Discurso cristão-novo na Peregrinação [1614] de Fernão Mendes Pinto. Presented at the 10th International Conference of the American Portuguese Studies Association, Stanford, CA (2016).

May 28, 2017 | Autor: Gabriel Mordoch | Categoria: Conversos
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The Tenth International Conference of the American Portuguese Studies Association (APSA) Stanford University October 13-15, 2016.

Discurso cristão-novo na Peregrinação (1614) de Fernão Mendes Pinto Gabriel Mordoch, The Ohio State University

Este é um trabalho em andamento, escrito no contexto da minha pesquisa de doutorado sobre a participação de cristãos-novos na expansão imperial portuguesa. Em primeiro lugar, gostaria de saber quantas pessoas aqui nesta audiência estão mais ou menos familiarizadas com Fernão Mendes Pinto e sua Peregrinação? • c.1510: Nascimento em Montemor-o-velho, Portugal • 1537 – 1558: Estadia no Oriente • 1569 – 1578: Redação da Peregrinação. • 1583: Falescimento em Almada, Portugal • 1614: Publicação da Peregrinação em Lisboa

Trata-se de uma obra publicada em 1614 em Lisboa, cuja extensão alcança nada menos que 303 fólios, divididos em 226 capítulos. Seu autor, Fernão Mendes Pinto, nasceu ao redor do ano de 1510 em Montemor-o-velho, nas imediações de Coimbra. e navegou os mares do Oriente entre 1537 e 1558. Ao regressar a Portugal, Mendes Pinto habitou em Lisboa antes de se mudar a Almada, do outro lado do Tejo, onde passou a redigir a Peregrinação. Considera-se que a obra foi finalizada ao redor de 1578, mas por alguns motivos que ainda não foram totalmente esclarecidos, só veio a ser publicada em 1614 - cerca de trinta anos após a

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morte de Fernão Mendes Pinto, ocorrida em 1583. Aparentemente, Mendes Pinto preferiu não ver sua obra publicada em vida, e especula-se que essa preferência esteve ligada ao receio de sua obra destoar de um decoro católico ortodoxo, despertando assim a desconfiança do aparato inquisitorial. A Peregrinação é uma espécie de autobiografia que ao mesmo tempo mistura vários gêneros literários, como a crônica de reis, a literatura de naufrágios, hagiografia, cativeiro e pirataria, história militar, a descrição de paisagens e costumes de povos nativos, etc, de modo que o foco narrativo oscila constantemente entre a primeira e a terceira pessoa. Muitas características da Peregrinação fazem desta vasta obra um texto singular entre os vários relatos relativos à expansão lusitana no Oriente, sobretudo sua versatilidade e pluralidade de modalidades discursivas. Em um primeiro momento a fortuna crítica da Peregrinação preocupou-se principalmente com questões relativas à veracidade, rigor e fidelidade histórica e biográfica. No entanto, a crítica mais recente vem se afastado da abordagem documental e histórica, tendendo a se preocupar menos com a busca da verdade/veracidade na obra de Mendes Pinto do que com sua complexidade narrativa, sofisticação artística e seu caráter multifacetado. Ao mesmo tempo, a crítica atual tende a concordar que a Peregrinação é um texto que não permite abordagens globais ou interpretações totalizantes (Alfredo Margarido 1976; Rui Loureiro 1984-85, 245; Ronald Sousa 1997, 17; Francisco Ferreira de Lima 1998, 187). Apesar de se tratar supostamente de uma autobiografia, a Peregrinação não revela muitos dados biográficos sobre seu autor - talvez por desleixo, ou deliberadamente. Além dos dados biográficos fornecidos ao longo Peregrinação - nem sempre totalmente confiáveis - a informação biográfica sobre Mendes Pinto conhecida atualmente também se atesta em algumas

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cartas jesuíticas relativas ao período em que aderiu à Companhia de Jesus, entre 1554-6, na esteira de seu encontro com Francisco Xavier. Precisamente devido a falta de documentação relativa a sua vida, a questão em torno da origem judaica de Mendes Pinto segue em aberto. Foi Mendes Pinto cristão-novo? Acaso esta questão é relevante para o entendimento de sua obra? Se para alguns pesquisadores a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo é algo totalmente irrelevante (Aníbal de Castro), para outros ela é parte fundamental da Peregrinação (Rebecca Catz). O objetivo desta apresentação é discorrer brevemente sobre a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo, muito embora sem a pretensão de resolver a questão.

A polêmica ao redor da origem judaica de Mendes Pinto aparentemente teve início na década de 1900 devido as cartas enviadas a Christovam Ayres por Cardozo de Bethencourt, que afirmou haver encontrado documentos que provavam que parentes de Fernão Mendes Pinto haviam sido processados pela Inquisição ao redor de 1558. Esses documentos no entanto nunca apareceram, mas a possibilidade de sua existência pavimentou o caminho para estudos não se

