Discurso amoroso ou manifestações discursivas sobre o amor?

June 30, 2017 | Autor: Mauro Berté | Categoria: Análise do Discurso, Mitologia, Literatura Comparada, Estudos Culturais
Share Embed


Descrição do Produto

DISCURSO AMOROSO OU MANIFESTAÇÕES DISCURSIVAS SOBRE O AMOR?

Mauro Marcelo Berté (mestre) 0. Introdução A versão mística clássica do mito do amor, mesmo transformada em retórica, convertida para o discurso religioso e depois ao ideal trovadoresco, manteve-se em um período de assunção. Por muito tempo, não houve diferença entre o amor – convívio de diferentes – e o amor – fusão total no absoluto. Contudo, essa primeira idéia amorosa de convívio é que a constituiu e mais influenciou nossa cultura ocidental, antes sempre fascinada por grandes mitos. Essa constante modificação na representação e entendimento do mito tem como responsável a Literatura, portanto, a via descendente, que desce aos costumes, avilta e dessacraliza o mito. Sendo impossível fugir do amor e ao ato de expressá-lo, a literatura moderna tem veiculado e sustentado convenções, imagens e heranças, assim como distorções e reutilizações, no imaginário coletivo. Mas não é só essa literatura, também o cinema, o teatro e todo tipo de publicação de filosofia ou ciência nos permitem avaliar, nas palavras de Julia Kristeva, em que ponto estamos hoje, em matéria de amor. A invasão do romance – entenda-se romance de amor – na literatura burguesa e “proletária” do século 19, e que se mantém até hoje, traduz exatamente a invasão do conteúdo totalmente profanado do mito em nossa consciência. O mito, aliás, deixa de ser verdadeiro quando se vê despojado do seu contexto sagrado, e quando o segredo místico que exprime veladamente se vulgariza e se democratiza (Rougemont, 2003, p. 317). Esse conteúdo desmitificado, segundo Roland Barthes, resulta naquela história de amor com início, fim e uma crise no meio. Essa forma seria um meio que a sociedade oferece ao sujeito amoroso para que se reconcilie com a linguagem do Outro, numa narrativa onde o sujeito sempre se coloca, no sentido em que Kristeva (1988, p. 22) chama de arrebatamento amoroso, em que os limites das identidades próprias se perdem, ao mesmo tempo que se encobre a precisão da referência e do sentido do discurso amoroso.

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

Barthes, em entrevista cedida à Art Press, em maio 1977, considera seu livro Fragmentos de um discurso amoroso uma espécie de protesto contra a história de amor. Sobre a depreciação de que padece o amor, Barthes afirma que, no romance contemporâneo, é raríssimo a descrição da paixão, o que ocorre são descrições de sentimentos amorosos: “O amor-paixão não é „bem visto‟; consideram-no como uma doença de que é preciso se curar; não lhe atribuem, como outrora, um poder enriquecedor” (Barthes, 2004, p. 409). Nesse sentido, o presente trabalho promove uma reflexão acerca dos discursos clássicos e contemporâneos sobre o amor e se nesses ainda são reavivados resquícios do mito do amor, que a própria literatura já vulgarizou, e que a sociedade e a cultura de massa domesticaram. 1. Discurso amoroso Amor choque, amor loucura, amor incomensurável, amor ardência... Tentar falar dele parece-nos diversamente mas não menos terrivelmente e deliciosamente embriagador que vivê-lo. O risco de um discurso de amor, de um discurso amoroso, provém sem dúvida principalmente da incerteza de seu objeto. Na verdade, do que se está falando? (Kristeva, 1988, p.23). Por resultar da imaginação, o discurso amoroso jamais será esclarecedor, pois não explicitará as razões de ser do amor, já que este resulta de um phatos – palavra grega que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento e assujeitamento. Um relacionamento quando narrado, literariamente ou em conversas entre amigos só se torna propriamente discurso amoroso “sendo a demonstração da existência imaginária de um destino que, secretamente, conspirava para tornar possível a união, o que uma simples justaposição de fatos, relatando a história factual, jamais faria ver” (Furtado, 2008, p. 50). O discurso amoroso invoca seu objeto, o amor – sujeito desse discurso – por isso, ele jamais descreve simplesmente a história do amor, porque é impossível representar seu objeto através de uma descrição, por mais fiel e poética que seja.

