com base nos ensinamentos de Hans Huber, acerca desses elementos, muitas vezes confundidos. Conforme o autor, a primeira consiste na determinação – de conteúdo e de sentido – de algo já predeterminado, como é o caso da lei, que precisa ter o seu conteúdo (já especificado), mediado em face da realidade concreta; já a segunda, pelo contrário, consiste num preenchimento criativo (schöpferische Ausfüllung) de uma diretiva ou de um princípio deixado em aberto, ainda sem qualquer determinação. 10 O direito de igualdade, previsto no art. 5º da Constituição de 1988, por exemplo, possui contornos absolutamente abertos, sendo que o seu conteúdo vai sendo construído, caso a caso, por meio de reiteradas decisões judiciais que, ao apreciarem situações concretas que reconhecem a sua violação ou determinam a sua garantia, lhe dão alcance e significado. 11 Esta aproximação não implica na incorporação do sistema da common law; ela apenas indica que aquela distância tradicionalmente existente entre os dois sistemas, que se localizavam em extremos opostos, diminuiu, já não é mais tão radical. 12 Segundo o autor, ainda, historicamente, uma autoridade como a do BverfG seria improvável, mas a realidade tem demonstrado que não, pois, em uma sociedade cética para com a autoridade, está se desenvolvendo uma verdadeira e efetiva autoridade. 9

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tem-se configurado, nelas, um lugar de atuação da Política sobre o Direito, ou, pelo menos, em que a realização do Direito se dá por meio de opções/escolhas políticas. Os conceitos de Constituição Dirigente (CANOTILHO, 1997) (determinação de fins, pelo Direito, que devem ser alcançados por meio de uma atuação política, que pressupõe uma escolha, por meio de uma deliberação de natureza também política, dentre diferentes ações e meios possíveis para a sua realização) e de discricionariedade (espaço de atuação reservado aos Poderes Públicos, a fim de que possam escolher os meios e instrumentos para a realização dos fins postos pela Constituição) aparecem, portanto, como elementos centrais a essa discussão. Estes aspectos se evidenciam ainda mais, por sua vez, na seara dos direitos sociais, caracterizados por uma dimensão positiva (GRIMM, 2006, p. 155), que demanda uma atuação do Estado no sentido de sua realização. Os direitos que impõem obrigações positivas diferenciam-se daqueles que estabelecem obrigações negativas, que correspondem aos direitos de defesa ou de abstenção (Abwehrrechte). Isso porque, quando algo é proibido (Verboten) – como é o caso característico destes últimos – então toda e qualquer ação que significar ou implicar uma violação ou destruição deste direito protegido é tida como proibida; em contrapartida, quando algo é imposto numa dimensão positiva, no sentido de se proteger ou promover um direito, então nem toda e qualquer ação que proteger ou promover esse direito é tida como devida, abrindo-se espaço, então, para uma ponderação (entre meios e fins), que, na esfera administrativa, se traduz no conceito de discricionariedade. Exemplo ilustrativo acerca dessa questão pode ser encontrado em Alexy, que traz a seguinte situação: quando o que está em pauta é a proibição de matar, esta proibição atinge, prima facie, toda e qualquer forma de morte (independentemente do meio empregado); já na hipótese de haver um dever no sentido contrário, de salvamento – cuja dimensão é objetiva – nem todos os meios disponíveis para tanto são, desde logo, impostos (ALEXY, 1990, p. 62). Se, conforme referido, no caso de um bêbado que está se afogando, for possível resgatá-lo tanto com uma boia quanto com um bote, não são todas estas ações que se impõem; antes pelo contrário, trata-se, muito mais, de se eleger uma ou outra. Significa dizer, então, que o destinatário da ordem tem um espaço aberto (Spielraum) (ALEXY, 2002, p. 15)13 dentro do qual é possível fazer-se uma opção de como este dever será cumprido da melhor forma, a partir de uma análise que leva em consideração a adequação entre os meios e os fins propostos (DEUTSCHLAND/BUNDESVERFASSUNGSGERICHT, 1997, p. 519).14 E é exatamente esta a essência das Políticas Públicas, compreen Em seu texto sobre direito constitucional e controle de constitucionalidade, Alexy classifica diferentes tipos de Spielräume, dividindo-os em estruturais (strukturelle Spielräume, aqueles que se colocam quando a Constituição deixa espaços de conformação em aberto, demandando elementos como atribuição de sentido, eleição dos meios e sopesamento) e epistêmicos (epistemische Spielräume, relacionados às situações nas quais a Constituição não é clara com relação àquilo que é devido, proibido ou permitido; trata-se, portanto, de uma abertura de natureza hermenêutica, ao contrário da situação anterior, onde a abertura reside na própria estruturação da Constituição). 14 A referência a este espaço de deliberação aparece em inúmeros julgados do Tribunal Constitucional alemão, dentre eles o Cannabis-Urteil, onde a questão envolvia as formas de limitação ao uso de drogas e os seus efeitos para com o uso de álcool e de cigarros. No julgado, lê-se a necessidade de adequação entre os fins e os meios, bem como o reconhecimento de que existe a possibilidade de escolha por parte do legislador: “Bei der vom Verhältnismässigkeitsgrundsatz geforderten Beurteilung der Eignung des gewählten Mittels zur Erreichung des erstrebten Zwecks sowie bei der in diesem Zusammenhang vorzunehmenden Einschätzung und Prognose der dem einzelnen oder der Allgemeinheit drohenden 13

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didas, conforme já referido, como meios (escolhas políticas) para a realização dos fins propostos, traduzidos na figura dos direitos fundamentais (fixados juridicamente). Esta tensão não se fazia, por sua vez, tão evidente em um contexto marcado pela noção de programaticidade (BERCOVICI, 2003, p. 109),15 representada pela existência de normas de caráter meramente compromissório,16 ou seja, tidas como normas incorporadas formalmente ao texto constitucional, porém que reenviam para um futuro – incerto – a sua realização. (BOBBIO, 1992, p. 123).17 Ela adquire, contudo, uma nova dimensão em um cenário marcado pelo neoconstitucionalismo (CARBONELL, 2010, p. 157), em que se propugna a máxima efetividade (SARLET, 1999, p. 144). dos direitos fundamentais, concebidos como sendo dotados de uma dimensão objetiva (DEUTSCHLAND/BUNDESVERFASSUNGSGERICHT, 1997, p. 41),18 sendo possível perceber-se uma especial preocupação com a “força normativa da Constituição” (HESSE, 1959),19 típica do constitucionalismo ocidental do segundo pós-guerra. Paralelamente a isso, tem-se, historicamente, ao lado da ampliação dos mecanismos e dos instrumentos de garantia da Constituição e dos direitos fundamentais nela contidos, um processo de progressiva vinculação dos Poderes Públicos à sua realização,

Gefahren steht dem Gesetzgeber ein Beurteiligungsspielraum zu, welcher vom Bundesverfassungsgericht nur in begrenztem Umfang überprüft werden kann.” BVerfGE 90, 145. 15 Vale destacar que, em sua origem, as “normas programáticas” foram concebidas como sendo normas que, apesar de conformarem direções a serem observadas pelo legislador, constituem normas jurídicas, de modo que os dispositivos sociais que contêm pudessem ser aplicados pelos tribunais nos casos concretos. Assim, elas não só conformariam limites ao legislador, como também estatuiriam o sentido em que a Constituição deveria ser compreendida e interpretada. Tal concepção, no entanto, sofreu um profundo desvirtuamento, de maneira que “norma programática” passou a ser aquela que não possui qualquer valor concreto: “toda norma incômoda passou a ser classificada como programática”, bloqueando, na prática, a efetividade da Constituição e contrariando, por sua vez, a intenção original de seus divulgadores. O argumento utilizado para combater esta percepção foi o de que estas normas consistiam em meras diretivas, indicando uma direção futura (e incerta, não imediata) para o legislador, não configurando, por conseguinte, normas jurídicas, mas sim meros programas políticos. 16 Relato interessante sobre este processo, que toma como referência a realidade portuguesa, mas que se aplica muito bem ao fenômeno percebido nos demais países, pode ser encontrado em PINTO (1994, p. 163-164), onde consta que, nesta transição, havia quem quisesse que se atribuísse à Assembleia Constituinte não só a tarefa de reconstruir na forma republicana as estruturas fundamentais do Estado, mas também a de deliberar ao menos algumas fundamentais reformas de caráter econômico e social que representassem o início de uma transformação da sociedade em sentido progressivo. Entretanto, “[...] esta idéia não foi acolhida; ou, para dizer melhor, foi acolhida por metade com o fim de dar aos seus apoiantes a ilusão de que não foi negada de todo. Entre o tipo de Constituição breve, meramente organizatória do aparelho de Estado, e o tipo de Constituição longa, esta também ordenadora da sociedade, a Assembléia Constituinte escolheu um tipo de Constituição longa, isto é, contendo ainda uma parte ordenadora que, em vez de efetuar uma transformação das estruturas sociais, se limitava a prometê-las a longo prazo, traçando-lhe o programa para o futuro.” 17 Como refere Bobbio, trata-se de um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva proteção são reenviados sine die e confiados à vontade de sujeitos cuja obrigação de realizar o “programa” contido na norma configura uma simples obrigação moral ou, no máximo, política. 18 A elaboração desta concepção aparece, pela primeira vez, no chamado Lüth-Urteil, julgado pelo Tribunal Constitucional alemão em janeiro de 1958, em que a controvérsia envolvia a possibilidade ou não de boicote – enquanto livre manifestação do direito constitucional de liberdade de expressão – de um filme considerado anti-semita, produzido por um cineasta que havia colaborado com o regime hitlerista. O presidente do Clube de Imprensa da cidade de Hamburgo, Erich Lüth, que tentou excluir o filme da grade de programação dos cinemas locais e incitou o referido boicote, foi processado pelos produtores da película em perdas e danos. A controvérsia colocou em pauta, então, a questão de até que ponto as leis civis devem levar em consideração os direitos fundamentais. Na argumentação do Tribunal aparece, expressamente, referência ao fato de que o Grundgesetz não se constitui em uma ordem neutra de valores, senão que ele fornece princípios objetivos para pautar a vida em comum. BVerfGE 7, 198. 19 Dentro deste novo contexto, ao recear deixar a Constituição à mercê da discricionariedade do legislador, a teoria da Constituição Dirigente acaba entregando a decisão sobre as questões constitucionais ao Judiciário, especialmente porque o ponto central e nuclear desta nova ordem jurídica reside na concretização desses direitos, fazendo com que o papel dos órgãos judiciais de controle de constitucionalidade passe a ser fundamental, ou seja, a Constituição passa a depender, essencialmente, de mecanismos que assegurem as condições de possibilidade para a implementação de seu texto. 134

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com a consequente redução de sua esfera de discricionariedade. Os textos constitucionais, ao disporem sobre os seus conteúdos essenciais, preveem, cada vez mais, requisitos a serem cumpridos, seja por meio da fixação de percentuais a serem destinados, seja pela exigência de observância de princípios como os da moralidade, da eficiência da administração pública, da proporcionalidade/razoabilidade, dentre outros,20 aumentando, assim, os espaços de atuação e de fiscalização por parte do Poder Judiciário no sentido de sua realização. Neste cenário, a judicialização da política resta, portanto, potencializada, não apenas em virtude dos parâmetros vinculantes estabelecidos pela Constituição, que reduzem a esfera de discricionariedade dos Poderes políticos, mas também em razão da atuação dos Tribunais enquanto garantidores desses direitos, tidos como exigíveis.21 A maior dificuldade operacional com relação a esses aspectos se apresenta, por seu turno, no âmbito dos direitos sociais prestacionais (CANOTILHO, 2004, p. 50),22 que envolvem uma dimensão coletiva e estão condicionados, de forma mais direta, a aspectos como orçamento, eleição de fins e de meios, etc. É aqui que o “controle jurisdicional de Políticas Públicas” ganha espaço, abrindo margem a uma larga discussão acerca da atuação dos Tribunais nesta seara, sob o argumento de uma suposta violação do princípio da separação de Poderes, de uma “invasão” do político pelo jurídico, isto é, o jurídico estaria invertendo a ordem tradicionalmente estabelecida, em que o a conformação dos meios de realização desses direitos se dava por meio de uma deliberação política (discricionária); agora, o Direito estabeleceria os fins e controlaria os meios, deixando diminuído o espaço da Política. Neste sentido, far-se-á, na sequência, uma breve análise acerca da atuação do Supremo Tribunal Federal brasileiro acerca da questão, tomando-se por referência o conceito de “dignidade humana”, a fim de se identificar o papel desempenhado por ele enquanto critério/fundamento para o controle jurisdicional de Políticas Públicas em suas decisões envolvendo direitos a prestações. 4 A DIGNIDADE HUMANA ENQUANTO CRITÉRIO PARA O CONTROLE JURISDICIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS: ANÁLISE CRÍTICA DA ATUAÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO Considerando-se que o fenômeno da judicialização pode ser percebido em diferentes países, também no Brasil ele se manifesta, demandando do Supremo Tribunal Federal (assim como dos demais Tribunais) uma série de decisões relacionadas à garantia de direitos sociais, notadamente os de natureza prestacional.

A Constituição brasileira de 1988 evidencia bem estes aspectos, ao prever percentuais mínimos a serem investidos em áreas como saúde e educação, cuja desobediência pode acarretar “intervenção federal” (art. 34 da CF/88), bem como ao estabelecer os princípios que regem a Administração Pública (art. 37 da CF/88). 21 Neste sentido, é preciso registrar que um importante papel pode ser atribuído à Teoria/Dogmática dos Direitos Fundamentais, que construiu um arcabouço teórico sólido, capaz de sustentar e de justificar, racionalmente, essas pretensões. 22 Canotilho identifica três espécies de direitos a prestações: a) proteção por parte do Estado (ex.: proteção do Estado perante outros cidadãos, como através da edição de normas penais); b) participação em procedimentos (que o Estado garanta aos cidadãos uma participação no procedimento administrativo); c) prestações fáticas (prestações em sentido estrito). Segundo ele, somente a terceira é típica do Estado Social, de modo que os direitos a prestações são anteriores a ele. 20

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Isto porque a Constituição de 1988, com seu caráter acentuadamente democrático e identificado com o neoconstitucionalismo (JARAMILLO, 2010, p. 215), além de prever em seu texto uma série de direitos – sejam eles individuais, sociais ou transindividuais – atribuindo-lhes aplicabilidade imediata e máxima efetividade, também instituiu vários instrumentos e ações voltados à sua garantia, revelando, assim, uma especial preocupação com sua realização.23 Tais aspectos enquadram-se, por sua vez, nas características apontadas como causas relacionadas à judicialização, já referidas em momento anterior do presente trabalho. Neste contexto, várias são as decisões da mais alta Corte do país que se ocupam do tema,24 versando sobre os mais diferentes aspectos relacionados aos direitos sociais. Para os fins do presente estudo, contudo, o foco de análise recairá, especificamente, na utilização, pelo Tribunal, do conceito de “dignidade humana” enquanto critério/fundamento para o controle jurisdicional de Políticas Públicas. Trata-se de tema bastante controverso, pois, além de possuir uma dimensão coletiva, envolve questões como orçamento, limites de atuação do Judiciário na relação com os demais Poderes, especialmente no que concerne ao controle e à fiscalização dos Poderes Públicos (políticos) no exercício de sua discricionariedade. Pode-se perceber, nesse sentido, nas decisões, uma linha clara de fundamentação, que passa por uma vinculação de elementos como “mínimo existencial”, “núcleo essencial dos direitos fundamentais” e “reserva do possível”, tidos quase que como indissociáveis. Na leitura reiterada do Supremo Tribunal Federal, quando o que se busca é a tutela do “mínimo existencial”, não incide o princípio da “reserva do possível” (GRIMM, 2007, p. 282-297),25 isto é, não se aplica o orçamento; o direito deve ser garantido, independentemente da disponibilidade ou não dos recursos financeiros necessários. Elucidativa, nesse aspecto, a leitura de trecho da decisão proferida pelo Ministro Celso de Mello, Relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 45: Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” - ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade. (BRASIL, 2004).

Tem-se, aqui, uma Constituição tida como “dirigente” no sentido de que prevê e institui uma série de tarefas ao Estado e à sociedade como um todo, pautadas pelos valores e pelos fundamentos contidos em seu texto, porém associada a uma preocupação com sua “força normativa”, que pressupõe uma exigibilidade de seus conteúdos, de modo a não deixá-los à mercê das forças e dos influxos políticos. 24 Para os fins do presente trabalho, serão tomadas como referência, num caráter exemplificativo, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 45 (sobre a aplicação de recursos financeiros mínimos nas ações e serviços públicos de saúde), o Recurso Extraordinário 482.611/SC (referente ao Programa Sentinela – direito de abrigo para crianças vítimas de violência doméstica) e a “decisão da saúde” (sobre o fornecimento de medicamentos e de tratamentos de alto custo pelo Estado). 25 É preciso que se refira, neste ponto, que a doutrina brasileira, ao incorporar a noção de “reserva do possível” cunhada pelo Tribunal Constitucional alemão, na decisão conhecida como Numerus Clausus (BVerfGE 33, 303) referente à obrigação do Estado de oferecer novas vagas no curso de Medicina, em face da demanda apresentada, tendeu a desvirtuá-la, identificando-a, notadamente, com a disponibilidade/existência de recursos, quando, em seu sentido originário, ela está mais associada à ideia de razoabilidade da pretensão (aquilo que se pode esperar do Estado em termos de prestação, para além da questão orçamentária) formulada. 23

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Percebe-se, assim, um deslocamento do foco da decisão, que é transferido para uma perspectiva mais individual do que coletiva; por tratar-se de um direito fundamental e por estar intimamente ligado com os valores inerentes à dignidade da pessoa humana, o Judiciário encontra-se autorizado a adotar provimentos jurisdicionais para a sua concretização.26 Disto decorre, por sua vez, que, nestes casos, não se tem propriamente um controle de Política Pública, mas sim a realização de um direito constitucionalmente assegurado. Não haveria, portanto, ingerência do Judiciário na esfera de competência dos demais Poderes, ainda que reste evidenciada a sua natureza política: A via processual utilizada qualifica-se como instrumento idôneo e apto a viabilizar a concretização de políticas públicas, quando, previstas no texto da Carta Política, tal como sucede no caso, venham a ser descumpridas, total ou parcialmente, pelas instâncias governamentais destinatárias do comando inscrito na própria Constituição da República. Essa eminente atribuição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidência, de modo particularmente expressivo, a dimensão política da jurisdição constitucional conferida a esta Corte, que não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais - que se identificam, enquanto direitos de segunda geração, com as liberdades positivas, reais ou concretas, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional (BRASIL, 2004, grifo nosso).

De outro lado, buscando-se o referencial da dignidade humana na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pode-se percebê-la identificada com o mínimo existencial, tido como [...] o conjunto de direitos fundamentais sem os quais a dignidade da pessoa humana é confiscada. E não se há de admitir ser esse princípio mito jurídico ou ilusão da civilização, mas dado constitucional de cumprimento incontornável, que encarece o valor de humanidade que todo ser humano ostenta desde o nascimento e que se impõe ao respeito de todos. (BRASIL, 2007).

Elucidativa, neste ponto, a chamada “decisão da saúde”, onde ficou assentado que a sua realização se dá, em princípio, por meio da implementação de Políticas Públicas, isto é, ele se traduz na existência de um direito público subjetivo a políticas públicas, e não a prestações estatais isoladas. Tal afirmação vale, contudo, meramente como petição de princípio, pois, em verdade, o que restou pacificado, no voto do Ministro Gilmar Mendes, foi a constatação da necessidade de se redimensionar a questão da judicialização do Direito no Brasil, superando-se entendimentos pautados na ideia de que se dá uma violação do princípio da separação de Poderes por parte do Judiciário quando este age na concretização dos direitos fundamentais no casos que envolvem os direitos prestacionais. Destaca o voto que não há uma intervenção direta na esfera de discricionariedade dos Poderes, pois o problema, na maioria das vezes, não é de inexistência, mas sim de execução administrativa das políticas públicas pelos entes federados: “Esse foi um dos primeiros entendimentos que sobressaiu nos debates ocorridos na Audiência Pública-Saúde: no Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação de políticas públicas em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento de políticas públicas já existentes.” BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Íntegra do voto das Suspensões de Tutela Antecipada 175, 211 e 278; Suspensões de Segurança 3724, 2944, 2361, 3345 e 3355; Suspensão de Liminar 47. Versam sobre recursos interpostos pelo Poder Público contra decisões judiciais que determinaram ao Sistema Único de Saúde o fornecimento de remédios de alto custo ou tratamentos não oferecidos pelo sistema a pacientes de doenças graves. Min. Relator Gilmar Ferreira Mendes, julgadas em 16 de março de 2010. Disponível em: . Acesso em: 17 mar. 2010. 26

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A dignidade humana aparece, por conseguinte, como o fundamento/critério determinante para o reconhecimento da essencialidade do direito pleiteado (associado ao conceito de “mínimo existencial”), do que decorre a sua necessária garantia, independentemente da “reserva do possível”. Essa referência se dá, contudo, com caráter eminentemente retórico, não se evidenciando uma discussão acerca de sua natureza e alcance, nem referência a qualquer concepção teórica que lhe dê suporte. Basta, simplesmente, invocá-la e tudo se justifica. Tal aspecto, apesar de, num primeiro momento, parecer atribuir força jurídica à dignidade, conduz, entretanto, ao risco de uma banalização.27 Além disso, estabelece-se, aqui, um certo paradoxo: ao mesmo tempo em que o conceito de dignidade resta fortalecido, ao ser utilizado como fundamento para a garantia do direito de forma desvinculada do orçamento – isto é, sem possibilidade de relativização ou de restrição em virtude da “reserva do possível” – ele acaba sendo enfraquecido ao ser identificado com o “mínimo” (existencial). O “paradoxo” reside, portanto, no seguinte aspecto: a noção de “núcleo essencial” dos direitos fundamentais opera com a lógica do “máximo”, ou seja, segundo o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, tidos como “mandamentos de otimização” (Optimierungsgebote, no dizer de Alexy (1994)), estes devem ser realizados de forma “ótima”, na máxima medida do possível; uma restrição somente é possível, neste sentido, se atender ao princípio da proporcionalidade (Verhälnissmässigkeitsprinzip), identificado pelos três subprincípios que lhe são inerentes: justo motivo; adequação entre fins e meios; proporcionalidade em sentido estrito. A ponderação pressupõe, assim: a) uma avaliação dos danos da não realização plena do princípio, que deve ser restringido na mínima medida necessária; b) a determinação da importância do princípio contrário; c) a verificação de se a importância desse princípio contrário e sua realização justifica a lesão do outro direito em pauta (“custo benefício”) (ALEXY, 2002, p. 19). Assim, quando a realização de um princípio não é possível senão às custas da restrição de outro (ALEXY, 2005, p. 55),28 tem-se que, quanto maior for a não-realização de um, maior deve ser a importância e realização do outro (EBSEN, 1985, p. 74).29 Neste contexto, também as limitações são tidas como limitadas, configurando-se uma ideia de “limites aos limites” (Schranken-Schranken Theorie) (ALEXY, 1994, p. 267), sendo que o “núcleo essencial” se constitui como um balizador a esta restrição, estabelecendo um limite para além do qual a realização do direito em pauta fica comprometida. O caráter principiológico das normas de direitos fundamentais estabelece, por conseguinte,

Vale destacar, neste sentido, que, no caso dos direitos sociais prestacionais, o argumento invocado é, reiteradamente, o da “dignidade humana”, sendo que o Supremo Tribunal Federal não se vale de outros fundamentos da República, igualmente instituídos no texto constitucional – como a redução das desigualdades sociais, por exemplo – para justificar suas decisões. 28 “Je höher der Grad der Nichtrealisierung des einen Prinzips ist, desto grösser muss die Wichtigkeit der Realisierung des anderen sein.” 29 Estas decisões são conhecidas, por conseguinte, na doutrina germânica, como proposições “tanto-quanto” (je-desto Sätze), resultantes de sucessivas manifestações de parte do Tribunal alemão em casos de ponderações de valor, onde o referencial reside sempre na máxima de que quanto maior a não-realização de um direito, tanto maior deve ser a realização do direito contrário. 27

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não só que estes direitos são restringíveis em face de outros, mas também que a sua própria limitação é limitada (SCHNEIDER, 1983, p. 93).30 De qualquer forma, por mais que o “núcleo essencial” configure um “mínimo”, um núcleo intangível, ele está inserido em uma perspectiva de efetividade dos direitos fundamentais, em que prevalece a lógica de “máxima realização possível” e de “mínima restrição necessária”, isto é, uma vez que ele está inserido no âmbito dos direitos fundamentais, opera (e deve operar), conforme já referido, na perspectiva do “máximo” (QUEIROZ, 2006, p. 33). Já o “mínimo existencial” opera, como já foi dito, em sentido inverso, ou seja, com a lógica do “mínimo”. Assim, ao associar a dignidade humana ao “mínimo existencial”, o Supremo Tribunal Federal está, em verdade, deslocando o seu conceito em direção ao “mínimo”, acabando, assim, na prática, por enfraquecê-la. Em ambos os casos, contudo, o princípio da proporcionalidade desempenha um papel estratégico na operacionalização desses conceitos. O que ocorre é que, uma vez mais, se evidencia, aqui, uma distinção baseada na natureza dos direitos tutelados: no caso da restrição aos direitos fundamentais, típica dos direitos de defesa (Abwehrrechte), parte-se de uma noção de proteção absoluta (“máximo”), estando eles sujeitos a limitações apenas em face de outros direitos igualmente fundamentais ou de situações excepcionais que o justifiquem, sendo que essas intervenções (Eingriffe) do Estado devem dar-se de forma proporcional31 ou seja, sem excessos; já no caso do “mínimo existencial”, identificado com os direitos fundamentais sociais (Leistungsrechte), de natureza prestacional (seja ela fática ou normativa) (CANOTILHO, 2004, p. 42), não se fala em restrições (Eingriffe), mas em “dever de proteção” (Schutzpflicht), estando o Estado obrigado a garantir e a realizar o “mínimo” necessário. No primeiro, tem-se, pois, uma “proibição de excesso” (Übermassverbot), enquanto que, no segundo, uma “proibição de proteção insuficiente” (Untermassverbot). A esse aspecto problemático soma-se, ainda, a observação, feita por Canotilho (2004, p. 98-101), de que a aplicação dos direitos sociais é, frequentemente, deslocada para outros âmbitos (teorias da justiça, teorias da fundamentação e da argumentação, teorias econômicas do Direito, etc.), o que conduz a uma “politização” do Direito Constitucional, fazendo com que se perca o próprio foco da questão jurídica e operacional desses direitos. No caso brasileiro, entende-se que a Constituição de 1988 não contempla, expressamente, a noção de “mínimo existencial”, havendo feito, antes, uma opção pelo

Interessante referir, neste sentido, que a própria Constituição alemã prevê, expressamente, em seu Art. 19 Abs. 2 GG, a existência de um núcleo essencial e intocável dos direitos fundamentais que precisa ser preservado: “In keinem Falle darf ein Grundrecht in seinem Wesensgehalt angetastet werden.” DEUTSCHLAND. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland. Bonn: Bundeszentrale für politische Bildung, 1998. Podem-se diferenciar duas concepções com relação à proteção do núcleo essencial (Wesensgehalt) desses direitos: uma aboluta e outra que os interpreta de forma relativa. 31 Compreendida, aqui, no sentido de proporcionalidade entre os fins colimados e os meios empregados, isto é, de que a intervenção operada deve dar-se de maneira que o fim seja alcançado (proteção do direito fundamental contrário) com o mínimo sacrifício do direito restringido. 30

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“máximo”,32 contexto em que a identificação da dignidade humana não deveria se dar com base na noção de “mínimo existencial”, mas sim a partir de uma perspectiva de máxima realização, sendo as restrições impostas pela existência de fatores externos (NOVAIS, 2006, p. 18) que as justifiquem (incluída aí a “reserva do possível”, por exemplo). Em que pesem as considerações críticas aqui tecidas, resta evidente, contudo, em face do exposto, que a dignidade humana se constitui em critério/fundamento determinante para a atuação/intervenção do Judiciário no âmbito do controle jurisdicional de Políticas Públicas, funcionando como um elemento de legitimação de suas decisões no âmbito da judicialização da Política e reforçando, desta forma, a própria judicialização do Direito, típica do neoconstitucionalismo. 5 CONCLUSÃO O constitucionalismo democrático é caracterizado por um fenômeno de “judicialização”, resultante de um processo histórico próprio do neoconstitucionalismo, que tem por base múltiplos fatores, tais como a centralidade da Constituição e a preocupação com sua força normativa, associada a aspectos como o caráter principiológico e a supremacia dos direitos fundamentais, que, somados, conduzem a uma ampliação e a uma transformação da natureza da atuação da jurisdição constitucional. Dá-se, assim, um “deslocamento” do eixo de tensão entre os Poderes, representado por um “protagonismo” do Judiciário, resultante de uma confluência de fatores, fazendo com que o Direito seja, cada vez mais, um Direito judicial. Está-se, por conseguinte, diante de um processo de judicialização da Política e do próprio Direito. A aproximação e a relação entre Direito e Política, contudo, não é nova, sendo que em determinados momentos históricos a Política subjugou o Direito, enquanto em outros se deu o contrário. Ela ganhou, contudo, uma nova dimensão no âmbito do Positivismo, onde à Política compete a fixação do conteúdo do Direito, por meio da lei, cuja aplicação, técnica – e, portanto, desvinculada da Política – se dá pela via do Judiciário. Já a judicialização do Direito (que está associada à da Política e possui causas comuns a ela), vem representada pelo aumento de importância das decisões judiciais no âmbito de um Direito de natureza principiológica, próprio do neoconstitucionalismo, e que demanda, cada vez mais, uma atuação judicial no sentido de sua interpretação e de sua concretização, fazendo com que a jurisprudência ganhe espaço enquanto fonte do Direito. Em alguns ramos do Direito, contudo, esses aspectos se fazem ainda mais evidentes, como é o caso dos direitos sociais e das Políticas Públicas, pois, enquanto instrumento de atuação – política – voltado à realização dos direitos fundamentais (jurídicos), tem-se

Exemplos disso residem na consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, inciso III, da CF/88); na previsão de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e regionais enquanto objetivo fundamental da República (art. 3º, inciso III, da CF/88); na previsão da saúde como um “direito de todos e dever do Estado” (art. 196 da CF/88), traduzido pela opção pelo Sistema Único de Saúde – SUS, de natureza e acesso universal; na garantia da educação como “direito de todos e dever do Estado e da família” (art. 210 da CF/88), sendo o acesso ao ensino obrigatório e gratuito um “direito público subjetivo” (art. 2010, §1º, da CF/88); na garantia a todos, pelo Estado, do “pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional” (art. 215 da CF/88), entre outros. 32

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configurado, nelas, um lugar de atuação da Política sobre o Direito, ou, pelo menos, um espaço em que a realização do Direito se dá por meio de opções/escolhas políticas. O tema adquire, porém, uma nova dimensão em um cenário marcado pelo neoconstitucionalismo, em que se propugna a máxima efetividade dos direitos fundamentais. Paralelamente a isso tem-se, ainda, ao lado da ampliação dos mecanismos e dos instrumentos de garantia da Constituição, um processo de progressiva vinculação dos Poderes Públicos à sua realização, com a consequente redução de sua esfera de discricionariedade, aumentando, assim, os espaços de atuação por parte do Poder Judiciário no sentido de sua realização. Trata-se de tema bastante controverso, pois, além de possuir uma dimensão coletiva, envolve questões como orçamento, limites de atuação do Judiciário na relação com os demais Poderes, especialmente no que concerne ao controle e à fiscalização dos Poderes Públicos (políticos) no exercício de sua discricionariedade. Pode-se perceber, nesse sentido, nas decisões do Supremo Tribunal Federal, uma linha clara de fundamentação, que passa por uma vinculação de elementos como “mínimo existencial”, “núcleo essencial dos direitos fundamentais” e “reserva do possível”, tidos quase que como indissociáveis; quando o que está em jogo é a tutela do “mínimo existencial”, não incide o princípio da “reserva do possível”, isto é, direito deve ser garantido, independentemente da disponibilidade ou não dos recursos financeiros para tanto. Opera-se, nesse sentido, um deslocamento do foco da decisão, que é transferido para uma perspectiva mais individual do que coletiva; por tratar-se de um direito fundamental e por estar intimamente ligado com os valores inerentes à dignidade da pessoa humana, o Judiciário encontra-se autorizado a adotar provimentos jurisdicionais para a sua concretização, de modo que não se teria propriamente um controle de Política Pública, mas sim a realização de um direito constitucionalmente assegurado, não havendo, portanto, ingerência do Judiciário na esfera de competência dos demais Poderes. A dignidade humana aparece, por sua vez, como o fundamento/critério determinante para o reconhecimento da essencialidade do direito pleiteado (associado ao conceito de “mínimo existencial”), do que decorre a sua necessária garantia, independentemente da “reserva do possível”. Tal aspecto, apesar de, num primeiro momento, parecer atribuir força jurídica à dignidade, conduz, no entanto, ao risco de uma banalização, fazendo com que se estabeleça, em certa medida, um paradoxo: ao mesmo tempo em que o conceito de dignidade resta fortalecido, ao ser utilizado como fundamento para a garantia do direito de forma desvinculada do orçamento, ele acaba sendo enfraquecido ao ser identificado com o “mínimo” (existencial). Resta evidente, contudo, que a dignidade humana se constitui em um critério/ fundamento determinante para a atuação/intervenção do Judiciário no âmbito do controle jurisdicional de Políticas Públicas, reforçando, assim, o fenômeno de judicialização da Política e do próprio Direito, associado ao neoconstitucionalismo. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Grund- und Menschenrechte. Verfassung und argumentation. Interdiziplinäre Studien zu Recht und Staat, Band 36. Baden-Baden: Nomos, 2005. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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A GLOBALIZAÇÃO DO CAPITAL–IMPERIALISMO E A PRECARIZAÇÃO DOS DIREITOS DOS TRABALHADORES: LIMITES E DESAFIOS Newton Menezes de Albuquerque* Marcus Pinto Aguiar**

Resumo O Capital-Imperialismo, amparado na sua força expansionista e na sua essência econômica de multiplicação do lucro e de acumulação, tem no movimento de globalização e nas novas tecnologias, seus instrumentos mais caros para, de forma avassaladora, e muitas vezes até destruidora, afetar todas as esferas do âmbito da existência humana, quer seja, política, social, individual e jurídica. O mundo do trabalho humano não escapa também da sua influência precarizadora, e mesmo o direito do trabalho, instrumento normativo próprio para promover melhores condições de vida do trabalhador e de sua família, tem sofrido danos através de ataques desregulamentadores. A garantia da dignidade de vida do trabalhador depende de um constitucionalismo praxiológico que efetive os direitos fundamentais, em especial, os sociais de cunho trabalhista, e aquele, está profundamente ligado à participação popular e ao exercício democrático dos poderes públicos, manejando o Direito como ferramenta apropriada para a plena realização da existência do ser humano, quer seja o de ordem jurídica interna, ou mesmo o proveniente de ordem internacional também globalizada. Palavras-chave: Capital-Imperialismo. Trabalho. Dignidade da Pessoa Humana. Efetivação de Direitos. The contemporary capitalism globalization and the precarious workers’ rights: limits and chalenges Abstract The contemporary capitalism, supported by its expansionist power and by its economics essence of profit multiplication and accumulation, has in the globalization movement and in the new technologies, its most useful instruments to, in a over whelming way, and sometimes even destructive, affect all the scope of human existence, whether political, social, individual and legal. The world of human labor does not escape of that influence that makes it precarious, and even labor laws, legal instruments to promote better conditions of life for the worker and his family, have suffered with deregulation. The guarantee of life’s dignity of the worker depends on a praxiological constitucionalism that _______________ * Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco; Mestre em Direito e em Desenvolvimento pela Universidade do Ceará; Professor Adjunto da Universidade de Fortaleza e da Universidade Federal do Ceará; Av. Washington Soares, 1321, Bloco C, Edson Queiroz, 60811-341, Fortaleza, Ceará, Brasil. ** Doutorando e Mestre em Direito Constitucional Público e Teoria Política, na linha de pesquisa em Direitos Humanos, pela Universidade de Fortaleza; Av. Washington Soares, 1321, Bloco C, Edson Queiroz, 60811-905, Fortaleza, Ceará, Brasil; [email protected]

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makes effective the fundamentals rights, in special, the social ones of the laboral order, and that, is profoundly linked to the popular participation and the democratic practice of the public powers, using the Law as a appropriate tool for the complete realization of human existence, whether it comes from internal order of the Estate, or proceeding from an international order also of global range. Keywords: Capital-Imperialism. Labor. Dignity of the Human Person. Effectiveness of Rights. 1 INTRODUÇÃO O capitalismo se gesta no espaço mundo, rompendo com as fronteiras do localismo feudal e redefinindo identidades políticas e culturais a partir da ampla centralização material, jurídica, religiosa e lingüística operada por seu braço político, o Estado-Nação. A despeito da importância das decisões políticas e de sua relativa autonomia perante os circuitos econômicos, o fato inquestionável é que o fator econômico possui um peso determinante na articulação/definição do funcionamento das outras esferas normativas do ser social. Ademais é na oikonomía que se faz sentir a principialidade do privado na modernidade capitalista sobre a esfera pública argumentativa que secundariza e confina a política ao campo restrito da representação de interesses setoriais da burguesia no século XIX. Assim, optamos pelo uso do termo Capital-Imperialismo1 que tem o mérito de traduzir o alcance internacional dos fluxos, estratégias, limites, interdições e porque não dizer das potencialidades das tendências globalizantes de nosso tempo. Afinal de contas, a estruturação do Capital e de seus movimentos de autovalorização desencadeia conjuminadamente ações reativas e pontos de agregação política da classe trabalhadora e de todos aqueles que sofrem os efeitos e consequências da dinâmica do Capital além-fronteiras, levando os trabalhadores através de suas formas de representação a atuarem quase sempre defensivamente frente à ofensividade e centralidade do Capital, dificultando a formação de uma consciência histórica de seus interesses, notadamente no que se refere à ultrapassagem dos limites corporativos de suas demandas. Daí a ênfase no presente artigo que daremos aos efeitos funestos da crise do Capital em sua atual fase de desenvolvimento imperialista – o Capital-Imperialismo – sobre as demais instâncias da vida, especialmente no que atine a precarização do trabalho com a destruição dos direitos e prerrogativas formais objetivados no Estado Democrático de Direito, consequências estas de caráter anticivilizatório que explicitam de maneira tristemente pedagógica o sentido destrutivo do capitalismo hodierno e seu rompimento com os valores racionalistas e humanistas presumidamente tutelados pelo Estado Liberal e pelo constitucionalismo clássico nos albores da modernidade e que só podem ser adequadamente compreendidas no espaço-tempo mundializado em que a Divisão Internacional do Trabalho impõe a todos os países restrições crescentes à cidadania e a difusão dos direitos

Termo imperialismo que adquire uma conceituação importante a partir das reflexões estabelecidas por Lênin, Hilferding e Hobson que captaram a nova realidade do capitalismo financeiro em contraste com o industrial, da centralidade da fusão de capitais de diversas procedências (industrial, bancário, serviços, etc.), assim como sua tendência expansionista, voltada para exportação de capitais. 1