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limitariam à aspectos extra-textuais, mas viriam a buscar na própria Peregrinação marcas da possível identidade cristã-nova de seu autor. Lembrando que os sobrenomes Mendes e Pinto sugerem uma origem judaica, Constance Hubbard Rose assinalou que o fato de o autor-narrador-personagem da Peregrinação obscurecer sua origem, e partir para o Oriente justamente em 1537 - ano seguinte à instalação da Inquisição em Portugal - favorece a especulação da hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo. Apesar de justificar seu embarque por causas econômicas, conforme o primeiro capítulo da Peregrinação, isso não exclui a possibilidade de que a perseguição religiosa tenha colaborado para o empobrecimento de Mendes Pinto. Com efeito, o narrador-protagonista da Peregrinação perambula pelo Oriente sem um destino definido, e nesse sentido seu conceito de peregrinação se aproxima da ideia de fuga e exílio encontrada em autores cristãos-novos como João Pinto Delgado, António Enríquez Gomes e Samuel Usque. Aliás, os ponto de contato entre a Peregrinação e as obras dos cristãos-novos Samuel Usque e António Enríquez Gomes são vários e variados, e por uma questão de limitação de tempo não poderão ser discutidos nesta apresentação. António José Saraiva aventou com entusiasmo a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo, notando que certas características da Peregrinação, tais quais a suposta ausência de preconceitos nacionais, a abundância caudalosa do estilo, o gosto da decoração oriental (1962, 359) e as várias referências a imagética do Velho Testamento (1962, 489-90) poderiam colaborar para esta hipótese. Não obstante, a pesquisadora que defendeu a hipótese com mais vigor foi Rebecca Catz a crítica indireta à prática imperial portuguesa e à “ideologia da cruzada” veiculada através da Peregrinação resultaria da verve crítica de um cristão-novo perseguido pela Inquisição.

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Cabe notar que a tese de Catz, desenvolvida na década de 1970, já está ultrapassada precisamente porque designa um sentido único e inequívoco a uma obra que possui múltiplas significações. Rui Loureiro (1984-5) por sua vez notou que o discurso religioso ambíguo da Peregrinação talvez seja um dos elementos mais significativos para apoiar a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo, e talvez cripto-judeu, sem no entanto aprofundar a questão. Influenciado pela crítica literária que apoia a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo, me lancei à leitura dos 226 capítulos da Peregrinação em busca de reflexos da possível origem judaica do autor ao longo do texto. Minha expectativa era encontrar uma religiosidade católica discreta, quiçá imperceptível - de modo a indicar, através de uma ausência, a afirmação da religião ancestral judaica; de fato, a religiosidade católica de Mendes Pinto demora a se manifestar. Ela não aparece, por exemplo, entre as motivações que o empurram para além mar em 1537. No entanto, chega um momento do texto em que o catolicismo de Mendes Pinto passa a se manifestar com frequência, por exemplo através de referências a Virgem Maria, mas sobretudo nas alusões ao motivo de Cristo na cruz. Não obstante, notei que muitas vezes o autor-narrador-protagonista da Peregrinação se absteve de mencionar o nome de Cristo, preferindo simplesmente o termo “nosso senhor”. O mesmo termo, contudo, é empregado na maioria das vezes para referir-se ao Deus criador, ou seja, o Deus do Velho Testamento - quem é, aparentemente, a instância divina que predomina no texto. O predomínio do Deus criador, em detrimento de Cristo, também fica patente no primeiro e último capítulos da Peregrinação.

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Na minha hipótese, ao contrário do sugerido por Aníbal Pinto de Castro na década de 1980, a identidade católica de Mendes Pinto não elimina a possibilidade de sua origem judaica, precisamente porque muitos cristãos-novos foram capazes de se assimilar ao catolicismo, seja de forma conflituosa ou não.

Nos minutos que me restam gostaria que nos concentremos no seguinte trecho, retirado do capítulo 165, onde Mendes Pinto descreve aquilo que viu (ou supostamente viu) em uma parte do reino do Peguu - região que corresponde atualmente à Birmânia ou Tailândia. Primeiro, o narrador afirma que os povos locais seguem “vinte quatro seitas de diferentes opiniões, nas quais há tanta variedade e confusão de erronias e preceitos diabólicos [...] que é espanto ouvi-los, quanto mais vê-los [...] (165, 256, edição de A.J. Saraiva, vol. 3, 1961). No entanto, Mendes Pinto encerra essa capítulo num tom aparentemente positivo em relação aos povos locais: Quando espirram fazem o sinal da cruz como nós, e dizem: Quay doo sam rorpy, que quer dizer: “O Deus da verdade é três e um”. Pelo que parece (como atrás fica

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dito) que teve esta gente algua notícia da nossa lei evangélica, que é somente a verdadeira [259]. Mais uma vez, Mendes Pinto manifesta sua identidade católica através do motivo da cruz. Desta vez, o sinal da cruz depois de espirrar, e a fala, na língua local, que supostamente afirma a veracidade da trindade, seriam resquícios da passagem de missionários católicos por aqueles terras. Na minha interpretação, esse trecho pode ser lido de um modo ingênuo, ao pé da letra, que ao mesmo tempo funcionaria como recurso retórico para apoiar sua convicção na dilatação da fé e do império. Por outro lado, causa um pouco de perplexidade imaginar que povos que seguem preceitos diabólicos façam o sinal da cruz e afirmem a veracidade da trindade logo depois de espirrar. Este é apenas uma entre as inúmeras passagens instigantes da Peregrinação no que diz respeito ao discurso religioso do texto. Devemos investigá-las individualmente, mas também avaliar o seu conjunto. Também devemos investigar outras passagens da Peregrinação que, apesar de não abordarem temas religiosos, talvez possam colaborar para se entender melhor o discurso da obra. Por fim, se faz necessario investigar de modo comparado as formas de expressão do catolicismo de outros viajantes portugueses do século XVI na finalidade de entender a singularidade do discurso religioso da Peregrinação. A busca por um Fernão Mendes Pinto continua.

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