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

Presume-se então que as palavras tenham esse poder de produzir na alma do ouvinte o sentido do amor, através do sentido poético assumido pelo discurso. Trata-se de transformar um conjunto de fatos objetivos em uma história que, enquanto história de um amor, é a narrativa da trama secreta do destino singular que uniu um dia, e separa agora, os amantes. Falamos de amor – na música, na literatura, na poesia – para evocar o indescritível e justificar uma escolha racionalmente injustificável, através da mitologia de uma destinação mútua dos amantes que tanto produziu o encontro quanto o desencontro. Toda fala de amor é discurso de um não saber, de fatos que não entendemos nunca totalmente, aproximando-se, por isso, da linguagem sagrada e teológica, ou seja, da expressão daquilo cuja verdade jamais se estende, banhada de luminosidade, à frente do olhar humano (Furtado, 2008, p. 50-51). Mas não se produz discurso apenas ao contar ao terceiro sobre uma relação, o sujeito amoroso o pratica com o outro da relação, cobrindo-o de adjetivos elogiosos (polinímia bem conhecida da teologia ou da prática religiosa; por exemplo: litanias da Virgem). E em outros momentos, ou finalmente, insatisfeito com esse rosário de adjetivos, sentindo a carência dilacerante de que sofre a predicação, ele acaba por buscar na língua um meio para indicar que o conjunto dos predicados imagináveis não pode atingir ou esgotar a especificidade absoluta do objeto de seu desejo: da polinímia ele passa à anonímia – invenção de palavras que são o grau zero da predicação, do adjetivo. “Genial!”, um “não-sei-quê”, um “quê”, um “tchan” etc. (Barthes, 2004a, p. 123). 2. Discurso mitológico Denis de Rougemont (2003) atribuiu à lenda de Tristão e Isolda o estatuto de lenda fundadora da idéia ocidental de amor como paixão do sofrimento. A lenda inclusive explicaria as dificuldades e frustrações da instituição do casamento. Sabemos que Tristão não amava Isolda por si mesma, mas somente pelo amor do Amor de que sua beleza lhe oferecia uma imagem. Mas ele não sabia disso e sua paixão era ingênua e forte (Rougemont, 2003, p. 304). Outra compreensão nos diz que o drama de Tristão e Isolda se passa dentro deles, “entre as leis inaceitáveis da vida terrestre e finita e o desejo de uma transgressão de nossos limites, mortal mas divinizante”. Tal interpretação é o mais próximo do que