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fundamentais, não obstante a elevação retórica do reconhecimento da democracia e dos Direitos Humanos como meio de ocultamento ideológico das práticas institucionalizadas de restrição das mesmas. Nesse sentido, o presente trabalho buscará problematizar as antinômicas relações entre a expressão do Capital-Imperialismo com sua dinâmica mundializada e sempre expansiva de busca de realização do valor-abstrato do dinheiro por meio dos circuitos financeiros e especulativos que o hegemonizam, com as linhas e reivindicações surgidas das demandas democráticas que preferem sublinhar os valores fundamentais da igualdade e da liberdade, particularmente manifestadas na regulação civilizatória das relações entre Capital e Trabalho. Os limites civilizatórios só são observados quando o Trabalho mostra força organizativa, capaz de estabelecer barganhas salariais e melhores condições materiais para sua auto-reprodução, pois, no mais das vezes, o que impera é a dominância do Capital como o Grande Outro a delimitar a cartografia dos espaços sociais, uma vez que, na verdade, no capitalismo quase sempre a política vê-se toldada pelos limites do instituído, das necessidades internas do Capital e de seus ciclos autoreferentes de funcionamento, marcado pelas crises periódicas que o acometem, absolutamente funcionais para o processo de destruição/remoção e também na criação de novas condições mais favoráveis de produção e reprodução ampliada do Capital-Imperialismo, afetando de maneira destrutiva as condições de vida e a fruição dos direitos da classe trabalhadora. Trataremos dos novos desafios postos pela globalização neoliberal enquanto fase última da reestruturação gerencial do capitalismo imperialista que transforma o mundo em circuito único dos fluxos especulativos, atribuindo ainda maior ductibilidade ao Capital e sua lógica expansionista e fragmentadora dos trabalhadores. A ruptura do Capital-imperialista com sua camisa-de-força, o Estado-Nação, arrebenta com os tradicionais processos de organização e de resistência da classe trabalhadora, ao fragilizar-se de maneira inaudita frente à velocidade e plasticidade com o que o Capital estabelece suas estratégicas de redução de custos e maximização de ganhos imprimidos pela globalização. Ordens constitucionais inteiras são desbaratadas em nome do realismo econômico da atração a qualquer custo de capitais, de investimentos “produtivos” que soberanamente definem as condições para se instalarem nos países. Condições estas que estão diretamente ligadas a precarização do trabalho e de seus direitos, agora classificados como arcaicos, obsoletos em face da modernidade encantadora do dinheiro. A “gramática” constitucional dos direitos objetivada na Constituição vê-se esboroada pela implacabilidade da economia reificada capitalista como única alternativa ao mundo. O que se percebe no cenário mundial da atualidade é mais um enfrentamento entre o mundo do trabalho e a universalidade do capital, de tal forma que este, no seu afã expansionista, movido pela sua necessidade de acumulação, procura fazer sucumbir conquistas, especialmente as sob forma de direitos, que foram alcançadas não apenas por meio de disputas de idéias, mas principalmente, por lutas cruentas através da mobilização dos trabalhadores. Abordagem teórica esta que se deterá sobre os influxos dessa globalização capitalista sobre a realidade brasileira e sua singularidade, modeladora de uma modernidade Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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marcada pela confluência antinômica de valores diferenciados em que o amplo desenvolvimento das forças produtivas capitalistas combina-se a preservação de lealdades estamentais e de outros elementos políticos, culturais e econômicos arcaicos. Para isso, nosso trabalho começa pela análise de como se formou a “modernidade periférica” brasileira e sua adaptação às exigências do desenvolvimento capitalista por estas bandas com todos os elementos restritivos que o compõem. Buscaremos assim mostrar as dificuldades da recepção do ideário de cidadania em nosso país, mesmo sob as curtas roupagens civilizatórias brandidas pelo liberalismo. O veio autocrático do modelo político-institucional implantado em nosso país, não obstante suas concessões retóricas às práticas democráticas com todo seu ritual de eleições periódicas e de culto abstrato as liberdades civis, estreita as condições de assimilação de direitos sociais como o direito do trabalho. Ademais uma sociedade como a brasileira que se assenta sobre uma mentalidade escravista sobrevivente as mudanças de índole constitucional, possui enormes resistências ao reconhecimento da centralidade da ética do trabalho. As conquistas obtidas com a Constituição da República de 88 que forceja pela delimitação de um ordenamento jurídico pautada no estabelecimento de fórmulas compromissórias entre os valores liberais oriundos do Estado Liberal de Direito com aqueles outros egressos do solidarismo do Estado Social conformando assim o que chamamos por Estado Democrático de Direito vêem-se constantemente sob fogo cruzado das reformas neoliberais pregadas pela direita, apesar da óbvia assimetria existente entre classe trabalhadora e empresários e da ameaça constante que paira sobre os primeiros dada sua dependência estrutural do Capital, tanto no que atine as crises produzidas mundialmente, quanto daquelas que dimanam de fatores localizados.2 Posto que se o capitalismo for deixado a sua própria deriva, ao sabor do espontaneísmo das forças de mercado o que veremos é a predominância dos mecanismos de autovalorização do Capital que ao primeiro sinal de crise procura no processo de reorganização administrativa das empresas o instrumento para a sua salvação, isto é, na diminuição de custos, principalmente, via demissão de empregados3, podendo contar ainda com a cumplicidade do Estado4, a seu favor, através do financiamento direto ou indireto de suas atividades. Entretanto, na segunda parte do trabalho mostraremos como se formou o direito do trabalho como expressão dos conflitos entre Capital e Trabalho, notadamente das lutas patrocinados por este último na tentativa de assegurar condições de vida minimamente dignas. Por isso acreditamos que o direito não só traduz em termos lógico-normativos o sentido abstrato e reificador do dinheiro como equivalente geral das mercadorias, mas

Segundo o sentido contemporâneo de classe trabalhadora (“classe-que-vive-do-trabalho”), esta exclui “[...] os gestores e altos funcionários do capital, que recebem rendimentos elevados ou vivem de juros”, expressão que incorpora “[...] a idéia marxiana do trabalho social combinado.” (ANTUNES apud SILVA et al., 2007, p. 47). Entretanto, Mészáros (2009, p. 69) alerta que os problemas atuais do mundo do trabalho, atingem “[...] todas as categorias de trabalhadores, qualificados e não-qualificados, ou seja, obviamente a totalidade da força de trabalho da sociedade.” 3 “Com a ameaça constante do ‘enxugamento’, toda a vida dos assalariados está colocada sob o signo da insegurança e da incerteza.” (BOURDIEU, 2001, p. 49). 4 De acordo com Chomsky (2010, p. 14): “Os governos são peça-chave no sistema capitalista moderno. Eles subsidiam prodigamente as grandes empresas e trabalham para promover os interesses empresariais em numerosas frentes.” 2

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também pode ser um instrumento importante de constrangimento do mercado, consolidando-se como instrumento de controle parcial sobre o Capital, dando vazão ao surgimento dos direitos sociais e das lutas reivindicatórias “dos de baixo” como diria Florestan Fernandes, haja vista que o direito enquanto expressão contra-factual da realidade, teleologicamente voltado para concretização de um programa ético determinado, não pode se subsumir ao posto, ao dado. Afinal, segundo Hegel, o direito é “a positivação da liberdade” devendo figurar como normatividade constritiva das relações econômicas dominantes. Neste sentido, cremos que o direito – ao contrário de um certo marxismo anti-dialético de laivos stalinianos – não é só o reflexo da realidade, mas também instância modificadora ou reconfiguradora do Real, dentro de limites estabelecidos. Por isso, no trabalho valorizaremos os processos que contra-restaram a lógica do Capital e de sua reprodução, pontuando sua contribuição para o reconhecimento dos direitos sociais, mormente o direito ao trabalho. Procuraremos ainda no presente trabalho resgatar o sentido civilizatório do Direito do Trabalho e sua tarefa de reintronização civilizatória da necessidade de regulação do Capital como imperativo democrático mínimo das sociedades contemporâneas, mais precisamente no Brasil. O Direito do Trabalho que tem como precípua finalidade, “a melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na ordem socioeconômica”, buscando a igualdade substancial5 entre as partes envolvidas nas relações contratuais de trabalho, para exercer seu caráter “civilizatório e democrático”, também tem sofrido ataques do próprio sistema que o criou (DELGADO, 2008, p. 58). Por fim, gostaríamos de destacar que este trabalho visa primeiramente chamar a atenção para uma realidade normativa constitucional pátria que existe para garantir a dignidade da pessoa humana, e para que esta, quer na condição de trabalhador, ou mesmo desempregado, possa encontrar os meios necessários para o seu bem-estar e de sua família, além do seu pleno desenvolvimento pessoal e profissional. Indica ainda, da parte do poder judiciário e da sociedade, a necessidade da avaliação e do controle das decisões administrativas relativas às políticas públicas, da aplicação de princípios e normas de direito internacional do trabalho e de direitos humanos, além da participação popular direta, como meio de efetivação dos direitos fundamentais sociais. Aqui, a pesquisa bibliográfica se revelará essencial para o entendimento de como pode se dar a efetivação dos direitos sociais, em especial os trabalhistas, apoiada nas fontes de direito constitucional, trabalhista, civil e internacional, além das convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 

Alertando sobre a capacidade destrutiva do capital, Mészáros (2009, p. 111) afirma, em relação à busca imediata de uma igualdade real, que: “O que é radicalmente novo em nossas condições de existência na atual época histórica é que não pode haver êxito duradouro na luta pela sobrevivência da humanidade sem o estabelecimento de uma ordem social baseada em uma igualdade substantiva como princípio orientador central da esfera da produção e distribuição.” 5

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1 GLOBALIZAÇÃO, “MODERNIDADE PERIFÉRICA” E O “NÃO LUGAR” DO TRABALHO NO BRASIL A globalização capitalista em sua atual fase de financeirização acelerada vem dando passos acelerados para a redução unificadora do mundo, de suas culturas, identidades nacionais e mundividências éticas ou antropológicas. Em nome de um universalismo questionável, impõem-se sub-repticiamente os particularismos e os ressaibos europeus ao resto do mundo, como é tradição desde os pródromos do colonialismo no século XVI. Globalização capitalista que na sua unilateralidade econômica contrapõem-se a globalização dos direitos fundamentais e da expansão progressista da cidadania. Daí alguns autores como Octávio Ianni denominarem tal globalização hegemônica como globalismo, tal sua vocação particularista, negadora das bases cosmo-éticas dos ideais emancipatórios da modernidade iluminista. A bem da verdade, a globalização capitalista de feição neoliberal aprofunda os vínculos de subalternidade entre centro e periferia do sistema, mantendo nossa sociedade como dependente no plano econômico de suas determinações estruturais. A dinâmica de fora-para-dentro já flagrada por Caio Prado Júnior figura como uma das características mais evidentes do nosso desenvolvimento, onde voltamo-nos para as necessidades estruturais do mercado externo, impostas e continuamente repostas pela Divisão Internacional do Trabalho. As malhas estreitas do processo de incorporação interno da sociedade civil no Brasil em decorrência da excessiva e brutal concentração de terra em torno dos latifúndios, associado ao atavismo escravista que cinzelou os horizontes da dominação burguesa interna foram os responsáveis pela secundarização, quando não a refutação peremptória do lugar do trabalho em nosso país. O que definiu os limites dos ideais de desenvolvimento no Brasil, sempre desejado como modo de vida excludente das maiorias, tendo como destinatário as minorias proprietárias. Afinal de contas, o trabalho em nossa história identifica-se como monopólio dos pretos, dos escravos, dos destituídos de humanidade segundo o discurso liberal-elitista da época, infelizmente, atualizado em nossos tempos. O trabalho sempre foi encarado por nossas elites como algo de pouca relevância, feito por gente inferior, principalmente quando esse trabalho era produzido manualmente. Daí a dificuldade, tantas vezes observada de fazer valer o tirocínio das fórmulas clássicas do pensamento liberal, fundadas nas premissas dos valores do livre desenvolvimento da personalidade individual, da autonomia entre “público” e “privado”, da generalização da liberdade de mercado fundada na ação empreendedorista do empresário , na secularização das instituições, na construção minimamente uniforme da idéia de nacionalidade, etc., entre nós. Apesar de sabermos que também nos países desenvolvidos, do centro capitalista, o escravismo foi utilizado como recurso de maximização dos ganhos do Capital, em que muitos liberais, inclusive Locke, eram sócios de empresas escravistas, pelo menos no aspecto interno, na tessitura das relações sociais internas, o escravismo havia sido removido, cedendo lugar a ética do trabalho, mormente nos países protestantes.

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Neste sentido, o conceito de modernidade como universalização dos fundamentos da igualdade e liberdade burgueses, viabilizados pelo capitalismo central, necessariamente tinha que assumir novas configurações sob a luz dos trópicos, o que atribui validade a teses ou construções teóricas como as propaladas por Jessé de Sousa, ao mencionar a prevalência entre nós do conceito de “modernidade seletiva”, dada a condenação de amplos extratos da sociedade brasileira a marginalidade econômica, cultural e jurídica, formas seletivas de ordenação dos conflitos e de sua regulação que reverberam, inclusive no âmbito jurídico, ao justificar processos de interdição social aos despossuídos, arrazoando teorias hermenêuticas restritivas dos seus direitos fundamentais, que encontram na marginalização ou na pouca valorização do trabalho o esteio maior da justificação das relações de estranhamento entre classe trabalhadora e a formalização precária de seus direitos face à liberdade do mercado, estranhamento duplo, pois os trabalhadores não se sentem incluídos no Estado e em suas instituições, historicamente refratárias a tábua de direitos sociais. A ênfase nos laços personalistas do poder, próprio do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, nos desvela o desprezo dominante devotado a ética do trabalho, bem como, a construção institucional fundado na impessoalidade das relações sociais. A dominância do Capital fundiário e do enriquecimento fácil por intermédio da rede de prebendas e de rendas criado pelo Estado Burguês-Patrimonialista não auxiliaram na gestação de uma cultura favorável ao trabalho, ou mesmo a instigação de uma burguesia autônoma,capaz, de moto próprio, a alavancar um ciclo de investimentos duráveis que fomentasse um amplo mercado interno sustentável. Se examinarmos os avanços obtidos no constitucionalismo nacional, veremos que as conquistas na regulação dos vínculos entre Capital e Trabalho sempre se fizeram de maneira tíbia e que quando feitas gozaram de uma oposição furiosa contra os que a intentaram, como se pode perceber do movimento de desestabilização feita contra o Governo Vargas ou Jango por buscarem remunerar um pouco melhor o trabalhador no bojo do alinhavamento de um projeto político nacional. Mesmo quando da Constituição da República de 88, as conquistas no âmbito do direito trabalhista foram gradativas, “cercadas” pelo ímpeto do Capital transnacional e de seus agentes políticos que sob a alegação da defesa da modernidade, restringiram os direitos sociais e trabalhistas, no intuito de facilitar o ingresso de capitais voláteis em nosso território, capitais transnacionais que passaram a tecer estratégias de ganho de escala no plano mundial em detrimento da capacidade de resposta dos trabalhadores ainda presos aos cânones nacionais das lutas e das identidades corporativas e nacionais. Entretanto, essa identidade nacional não encontrou mais no Estado um elo mediador competente desses conflitos, dado o seu retraimento do seu papel de regulador dos conflitos entre Capital e Trabalho e também de instância formalizadora e objetivante dos direitos positivados, o que levou a um estiolamento da identidade nacional – historicamente recente no Brasil – como resultado da exclusão prática dos trabalhadores do pacto civil que presumidamente legitimaria o Estado nacional. A nação como “plebiscito de todos os dias” como diria Renan, ou como construção imaginária de uma identidade social como diria Benedict Anderson passa a ser sentida Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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como algo cada vez mais abstrato, remoto. Os vincos transnacionais de classe da alta burguesia, notadamente no Brasil, onde ela sempre foi caudatária de visão externalizada do país e de sua vocação, parece aprofundar-se. As pressões desorganizadoras da economia neoliberal arrebentam a função homeostática da Constituição e do ideal regulativo do Estado de Direito e fraturam a sociabilidade interna da nação brasileira. Aliás, já José Bonifácio havia depreendido que o principal óbice para a definição de um Estado-Nação no Brasil defluia da fragilidade da identidade do povo, haja vista, que parcelas ponderáveis desse povo não o era considerado como tal, devido a exclusão dos trabalhadores, então escravos, da condição de sua cidadania. O reconhecimento da relevância do trabalho como pressuposto legitimador do ideal de direito na sociedade burguesa e da igualdade jurídico-formal que a todos integra, trouxe consigo uma subordinação do conceito de direito no Brasil a noção de privilégio. Privilégio que dimanava dos vincos íntimos que o estamento burguês estabelecia com o Estado e com sua burocracia territorialista, e nunca da ação subjetiva criadora do trabalho empreendedor do burguês. A globalização neoliberal em sua feição liberista ou neoliberal vem “completar o serviço” já iniciado anteriormente quando do desenho das instituições periféricas nacionais, ao radicalizar a refutação da importância do espaço nacional, da eficácia dos direitos fundamentais e dos laivos democráticos que definem o seu contorno. A “dissolvição” do constitucionalismo como práxis civilizatória e informadora do compromisso relativo entre classes dominantes e dominadas na modernidade faz-se sentir pronunciadamente, ao buscar de todas as formas a informalização crescente do trabalho, a precarização de seus direitos e a criminalização simbólica de suas lutas emancipatórias.6 A pulverização do trabalho, o avanço do setor de serviços e migração sem peias do Capital industrial subjugado pelo ritmo frenético do Capital financeiro e de seus ciclos de autovalorização por meio de processos especulativos parece enfraquecer de maneira definitiva a força dos trabalhadores e do reconhecimento jurídico de seu estatuto como direito, aspiração subjetiva a ser tutelada, no máximo, replica passivamente os dísticos e a retórica dos direitos fundamentais, sem dotá-los de concretude prática na vida social, notadamente para as maiorias da nacionalidade, além de preservar padrões pré-modernos de exclusão. Na verdade, a utilidade litúrgica das fórmulas demo-liberais, constantemente agitadas por inflamados e gongóricos pronunciamentos de constitucionalistas ligados a elite plutocrática, restringe-se ao mero intuito de desarmar a latência das demandas materiais “dos de baixo”, ou, como disse Marcelo Neves, pela necessidade de firmar pactos dilató-

Na busca de esclarecer a diminuição da participação dos sindicatos na defesa dos direitos dos trabalhadores, Bourdieu lembra que a globalização é também um veículo de propagação dos princípios neoliberais, nefastos ao bem-estar dos trabalhadores: “A política neoliberal contribui também para o enfraquecimento dos sindicatos. A flexibilização e sobretudo a precariedade de um número crescente de assalariados, e a transformação das condições e das normas de trabalho daí resultantes, contribuem para tornar difícil qualquer ação unificada, [...]” (BOURDIEU, 2001, p. 68). E quando ocorre esta ação conjunta, a mesma não mais se insere no contexto da “luta pelo controle social da produção”, mas na substituição do “sindicalismo de classe” pelo “sindicalismo de participação”, conforme alerta Antunes (2008, p. 167): “Participar de tudo [...], desde que não se questione o mercado, a legitimidade do lucro, [...], enfim, os elementos básicos do movente do capital.” 6

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rios face as decisões políticas fundamentais tomados pelo Estado, implicando no processo de constitucionalização semântica, que reflete a dramática e esquizofrênica relação entre retórica em favor dos direitos, especialmente dos direitos trabalhistas, e prática conservadora, retardaria, até mesmo a generalização dos direitos civis às maiorias da sociedade civil, que acarreta o amainamento dos valores democráticos substantivos da liberdade e da igualdade que se tornam sua mera contrafacção em que pese a manutenção litúrgica das eleições e do exercício de uma representação cada vez mais distante do povo real, sociológico e político. 3 A FORMAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO: DO INDIVIDUALISMO AO SOLIDARISMO As consequências por mais de dois séculos de aplicação do sistema de supremacia do capital sobre o trabalho foi o aviltamento da condição humana, a degradação da vida do trabalhador e de seus familiares, o que em muitos casos trouxe como efeito também, a revolta social, no entanto, a questão do trabalho e de sua dignidade refulge às primeiras lutas dos trabalhadores ainda na pré-modernidade corporativa medieval quando as primeiras entidades representativas de trabalhadores já demandavam melhores condições de vida. A influência da Igreja Católica, através da sua Doutrina Social, foi marcante para o debate da questão trabalhista, não obstante o caráter tutelar que ela exercia sobre os mesmos e de sua vinculação estrutural aos interesses dos grandes proprietários de terra e aristocratas; porém, ao buscar mediar os conflitos em nome do apascentamento da ordem social, a Igreja intentava impedir a desestabilização do seu próprio poderio junto às instituições vigentes. Através da Encíclica Rerum Novarum, datada de 1891, relativa à condição dos operários e dos salários, Leão XIII (2005, p. 43) afirmava que: “Trabalhar é exercer a atividade com o fim de procurar o que requerem as diversas necessidades do homem, mas principalmente o sustento da própria vida”. O direito do trabalho começa a se delinear a partir das ofensas que a classe trabalhadora sofreu no contexto liberal de produção na segunda metade do século XIX, onde os danos a sua integridade física, psíquica e moral tomaram proporções gigantescas, incluindo àqueles causados a sua própria vida. Aqui também se faz marcar a presença forte de Marx e Engels7 com sua interpretação e práxis prenhes de um profundo humanismo, conclamando os trabalhadores à luta de classes como meio de superar o domínio do capital sobre o trabalho e a estabelecer uma nova ordem social, política e econômica. Não foi sem lutas dos movimentos operários que a proteção dos direitos trabalhistas se deu no corpo do ordenamento jurídico pátrio, com a criação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e posteriores inovações constitucionais e infraconstitucionais para Lembram tais autores que a ascensão da classe burguesa sobre a “dominação da aristocracia” rompeu não apenas com as idéias dominantes vigentes, mas com toda uma estrutura política, econômica e jurídica, necessário para implementar uma nova ordem. Assim também, deveria se dar para a libertação da classe trabalhadora, agora oprimida pela dominação burguesa: “[...] uma negação mais resoluta e mais radical das condições até então existentes.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 49). Remete-se aqui ainda, ao pensamento de Gramsci sobre a necessidade de um grupo social, antes de ascender ao poder, conquistar a hegemonia popular: “Un grupo social puede e incluso debe ser dirigente aun antes de conquistar el poder gubernamental [...]” (GRAMSCI apud CAMPIONE, 2007, p. 77). “Um grupo social pode e inclusive, deve, ser dirigente, ainda antes de conquistar o poder de governo.” (tradução livre). 7

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garantir e expandir o âmbito protecionista das relações trabalhistas, culminando na Carta Magna de 1988, que no dizer de Arruda (1988, p. 37) vinculou “a interpretação das normas hierarquicamente inferiores e até mesmo a interpretação das próprias normas constitucionais ao crivo da função social.” Direitos sociais, em uma apertada síntese, são os direitos humanos de segunda 8 geração e seu surgimento coincide com a mudança do Estado Liberal em Estado Social, através do qual emergem as políticas do bem-estar social, manifestadas, ao longo da história, de diversas formas com características diferenciadas de acordo com o regime de welfare state adotado em cada região ou país (FIORI, 2008). Alegam Silva et al. (2007, p. 18) que: “Os diversos problemas sociais surgidos no período da Revolução Industrial, no entanto, vão exigir que os homens do direito busquem respostas diversas no ordenamento jurídico.” Assim, os Direitos Sociais, apesar de sua abrangência além dos limites dos Direitos Trabalhistas, têm nestes, desde o início da evolução do Estado Liberal, sua mais rica fonte e habitat de aplicabilidade prática. E aqui, é de fundamental importância para a classe trabalhadora em nível local e internacional, a aplicação das Convenções fundamentais da Organização Internacional do Trabalho (OIT)9, inclusive ratificadas pelo Brasil, e que servem de balizas para a construção de uma normatividade protetora adequada para o trabalhador e mesmo de instrumento interpretativo das situações concretas, especialmente para garantir o fortalecimento de um movimento contra-hegemônico de âmbito global para fazer frente à supremacia da ordem do capital. Nessa realidade de mudanças do paradigma individualista para o social, surgem os princípios sociais que transcendem a esfera trabalhista e passam a nortear tanto a essência da elaboração normativa como a aplicação prática de regulação e solução dos conflitos humanos na ordem do dia-a-dia. Entre estes princípios, eivados pela marca da sociabilidade, encontram-se o da dignidade humana e o da solidariedade.10 A preocupação com o bem-estar11 do homem ressurge de forma renovada. Não o homem considerado em si mesmo, do ponto de vista liberal, como indivíduo autônomo, mas o homem relacional, aquele que reconhece a necessidade de sua inserção dentro de uma comunidade e que conduz sua vida de forma responsável e em cooperação solidária

Entenda-se aqui o termo “[...] geração de direitos” não no sentido de sucessividade, isto é, de substituição dos novos pelos anteriores, mas de “evolução.” (SILVA, 2004, p. 35). 9 Estas convenções, designadas na declaração da OIT de 1998 sobre os princípios e direitos fundamentais do trabalho, “[...] é uma expressão do compromisso dos governos, dos empregadores e dos trabalhadores, para defender os valores humanos básicos – os valores que são vitais para nossa vida social e econômica.” (tradução livre). 10 Solidariedade não reduzida a sua dimensão de caridade, como conduta espontânea e benevolente simplesmente, mas no seu aspecto jurídico, reconhecida como princípio constitucional, como obrigação e finalidade do Estado brasileiro, como fundamento para as decisões de elaboração e efetivação de políticas públicas, tal como pressupõe o disposto no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal. Desta forma, afasta-se também a idéia de solidariedade manipulada pelo neoliberalismo como “tática de desmonte do Estado”, segundo Silva (2001, p. 65). 11 Diante da capacidade de resignificação que o projeto globalizante neoliberal consegue impor a conceitos e institutos caros à humanidade, deve-se procurar afastar com cuidado estes laços conceituais que surgem ao longo desta investigação. Em relação ao “bem-estar”, aqui, remete-se ao “mito da igualdade” e à “revolução do bem-estar” como alertado por Baudrillard (2010, p. 49-50). 8

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para a salvação de todos, isto é, para a libertação de toda forma de opressão que minimiza ou extirpa sua realização plena como ser humano. 4 A NORMATIVIDADE CONSTITUCIONAL, OS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E OS INSTRUMENTOS PARA SUA EFETIVAÇÃO NO ÂMBITO TRABALHISTA    O preâmbulo da Constituição vigente, que é considerado chave importante para a leitura e entendimento das intenções do legislador que se manifesta no próprio texto constitucional, já revela a força dos objetivos, dos fundamentos e dos princípios constitucionais, ao assegurar os direitos sociais, o bem-estar e “a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna.” (BRASIL, 2008a, p. 21). A partir da Constituição Federal de 1988, e com o advento do Código Civil de 2002, como fruto de transformações políticas, econômicas e sociais, o individualismo contratual cedeu sob a proteção da sociabilidade, permitindo que o interesse da coletividade prevalecesse sobre o particular. Dessa forma, como afirma Teizen Júnior (2004, p. 165): “A função social do contrato, reconhecida na nova teoria contratual, o transforma de simples instrumento jurídico para o movimento de riquezas no mercado em instrumento jurídico para a realização dos legítimos interesses da coletividade.” Assim, a Carta Magna brasileira estabelece entre os seus objetivos, seus fundamentos e seus princípios todo um alicerce para a construção da vida social, da qual a dimensão do trabalho é sua mais relevante expressão, como meio de valorizar a dignidade do ser humano. Dessa feita, logo na abertura dos dispositivos constitucionais, a Carta Magna, no seu primeiro artigo, onde aponta os fundamentos do Estado Democrático de Direito, expressão da República Federativa do Brasil, diz que entre seus princípios fundamentais destacam-se o da dignidade humana (inciso terceiro) e o do valor social do trabalho (inciso quarto) (BRASIL, 2008c, p. 21). Distinguiu ainda, no artigo terceiro, entre os objetivos fundamentais da República: I – a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; [...]; IV – a promoção do bem de todos sem qualquer espécie de preconceito. Elenca ainda, no Título II, que se refere aos Direitos e Garantias Fundamentais, nos artigos quinto, sexto e sétimo, um rol de direitos sociais, especialmente os de natureza trabalhista. De forma incisiva, declara ainda, no artigo 170, inserido no Título VII, referente à Ordem Econômica e Financeira, que: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; [...] (BRASIL, 2008c, p. 118).  

Para alinhavar os dispositivos acima, indica no seu artigo 193, integrante do Título VIII, relativo à Ordem Social que: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça social.” (BRASIL, 2008c, p. 125).

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Diante dessa força normativa constitucional, fundamental para a leitura, interpretação e aplicação de todo o direito infraconstitucional, especialmente o civil e trabalhista, de interesse mais próximo deste trabalho, pode-se concluir que o Brasil, do ponto de vista normativo, encontra-se em consonância com os quatro eixos centrais da Agenda do Trabalho Decente, proposta pela OIT (2008), a saber: A criação de emprego de qualidade para homens e mulheres, a extensão da proteção social, a promoção e fortalecimento do diálogo social e o respeito aos princípios e direitos fundamentais no trabalho, expressos na Declaração dos Direitos e Princípios Fundamentais no Trabalho da OIT, adotada em 1988.  

Desse modo, a busca da efetivação dos direitos fundamentais sociais no âmbito laboral pode se dar pela interpretação e aplicação dos dispositivos constitucionais em conformidade com os fundamentos e objetivos delineados para o Estado brasileiro, de acordo com a força da sua lei máxima, mas também se fazem necessárias, nesse contexto democrático, a reorganização e a participação dos movimentos populares12 e a aplicação da normatividade internacional13 específica garantida pela Organização Internacional do Trabalho, como órgão internacionalmente legitimado de integração global das políticas de proteção da dignidade do trabalhador. Faz-se necessário então, que as decisões de ordem econômica deixem de se fundamentar somente em aspectos econômico-financeiros, que se estabeleça a devida ordem hierárquica de princípios para que as mesmas sejam justas e atendam os objetivos do Estado Democrático de Direito, ou dito de uma forma mais incisiva, na fala de Grau (2006, p. 47): Assim, os programas de governo deste e daquele Presidentes da República é que devem ser adaptados à Constituição, e não o inverso. A incompatibilidade entre qualquer deles e o modelo econômico por ela definido consubstancia situação de inconstitucionalidade, institucional e/ou normativa.  

Diante de uma situação de crise econômica ou mesmo política, a normatividade constitucional e infraconstitucional, incluindo o arcabouço principiológico que lhes é próprio, além mesmo dos tratados e convenções internacionais, devem orientar os responsáveis pelas decisões para amenizar ou solucionar tais problemas, tendo sempre como balizas os direitos sociais, em especial os que se referem à esfera trabalhista.

Diante da heterogeneidade própria dos movimentos sociais, Gonçalves (2010, p. 242) chama a atenção para o aspecto positivo desta diversidade social, como força combativa do status quo vigente, mas alerta: “Contudo, se a diversidade não estiver apoiada em um projeto emancipatório e concretizador da dignidade humana, capaz de mobilizar mais solidariamente os movimentos populares, a concretização constitucional será uma tarefa secundária e comparada aos interesses específicos de cada grupo.” 13 A Emenda Constitucional 45 de 30/12/2004 atribuiu papel relevante à normatividade internacional acolhida pelo ordenamento pátrio, e introduziu no texto constitucional, o parágrafo 3º no art. 5º, nos termos: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” 12

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5 CONCLUSÃO Mesmo que o Estado brasileiro esteja inserido em um cenário local e mundial neoliberal de supervalorização explícita da primazia do capital, sua Carta Magna vincula todos os poderes do Estado, à efetivação dos direitos fundamentais, inclusive os de cunho social-trabalhista, o que se dá especialmente através dos programas de políticas públicas, permitindo assim, a exigibilidade por parte da sociedade do cumprimento destas obrigações constitucionais. Entretanto, muito lucidamente, lembra-nos Gonçalves (2010, p. 167): Desse modo, a linguagem constitucional expressa no Texto de 1988, embora normativa e, bem por isso, vinculante para os poderes públicos, não traz um único padrão de políticas sociais, mas contempla sobretudo um conjunto de princípios cuja eficácia jurídica depende de certos condicionantes fáticos. Assim, não basta que a Constituição tenha contemplado, por exemplo, a dignidade humana, a eliminação das desigualdade regionais e sociais, os valores sociais do trabalho e da propriedade privada para que tais princípios, como em um toque de Midas, subvertam os severos problemas sociais do país [...]  

E é a mesma autora que nos alerta sobre o caminho para a superação destes desafios, quando afirma que “a participação da sociedade civil na preservação dos potenciais de luta e de esperança torna-se indispensável, sob pena de se substituir o comodismo pelo autoritarismo quer do mercado, quer do próprio Estado.” (GONÇALVES, 2010, p. 78). Assim, a concretização do conteúdo constitucional e nele, da efetivação dos direitos constitucionais sociais, dá-se principalmente por meio de atos de vontade que implicam na conscientização individual de cada cidadão e na geral, quer da comunidade como um todo, quer especificamente na daqueles que detém o poder estatal, como bem afirma Hesse (1991, p. 19-20): Essa vontade tem conseqüência porque a vida do Estado, tal como a vida humana, não está abandonada à ação surda de forças aparentemente inelutáveis. Ao contrário todos nós estamos permanentemente convocados a dar conformação à vida do Estado, assumindo e resolvendo as tarefas por ele colocadas.  

Dessa forma, parte-se do princípio de que o valor da vida humana se sobrepõe a qualquer outro bem; e aqui, a concepção de vida, mesmo envolvendo outras dimensões, como a espiritual, psicológica e afetiva, reconhece também que o ser humano está inserido em uma realidade material que tem que ser utilizada como instrumento para o seu pleno desenvolvimento, sem receio de um reducionismo antropológico. Para que se realize uma consciente interpretação da realidade das condições da vida humana no mundo atual, quer seja das questões referentes à flexibilização e precarização do mundo do trabalho, frente às estratégias neoliberais globalizantes, quer da necessidade de uma nova visão crítica da efetividade do direito diante dos anseios sociais, deturpadas muitas vezes, pelas imposições do sistema vigente, faz-se necessário o enfrentamento destas questões sob uma nova visão, através da qual, esteja o ser humano no plano principal, tal qual observa Bourdieu (2009, p. 49): “Trata-se de produzir, senão ‘um homem novo’, pelo menos, ‘um novo olhar’, um olhar sociológico. E isso não é possível Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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sem uma verdadeira conversão, uma metanoia, uma revolução mental, uma mudança de toda a visão do mundo social.” Sob outro aspecto, a partir de uma leitura marxiana da devastação que o sistema do capital tem promovido nas relações inter-pessoais, quer particulares, quer profissionais, pode-se constatar uma violação em escala mundial dos direitos trabalhistas e de como a superação deste momento difícil experienciado por todos os trabalhadores, pode ser alcançada pela efetividade dos direitos sociais e pela aplicação dos princípios constitucionais fundamentais, em especial, o da dignidade humana e o da solidariedade, cuja introspecção e práxis podem ser fontes de renovação dos movimentos e lutas populares, reais articuladores de mudanças sociais e jurídicas. Entre diversos caminhos para a efetivação dos direitos sociais no âmbito trabalhista, esta pesquisa faz a opção pela supremacia da valorização da dignidade humana, como chave da elaboração, aplicação e interpretação da normatividade jurídica, pela aceitação de que os direitos sociais são direitos constitucionais subjetivos14, pela consagração da doutrina da efetividade15, em sintonia com a proposta de Barroso (2010, p. 217):   Introduzir de forma radical a juridicidade no direito constitucional brasileiro e substituir a linguagem retórica por um discurso substantivo, objetivo, comprometido com a realização dos valores e dos direitos contemplados na Constituição [...] O Direito existe para realizar-se e a verificação do cumprimento ou não de sua função social não pode ser estranha ao seu objeto de interesse e de estudo.  

É preciso que sejam continuamente avaliadas as atividades dos diversos poderes do Estado e questionadas quanto a sua coerência em relação ao espírito constitucional protetor dos direitos dos trabalhadores e de valorização da dignidade da pessoa humana, para que estes sejam concretizados de forma a garantir uma vida plena de sentido às pessoas. Assim como Marx precisou penetrar profundamente no pensamento econômico liberal-capitalista para criticá-lo e buscar alternativas, Flores alerta para a importância do combate da ideologia do capital a partir de uma ideologia própria civilizatória fundamentada na soberania da dignidade humana, como forma de “recuperar o mundo” que tem sido expropriado não apenas em sua atividade produtiva, além do aspecto ambiental, mas de maneira mais grave: na percepção da realidade (FLORES, 2009, p. 6).    REFERÊNCIAS   ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 13. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2008.

