Discurso do Cadeirão Burocrático

June 5, 2017 | Autor: José Alves | Categoria: Poetry, Contemporany Poetry
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José Borges Alves

Discurso do Cadeirão Burocrático

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Prefácio Qualquer que seja o ponto de vista escolhido, a poesia, em cada época, é sempre função de coisas que, inevitavelmente, nos escapam. Ou das estruturas graníticas da tradição, ou dos caprichosos bolsos dos homens da política (com seu olhar característicamente anotado por António Nobre), ou dos rendilhados frágeis e insinuosos dos salões, ou mesmo das nossas tão antigas e implacáveis paixões – que nem sequer garantem um maior grau de liberdade ao pobre e cansado autor. Em todo o caso, a novíssima poesia portuguesa contemporânea, vai fazendo o seu caminho para a destruição. Embora as opiniões dos críticos se concentrem, de forma consistente, em torno de um juízo medíocre – é uma poesia pobre, é uma poesia atrapalhada no quotidiano, é uma poesia frágil, é uma poesia sem voz original – o certo é que isso é apenas sintoma da posição que nós todos, os que estamos ainda vivos, ocupamos na grande roda do tempo. Reconheço que a novíssima poesia contemporânea talvez aparente um certa tonalidade gasta. Mas isso apenas porque o tempo ainda a não despiu dos seus ornamentos falsos e baratos, revelando a voluptuosa elegância do seu seio redondo e esbelta anca. Quando a espada de Cronos principiar o seu trabalho incansável para despedaçar o grande bloco de mármore que são os juízos dos homens

sobre o seu próprio tempo, o futuro será muito mais bondoso no seu julgamento, porque já não conhecerá – para sua grande felicidade – o lixo que sempre se amontoa aos pés da obra prima. Mas não deve servir-nos de consolo a nossa surdez ao entendimento dos nossos próprios discursos. Se é verdade que os estruturalismos afogaram as universidades e os críticos em psicologismos, em determinações artísticas subordinadas aos níveis de rendimentos (não sabemos se a dólares de 1970 ou a euros de 2011), e quando não subordinadas aos níveis de rendimento, muito pior, subordinadas aos níveis de frequência das recepções - onde sempre circulam bandejas com salgados, champagne barato e, graças a deus, belas raparigas – não é menos certo que sempre existem tentativas de fuga perante os bisturis insuficientemente esterilizados da crítica. Estamos perante uma dessas tentativas. Não se trata de justificar um livro. O que o leitor segura, entre mãos, é um manuscrito que, por acaso, seguiu o caminho da edição. Mas um manuscrito onde a possibilidade de erguer a voz humana acima das necessidades é uma das mil máscaras que o acaso fornece a fim de garantir o sustento do autor. Que esse sustento possa ser obtido com mais ou menos elegância é o que distingue o artista do publicador de versos (e hoje, em muitas ocasiões, já nem sequer versos, mas grosseiras anotações íntimas a que o leitor

se vê, envergonhadamente, introduzido). Cada tentativa de fugir à relatividade do tempo é, pois, uma tentativa de reconhecimento da composição particular das águas muito turvas de humanidade que coube a cada autor. Mas se a composição da água é geral, a densidade de materiais pesados deve ser procurada nos constrangimentos individuais. É neste momento que aquilo a que, na falta de melhor entendimento, chamamos vontade volta a introduzir o elemento misterioso no processo de criação artística. Porque apenas a insistência diabólica ou o génio podem fornecer instrumentos para fugir à prisão das nossas condições iniciais. Sabemos que a voz decorre de funções biológicas, onde não são estranhas funções tão primitivas e fascinantes como a locomoção, a manipulação de objectos, a reprodução da espécie, o grau de prognatismo da face, a tracção mandibular, a maior ou menor resistência a alimentos crus, o exacto local onde o crâneo encaixa na coluna vertebral. Mas nessa mesma voz, e esse é o grande mistério (por não ter mistério nenhum), podem conjugar-se outras funções que a historiografia literária tem procurado controlar: sensibilidade afectiva, ouvido musical, referências textuais, amplitude do salário, mercado do livro, ou, simplesmente, um sentido intrínseco e último da beleza a que Fernando Pessoa chamou um «raciocínio em forma de sentimento». Perante esse relâmpago, o autor pode ser mais ou menos iluminado. Mesmo