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

poderíamos pensar da mística negativa, também chamada de teologia negativa que, apesar de “negativa” também é simbólica. Essa negatividade seria, antes, uma técnica de purificação do imaginal de todas as impurezas associativas condicionadas para que o indivíduo estivesse apto para a experiência transcedental. A mitologia de Narciso também é evocada para o entendimento do amor. A história da subjetividade no ocidente grego e cristão é considerada por Kristeva (1988, p. 15) uma elaboração do narcisismo, “Base topológica que em seus registros literários, em seus grandes mitos – o Ahav judaico, o Ágape cristão, Dom Juan, Romeu e Julieta, cortesia trovadoresca, quietismo – essa história vai acolher ou negar”. Já para Comte-Sponville (2006, p. 30-33), a realidade da vida social é o narcisismo, a relação de poder, o dinheiro. Mas todo amor verdadeiro, mesmo se a serviço da sociedade, supõe uma relação lúcida consigo, que é o contrário de narcisismo. Portanto, de um lado, haveria o narcisismo, representando a instabilidade do objeto amoroso, o reflexo, provando a inexistência do objeto do amor. De outro, o Eros defendido no banquete de Platão, em que amamos aquilo de que estamos despojados, fundando o amor naquilo que o sujeito não tem. E no contexto de Eros, surge a contraposição do Ágape cristão, que pode ser explicada por São Tomás (citado por Comte-Sponville, 2006, p. 68-69), consistindo na diferença entre amor de concupiscência (que só ama o outro para seu próprio bem) e o amor de benevolência (que também ama o outro para o bem desse outro). A despeito de toda fundamentação mitológica, o discurso do amor se rarefaz a partir do século 17 “racional”, em que os nossos costumes se separam das crenças religiosas e, sem que ninguém perceba, se adaptam às leis da razão do século, renegando o absoluto cristão. A partir de agora, “os méritos”, e não a graça imprevisível, decidem uma união, e só eles tornarão “amável” um partido cuidadosamente escolhido pela razão. Triunfo da moral jesuíta (Rougemont, 2003, p. 282). Diferentemente do século 12, em que ainda era preservado o tom místico de transcendência, e o mito sagrado do amor cortês tinha por função social “ordenar e purificar as forças anárquicas da paixão”, orientando as nostalgias de uma humanidade

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

sofredora para o além, quando pensamos a Literatura não trovadoresca, a maioria dos escritores voltará às ilusões do amor humano sem entretanto encontrar a forte ingenuidade desse mito. 3. Discurso literário Em O Amor como paixão: para a codificação da intimidade, Niklas Luhmann (1991) aborda o papel da literatura como disseminadora de comportamentos na sociedade. Apresenta a teoria do amor como meio de comunicação simbolicamente generalizado e sua função no que tange às relações íntimas. O autor recorre à exemplificação por meio de romances e outras fontes literárias, apresentando uma perspectiva inovadora da literatura como participante na formação da estrutura da sociedade, de modo que a literatura apareça como meio de disseminação de um código. Quando perdem seu caráter esotérico e sua função sagrada, os mitos transformam-se em literatura. O mito cortês prestava-se a esse processo mais do que qualquer outro, pois só pudera exprimir-se nos termos do amor humano, se bem que entendidos no sentido místico. Dissipado esse sentido, restava apenas uma retórica (Rougemont, 2003, p. 325). Rougemont (2003) traça uma influência precisa da Literatura nos costumes ocidentais. Acusa a literatura romântica, no sentido de contadora de histórias de amor, de ter domesticado e mais adiante, deturpado certos preceitos do mito do amor. O filósofo nos lembra que o amor feliz não tem história e que só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria vida. Mas o que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado do que a paixão de amor, pois esquecemos que paixão significa, fundamentalmente, sofrimento (Rougemont, 2003, p. 24). Ao invés de aceitarmos esse sofrimento como parte do amor, preferimos emoções mais agradáveis, nos opondo ao mito do amor infeliz. Nesse sentido, os sentimentos que a elite experimenta, e também a massa, por imitação, são criações literárias, na medida em que retórica é a condição suficiente de sua confissão e, portanto, de sua tomada de consciência, mas artificial, manipulada, pois imaginativa.