Segundo Barroso (2010, p. 51): “Direitos subjetivos constitucionais investem os jurisdicionados no poder de exigir do Estado – ou de outro eventual destinatário da norma constitucional – prestações positivas ou negativas que proporcionem o desfrute dos bens e interesses jurídicos nela consagrados. Tais direitos incluem os individuais, políticos, sociais e coletivos.” 15 A partir das observações de Barroso, esta doutrina foi organizada antes da convocação da Assembléia Constituinte de 1988 “[...] para a consolidação e aprofundamento do processo de democratização do Estado e da sociedade no Brasil”, com o objetivo de atribuir “[...] normatividade plena à Constituição, que passou a ter aplicabilidade direta e imediata.” (BARROSO, 2010, p. 225). 14

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIGNIDADE DO TRABALHO E MULTICULTURALIDADE Rodrigo Espiúca dos Anjos Siqueira*

Resumo O presente artigo busca analisar as implicações da globalização e da terceirização internacional de atividades profissionais entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento. Para tanto, analisa o conceito de dignidade humana, considerada em suas dimensões básica e cultural, discute as implicações do desenvolvimento tecnológico e da globalização no surgimento das novas relações intersubjetivas e de trabalho, e, por fim, analisa as questões relativas à realização da dignidade humana através da melhoria de condições nos países desenvolvidos, considerada a multiculturalidade. Palavras-chave: Globalização. Multiculturalidade. Dignidade no trabalho. Considerations on work dignity and multiculturalism Abstract The present paper aims to analyze the implications of globalization and international out-sourcing of professional activities between developed and developing countries. In order to achieve its goals, this article analyzes the concept of human dignity, considered in its basic and cultural dimensions, discusses the implications of technological development and globalization on the new inter-subjective and labor relations, and ends by analyzing related issues of the realization of human dignity through the improvement of local conditions in the developing countries considering multiculturalism. Keywords: Globalization. Multiculturalism. Dignity at Work. 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem por finalidade analisar os impactos da globalização e do desenvolvimento tecnológico nas relações de trabalho, especificamente nas questões relativas à terceirização internacional de serviços profissionais. Busca também analisar a concretização da dignidade humana no surgimento das novas relações de trabalho internacionalizado e suas implicações na condição pessoal e familiar dos detentores dos novos postos de trabalho. Em sua primeira parte, irá analisar o conceito de dignidade humana e suas duas dimensões: a básica e a cultural. Apresentará, portanto, a dignidade humana considerada como um limite à coisificação do indivíduo e também como expressão cultural válida e necessária ao exercício desta mesma dignidade em sua plenitude. ____________ * Especialista em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Brasília; Especialista em Advocacia Pública pela Universidade Luterana do Brasil; Mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito na Universidade do Oeste de Santa Catarina; [email protected]

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A segunda parte analisará o impacto da globalização e do desenvolvimento tecnológico, assim como da veloz e contínua transformação dos meios de comunicação, no surgimento de novas relações de trabalho, na realocação de empregos para os países em desenvolvimento. Em sua terceira parte, abordará casos concretos de terceirização internacional de trabalho profissional, analisando dados sobre evolução das taxas de empregabilidade, bem como, as causas e efeitos desta transferência de vagas de emprego, na condição pessoal dos profissionais e na localidade que recebe a terceirização. 2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E SUAS DIMENSÕES BÁSICA E CULTURAL Para concluir a tarefa a que se propõe este ensaio, necessário tecer algumas considerações sobre o conceito de dignidade da pessoa humana, entendida como a característica individual e intrínseca a cada pessoa, que o qualifica como ser humano. Qualidade esta que é irrenunciável e inalienável, pois é parte imprescindível da constituição mesma da pessoa. A dignidade é o atributo próprio de cada ser humano sendo inconcebível a sua concessão através de normas ou a sua cassação, qualquer que seja a situação ou a gravidade dos atos cometidos pelo sujeito, devendo ser reconhecida e exercida em um contexto social de relações intersubjetivas. Nesse sentido, acata-se a lição de Sarlet (2009, p. 20-25), que afirma que a dignidade humana para realizar-se inteiramente deve ser considerada como uma interação entre deveres e direitos em correlação uns com os outros e que esta mesma dignidade deve ser vivenciada nas experiências concretas de cada um, por isso mesmo que a identificação de situações concretas de violação é instrumento útil para a construção de uma definição de dignidade humana em cada sociedade. É nesta interação entre os sujeitos que se realiza ou é violada a dignidade humana. Nas relações intersubjetivas onde é respeitado o indivíduo como sujeito de direitos e lhe é reconhecido o direito à autodeterminação, em sentido amplo, é que se vislumbra a plena realização desta dignidade e permite o desenvolvimento do ser humano em liberdade. Da mesma forma quando, nas suas relações sociais, a pessoa vê tolhida sua liberdade ou tem violentada ou ameaçada sua integridade física ou moral, é que se verificam as violações da dignidade intrínseca a cada um. Mas esta concepção de dignidade não deve ser entendida de maneira restritiva, estreitando seu conceito a limites culturais determinados e, assim, mitigando sua amplitude que deve abarcar todas as culturas e sociedades, sendo o seu reconhecimento contextualizado uma maneira válida e necessária para o respeito à diversidade cultural. Nas palavras de Schweidler (2001, p. 11, tradução nossa), a dignidade humana pode ser compreendida como uma condição, um estado, e não um merecimento, e pertence, portanto, ao projeto inacabado de se tornar verdadeiramente humanos, de forma que sua tarefa seja ao mesmo tempo uma demanda e uma realização. A dignidade, desta forma, para ver respeitada a sua amplitude e também sua especificidade, deve ser concebida em duas dimensões: uma básica e outra cultural, ou culturalmente dependente.

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Considerações sobre a dignidade do trabalho e multiculturalidade

A dimensão básica da dignidade da pessoa humana é aquela que compreende direitos elementares do ser humano e que, se respeitados, vão elidir qualquer tratamento que transporte o indivíduo à esfera dos objetos, em outras palavras, o respeito à dimensão básica da dignidade da pessoa humana impede que esta pessoa seja tratada como coisa e passe a servir ao arbítrio de outrem sem que sua vontade e autodeterminação sejam consideradas. O sujeito que vir respeitados os seus direitos elementares à vida, à integridade física e moral, e à liberdade, vê, na verdade, o reconhecimento da dimensão nuclear, ou básica, de sua dignidade. Para Kant (2009), a dignidade é o valor inerente a cada pessoa e, para o qual não existe equivalente. Assim é, pois, se houvesse outro valor que pudesse ser equiparado à dignidade da pessoa, esta estaria na condição de coisa, já que, nesta hipótese, poderia ser substituída por outra que lhe fosse equivalente. A pessoa humana, neste sentido, é única, especial, e deve ser tratada como tal. Considerando que tem o indivíduo valor inerente, intrínseco, insubstituível, e não equivalente a nenhum outro, a que se chama dignidade, não pode este indivíduo encontrar-se em situação de submissão aos desígnios de outrem, servindo exclusivamente ao arbítrio deste, a despeito de sua vontade e como se mero objeto fosse, sem que seja violada sua dignidade. No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade. (KANT, 2009, p. 82).

Nesta linha de pensamento, dignidade é o elemento que diferencia o ser humano dos outros seres, garantindo-lhe um lugar especial, um atributo pessoal e intransferível, uma distinção de tal sorte que não pode a pessoa renunciar à sua própria dignidade e nem esta pode ser-lhe atribuída e nem retirada, vez que é característica da pessoa humana, sendo-lhe marca distintiva e insubstituível. Kant (2009, p. 81 e ss.) encontra na autonomia da vontade a fundamentação para o exercício da dignidade. Só quando exerce sua autonomia de discernimento a respeito das regras morais que quer obedecer é que o ser humano está no pleno exercício de sua dignidade, pois, escolhe livre e individualmente, os valores a que deseja seguir. Assim, caso sejam impostos ao indivíduo normas e padrões éticos haverá violação de sua dignidade. Dignidade humana, então, está intimamente ligada à liberdade de escolha das normas morais e valores com os quais um indivíduo deseja comprometer-se, assim como à qualidade inerente do ser humano que o qualifica como tal e que não encontra equivalente em nenhum outro valor, e ainda ao fato de ser cada indivíduo um fim em si mesmo, um sujeito de direitos, que não pode se encontrar submetido aos caprichos de outros indivíduos ou grupos sociais sem que esta situação se configure em violação da dignidade humana. À luz de tudo até agora exposto, pode-se afirmar que sempre que uma pessoa não tiver respeitada a sua vontade e encontrar-se sujeita à determinação e satisfação dos objetivos de outro indivíduo ou de um grupo social, estará, tal indivíduo reduzido à condição de objeto e, configurada uma violação à sua dignidade.

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Desta forma, pode-se entender a dimensão básica da dignidade da pessoa humana como limite à coisificação do indivíduo, impedindo a redução de seu status de sujeito de direitos (BAEZ, 2011, p. 35). A dimensão básica da dignidade é, pois, o núcleo de direitos mais elementares do ser humano que o qualificam como tal e que, por isso, deve ser respeitada em qualquer contexto cultural, sendo independente das características pessoais de cada indivíduo, isto é, do gênero, credo, raça, cultura ou origem étnica ou geográfica, devendo, portanto, ser reconhecida e garantida em todas as culturas conhecidas. A verificação da violação da dimensão básica, conforme Baez (2011, p. 36), ocorre quando uma pessoa deixa de ser fim em si mesma, e sofre redução de seu status de sujeito de direitos, tornando-se objeto da vontade alheia. Essa violação, contudo, se configura em qualquer situação onde o indivíduo seja tratado como objeto, coisa, independendo do ordenamento jurídico da nação onde ocorra tal situação. Enfim, a dimensão básica da dignidade da pessoa humana abarca os mais nucleares direitos inerentes ao ser, sem os quais corre o risco de não existir a pessoa, tal como no direito à vida, e nem se concretiza a existência do indivíduo em desenvolvimento livre, no caso dos direitos à liberdade e à integridade física e moral. No tocante à dimensão cultural, nos moldes propostos por Baez (2011, p. 36), esta é representada quando há a implementação da dimensão básica da dignidade humana, através do exercício dos valores e da ética de uma cultura específica e situada, isto é, a expressão culturalmente vinculada do reconhecimento da dimensão básica, com suas peculiaridades e especificidades, é que deve ser entendida como dimensão cultural da dignidade humana. Desta forma, o exercício da dimensão cultural da dignidade também deve ser entendido como necessário para que haja um pleno reconhecimento da dignidade da pessoa humana, pois permite que o indivíduo ou grupo social expresse suas convicções e conjunto axiológico na promoção dos direitos elementares do ser humano, promovendo a realização da dimensão básica e o respeito à diversidade cultural existente. Assim, poderá o indivíduo desenvolver-se plena e livremente, sendo-lhe permitido expressar a sua cultura, e ao mesmo tempo, ver respeitada a sua dignidade e liberdade. Partindo deste pressuposto, podem-se entender as duas dimensões da dignidade humana como duas faces da mesma moeda. A ausência de uma delas implica em um reconhecimento parcial e insuficiente da dignidade humana, restando, de alguma forma violada esta dignidade, seja pela negação ou violação de direitos elementares, seja pelo impedimento da livre realização de uma expressão cultural válida. Atualmente, em uma sociedade que se encontra suscetível à profunda interação entre culturas por força da crescente e irrefreável globalização, como resultado, também, do desenvolvimento das tecnologias, há o surgimento de novas relações intersubjetivas, até a pouquíssimo tempo, impensáveis. De todas as novas formas de relacionamento humano surgidas nos últimos anos, as que sofrem mutações com mais velocidade, são as resultantes dos avanços tecnológicos e cibernéticos.

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Além do infindável fluxo de informações e das novas interações entre as pessoas, o mundo contemporâneo e globalizado permite que as pessoas transitem com mais facilidade e velocidade entre as diversas culturas e isso acarreta, por vezes, um choque cultural que pode vir a gerar uma violação da dignidade humana, em sua dimensão cultural, pela tentativa de uma sociedade impor à outra seu arcabouço axiológico. Outro perigo para a concretização da dignidade humana é a crescente lógica de consumo imposta pelas grandes corporações ávidas pela expansão do seu alcance no mercado e pela conquista de novos mercados. Essa lógica consumista, por vezes, implica no não reconhecimento de direitos básicos do ser humano, a exemplo dos direitos ao trabalho ou salário dignos. Agora, perfaz-se necessário analisar mais detidamente, as implicações da globalização nas novas relações de trabalho oriundas das interações intersubjetivas e multiculturais no mundo contemporâneo. 3 RELAÇÕES DE TRABALHO E GLOBALIZAÇÃO A origem etimológica da palavra trabalho é o termo latino tripalium, que era utilizado para designar o instrumento composto por três pedaços de madeira usado para infligir punição aos cavalos que não obedeciam aos comandos e impediam o ferreiro de desempenhar o seu trabalho com facilidade. Assim, o verbo tripaliare tinha seu significado no uso do tripalium para punir cavalos desobedientes. Já o vernáculo “labor” deriva do latim e do inglês labor. Além disso, o grego ponos e o alemão arbeit significam esforço, dor e podem também ser usados, a exemplo do inglês e do latim supramencionados, para designar as dores do parto. Desta forma, pode-se afirmar que, quando dos seus primórdios, o trabalho era considerado algo muito penoso e sofrível (SILVA, 2013, p. 4). Atualmente, a definição de trabalho já não atrai tanto a ideia do esforço, do sofrimento, da punição. Tome-se como exemplo a palavra nipônica hataraku, que quer dizer dar conforto ao vizinho através do trabalho (SILVA, 2013, p. 4). Essa expressão permite afirmar que a concepção de trabalho pode variar conforme a cultura que a emprega, possibilitando que um indivíduo ou um grupo de pessoas, inseridos em uma cultura determinada tenham a noção de que certa atividade laboral é valiosa e confere status social desejável, enquanto em outra cultura o mesmo tipo de trabalho pode ser encarado como indesejável e as pessoas que o desempenham sejam tidas como uma classe “inferior” de indivíduos. Essa diversidade cultural da dignidade humana, na qual a relação de trabalho esta inserida, acentua-se no mundo globalizado. Neste aspecto, Teubner (2003, p. 12) afirma que a globalização deve ser percebida não como uma sociedade nacional que gradativa e paulatinamente move-se na direção de integrar-se a uma sociedade mundial estabelecida, mas sim como uma sociedade mundial que é resultado da crescente abrangência da comunicação que ultrapassa barreiras culturais ou geográficas. Para esta visão de globalização, as organizações internas dos Estados-nações nada mais são do que meras expressões localizadas de uma sociedade mundial.

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A visão de Bauman (1999, p. 20 e ss.) também ressalta o papel da comunicação na transformação da sociedade contemporânea em uma sociedade globalizada. Afirma o sociólogo que a mobilidade resultado da criação de novos meios de comunicação, permitindo que a informação viaje de forma independente do seu portador físico ou do objeto sobre o qual informa, isto é, o desenvolvimento de meios técnicos de comunicação que separam o movimento da informação do movimento de seu portador e objeto, permite que o significado não tenha mais controle total do significante. Assim, a velocidade com que viaja a informação é muito maior do que a dos corpos físicos. E, com o aparecimento da rede mundial de computadores, o próprio conceito de distância se altera, pois, a informação está disponível, instantaneamente em todos os pontos do planeta. Assim, percebe-se que o desenvolvimento dos meios de comunicação e interação social, em especial aqueles surgidos como resultado da inovação tecnológica e cibernética, proporciona aos cidadãos do mundo globalizado o acesso imediato à vasta gama de informação disponível, permitindo que o indivíduo se aproprie com maior facilidade, de conhecimentos que outrora não estariam acessíveis sem esforço. Esta nova configuração de acesso à informação permite que o indivíduo transcenda o mundo das informações, e, munido de maior conhecimento, e melhor capacitado, ultrapasse as fronteiras físicas de sua nacionalidade e busque melhores oportunidades de trabalho em outras nações. Este movimento migratório de mão de obra, muitas vezes gera conflitos culturais entre os migrantes e os cidadãos locais. Outras vezes, o que ocorre é que, apesar da pronta disponibilidade de informação, os migrantes agrupam-se em torno de seus compatriotas formando verdadeiras “bolhas culturais” dentro do país para onde imigraram. Desta falta de integração na cultura local, tome-se como exemplo as “Chinatowns” de Nova Iorque ou Londres, onde há um grande número de imigrantes asiáticos, chineses em sua maioria, mas que vivem restritos aos limites geográficos destas “vilas étnicas” sem que desenvolvam habilidades na língua inglesa ou interajam de maneira mais ativa com os cidadãos locais. Entretanto, a falta de interação com a cultura local, em especial com o ordenamento jurídico, pode gerar situações onde exista a exploração de mão de obra e o desrespeito aos direitos humanos sociais. Para Giddens (2000, p. 43), um dos primeiros autores a conceituar o termo, [...] a globalização, em suma, é uma complexa variedade de processos, movidos por uma mistura de influências políticas e econômicas. Ela está mudando a vida do dia-a-dia, particularmente nos países desenvolvidos, ao mesmo tempo em que está criando novos sistemas e forças transnacionais. Ela é mais que o mero pano de fundo para políticas contemporâneas: tomada como um todo, a globalização está transformando as instituições das sociedades em que vivemos. É com certeza diretamente relevante para a ascensão do “novo individualismo” que figurou com tanto destaque em debates socialdemocráticos.

A distinção entre globalização e universalização consiste, para Bauman (1999, p. 67), em: “[...] a globalização concerne à nova ordem (ou “desordem”, como proposto pelo autor) mundial,” que tem caráter indeterminado, indisciplinado, e não possui um centro, promovendo essa “[...] nova e desconfortável percepção das coisas fugindo ao controle,” 172

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a na ideia de universalização encontramos “[...] a intenção e a determinação de se produzir a ordem [...], uma ordem universal.” Para Teubner (2003, p. 9-14), a globalização não é impulsionada pela política, mas sim pelos movimentos fragmentários da sociedade civil. O fluxo de informações gerado pela interação entre as sociedades é que serve de substrato para o surgimento do mundo globalizado. Da mesma forma, o desenvolvimento de um direito mundial não tem origem nos centros políticos institucionalizados, mas sim nas interações sociais entre os indivíduos e entre os grupos sociais, sendo uma resposta às novas necessidades de regulação. Esse direito mundial constitui-se em uma nova ordem jurídica, “em ordenamentos jurídicos globais sui generis.” E, neste novo ordenamento jurídico global, afirma o autor, que as novas normas globais de direito do trabalho surgem como resultado da atividade sindical e empresarial. A implementação de normas essenciais para o reconhecimento e o exercício dos direitos humanos, bem como para o desenvolvimento econômico, é de responsabilidade de todos e requer, portanto, ampla reforma do paradigma e dos mecanismos de globalização atual. Um modelo de desenvolvimento baseado no reconhecimento da importância das normas econômicas, sociais, culturais e sustentáveis conduz à consolidação dos direitos humanos. Os direitos humanos são os direitos possuídos por todas as pessoas, em virtude da sua humanidade comum, a uma vida de liberdade e dignidade. Eles dão a todas as pessoas direitos morais sobre os comportamentos individuais e a concepção das disposições sociais – e são universais, inalienáveis e indivisíveis. (RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO, 2010, p. 18).

Este processo de consolidação dos direitos humanos, para ser efetivo, deve levar em conta as diferenças culturais e éticas variantes de sociedade para sociedade, garantindo direitos em meio às diversas culturas e novas formas de relação entre as pessoas. Na próxima seção, tratar-se-á de analisar as influências de uma sociedade global e multicultural nas relações de trabalho. 4 A MULTICULTURALIDADE DO MUNDO GLOBALIZADO: TRABALHO INDIGNO PARA UNS E ÚNICA OPORTUNIDADE PARA OUTROS O desenvolvimento de novas tecnologias de informação permite que as fronteiras sejam transpassadas com maior facilidade, em especial as fronteiras do conhecimento. Estando a informação acessível a um maior número de pessoas, e não apenas nos países com alto índice educacional e de desenvolvimento, é crescente a oferta de profissionais qualificados a desempenhar tarefas e atividades com maior complexidade. Essa maior oferta de profissionais permite aos países desenvolvidos a utilização de uma estratégia de redução de custos, a terceirização. Graças à excelência dos meios tecnológicos de transmissão de dados, permite-se a delegação de tarefas técnicas e que demandam formação especializada, aos países em desenvolvimento, possibilitando aos profissionais tomadores da terceirização a dedicação a tarefas mais “nobres” e que exija maior grau de qualificação técnica e profissional. O livro “O Mundo é Plano: Uma breve história do século XXI”, de Thomas L. Friedman, relata uma série de exemplos dos efeitos da migração das vagas de emprego dos Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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países desenvolvidos, especialmente Estados Unidos da América, para os países em desenvolvimento, principalmente China e Índia. Dentre os exemplos elencados no citado livro, destacam-se os dos contadores indianos, dos médicos radiologistas indianos e australianos e dos jornalistas indianos. Ocorre que há uma crescente delegação, em 2005 já eram 400 mil declarações ao ano, das atividades de elaboração das declarações de impostos dos contadores norte-americanos para escritórios de contabilidade na Índia. Nestes casos, a atividade repetitiva de preenchimento de formulários e compilação de dados não exige criatividade por parte do contador, e, por isso, é delegada aos indianos para permitir que os norte-americanos dediquem seu tempo à análise do cenário econômico e a buscar alternativas estratégicas para a administração dos bens dos seus clientes (FRIEDMAN, 2009, p. 20-24). Semelhante caso ocorre com os jornalistas Britânicos e Norte-Americanos de agências de notícias globais. Diante da necessidade de publicar boletins sobre o resultado e desempenho financeiro das empresas com a maior brevidade possível, as agências internacionais de notícias delegam as tarefas de compilação de dados econômicos e financeiros e a elaboração dos boletins a jornalistas situados na Índia, enquanto as tarefas de análise dos dados e boletins são efetuadas por outros jornalistas mais experientes, e com maiores salários, em Londres ou Nova Iorque. Com a publicação do conteúdo básico quase que imediata após a publicação dos resultados pelas empresas, as agências mantêm sua parcela no mercado e permitem que os jornalistas mais competentes ganhem tempo para as análises mais aprofundadas (FRIEDMAN, 2009, 26-29). Até na medicina diagnóstica há delegação da atividade menos complexa. Os médicos radiologistas norte-americanos de hospitais de pequeno e médio porte terceirizam a elaboração de laudos de tomografias aos médicos indianos ou australianos. Os médicos radiologistas nos países em desenvolvimento desempenham as atividades menos complexas de estudar os exames e elaborar laudos sobre suas observações, permitindo aos médicos na América do Norte a economia de tempo e maior dedicação ao diagnóstico e tratamento das doenças identificadas. Mais uma vez, a terceirização permite aos norte-americanos a dedicação às tarefas mais complexas, delegando as atividades mais básicas a outros profissionais localizados a milhares de quilômetros de distância (FRIEDMAN, 2009, p. 24-25). Outro aspecto relevante desta terceirização internacional é a rapidez na conclusão das atividades, pois a tecnologia atual faz possível a um profissional em Nova Iorque digitalizar e enviar uma informação para a Índia no fim do horário comercial no ocidente e receber a tarefa concluída no início do dia útil seguinte, pois enquanto é dia em Bangalore, a noite passa em Manhattan. Isso é um indicativo que, no ritmo em que a terceirização internacional hoje acontece, as tarefas sujeitas à digitalização e decomposição de sua cadeia de valor, e que permitam a delegação das atividades menos complexas, serão transferidas a profissionais localizados nos países em desenvolvimento, como medida de redução de custos e otimização do tempo de trabalho dos profissionais tomadores da terceirização no ocidente. A busca pela redução de custos e otimização do tempo de trabalho dos profissionais mais capacitados e melhor remunerados na América do Norte, aliada à rejeição por parte dos profissionais Norte-americanos às tarefas consideradas menos complexas e 174

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despidas de criatividade, acarretou a criação de novos postos de trabalho nos países em desenvolvimento. Ainda que a grande maioria das vagas criadas sejam relacionadas ao trabalho braçal e repetitivo, isso acarreta, nos países em que são criados os novos empregos, oportunidades de ascensão social e de melhoria de renda às famílias que, de outro modo, não teriam acesso a um padrão de vida melhorado. Neste novo cenário internacional, os profissionais formados na Índia ou China, por exemplo, não mais precisam deixar suas famílias e cidade natal para buscar oportunidades de crescimento pessoal e profissional em países desenvolvidos. A permanência destes profissionais em suas comunidades gera um aumento da circulação da riqueza e permite uma melhoria no padrão de vida para estes e suas famílias. Criam-se possibilidades de melhoria na situação pessoal e regional, em virtude do surgimento dos novos postos de trabalho. Assim, através da melhoria da remuneração e do aumento das oportunidades de emprego, os profissionais dos países em desenvolvimento têm a chance de alcançar melhor padrão de vida e permanecer na comunidade local, o que conduz a um maior exercício da liberdade individual, e, consequentemente, uma maior realização da dignidade humana. Embora ainda não estejam em um patamar de igualdade de salários e crescimento profissional com os seus colegas de países desenvolvidos,1 é notável o aumento das oportunidades de emprego nos países onde acontece a terceirização internacional. Dados do “ILO Research Paper n. 6 – Employment and Economic class in the Developing world”, publicado em Junho de 2013 pela Organização Internacional do Trabalho, indicam que mais de 60% dos trabalhadores de classe média em desenvolvimento estão vinculados ao setor de serviços (KAPSOS; BOURMPOULA, 2013, p. 3-4). Os índices de consumo também aumentam nas sociedades que recebem os postos de trabalho, uma vez que os trabalhadores da classe média em desenvolvimento são uma nascente classe consumidora e, estão se tornando capazes de pagar por bens e serviços não essenciais, incluídos alguns bens de consumo de origem internacional. Além disso, estes trabalhadores conseguem maior acesso a melhores escolas e universidades, bem como, aos serviços médicos de melhor qualidade, do que as classes trabalhadoras com menor receita (KAPSOS; BOURMPOULA, 2013, p. 7). Cinco anos após a crise financeira global ter iniciado, os índices de pessoas empregadas nos países em desenvolvimento apontam para uma maior e mais ágil recuperação nas economias emergentes e em desenvolvimento do que na maioria das economias desenvolvidas. De acordo com o Instituto Internacional de Estudos sobre o Trabalho, os índices de emprego, ou seja, o número de pessoas em idade produtiva que estão empregadas, já superou os índices pré-crise em 30% dos países analisados; enquanto que em 37% dos países estes índices aumentaram desde o início da crise mundial, mas não o suficiente para superar os índices pré-crise; e, em 33% dos países os índices continuam a declinar.

A Organização Internacional do Trabalho define que as famílias residentes nos países em desenvolvimento, cujo consumo diário per capita não seja menor do que US$4 (quatro dólares americanos) e nem exceda US$13 (treze dólares norte-americanos), estão classificadas como trabalhadores de classe média em desenvolvimento, embora o limite máximo de US$13 corresponda com a linha da pobreza nos Estados Unidos da América em 2005. Isso indica que a referida classe média em desenvolvimento seria considerada pobre em termos mundiais absolutos, mas que, em seu contexto local, está em situação mais confortável e em nível acima das demais classes trabalhadoras (KAPSOS; BOURMPOULA, 2013, p. 3-4). 1

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A previsão, segundo as tendências atuais, de que os índices de pessoas empregadas vão superar as marcas pré-crise, nos países em desenvolvimento, no ano de 2015 e nos países desenvolvidos essa marca será superada somente após o ano de 2017 (INTERNATIONAL LABOUR OFFICE, 2013, p. 1). Portanto, pode-se concluir que a migração de empregos para zonas subdesenvolvidas do planeta pode ser encarada como positiva para os profissionais dos países em desenvolvimento, que poderão alcançar melhores patamares de vida e realização profissional. Também os índices de consumo melhoram em função dos salários mais altos pagos às novas vagas de emprego. 5 CONCLUSÃO As novas tecnologias de comunicação alteraram as relações intersubjetivas e provocaram uma revolução no conhecimento humano, proporcionando o surgimento de uma sociedade global, onde as normas são um reflexo da interação humana e permitem uma gama variada de encontros e desencontros entre os atores sociais do novo mundo internacionalizado. Estas relações intersubjetivas também influenciam as relações de trabalho, dando surgimento a novos modelos de relações trabalhistas. As novas relações sociais e trabalhistas oriundas do avanço tecnológico e da expansão das tecnologias de comunicação e transmissão da informação permitem a inserção de novas camadas sociais no mercado de trabalho, ampliando o alcance e permitindo que profissionais que outrora emigravam, na busca de melhores condições profissionais, possam permanecer em suas regiões geográficas de origem e ao lado de suas famílias, inseridos em seu contexto cultural. Quando um determinado setor social no mundo desenvolvido resolve que certas tarefas não devem mais ser desempenhadas por seus cidadãos, isso permite que em outras partes do mundo em desenvolvimento, os profissionais passem a desempenhar tais tarefas, e percebam melhor remuneração, desencadeando um processo de crescimento da economia local e desenvolvimento pessoal dos novos contratados e de suas famílias. Essa nova realidade do mundo do trabalho contribui para a realização da dignidade humana para profissionais e suas famílias, ao mesmo tempo em que permite o desenvolvimento das economias locais ao passo que atende às demandas por terceirização da prestação de serviços dos países desenvolvidos, bem como permite o aumento do consumo de produtos locais e internacionais. Por fim, quando um profissional tem a oportunidade de empregar suas habilidades e competências no exercício de sua profissão, mesmo que o faça em tarefas rejeitadas por colegas de outros países que preferem dedicar-se a atividades mais complexas e mais rentáveis, tal profissional está realizando um direito fundamental ao trabalho, e no exercício deste direito, torna-se, cada vez mais, capaz de prover o sustento de seus familiares e de incrementar seu padrão de vida. Esta melhoria no padrão social de uma pessoa pode ser encarada como exercício de sua dignidade humana, vez que implica em melhores condições pessoais de autodeterminação de sua vontade e liberdade individual de escolhas, além de melhorias na saúde e educação.

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A JORNADA NORMAL DE TRABALHO NO DIREITO BRASILEIRO EM BREVE COMPARAÇÃO ÀS NORMAS INTERNACIONAIS Gilberto Stürmer* Juliano Gianechini Fernandes**

Resumo O presente texto busca analisar o conceito e evolução da jornada normal de trabalho no Brasil, especificamente no que diz respeito à sua limitação e horário padrão de labor nos contratos celetistas. Para tanto, serão analisadas relações conceituais e fundamentos de ordem social para a imposição do referido limite de horário. Após, serão realizadas algumas distinções sobre o tema em relação a outros tópicos do direito do trabalho, quais os fatores que compõem essa jornada, seus critérios básicos, especiais e o tronco básico que deve ser obedecido. Em seguida, apresenta-se as modalidades de jornadas existentes na legislação brasileira, a jornada padrão existente no país, e uma comparação com a legislação internacional, haja vista que as normas trabalhistas do Brasil sofrem forte influência das leis internacionais sobre o assunto. Ao final, a conclusão do estudo. Palavras-chave: Direito do Trabalho Brasileiro. Jornada de trabalho. Direito Comparado. Normal working hours according to brazilian law in a brief comparison with international Standards Abstract This paper aims to analyze the concept and evolution of the working day in Brazil, specifically in regard to its time limitation and normal or standard labor contracts CLT. For some relationships will be analyzed both conceptual foundations of social order and for the imposition of the said time limit. After some distinctions will be held on the subject in relation to other topics of labor law, which factors make this journey, its basic criteria, and special trunk basics that must be obeyed. Then we present the existing methods of journey in Brazilian legislation, the journey pattern in the country, and a comparison with international law, given that labor standards in Brazil are strongly influenced by international laws on the subject. At the end of study completion. Keywords: Brazilian Labor Law. Journey of work. Comparative Law.

_______________ * Pós-doutor em Direito pela Universidade de Sevilla (Espanha) (2014); Doutor em Direito do Trabalho pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005); Coordenador do Curso de Pós-Graduação – Especialização em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professor de Direito do Trabalho nos Cursos de Graduação e Pós-graduação (Especialização, Mestrado e Doutorado) na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Avenida Ipiranga, 6681, Partenon, 90619-900, Porto Alegre, Rio Grande do Sul; Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, Departamento de Direito Social, Avenida Ipiranga, 6681, Partenon, 90619900, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; [email protected] ** Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Meridional; Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Professor da Campanha Nacional de Escolas da Comunidade da Unidade de Gravataí, Rio Grande do Sul da Faculdade Cenecista Nossa Senhora dos Anjos; Advogado; Avenida José Loureiro da Silva, 1991, Centro, Gravataí, Rio Grande do Sul, Brasil; [email protected]

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1 INTRODUÇÃO O instituto da jornada de trabalho tem capítulo próprio na Consolidação das Leis Trabalhistas quando trata da duração do trabalho no Brasil. Encontra-se disciplinada pelos artigos 581 e 592 do respectivo diploma, a questão atinente à jornada normal de trabalho. Lembrando sempre que a norma trabalhista conta com sua existência desde 1943, motivo pelo qual os artigos referidos vieram sofrendo algumas alterações ao longo dos anos. Para o tema em debate, sinaliza-se como grande vetor de alteração, o artigo 7º, XIII da Carta Magna, uma vez que limitou as jornadas diária e semanal de trabalho no Brasil em 8h (oito horas) e 44h (quarenta e quatro horas) respectivamente. Dessa forma, passa-se à analise da presente norma em busca da melhor compreensão de maneira prática e doutrinária aos estudiosos na aplicação diária dos Direitos dos Trabalhadores brasileiros, nas esferas nacional e internacional. 2 CONCEITO E DISTINÇÕES RELEVANTES O conceito doutrinário de jornada de trabalho faz analogia à disposição do artigo 4º da CLT.3 Assim, nas palavras de Delgado (2012, p. 876): “Jornada de trabalho é o lapso temporal diário em que o empregado se coloca à disposição do empregador em virtude do respectivo contrato.” No mesmo sentido, para entender a norma conceitual exposta, o doutrinador atribui à jornada de trabalho duas características, sendo uma para cada parte da relação contratual. Diz ser a medida principal da obrigação obreira, ou seja, da prestação de serviços; e a medida principal da vantagem empresarial auferida pelo empregador, ou seja, a apropriação dos serviços pactuados (DELGADO, 2012, p. 876).

Art. 58 - A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite. § 1o Não serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários.   § 2o O tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para o seu retorno, por qualquer meio de transporte, não será computado na jornada de trabalho, salvo quando, tratando-se de local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o empregador fornecer a condução.    § 3o Poderão ser fixados, para as microempresas e empresas de pequeno porte, por meio de acordo ou convenção coletiva, em caso de transporte fornecido pelo empregador, em local de difícil acesso ou não servido por transporte público, o tempo médio despendido pelo empregado, bem como a forma e a natureza da remuneração. 2  Art. 59 - A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho.    § 1º - Do acordo ou do contrato coletivo de trabalho deverá constar, obrigatoriamente, a importância da remuneração da hora suplementar, que será, pelo menos, 20% (vinte por cento) superior à da hora normal.       § 2o  Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.     § 3º Na hipótese de rescisão do contrato de trabalho sem que tenha havido a compensação integral da jornada extraordinária, na forma do parágrafo anterior, fará o trabalhador jus ao pagamento das horas extras não compensadas, calculadas sobre o valor da remuneração na data da rescisão.     § 4o  Os empregados sob o regime de tempo parcial não poderão prestar horas extras.  3  Art. 4º - Considera-se como de serviço efetivo o período em que o empregado esteja à disposição do empregador, aguardando ou executando ordens, salvo disposição especial expressamente consignada. 1

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Com o mesmo entendimento conceitual embasado na norma celetista, Barros (2011, p. 523) diz ser a jornada de trabalho “[...] o período durante um dia, em que o empregado permanece à disposição do empregador, trabalhando ou aguardando ordens.” Para o desenvolvimento do presente estudo, necessário fazer uma relação e distinção conceitual de jornada com o salário, a saúde do trabalhador, bem como o conceito de emprego propriamente dito. Após os esclarecimentos, é possível perceber que os conceitos estão ligados e relacionados, embora distintos no que diz respeito à natureza jurídica. 2.1 JORNADA E SALÁRIO Conforme exposto acima, percebe-se que a jornada de trabalho é a medida da principal obrigação devida pelo trabalhador, qual seja a prestação de serviços. Assim, tem-se que o salário é a contraprestação devida pelo empregador ao empregado ante o trabalho desenvolvido. Nada diferente se for também fazer a relação conceitual entre a jornada de trabalho e a remuneração.4 Nesse raciocínio, somente após se apropriar dos serviços do operário (vantagem empresarial), o empregador tem o dever de alcançar o salário. O importante dessa relação conceitual, é deixar claro que somente através do exercício de uma jornada de trabalho que surge a obrigação de fazer do empregado (prestar serviços), e de dar do empregador (pagar salário). 2.2 JORNADA E SAÚDE NO TRABALHO A busca constante de limitação da jornada de trabalho pode ter tido como marco teórico a partir dos acontecimentos decorrentes da Revolução Industrial, haja vista que tal época é considerada por alguns estudiosos como a nova forma de escravidão surgida nos séculos XVII e XVIII. Se antes da era industrial não havia qualquer controle de jornada, com seu advento pouca coisa se modificou até que a classe trabalhadora e seus representantes resolvem se mobilizar em busca de melhores condições de trabalho, entre estas, a redução da jornada. As afirmações fortes decorrem das situações onde mulheres e crianças laboravam em longas jornadas sem qualquer regulamentação propiciando sérios riscos à saúde e dignidade da pessoa humana. Insta referir aqui, que o art. 7º, XXII da CF/88,5 prevê o dever de proteção ao trabalhador com normas de segurança, saúde e higiene para a redução de riscos no ambiente de trabalho.

Nessa pesquisa, não será abordado de forma aprofunda a remuneração, pois englobaria análise de horas extraordinárias, o que por sua vez fica fora dos limites da jornada normal de trabalho. Porém, importante referir neste tópico o conceito de remuneração exposto no caput do artigo 457 da CLT: “Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.” 5 Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança. 4

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Percebe-se da relação conceitual, que uma jornada muito extensa vai ao encontro das “infortunísticas do trabalho”, ou seja, acidentes com trabalhadores. Portanto, uma limitação na carga horária visa o cuidado com a saúde do trabalhador! No mesmo sentido, e para configurar que o tema trata de normas de saúde pública, verifica-se a plena harmonia de vários dispositivos constitucionais preocupados com a proteção da saúde dos trabalhadores brasileiros configurando-se a preocupação com a prevenção através da lei para evitar que aconteçam ou diminuam os acidentes que ocorrem nos ambientes de trabalho. Além da norma acima, cita-se para corroborar, os artigos 194,6 1977 e 200, II,8 todos da Carta Magna ratificando o entendimento nacional de que a saúde dos trabalhadores deve ser preservada com implementação de normas em todas as áreas do Direito. 2.3 JORNADA E EMPREGO A relação conceitual entre jornada e emprego está diretamente ligada ao incentivo do fator econômico, pois, entende-se, que a busca por novas tecnologias e organização no ambiente de trabalho, redistribui os lucros sociais, gerando por consequência um chamado “desenvolvimento conjunto” da sociedade. No mesmo sentido, a busca constante pela redução da jornada para que novos trabalhadores, da mesma empresa ou prestadores externos, possam também obter seu espaço no cenário da economia brasileira, gerando mais renda e, por conseguinte, mais empregos. Na década de (90) noventa, houve iniciativa com a publicação da Lei n. 9.601/1998 dispondo sobre o contrato de trabalho por prazo determinado, incluindo a previsão normativa da compensação de horários. A prática no dia a dia, nos deixa claro que tal norma apenas incentivou a prorrogação de jornada quando seu artigo 6º9 altera o artigo 59 da CLT permitindo que as horas excedentes laboradas sejam compensadas, desde que o regime esteja reconhecido em norma coletiva recepcionada pelo Ministério do Trabalho.

Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. 7 Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. 8 Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: [...] II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador. 9 Art. 6º O art. 59 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 59....................................................................................................................................... ....  [...] § 2º Poderá ser dispensado o acréscimo de salário se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de cento e vinte dias, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o Iimite máximo de dez horas diárias. § 3º Na hipótese de rescisão do contrato de trabalho sem que tenha havido a compensação integral da jornada extraordinária, na forma do parágrafo anterior, fará o trabalhador jus ao pagamento das horas extras não compensadas, calculadas sobre o valor da remuneração na data da rescisão.” 6

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Estamos aqui diante da instituição do regime conhecido como “banco de horas”, muitas vezes anulado pelo judiciário haja vista o abuso dos empregadores aplicando a norma apenas na intenção de não remunerar as horas excedentes exercidas pelos trabalhadores, com extensas jornadas que acabam não sendo compensadas. 2.4 DOS FUNDAMENTOS PARA A LIMITAÇÃO DE JORNADA Após analisar a relação conceitual entre a jornada de trabalho com o salário, a saúde e o emprego, pode-se considerar que existem três fatores determinantes para a limitação diária de labor, quais sejam: biológico, econômico e social. Sobre estes, necessário que se façam alguns esclarecimentos. O fator biológico está diretamente ligado à limitação física, saúde, higiene e segurança dos trabalhadores, pois, acredita-se, que todo ser humano deve ter um limite de suas forças físicas e intelectuais laborativas a serem respeitados. Nesse sentido, além da redução da jornada diária, a legislação obreira ainda institui alguns intervalos intrajornadas10 para renovar as força produtiva de cada trabalhador. O fator econômico tem ligação direta aos interesses dos empregadores, pois, leva-se em conta, que a limitação diária da jornada e as pausas previstas na legislação fazem com que os trabalhadores possam desenvolver melhor, com mais vigor o trabalho, o que, por consequência, gera mais lucro aos seus empregadores. Por derradeiro, é necessário como fundamento da limitação de jornada, levar-se em conta o fator social. Todo trabalhador, alicerçado no Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, tem o direito de ter um trabalho digno, descanso proporcional após sua jornada de trabalho e um tempo próprio para seu convívio social e familiar, propiciando lazer, distração, entretenimento, etc. Luciano Martinez, ao justificar os fundamentos apontados, refere cântico entoado por trabalhadores ingleses, sendo a Inglaterra o berço da Revolução Industrial, protestando por justa distribuição das horas que compõem o dia: “[...] eight hours to work, eight hours to play, eight hours to sleep, eight shillings a day”.11 (MARTINEZ, 2013, p. 315). 3 DISTINÇÕES RELEVANTES: DURAÇÃO, JORNADA E HORÁRIO DE TRABALHO Para a compreensão do estudo, entende-se necessário também a breve distinção conceitual existente entre duração, jornada e horário de trabalho conforme descrito a seguir: a) Duração do trabalho: trata-se de noção mais ampla, abordando todas as formas existentes de períodos laborados, ou seja, jornadas diária, semanal e anual de trabalho. Na CLT, artigos 57 ao 75, e 129 ao 152;

Podemos citar como exemplo o intervalo para refeição e descanso previsto no art. 71 da CLT, e ainda o intervalo do artigo 72 do mesmo diploma prevendo descanso após 90 minutos de trabalho aos serviços permanentes de mecanografia (datilografia, escrituração, cálculo, digitação). 11 Tradução: Oito horas para o trabalho, oito horas para lazer, oito horas para descanso, sem esquecer a ideia da justa retribuição. 10

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b) Jornada de Trabalho: em análise stricto sensu, conceitua-se de acordo com o artigo 4º da CLT, tratando-se do tempo em que o empregador pode dispor da força de trabalho de seu empregado em um dia delimitado, incluindo os intervalos remunerados. Nas modalidades de jornadas de trabalho, podemos citar a forma controlada e não controlada de acordo com a necessidade ou não de ter controle manual, mecânico ou eletrônico pelo empregador;12 c) Horário de Trabalho: para o presente conceito, diz ser o lapso temporal entre o termo inicial e final da jornada de trabalho exercida pelo trabalhador, no local de trabalho (exercendo atividades ou de prontidão), ou em tempos de sobreaviso quando o trabalhador aguarda pelo chamado de seu empregador noutra localidade. 4 COMPOSIÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO 4.1 CRITÉRIOS BÁSICOS DE FIXAÇÃO DE JORNADA Para fixar a real jornada de trabalho no Brasil, três critérios básicos ou teorias são necessários apontar, senão vejamos: a) Tempo Efetivamente Trabalhado: teoria que na atualidade é rejeitada parcialmente no País. Diz-se que sua aceitação ainda ocorre em razão do disposto no artigo 78 da CLT,13 pois ainda é possível, mesmo com a base do salário mínimo, fazer pagamentos por empreitada, tarefa ou peça produzida; b) Tempo à Disposição: teoria que atualmente é adotada pela maioria da doutrina brasileira, pois conforme já descrito acima, enquadra-se nas disposições do artigo 4º da CLT, ou seja, contando a jornada desde que o empregado esteja ao dispor de seu empregador, trabalhando ou aguardando ordens; c) Tempo de Deslocamento: algumas situações são consideradas dentro da jornada de trabalho mesmo que o empregado não esteja no local de trabalho, sendo Para compreensão, cita-se os artigos 62 e 74 da CLT:  Art. 62 - Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo: I - os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados; II - os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial. Parágrafo único - O regime previsto neste capítulo será aplicável aos empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se houver, for inferior ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de 40% (quarenta por cento). Art. 74 - O horário do trabalho constará de quadro, organizado conforme modelo expedido pelo Ministro do Trabalho, Industria e Comercio, e afixado em lugar bem visível. Esse quadro será discriminativo no caso de não ser o horário único para todos os empregados de uma mesma seção ou turma. § 1º - O horário de trabalho será anotado em registro de empregados com a indicação de acordos ou contratos coletivos porventura celebrados. § 2º - Para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso. § 3º - Se o trabalho for executado fora do estabelecimento, o horário dos empregados constará, explicitamente, de ficha ou papeleta em seu poder, sem prejuízo do que dispõe o § 1º deste artigo. 13 Art. 78 - Quando o salário for ajustado por empreitada, ou convencionado por tarefa ou peça, será garantida ao trabalhador uma remuneração diária nunca inferior à do salário mínimo por dia normal da região, zona ou subzona. 12

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ou remunerado. Nesse sentido, podemos apontar o artigo 21, IV “d” da Lei n. 8.213/199114 (Lei de Benefícios do INSS), equiparando como acidente de trabalho o infortúnio ocorrido no percurso residência trabalho ida e volta do trabalhador. No mesmo sentido, ainda dispõe o artigo 238 § 3º da CLT,15 computando dentro da jornada o tempo à disposição do empregado que trabalha na conservação das vias férreas. 4.2 CRITÉRIOS ESPECIAIS DE FIXAÇÃO DE JORNADA Da mesma forma que dispõe a legislação sobre as teorias básicas para a composição da jornada de trabalho, podemos apontar alguns critérios especiais que são levados em conta conforme listamos abaixo: a) Tempo de Prontidão: o tempo em que o empregado fica no local de trabalho, mesmo fora de sua jornada normal, é considerado como especial e deve ser paga na proporção de 2/3 da hora padrão. Assim, previsão do artigo 244 § 3º da CLT;16 b) Tempo de Sobreaviso: as horas de sobreaviso devem ser pagas aos trabalhadores na proporção de 1/3 da hora normal quando o funcionário fica aguardando fora do local de trabalho, a qualquer momento, o chamado para realizar atividade laborativa. Nesse sentido, previsão do § 2º do artigo 244 da CLT;17 c) Tempo Residual à disposição: o § 1º do artigo 58 da CLT18 combinado com o entendimento jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho disposto na Súmula 366,19 prevê que não serão descontados nem computados como horas extras variações na entrada e saída do trabalhador ao local de trabalho não excedentes a cinco, observado o limite máximo de dez minutos diários.

Art. 21, IV “d” Lei n. 8.213/91 - Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta Lei: IV - o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho: d) no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado. 15 Art. 238. Será computado como de trabalho efetivo todo o tempo, em que o empregado estiver à disposição da estrada. § 3º No caso das turmas de conservação da via permanente, o tempo efetivo do trabalho será contado desde a hora da saída da casa da turma até a hora em que cessar o serviço em qualquer ponto compreendido centro dos limites da respectiva turma. Quando o empregado trabalhar fora dos limites da sua turma, ser-lhe-á também computado como de trabalho efetivo o tempo gasto no percurso da volta a esses limites. 16  Art. 244. As estradas de ferro poderão ter empregados extranumerários, de sobreaviso e de prontidão, para executarem serviços imprevistos ou para substituições de outros empregados que faltem à escala organizada [...] § 3º Considera-se de “prontidão” o empregado que ficar nas dependências da estrada, aguardando ordens. A escala de prontidão será, no máximo, de doze horas. As horas de prontidão serão, para todos os efeitos, contadas à razão de 2/3 (dois terços) do salário-hora normal. 17 § 2º Considera-se de “sobreaviso” o empregado efetivo, que permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço. Cada escala de “sobreaviso” será, no máximo, de vinte e quatro horas, As horas de “sobreaviso”, para todos os efeitos, serão contadas à razão de 1/3 (um terço) do salário normal. 18  Art. 58 - A duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de 8 (oito) horas diárias, desde que não seja fixado expressamente outro limite. § 1o Não serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário no registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários. 19 Não serão descontadas nem computadas como jornada extraordinária as variações de horário do registro de ponto não excedentes de cinco minutos, observado o limite máximo de dez minutos diários. Se ultrapassado esse limite, será considerada como extra a totalidade do tempo que exceder a jornada normal. 14

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No sentido de corroborar o entendimento do critério especial do tempo residual à disposição, cita-se a Súmula 429 do TST,20 verbete que prevê dentro da jornada de trabalho o deslocamento do funcionário da portaria até seu local de trabalho e retorno no momento final do labor. 4.3 JORNADA: TRONCO BÁSICO E COMPONENTES SUPLEMENTARES Ao fixar a jornada de trabalho dos funcionários de uma empresa, pode-se dizer que é a partir do contrato individual de trabalho que tudo começa. Dito isso, pode-se dizer que os componentes suplementares são os demais períodos trabalhados ou em que o trabalhador esteja à disposição plena ou parcial, tais como as horas extras (arts. 59 e 61 da CLT), tempo itinerante (art. 58 § 2º da CLT e súmula 90 da TST), prontidão (art. 244 § 3º da CLT), sobreaviso (art. 244 § 2º da CLT ), e intervalos remunerados (arts. 72, 253, 298 entre outros da CLT e Súmula 346 do TST). 5 MODALIDADES DE JORNADA: O PROBLEMA DO CONTROLE Atualmente no Direito do Trabalho brasileiro, há classificação de três modalidades de jornada: controlada, não controlada e especiais, de acordo com a modalidade de serviço desenvolvido. Havia ainda, antes da aprovação da PEC n. 478/2010,21 a jornada conhecida como “atípica”, pois enquadrava-se a categoria dos empregados domésticos que não tinham qualquer limitação de horário de trabalho na jornada diária ou semanal de trabalho. Vejamos: a) Jornada Controlada: trata da modalidade contida no artigo 74 da CLT, prevendo a fácil visualização dos trabalhadores do horário para desenvolver suas atividades. Há exceção e dispensa no critério previsto pelo § 2º do mesmo artigo, isentando as empresas com até 10 (dez) funcionários. É atribuído ao empregador o ônus de comprovar o controle da jornada em caso de futura demanda judicial.22 A Jurisprudência até 2003 era no sentido de atenuar a produção de prova se o empregador não apresentasse os registros. Após nova edição da súmula até os dias atuais, aplica-se a penalidade do art. 359 do CPC, confissão ficta;

Súmula 429 do TST: Considera-se à disposição do empregador, na forma do art. 4º da CLT, o tempo necessário ao deslocamento do trabalhador entre a portaria da empresa e o local de trabalho, desde que supere o limite de 10 (dez) minutos diários. 21 Proposta de Emenda Constitucional aprovada em 26/03/13 pelo Congresso Nacional prevendo igualdade de direitos trabalhistas para empregados domésticos e trabalhadores celetistas. 22 Importante referir para o presente texto a Súmula 338 do TST: JORNADA DE TRABALHO. REGISTRO. ÔNUS DA PROVA: I - É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera presunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. (ex-Súmula n. 338 – alterada pela Res. 121/2003, DJ 21.11.2003) II - A presunção de veracidade da jornada de trabalho, ainda que prevista em instrumento normativo, pode ser elidida por prova em contrário. (ex-OJ nº 234 da SBDI-1 - inserida em 20.06.2001) III - Os cartões de ponto que demonstram horários de entrada e saída uniformes são inválidos como meio de prova, invertendo-se o ônus da prova, relativo às horas extras, que passa a ser do empregador, prevalecendo a jornada da inicial se dele não se desincumbir. 20

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b) Jornada não Controlada: o artigo 62 da CLT prevê a possibilidade de existência do contrato de trabalho celetista sem obrigatoriedade no controle de horário dos trabalhadores. Trata-se das funções externas que inviabilizam o controle, ou as atividades dos chamados “cargos de confiança”. O pré-requisito é de que a função esteja prevista no contrato individual de trabalho com a devida anotação na CTPS do trabalhador. Para o último caso, ainda há obrigação de remunerar em 40% (quarenta por cento) a mais o trabalhador devido à função que exerce;23 c) Outras Modalidades: aqui podemos enquadrar as novas formas de trabalho prestado, as quais seguem o disposto no artigo 6º da CLT: Art. 6o Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego. Parágrafo único.  Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.

A presente norma fala dos chamados “home-office” e “teletrabalho”, que pode ser traduzido sob três possibilidades: 1º o antigo trabalho realizado na residência sem qualquer uso de meios eletrônicos; 2º o chamado “home office” propriamente dito, haja vista que os trabalhadores acessam sistemas empresariais em sua residência com uso de meios informatizados e tecnologias; 3º o teletrabalho, muito próximo à segunda modalidade ou até mesmo unido com ela, porém neste há possibilidade de se concretizar em distintos locais de utilização dos equipamentos eletrônicos hoje já reconhecidos e consagrados, como por exemplo informática, internet, celulares, etc. 6 JORNADA NORMAL OU PADRÃO A jornada normal de trabalho no Brasil adota determinação prevista pela Constituição Federal de 1988 no capítulo que trata dos Direitos Fundamentais Sociais, reconhecidos por Ingo Sarlet como Direitos de Segunda Geração. Afirma que a combinação dos artigos 6º ao 11º da Carta Magna, “[...] formam, no seu conjunto, as linhas mestras do regime constitucional do direito fundamental ao trabalho.” (SARLET; MARINONO; MITIDIERO, 2013, p. 614). Na busca constante pela redução da jornada de trabalho, percebe-se que cada vez mais os atores sociais agem em prol da eficácia e efetividade das normas constitucionais, beneficiando, para os fins deste estudo, os trabalhadores do Brasil.24 Com a promulgação da Carta Magna, foi alterada a norma celetista no que diz respeito à jornada semanal de trabalho que antes era de 48h. Refere a Constituição:

Neste sentido cabe referir a Súmula 12 do TST ratificando, entre outras normas, o Princípio da Primazia da Realidade: Carteira Profissional 21.11.2003: As anotações apostas pelo empregador na carteira profissional do empregado não geram presunção “juris et de jure”, mas apenas “juris tantum”. 24 Sobre a eficácia dos direitos fundamentais em terra brasileira vale conferir o sério estudo de Sarlet (2005). 23

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Gilberto Stürmer, Juliano Gianechini Fernandes Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.

Ratificando a norma constitucional, temos a previsão no caput do artigo 58 da CLT e ainda o entendimento que consta no § 1º combinado com a posição do Tribunal Superior do Trabalho através da Súmula 366, prevendo a elasticidade da jornada normal por cinco minutos na entrada e/ou saída sem gerar ônus de pagar hora extra ao empregador. De acordo com as normas citadas, temos a seguinte limitação legal no Brasil para a jornada de trabalho: a) 8h diárias; b) 44h semanais; c) 220h mensais = 7,33333 x 30 dias de trabalho. Importante referir que o regime compensatório é autorizado na CF/88, bem como sua regulamentação veio na previsão expressa na Lei nº 9.601/1998. 7 DO DIREITO COMPARADO A busca pela redução da jornada de trabalho é uma tendência mundial que teve, muito provavelmente, seu marco inicial com a Revolução Industrial na Inglaterra. Dessa Forma, nos valemos do brilhante estudo comparativo realizado pelo doutrinador Martins Filho (2010, p. 418) no que diz respeito à limitação da jornada de trabalho semanal no mundo: 32h – Reino Unido (semana inglesa) Berço da Revolução Industrial; 38h – Austrália, França e Nova Zelândia; 40h – Albânia, Áustria, Azerbaijão, Canadá, Japão, Letônia, Macedônia, Polônia, Portugal, Espanha, Senegal, Suécia; 42h – Sérvia e Montenegro; 44h – Angola, Argélia, Brasil, China, Coréia, Cuba, Irã, Uruguai; 45h – África do Sul, Gana, Bélgica; 46h – República Tcheca, Mongólia; 48h – Albânia, Alemanha, Argentina, Chile, Etiópia, Guatemala, Hungria, Iêmen, Iraque, Itália, Jordânia, Líbano, Malásia, Moçambique, Nepal, Nicarágua, Noruega, Panamá, Paraguai, Peru, Romênia, Venezuela, Vietnã.

Na pesquisa realizada durante este estudo, verifica-se que há uma tendência mundial na busca da chamada “semana inglesa”, ou seja, aplicando da mesma forma que a Inglaterra prevê sua jornada de trabalho semanal: Trabalho de 8h diárias nas segundas, terças, quintas e sextas-feiras, com folgas nas quartas-feiras, sábados e domingos. Há notícias ainda, de que na legislação paraguaia de 1993 houve tendência de limitar em 6h a jornada em atividades insalubres e perigosas mantendo o mesmo salário das 8h. 188

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8 NORMAS INTERNACIONAIS O Direito do Trabalho brasileiro é extremamente influenciado pela legislação internacional, haja vista que o Brasil é membro da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e ratifica, quando de seu interesse, as convenções com normas que amparam a relação empregatícia, principalmente no que diz respeito às melhores condições de trabalho propiciadas ao trabalhador. Incidência do Princípio da Proteção, devidamente reconhecido e aplicado no Direito pátrio. Como referência de normas internacionais que se aplicam à jornada de trabalho, podemos citar primeiramente a Declaração Universal dos Direitos do Homem emitida pela ONU em 1948, onde prevê em seu artigo XXIV a “limitação razoável das horas de trabalho”. No mesmo sentido, dispõe a Convenção n. 1 da OIT, ratificada pelo Brasil, a qual limita a jornada de trabalho em 8h diárias e 48h semanais, mencionando ainda restrições ao trabalho extraordinário. Norma aplicada quando da edição da CLT, influindo também nas disposições da Constituição Federal de 1988, além da Convenção n. 47 do mesmo órgão internacional. Por último, refere-se ainda a Convenção n. 47 da OIT, norma que aprova a jornada de 40h semanais, mas edita e adota uma recomendação n. 116/1982, propondo a redução progressiva da jornada de trabalho. Tal lei ratifica e reforça o disposto na convenção n. 1, pois há severas restrições ao trabalho extraordinário. 9 CONCLUSÃO Em conclusão do presente estudo, verifica-se que predomina no Brasil a teoria do tempo à disposição para conceituar a jornada de trabalho, a qual vem positivada no artigo 4º da CLT. E ainda, que a limitação da jornada diária e semanal tem na Constituição Federal de 1988 sua regra padrão a ser seguida pelo Direito pátrio, qual seja, de 8h diárias ou 44h semanais, permitido o regime de compensação estabelecido na norma constitucional e regulamentado pela Lei nº 9.601/1998. Conclui-se ainda, que na relação conceitual de jornada há outros elementos que devem ser analisados tais como o salário, a saúde do trabalhador e o próprio emprego, pois trazem fundamentos que determinam a busca de uma limitação de jornada do trabalho que, ao fim e ao cabo, interferem diretamente na saúde, vida pessoal do trabalhador e de forma ampla na economia do país. A jornada de trabalho possui em seu núcleo, para que seja fixada, critérios básicos e especiais, tendo ainda como tronco básico e norte a ser seguido o contrato individual de trabalho. Que esta mesma jornada pode ser exercida com controle ou não pelo seu empregador de acordo com a função desenvolvida, e ainda, em outras modalidades como o “home Office” e o “teletrabalho”. Por fim, chega-se à conclusão que a jornada normal de trabalho é fruto da busca mundial pela sua limitação diária, iniciada com a revolução industrial na Inglaterra. Que a legislação internacional em muito contribui para a regulamentação e redução da jornada de

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trabalho brasileira, haja vista a Declaração Universal dos Direitos do Homem e as Convenções da Organização Internacional do Trabalho no mesmo sentido, ratificadas pelo Brasil. A compreensão que se estabelece por todo estudo desenvolvido, é resumida por Arnaldo Süssekind em análise dos arts. 1º, III e IV c/c com 6º ao 11º da Constituição Federal de 1988: “Relevante é não esquecermos que o homem deve ser sempre o centro e o fim de qualquer sistema social e que a Constituição brasileira inclui a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.” (SÜSSEKIND, 2010). REFERÊNCIAS BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2011. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campos, 1992. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11. ed. São Paulo: LTr, 2012. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ação Civil Pública na Perspectiva dos Direitos Humanos. 2. ed. São Paulo: LTr, 2008. MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Manual de Direito e Processo do Trabalho. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. ROMAR, Carla Teresa Martins. Direito do Trabalho esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2013. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. STÜRMER, Gilberto. A Liberdade Sindical na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e sua relação com a Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho. 1. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. SÜSSEKIND, Arnaldo. Curso de Direito do Trabalho. 3. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. VASCONCELOS, Pedro Felipe Monteiro de. Controle de jornada: um ensaio sobre a sua natureza jurídica. Migalhas, 12 abr. 2012. Disponível em: . Acesso em: 20 set. 2013.

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PROTEÇÃO CONTRA A DESPEDIDA ARBITRÁRIA COMO PRESSUPOSTO PARA A PLENA EFETIVAÇÃO DOS DEMAIS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES – ALGUMAS NOTAS PARA UMA DISCUSSÃO1 Ingo Wolfgang Sarlet* Monique Bertotti** “O homem é um ser que vive de ilusões e de esperanças, às quais nunca puderam dar morte os grandes cataclismas da História. Uma das mais bonitas ideias é a de um Direito do Trabalho que, de uma vez para sempre, na luta entre o Capital e o Trabalho, ponha o primeiro, a Economia, a serviço do Segundo.”(LA CUERVA, 1965, p. 7).

1 INTRODUÇÃO O fato de a Constituição Federal de 1988 (doravante apenas CF) ter sido precedida por um longo período de Ditadura Militar, durante o qual o autoritarismo e a restrição das liberdades fundamentais de parcelas da população deixaram marcas profundas, constitui uma das explicações para a relevância que os direitos fundamentais obtiveram no atual texto constitucional. As mudanças empreendidas pelo Constituinte de 1988 foram significativas tanto do ponto de vista quantitativo, quanto qualitativo, o que também se aplica aos direitos dos trabalhadores. Com efeito, para além da ampliação numérica, tais direitos, antes contemplados no capítulo da ordem social e econômica, passaram a integrar o catálogo constitucional dos direitos e garantias, que, ademais, aqui também em caráter inovador, foram guindados à condição de verdadeiros direitos e garantias fundamentais. Contudo, o que se pode verificar, inclusive no campo dos direitos dos trabalhadores, é que mesmo transcorrido um quarto de Século desde a promulgação da CF, parte dos direitos consagrados em 1988 ainda carece de efetividade, inclusive, em alguns casos, sequer tendo sido objeto da devida regulamentação legislativa. É o que ocorre justamente com um dos principais direitos e garantias dos trabalhadores, no caso, a proteção contra despedida arbitrária, consagrada no inciso I do artigo 7º da CF, o qual, ademais, tem sido já objeto de debate na doutrina brasileira (WANDELLI, 2004; SEVERO, 2011), operando como um dos pressupostos para o exercício e fruição de outros direitos dos trabalhadores. Por tal razão, busca-se – no presente texto - em primeira linha demonstrar em que consiste a fundamentalidade do direito-garantia de proteção contra a despedida arbitrária, designadamente no contexto do direito constitucional positivo brasileiro, bem como

Pós-Doutor e Doutor em Direito (Munique, Alemanha); Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Avenida Ipiranga, 6681, Bairro Partenon, 90619-900, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil; Juiz de Direito no Rio Grande do Sul; [email protected] ** Mestranda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; [email protected] 1 O presente trabalho resulta do aperfeiçoamento de texto apresentado como requisito para conclusão da disciplina Constituição e Direitos Fundamentais ministrada no PPGD da PUCRS pelo primeiro autor e cursada pela segunda autora. Além disso, o texto foi objeto de discussão na relação de orientação entre o primeiro autor (orientador da dissertação de mestrado da segunda autora, ora em andamento) e a segunda autora, no que diz com relação entre a teoria dos direitos fundamentais e os direitos fundamentais dos trabalhadores na Constituição Federal de 1988. *

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identificar e discutir alguns dos principais aspectos ligados à sua eficácia e efetividade. De todo modo, considerando a amplitude do tema, convém sublinhar que muito mais do que “reinventar a roda”, o que se pretende é lançar algumas considerações que possam contribuir para o debate que se trava na teoria e na prática sobre tão relevante problema. Nunca é demais lembrar, nesse contexto, que em causa está, ao fim e ao cabo, a dignidade da pessoa que trabalha. Antes, contudo, de enfrentar a questão propriamente dita da proteção contra a despedida arbitrária, importa tecer algumas considerações sobre o regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais dos trabalhadores na CF.2 2 OS DIREITOS DOS TRABALHADORES COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 2.1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE OS TRAÇOS ESSENCIAIS DO REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Aderindo a toda uma tradição que foi inaugurada sob a égide da Lei Fundamental da Alemanha, em que pese nem tudo tenha sido propriamente inovado, também a CF adotou uma particular concepção de direitos fundamentais, no sentido de que a qualidade de serem determinados direitos verdadeiros direitos fundamentais, na perspectiva do direito constitucional positivo, guarda relação com a circunstância de que tal fundamentalidade apresenta uma dimensão material e outra formal (ALEXY, 2012). No plano material, a condição de direitos fundamentais guarda relação com a relevância dos bens jurídicos correspondentes para determinada ordem constitucional, o que, no caso da CF, resulta evidente em face da expressa e inequívoca opção do Constituinte de 1988, no sentido de que os direitos dos trabalhadores, como já recordado, foram inseridos no título dos direitos e garantias fundamentais. A assim chamada fundamentalidade formal, por sua vez, diz respeito ao regime jurídico qualificado que tais direitos receberam do Constituinte, regime este que, em primeira linha, se traduz pela hierarquia superior (peculiar das normas constitucionais) que as normas de direitos fundamentais gozam no plano da ordem jurídica interna dos Estados, mas que, para além disso, se caracteriza por um regime jurídico particularmente qualificado e diferenciado no contexto da ordem constitucional, representado, por sua vez, por um conjunto de prerrogativas (garantias) específicas dos direitos fundamentais, tudo de modo a lhes assegurar um status privilegiado na arquitetura constitucional. Tal regime jurídico – importa sublinhar – é determinado pelo direito constitucional positivo, embora se verifique uma crescente aproximação entre os modelos identificados no direito comparado. No caso brasileiro, são elementos centrais desse regime jurídico qualificado dos direitos fundamentais a aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (artigo 5º, § 1º, CF), o fato de serem (embora a polêmica sobre a extensão de tal prerrogativa) limites materiais ao poder de reforma constitucional (artigo 60, § 4º, CF) e a existência de uma proteção reforçada contra

Para este efeito retomamos escritos do primeiro autor sobre o tema, com destaque para a obra A Eficácia dos Direitos Fundamentais, mas especialmente o texto “Os Direitos dos Trabalhadores como Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.” (SARLET, 2014). 2

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intervenções restritivas, pelo menos no que tocante aos critérios da proporcionalidade e da salvaguarda do núcleo essencial dos direitos fundamentais (SARLET, 2012, p. 247-348). Ainda no contexto do regime jurídico (fundamentalidade formal) dos direitos fundamentais dos trabalhadores, dois aspectos que podem ser pinçados se revelam como particularmente controversos. O primeiro, como já adiantado, diz com a inclusão, ou não, de todos (ou pelo menos parte) os direitos dos trabalhadores no rol das assim denominadas “cláusulas pétreas”, adotando-se aqui a tese extensiva, que, de resto, parece (ainda) corresponder ao entendimento doutrinário dominante, mas que tem sido objeto de importante contestação. Com efeito, a unicidade de regime jurídico dos direitos fundamentais, ou seja, o reconhecimento, para todos os direitos, dos mesmos predicados em termos de garantias de normatividade reforçada (ainda que se possa admitir distinções em determinado nível dadas as peculiaridades de diversos direitos fundamentais), exige que todos os direitos fundamentais tenham a mesma blindagem contra sua supressão por parte do poder de reforma constitucional, não convencendo os argumentos dos que buscam vincular a condição de “cláusula pétrea” a critérios de fundamentalidade material, por sua vez, condicionados por determinadas concepções de justiça nem sempre afinadas, em sua plenitude, com a amplitude e diversidade do direito constitucional positivo em matéria de direitos fundamentais (SARLET, 2012, p. 431). A segunda grande característica que torna inquestionável a fundamentalidade formal dos direitos sociais é o fato de serem consagrados em normas imediatamente aplicáveis, conforme, aliás, preceitua o artigo 5º, §1º, CF, o que, desde logo, afasta qualquer interpretação que pretenda reduzir as normas de direitos fundamentais à condição de normas meramente programáticas ou, como preferem outros, normas não autoaplicáveis. Também aqui, a despeito de alguma divergência, a doutrina, mas também a jurisprudência, com destaque aqui para os julgados do STF, em geral tem reconhecido que a aplicabilidade imediata, tal qual expressamente prevê o próprio texto constitucional referido, é prerrogativa de todas as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais e não apenas daqueles direitos consagrados no artigo 5º, CF, ou dos direitos designados de individuais, notadamente os direitos civis e políticos (SARLET, 2014). Que a eficácia, aplicabilidade e mesmo efetividade das normas de direitos fundamentais não é igual não vai de encontro a um regime jurídico unificado, mas reclama, como se verá logo mais adiante no próprio caso da garantia da proteção contra despedida arbitrária, cuidadosa diferenciação e compreensão contextualizada. Além disso, muito embora se cuide de aspecto ligado ao esteio material da fundamentalidade, a CF, no artigo 5º, §2º, consagra aquilo que se convencionou designar de uma abertura material do catálogo de direitos fundamentais, dispondo que, além dos direitos expressamente consagrados, existem outros decorrentes do regime e dos princípios e dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. Conforme lição de Gomes Canotilho, o problema é saber quais direitos possuem dignidade suficiente para serem considerados materialmente fundamentais. Assim, numa primeira aproximação, é possível considerar como direitos materialmente fundamentais àqueles equiparáveis pelo seu objeto e importância aos diversos tipos de direitos fundamentais como tais expressamente positivados pelo constituinte (CANOTILHO, 2003, p. 404). A riqueza dessa abertura material reside no Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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fato de que tanto direitos dispersos pelo texto constitucional (portanto, situados fora do Título II da CF), quanto direitos deduzidos pela via interpretativa (que podemos designar de direitos implícitos em sentido amplo) e direitos expressamente consagrados em documentos internacionais passam a integrar um catálogo constitucional alargado e dinâmico. Outro aspecto de relevo a considerar, é que tal abertura material, consoante a literatura e jurisprudência dominante, não pode ser restringida a uma das categorias de direitos fundamentais, abarcando também os direitos sociais, com destaque aqui para os direitos dos trabalhadores, que, por sua vez, foram contemplados com cláusula especial de abertura, a teor do que dispõe o artigo 7º, caput, CF, que expressamente se refere a outros direitos (além daqueles enunciados no próprio artigo 7º) que visem a melhoria da condição social dos trabalhadores. Resulta claro, outrossim, que as diversas possibilidades ensejadas pela abertura material apresentam suas peculiaridades, pois em relação aos direitos situados em outras partes do texto constitucional é preciso justificar, com base em critérios materiais, a sua condição de direitos fundamentais (presumida quando se trata de direitos contidos no Título II, em virtude da expressa opção constituinte), ao passo que para os direitos implícitos igualmente se revela um problema de justificação e de critérios de interpretação, especialmente de redefinição hermenêutica do âmbito de proteção de um direito já consagrado. Para os tratados internacionais, por sua vez, coloca-se o problema de sua incorporação (considerando a existência de regras constitucionais sobre o tópico) e, acima de tudo, a discussão que se trava sobre o valor jurídico dos tratados no direito interno, especialmente nas hipóteses de conflito entre o direito internacional e as opções legislativas, mas também administrativas e judiciárias internas. Isso, contudo, será igualmente retomado quando da análise do caso da proteção contra a despedida arbitrária. 2.2 A DUPLA DIMENSÃO OBJETIVA E SUBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E DOS DIREITOS DOS TRABALHADORES Os direitos sociais e os direitos dos trabalhadores, assim como os demais direitos fundamentais, podem ser considerados tanto sob a perspectiva objetiva quanto na condição de direitos subjetivos. A dimensão subjetiva confere aos titulares dos direitos fundamentais sociais exigibilidade judicial, porque implica precisamente a existência de situações (posições) jurídicas exigíveis pelo titular (inclusive pela via judicial) em face de seus destinatários. Nessa perspectiva, como direitos subjetivos, também os direitos dos trabalhadores apresentam uma dupla função positiva (prestacional) e negativa (defensiva), que diz respeito precisamente ao objeto da posição subjetiva em causa e que, considerando o conjunto das posições subjetivas vinculadas a determinado direito, formam o direito fundamental no seu conjunto, o que Robert Alexy designou de direito fundamental como um todo ou em sentido amplo (ALEXY, 2012). No caso dos direitos fundamentais dos trabalhadores, há que levar em conta que não se cuida propriamente e em regra de direitos a prestações materiais do Estado, pois o destinatário principal e direto é o empregador, de regra, um particular (pessoa física

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ou jurídica). O Estado, portanto, é normalmente o destinatário de deveres de proteção e promoção, incluindo e com destaque o dever de proteção (prestação) judiciária. Além disso, o Estado é destinatário de deveres de prestação normativa, especialmente na esfera da organização e procedimento, mas também no que diz com legislação que regulamenta e concretiza os mandamentos constitucionais (por exemplo, o da proteção contra a despedida arbitrária) vinculados aos direitos fundamentais. Há que atentar, contudo, para o fato de que os direitos sociais, mas especialmente os direitos dos trabalhadores, não se resumem apenas a direitos de cunho positivo, pois englobam, também, as denominadas “liberdades sociais”, como, por exemplo, a liberdade de sindicalização, o direito de greve e o reconhecimento de outros diretos-garantia aos trabalhadores (direito a férias e ao repouso semanal remunerado, a limitação da jornada de trabalho, proibição de discriminações, etc.). Portanto, tais direitos fundamentais assumem tanto a função negativa (função de defesa) quanto a positiva (função de prestação) (SARLET, 2012, p. 349-609). Mas, voltando-nos agora à dimensão objetiva, já é do domínio comum que os direitos fundamentais transcendem a perspectiva de garantia de posições subjetivas individuais, podendo ser caracterizados como normas que irradiam efeitos potencialmente autônomos. Assim, tem-se, também, uma dimensão objetiva, a qual reflete a ligação entre esses direitos e o sistema de fins e valores constitucionais a serem respeitados e concretizados no Estado Democrático de Direito (HESSE, 1995). Ledur (2009, p. 454) bem explicita a importância da função jurídica-objetivados direitos fundamentais para a eficácia de tais direitos nas relações privadas, dentre as quais se encontram as relações entre empregado e empregador: Se antes os direitos fundamentais estavam mais centrados na função jurídico-subjetiva, voltada contra o poder estatal, agora a ela se somam as funções objetivas, destinadas a proteger os direitos fundamentais de restrições ilegítimas oriundas do poder privado. Nesse contexto, as funções jurídico-objetivas, que encontram sua síntese no dever de proteção ao indivíduo fragilizado que ora está posto para o Estado, hão de ganhar maior importância no conjunto das funções dos direitos fundamentais, abrindo possibilidade de liberdade real para todos.

Destarte, como funções da dimensão objetiva, podemos citar a interpretação do direito em conformidade com os direitos fundamentais, a proteção em face de riscos e o efeito irradiante dos direitos fundamentais. No que concerne a esta última, os direitos fundamentais devem ser respeitados não apenas pelo Estado, mas vinculam também os particulares, uma vez que irradiam efeitos para as relações privadas regradas em nível infraconstitucional. Assim, diz respeito à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, também denominada “eficácia contra terceiros” ou “eficácia horizontal” (LEDUR, 2009). Além do mais, da dimensão objetiva dos direitos fundamentais decorrem tanto deveres vinculativos de proteção por parte do Estado, bem como (até mesmo para dar conta de tais deveres), o dever de assegurar, mediante organização e procedimento, a fruição de tais direitos (DIMOULIUS; MARTINS, 2011, p. 118 e ss.; CANOTILHO, 2003, p. 476 e ss.). Portanto, para que haja uma proteção plena aos direitos fundamentais, mister que se conjugue ambas as dimensões. Enquanto a dimensão objetiva traz uma proteção que

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transcende a esfera individual, proibindo que a eficácia de um direito fundamental seja restrita de tal forma que o torne sem significado para a coletividade, a dimensão subjetiva protege o direito fundamental de um indivíduo (ou mesmo de um grupo/coletividade) em um caso concreto (SILVA, 2011). 3 O PROBLEMA DA MORA DO LEGISLADOR E A IMPORTÂNCIA DO RECONHECIMENTO DA EFICÁCIA E APLICABILIDADE NO CASO DO DEVER (E DO DIREITO-GARANTIA) DE PROTEÇÃO CONTRA A DESPEDIDA ARBITRÁRIA Vários autores afirmam, com convicção, que a estabilidade do trabalhador no emprego foi um dos temas mais discutidos no seio da Assembleia Nacional Constituinte (SÜSSEKIND, 2010; CHIARELLI, 1989; LEDUR, 2012). De acordo com Sussekind (2010), em um primeiro momento da Constituinte, foram aprovadas disposições assegurando estabilidade no emprego. Contudo, no decorrer das tramitações, por força da influência dos grupos empresariais, a estabilidade cedeu lugar à garantia de emprego, e a Constituição, em sua versão final, dispôs acerca do instituto da seguinte forma: Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos. (BRASIL, 2010).

Os textos constitucionais anteriores não possuíam norma disciplinando a proibição da despedida arbitrária, mas dispunham acerca da estabilidade no emprego. Entretanto, havia previsões infraconstitucionais disciplinando tanto a estabilidade quanto a garantia de emprego. Nesse sentido, o artigo 492 da CLT assegurava a estabilidade decenal (a qual era a única alternativa disciplinadora dos contratos de trabalho até o surgimento da Lei 8.036/65, conhecida como Lei do FGTS), enquanto o artigo 543 da CLT concedia estabilidade ao dirigente sindical. Ademais, o cipeiro possuía garantia de emprego (artigo 165 da CLT), assim como as gestantes de categorias profissionais que a conquistaram por meio de normas coletivas (LEDUR, 2011, p. 104-126). Certo é que não se pode confundir a estabilidade no emprego com a garantida de emprego, e Chiarelli nos apresenta uma lapidar diferenciação: A estabilidade tradicional, estratificada e pouco moldável à realidade econômica dinâmica de nossos dias, requeria inquérito prévio, perante a Justiça e condicionava a valia da despedida a que o empregado cometesse um ato delituoso. No mínimo, a culpa agravada, pela reiteração ou pela lesividade altamente danosa do erro, da omissão, do despreparo técnico-funcional. Ou pelo dolo, isto é, pela intenção de prejudicar a empresa, de danificar patrimônio, de atuar erroneamente. O trabalhador para ser afastado do emprego, no qual era estável teria de ser antes caracterizado como um “delituoso laboral”, com o ingrediente do ilícito, ou, pelo menos, do desrespeito contratual contundente. Na garantia de emprego, não é nada disso. O rompimento contratual por iniciativa unilateral do empregador pode ocorrer, desde que, mesmo sendo o trabalhador um empregado zeloso e prestativo, sem culpa pessoal ou funcional, por omissão

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Proteção contra a despedida arbitrária... ou comissão, haja uma motivação que sobrepaire a sua vontade e que atue como concausa para embasar a decisão patronal. (CHIARELLI, 1989, p. 17).

