Discurso de Saudação ao Prof. Dr. Gomes Canotilho - Honoris Causa UFMG

July 25, 2017 | Autor: R. Viana Pereira | Categoria: Constitutional Law, Direito Constitucional, Doutoramento Honoris Causa
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Discurso de Saudação ao Professor Doutor José Joaquim Gomes Canotilho proferido na Cerimônia de Outorga do Título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, 06 de julho de 2013. Rodolfo Viana Pereira1 Magnífico Reitor Exmos. Srs. Membros do Conselho Universitário da UFMG Exma. Sra. Diretora da Faculdade de Direito da UFMG Exmos. Srs. Membros da Congregação da Faculdade de Direito da UFMG Exmas. Autoridades Exmos. Professores Caros alunos Demais presentes

Portugal, apesar da fragilidade territorial, tem vocação para o insondável, o imenso, a grandiloquência. Fundado na sequência da guerra intestina do filho Afonso Henriques contra a mãe, D. Teresa de Leão, investe sobre o domínio mouro e institui a longa manus do Estado e da Igreja sobre o extremo oeste europeu. Estimulado por prestígio e riquezas, cruza com Vasco da Gama o temível gargalho para o comércio com a rota oriental, lançando o feito para a posteridade através das letras abissais de Camões. Conquista a Terra de Santa Cruz pela intervenção de Cabral e funda as bases políticas e geográficas daquele que é o único Estado pós-colonização ibérica que, à época, não se esfacelou em republiquetas militarescas ditatoriais.

A proporção dos feitos apenas a História testemunhará, mas em épocas recentes não é de todo exagerado afirmar que o português Gomes Canotilho continuou a sina. Homens são filhos do tempo e do entorno. Assim é que, nas entrelinhas desta saudação, paira um sopro de mais de 700 anos.

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Professor da Faculdade de Direito da UFMG. Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra. Coordenador Acadêmico do IDDE – Instituto para o Desenvolvimento Democrático e do Portal Eleitoral.

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É bem verdade que a finitude biológica da vida mal alcança o centenário, mas o espírito encarnado nos elos geracionais e na história transmite os sabores culturais, as pautas conceituais e o tabuleiro das posições políticas que formam a vida acadêmica.

O Homenageado, neste caso, incorpora Coimbra, a cidade peregrina, segundo suas próprias palavras. Aliás, incorpora a Universidade peregrina, à busca constante de si mesma. Fundada em 1290, a Alma Mater transmite seus genes e não é exagero dizer que o Doutor Gomes Canotilho representa um dos seus melhores herdeiros.

Nascido no seio de família de agricultores, a experiência da terra deve ter-lhe moldado a persistência metódica do trabalho como pesquisador e como leitor. O alinhamento socialista do irmão mais velho imprimiu a transformação no núcleo do seu pensamento. A inteligência adaptativa adquirida nas trincheiras da guerra colonial em Guiné-Bissau propiciou o trânsito do Direito Privado para o Direito Público como estudante e professor de início de carreira.

Fixou-se no Direito Constitucional, empreendendo ali sua mais importante contribuição para o Direito. Das grandes obras, fez a inovadora Constituição da República Portuguesa Anotada2, o monumental Direito Constitucional e Teoria da Constituição3, ambos gestados nos fins da década de 70 e a influente Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador4.

Também ali, no Direito Constitucional, militou. A verve libertária pulsou na redação do Projeto de Constituição do PCP (Partido Comunista Português), na aurora da Revolução dos Cravos. O anseio por igualdade viu-se na afirmação da auto-vinculatividade das normas programáticas, sobretudo em matéria de

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CANOTILHO, José Joaquim Gomes, MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa – Anotada. 4. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007. 3 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed., Coimbra: Almedina, 2003. 4 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. 2. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

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direitos sociais. A fraternidade foi decantada com a introdução do Princípio da Sustentabilidade no tronco principiológico da dogmática constitucional. Para o Homenageado, o ofício que professa traduz-se em um “Direito Constitucional compromissado”. Expressão essa que já batizou o âmago deste juspublicista de Pinhel. Eu acrescentaria algo: é o “Direito Constitucional de combate”. Por certo, não o combate das armas ou dos dogmas ideológicos sacralizados, mas o posicionar-se ostensivamente contra a dissolução dos valores republicanos, contra o desrespeito ao ser humano em sua integralidade e contra a colonização do locus democrático pelo argumento do Príncipe, pela lex mercatoria ou pelo funcionalismo sistêmico estéril.