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

E quanto mais apaixonado for o indivíduo, maiores serão as possibilidades de que reinvente as figuras de retórica, de que descubra sua necessidade e também de que se modele espontaneamente à semelhança do sublime que tais figuras conseguiram tornar inesquecíveis (Rougemont, 2003, p. 240-241), mas nunca conseguirá torná-las precisas. O sonho de toda a Idade Média pagã, atormentada pela lei cristã, era impor um estilo à vida das paixões – eis a secreta vontade que deveria dar origem ao mito. Mas a confusão da fé com o amor por “uma coisa mortal”, foi a consequência inevitável. E dessa confusão resulta a oposição corpo e alma. A sociedade medieval foi contaminada por uma literatura idealizante. Daí a reação “realista” que inevitavelmente lhe sucederia. Esta se fez sentir sobretudo na burguesia (Rougemont, 2003, p. 256). E é na burguesia romântica que o direito à paixão tornou-se então a vaga obsessão de luxo e de aventuras exóticas, que os “romances de passatempo” bastavam para satisfazê-la simbolicamente. Para provar que essa literatura não tem o menor valor, basta constatar a absoluta incapacidade de seus leitores para conceber uma realidade mística, uma ascese, um esforço do espírito para libertar-se dos laços sensuais: ora, a paixão cortês só tinha esse objetivo e sua linguagem não tinha outra chave. Perdidas e esquecidas essa chave e essa finalidade, a paixão, cuja necessidade ainda nos atormenta, é apenas uma doença do instinto, raramente mortal, ordinariamente tóxica e depressiva (Rougemont, 2003, p. 317-318) Por outro lado, houve períodos em que o mito foi reabilitado pela literatura, por exemplo, com Shakespeare (Sonho de uma noite de verão e Romeu e Julieta). Esta última é considerada a única tragédia cortês e a mais bela ressurreição do mito de Tristão. Mais tarde, o próprio Werther de Goethe reavive o amor-morte. Contudo, essas reações foram esparsas e sempre tenderam à desmistificação e desmitificação. Um breve panorama desse percurso pode ser extraído da obra de Rougemont (2003), sintetizada no quadro a seguir: Pré século XI Século XII Século XIII

A poesia trovadoresca é a exaltação do amor infeliz; Século XII, o imaginário da paixão nasceu com a poesia lírica provençal; A ambiguidade da linguagem mística da heresia deu origem a uma

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

retórica profana da paixão; Século XV

Século XVII

Final do Século XVIII

A literatura cortês desliga-se de suas raízes míticas, reduzindo-se a uma retórica que idealiza os objetos que descreve; A mística se degrada em pura psicologia e o romance torna-se objeto de uma literatura requintada; A violenta exaltação de tudo o que o mito original de Tristão e Isolda simbolizava; O século XIX burguês viu o “instinto de morte” espalhar-se na consciência profana, instinto que desde suas origens fora reprimido no inconsciente

Século XIX

ou

canalizado

por

uma

arte

aristocrática

(Rougemont, 2003, p. 326); A tradição antiga, que sempre condenou a paixão como uma “doença da alma”, espalhou-se na literatura em versões racionalistas, polêmicas, de depreciação da mulher e redução do homem ao sexo;

Início do Século XX

Rougemont aponta a literatura desse período nos termos de desespero e vazio.

4. Discurso científico Nas leituras psicanalíticas de Kristeva (1988) das histórias de amor de seus pacientes (analisandos), o amor é uma metáfora, que etimologicamente significaria um transportar, um deslocar. Ela abandona por um instante os códigos amorosos da Filosofia, da Teologia e da Literatura, para explicar tais histórias por dois termos psicanalíticos, a identificação e a idealização. O primeiro se baseia no mito de Narciso. E o segundo é centrado no Eros de Platão. Ou seja, esses indivíduos apaixonados ou estão enamorados de si mesmos ou de um outro ideal, e em ambos os casos, esses sujeitos são, nas palavras de Leda Tenório da Motta, em introdução à Kristeva (1988), “plenos, sim, porque o amor é um sentimento oceânico, mas de seu próprio discurso amoroso”. Nessa posição analítica, é justamente a enunciação que parece ser o único fundamento do sentido e da significação no discurso. Para ela, o imaginário é um discurso de transferência: de amor. Através do desejo que aspira à consumação