Portanto, o que a Constituição permite é a despedida do empregado por motivo que possa justificá-la. Assim, veda tanto a despedida abusiva, ou seja, arbitrária, quanto a despedida sem justo motivo (COUTINHO, 2013, p. 552-557). Entretanto, este não precisa ser necessariamente o cometimento de um ato delituoso, danoso ou lesivo pelo empregado: basta que haja um fato que determine uma causa justificável e que não seja produto do arbítrio do empregador. Ademais, tal motivação terá de ser acompanhada de indenização, a ser fixada em lei, em nome do interesse coletivo e das prioridades sociais (CHIARELLI, 1989). O grande problema não foi a constitucionalização da garantia de emprego em lugar da estabilidade no emprego, mas sim o condicionamento da plena eficácia da norma constitucional à regulamentação infraconstitucional. De acordo com José Felipe Ledur, isso foi proposital, e partiu da certeza de que a regra não seria editada logo (LEDUR, 2012, p. 104-126), tanto é que até hoje carecemos da referida norma regulamentadora. Enquanto inexistir lei que regulamente a norma constitucional em comento, prevalece o disposto no artigo 10 do Ato de Disposições Transitórias.3 Tal norma, como o próprio nome sugere, deveria ser Transitória, e não Definitiva. Entretanto, passados vinte e cinco anos da promulgação da Constituição, ainda somos tutelados por ela. Enquanto a lei complementar inexistir, apenas os empregados relacionados no Artigo 10, II da ADCT gozarão efetivamente de garantia no emprego.4 Contudo, cabe salientar que, mesmo para estes, tal garantia é transitória, visto que somente existirá enquanto o empregado estiver enquadrado em uma das situações descritas em tal dispositivo. Quanto aos demais trabalhadores, consoante disposto no artigo 10, I, da ADCT, a proteção ficará limitada ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no Art. 6º, caput e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, ou seja, a proteção corresponderá à indenização compensatória de 40% sobre o valor do FGTS. Quanto a esse inciso, a doutrina tece, com razão, severas críticas, na medida em que uma simples indenização não tem o condão de proteger o trabalhador em face da despedida arbitrária ou sem justa causa (BELMONTE, 2010, p. 377-398). Dessa forma, ao invés de proteger, referida indenização “[...] termina por obstar a realização do direito que pretendeu assegurar.” (BELMONTE, 2010, p. 382). Diante de tal quadro, aqui sumariamente esboçado, é perceptível, especialmente considerando a centralidade do emprego para a realização do próprio Direito ao Trabalho, que não foi à toa que o constituinte, ao dispor acerca dos direitos fundamentais sociais dos trabalhadores, optou por iniciar o rol com a proibição da despedida arbitrária. A posição topográfica desse direito deve-se ao fato de sua efetivação ser essencial para a realização plena de outros direitos fundamentais, especialmente os diretamente relacionados aos trabalhadores.

Art. 10 - Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o Art. 7º, I, da Constituição. Há divergências acerca da situação do empregado acidentado: apesar de o TST entender que é caso de estabilidade provisória, alguns doutrinadores, como Ledur (2012. p. 104-126), não têm dúvidas de que se trata de típica garantia de emprego. 3 4

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Nesse sentido, calhar transcrever primorosa passagem da lavra de Wandelli (2012, p. 307-308): A doutrina é assente em que a proteção em face da despedida integra o núcleo essencial do direito fundamental ao trabalho. Esse aspecto, no âmbito das relações assalariadas, é o eixo sobre o qual giram os fatores mais determinantes para todos os demais direitos decorrentes da relação de emprego. Frente à desproteção em face da despedida, todo o conjunto de direitos e valores jurídicos associados à relação de emprego fica materialmente esvaziado. A começar por direitos fundamentais nucleares para uma conformação social democrática, como o direito de acesso à justiça, o direito de organização coletiva no trabalho e o direito de greve, cuja possibilidade de efetivo exercício é substancialmente neutralizada pela ameaça, expressa e tácita, da perda do emprego pela ruptura do vínculo por um simples ato imotivado de exercício de poder privado pelo empregador. Sem falar em outros direitos fundamentais que são frequentemente vulnerabilizados ou diretamente violados pelo ato de despedida, como o direito de não ser discriminado (CR, art. 3º, IV), e ainda determinados bens constitucionalmente relevantes, como o princípio constitucional de solidariedade, e mesmo a boa-fé contratual e a função social do contrato.

Um exemplo de que a falta de regulamentação da motivação da despedida traz sérios prejuízos à efetivação dos demais direitos dos trabalhadores envolve o artigo 7º, XXIX, CF,5 que dispõe acerca do prazo prescricional das ações trabalhistas. Não havendo legislação infraconstitucional dispondo acerca da necessidade de motivar a despedida, o direito de ingressar com ação pleiteando créditos trabalhistas durante a relação de emprego resta prejudicado, uma vez que, em situações assim, o empregador usa do seu poder de comando para dispensar o empregado. Como o empregador não precisa justificar a despedida, apesar de esta ser um dever fundamental, o empregado sente-se compelido a não lutar pelos seus direitos. Assim, mesmo que a relação de emprego persista por muitos anos, e o empregado ingressar com ação logo somente após ser demitido, só poderá pleitear as verbas correspondentes aos últimos cinco anos de trabalho, o que caracteriza, sem dúvida, enriquecimento ilícito do empregador. Ressalta-se, ainda, que, após o término do vínculo laboral, quanto mais tempo esperar para ingressar com a ação, menos direitos terá a pleitear, uma vez que o prazo prescricional é cinco anos, mas até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho. Diante dessa situação, há quem entenda que o ideal seria que o prazo prescricional não corresse durante o curso do contrato de trabalho,6 solução que, convém contrapor, poderia implicar, caso não matizada, violação dos critérios da proporcionalidade. De qualquer sorte, não é aqui que desenvolveremos tal Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condiçãosocial: XXIX - ação, quanto aos créditos resultantes das relações de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato de trabalho. 6 Nesse sentido, foi uma das teses aprovada na XV CONAMAT, realizado entre 28/04/2010 e 01/05/2010: “Título: Inaplicabilidade da Prescrição enquanto não efetivado o direito contra dispensa arbitrária  Ementa: Proteção Constitucional contra a Dispensa Arbitrária (artigo 7º, I, CF). Não-Regulamentação. Prescrição Quinquenal: Inaplicabilidade. Considerando que a prescrição não é um “prêmio” para o mau pagador, enquanto não aplicado efetivamente o direito de proteção contra a dispensa arbitrária previsto no inciso I do art. 7º da CF, que gera ao trabalhador a impossibilidade concreta de buscar os seus direitos pela via judicial, não se pode considerar eficaz a regra do inciso XXIX do artigo 7º, no que se refere à prescrição que corre durante o curso da relação de emprego.” Disponível em: . Acesso em: 03 jun. 2013. 5

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aspecto, que apenas foi referido para ilustrar a relevância e a conexão da proteção contra despedida arbitrária com outros direitos e garantias dos trabalhadores. Ainda nessa quadra introdutória ao tópico, importa frisar que o constituinte, ao garantir a relação de emprego protegida contra a dispensa arbitrária, optou, também, por estabelecer um dever fundamental para o empregador (SEVERO, 2011, p. 171 e ss.). Assim, ao negar-se, ainda hoje, a necessidade de motivação da despedida, viola-se não apenas o direito, mas também o dever de exigir que o empregador o cumpra. Portanto, por meio de um só ato, ocorrem duas situações problemáticas, que podem representar violação de direitos fundamentais, pois além da violação do dever de proteção contra a despedida arbitrária (e do correspondente direito fundamental), com isso poderão, em alguma medida, serem afetados outros direitos dos trabalhadores, muito embora isso demanda exame específico que não constitui o objeto do presente trabalho. Ademais, a não efetivação do direito à motivação da despedida não se traduz apenas em desrespeito à regra constitucional (o que já seria motivo mais do que suficiente para realizá-lo), mas também a princípios, especialmente o da proteção (princípio-chave do Direito do Trabalho), e – em certa medida - o da dignidade da pessoa humana, os quais remetem ao mesmo valor fundamental, a saber, o disposto no artigo 3º, I, da Constituição Federal (SEVERO, 2011, p. 271). Em que pese ser possível admitir que o direito à proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa possa ser concretizado mesmo com a falta de norma infraconstitucional,7 certamente a edição da lei complementar faltante permitiria, com maior facilidade, a realização do aludido direito. Percebe-se que, apesar da morosidade do Legislativo em aprovar lei que proteja a relação de emprego e que garanta indenização digna ao trabalhador despedido, há diversos projetos acerca do assunto originários da Câmara dos Deputados (BRASIL, 1988a, BRASIL, 1988b; BRASIL, 1988c; BRASIL, 1989; BRASIL, 1991; BRASIL, 1995a; BRASIL, 1995b; BRASIL, 2001; BRASIL, 2003; BRASIL, 2004; BRASIL, 2008a; BRASIL, 2008b), e apenas um oriundo do Senado Federal (BRASIL, 2012), os quais, sinteticamente, regulamentam o artigo 7º, I, da Constituição Federal e definem as situações que caracterizam a dispensa arbitrária, bem como o valor da indenização compensatória. O artigo 7º, I, da Constituição Federal foi, sem dúvida, o dispositivo que mais deu ensejo a projetos de lei. Contudo, isso não basta. Urge que tal inciso seja regulamentado, tendo em vista ser ele o cerne dos direitos trabalhistas previstos na Constituição Federal. Dessa forma, somente teremos todos os direitos constitucionais dos trabalhadores efetivados quando a garantia de emprego realmente existir. A descrença de que a norma será editada logo pode ser justificada não somente pela mora do legislador, mas também pelo impasse que envolveu a Convenção n. 158 da OIT pelo Brasil. Explica-se: referida Convenção, ratificada em 04 de janeiro de 1995, cuja eficácia somente ocorreu com a publicação do respectivo texto no Diário Oficial, através

Nesse sentido, ensina Wandelli (2012), ao admitir a incidência direta da norma constitucional, uma vez que a norma complementar serviria basicamente para estabelecer o quantum indenizatório. Conclui-se, pela análise dos projetos, que o aludido autor está com razão. 7

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do Decreto de Promulgação n. 1.855, de 10 de abril de 1996, foi, pouco tempo depois (em 20 de novembro de 1996), denunciada, devido à pressão de grupos empresariais para que a garantia de emprego não fosse efetivada. A denúncia da Convenção 158 da OIT gerou polêmica. Por ser um tratado-normati8 vo e estar já inserida no ordenamento nacional, tal Convenção só poderia ser denunciada validamente se o Congresso Nacional fosse ouvido, por meio de referendo, o que não ocorreu (GONÇALVES, 2003). Nesse sentido, pertinentes os ensinamentos de Süssekind (2010, p. 157): Ora, as convenções de caráter normativo da OIT, inclusive a 158, precisamente porque têm por finalidade a integração das suas normas na legislação dos países que as ratificam, atribuem a faculdade da denúncia ao Membro isto é, ao Estado e não ao respectivo governo. Destarte, a aprovação das Convenção 158 pelo Congresso Nacional brasileiro (Decreto legislativo n. 68/92) não importou em autorizar o Poder Executivo a denunciar a correspondente ratificação se e quando lhe aprouvesse, porque, juridicamente, Estado e Governo são entidades distintas e os textos da OIT fazem nitidamente essa distinção.

A revogação de tratado internacional, já incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro, sem a oitiva do Congresso Nacional, caracterizou grave afronta ao sistema constitucional. Apesar disso, o impasse envolvendo a denúncia da Convenção foi resolvido pelo Supremo Tribunal Federal com o julgamento, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1480-DF,9 que suspendeu os efeitos sobre a legislação brasileira, sob o argumento de que os tratados internacionais celebrados pelo Brasil não podem versar matéria posta sob reserva de lei complementar, visto que, nessas situações, a própria Carta Magna subordina o tratamento legislativo de determinado tema ao exclusivo domínio normativo da lei complementar (SÜSSEKIND, 2010, p. 148-159). Portanto, após a revogação da Convenção 158 da OIT, o trabalhador ficou, novamente, desprotegido, uma vez que uma mera indenização pecuniária preestabelecida não tem o condão de efetivar o direito disposto no artigo 7º, I, da Constituição Federal.

Diferentemente do tratado contrato, o contrato-normativo visa a produzir efeitos jurídicos em relação aos que vivem nos países que a eles aderiram. (SÜSSEKIND, 2010). 9 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - CONVENÇÃO N. 158/OIT - PROTEÇÃO DO TRABALHADOR CONTRA A DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA - ARGÜIÇÃO DE ILEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DOS ATOS QUE INCORPORARAM ESSA CONVENÇÃO INTERNACIONAL AO DIREITO POSITIVO INTERNO DO BRASIL (DECRETO LEGISLATIVO N. 68/92 E DECRETO N.  1.855/96)- POSSIBILIDADE DE CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS EM FACE DA CONSTITUIÇÃODA REPÚBLICA - ALEGADA TRANSGRESSÃO AO ART. 7º, I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA E AO ART. 10, I DO ADCT/88 - REGULAMENTAÇÃO NORMATIVA DA PROTEÇÃO CONTRA A DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA, POSTA SOB RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR - CONSEQÜENTE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DE TRATADO OU CONVENÇÃO INTERNACIONAL ATUAR COMO SUCEDÂNEO DA LEI COMPLEMENTAR EXIGIDA PELA CONSTITUIÇÃO (CF, ART. 7º, I)- CONSAGRAÇÃO CONSTITUCIONAL DA GARANTIA DE INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA COMO EXPRESSÃO DA REAÇÃO ESTATAL À DEMISSÃO ARBITRÁRIA DO TRABALHADOR (CF, ART. 7º, I, C/C O ART. 10, I DO ADCT/88)- CONTEÚDO PROGRAMÁTICO DA CONVENÇÃO N. 158/OIT, CUJA APLICABILIDADE DEPENDE DA AÇÃO NORMATIVA DO LEGISLADOR INTERNO DE CADA PAÍS - POSSIBILIDADE DE ADEQUAÇÃO DAS DIRETRIZES CONSTANTES DA CONVENÇÃO N. 158/OIT ÀS EXIGÊNCIAS FORMAIS E MATERIAIS DO ESTATUTO CONSTITUCIONAL BRASILEIRO - PEDIDO DE MEDIDA CAUTELAR DEFERIDO, EM PARTE, MEDIANTE INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO. PROCEDIMENTO CONSTITUCIONAL DE INCORPORAÇÃO DOS TRATADOS OU CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1.480-MC. Requerentes: Confederação Nacional do Transporte e Confederação Nacional da Indústria. Requeridos: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Min. Celso de Mello. Julgado em: 04 de setembro de 1997. Disponível em: . Acesso em 28 jun. 2014. 8

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Enquanto a lei complementar prevista no referido dispositivo não for editada, o Estado, na figura do Poder Legislativo, continuará infringindo seu dever de proteção, na medida em que, por omissão, desatende ordem constitucional para ele dirigida especificamente. O que chama a atenção, em face desse quadro de contumaz omissão inconstitucional, é que a despeito da existência de ações constitucionais específicos para o combate da omissão normativa (não apenas legislativa), como é o caso da ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do próprio mandado de injunção, não se registra o manejo de ação na esfera do controle abstrato e concentrado da omissão tendo por objeto a mora legislativa em relação ao artigo 7º, I, CF. Talvez isso se deva ao fato de tal ação ter resultados mais abstratos, uma vez que se limita a declarar omissão inconstitucional e a cientificar o Poder Legislativo acerca do dever de editar as normas. Piovesan entende que seria mais eficaz se o Supremo Tribunal Federal, além de declarar a inconstitucionalidade, conferisse ao poder legislativo prazo para legislar. No caso de o legislador permanecer omisso, o STF teria legitimidade para efetivar a norma constitucional, ao menos até que o legislador resolvesse cumprir sua função (PIOVESAN, 2003). Já o mandado de injunção foi utilizado algumas vezes como forma de tentar efetivar o mandamento constitucional da proteção contra despedida arbitrária.10 No entanto, em nenhuma das três vezes em que se lançou mão desse instrumento, houve julgamento do mérito, visto que as ações não foram conhecidas. Tais resultados – ainda mais tendo em conta o tempo decorrido desde a promulgação da CF e a relevância da matéria - são desanimadores, pois demonstram que não só o Legislativo evita regular a matéria, mas também o Poder Judiciário não utiliza (como já o fez em outras ocasiões, como foi o caso do direito de greve dos servidores públicos e mesmo no caso do aviso prévio proporcional) o ferramental que o próprio constituinte lhe colocou à disposição. 4 CONCLUSÃO Em virtude do acordo político celebrado durante a Constituinte, deu-se aos trabalhadores uma série de direitos, mas não plenamente, uma vez que, para tanto, seria necessária a atuação posterior do legislador infraconstitucional. Tal foi o que ocorreu com a proibição da despedida arbitrária, mais importante dos direitos trabalhistas, uma vez que é pré-requisito para a plena realização dos demais. Contudo, ainda hoje, passados vinte e cinco anos da promulgação da Magna Carta, o legislador permanece omisso. A ineficácia dos direitos sociais prestacionais trabalhistas, especialmente o direito à motivação da despedida, acarreta sérios prejuízos aos trabalhadores, tendo em vista que lhes nega direitos não só constitucionalmente reconhecidos, mas direitos constitucionalmente reconhecidos com status de fundamentais. Em um Estado Social, tal conduta é impensável, ainda mais por se tratar de direitos dos trabalhadores, regidos pelo princípio da proteção. De todo modo, a ausência de manejo da ação direta por omissão e mesmo do mandado de injunção, onde o Supremo Tribunal Federal poderia emitir provimento geral

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MI 487, MI 114 e MI 628.

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e vinculativo provisório e induzir a atuação legislativa, não parece ser, por si só, um obstáculo incontornável ao reconhecimento, no caso concreto, de alguns efeitos ao dever constitucional, mas especialmente ao direito fundamental à proteção contra despedida arbitrária, visto que nenhuma norma constitucional, notadamente em se tratando de norma definidora de direito e garantia fundamental, é destituída de eficácia e aplicabilidade. Assim, mesmo diante da ausência de norma regulamentadora, o direito à motivação da despedida possui eficácia, ainda mais se for admitido (como já adiantado em sintonia com relevante doutrina) que a norma complementar serviria apenas para determinar o quantum indenizatório. O fato é que a omissão legislativa não poderia (ou não deveria!) impedir, em se tratando de direito fundamental, a extração de algum efeito útil deduzido diretamente da normativa constitucional, especialmente quando configurada de forma cabal a mora, pena de desnaturada sensivelmente o caráter contra majoritário peculiar aos direitos fundamentais. De qualquer sorte, é o labor jurisprudencial, municiado pela doutrina, que poderá dar vida ao direito-dever de proteção contra a despedida arbitrária, muito embora também aqui não se pode afastar a ocorrência de outro tipo de arbítrio e uma dose de insegurança jurídica, já que a diversidade de posicionamento dos juízes sobre a matéria, especialmente no âmbito da solução dos casos concretos, poderá ensejar uma série de outros problemas. De todo modo, como se dá em outros domínios, é preciso apostar numa postura ao mesmo tempo amiga da normatividade constitucional, mas simultaneamente prudencial, evitando o voluntarismo e decisionismo irresponsável e que apenas visualiza um direito e não mostra qualquer compromisso com o sistema dos direitos fundamentais no seu conjunto. REFERÊNCIAS ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. BRASIL. Constituição (1988). Emenda Constitucional n. 64, de 04 de fevereiro de 2010. Dos direitos e garantias fundamentais. Senado Federal. Brasília, DF, 04 fev. 2010. Disponível em: http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/con1988_04.02.2010/ art_7_.shtm. Acesso em: 10 nov. 2013. BRASIL. Projeto de Lei Complementar n. 31/1988, de 18 de outubro de 1988. Veda a despedida arbitraria ou sem justa causa do empregado. Câmara dos deputados. Brasília, DF, 18 out. 1988a. Disponível em: . Acesso em: 10 maio 2013. BRASIL. Projeto de Lei Complementar n. 33/1988, de 17 de novembro de 1988. Dispõe sobre a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa do trabalhador e dá outras providências. Câmara dos deputados. Brasília, DF, 17 nov. 1988b. Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2013.

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EFICÁCIA E EFETIVIDADE DO DIREITO À LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO NAS RELAÇÕES DE TRABALHO – O PROBLEMA DAS REDES SOCIAIS Denise Fincato* Andressa Gudde**

Resumo O direito à liberdade de manifestação do pensamento constitui um dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, sendo que a análise de sua história, conteúdo e finalidades permite, desde logo, identificar pontos de intersecção com o tema objeto do presente estudo, qual seja, o seu exercício, pelo empregado, nas redes sociais na Internet, em relação ao seu empregador e/ou à sua atividade profissional. Passa-se, assim, à análise da eficácia do direito à liberdade de manifestação do pensamento no âmbito das relações de trabalho, passando-se por um breve exame das diferentes correntes doutrinárias acerca do problema da eficácia dos direitos fundamentais na sua vinculação entre os particulares, bem como dos princípios de Direito de Trabalho afetos ao tema. Ato contínuo examinam-se os limites atribuídos aos direitos fundamentais, bem como os contornos de sua limitação, de forma a fornecer as premissas teóricas necessárias para uma adequada compreensão do problema da colisão de direitos fundamentais no que tange ao exercício do direito à liberdade de manifestação do pensamento nas redes sociais na Internet pelo empregado, frente ao direito fundamental à propriedade privada e à expectativa de observância do dever de lealdade (princípio da boa-fé) e culmina-se examinando a efetividade deste direito nas relações laborais. Palavras-chave: Liberdade de manifestação do pensamento. Relações de trabalho. Redes sociais na Internet. Abstract The right of freedom of thought expression constitutes one of the pretexts from the Democratic State of Law, considering that the analysis of its history, content and purpose allows, primarily, identifying points of intersection with the topic of the present study, whatever it is your labor, by the employee, on the Internet social networks, relating to his employer and/or his professional activity. This way, the analysis of the effectiveness of the right of freedom of thought expression on the ambit of work relationships, going through a brief examination of the different doctrinaire chains about the problem of fundamental rights efficacy on its linking between the particulars, as well as the principles of the Labor Law inured to the topic. Continuous act, the attributed limits to the

_________________ * Doutora e Mestre em Direito; Advogada Trabalhista; Professora Pesquisadora no PPGD da PUCRS; Coordenadora do Grupo de Pesquisas Novas Tecnologias e Relações de Trabalho da PUCRS/CNPq; [email protected] ** Mestranda em Direito pelo PPGD-PUCRS; Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Advogada Trabalhista; [email protected]

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fundamental rights, as well as the limits to its limitation, are examined to provide the necessary theoretic premises for an adequate comprehension of the collision of fundamental rights problem that refers to the exercitation of the right of freedom of thought expression on Internet social networks by the employee, facing the fundamental right to private property and the observance expectative of the obligation of loyalty (principle of good faith), to the examination of the efficacy of this right on laboral relationships. Keywords: Freedom of thought expression. Work relationships. Internet social networks. 1 INTRODUÇÃO As relações de trabalho enfrentam velhos e novos desafios. Velhos, porque ainda não restaram superadas as desigualdades que lhes justificam o alto grau de proteção; novos, porque os avanços tecnológicos trazem em seu bojo situações até então não enfrentadas e que impõem um exercício hermenêutico sistemático e transdisciplinar como única forma de o Direito fornecer-lhes respostas adequadas e em conformidade com a contemporânea ordem constitucional. É neste cenário de incertezas que se buscará examinar o problema da eficácia e da efetividade do direito à liberdade de manifestação do pensamento quando o seu exercício se der no ambiente das redes sociais na Internet por um empregado em relação ao seu empregador. É admissível que o empregado externe opiniões negativas a respeito do seu empregador ou quanto aos seus modos de organização da atividade laboral e suas decisões empresariais? Pode o empregado adotar comportamentos que possam refletir negativamente na imagem da empresa? A liberdade do empregado encontra limites no direito fundamental à propriedade, sendo permitida a interferência patronal em sua vida extraprofissional sempre que seu comportamento for suscetível de causar danos aos interesses da empresa? Qual a real efetividade deste direito (do seu exercício) nas relações de trabalho e qual o alcance da autodeterminação do trabalhador para dele dispor, quando (e se) for o caso? Para o fornecimento de respostas a tais perguntas é que o presente estudo busca contribuir. 2 DO DIREITO À LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO: PRIMEIROS PONTOS DE INTERSECÇÃO Se na Antiguidade a participação e contribuição dos cidadãos era um elemento importante da política grega, é certo que o direito individual (e coletivo) à liberdade de manifestação do pensamento, em sua configuração atual, somente se fez possível em razão de marcos históricos como a quebra da unidade religiosa pela Reforma Protestante, pela autonomização e abertura do sistema científico e econômico que se observa a partir do Iluminismo, pelo desenvolvimento da imprensa, do nascimento da noção de opinião pública, passando pelos movimentos constitucionais do século XX até a constitucionalização da liberdade de expressão e comunicação, superando o desafio imposto pelos regimes

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Eficácia e efetividade do direito à liberdade...

totalitários do século passado (SARMENTO, 2013, P. 252).1 Presente nas Constituições brasileiras desde 1824, ainda que sob diferentes enfoques – ora relacionado à liberdade de imprensa (Constituição de 1824), ora sob o crivo da censura prévia (Constituições de 1937, 1964 – Ato Institucional n. 2, 1967 e 1969), e desde 1891 sendo-lhe vedado o anonimato, o direito à liberdade de manifestação do pensamento ganha em significado e importância a partir da Constituição Federal de 1988, no cenário de redemocratização do país (SARMENTO, 2013).2 Relaciona-se de forma íntima a outros direitos fundamentais, consignando-lhes sentido ou servindo-lhes de referência ou base primeira. Assim o é em relação à liberdade de participação política, religiosa, intelectual e artística, de reunião, de exercício da profissão, dentre outros (MACHADO, 2002, p. 16). Considerada a Constituição Federal brasileira de 1988, relaciona-se aos direitos previstos nos incisos V (direito de resposta), IX (liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação), XIV (direito de acesso à informação) e XVI (liberdade de reunião) do artigo 5º, assim como a diversos outros espalhados ao longo do texto constitucional, seja no que diz respeito à possibilidade de sua restrição (apenas para citar um: faz-se referência ao artigo 139, inciso III, o qual prevê a possibilidade de restrição à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão na vigência do estado de sítio), seja para garantir-lhe a manutenção de sua premissa originária: uma educação que tem como princípio a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, tendo por norte o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas distintas (artigo 206, incisos II e III) (SARMENTO, 2013). Intrinsecamente relacionado ao direito à dignidade da pessoa humana e seu livre desenvolvimento da personalidade3 (como de fato o são todos os direitos fundamentais à liberdade individual, mesmo, e especialmente, em estados democráticos e plurais de direitos) (RIDOLA, 2014, p. 111), o direito à liberdade de manifestação do pensamento protege “[...] toda opinião, convicção, comentários, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor ou não [...]”, nele inserindo-se toda mensagem e tudo aquilo que pode ser comunicado (MENDES; BRANCO, 2013, p. 264). Dada a sua amplitude de concei-

Para aprofundar o tema, objetivo com o qual não se identifica o presente e modesto artigo, é indispensável a leitura de Machado (2002). 2 Também para Javier Pérez Royo, o direito à libertad de expresión y a la información traduz expressão e condição ao Estado Democrático de Direito: “Son unas libertades tan básicas que, si llegan a constituirse en problema, es señal de una enfermedad muy grave en el cuerpo social y político.” (ROYO, 1997, p. 300). 3 “O ser humano se forma no contato com o seu semelhante, mostrando-se a liberdade de se comunicar como condição relevante para a própria higidez psicossocial da pessoa. O direito de se comunicar livremente conecta-se com a característica da sociabilidade da sociedade, essencial ao ser humano.” (MENDES; BRANCO, 2013, p. 264). Válido também referenciar a lição segundo a qual o desrespeito ou inobservância do direito à liberdade de expressão do pensamento implica em atentado ao direito ao desenvolvimento da personalidade. (MIRANDA; MEDEIROS, 2005, p. 428). 1

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tos, aplicações semânticas4, entendimentos e linhas de compreensão5, sugere-se aqui que sua melhor apreensão passe pelo exame de suas finalidades e justificativas. Assim, em um expressivo e significativo apanhado das finalidades substantivas do direito à liberdade de expressão apostas pela doutrina constitucional, Machado (2002, p. 237-291) destaca como objetivos fundamentais do direito em estudo a i) procura da verdade, ii) a promoção de um mercado livre de ideias, iii) a autodeterminação democrática, iv) a garantia de diversidade de opiniões, v) a estabilidade social (e transformação pacífica da sociedade) e vi) a expressão da personalidade individual, ressaltando a necessidade de atribuir ao mesmo um caráter multifuncional e multisistêmico, de forma a não ser reduzido por concepções estanques, incapazes de apreender todas as suas acepções nos diferentes níveis da vida em sociedade e na esfera pessoal de cada indivíduo. Para os objetivos do presente estudo, a liberdade de manifestação do pensamento será analisada no bojo das relações de trabalho e no ambiente das redes sociais na Internet, destacando-se a finalidade do discurso público, o objetivo relacionado à acomodação de interesses e transformação pacífica da sociedade e, por último, da autonomia individual, buscando-se desde já demonstrar o diálogo entre a teoria (finalidades do direito à liberdade de manifestação do pensamento) e a realidade (exercício deste direito no âmbito das relações de trabalho e nas redes sociais na Internet). A primeira finalidade atribui ao direito à liberdade de expressão a permissão/ possibilidade de criação de uma esfera de discurso público, marcada pela abertura à livre comunicação de ideias, informações, pontos de vista e opiniões que traduzem diferentes juízos valorativos, sujeitas à valoração positiva ou negativa de seus membros (conforme o exame mais ou menos crítico, racional e exaustivo), e que se desenvolve em uma rede conversacional, sem fronteiras definidas (“Ele é um ‘locus’, embora não em sentido físico, em que o debate tem consequências”) (MACHADO, 2002, p. 269). Neste ambiente, as ideias poderão ser questionadas, negadas, testadas e contraditadas, sofrendo inflexões internas e externas, através de um debate aberto, franco e confrontacional (sem que se abra mão de um mínimo de regras e procedimentos que garantam a urbanidade deste processo dialógico), de forma a afastar os seus participantes de suas posições originárias marcadas por um maior ou menor privilégio e poder social, permitindo, assim, um maior acesso ao amplo e autêntico debate6. Ora, o que são as redes sociais na Internet senão espaços nos quais é possível a livre comunicação de ideias, informações e opiniões, sujeitas à valoração dos seus membros, em uma rede conversacional sem fronteiras definidas?

Em Portugal, por exemplo, o direito à liberdade de manifestação e o direito à liberdade de expressão, muito embora correlatos, possuem sentidos e conceituações diversas – assim, o direito à manifestação na Constituição Portuguesa é decorrência do direito à reunião (artigo 45), ao passo que é o direito à liberdade de expressão e informação, esculpido no artigo 37 da carta política lusitana, o que melhor se aproxima do direito em exame. Para Sérvulo Correia, o direito à liberdade de manifestação é exercido a partir de um conjunto físico de pessoas com o propósito de expressarem uma ideia que lhes é comum, ao passo que o exercício isolado do direito à manifestação está inserto no direito à liberdade de expressão do pensamento, na medida em que “[...] a manifestação é uma espécie de reunião e isso torna-a incompatível com um exercício solitário do direito.” (CORREIA , 2006, p. 36-37). 5 Para alguns entendidos como espécie do direito “gênero” à liberdade de expressão, ao qual se somam o inciso XIV do artigo 5º (o qual assegura a todos o acesso à informação) e o art. 220, todos da Constituição Federal brasileira. (MENDES; BRANCO, 2013, p. 263). 6 Propositalmente, por entender-se que não atende aos objetivos do presente estudo, será deixado de lado o exame da formação da opinião pública, mencionada pelo referido autor em conjunto à esfera do discurso público. 4

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Eficácia e efetividade do direito à liberdade...

Se os atores sociais envolvidos em tais redes são, ao mesmo tempo, partícipes de uma relação laboral, online ou offline, é possível que em tal espaço virtual se espere a diminuição dos privilégios e poderes sociais inerentes a tais relações jurídicas, propiciando, assim, um debate franco de ideias e posições? Adiante neste estudo, tais questionamentos serão devidamente retomados – após o exame do grau de eficácia do direito à liberdade de manifestação do pensamento no âmbito das relações de trabalho e postas as premissas necessárias à adequada compreensão do fenômeno das redes sociais na Internet e seu impacto nas relações laborais. O segundo objetivo, visto a partir da ótica da relação Estado-cidadão, que em certa medida assemelha-se às relações de trabalho, uma vez que ambas as relações são marcadas por diferenças de poder entre os seus participantes, compreende o direito à liberdade de expressão como forma de acomodação dos interesses em conflito, já que um espaço livre para manifestação de ideias e opiniões pressupõe uma relação de confiança entre os seus participantes, estando, por conseguinte, menos sujeito a convulsões internas. Ademais, um ambiente que reúna tais características é propício à manifestação das insurgências das minorias (como o são os empregados no âmbito de uma relação empregatícia, se entender-se este polo como o mais fraco – ou hipossuficiente), as quais terão oportunidade não apenas de serem ouvidas, mas também de serem respeitadas e atendidas em seus anseios, antecipando, portanto, soluções, e abrindo um importante canal ao diálogo e aprendizado mútuo (MACHADO, 2002, p. 282-284). Por fim, o terceiro objetivo fundamental volta a sua atenção para a promoção e expressão da autonomia individual, ou seja, relaciona o direito à liberdade de expressão ao livre desenvolvimento da personalidade – “[...] se baseia na liberdade de cada um para formar as suas crenças e concepções e as de comunicar aos outros da forma que entender adequada” (MACHADO, 2002, p. 286), guardando estreita relação, portanto, com a realização pessoal, a liberdade de escolha e a valorização da autonomia individual. Propõe-se aqui um paralelo com o estudo de Castells (2013, p. 159, 167-70), o qual aponta a individuação e a autonomia como tendências da sociedade moderna, ponto de partida para o entendimento dos movimentos sociais na era da Internet. Para o sociólogo espanhol, individuação traduz-se pela tendência cultural que enfatiza os projetos do indivíduo como supremo princípio orientador de seu comportamento, não devendo ser confundido com individualismo, já que os projetos individuais podem ter profundas relações com o bem-estar coletivo. Já a autonomia refere-se à capacidade do indivíduo definir suas ações em prol de projetos independentes das instituições sociais, a partir de seus próprios valores e interesses7. Apresentados os primeiros pontos de intersecção entre o direito à liberdade de manifestação do pensamento e as relações de trabalho (inseridas no contexto das redes sociais na Internet), a partir do exame de algumas das finalidades e objetivos do men-

Machado (2002, p. 286) trilha semelhante caminho ao ressaltar que “[...] está hoje cada vez mais generalizada a convicção de que a liberdade de expressão e de discussão constitui um elemento fundamental de desenvolvimento pessoal. Semelhante convicção vai ao encontro do individualismo metodológico que caracteriza o paradigma da modernidade [...]”. Sobre o impacto da “modernidade líquida” para as interações humanas, ver Bauman (2004). 7

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cionado direito fundamental, avança-se para a análise de sua eficácia em tais relações jurídicas. 3 EFICÁCIA DO DIREITO À LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO NO ÂMBITO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO A eficácia de uma norma jurídica pode ser identificada com a possibilidade de a mesma ser aplicada aos casos concretos gerando efeitos jurídicos, ao passo que sua efetividade pode ser definida a partir da capacidade de gerar resultados concretos em razão de sua aplicação, sendo quase unânime na doutrina constitucional brasileira o fato de todas as normas constitucionais possuírem eficácia, em maior ou menor grau, conforme sua densidade normativa (SARLET, 2009, p. 240, 257). Isso posto, é decorrência lógica afirmar que o direito fundamental à liberdade de manifestação do pensamento goza de eficácia jurídica, sendo o seu exame de efetividade dependente do caso concreto em que se verifica a sua aplicação. Por ser um direito dotado de função de defesa, assim como outros direitos de liberdade e igualdade, o mesmo reclama, em sua dimensão subjetiva8, uma atitude de abstenção por parte dos poderes estatais e dos particulares – sendo estes, a um só tempo, titulares e destinatários do direito à liberdade de manifestação do pensamento, sobretudo nas hipóteses em que se verificam diferentes graus de poder social e econômico entre os particulares (SARMENTO, 2013, p. 256), já que é nesta esfera que as liberdades, de maneira geral, se encontram especialmente ameaçadas. Há divergências, no entanto, no que diz respeito à forma de vinculação dos particulares às normas de direitos fundamentais. Com efeito, acerca da eficácia dos direitos fundamentais no âmbito das relações entre particulares, há quem entenda que os direitos fundamentais são aplicados nas relações entre particulares de forma indireta, ou mediata, seja porque apenas o Estado figura como destinatário dos direitos fundamentais (por assumir o dever de proteção – mandado de tutela), seja pela proibição de intervenção (direito de defesa dos cidadãos); desta forma, na relação entre particulares, havendo ofensa de um perante o outro, o Estado pode (ou deve) intervir em defesa dos particulares, como expressão de seu poder de proteção9. Por outro lado, há aqueles que defendem a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas quando estas forem marcadas por desigualdades de poder – em tais hipóteses, não se está diante de uma relação entre “iguais”, o que justifica a proteção de liberdade daqueles que estão em posição de vulnerabilidade (ANDRADE, 2010, p. 251; UBILOS, 2010, p. 284) (similares às que se estabelecem entre o particular e os poderes públicos, em intensidade equivalente). Em semelhante sentido, defende-se a eficácia direta dos direitos fundamentais no âmbito das relações privadas, ponderada a necessidade de

Acerca da dimensão objetiva do direito à livre manifestação do pensamento, pondera-se que cabe ao Estado não apenas proteger-lhe, como também promovê-la, viabilizando o seu exercício por aqueles que têm menos possibilidades de se expressarem. (SARMENTO, 2013, p. 256). Dado o objeto do presente estudo, é válido fazer referência à discussão acerca da legitimidade de um “direito humano à conectividade”, discussão que vem sendo travada perante a ONU. Para mais informações vale acessar o artigo “Is conectivity a human right?”, disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2014. BRASIL. Lei n. 11.804, de 06 de novembro de 2008. Disciplina os alimentos gravídicos e a forma como ele será exercido e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 07 nov. 2008. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2014. BRASIL. Lei n. 5.829, de 30 de novembro de 1972. Cria o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN) e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 01 dez. 1972. Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2014. BRASIL. Resolução n. 14, de 11 de novembro de 1994. Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 12 nov. 1994. Disponível em: < http://portal.mj.gov.br/main.asp?View={E9614C8C-C25C-4BF3-A238-98576348F0B6 }&BrowserType=NN&LangID=pt-r¶ms=itemID%3D%7BD4BA0295-587E-40C6-A2C6F741CF662E79%7D%3B&UIPartUID=%7B2868BA3C-1C72-4347-BE11-A26F70F4CB26%7D>. Acesso em: 13 jun. 2014. CANÇADO TRINDADE, A. A. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2003, v. 1, p. 246.