Foi e ainda é o referencial teórico de toda a geração de publicistas brasileiros forjados após a Constituição de 1988. A grande aventura do descobrimento, neste caso, trilhou o caminho inverso, pois fomos nós os responsáveis por buscar em terras lusitanas o esteio intelectual para a afirmação de tantos temas caros e simbólicos à reconstrução democrática da nossa própria pátria: supremacia

e

dirigismo

constitucional,

autoaplicabilidade

dos

direitos

econômicos, sociais e culturais, garantismo e afirmação dos direitos fundamentais, comunidade normativa de princípios, entre muitos outros.

Há, ainda, que se destacar o lirismo. A poesia, Senhor Doutor, impregna essas suas mão portuguesas. A pátria de Camões e de Pessoa ecoa nas esquinas das frases, por debaixo das vírgulas, nos títulos e subtítulos dos textos jurídicos. O leitor acostumou-se a experimentar, para além do apreço pelas regras da língua culta, o frescor estético daquela frase, daquela expressão, daquele jogo de palavras.

Sua obra, também poética, por que não, é alicerce, farol, esteio, em uma época marcada pela mercancia das palavras jurídicas. Livros e livros publicados para atender interesses momentâneos dos que pretendem ingressar nas carreiras públicas. Autores e autores postos na condição de oráculos para construir teorias de estética e conteúdo duvidosos.

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Em Gomes Canotilho, o trabalho acadêmico é artesania, responde ao tempo do vagar e do refletir, do fermentar, do decantar. Não atente à lógica de produção em escala, esvaziada do processo de maturação e marcada pelas vicissitudes advindas da linha de montagem de estilo fordista. É o exemplo perfeito a opor à mentalidade de alguns órgãos de controle acadêmico que parecem privilegiar a pura quantidade à melhor qualidade.

Por isso, o Prêmio Pessoa, reconhecidamente o maior prêmio português na área da cultura, foi lhe outorgado em 2003. Único jurista a recebê-lo, é bom registrar.

Feita a iconografia, avanço algumas notas pessoais. Um dos méritos hoje reputados ao Professor Doutor J. J. Gomes Canotilho pode ser associado ao anti-heroísmo da sua história de vida, pois o jovem Quim, no apelido carinho que lhe dá a família, não inaugurou a odisséia atraído pelos motes econômicos e colonizadores da Escola Naval de Sagres e, sim, pela inquietude investigativa, pela irritação com as zonas de conforto e pela propensão idealizada na realização da ideologia política como trilha para a sociedade justa e fraterna.

Do Orientador de Doutoramento, recordo duas passagens marcantes.

A primeira, quando tive a oportunidade de apresentar, a ele, meu primeiro projeto de Doutoramento. Na época, e talvez ainda hoje, quase todo apaixonado pelo Direito Constitucional pensava escrever sobre direitos fundamentais na Graduação, hermenêutica constitucional no Mestrado e democracia participativa no Doutorado. Ao apresentar-lhe um projeto em que pretendia investigar, grosso modo, critérios participativos para controle da legitimidade da decisão judicial, recebi uma resposta enfática: “Não acredito em sua tese. Nos tempos modernos, ninguém mais deseja ser ateniense em tempo integral”.

A segunda passagem se deu no contexto do meu dever, como Doutorando, de realizar o levantamento bibliográfico da tese que fosse compatível com a 4

exigência conimbricense. Minha dúvida central era se deveria me aventurar na literatura alemã. De novo, uma resposta desafiadora: “Olhe lá, Rodolfo, não ler em alemão, para a tese, não é um pecado mortal”. Estou certo de que queria me tranquilizar caso optasse por não pesquisar no idioma, mas pensei cá comigo: “Ora bem, não é mortal, mas continua sendo pecado.”

Tais memórias dão conta de aspectos centrais do seu estilo de orientação: a exigência de rigor na pesquisa, nas ideias e na escrita, bem como a disposição para o diálogo franco e desconcertante. Ademais, a nota mais marcante foi sempre a da abertura para o dissenso, a ausência de manipulação do pensamento do orientando, até mesmo o regozijo com a divergência. Orientandos dissidentes, segundo suas próprias palavras, são bem aceitos. Ou – já falou ele sobre os filhos, aplico eu aqui em analogia: “Os orientandos não se criam, vão se criando...”