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

imediata, o amor está cercado de vazio e plantado em interditos. O fato de não termos hoje um discurso de amor revela nossa incapacidade de responder ao narcisismo. Kristeva (1988, p. 422) chamará para Freud as primeiras considerações do amor como uma cura “Para permitir não a obtenção de uma verdade mas uma renascença – como uma relação amorosa que nos faz nascer de novo, provisória e eternamente.” A psicanálise não inaugura portanto um novo código amoroso, depois da cortesia, da libertinagem, do romantismo, da pornografia. Ela assinala o fim dos códigos mas também a permanência do amor como construtor de espaços de palavras (Kristeva, 1988, p. 422). Mas para Furtado (2008), hoje será o discurso científico, refinado, ideologicamente neutro, eticamente esvaziado, que dará a última palavra quando se trata de amor e sexualidade, um discurso que ensina a amar adequadamente e que retira do desejo todas as referências a um ideal de transcendência – ético, religioso, romântico e até dos costumes – “reduzindo à imanência egoísta do indivíduo que se projeta na intensificação de todas as suas potencialidades, o desejo se transforma em preza fácil das forças acumuladas do comércio, da indústria, da ciência” (Furtado, 2008, p. 98-99). 5. Discurso vulgarizado do amor Barthes questiona o porquê de a cultura de massa expor tanto os problemas do sujeito amoroso. E acredita que, o que ela põe em cena, na realidade, são narrativas de episódios, não o sentimento amoroso em si. Mesmo esta distinção sendo um tanto sutil, ele a considera de extrema importância: Isso quer dizer que, se você coloca o sujeito amoroso numa “história de amor”, por esse fato mesmo, você o reconcilia com a sociedade. Por quê? Porque contar faz parte das grandes imposições sociais, das atividades codificadas pela sociedade. Através da história de amor, a sociedade domestica o amoroso (Barthes, 2004, p p. 424).

E nesse processo de domesticação, que se inicia nos romances e vai até o cinema e a telenovela, que a verdade do amor é renegada. Comte-Sponville (2006) a denomina de a verdade do desespero, ou seja, a de que o amor fracassa, o amor é difícil, é fraco, sofredor e morre (lembramos do mito original). E ressalta que isso não o refuta, não o subtrai em nada, ou só subtrai suas ilusões: Deixemos aos padres e aos espíritos frívolos as boas palavras que reconfortam, as pequenas esperanças, as pequenas mentiras que ajudam a viver. O amor triunfante, o

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

amor invencível, o amor imortal... Há cruzes, em todas as encruzilhadas, que recordam claramente o contrário (Comte-Sponville, 2006, p. 105).

De fato, não há romance e relação sem obstáculo. Assim, por uns instantes de leitura, ou mais abrangente ainda, por uma ou duas horas, em uma tela de cinema, “o romance se impõe e nosso coração suspira”, é isso o que todos procuramos. Mas o obstáculo significa, em último caso, a morte, a renúncia aos bens terrestres. E quando isso se torna claro, já não o queremos. Trata-se, portanto, de suprimir o obstáculo enquanto é tempo, o que, por definição, resulta no fim do romance e do filme: “e tiveram muitos filhos” significa que não há mais nada a contar; ou então é o beijo em close, tomando toda a tela e fechando a janela da imaginação. Todavia, procura-se dar ao filme uma atmosfera “poética” que dissimule a volta à vida quotidiana e compense a decepção do romântico pela atenuação do burguês (Rougemont, 2003, p. 320). Então, renegamos o amor primordial por não aceitarmos a decepção que ele carrega, inevitavelmente. E, ao nosso auxílio, o filme sentimental tem o seu papel: refletir de forma mais ingênua esse desejo de usufruir do mito, mas sem “pagar” muito caro. Há poucos gêneros mais rigorosamente convencionais e retóricos que o filme americano dos primeiros anos do período entre-guerras. Era a época do happy end: tudo terminava com um longo beijo final sobre um fundo de rosas ou de ambientes luxuosos. Ora, essa figura de estilo não deixa de ter relação como mito na sua última fase de decadência. Exprime o mais alto grau de perfeição, a síntese ideal de dois desejos contraditórios: desejo de que nada acabe bem e desejo de que tudo acabe bem – desejo romântico e desejo burguês. A profunda satisfação produzida pelo happy end advém precisamente do fato de liberar o público de suas contradições íntimas (Rougemont, 2003, p. 320). Quanto mais procuramos o amor, fugimos dele. Assim, no teatro, no romance popular e no filme, que exploram até exaustão fórmulas como a do triângulo amoroso, o idealismo trágico do mito original é somente uma nostalgia bastante vulgar, idealização de desejos anódicos, voltados apenas para o gozo das coisas, quer dizer, totalmente contrários ao amor cortês (Rougemont, 2003, p. 320-321).