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REFLEXÕES SOBRE O DIREITO À CULTURA E SUA EXPRESSÃO NOS DIREITOS HUMANOS NO QUE SE REFERE AO PROTAGONISTA DO ABUSO SEXUAL, SUAS ESTRATÉGIAS E O COMBATE À VIOLÊNCIA PEDOFÍLICA VIA POLÍTICAS PÚBLICAS Maria Luiza Mello* Maria Cristina Cereser Pezzella**

Resumo O presente artigo busca relatar a evolução, do ponto de vista histórico, dos direitos fundamentais. Estes, propiciaram a universalização dos chamados direitos humanos, sendo precedentes que constituem referência fundamental à compreensão da internacionalização do direito à cultura, refletindo a violência como uma das grandes preocupações em nível mundial que afetam a sociedade como um todo, grupos e também famílias. No que diz respeito à questão social, salienta-se que a violência revela formas de dominação e opressão que desencadeiam conflitos, sendo manifestada de inúmeras formas, tanto no meio social, cultural ou até mesmo no meio político. O estudo da violência e sua relação no contexto social torna-se cada vez mais relevante diante do fato de que, nos últimos anos, referido tema têm sido alvo de inúmeras discussões e debates. Refere-se que o Estado, juntamente com a população, podem implementar políticas públicas que amenizem os efeitos dos atos violentos em todo o mundo. Diante disso é necessário desenvolver um trabalho de conscientização, envolvendo educadores, assistentes sociais, juristas, psicólogos, sociólogos, entre outros profissionais a fim de discutirem e aprofundarem esse tipo de estudo, buscando a construção de indicadores que possam contribuir com a organização e levantamento de um banco de dados que permita analisar a incidência da pedofilia no Brasil, não deixando de lado a propositura de políticas que minimizem a incidência desse tipo de crime, capaz ainda de identificar o perfil dos pedófilos. Justifica-se a importância do tema aqui pesquisado uma vez que seu objetivo é promover ampla reflexão na sociedade a fim de que se possa efetivar os direitos das crianças e adolescentes, deliberando sobre a política estadual de defesa e garantia, através de políticas públicas que valorizem a família e o direito à convivência familiar de crianças e adolescentes. Palavras-chave: Direitos humanos. Multiculturalismo. Violência. Políticas públicas.

______________ * Professora; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Oeste de Santa Catarina de Chapecó; Especialista em Direito Público e Privado: Material e Processual; Graduada em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina de Chapecó; Mestranda em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina de Chapecó; Av. Nereu Ramos, 3777-D; Seminário; 89813-000, Chapecó, SC; [email protected] ** Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2002); Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998); Professora do Programa de Pesquisa e Extensão e Pós-graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina; Coordenadora/Líder do Grupo de Pesquisas (CNPq) intitulado Direitos Fundamentais Civis: A Ampliação dos Direitos Subjetivos – sediado na Unoesc; Avaliadora do INEP/MEC e Supervisora do SESu/MEC. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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Reflexiones sobre el derecho a la cultura y su expresión en derechos humanos en relación con la participación de abuso sexual, y sus estrategias para combatir la violencia pedofílica via políticas públicas Resumen Este documento tiene por objetivo informar de la evolución de la perspectiva histórica de los derechos fundamentales. Estos, condujo a los llamados derechos humanos universales, y los precedentes que son referencia obligada para entender la internacionalización del derecho a la cultura, lo que refleja la violencia como un problema importante en todo el mundo que afectan a la sociedad en su conjunto, los grupos y las familias también. Con respecto a las cuestiones sociales, destaca que la violencia revela las formas de dominación y opresión de los conflictos, se manifiesta de muchas maneras, tanto en la política como en el medio social y cultural. El estudio de la violencia y su relación con el contexto social se vuelve cada vez más importante dado el hecho de que, en los últimos años, esta cuestión ha sido objetivo de numerosas discusiones y debates. Se refiere al estado, junto con la población, puede aplicar políticas para reducir los efectos de los actos violentos del mundo. Por lo tanto, es necesario desarrollar una conciencia que implica educadores, trabajadores sociales, abogados, psicólogos, sociólogos y otros profesionales para debatir y profundizar en este tipo de estudios, buscando la construcción de indicadores que pueden contribuir a la organización y una encuesta de una base de datos para el análisis de la incidencia de la pedofilia en Brasil, dejando a un lado la puesta en marcha de políticas que reduzcan al mínimo la incidencia de este delito, sin embargo, capaz de identificar el perfil de los pedófilos. Justifica la importancia del tema investigado aquí, ya que su objetivo es el de promover un amplio debate en la sociedad para que podamos asegurar los derechos de los niños y jóvenes, que actúa en la política estatal de defensa y garantía, a través de políticas públicas que mejoren la familia y el derecho a la vida familiar de los niños y jóvenes. Palabras clave: Derechos humanos. Multiculturalismo. Violencia. Las políticas públicas. 1 INTRODUÇÃO O ser humano é o resultado do meio cultural em que vive, dos conceitos e princípios que recebeu e do ambiente onde foi socializado. Nesta perspectiva, temos que a sociedade moderna, tida por multicultural, é caracterizada especialmente em razão das diferenças culturais que possui, as quais merecem, além de serem reconhecidas, devem também ser respeitadas por todas as sociedades, nações, culturas, uma vez que os direitos humanos precisam ser aplicados efetivamente por cada povo (LARAIA, 2001 apud MEDEIROS; VENTURA, 2007). Nesse sentido ressalta-se que a aplicabilidade da ética na vida cotidiana, bem como a educação, ao objetivar a formação de cidadãos baseando-se em princípios e ideais de liberdade, solidariedade e respeito às diferenças, devem propiciar uma sociedade multicultural que respeita as diferenças de ideologias e culturas e propicia uma formação humana sem violência e desigualdades. Frente a isso, observa-se que nos últimos anos, a violência tem se demonstrado mais acirrada em todos os segmentos sociais. Sociólogos, psicólogos, juristas e demais

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Reflexões sobre o direito à cultura e sua expressão...

pesquisadores das ciências humanas têm dedicado grande parcela de tempo na tentativa de compreender a temática da violência para suavizar seus efeitos. Habermas (1989), sociólogo alemão, informa que a violência é uma patologia social e sinal de que o homem precisa saber se conduzir por meio de sua racionalidade, isto é, o autor critica as ciências no sentido de que elas não estão dando conta de resolver o problema mais emergente da sociedade tal como a violência. Nesse sentido, Habermas (2003, p. 81-82) ressalta que: O cerne da controvérsia não pode ser descrito como disputa pela relevância que as diversas culturas concessivamente atribuem à respectiva religião. A concepção dos direitos humanos é a resposta a um problema diante do qual outras culturas se encontram de forma semelhante à que, na respectiva época, a Europa se encontrava, ao ter que superar as consequências políticas da cisão confessional. O conflito das culturas é travado hoje, de qualquer modo, no contexto de uma sociedade global,na qual, à base de normas de convivência, bem ou mal, os atores coletivos precisam entrar em entendimento, independentemente das suas diferentes tradições culturais. É que, na situação atual do mundo, o isolamento autárquico contra influências externas já não constitui opção possível. No mais, o pluralismo cosmopolita desabrocha também no interior das sociedades ainda fortemente marcadas pelas tradições. Até mesmo em sociedades que comparativamente são culturalmente homogêneas, torna-se cada vez mais inevitável uma transformação reflexiva de tradições dogmáticas predominantes que se apresentam com pretensões à exclusividade.

Observa-se que os direitos humanos incorporados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em muitos casos encontram-se desrespeitados, constituindo um verdadeiro atentado à função básica do direito: a justiça e a convivência humana em sociedade. Em outros termos, a violência nas suas mais variadas formas agride diretamente a dignidade da pessoa humana, a moral, a vida e a própria liberdade. Atinge, em essência, o direito, visto enquanto um conjunto complexo de proteção ao homem enquanto sujeito de direitos. Nesse contexto, a pedofilia consiste numa forma de materialização da violência social. Trata-se de uma violência ainda pouco estudada, mas que imprime grandes preocupações de certos segmentos sociais e, de certa forma, do estado responsável pela elaboração e implementação das políticas públicas pertinentes. Este problema está bastante evidenciado não apenas pela ação da mídia e pelo encorajamento a denúncias pelas vítimas, mas também pela devastadora proliferação da prostituição infantil, resultante, dentre outras causas, da pobreza. Nesse sentido, pode-se perceber que o problema toma proporções ainda maiores, pois engloba causas históricas, razões sociais e econômicas, enquanto enseja a formação de uma vasta rede de conexão, envolvendo policiais, motoristas de táxi, gerentes de hotéis, enfim, todo o segmento de turismo sexual voltado para a corrupção de menores. Este tema é de extrema relevância e interessa a toda a sociedade de maneira global, pois crescem diariamente os casos de abuso contra criança e adolescente no Brasil e no mundo. Existem atualmente muitos grupos de proteção a estas crianças e adolescentes, porém, ainda é pouco o que vem sendo feito para inibir a ação de pedófilos, pois

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esta questão envolve muitos valores e crenças relacionadas ao comportamento humano e diferentes culturas (BRASIL, 1997). Sendo assim, é necessário que o Estado busque identificar o perfil dos pedófilos e concilie políticas universalistas e reparativas, objetivando diminuir os índices de violência através de ações estruturadas que visem conscientizar os cidadãos de que todos possuem o mesmo dever de proteger a integridade física e psicológica de si e de todos da sociedade. 2 A CULTURA NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA DIGNIDADE HUMANA E DAS CIVILIZAÇÕES Percebe-se que a dignidade humana e o multiculturalismo são os pressupostos para o estabelecimento de uma ordem pública mundial, pois abrigam valores que se consideram básicos da humanidade. Dessa forma, é colocada como o fundamento dos direitos humanos, reconhecido através da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. Assim, os países que assinaram esta declaração devem tornar possível a sua aplicação para assegurar as liberdades fundamentais, culturais e individuais dos cidadãos (DECLARAÇÃO..., 2000). Para que essa garantia fosse realmente efetiva, muitos países deveriam elaborar ações de políticas públicas e aprovação de leis que garantam o princípio da universalidade dos direitos humanos, uma vez que a verdadeira universalidade não depende de leituras históricas particularistas e de movimentos revolucionários e sim de uma proteção realmente efetiva as diferenças culturais, sociais e tantas outras que só sustentada na moralidade comum seria possível. Para Freire (2003, p. 120-121): Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível.

Observa-se, através disso, que Freire (2003) considera que esta luta contra a exclusão e as desigualdades sociais e raciais deve começar primeiro pela base da sociedade, pois entende que deve-se educar as nossas atitudes, já que são elas que dão a todos os seres humanos a oportunidade de conhecer aos outros e demonstrar os verdadeiros valores sociais. Para Sarlet (2005, p. 39): Quanto a necessária secularização e universalização da dignidade num contexto multicultural – por uma concepção não “fundamentalista” da dignidade, pode-se dizer que ainda que não se possa aqui avançar muito na discussão em torno de uma concepção universalmente aceita de dignidade da pessoa e direitos fundamentais, vale registrar, todavia, a lição de Boaventura Santos, ao sustentar que o conceito corrente de direitos humanos e a própria noção de dignidade da pessoa assentam num conjunto de pressupostos tipicamente ocidentais, quando, em verdade, todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, muito embora nem todas elas a concebam em termos de direitos humanos, razão pela qual se impõe o estabelecimento de um diálogo intercultural, no sentido de uma troca permanente

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Reflexões sobre o direito à cultura e sua expressão... entre diferentes culturas e saberes, que será viabilizado pela aplicação de uma “hermenêutica diatópica”, que, por sua vez, não pretende alcançar uma completude em si mesma inatingível, mas sim ampliar ao máximo a consciência da incompletude mútua entre diversas culturas por meio do diálogo.

Assim, não restam dúvidas de que a dignidade segundo Sarlet (2012) é algo real, ou seja, algo vivenciado concretamente por cada ser humano, já que não se verifica maior dificuldade em identificar claramente muitas das situações em que é espezinhada e agredida, ainda que não seja possível estabelecer uma pauta exaustiva de violações da dignidade. Além disso, verifica-se que a doutrina e a jurisprudência, notadamente no que diz com a construção de uma noção jurídica de dignidade, cuidaram, ao longo do tempo, de estabelecer alguns contornos basilares do conceito e concretizar o seu conteúdo, ainda que não se possa falar, também aqui, de uma definição genérica e abstrata consensualmente aceita, isto sem falar no já referido ceticismo por parte de alguns no que diz com a própria possibilidade de uma concepção jurídica da dignidade. De acordo com Baez, Leal e Mezzaroba (2010, p. 24): Por tais motivos, esta acima das especificidades culturais, ainda que alguns valores afetos a ela não façam parte de certa culturas de nosso planeta. A prova disso esta no fato de que, mesmo dentro das culturas nas quais os valores relacionados a dignidade da pessoa humana não são respeitados, há vozes das minorias oprimidas, que buscam nesses valores inerentes aos seres humanos a guarida para uma sobrevivência digna.

Nesse aspecto, o jurista Sarlet (2012, p. 35) acredita que a dignidade é um caráter inerente ao ser humano, não podendo se distanciar dele, sendo uma meta permanente do Estado Democrático de Direito mantê-la. Já num pensamento filosófico, a figura da dignidade não esta associada à religião, mas sim a posição social do homem perante a sociedade. Assim, quanto maior o reconhecimento que o indivíduo tivesse perante o meio que vivia maior seria quantificada a sua dignidade. O fato é que indubitavelmente, o conceito de dignidade esta “[...] intimamente ligada à noção da liberdade pessoal de cada indivíduo - o Homem como ser livre e responsável por seus atos e seu destino.” Para tanto se cita o “Relatório para o Desenvolvimento Humano, de 2004, o qual demonstra a dificuldade no reconhecimento do direito à cultura como parte integrante dos direitos humanos.” (HAAS, 2012). Os direitos culturais podem provocar argumentos sobre o relativismo cultural, argumentos que usam a cultura para defender as violações dos direitos humanos. 2. Os direitos culturais são difíceis de operacionalizar, pois estão ligados ao conceito de cultura que é um alvo móvel. 3. Os direitos culturais segundo alguns, são um “luxo”, que deve ser tratado depois de realizados os outros direitos. 4. Os direitos culturais não podem ser enfrentados sem confrontar os “males” culturais que existem nas sociedades. Esses males são tradições e práticas que violam os direitos humanos. Os Estados são cautelosos em relação ao reconhecimento desses males. 5. Os direitos culturais evocam o espectro alarmante das identidades de grupo e dos direitos de grupo, que algumas pessoas temem que ameacem o estado-nação. (ONU, 2004, p. 28, grifo nosso).

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Dessa forma, verifica-se que dentre as dificuldades em se reconhecer a dignidade humana e os direitos culturais, está o reconhecimento de grupos que na prática não se utilizam da democracia, restringindo dessa forma, a liberdade cultural de seus membros. Nessa linha, observa-se que cada cultura, em determinada sociedade, possui sua própria história, uma vez que é constituída de valores desenvolvidos na convivência social, os quais caracterizam a diversidade dos povos (FANTON, 2009). Para Sarlet (2012, p. 73) a descrição acerca da dignidade da pessoa humana em sua completude significa: [...] qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co – responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

Nesse aspecto, não se pode alegar a defesa de determinada cultura, em detrimento dos direitos humanos, mesmo que esta consagre a memória e a tradição de um povo, já que, tais reflexões constituem o alicerce para se situar o multiculturalismo no terreno educacional, moral e social. Observa-se portanto que o constituinte deixou clara sua intenção em conferir aos princípios fundamentais o status de “normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive (e especialmente) das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais.” (SARLET, 2012, p. 75). Ainda para Sarlet (2012), a dignidade da pessoa humana, nos aspectos limite e tarefa, vincula o Estado, os indivíduos e a sociedade em geral. Não há como negar que a dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações no meio social em que vive, mas implica também, num sentido positivo, fundamentado no pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo. Para Mezzaroba (2009, p. 8) reconhece o conhecimento como forma de dignificar o ser humano, pois ressalta que: Todos nós somos sujeitos do conhecimento! Todos somos capazes de produzir conhecimento, porém não necessariamente sob sua roupagem científica.” Por isso todos somos portadores de conhecimento, mas nos dias atuais há uma relevância maior perante a sociedade do conhecimento cientifico ou especializado, neste ponto que se insere o fator de o sujeito portador do conhecimento ter sua dignidade elevada.

Cabe ressaltar, ainda, que somente com auxílio do poder público e programas de capacitação e conscientização, pode-se incentivar a lapidação do conhecimento proporcionando aos indivíduos uma readaptação social digna para todos os seres humanos. Sarlet (2005, p. 115) ressalta que: Aquele que não reconhece o outro como livre, não o reconhece como igual, na competência da titularidade de direitos ou como individuo particular com suas necessidades especificas, uma vez que segundo o autor, o auto-respeito só pode 252

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Reflexões sobre o direito à cultura e sua expressão... tornar-se uma questão da dignidade quando resultar de um ato próprio. A teoria do reconhecimento da dignidade da pessoa humana, é uma teoria de acordo com a qual só o reconhecimento constitui a dignidade, não traduz a doutrina de Hegel no sentido de que o ato do reconhecimento é apenas uma conseqüência da falta de uma análise cientifica dos motivos do agir. O reconhecimento como pessoa ou sujeito é necessário de acordo com Hegel se quiser viver num estado jurídico.

Nesse contexto, ressalta-se que se os obstáculos epistemológicos inerentes ao próprio desenvolvimento humano não forem corrigidos com planejamento e engajamento de políticas públicas adequadas, o aumento da violência fica cada vez mais evidente e a falta de dignidade humana cada vez maior. Segundo Sarlet (2005, p. 14): A dignidade pode ser vista na condição de valor intrínseco do ser humano, na qual cada indivíduo possui o direito de decidir de forma autônoma sobre seus projetos existenciais, morais e emocionais. Dessa forma, se percebe o quão difícil se torna a busca de uma definição do conteúdo desta dignidade da pessoa e, portanto, de uma correspondente compreensão (ou definição) jurídica. Assim, por mais que não seja esta a posição a ser adotada, verifica-se que não é inteiramente destituída de qualquer fundamento racional e razoável a posição dos que refutam a possibilidade de uma definição, ou, pelo menos, de uma definição jurídica da dignidade.

Portanto, dignidade da pessoa humana, consiste no valor e pretensão de respeito intrínseco e simultaneamente social, o qual pertence a cada ser humano pela sua condição humana, considerando que o bem jurídico protegido pertence também ao âmbito da moralidade (SARLET, 2007, p. 369). 3 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CULTURA NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS HUMANOS O estudo profundo dessa questão deve abordar a morfologia dos direitos humanos fundamentais e universais, pois protegem a vida que deve ser respeitada por todas as civilizações. A questão do multiculturalismo em estreita ligação com a Teoria relativista, desafiando a conceituação de dignidade humana, pois tem a questão cultural. Considerando que estes dois domínios interdependentes, tanto do ponto de vista conceitual que social-histórica. Para Sarlet (2012, p. 166-167): O que nos parece deva ficar consignado é que não se deve confundir a necessidade de harmonizar, no caso concreto, a dignidade na sua condição de norma – princípio (que por definição, admite vários níveis de realização) com outros princípios e direitos fundamentais, de tal sorte que se poderá tolerar alguma relativização, com a necessidade de respeitar, proteger e promover a igual dignidade de todas as pessoas, não olvidando que, antes mesmo de ser norma jurídica, a dignidade é, acima de tudo, a qualidade intrínseca do ser humano e que o torna merecedor ou, pelo menos, titular de uma pretensão de respeito e proteção.

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A partir disso observa-se que no que tange à dimensão cultural, valores morais desenvolvidos por cada cultura que são as práticas culturais, o limite será sempre a dimensão básica, deve-se proteger e sempre haverá um limite para que culturas não transformem pessoas em coisas. A dignidade humana é atributo básico e cultural em busca de um único sentido que é a felicidade de todo ser humano. Para Lucas (2010, p. 267): Num mosaico de diferenças culturais, econômicas, políticas e religiosas cada vez mais evidentes, os direitos humanos precisam reafirmar sua vocação universal e reconhecer no homem como tal o fundamento e a razão motivadora de sua ação político-juridica, capaz de protegê-lo onde quer que ele se encontre. A humanidade comum do homem não decorre exclusivamente de seus laços comunitários. Sua posição no mundo não pode se dar fora da historia e das contingências políticas e territoriais que a situam em algum lugar, em alguma tradição.

Desse modo, a sociedade atual está diante do movimento de internacionalização dos direitos humanos, a qual defende a importância de transformar esses direitos em tema de legítimo interesse da comunidade internacional. Isto demonstra a necessidade de estender esses direitos a todos os seres humanos existentes no planeta e que tem como base a ideia de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade, a inclusão e a titularidade de direitos (PIOVESAN, 1996). Segundo Touraine (1999, p. 335): Compreender o outro na sua cultura, isto é, no seu esforço para ligar identidade e instrumentalidade numa conceção do sujeito, não se trata de ficar espantado perante as diferenças entre indivíduos de pertenças culturais diversas (como é possível ser persa?), mas de discernir as convergências e divergências entre as 25 interpretações que pessoas de culturas diferentes dão aos mesmos documentos ou aos mesmos acontecimentos.

A partir do conceito de cultura, ressalto em alguns aspectos caracterizando cultura ocidental e sobre a forma como estas afetam a ideia de que temos de nos inteirar de outras culturas para entendermos certas práticas culturais que ferem e violam a dignidade humana. Kant (2000, p. 68) ressalta que o ser humano não pode ser utilizado como meio para a vontade de outros, mas sempre como um fim, “existe como um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo, como nas que dirigem aos outros seres racionais, ele tem de ser considerado simultaneamente como fim”. Nessa linha, Lucas (2010, p. 268) assevera que: A universalidade dos direitos humanos não nega a importância da comunidade, da historicidade, da cultura e das formas variadas de manifestação cultural para afirmação das identidades culturais e do sentimento de pertença. Reconhece por outro lado, que a humanidade do homem como tal revela nas diversas formas de viver suas experiências históricas, religiosas e culturais, sustenta uma presença moral que não está condicionada a nenhuma exigência histórica social, senão que diz respeito a sua condição de humano.

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Assim, quando se analisa a dimensão da Dignidade da pessoa humana percebe-se que esta padece de um problema inerente também à conceituação de Direitos Humanos, visto que as variadas culturas que compõem o nosso planeta trazem consigo, um ideal acerca dessas expressões, crenças, religiões e conceitos. Sendo assim, muitas são as formas de compreender a dignidade, e desta forma pode-se através da aceitação do modo de vida diferente de cada cultura, estruturar de uma sociedade igualitária. Nesse sentido Lucas (2010, p. 273) ressalta que: Da mesma forma que é importante a defesa das diferenças é indispensável a proteção daquilo que é universal do homem, uma vez que é justamente essa universalidade que permite o aparecimento e o reconhecimento de tais diferenças e, portanto, das suas identidades.

Podem-se estabelecer limites, mas não limites culturais que interfiram nas culturas, pois como podemos definir qual a melhor cultura a prevalecer? Há que se considerar, então, que a expressão e escolha moral do que é digno, não pode violar a dignidade da pessoa humana nem os direitos humanos como um todo. Alexy (2008, p. 38), quando se refere à importância das três dimensões supramencionadas para a Ciência do Direito, afirma que: Em face das três dimensões, o caráter prático da Ciência do Direito revela-se como um princípio unificador. Se a ciência jurídica quiser cumprir sua tarefa prática de forma racional, deve ela combinar essas três dimensões. Ela deve ser uma disciplina integradora multidimensional: combinar as três dimensões é uma condição necessária da racionalidade da ciência jurídica como disciplina prática. As razões são facilmente perceptíveis. Para se obter uma resposta a uma questão sobre o que deve ser juridicamente, é necessário conhecer o direito positivo. O conhecer do direito positivo válido também é uma tarefa da dimensão empírica. Nos casos mais problemáticos, o material normativo que pode ser obtido por meio da dimensão empírica não é suficiente para fundamentar um juízo concreto de dever-ser. Isso leva à necessidade de juízos de valor adicionais e, com isso, à dimensão normativa.

Percebe-se assim, que o aparato de documentos internacionais não cria direitos humanos, somente declaram quais são os direitos humanos, pois estes estão intrínsecos em cada pessoa, uma vez que, cada civilização deve reconhecer estes direitos humanos independentemente de práticas culturais existentes. Sarlet (2012, p. 168-169) assevera que: “É preciso retomar aqui a noção de que a dignidade, sendo um conceito necessariamente aberto, relacional e comunicativo e, para, além disso, histórico-cultural, não pode servir como justificação para uma espécie de fundamentalismo (ou tirania) da dignidade.” Nessa linha, considerados os estudos antropológicos e sociológicos que estão focados na relativização do ponto de vista eurocêntrico, que é um ponto indispensável de referência para a análise de fenômenos interculturais. Considero de especial relevância a ressalva e explicação a explicitação da característica fundamental de um ensino que se pretenda multicultural, que só se torna tal a partir do momento em que pressupõe certas escolhas pedagógicas que são, ao mesmo tempo, éticas e políticas.

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Nesse sentido, defende-se o universalismo dos direitos humanos como uma importante conquista da sociedade internacional contemporânea e um pilar fundamental no desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos neste século, no entanto, muitas vezes as diferenças culturais e étnicas são vistas como ameaça a identidade da nação e dificulta de certa forma a interação das culturas (PEIXOTO, 2006). Desse modo, observa-se que o Brasil é um exemplo de multiculturalismo, devido a suas diferenças culturais, advindas das suas misturas étnicas, porém, ainda há nele muito preconceito com as diversas culturas existentes. Na Constituição Federal brasileira, pode-se perceber que a dignidade da pessoa humana ocupa posição de destaque, sendo um dos fundamentos principais de nossa nação, uma vez que busca constituir-se em uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, sem nenhum tipo de discriminação (BRASIL, 1988). Portanto, o multiculturalismo, bem como a dignidade humana referen-se a uma perspectiva que vem sendo muito difundida, dando novos significados a palavras como pluralismo, tolerância e aceitação. Movem-se, então, as categorias de multiculturalismo, interculturalismo e transcultura, bem como a hibridação cultural como resultado de interconexões sociais. No que diz respeito à comunicação, deve-se observar “em ação” na sua pragmática. A referência é, em primeiro lugar, a análise de axiomas da pragmática da comunicação humana, colocando-os em relação com a comunicação intercultural, em busca dos mecanismos que podem dificultar a interação ou mesmo incentivar o conflito. A negociação e a proposta como o principal instrumento para a realização de um modelo comunicativo intercultural eficaz. Nesse sentido, Baez e Cassel (2011, p. 127) asseveram que: Esta atitude utópica exige da filosofia intercultural – inspirada no otimismo militante, no multiversum de caminhos e de culturas, e na interlocução – a explicação de condições objetivas, a elaboração de estratégias e de alternativas, a busca daquilo que é universal em um pensamento situado, a busca de polifonia, e a busca do diálogo.

Desta forma, a importância está sobre a diferença étnica como uma fonte de dinamismo essencial e oposto de exclusão e inclusão. Exclusão, como resultado da lesão, o efeito da aquisição sobre a integração da tolerância individual como, ouvir, empatia e cuidado, bem como os pontos críticos e do grau de integração que pode chegar a tempo. Conforme referencia, Sarlet (2002, p. 123), tem especial relevância a explicitação da característica fundamental de um ensino multicultural, que, só se torna tal a partir do momento em que pressupõe certas escolhas pedagógicas que são, ao mesmo tempo, éticas e políticas. Em relação à versão interativa e aberta do multiculturalismo – interculturalismo deve-se apresentar uma valorização positiva, o que significa inserir no interior do currículo uma pluralidade de valores e referências culturais. Para Sarlet (2005, p. 123): Assim, nós nos limitaremos a teologia cristã já que a reflexão ocidental sobre a dignidade da pessoa humana é herdeira direta em sua formulação e em seu espírito dessa teologia. Os teólogos trazem uma resposta clara ao fundamento da dignida256

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Reflexões sobre o direito à cultura e sua expressão... de da pessoa humana, para eles a dignidade da pessoa humana é fundamentada na criação do homem à imagem de Deus e na obre redentora de Deus feito homem. A pessoa humana não mais a partir de então ser comparada a um status. Ora, o termo dignidade seguiu uma evolução semelhante, compreendido primeiramente como uma função eminente, tornando-se atributo por excelência da pessoa.

O estudo profundo dessa questão deve abordar a morfologia dos direitos humanos fundamentais e universais, pois estes protegem a vida que deve ser respeitada por todas as civilizações. A questão do multiculturalismo está em estreita ligação com a Teoria relativista, desafiando a conceituação de dignidade humana, pois tem a questão cultural (MEZZAROBA, 2009). Estas questões podem ser colocadas em relação ao universalismo e também critérios utilizados têm de ser explicitados e seu caráter de universalidade verificado historicamente. As questões de seleção e justificação dos conteúdos curriculares não afetam somente as opções que se propõem incorporar à perspectiva multicultural. Aliás, “[...] a posição universalista também está desafiada por esta problemática.” (CANDAU, 1997). 4 COMO LIDAR COM O CONFLITO NUM AMBIENTE MULTICULTURAL É desafiador tentar desenvolver um conceito intercultural de direitos humanos que consiga dialogar com diferentes culturas. Neste sentido se faz um estudo ético das declarações existentes. A partir da premissa que dignidade humana é fundamento da liberdade, pode-se dizer desta forma que direitos humanos só serão direito humanos quando proteger efetivamente a dignidade humana. Nesta reflexão ética o elemento nuclear é a dignidade humana, pode-se afirmar que um direito que não tem por objetivo proteger ou realizar a dignidade humana, não pode ser jamais considerado um direito (NASCIMENTO; ERDMANN, 2009). Nessa linha, Hahn (apud BAEZ; SILVA; SMORTO, 2012, p. 160) assevera que: Hoje vivemos em uma história que se tornou universal porque os moldes de produção e as tecnologias se universalizaram de fato. Isso significa que pela primeira vez na história, a ciência e a técnica estão dando à atividade humana um raio de ação e um alcance de dimensões planetárias. A técnica permite igualmente a comunicação simultânea de todos os acontecimentos no planeta. Assim, pela primeira vez na história do gênero humano, os homens se encontram diante do desafio de enfrentar o dever de assumir, em escala mundial, as responsabilidades dos efeitos de suas ações: escassez dos recursos da natureza, devastação dói meio ambiente, manipulação genética e o biopoder, etc.

Neste sentido, pergunta-se: O que é dignidade humana pra fins de construir conceito de direitos humanos? A dignidade humana é qualidade é atributo universal, é atributo cultural que se altera de povo para povo, é algo que adapta a cada conceito moral. Pode-se dizer que, existem duas dimensões de dignidade humana que são: Dimensões básicas e dimensão cultural. Segundo Montiel (2003, p. 19-20) observa que:

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Maria Luiza Mello, Maria Cristina Cereser Pezzella Em virtude dessa exposição constante a novos símbolos, se estabelecem novos vínculos identificatórios, os perfis culturais mudam, mudando seus referentes tradicionais, costumes e visões originárias, para ir se organizando em função de códigos simbólicos que provêm de repertórios culturais muito diversos, que têm sua origem nos diferentes formatos eletrônicos. Desse modo, as identidades tendem a diluir-se e surgem novas formas de identificação, poliglotas, multiétnicas, migrantes, com elementos de diversas culturas.

Evidencia-se, portanto, que uma das grandes discussões do direito internacional, atualmente, é a necessidade de garantir os direitos humanos a todas as nações e povos, consagrando-os universais diante das diversas e distintas culturas do mundo. Frente a isso, Montiel (2003, p. 16) diz que: Diante dos lamentáveis acontecimentos sucedidos em setembro de 2001, que tantas indignações e interrogações levantaram, de imediato, foi nas culturas onde se buscaram as respostas, as chaves para se entender o ocorrido. Os estudos culturais e a geopolítica das culturas subitamente mostram sua pertinência, colocando em evidência o empenho da Unesco em promover o diálogo intercultural, o fomento do pluralismo e da tolerância. Dever-se-ia indagar em relação a tudo isso se aqui não se trata, como se diz com insistência, de um choque de civilizações ou melhor, como nos parece, de um conflito de indiferenças, de culturas que jamais dialogaram ou, ao menos, não o suficiente para se entenderem, e que agora, visivelmente, graças às tecnologias da comunicação, co-habitam num mesmo tempo e espaço.

Assim, verifica-se que a dimensão básica de dignidade humana é justamente o elemento essencial que o ser humano não aceita ser tratado como algo descartável, se algumas práticas culturais atingirem o núcleo que é a dignidade humana, devem ser banidas e mudanças comportamentais poderão ser consideradas para que não seja violada a dignidade humana, independentemente de práticas culturais, principalmente se estas violarem o bem maior que é o ser humano. Assim, Hahn (apud BAEZ; SILVA; SMORTO, 2012, p. 165) ressalta que: Os universalistas procuram proteger indivíduos e valores, independentemente do país ou do grau de desenvolvimento da sociedade onde vivem, enquanto que os relativistas propõem o respeito às culturas e valores de cada sociedade, mesmo que seja mais distante e diferente da nossa. O universalismo tem a dignidade como fonte dos direitos humanos ao passo que para o relativismo, a fonte é a cultura. Esse é um debate aberto no campo dos direitos humanos: direitos humanos são universais ou não? Os direitos humanos variam de acordo com a cultura de uma sociedade?

Segundo Bobbio (2004, p. 33): O campo dos direitos sociais, finalmente, está em contínuo movimento: assim como as demandas de proteção social nasceram com a revolução industrial, é provável que o rápido desenvolvimento técnico e econômico traga consigo novas demandas, que hoje não somos capazes nem de prever. A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre. campo dos

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Reflexões sobre o direito à cultura e sua expressão... direitos sociais, finalmente, está em contínuo movimento: assim como as demandas de proteção social nasceram com a revolução industrial, é provável que o rápido desenvolvimento técnico e econômico traga consigo novas demandas, que hoje não somos capazes nem de prever. A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre que a humanidade partilha de valores comuns e que, por isso, existe certa universalidade de valores.

Sendo assim, verifica-se que pode-se estabelecer limites, mas não limites culturais que interfiram nas culturas, pois como podemos definir qual a melhor cultura a prevalecer? Mas a expressão e escolha moral do que é digno, não pode violar a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos como um todo que é considerado conjunto de valores éticos positivados ou não. O aparato de documentos internacionais não cria direitos humanos, somente declaram direitos humanos, pois estes estão intrínsecos em cada pessoa, uma vez que, cada civilização deve reconhecer estes direitos humanos independentemente de práticas culturais existentes (MAZZOTTI, 1994). Para Baez, Leal e Mazzaroba (2010, p. 24): Esses elementos preliminares permitem a constatação de que a dignidade da pessoa humana não decorre do ordenamento jurídico, ou seja, não existe somente onde é reconhecida pelo direito, já que é anterior a ele e constitui um bem inato que não pode ser concedido ou retirado das pessoas. Ela é, ao contrário, ontológica, ou seja, tem origem na natureza comum que é inerente a todos e a cada um dos seres humanos.

Neste sentido deve-se estudar, analisar e ampliar a aplicação dos direitos humanos para proteger e realizar o bem maior que é a dignidade humana nas duas dimensões básicas e culturais, na dimensão básica porque o ser humano não deve ser considerado coisa, na dimensão cultural se violar a dignidade a que se analisar e sugerir mudanças comportamentais a culturas que violam o ser humano. 5 OS MUITOS PARADIGMAS DA VIOLÊNCIA E SUA PREVENÇÃO A agressividade física e psicológica ocasionada pela violência reflete diretamente na perda de produtividade dos indivíduos diretamente envolvidos na agressão, bem como, proporciona um aumento significativo na mortalidade infantil e juvenil acarretando efeitos significativos na desigualdade social ferindo o direito à liberdade constitucionalmente oferecido aos indivíduos. Dessa forma, deve-se enfatizar novamente a importância de se possibilitar uma adequada alocação dos recursos públicos dentre os possíveis programas específicos voltados à questão da prevenção da violência. O desafio de maior representatividade se dá pela necessidade de elaboração de políticas públicas preventivas, pois a violência atinge diversas formas, inclusive contra crianças e adolescentes. Nesse contexto, constata-se que a pedofilia requer encaminhamentos eficazes e precisos para assegurar as crianças, adolescentes e familiares, através

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de um tratamento interdisciplinar, instâncias afetivas de proteção e tratamento de seus sofrimentos físicos e psicológicos. Na Constituição da República Federtiva do Brasil, pode-se perceber que a dignidade da pessoa humana ocupa posição de destaque, sendo um dos fundamentos principais de nossa nação, uma vez que busca constituir-se em uma sociedade livre, justa e solidária, garantindo o desenvolvimento nacional, erradicando a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, sem nenhum tipo de discriminação. Para Ramos (2005, p. 195): A história do Direito Internacional mostra que o direito dos tratados, a teoria da responsabilidade internacional, entre outros temas, já sofreram interpretações de modo a justificar o atingimento de fins políticos e econômicos por parte de Estados (em geral, os mais poderosos), da mesma forma que o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Cite-se por exemplo, a construção norte-americana da era Reagan da doutrina da legítima defesa preventiva e ideológica, que ampliava o próprio conceito de legítima defesa previsto na Carta da Organização das Nações Unidas e que serviu para justificar agressões armadas durante a década de 80.

Nesse sentido, ressalta-se que a eficácia das políticas públicas na prevenção e combate a pedofilia depende do engajamento de todos, uma vez que, a dignidade com um direito fundamental, ou seja, um fundamento do ordenamento jurídico que objetiva a conduta e os limites do exercício de direitos (SARLET, 2005). Ramos (2005, p. 197) assevera que: Aliás, o Brasil, como uma das maiores economias industriais do mundo, é amostra evidente que o aumento da riqueza não leva a maior proteção de direitos humanos. Muito pelo contrário: a lógica da postergação da proteção de direitos humanos e em especial dos direitos sociais faz com que o desenvolvimento econômico beneficie poucos, em geral àqueles que circundam a elite política dominante.

Dessa forma, evidencia-se que cada vez mais os indivíduos lutam para ter garantida sua dignidade, alcançar seus espaços na comunidade, através da luta diária por sobrevivência; essa luta originou o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, através da imposição do Direito, no intuito de assegurar a dignidade e a convivência fraternal entre os homens. Assim, é dever do estado proteger e garantir que crianças e adolescentes cresçam dignamente no ambiente familiar, social e comunitário. Ramos (2005, p. 186) ainda destaca que: Vários autores desconfiam de uso do discurso de proteção de direitos humanos com um elemento da política relações exteriores de numerosos Estados, em especial dos Estados ocidentais, que se mostram incoerentes em vários casos, omitindo-se na defesa de direitos humanos na exata medida de seus interesses políticos e econômicos.