Quanto à rotina, intriga-me o trabalho incansável, diário, em prol da honestidade acadêmica, do rigor das fontes, da dissecação dos conceitos, da escavação do erudito embuído de finalidade prática, do envolvimento políticopedagógico, do desejo de transformação do real. O prazer intelectual levado a cabo pelo ritmo incansável do obreiro e pela satisfação pessoal é a única explicação possível para a continuidade da jovialidade do espírito e para afugentar, nessa altura da vida, a tentação de amainar e flexibilizar os níveis de exigência profissional. Tivemos hoje, pela manhã, neste mesmo auditório, prova disso. Sua nacionalidade estrangeira não foi barreira para descrever de modo originário, inovador e complexo as fases geracionais e conceituais da doutrina constitucionalista no Brasil. “Um Ancião nos saberes, Uma Criança nos afetos” é a frase que o melhor descreve e o subtítulo de precisosa biografia organizada pela Dra. Ana Maria Rodrigues, sua esposa e companheira há décadas. Senhora que compartilha com o Professor a graduação (como dizemos) em Direito e o mesmo espírito de combate. Dirigente sindical, foi posteriormente trabalhar durante anos no Instituto da Família e Ação Social (algo próximo dos nossos Conselhos Tutelares). Trabalhou lá com a concretude do mundo real da proteção de 5

crianças e adolescentes vítimas de todo o tipo de maus-tratos. Por isso, Eloy García, um amigo da família, foi radiantemente feliz quando disse: “O segredo da carreira de Canotilho é a Ana Maria”.

Senhoras e Senhores,

A Faculdade de Direito demorou exatos 85 anos para solicitar, à Universidade, essa honraria. Há mestres que seriam elegíveis, mas o tempo é justo. Saudamos hoje o reconhecimento de um projeto emancipatório consistente, longe de estar concluído, dado o vigor do Homenageado.

É também uma homenagem à Academia de Coimbra, responsável pela formação dos mais importantes quadros jurídicos e políticos brasileiros por quatro séculos. Para que se tenha breve noção dessa influência, segundo Joaquim Ramos de Carvalho, Vice-Reitor da Universidade, entre 1822 e 1940, 78% dos ministros brasileiros estudaram ali.5

Sob o olhar institucional, a concedente (Universidade Federal de Minas Gerais) é extremamente restritiva na outorga do título. Uma das maiores e mais reconhecidas Universidades Brasileiras, com quase 80 cursos de Graduação, 70 de Mestrado e 60 de Doutorado, agraciou pouco mais de uma dezena de Doutores Honoris Causa.

No que toca a esta Casa de Afonso Pena, o reconhecimento da importância da homenagem é unânime, dada a afinidade histórica com os valores que perpassam o percurso do Homenageado. Afinal, esta é a casa que, na origem, intitulou-se Faculdade Livre, é a casa do Pai e do Filho Mata Machado: Edgar (pai), cuja cátedra foi cassada pela ditadura em 1968 e José (filho), preso e morto pelo regime no mesmo ano. É também a criadora do maior projeto em direitos humanos da Universidade, o Pólos de Cidadania, fundado em 1995, berço do CAAP, um dos mais antigos Diretórios Acadêmicos brasileiros (o mais

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http://noticias.terra.com.br/educacao/universidade-de-coimbra-formou-a-elite-brasileira-ateanos-40,f448d6338277b310VgnCLD200000bbcceb0aRCRD.html (Acessado em 05.07.13).

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antigo de Minas Gerais) e casa do DAJ (Divisão de Assistência Judiciária) que presta serviço de assessoria jurídica, há décadas, a pessoas de baixa renda.

Magnífico Reitor,

A UFMG, neste momento, repara uma injustiça histórica, sendo a primeira Universidade Brasileira a fornecer-lhe o título. Quanto a este fato, uma breve referência a outros dois orientandos do Professor: Ana Cláudia Nascimento Gomes pelo incentivo na requisição do título e Néviton Guedes, de quem tomo emprestadas as seguintes palavras: “Considerada

a

indiscutível

contribuição

do

professor

Canotilho

à

democracia e ao nosso Direito Constitucional, a demora da academia brasileira em lhe prestar semelhante homenagem só pode mesmo ser explicada com a inteligência de Alexandre Dumas, que, ao redigir suas memórias, deixou observado que ‘há favores tão grandes que só podem ser pagos com a ingratidão’.”

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Exmos. Srs. Conselheiros,

É dia de júbilo. Homenageado e Homenagem igualam-se em estatura.

Senhor Doutor Gomes Canotilho,

Seja muito bem-vindo ao círculo de Doutores desta Universidade.

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http://www.conjur.com.br/2013-jun-05/constituicao-poder-canotilho-torna-doutor-honoriscausa-ufmg (Acessado em 05.07.13).

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