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

Referindo-se à época moderna em geral, que vê na natureza um “grande livro aberto diante dos nossos olhos, e escrito em linguagem matemática”, Pascal, citado por Furtado (2008), falou de um mundo “desencantado”, e sem mistérios, um mundo onde não há mais nada em que a razão não possa penetrar, nada de obscuro e desconcertante na vida e no nosso entendimento de mundo. Ora, o amor é um mistério, porque é paixão, e, como tal, ligado a um não saber. Ele é, ao mesmo tempo, evidente e inapreensível. Comporta uma certeza indiscutível (eu amo) tanto quanto uma dúvida infinita (sobre o amor do outro). Somos o seu sujeito e a ele estamos assujeitados (Furtado, 2008, p. 101).

E os indivíduos, quando realmente assujeitados, sofrem o preconceito dessa irracionalidade. Existe também um sentimento popular que se exprime nas observações, nas chacotas, nos ditos licenciosos. Eles depreciam o sujeito amoroso que é assimilado a um lunático, a um louco. Mas há que se dizer que as maiores depreciações de que padece o amor são as impostas pelas “linguagens teóricas”. Ou elas não falam absolutamente a respeito, como a linguagem política, a linguagem marxista, ou então falam com fineza, mas de maneira depreciativa, como a psicanálise (BARTHES, 2004, p. 409). Um exemplo: Observem a histérica (a “ninfomaníaca frígida” de nossos tratados de psiquiatria!), observem o amante excessivamente apaixonado ou excessivamente romântico, que a paixão afoba, observe o tímido, que a luz paralisa... Os amantes lúcidos fazem amor à luz do dia (Comte-Sponville, 2006, p. 122).

Daí, o único ponto em comum entre esse sintoma moderno e o mito como o de Querubim (aquele que suspira dia e noite sem saber se é de amor): a linguagem, “que domestica e nos leva a amar o desterrado do espaço psíquico, ou seja, sempre imaginária. Música, filme, romance. Polivalente, indecisa, infinita. Uma crise permanente” (Kristeva, 1988, p. 423). 6. Conclusão Apesar de a Literatura ser uma das grandes disseminadoras do mito do amor, ao mesmo tempo, ela é responsável pela vulgarização dessa idéia, excetuando-se momentos em que as concepções originais do mito tiveram certo fôlego. No mais, a literatura burguesa refletiu na moderna, assim como em tantas outras manifestações discursivas, a domesticação do amor, negando o fracasso, o sofrimento e a morte, ou toda mística de sublimação advindas do mito.

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

7. Referências BARTHES, R. O grão da voz: entrevistas – 1962-1980. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BARTHES, R. O neutro: anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977-1978. São Paulo: Martins Fontes, 2004a. COMTE-SPONVILLE, A. O amor a solidão. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. FERREIRA, N. P. O mito do amor sob o signo da paixão. In: DAVID, S. N. Paixão e Revolução. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996. FURTADO, J. L. Amor. São Paulo: Globo, 2008. LUHMANN, N. O amor como paixão: para a codificação da intimidade. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991. KRISTEVA, J. Histórias de amor. Tradução de Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. PLATÃO. O banquete. Tradução de J. Cavalcante de Souza. Rio de Janeiro: Difel, 2006. ROUGEMONT, D. de. História do amor no ocidente. São Paulo: Ediouro, 2003.

Universidade Estadual de Ponta Grossa 20, 21 e 22 de Junho de 2011

ISSN: 2176-6169

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.