Nessa linha Ramos (2005) diz que os direitos humanos não oferecem ritos ou símbolos: são conceitos jurídicos, que estabelecem o direito de liberdade no regramento da vida em sociedade, não competindo nem servindo como substitutos às convicções religiosas, políticas ou sociais. 260

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Estes encaminhamentos são de extrema relevância, uma vez que, esta situação envolve não apenas o agente portador de um transtorno sexual, e sim, uma rede organizada que se aproveita das condições sociais econômicas e culturais de crianças ou adolescentes para obter fins lucrativos. Se analisarmos por um prisma de conduta que seja o transtorno sexual, o mundo esta seriamente comprometido e doente diante de tantos crimes de pedofilia. Portanto, este é um tipo de comércio criminoso mundial, no qual, as consequências são incalculáveis, tanto financeiramente e principalmente na forma afetiva. Nesse sentido, pode-se ressaltar que o melhor e maior modelo de tratamento para a pedofilia é a prevenção, evitando que o ato danoso do abuso se concretize, pois depois de ocorrido o abuso, as consequências são altamente danosas ao abusado, o qual irá levar para o resto de sua vida, afetando a parte afetiva e estrutural tanto da criança, como de seus familiares. Diversos autores procuraram realizar definições sobre tema tão complexo. Ferriani, Ribeiro e Reis (2004, p. 1) encaram a violência: “[...] como um fenômeno complexo, polissêmico e controverso, a violência é perpetrada por indivíduos contra outros indivíduos, manifestando-se de várias maneiras, assumindo formas próprias de relações pessoais, sociais, políticas ou culturais.” Outro órgão que auxilia esta luta contra a violência infantil é o Conselho Tutelar, que busca o atendimento direto de denúncias, o diagnóstico da realidade de violação de direitos, bem como o monitoramento do Sistema de Garantia de Direitos e o atendimento direto de serviços, visto que as políticas públicas de proteção aos menores são insuficientes e muitas vezes inexistentes. A questão é: Como resgatar a dignidade da vítima? O Estado e os meios de apoio as nossas crianças estão dando conta de se atentarem a este fator “[...] resgate da dignidade da vítima do crime de pedofilia?” (DIGIÁCOMO, 2011). 5.1 AS MÚLTIPLAS FACETAS DA VIOLÊNCIA Percebe-se que a violência apresenta-se como um eterno problema infiltrado no dia a dia da humanidade, pois está presente em todas as classes sociais. Muitos estudiosos ressaltam que esta polêmica revela algumas controvérsias em vários aspectos, porém afirmam que esta não possui raízes biológicas, ou seja, a violência não faz e nunca fez parte da natureza humana. Por este motivo é que muitos autores afirmam, que a violência é configurada por problemas econômicos, políticos, morais, institucionais e principalmente consequência das mas relações humanas (HABERMAS, 1989). Salientam-se ainda, as formas de violência que se revelam fora das leis estabelecidas, ou seja, a desigualdade, o consumismo, a degradação dos valores, a alienação afetiva e profissional, entre outros. Esses fatores revelam que a violência assume, muitas vezes, uma questão estrutural, na medida em que impulsionam os indivíduos a praticarem pequenos e até mesmo graves delitos. Nessa linha, pode-se dizer que a lei tem seu valor de marco jurídico de uma nova concepção, de que se faz imprescindível de um novo agir e viver no mundo, porém, a lei apenas não basta, é preciso que a sociedade como um todo seja pautada na solidariedade, no respeito, fraternidade e principalmente no compromisso com o outro.

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Assim, Reale (2002, p. 294) ressalta: A sociedade humana, por exemplo, não é só um fato natural, mas algo que já sofreu no tempo a interferência das gerações sucessivas. Quando uma criança nasce já recebe através dos primeiros vocábulos uma série de ensinamentos das gerações anteriores. Herda ela, indiscutivelmente, através da linguagem, um acervo de espiritualidade que se integrou na convivência. Em seguida, o ser humano vai recebendo educação e adquirindo conhecimentos para, depois, atuar sobre o meio ambiente, e desse modo, transforma-lo, através de novas formas de vida. A sociedade está constantemente em mutação, não obstante ter sua origem na natureza social do homem.

A partir disto, pode-se verificar que o atual processo de globalização é intensamente impulsionado pelo avanço de novas tecnologias propiciando uma interação maior entre as sociedades, gerando, muitas vezes, consequências imprevisíveis e impremeditadas. Este novo mundo tecnológico ocasiona um aumento no comportamento individualista dos seres humanos, substituindo valores como cooperação e colaboração por sentimentos egoístas e na pior das hipóteses violentos. Isso ocorre porque prevalecem na maioria das sociedades a supremacia do poder, ter e a decadência do ser. Portanto, se percebe a importância que o Estado, juntamente com especialistas da área e intelectuais autônomos, implementem políticas públicas que inibam o crescimento desgovernado da violência no país, pois, é visível os problemas e conflitos enfrentados pela população em geral, na maioria dos centros urbanos. Este fator revela claramente a importância dos laços familiares e princípios educacionais na formação do indivíduo, pois contribuem de forma decisiva na formação humana, desde o berço familiar até a fase adulta. Um dos fatos que é bastante preocupante refere-se à lerdeza, descaso e a dificuldade que se evidencia no que se refere às políticas públicas, no sentido de viabilizar maneiras de superar alguns obstáculos epistemológicos que impedem o bem estar dos indivíduos em sociedade. Cabe ressaltar, ainda, que somente com auxílio do poder público e programas de capacitação e conscientização disciplinar para jovens infratores e indivíduos com históricos de violência, poderão proporcionar aos indivíduos uma readaptação social. Nesse contexto, ressalta-se que se os obstáculos epistemológicos inerentes ao próprio desenvolvimento humano não forem corrigidos com planejamento e engajamento de políticas públicas adequadas, o aumento da violência fica cada vez mais evidente. Esta questão está sendo muito discutida atualmente uma vez que, especialistas em políticas públicas, educadores, psicólogos entre outros debatem questões relacionadas à violência sexual no intuito de desvendar e adequar as entrelinhas da legislação vigente. Tais reflexões possuem como foco principal realizar um debate no âmbito jurídico, para que leis específicas com mais rigor no combate à pedofilia sejam aprovadas em caráter de urgência. O ECA e o Código Penal vigente são meios de garantir à proteção das crianças e adolescentes contra à exploração sexual, mas é preciso fazer mais, é preciso criar mecanismos de amparo a vítima que apesar de todo aparato jurídico, não construiu ainda meios eficazes de reconstruçaõ da dignidade humana da vítima. Quantas seçõeses de terapia nossa crian262

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ças precisam para se recuperarem deste trauma? Impossível este calculo, se é que um dia as vítimas conseguiram este total recuperação. 5.2 O PROTAGONISTA DO ABUSO SEXUAL Esta parte do estudo é de extrema relevância uma vez que demonstra as características do responsável pelo abuso sexual, sua personalidade e capacidade de vitimizar as crianças e adolescentes. Observa-se cotidianamente que o protagonista do abuso sexual na maioria dos casos, é membro da própria família, ou pessoas muito próximas do convívio familiar, portanto, este assunto é extremamente delicado e envolve todo um núcleo familiar, desmascarando a falsa aparência de família estruturada, e também, dos laços protetores e amorosos que supostamente possam existir em supostas famílias estruturadas (MACHADO, 2006). Inicialmente, salienta-se que investigar o agressor não é uma tarefa fácil, pois, geralmente o protagonista do abuso sexual contra crianças e adolescente viola todos os direitos fundamentais do menor com várias facetas. Qual é a face do protagonista do crime? Qual classe social pertence? O protagonista foi vítima por isso se tornou agressor? (MELLO, 2010, p. 144). Nota-se, também, que o incesto é muito mais comum que se possa imaginar e manifesta-se de diversas formas, dependendo do ambiente intrafamiliar que ocorre. Esta situação, não é fácil identificar aos olhos da sociedade, quem dera das autoridades, portanto, ressalta-se novamente a importância da denúncia e das políticas preventivas. O ato incestuoso se da numa situação incestuosa preexistente, onde as posições e lugares familiares estavam permeados por fantasias ou realidades que muitas vezes dizem respeito a mais de uma geração. Essa situação funciona como o murmúrio, o ruído que prepara, a revelia consciente dos protagonistas, à ocasião do ato sexual incestuoso. O que não foi elaborado psiquicamente pela geração anterior, e às vezes por mais de uma geração, repete-se como ato e não mais como fantasia ou outra representação simbólica na geração seguinte. (CROMBERG, 1994 apud BRUSCHINI; SORJ, 1994, p. 263).

Verifica-se, portanto, que o incesto possui de certa forma uma forte ligação com a história familiar, ou seja, a origem, o meio social, e também, com o relacionamento intrafamiliar, os quais envolvem padrastos, madrastas e parentes próximos através da sedução inoportuna devido à fragilidade da criança em relação ao adulto (LOBO, 2009). A palavra sedução citada anteriormente, almeja demonstrar o significado de: Uma cena em que um sujeito, geralmente adulto, vale-se de seu poder real ou imaginário para abusar de outro sujeito, reduzido a uma posição passiva: uma criança ou uma mulher, de modo geral. Em essência, a palavra sedução é carregada de todo o peso de um ato baseado na violência moral e física que se acha no cerne da relação entre a vitima e o carrasco, o senhor e o escravo, o dominador e o dominado. (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 696).

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Sendo assim, é importante ressaltar que a cada dia mais as crianças estão tornando-se objeto de abusos sexuais por adultos, principalmente no seio de suas próprias famílias, as quais desrespeitam os princípios garantidos ao menor pela Constituição, no intuito de obter prazer, seja ele por abuso de autoridade familiar, de poder ou por puro instinto. 5.2.1 Sinais demonstrado pelo agressor A Pedofilia é considerada por muitos estudiosos e psicólogos como sendo um transtorno parafílico, onde a pessoa apresenta fantasia e excitação sexual intensa com crianças pré-púberes, efetivando na prática tais urgências, com sentimentos de angústia e sofrimento, podendo ocorrer em todas as classes sociais, raças e níveis educacionais e classifica os abusadores em quatro categorias (MELLO, 2010, p. 145): a) Agressivo: possui dificuldades de relacionamento e baixa autoestima. Utilizam as crianças em suas relações sexuais por não conseguirem obter parceiros adultos; b) amoral: é extremamente agressivo, busca sempre uma ocasião favorável para efetuar o ato, aliciando geralmente menores vulneráveis; c) desprovido: disposto a experimentar tudo em matéria de sexo, utiliza as crianças como um atrativo inusitado; d) inadequado: apresenta graves problemas mentais e tem curiosidade nos relacionamentos com crianças, pois é inseguro nos relacionamentos com adultos. Geralmente o abusador tem no mínimo 16 anos de idade e é pelo menos 5 anos mais velho que a vitima, sendo que a grande maioria de abusadores é de homens, mas suspeita-se que os casos de mães abusadoras sejam subdiagnosticados (PARISOTTO, 2010). Existe ainda quatro faixas etárias de abusadores: a) jovens até 18 anos que aprendem sexo com suas vítimas; b) adultos de 35 a 45 anos de idade que molestam seus filhos ou os de seus amigos ou vizinhos; c) pessoas com mais de 55 anos de idade que sofreram algum estresse ou alguma perda por morte ou separação, ou mesmo com alguma doença que afete o Sistema Nervoso Central; d) aqueles que não importa a idade, ou seja, aqueles que sempre foram abusadores por toda uma vida. (BARBOSA, 1999).

Este comportamento representado pelo protagonista do abuso sexual torna-se perturbador para as crianças e adolescentes, pois estes agridem e desrespeitam a liberdade, a dignidade e principalmente, por serem praticados por uma pessoa do ciclo de confiabilidade da criança. A maioria destes fatores intrafamiliares observados até o momento ocorrem pelo fato de que os membros das famílias tornam-se a cada dia que passam mais isolados emocionalmente uns dos outros, acarretando uma degradação nos valores e princípios morais e deteriorando a imagem de pai e mãe, as quais são de fundamental importância para a

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formação psicológica e social do menor. É comum nos dias atuais verificar vidas extremamente particulares dentro de um mesmo contexto familiar. Embora o abuso sexual seja comum, pode-se ressaltar que não há uma característica social comum entre os casos, pois estes independem de raça, religião, nível de escolaridade e posição social, pois, esta vitimização ignora leis e fronteiras, o que pode contribuir para que o abuso ocorra com mais frequência, é a opção do uso de álcool e drogas, pois estes expõem e fragilizam mais a família, aumentando portanto, os riscos da ocorrência do abuso. De acordo com Schmickler (2006, p. 31): Contudo, a visibilidade do fenômeno, no âmbito mundial, tem sido muito mais evidenciado nas camadas menos favorecidas da sociedade. No Brasil os casos conhecidos costumam emergir dos registros feitos nas delegacias de policia, conselhos tutelares, SOS criança, os quais acabam fomentando estas estatísticas.

Neste sentido, ressalta-se que a violência sexual é de certa forma uma violência estrutural, pois demonstra uma sociedade com profundas desigualdades, não apenas sociais e econômicas e sim, da degradação das relações no recinto dos lares, bem como de projeto de vida familiar e educacional. Desta forma, verifica-se que se a violência urbana diferencia-se da violência intrafamiliar, pois a urbana é diariamente visível e, muitas vezes, notificada pelos meios de comunicação, em contrapartida a violência intrafamiliar é oculta através das regras do agressor que é a “lei do silêncio”, principalmente quando envolve questões relacionadas ao abuso sexual. Alguns estudos de Azevedo e Guerra (1988) relatam que a violência geralmente começa quando a criança tem em torno de 5 anos, prolongando-se até que o ato possa ser consumado. Este tipo de crime possui uma particularidade frente aos outros, pois o abuso sexual normalmente não possui testemunhas, sendo que o agressor e as vitimas são as únicas testemunhas do crime. Dessa forma, salienta-se que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente o direito de nascer e viver com saúde, desenvolvendo-se em condições dignas, com liberdade de escolhas, pois o ambiente familiar é muito importante no desenvolvimento da criança, no qual a mesma desenvolverá e terá como base todos os seus princípios e comportamentos trazidos do âmbito familiar para toda sua vida. De acordo com Schmickler (2006, p. 41): “[...] a verdade é que ninguém nasce agressor sexual. Sabemos que as contingências da vida de uma pessoa podem gestar e potencializar possibilidades.” Nessa linha, pode-se dizer que o Direito de família é o ramo humano do Direito, já que se relaciona diretamente com a cidadania, em virtude de seu sentido ideológico e afetivo. Desta forma, a família é um poderoso fator no processo de socialização das crianças, pois, o bom relacionamento com os pais fortalece o desenvolvimento de seus recursos internos para enfrentar com sucesso as situações de riscos que por ventura deverão encontrar, minimizando uma série de problemas que envolvem uma complexidade de determinantes culturais, sócio-psicológicos, econômicos, religiosos e psiquiátricos. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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Cabe ressaltar que o estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é, segundo Schmickler (2006), um marco de respeito à dignidade de um ser que é sujeito de direito, e não apenas um menor incapaz. O ECA conta com a participação e o apoio da sociedade, através dos Conselhos de Direitos, Conselhos Tutelares e dos Fundos. Portanto, contribuir para a reflexão sobre o abuso sexual contra crianças e adolescente, identificando o perfil do agressor torna-se de extrema relevância, tendo como eixo da pesquisa a família representada por pais e padrastos, como agentes protagonistas e, muitas vezes, produtores de tais atos. 6 A IMPORTÂNCIA DAS POLÍTICAS DE PREVENÇÃO Mas e o resgate da reabilitação da vítima é eficaz? Como é o prcedimento de reconstrução da dignidade da vítima? Como estão sendo preparados os profissionais para lidar com esta problemática? Estima-se atualmente que os casos não denunciados constituem um dado de obscuras proporções, tornando a criança vítima do silêncio, prolongando a agressão por muitos anos, em função das ameaças e do alto grau de subordinação, medo e constrangimento em que são submetidas, até que por algum motivo os casos são denunciados às autoridades, as quais buscam através da justiça encontrar um meio adequado de punir o acusado e buscar alguma forma de tratamento nos órgãos de assistência social, no intuito de propiciar uma reabilitação ao acusado e evitar que o mesmo após o cumprimento de sua pena venha a praticar novamente tais abusos que tanto faz mal à sociedade. (MELLO, 2010, p. 145).

Nesta linha, Da Matta (1982) propõe uma análise sobre os seguintes aspectos: a) em primeiro lugar, adotar uma perspectiva histórica na análise, isto é, especificar a sua dinâmica no tempo e no espaço, correlacionando-a com outros fatores, sem abandonar o seu caráter de universalidade e abrangência; b) evitar uma discussão de viés valorativo e normativo, ou seja, um discurso a favor ou contra, que dificulta o entendimento do fenômeno. Assim, como todo fenômeno social, a violência é um desafio para a sociedade, e não apenas um mal. Ela pode ser elemento de mudanças; c) relacionar o crime à norma; o desvio à regra; o conflito à solidariedade; a ordem à desordem; o cinismo à consciência e ação sociais, pois o crime e o castigo, a violência e a concórdia, também revelam formas de posse e propriedade.

Nota-se, portanto, que alguns fatores de risco estão associados à prática da violência em todo o mundo. Esses fatores contribuem de forma direta para que a violência ocorra, pois, estão diretamente ligados à conduta humana (GALLO; WILLIAMS, 2005). Desta forma, observa-se que existe uma preocupação mundial em torno de criar mecanismos jurídicos que propiciem a apreensão de materiais pornográficos e favoreçam a prisão imediata dos responsáveis, pois este delito viola os direitos humanos, retirando precocemente ao abusado o direito de ser criança que muitas vezes sentem-se culpados e não entendem o que esta acontecendo e porque esta acontecendo as práticas pedofílicas.

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A evidência se manifesta pelo envolvimento dos pedófilos na relação consanguínea, para proteção da “honra” do abusador, que na maioria das vezes conta com a complacência de outros membros da família, que nesse caso, funciona como clã, isto é, fechada e articulada (LEAL; CÉSAR apud MORAES, 2009). É notória a falta de clareza entre pesquisadores e profissionais no que se refere à definição de conceitos e indicadores de violência sexual contra crianças e adolescentes. Frente a isto, são de vital importância que se viabilize fórmulas visando o redimensionamento de estratégias para o enfrentamento da pedofilia, visto que, os dados estatísticos atuais se referem apenas a casos denunciados. Barbosa (1999, p. 28) relata que: É dever da Família, da Sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligencia, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Ressalte-se, ainda, que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também protege os menores contra todo e qualquer tipo de abuso que possa ir contra os direitos fundamentais de seus tutelados. A doutrina da proteção integral foi regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Criança é a pessoa com até doze anos de idade e adolescente é a pessoa entre doze e dezoito anos de idade (art. 1º, do ECA) (BRASIL, 1990). De acordo com Barbosa (1999) a criança e o adolescente devem gozar de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facilitar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social. A Lei 8.072/90 relata que a pedofilia é considerada crime hediondo, o que determina rigor absoluto para o acusado desse tipo, que, sem direito a fiança ou liberdade provisória, responde ao processo preso em regime fechado tendo que cumprir a pena integralmente (BRASIL, 1999). Observa-se através do comportamento da sociedade atual que a Lei que protege as crianças e adolescentes no Brasil por mais que seja um instrumento de extrema importância, não consegue por si só mudar a ordem dos fatos, pois, somente uma grande mobilização que agregue variados atores sociais tornará possível uma sociedade que consiga diariamente evitar e extinguir parte da violência que assola todas as classes sociais. Neste sentido, Veronese (2005, p. 11): A prevenção de um problema tão sério como é a exploração sexual infanto-juvenil prescinde de uma ação conjunta entre a família, a sociedade e o Estado, utilizando métodos, programas, campanhas de esclarecimento e de combate a exploração sexual, enfim, de uma série de instrumentos capazes de neutralizar o problema já na sua origem.

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Portanto, mesmo o Brasil sendo um dos primeiros países a ratificar a convenção internacional e a traduzir os seus princípios no ECA, o qual é considerado uma das legislações mais avançadas na promoção e defesa dos direitos da infância, muitos jovens e crianças ainda são violados brutalmente por indivíduos anti-éticos e acima de tudo sem qualquer escrúpulo (SOUZA; CABRAL; BERTI, 2010, p. 126). Deve-se ressaltar também, que um dos avanços oferecidos pelo estatuto, foi à abertura do espaço para a denúncia e o ressarcimento de qualquer fato que viole os direitos de crianças e adolescentes. Sendo assim, os direitos traduzidos na nova legislação não podem de forma alguma, ser violados ou ameaçados. Quando ocorrer tal violação ou ameaça a estes direitos, o maior responsável pelo resgate e ressarcimento é o Estado em qualquer uma das esferas (VERONESE; COSTA, 2006, p. 61). 6.1 PRIORIDADES DAS POLÍTICAS PÚBLICAS Quando o assunto é política pública, acredita-se que o Estado esteja comprometido em garantir aos cidadãos todos os benefícios resultantes do Estado Democrático de Direito. Para tanto, porém, o governo deve assegurar-se de ideais de justiça e conceitos ético-políticos, pois, sem eles, o combate à violência não será possível (MELLO, 2010, p. 139). De acordo com o Projeto de Segurança Pública para o Brasil (INSTITUTO CIDADANIA, 2005): Todas essas expressões da violência se alimentam reciprocamente: a impunidade promove injustiças, que estimulam crimes, que geram gastos, difundem a cultura do medo, condicionam a redução de investimentos e ameaçam a indústria do turismo, o que, por sua vez, exerce impacto negativo sobre o nível de emprego e amplia a crise social. O ciclo vicioso gira indefinidamente em torno do próprio eixo, aprofundado os problemas pela degradação de toda a rede de interconexões em que prosperam. O tecido social se esgarça e deteriora. Ficam abaladas a confiança mútua entre as pessoas, esteio da sociabilidade cidadã e do convívio humano cooperativo; e também a confiança nas instituições públicas. Sem credibilidade, elas perdem as bases de suas legitimidades, o que traz riscos dos alicerces da democracia, cuja reconstrução vem custando tanto ao povo brasileiro.

Neste sentido, evidencia-se o impacto que causa a violência, seja ela física, moral ou em forma de falta de investimento por parte do poder público em saúde, moradia e principalmente em educação, pois a criminalidade atinge todos os segmentos sociais, dos mais ricos aos mais pobres, propiciando um intenso estado de medo, no qual, a insegurança é uma experiência amplamente compartilhada. No Brasil, muitas são as políticas públicas que objetivam minimizar a questão da violência social, projetos como o de combate à fome, a democratização da moradia, entre outros, porém, nem sempre se colhe os resultados almejados, pois, falta engajamento dos vários segmentos da sociedade. Com relação ao engajamento mútuo, pode-se dizer que este é fator fundamental para o sucesso e implementação de qualquer projeto que seja, pois, so-

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mente com a efetiva participação de conselhos representativos que representem a vontade popular, as políticas públicas poderão atingir o foco principal (INSTITUTO CIDADANIA, 2005). Esta questão é de extrema relevância, uma vez que para que se possam suprir as necessidades diárias da população, é importante que as ideias não partam apenas dos governantes, e sim, que se ouça realmente aqueles que usufruirão dos recursos que serão aplicados no projeto, para que este seja colocado em prática da melhor forma possível e que reflita o anseio da população. Visualiza-se, diariamente, por meio dos meios de comunicação, que os crimes contra o patrimônio atingem, na maioria das vezes, as classes superiores e os crimes contra as pessoas, como homicídios, vitimizam geralmente as classes menos favorecidas. Isso demonstra que o sistema de políticas públicas priorizam a proteção das elites, cercando regiões nobres das cidades e deixando a periferia em segundo plano. Essa situação desencadeia um quadro de impunidades, irracionalidade e, principalmente, ineficiência do poder governante, denegrindo ainda mais a imagem das instituições públicas, pois torna-se arbitrária, corrupta e alheia aos problemas da comunidade em geral. Frente a isto, o Projeto de Segurança Pública para o Brasil, relata: Ou haverá segurança para todos, ou ninguém estará seguro no Brasil. Segurança é um bem por excelência democrático, legitimamente desejado por todos os setores sociais, que constitui direito fundamental da cidadania, obrigação constitucional do Estado e responsabilidade de cada um de nós. (INSTITUTO CIDADANIA, 2005, p. 5).

Portanto, deve-se identificar primeiramente a prioridade da sociedade, buscando no seio da comunidade os seus problemas e anseios, desejos e aflições, combatendo, assim, o problema em sua essência, já que através dos dados colhidos, o poder público poderá projetar o melhor para a comunidade, baseado em fatos e opiniões daqueles que vivenciam o dia-a-dia, evitando-se desta forma a aplicação do dinheiro público em projetos infundados e sem qualquer planejamento. Para que se possa compreender o porquê de tantos atos violentos no cotidiano da população mundial, é necessário que se reflita sobre alguns pontos relatados pelo Projeto de Segurança pública (INSTITUTO CIDADANIA, 2005, p. 6): a) b) c) d)

acolhimento familiar, comunitário e escolar deficientes; falta de perspectivas de integração social plena; ausência do Estado nos territórios urbanos pauperizados; constituição, nas periferias vilas e favelas, do varejo do tráfico de armas e drogas como fonte de recrutamento para atividades ilegais; desdobramento do tráfico em ampla variedade de práticas criminais, graças a disponibilidade de armas.

Esses fatores combinados afetam, de forma desastrosa, a formação e o desenvolvimento dos indivíduos, uma vez que a família e o meio social em que se vide, influenciam as atitudes e ações na idade adolescente e adulta. Dessa forma, muitos adultos tornam-se violentos nas mais diversas formas, inclusive contra crianças e adolescentes, através do abuso moral, físico e afetivo.

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Nesse sentido, ressalta-se novamente a importância das políticas públicas, no intuito de banir tais comportamentos que geram violência. Violência esta, muitas vezes, originada das vantagens e desvantagens relativas das estratégias de sobrevivência, acumulação econômica, exercício abusivo do poder e da posse, bem como do consumo abusivo e do exibicionismo. É a partir disso é que a violência assume atualmente um patamar político, de profundas implicações sociais, já que esse poder paralelo que a violência assume subtrai muitas famílias e até mesmo comunidades inteiras da esfera de abrangência do Estado democrático de direito. Direitos estes, garantidos constitucionalmente, como o direito de ir e vir, de expressão, organização e participação efetiva na comunidade (INSTITUTO CIDADANIA, 2005). O Código dos Direitos Humanos ressalta que o ser humano não apenas existe, mas sim, coexiste dentro do seu meio social, portanto, todos os indivíduos, indiferente da situação econômica ou do status, deverá possuir liberdade de escolhas e de expressão, para conquistar seus anseios, seu pão de cada dia, e principalmente uma vida digna. Para que esta igualdade constitucional seja realmente estendida a todos, faz-se necessário uma reforma estrutural na sociedade e, principalmente, na mentalidade do poder governante, uma vez que, muitas são as políticas públicas citadas pelos Estados, porém, muito pouco se faz no sentido de distribuir renda, reduzir as desigualdades, elevar drasticamente as taxas de escolaridade, gerar emprego, valorizar as mulheres e principalmente eliminar a indiferença e a corrupção embutidas em nossa pirâmide social (INSTITUTO CIDADANIA, 2005). Nessa linha, Azambuja (2004, p. 168): O primeiro passo para o alargamento dos horizontes dos profissionais que integram o sistema de justiça parece residir na consciência que, lentamente, emerge nos diversos segmentos, apontando para a necessidade de capacitação para o enfrentamento do difícil desafio que se impõem neste momento histórico. O despreparo advém de vários fatores, destacando-se a não-oferta de subsídios pelo meio acadêmico, voltados, em especial, aos profissionais do direito, da saúde, da educação, do serviço social, porquanto o tema, de regra, não se faz presente nos currículos das faculdades de ciências jurídicas e sociais, medicina, educação, psicologia e serviço social, mesmo após o advento da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Temos que é importante “[...] promover uma ação conjunta de integração à cidadania, constituindo uma fonte adequada para refletir sobre a violência urbana, social e sexual contra crianças e adolescentes.” (MELLO, 2010, p. 140). Inicialmente, deve-se promover e estimular a criação de instituições não governamentais voltadas para a construção da paz. Essas seriam uma forma de criar fontes alternativas, compostas por jovens, adultos e todos os representantes da comunidade, para que juntos, promovam a sociabilidade construtiva e solidária (MELLO, 2010, p. 140). Conforme texto extraído do artigo de Mello (2010, p. 140), “[...] a sociedade sozinha talvez não consiga abranger a impetrada violência atual. Faz-se necessário, então, que o Estado participe efetivamente e conjuntamente.” A ideia é a atuação conjunta 270

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para a implementação de políticas eficientes. Frente a isso, o Projeto de Segurança para o Brasil diz: O resgate da juventude requer um mutirão que congregue os governos federais, estaduais e municipais, a sociedade civil organizada e a iniciativa privada. A violência e seu protagonista jovem requerem mais que políticas públicas específicas – estas são necessárias e urgentes, mas insuficientes. Exigem mais do que reformas econômicas estruturais, que são indispensáveis mas demoradas. Exigem a mobilização imediata de todos os recursos públicos e privados, simbólicos e materiais, numa cruzada que ultrapasse interesses políticos menores e doutrinarismos ideológicos. O que está em jogo, afinal, é muito grave. Esta em questão nossa capacidade de transformar as ruínas da miséria e da barbárie em matéria para uma futura civilização democrática, generosa e solidária. (INSTITUTO CIDADANIA, 2005, p. 10).

Nota-se que os contextos históricos e políticos são relevantes no que se refere à violência, já que, a imoralidade impune de alguns alimenta a perpetuação de atos violentos em outros. Portanto, segundo o Projeto de Segurança para o Brasil: As condições econômicas jogam um papel relevante, principalmente quanto a algumas formas de criminalidade e violência, e não sem mediações diversas. É preciso sempre distinguir os tipos de práticas criminosas e analisa-las isoladamente, assim como é necessário diferenciar miséria e desigualdade, identificando nesta, significados culturais distintos e contraditórios. (INSTITUTO CIDADANIA, 2005, p. 10).

A despeito disso, salienta-se alguns fatores que segundo a maioria dos autores desta área, são propiciadores das condições que estimulam a prática da violência, tais como: falta de apoio familiar, deficiência de aprendizado, exclusão escolar, moradia inadequada, violência intrafamiliar, pouca oportunidade de emprego, lazer e cultura, falta de afeto, amor, e dignidade humana. Para tornar essa situação menos freqüente, deve-se produzir através dos Estados uma intervenção efetivamente capaz de prevenir atos violentos, com o auxilio de políticas sociais indutivas, que ocupem a população com ações, projetos, cultura e lazer. Essas políticas integradas deverão propiciar uma mediação entre as políticas estruturais, tais como: segurança alimentar, educação, saneamento, habitação, etc, com as políticas especializadas, ou seja, aquelas voltadas à violência sexual, a criminalidade, drogas e principalmente o combate ao trabalho infantil e a toda forma de exploração e abuso da integridade física, moral e emocional das crianças e dos adolescentes. (MELLO, 2010, p. 140).

6.1.1 Formas de prevenção da violência Para que se programe uma política pública realmente capaz de prevenir a violência, faz-se necessário, uma intervenção que objetive alterar as condições que estão diretamente ligadas aos atos violentos, uma vez que, deve-se entender, primeiramente, que o termo política pode ser visto por vários ângulos, como por exemplo: decisões do governo frente a situações emergenciais, campo de atividade ou envolvimento governa-

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mental objetivo ou situação desejada relacionada à economia, programas de recursos e leis, autorização formal, ou seja, são ações conjuntas com um propósito comum. Observa-se, diante do exposto, que a análise de política vai além dos estudos e decisões dos analistas, já que, a política pública influencia a vida de todos os relacionados ou inseridos em algum problema de origem pública. Portanto, entender a política pública é desenvolver, através do emprego de criatividade, imaginação e habilidade, maneiras de implementar políticas e projetos que venham ao alcance do povo e supre as necessidades reais da população. Nesse aspecto, cabe salientar que as políticas públicas, de forma geral, resultam da confrontação de interesses divergentes, englobando várias instituições governamentais ou não, no intuito de realizar uma tarefa potencialmente efetiva em pró da coletividade. Neste contexto, cumpre salientar que a implementação é o “[...] o processo pelo qual as decisões acomodam-se às reais necessidades, uma vez que, implementar consiste em aplicar um programa de ação a um problema diagnosticado previamente.” (MELLO, 2010, p. 140). Registra-se que “[...] essa fase de implementação é muito relevante, pois, é nesse momento que os gestores públicos, usufruem de vários instrumentos pré-estabelecidos para supervisionar se o projeto esta de fato cumprindo seu propósito.” (MELLO, 2010, p. 140). Cohen e Franco (1993, p. 16) ressaltam que a avaliação de projetos sociais representam uma espécie de ferramenta capaz de prestar contas à sociedade das ações governamentais, ou seja: “[...] a avaliação de projetos sociais tem um papel central neste processo de racionalização e é um elemento básico de planejamento. Não é possível que estes sejam eficazes se não forem avaliados os resultados de sua aplicação.” Referente à avaliação, Lubambo e Araújo (2003, p. 4) apresentam uma síntese das fases da política: A focalização na formulação responde à preocupação de identificar a adequabilidade das ações/estratégias às demandas existentes. A avaliação de implementação permite compreender e analisar aspectos diversos da dinâmica institucional e organizacional, no tocante ao funcionamento do programa, incluindo sua formulação. Por sua vez, a avaliação dos resultados e impactos, objetiva compreender e analisar o que se obteve com o programa, inclusive na sua implementação.

Para que se tenha eficiência no âmbito das políticas públicas, há que se dispor de método, conteúdo e instrumentos utilizados para não somente executar mas também implementar os projetos. Analisar a eficiência dessas políticas revela-se de extrema importância uma vez que possibilita a compreensão acerca de que maneira os recursos públicos são investidos e qual o efeito gerado (MELLO, 2010, p. 140). Para Belloni, Magalhães e Sousa (2001, p. 64), o conceito de eficiência das políticas públicas representa: Em resumo, a eficiência, traduz-se por respostas dadas a questionamentos ou indicadores relativos a necessidades atendidas, recursos utilizados e gestão desenvolvida. A interação entre a política examinada e outras a ela relacionadas, assim

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Reflexões sobre o direito à cultura e sua expressão... como a não sobreposição de duplicação de esforços, são indicadores de eficiência não apenas da política em foco, mas de ações governamentais como um todo.



Desta forma, importa ressaltar o que segue: Portanto, para que políticas públicas brasileiras alcancem os objetivos propostos, faz-se necessário que a Presidência da República, juntamente com governadores dos estados e representantes municipais proponham um pacto em torno das políticas sociais de prevenção da violência, tanto física, como moral e sexual, almejando um processo de reconstrução social da paz e da dignidade humana. (MELLO, 2010, p. 140).

Desta forma, o estudo das relações entre violência, pedofilia, pobreza e exclusão social requerem um abrangente interesse das políticas públicas sociais, uma vez que, a inexistência e o fracasso dessas políticas preventivas não representam apenas a incompetência governamental e sim, envolve uma gama de interesses, no qual, os interesses da elite dominante tendem a prevalecer. Diante do exposto e considerando a banalização das diferentes formas de violência, ressalta-se que as questões sociais, principalmente as que se referem à exploração sexual de crianças e adolescentes, merecem uma ampla reflexão e ação, já que, muito se discute sobre as questões sociais, mas pouco é realizado para melhorar a qualidade de vida e sobrevivência do ser humano. Nessa linha, ressalta-se que é necessário incentivar o encorajamento das vítimas e da sociedade em geral a denunciar os casos de violência pedofílica, tendo em vista, que a quebra do silêncio é fator fundamental para que as autoridades, públicas e privadas, governamentais e não-governamentais, sociais e políticas possam em uma ação conjunta, inibir tais atos (MELLO, 2010, p. 143). 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto e considerando a banalização das diferentes formas de violência e falta de dignidade humana, ressalta-se que as questões sociais merecem uma ampla reflexão e ação, já que, muito se discute sobre a questão da dignidade humana, mas pouco é realizado para melhorar a qualidade de vida e sobrevivência do ser humano. Nessa linha, pode-se dizer que a lei tem seu valor de marco jurídico de uma nova concepção, de que se faz imprescindível de um novo agir e viver no mundo, porém, a lei apenas não basta para proteger e realizar a dignidade humana das vítimas, é preciso que a sociedade como um todo seja pautada na solidariedade, no respeito, e principalmente no compromisso com o outro. Frente a isto, percebe-se que a diversidade cultural num certo local acontece quando pessoas de culturas distintas são obrigadas a relacionar-se e a conviverem, demonstrando que a universalidade dos direitos humanos não se contrapõe ao direito à diferença, podendo, inclusive, ser a condição de possibilidade para que as diferentes manifestações humanas possam se expressar e conviver em igualdade, longe de agressões físicas, morais e sexuais. Para tanto é de estrema relevância que a população esteja envolvida nas políticas públicas preventivas, já que o movimento em massa da sociedade é um forte gerador de Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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mudanças. Para que este avanço aconteça faz-se necessário que o Estado exerça efetivamente seu controle, através da mobilização de seu aparato estatal para que normas de políticas públicas sejam elaboradas e implementadas em todo o território nacional. Isso só acontecerá no momento em que a população ficar em estado de alerta para esta problemática, pois se nada de concreto e efetivo for feito em prol destes menores, a vulnerabilidade de crianças e adolescentes tende a aumentar. Em termos gerais verifica-se que o processo de desconstrução familiar sem dúvida nenhuma é um dos fatores responsáveis por tantas mazelas sociais disseminadas em todo o mundo. Frente a isto, torna-se necessário que governantes e legisladores foquem a questão da importância da família nas campanhas preventivas, uma vez que se não houver uma estrutura familiar equilibrada e fortalecida as novas gerações se perdem nos vícios, na prostituição e consequentemente na criminalidade. Nessa linha, observa-se que o problema da pedofilia, da dignidade humana e do multiculturalismo é mais amplo do que se possa imaginar, já que extrapola os limites da família, da idade cronológica, da religião, da cultura e acima de tudo do amor e do respeito ao ser humano. A dignidade humama deve ser tratada como dobrado de sentimentos que faz com que reagimos a este sentimento sem distinção de qualquer natureza. Sentimento este congenito independentemente da cultura e histórico cultural, onde em hipótese alguma a pessoa pode vir a ser coisificado. Dignidade Humana é atributo que todos os seres humanos possuem onde estes não podem ser reduzidos a objeto a vontade alheia. Portanto, dignidade da pessoa humana é elemento nuclear e inalienável, pois mesmo em dimensão cultural a pessoa tem o direito de decidir o que quer seguir para ser feliz, respeitando os valores mínimos e fundamentais. Dignidade da pessoa humana é elemento tácito do ser humano. REFERÊNCIAS ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. AZAMBUJA, M. R. F. de. Violência sexual intrafamiliar: é possível proteger a criança? Porto alegre: Livraria do Advogado, 2004. AZEVEDO, M. A; GUERRA, V. N. A. Pele de asno não é só história: um estudo sobre a vitimização sexual de crianças e adolescentes em famílias. São Paulo: Roca, 1988. BAEZ, N. L. X.; CASSEL, D. (Org.). A realização e a proteção internacional dos direitos humanos fundamentais: defesa do século XXI. São Paulo: Conceito editorial, 2011. BAEZ, N. L. X. L., R.; MEZZAROBA, O. Dimensões materiais e eficácias dos direitos fundamentais. Joaçaba: Ed. Unoesc, 2010. BARBOSA , H. Inocência em perigo: abuso e exploração sexual de crianças: origens, causas, prevenção e atendimento no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.

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CONSIDERAÇÕES FILOSÓFICAS SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS Rogério Gesta Leal*  Daniela Riboli**

Resumo O presente artigo tem por objetivo estudar os direitos fundamentais e os direitos sociais no contexto da Constituição Federal brasileira de 1988. Para tanto, busca analisar a evolução histórica dos direitos fundamentais e das declarações de direitos humanos, bem como o processo de positivação dos direitos humanos na Constituição Federal de 1988. Ainda, apresenta a distinção doutrinária entre os termos direitos humanos e direitos fundamentais e estuda a proteção aos direitos fundamentais no âmbito da Constituição brasileira, bem como reflete sobre concepções dos direitos sociais. O método utilizado no presente trabalho é o dedutivo e o procedimento de pesquisa adotado é o bibliográfico, sendo a pesquisa teórica. Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direitos sociais. Positivação de direitos. Constituição. Philosophical considerations on fundamental rights Abstract This article aims talk about the fundamental rights and social rights.  Therefore, it analyzes the historical development of fundamental rights and human rights declarations, the affirmation process of the human rights, as well as the affirmation of these rights in the federal constitution. It brings the doctrinal distinction between the terms human rights and fundamental rights. Analyzes, in the context of federal constitution, the protection to the fundamental rights and concludes with conceptions of social rights. The method used in this work is the deductive and the procedure adopted is the literature, and the theoretical research. Keywords: Fundamental rights. Social rights. Rights affirmation. Constitution. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem a pretensão de evidenciar algumas considerações sobre os direitos fundamentais e os direitos sociais, bem como a positivação na Constituição Federal de 1988. Para isso, o ponto de partida do presente estudo é a análise da evolução histórica dos direitos fundamentais, por meio do qual buscar-se-á esclarecer a diferença terminológica entre direitos fundamentais e direitos humanos, bem como a importância das Declarações de Direitos Humanos no processo de positivação destes direitos fundamentais.

_____________ * Doutor; Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina de Chapecó; [email protected] ** [email protected]

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Analisar-se-á também os direitos fundamentais à luz da Constituição Federal do Brasil de 1988, estudar-se-á como estão positivados os direitos fundamentais, bem como as suas garantias e os pontos positivos e negativos da positivação e das inovações trazidas pela Constituição. E por oportuno, serão examinados os direitos sociais em uma concepção que os inclui no rol dos direitos fundamentais, abordando as implicações de uma positivação em âmbito constitucional. Para tanto, são evidenciadas as principais teorias e classificações, bem como seus argumentos filosóficos. Finalmente, serão averiguadas a importância e as implicações do reconhecimento dos direitos sociais como direitos fundamentais em face das garantias constitucionais do Estado Brasileiro. O método adotado no presente trabalho é o dedutivo, em que para chegar a conclusão é necessário uma premissa maior e mais genérica e uma premissa menor mais específica por meio de uma operação lógica. O procedimento utilizado é o bibliográfico, em que se realiza uma pesquisa teórica através da doutrina. 2 FUNDAMENTOS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Como ponto de partida, abordar-se-á os fundamentos filosóficos dos direitos fundamentais por meio da concepção do que são estes direitos, partindo de breves considerações a respeito da evolução histórica, bem como da definição e da diferença/semelhança entre direitos humanos e direitos fundamentais. Na análise da evolução histórica dos direitos fundamentais, pode-se observar o que foi importante e o que impulsionou a criação inicialmente dos chamados direitos humanos e dos direitos fundamentais, além de ser possível vislumbrar o que ensejou a idealização destes direitos. Dessa forma, Silva (2011, p. 173) explica que o estudo da evolução histórica dos direitos humanos permite concluir que a inspiração das declarações de direitos do homem foram tanto as reivindicações quanto as lutas em busca da garantia de direitos, uma vez que as declarações dos direitos humanos foram formadas através de inúmeras lutas históricas. De tal modo, a declaração de direitos do homem surgiu através de lutas e reivindicações da sociedade que buscavam a garantia de seus direitos. Com a conquista desta declaração as pessoas almejavam uma grande mudança com a proteção dos direitos à igualdade e à liberdade. A Revolução Francesa foi um marco histórico importante, pois em meio a esta revolução foi criada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão no ano de 1789. Este foi um momento que demarcou o início de uma nova época, constituindo-se em uma grande mudança e de muito entusiasmo, pois o povo via a possibilidade de decidir sobre o seu destino. Nesta declaração havia uma finalidade especificamente política de garantir a liberdade e a igualdade diante da lei, garantindo dessa forma os direitos naturais (BOBBIO, 1992, p. 86-87). A sociedade viu na Revolução Francesa uma possibilidade de decidir sobre o seu destino, onde os direitos individuais foram se solidificando cada vez mais, também graças à Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão onde estavam garantidos os direitos naturais. Na

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Considerações filosóficas sobre os direitos fundamentais

análise dos direitos do homem é necessário distinguir-se a teoria da prática e com isso surgem duas novas direções para os direitos dos homens, a universalização e a multiplicação. A direção da universalização significa dizer que não mais eram os direitos de um indivíduo, mas era direcionado a todos os indivíduos, que partem de cidadãos de um Estado para cidadão do mundo. Já a direção da multiplicação expressa a ideia de aumento de direitos, maior número de titulares desses direitos e por último que o ser humano não é mais considerado abstrato, sendo apreciado em suas diversas formas de ser na sociedade (BOBBIO, 1992, p. 67-68). Por sua vez, Canotilho (2003, p. 416-417) explica através do princípio da universalidade esse sentido de preocupação com a sociedade, a coletividade e não meramente ao indivíduo, uma vez que as associações e organizações também possuem direitos fundamentais. De tal modo, o princípio da universalidade quer dizer que não são apenas direitos dos cidadãos, e sim direitos do ser humano, são direitos de todos. De tal modo, a universalização explicada por Bobbio (1992) e Canotilho (2003) compreende os direitos não unicamente de um indivíduo determinado/específico, mas a preocupação com a classe indivíduos, a sociedade. A luta por direitos e por melhores condições de vida gerou nas pessoas um ideal do qual elas gostariam de vivenciar acerca de alguns direitos que se acreditava serem indispensáveis para garantir a condição de seres humanos. Como uma resposta às manifestações e clamores sociais é que começaram a surgir as declarações de direitos do homem, onde estavam escritas as garantias buscadas pela sociedade. Os direitos garantidos nas declarações inicialmente constavam apenas em documentos dos povos, em particular, posteriormente começaram a fazer parte das Constituições dos Países, passando também a integrar o preâmbulo dessas Constituições, dando uma relevância maior a estes direitos, pois passaram a fazer parte das normas que estão positivadas em Constituições (SILVA, 2011, p. 175). Em um primeiro momento o direito natural, ou do homem, não estava escrito em documento algum, pois eram meramente desejos e aspirações da sociedade, mas com o passar do tempo, com as lutas e revoluções, estes direitos começaram a ser incluídos em cartas e declarações de direitos. Com isso, sua garantia passou a ser maior, demonstrando a relevância pelo fato de estarem escritos, ou seja, positivados. Assim, como resultado das grandes lutas que foram inspiração dos primeiros direitos do homem, foi preciso que eles fossem reconhecidos, por serem inatos ao ser humano. A positivação nas constituições de cada país contribuiu para isso. O reconhecimento dos Direitos humanos e a sua dimensão moral não foram suficientes para garantir o mínimo de efetividade e implantação. Dessa forma, restou necessário que esses direitos fossem positivados, visando um grau de objetividade (LEAL, 2000, p. 51). Não foi possível conquistar a efetividade dos direitos humanos meramente com o reconhecimento moral destes direitos. Assim, se fez necessário a sua positivação na Constituição. Com o cumprimento dos direitos previstos na Declaração, os países estarão atendendo ao objetivo do reconhecimento e efetivação dos direitos do homem, mas quando não são atendidos estes direitos constantes das Declarações eles se tornam apenas uma esperança da sociedade. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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Na Declaração Universal de Direitos do Homem está depositada a confiança das minorias para a garantia de igualdade, onde não haja nenhuma distinção em razão de sexo, religião e raça, sendo que todos sejam respeitados garantindo a dignidade humana. Ocorre que se os países não efetivarem e criarem meios de cumprir o que está escrito nas cartas e declarações esses direitos serão meramente esperanças (BONAVIDES, 2012, p. 593). Ressalta-se que uma parcela da doutrina entende que essa Declaração foi o marco inicial do reconhecimento dos direitos fundamentais. Por sua vez, Rousseau (2000, p. 53) explica que as leis divinas têm grande importância para a justiça, mas não para serem seguidas e obedecidas pelas pessoas, já que não tem a coerção necessária para tornar obrigatória. Já a lei positivada é obrigatória, tendo sanção a quem descumpre, isso é importante porque é nesta lei que está demonstrado quais são os direitos e os deveres de cada um. É evidente a importância da positivação quanto à criação das declarações de direitos humanos e quanto à sua inserção nas Constituições de cada País, uma vez que os direitos, estando positivados, serão efetivamente respeitados e cumpridos, pois há uma sanção prevista em casos de descumprimento. Afinal, de modo geral, sem uma coerção para o cumprimento da lei, a mesma não será atendida e respeitada pelas pessoas e pelo Estado. Neste sentido, vê-se a importância da positivação dos direitos humanos, para que estes tenham força de coagir as pessoas a cumprirem. Da mesma forma, destaca-se que a lei em seu fundamento já expressa um compromisso. A respeito dessa obrigação que uma positivação em lei representa, Hobbes (1983, p. 78) refere que lei não é meramente um conselho a ser seguido, mas sim expressa uma ordem, um mandamento que foi acertado entre as partes anteriormente. Dessa forma, os direitos humanos fundamentais, uma vez positivados, são considerados leis, posto que já se encontram inseridos nas cartas constitucionais dos países, não sendo considerados apenas conselhos, constituem-se em mandamentos que devem ser respeitados e efetivados. É possível verificar uma diferença significativa entre a declaração de direitos humanos dos ingleses e americanos com a declaração de direitos do homem e do cidadão francesa de 1789, em que os destinatários destes direitos são apontados como completamente diferentes. Assim, Bonavides (2012, p. 580) é quem faz esta comparação entre as declarações, observando que na primeira os direitos eram diretamente destinados aos barões, enquanto que para a declaração francesa não existiam classes privilegiadas, na medida em que os direitos eram garantidos a todos, sem qualquer privilégio em função de classe social. Por isso, trata-se de um exemplo a ser seguido por todas as outras declarações do mundo. Portanto, a declaração francesa de 1789 foi um modelo para ser adotado por outros povos, pela sua simplicidade de garantir o direito à igualdade, já que não concebe a existência de grupos ou pessoas privilegiadas. Vislumbrando ser modelo e inspiração para as Constituições, a Declaração Universal de Direitos do Homem trás a garantia de direitos de liberdade que ainda não estavam positivados. A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi o ponto de maior liberdade conquistada, direito este que nenhuma Constituição ainda havia positivado. Esta declaração de 10 de dezembro de 1948 serviu como inspiração para as Constituições, e foi mais além, 282

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buscando ser mais que pura inspiração visando ser a essência da Constituição deixando de ser algo meramente ideológico (BONAVIDES, 2012, p. 592-593). Um dos objetivos das Declarações de Direitos do Homem é ser um ideal a ser conquistado pelas Constituições dos países, despertando em cada um a necessidade de incluir estes direitos em seus textos constitucionais, caso isso não ocorra, a declaração não terá efetividade. Partindo do passado é que a Declaração veio para trazer valores essenciais. Ocorre que não se pode simplesmente pensar no passado e se esquecer de garantir e atualizar os direitos dos homens, para não se chegar ao ponto de ser uma fórmula vazia. Assim, para o desenvolvimento da humanidade, há grande relevância a história para formar o progresso em busca de um objetivo (BOBBIO, 1992, p. 34). As declarações de direitos humanos, ao longo do tempo, serviram de exemplo e alicerce para a positivação e tentativa de efetividade dos direitos considerados mínimos e essenciais para uma vida digna do ser humano. Há uma grande confusão e falta de distinção entre a concepção de alguns termos, como é o caso dos direitos humanos, os direitos do homem e os direitos fundamentais e sobre o real significado que estes termos expressam. No entendimento de Silva (2011, p. 178), direitos fundamentais do homem, é a expressão que exprime de forma mais clara o significado destes direitos, uma vez que significa que as pessoas não vivem sem, sendo garantido a todos de forma igual, para a espécie humana. Assim, para o autor o termo que melhor expressa os direitos do homem, os direitos que são inatos ao ser humano, pelo simples fato de terem nascido é direitos fundamentais do homem. O que evidentemente não é consenso na doutrina. De outra banda, a distinção feita por Canotilho (2003, p. 393), referente às expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais”, é no sentido de que os direitos do homem são os direitos de todas as pessoas, um direito natural, resguardado em todos os tempos. Já os direitos fundamentais são esses direitos de todas as pessoas restringidos em um espaço de tempo. O autor explica a diferenciação que adota entre direitos do homem e direitos fundamentais, onde os direitos do homem são os direitos naturais, e os direitos fundamentais são estes direitos naturais positivados. Piovesan (2010, p. 13) também contribui com seu entendimento a respeito do termo direitos humano. Adota a “[...] concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual eles são concebidos como unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, na qual os valores da igualdade e liberdade se conjugam e se completam.” A autora optou em utilizar a expressão “direitos humanos”, explicitando o sentido de representar uma unidade indivisível e também onde se encontra o direito à igualdade e à liberdade inerentes ao termo. Com referência às citadas nomenclaturas, terminologias utilizadas para expressar os direitos fundamentais e os direitos humanos, Sarlet (2010, p. 29) explica que direitos fundamentais seriam os direitos do homem que estão positivados na Constituição de um Estado, já os direitos humanos seriam os direitos do ser humano, mas em uma esfera de positivação internacional como as Cartas e Declarações, destinados a todos os povos em todos os tempos. Assim, nesta concepção, a diferença entre as terminologias “direitos fundamentais” e “direitos humanos” está no âmbito da positivação dos direitos, uma vez que se Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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estiver positivada na Constituição de um país é direito fundamental, enquanto se estiver positivado no âmbito internacional, será direitos humanos. Segundo Bobbio (1992, p. 17), diversas vezes tentou-se definir o que seriam os direitos humanos, mas sempre se cai no mesmo fundamento, de que direitos do homem são aqueles que lhes são inatos, que lhes são devidos pelo simples fato de ser homem e que estes direitos não podem ser renunciados. Dessa forma, o entendimento do autor é de que os direitos humanos são os direitos que nascem com o homem, que não podem ser renunciados, e que nascem pelo simples fato de ser humano. Ainda no que tange ao conceito de direitos humanos, não é possível encontrar uma única explicação pelo fato de não ser pacífico este conceito. Historicamente, o conceito de direitos humanos não se apresenta de forma unânime, assim, ele pretende garantir a abordagem de diversos temas e elementos efetivamente constitutivos de seu entorno e de sua natureza, sendo que a história não quer apenas ser a razão ou a justificativa, mas sim um indicador de onde e o que precisa debater (LEAL, 2000, p. 50). Afinal, os direitos humanos não são meramente direitos que se objetiva efetivar, vão, além disso, quando também têm como objetivo debater os assuntos que envolvem estes direitos para que seja possível mostrar a razão e efetivá-los. Por outro lado, para os defensores dos direitos naturais existem alguns direitos que lhes são inerentes, inalienáveis e imutáveis simplesmente pelo fato de ser humano em razão de sua natureza. Para garantir estes direitos, o Estado entra nessa relação positivando-os, visando assegurar tais direitos na vida das pessoas. Esta positivação de direitos inerentes aos seres humanos pode ser chamada de direitos humanos fundamentais (LUCAS, 2010, p. 65). Destaca-se que a expressão “direitos fundamentais” surgiu primeiramente na França com a ideia de relação jurídica de direitos e garantias individuais que se estabelece entre o cidadão e o Estado. Posteriormente, foi entendido que Direitos Fundamentais seriam todos os direitos positivados, o que causou uma confusão, pois sem positivá-los estes seriam jusnaturalismo sem grau de eficácia (LEAL, 2009, p. 28). Assim, resta demonstrada a importância da positivação para os direitos, uma vez que trazem nesta positivação toda a força de coerção para que sejam cumpridas as leis e não sejam meramente normas morais sem efetividade. Por sua vez, há os que entendem que direitos fundamentais somente os são quando estiverem positivados em uma Constituição, caso isso não ocorra, esses direitos são meramente esperanças e ideais. Os direitos naturais dos indivíduos, ou seja, aqueles direitos que nascem com o ser humano, são os considerados direitos fundamentais (CANOTILHO, 2003, p. 377). Conforme se observou não é pacífico na doutrina uma conceituação quanto as expressões direitos humanos e direitos fundamentais, o que é possível verificar é que por direitos humanos os autores entendem ser os direitos inatos a cada pessoa por sua natureza humana e que os direitos fundamentais são estes direitos positivados. Consoante leciona Silva (2011, p. 180-181), os direitos fundamentais possuem como caracteres a ideia de que são direitos inatos, absolutos, invioláveis e imprescritíveis. Justificando-se tais afirmações pelo fato de que são direitos históricos, não podendo ser transfe-

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rido uma vez que foi concedido a todos, sendo de caráter personalíssimo, não prescrevendo a possibilidade de exigir estes direitos, nem podendo ser renunciados pelas pessoas. Nesse sentido, alguns caracteres dos direitos fundamentais que devem ser destacados são o seu caráter de direito inato, inviolável e imprescritível. Resta evidente que a busca pela garantia dos direitos dos homens é um longo caminho que ainda deve ser percorrido, sendo os fatos históricos um início para esta grande procura pela garantia destes direitos essenciais (BOBBIO, 1992, p. 46). Ainda será um longo caminho para ver garantido a efetividade dos direitos fundamentais, porquanto as lutas são apenas o começo deste caminho que deverá ser trilhado por toda a sociedade. Mas a principal crítica aos direitos humanos não é em relação à sua falta de fundamento absoluto ou sua justificação, e sim a falta de conseguir exigibilidade de tais direitos, pois quando se trata de efetivação e de ações para concretizar, se encontra o grande problema (BOBBIO, 1992, p. 24). Não é meramente o seu caráter absoluto e relativo que vem gerando críticas aos direitos humanos, mas é o fato da dificuldade em conseguir efetivar e exigir a prestação destes direitos. Portanto, através das revoluções e guerras, pode-se perceber o início da luta das pessoas pela garantia de direitos mínimos que lhes garanta uma vida digna, direitos estes que são considerados inatos ao simples fato de serem considerados como nascidos juntos com o homem. Assim a busca por esses direitos culminou com diversas declarações de direitos humanos que tinham como objetivo a garantia dos mesmos. Assim, em consequência dessas declarações de Direitos, as Constituições de determinados países passaram a conter no rol dos direitos assegurados esses direitos do homem. Em algumas das constituições estes direitos estavam garantidos no preâmbulo, o coração de uma Constituição, uma vez que lá estão assegurados os direitos que irão nortear a carta constitucional. Esta positivação dos direitos humanos nas constituições resulta nos direitos fundamentais quais sejam os direitos inatos do ser humano que estão positivados na lei maior de um país. 3 DIREITOS FUNDAMENTAIS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA Os direitos fundamentais estão garantidos na Constituição Brasileira de 1988, denominada “constituição cidadã”. De tal modo, estudar-se-á esta proteção aos direitos fundamentais na Constituição Brasileira. No preâmbulo, pode-se observar a instituição de um Estado Democrático de Direito que tem como fundamento a busca pela garantia de liberdades individuais e sociais, sendo estes alguns dos valores mais importantes (BRASIL, 1988). A organização estrutural dos direitos fundamentais na Constituição se dá em um título e em capítulos deste título, sendo que o título II expressa: “dos direitos e garantias fundamentais”. Na sequência, iniciam-se os capítulos, sendo o capítulo I “dos direitos e deveres individuais e coletivos”, o capítulo II é “dos direitos sociais”, no capítulo III expressa “da nacionalidade”, no capítulo IV explana “dos deveres políticos” e por fim no capítulo V estão elencados “dos partidos políticos” (BRASIL, 1988). A Constituição Federal já em sua organização distribuiu os direitos que são considerados fundamentais dentro do grande título das garantias fundamentais e os classificou

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em capítulos. Já no primeiro título da Constituição estão “Dos princípios fundamentais”, que significa dizer que são os princípios norteadores, onde expressam os fundamentos e os objetivos da Carta Magna, que serão importantes na garantia dos direitos do povo brasileiro. O Constituinte elevou a garantia da dignidade da pessoa humana com um status de princípio, demonstrando assim a sua relevância nos direitos fundamentais (LEAL, 2000, p. 165). Assim sendo, os direitos fundamentais são os princípios norteadores da Constituição Brasileira os que ensejam os objetivos desta e ainda considerando que a dignidade da pessoa humana possui um status de princípio. Para qualquer criação e interpretação de normas, deve-se levar em conta como fundamento o comando que adota o Estado Democrático de Direito, onde suas prioridades são as demandas dos campos sociais, incentivando suas políticas. Dessa forma, como todas as normas são baseadas no comando de um Estado Democrático de Direito, pode-se perceber que a eficácia dos poderes do Estado são medidas pela busca, respeito e garantia dos Direitos Humanos ou Fundamentais (LEAL, 2000, p. 173). Para a concretização de um Estado Democrático de Direito, é necessário se levar em conta a importância de respeitar e garantir os direitos fundamentais. A Constituição Federal garante ainda uma aplicabilidade imediata aos direitos fundamentais. O artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal dispõe que “[...] as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais tem aplicabilidade imediata.” (BRASIL, 1988). Portanto, no artigo 5º da Constituição está assegurada a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, para que não seja necessário ficar aguardando outras considerações e ações para conseguir a exigibilidade e aplicabilidade rápida destes direitos. A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais gera ao poder público a responsabilidade da eficácia máxima e de torná-los diretamente aplicáveis (PIOVESAN, 2010, p. 85.). Ainda, no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal está previsto que além dos direitos assegurados nesta constituição não são afastados os direitos previstos em tratados internacionais que faça parte, contando que esteja de acordo com os princípios adotados por esta Constituição (BRASIL, 1988). Veja-se que o legislador abriu a possibilidade de direitos que podem ser considerados direitos fundamentais, não sendo necessário que estejam unicamente positivados na Constituição, podendo os mesmos estarem em tratados internacionais. Desse modo, Sarlet (2010, p. 71) explica que o artigo referido está materialmente aberto, uma vez que possibilita expressamente que sejam reconhecidos direitos fundamentais que não estão ali escritos, podendo estar subentendido no restante do texto constitucional bem como em tratados internacionais. Assim sendo, resta destacada a importância dada aos direitos fundamentais, pois os mesmos podem estar espalhados no texto constitucional, não necessariamente tendo que estar no capítulo das garantias fundamentais. Ainda, no texto constitucional não se pode observar claramente uma teoria que domine em relação aos direitos fundamentais pelo fato de que a Constituição tem um caráter compromissório. Da mesma forma, não se pode verificar que no texto constitucional tanto dos direitos fundamentais quanto na parte organizacional seja possível afirmar a ideia de um sentido independente, em relação a estar concentrado apenas em um local os direitos 286

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fundamentais, uma vez que a maior parte dos direitos de ordem econômica e social pode estar fora da Constituição (SARLET, 2010, p. 65). Os direitos fundamentais podem estar no capitulo destinado a eles na Constituição Federal bem como podem estar na parte organizacional da Constituição, pelo fato destes direitos não estarem apenas concentrados em uma parte. O momento que o Brasil estava vivenciando na época da promulgação da Constituição Federal de 1988 representa a grande relevância considerada quanto aos direitos fundamentais, uma vez que este momento serviu de inspiração. A Constituição trouxe algumas inovações ao que se refere aos direitos fundamentais, ao passo que surgiu em um momento que o Brasil estava há vinte anos vivendo a ditadura militar. Portanto, o Brasil deu uma maior relevância aos direitos fundamentais, em função disso (SARLET, 2010, p. 63). Observa-se que a Constituição de 1988 apresentou alguns pontos positivos ao passo que a mudança da ditadura para a democracia concedeu maior importância aos direitos fundamentais. A Constituição de 1988 foi um marco importantíssimo para o Brasil, uma vez que após anos de ditadura houve a mudança para um o regime democrático, havendo a inclusão dos direitos humanos. Desse modo a Constituição ficou entre as Constituições mais avançadas, por ter uma ampla garantia dos direitos fundamentais (PIOVESAN, 2010, p. 25). Esta mudança da ditadura pra um estado democrático foi a base para os direitos humanos serem positivados na Constituição, garantindo a sociedade direitos mínimos de uma vida digna. Nesse sentido, Sarlet (2010, p. 64-65) observa três características na Constituição, sendo elas o cunho analítico, o pluralismo e o cunho programático. O cunho analítico onde estão elencados os direitos fundamentais em um título, sem mencionar os direitos fundamentais que estão no restante da Constituição. O pluralismo ao passo que optou por adotar diversas posições em seu texto, mesmo que algumas conflitantes para marcadamente acolher as reivindicações de todos. Já o cunho programático, onde institui programas, implementados e protegidos pelo Estado. Na Constituição Brasileira, o autor verifica algumas peculiaridades, sendo estas o seu caráter pluralista, bem como o cunho analítico e programático. Uma vez que a Constituição tentou agradar a todos, incluiu programas de responsabilidade do Estado e considerou direitos fundamentais mesmo os que estão espalhados na Constituição. Trata-se de outra inovação do texto constitucional de 1988, tendo sido a primeira que incluiu a garantia dos direitos sociais, no título dos direitos fundamentais, juntamente com as garantias quanto os direitos civis e políticos (PIOVESAN, 2010, p. 34). Merece ser destacado o fato da inclusão dos direitos sociais como um capítulo dentro do título direitos fundamentais, o que significa dizer que os direitos sociais são considerados direitos fundamentais sociais. Deste modo, a relevância dos direitos fundamentais conferida pela Constituição é uma consequência das reações sociais e também do próprio constituinte ao cerceamento das liberdades fundamentais da população (SARLET, 2010, p. 65-66). Além dos pontos positivos analisados por Sarlet (2010), este destaca alguns pontos negativos, algumas críticas em relação aos direitos fundamentais na Constituição Federal, mas explica, que ao mesmo tempo conclui entendendo que estas críticas são ínfimas uma vez que é a Constituição que deu maior relevância aos direitos fundamentais na história do Brasil. Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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As críticas à Constituição na concepção de Sarlet (2010, p. 68-69) são quanto à estruturação e terminologia, uma vez que estão elencados os direitos fundamentais básicos sem explicar o seu conteúdo, sendo necessário buscar em outros títulos, deixando dúvidas sobre o os direitos fundamentais que estão fora do título; outra crítica apontada é de que o catálogo é muito amplo, tendo em seus artigos alguns referentes a normas de organização estruturantes que poderiam estar na parte orgânica da Constituição. Importante destacar que mesmo apontando estas críticas o autor entende que as mesmas servem como reflexão para alguns ajustes, críticas estas, que não tem o peso de desconsiderar o valor concedido aos direitos fundamentais. Destaca-se que para Sarlet (2010, p. 70), “[...] os direitos fundamentais são, em verdade, concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, consagrado expressamente em nossa Lei Fundamental.” Assim, o autor entende que a efetividade e a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana expressam o real sentido dos direitos fundamentais que estão positivados na Constituição brasileira. Da mesma forma, Piovesan (2010, p. 31) também aponta que a Carta de 1988 priorizou a valorização dos direitos sociais, elencando como essencial a dignidade da pessoa humana, uma vez que orienta e caracteriza o perfil da Constituição. Os direitos fundamentais são tão importantes que o constituinte assegurou-lhes o caráter de cláusulas pétreas na Constituição, para que estes direitos fossem limitados à reforma constitucional (SARLET, 2010, p. 73). Assim, pela importância destes direitos e por serem considerados cláusulas pétreas, os mesmos restam limitados à reforma, não podendo ser alterados nem por emendas, o que confere maior proteção ante aos outros direitos. Piovesan (2010, p. 33) descreve que os direitos e garantias fundamentais possuem uma proteção maior, ao passo que explica que o constituinte priorizou estes direitos lhes incluindo nas cláusulas pétreas da Constituição de 1988. Pode-se observar que os direitos fundamentais são de extrema importância para a Constituição, primeiro porque são cláusulas pétreas, segundo porque lhes foram conferidas aplicabilidade imediata e por fim estes direitos são os que norteiam todo o texto da Constituição. Na Constituição brasileira de 1988, observa-se que ainda há uma discussão quanto à expressão a ser utilizada, uma vez que são encontrados termos como direitos humanos, direitos e garantias fundamentais. Sarlet (2010, p. 66) entende que como está no título “direitos e garantias fundamentais”, este é genérico expressado que os subtítulos que lhe seguem fazem parte dos direitos fundamentais mesmo que sendo individuais ou coletivos. Com o estudo dos Direitos Fundamentais na Constituição Federal do Brasil, percebe-se a garantia que os direitos sociais possuem, no âmbito de serem também direitos fundamentais. Dessa forma, resta necessário pesquisar algumas considerações quanto os direitos fundamentais sociais. 4 DIREITOS SOCIAIS E SEUS FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS Em relação aos direitos sociais e seus fundamentos filosóficos, abordar-se-á alguns fundamentos e considerações desses direitos. Inicia-se por sua positivação para depois analisar suas teorias definidoras.

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Os direitos sociais estão assegurados na Constituição Federal de 1988, no Título II “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, no capítulo II “Dos Direitos Sociais”, em três artigos 6º, 7º e 8º e seus incisos e parágrafos. No artigo 6º, prevê a garantia do direito a educação, saúde, alimentação, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção a maternidade e á infância e a assistência social aos desamparados. No artigo 7º, estão assegurados os direitos do trabalhador, para a garantia de um trabalho digno. O artigo 8º possibilita a associação profissional ou sindical. Os direitos sociais estão dentro do capítulo dos direitos fundamentais, conforme mencionado anteriormente, o que lhes atribui o caráter de um direito fundamental. Os direitos sociais dominaram o século XX, sendo juntamente com os direitos culturais e econômicos os direitos de segunda geração. Estes direitos nasceram do princípio da igualdade, sendo este princípio a razão de ser dos direitos de segunda geração, onde também estão incluídos os direitos coletivos (BONAVIDES, 2012, p. 582). Assim, os direitos sociais surgiram juntamente com o principio da igualdade, que traziam juntamente os direitos coletivos e tinham um caráter ideológico. Estes direitos inicialmente estiveram vinculados a idealismos visto que foram proclamados pelas Declarações. Primeiramente, a normatividade foi pequena, posto que era duvidosa a eficácia destes direitos por que a sua natureza exige uma prestação material do Estado. Como não existia um instrumento processual para proteger os direitos sociais assim como havia quanto aos direitos da liberdade, estes direitos passaram por uma fase questionada. Mas após esta crise dos direitos sociais, as Constituições começaram a incluí-los com aplicabilidade imediata conforme os direitos de liberdade (BONAVIDES, 2012, p. 582). Nesse diapasão, até chegar à fase da aplicabilidade imediata os direitos fundamentais sociais, passaram por um longo processo de ajustes, uma vez que no seu início eram desacreditados pelo fato de ser necessário uma prestação do Estado e pela falta de mecanismos de aplicabilidade e proteção. Bonavides (2012, p. 583) explica que os direitos sociais fizeram com que surgisse uma consciência de proteção quanto a instituição, onde era valorizado não apenas o indivíduo identificado, mas sim o indivíduo em abstrato sem identificação especifica. Em decorrência disso começa a mudar a ideia de proteção, passa da proteção pessoal, para a necessidade de proteger as instituições, a sociedade sem especificar o indivíduo. Por outro lado para se conquistar uma “sociedade livre, justa e solidária” é necessário concretizar os direitos sociais, ao passo que a busca pela redução das desigualdades também se concretiza através de direitos sociais, tanto que são objetivos do Estado Brasileiro (BONAVIDES, 2012, p. 680). A busca pela proteção da sociedade trás a tona alguns direitos considerados indispensáveis para o Estado Democrático Brasileiro, que deve ser uma sociedade livre, justa e solidária, para que com isso seja efetivada a diminuição de desigualdades. Assim, tendo em vista a grande importância dos direitos sociais no ordenamento jurídico brasileiro, Bonavides (2012, p. 680) entende que estes direitos receberam uma garantia mais elevada, da mesma forma que a concedida as garantias individuais. Entendendo que não há diferença de valor entre os direitos individuais para com os sociais. Essa força normativa apresentada por Bonavides (2012, p. 680) é observada quanto a inclusão dos direitos sociais nas cláusulas pétreas da Constituição Federal, tendo assim a mesma Série Direitos Fundamentais Sociais: Tomo II

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proteção dos direitos de liberdades, onde não podem ser feitas emendas que tentem suprimir estes direitos. Desse modo, houve uma valorização dos direitos sociais como decorrência de terem sido elevados a direitos fundamentais, o que lhes assegurou a valoração como cláusulas pétreas, reduzindo a possibilidade de serem alterados. Na Constituição Brasileira houve uma grande valoração quanto os direitos sociais, pois estes passaram a fazer parte do rol dos direitos fundamentais, onde as organizações sindicais tiveram influências para a redemocratização do país (LEDUR, 2009, p. 77). Nesse contexto, considerar os direitos sociais como direitos fundamentais trás a estes direitos uma carga de valorização, uma vez que vem junto o peso de ser cláusula pétrea, e de servir para nortear a Constituição. Além dos direitos sociais serem considerados direitos fundamentais, é importante observar que estes trazem consigo uma grande proteção aos direitos da sociedade, como um todo. Na concepção de Sarlet (2010, p. 260), os direitos sociais são considerados direitos fundamentais, ao passo que se dividem em: direitos a prestação em sentido amplo e os direitos a prestação em sentido estrito. Nos direitos fundamentais sociais a prestação em sentido amplo resguarda a participação da sociedade na organização dos direitos. Já nos direitos fundamentais sociais na prestação em sentido estrito estão os direitos que necessitam de uma prestação material do Estado, como contrapartida. Na teoria de Sarlet (2010), os direitos fundamentais sociais em sentido estrito dependem de uma contrapartida do Estado, de uma prestação material. Por outro lado em sentido amplo tratam da participação da sociedade na discussão da organização dos direitos e nos procedimentos. No mesmo entendimento, Alexy (2008) explica sua teoria e classificação dos direitos fundamentais sociais, com nomenclatura diferente, mas na essência evidencia-se o mesmo sentido. Alexy (2008, p. 202) entende que os direitos fundamentais se dividem em dois grandes grupos, o das ações negativas e o das ações positivas. As ações negativas são os chamados direitos de defesa e as ações positivas os direitos sociais. Dentro das ações positivas, tem-se ainda uma classificação quanto uma ação positiva fática e uma ação positiva normativa, onde a fática significa a ajuda através de subsídios e a normativa o auxílio por meio de criação de normas. Para entender melhor a classificação de Alexy (2008, p. 202) é importante observar que existem dois grupos, de um lado estão os direitos negativos e de outro os direitos positivos, um de ação positiva fática e outro de ação positiva normativa. Há uma dificuldade terminológica quando se fala em direitos a prestações, e o autor adota esta expressão no entendimento da forma mais ampla, que trás no significado a ideia tanto de prestações fáticas quanto de prestações normativas. O autor adota para o significado de prestações positivas e normativas a terminologia de direitos a prestações, no sentido mais amplo da expressão. Já no sentido estrito do termo são apenas as prestações fáticas, materiais. Nesse mesmo ínterim, Bonavides (2012, p. 685) entende que o status positivo significa as prestações que o indivíduo recebe do Estado através das exigências, onde é valo-

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rado os pedidos dos seres humanos feitos ao poder público, garantindo os direitos fundamentais com o princípio da participação da vontade da população nas decisões do Estado. Dessa forma, para realizá-los é necessário prestações do Estado, as quais nada mais são do que desejos e pedidos da sociedade, de sorte que Bonavides (2012) entende pelo status positivo as prestações recebidas pelo indivíduo do Estado. Neste sentido, os direitos fundamentais sociais foram resultados das lutas da sociedade, na maior parte delas, buscava-se uma maior participação da sociedade na concretização dos direitos sociais através de ações governamentais (LEDUR, 2009, p. 78). Na mesma linha do status positivo, vem o autor com a ideia de que para a concretização dos direitos sociais eram necessárias ações do Estado, com a participação da sociedade na escolha dessas ações. Quanto aos direitos coletivos, Canotilho (2003, p. 421) explica que não são os direitos humanos de um cidadão de carne e osso, mas são os direitos de cidadãos não identificados individualmente. No sentido de participação da sociedade e prestações do Estado, observa-se que não é o ser humano individualmente considerado, mas sim o indivíduo genericamente, como coletividade. Os direitos fundamentais sociais são de todas as pessoas que fazem parte da comunidade, não sendo de um grupo específico, mas de todos. Em consequência disso, é importante ressaltar que mesmo que seja de todos, as ações governamentais não necessariamente precisam agraciar a todos em quantidades iguais (LEDUR, 2009, p. 82). Os direitos fundamentais sociais não beneficiam a apenas algumas pessoas da comunidade, mas visam reduzir as desigualdades entre grupos sociais, não sendo obrigatório dar o mesmo peso a todos os grupos, pois objetiva reduzir as desigualdades entre os mesmos e equilibrar as relações. Canotilho (2003, p. 477) ainda discorre a respeito dos direitos sociais reconhecendo-os como direitos originários a prestações, uma vez que, ao mesmo tempo em que se reconhece os direitos se assume a garantia em contrapartida de projetos que deem a base material para estes direitos com exigibilidade imediata. No que se refere aos direitos sociais prestacionais, os mesmos garantem direitos a sociedade, mas para a sua aplicabilidade efetiva são necessárias ações concretas, as denominadas prestações do Estado. A partir disso, a garantia dos direitos fundamentais sociais objetivam contemplar o princípio da dignidade humana onde as pessoas tenham uma vida digna, em uma sociedade mais livre e solidária (LEDUR, 2009, p. 83). Os direitos fundamentais sociais, considerados assim, visam proteger os cidadãos lhes assegurando uma vida digna com uma sociedade melhor, com as desigualdades reduzidas. 5 CONCLUSÃO O presente artigo abordou os direitos fundamentais e os direitos sociais, concluindo que os Direitos Sociais são direitos Fundamentais, com isso foi desenvolvido algumas considerações a respeito de suas conceituações e divergências doutrinárias, bem como as diferenças de terminologia quanto aos direitos humanos e direitos fundamentais. Foi abordado, acerca da positivação na Constituição Federal do Brasil e também no direito comparado.

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Assim, é possível concluir que os direitos humanos são os direitos inatos e inerentes ao ser humano pelo simples fato de sua natureza, por sua vez, os direitos fundamentais são os direitos humanos positivados em Cartas Constitucionais. Tratou-se da evolução histórica destes direitos, evidenciando-se que o marco temporal, surge a partir das lutas históricas da humanidade por melhores condições de vida, as quais impulsionaram o surgimento das Declarações de Direitos Humanos que serviram de inspiração para a positivação destes direitos nas Constituições. Por oportuno, foi analisando os direitos sociais, intitulados e classificados como direitos fundamentais, conclusão evidenciada a partir do reconhecimento e incorporação as Constituições, documento máximo na hierarquia do direito. Para uma melhor compreensão dos direitos sociais, partindo-se da premissa conclusiva de que são direitos fundamentais, foi identificado e consequentemente buscado explicação sobre a divisão apresentada, qual seja, em direitos prestacionais em sentido amplo e em sentido estrito, decorrendo dessas a expectativa do cidadão em exigir do Estado prestações, tanto no que diz respeito à participação e ao procedimento, quanto no que diz respeito a uma prestação material efetiva do Estado. Desse modo, foi possível concluir que as constatações demonstradas no presente artigo se revestem de grande importância para o estudo da ciência jurídica, uma vez que trouxe à evidência diversas considerações e teorias a respeito dos direitos fundamentais e sociais e sua proteção em face à positivação, em especial no que se refere à Carta brasileira de 1988. REFERÊNCIAS ALEXY, R. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Virgílio Afonso da Silva. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BOBBIO, N. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. BRASIL. Constituição. República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. CANOTILHO, G. J. J. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. HOBBES, T. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução José Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. LEAL, R. G. Condições e possibilidades eficaciais dos direitos fundamentais sociais: os desafios do poder judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. ______. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 292

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