a sua condição de autor decorre de alquimias e movimentos astrológicos (e por isso confusamente sujos e atravessados de raiva e ignorância), de mecanismos frios, como as gélidas correntes da história: chamar autor à origem humana desta voz pode ser, desde já, um tremendo erro. Alguma razão haverá para abrir as páginas deste livro. Com efeito, a razão existe. Ao reconhecer na sua voz os elementos que decorrem do cadeirão burocrático, ao temer, como Cesário Verde, o mar – que é capaz de perpetuar qualquer homem, mesmo que no fundo imóvel das suas profundas águas – sabemos que se trata de um livro onde se procura falar com clareza. Vai para quarenta anos que Jorge de Sena cravou as suas bandarilhas no touro da modernidade: a incomunicabilidade do poeta, outrora com essa «entidade abstracta povo», hoje com uma outra entidade ainda mais abstracta, o «eu», é apenas uma estratégia de sobrevivência tão «tragicamente desprezível» como qualquer outra. O povo aparece aqui, é verdade, mas reunido sob o tema da cidade, da burocracia e do mérito, problemas tão paradoxalmente adversos à cultura literária, e que remetem para a ligação misteriosa entre o cristianismo - religião de escravos e pequenos aristocratas provincianos - e a falsa consciência política dos povos do Sul. Neste livro, a política evolui como problema afectivo: o «odor da meritocracia», a aliança «entre o pastor e o dogma», são sintomas de uma voz que quer refundar

a poesia profética e política, vinda no sangue do cordeiro que alguns de nós (embora cada vez menos) beberam em meninos. A existência de deus, não sendo já um problema metafísico, é na nossa carne um problema terrivelmente humano. Se deus morreu, o homem não deixa de estar vivo. Conta-se que deus inventou a mulher para o homem não estar só. Num poema como «O Deus humano» é o homem que se encontra só por não ter inventado um deus à sua altura, e isso é ainda mais trágico do que a morte de qualquer ilusão. Por vezes, os críticos falam na solidez de um autor, na sua coerência interna. Muitos destes textos não procuram coerência, procuram atingir o centro da vida. A «nuvem viajante», a «ortodoxia do rio», «flores que dançam ao sol», adornam um programa artístico que não baixa a cabeça no solo, que não centra a sua atenção apenas no seu próprio movimento, como se costuma dizer que fazem os futebolistas sem visão de jogo. Ter visão é antes de mais reconhecer que o olhar pode iluminar as coisas, e que a nossa acção, se coordenada entre «eu» e «nós», pode influenciar a manobra da equipa e garantir uma vitória. Resta saber quem está do nosso lado. Estes textos, independentemente das suas qualidades técnicas, são uma promessa de confiança nessa entidade imbatível: a razão sentimental, quando harmonizada numa só potência criativa. O díficil é não ceder nem ao sentimentalismo nem ao frio cálculo. Não são muitos os autores que na juventude

produziram poemas como «Natural Despedida» ou o «rugir dos ventos» de «Metamorfose de carácter» que fica no ouvido como uma maldição. Não se recusa o poder divino da metáfora. Poder divino porque é, sem sombra de dúvida, a tecnologia mais duradoura criada por mão humana: que produto da Antiga Roma (ponte, aqueduto, instituição representativa, recipiente de barro, engenho agrícola) nos chegou com a mesma aplicação e modernidade das metáforas das Metamorfoses de Ovídio? Por outro lado, o autor não fica pelo efeito pirotécnico da liguagem que tem feito perder dedos a muito poeta contemporâneo. Aqui, ou não se perdem dedos ou se perde a vida. Trata-se do que Ruy Belo dizia a propósito de Rui Cinatti: talvez nenhum poeta em Portugal vá buscar tão fundo a poesia. Estes textos querem dizer e não temem ser ouvidos. Se é preciso coragem para morrer inédito, é também preciso uma certa dose de loucura para pernoitar no hotel da literatura, sem dinheiro algum no bolso, deconhecendo em absoluto o senhor gerente, e nem sequer temendo o riso das criadas. O tempo dirá se esse riso é apenas a grinalda de flores que há-de coroar o génio – sabendo que apenas a juventude, constituída por criadas ou princesas, pode glorificar o artista – ou o gozo cristalino e frio da simplicidade perante a tentação da fama. André Canhoto

Um agradecimento muito especial ao meu amigo, André Canhoto, que me foi sempre incentivando a escrever mais e melhor. Para ele, um obrigado muito especial.

“Os poetas são impudicos para com as suas vivências: exploram-nas”, Friedrich Nietzsche

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O deus Humano Na metafísica do culto Através da perversão do sacerdote. Compro a desejada verdade. Mas o que é a verdade? É o amor escondido no oculto? Quando me questiono A que se predestina a vida do Homem Encontro a soberba pretensão do Anticristo: O pastor alia-se ao dogma Para servir o seu pequeno deus. Quanto mais me consumo Em busca da desejada verdade Mais me enojo da servidão da crença. O homem tem de sofrer, martirizar-se Pois o perfeito, Criado pela rectidão Castiga, Faz sofrer aquele que se ama a si.

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O saber, o conhecimento, a leitura Batalha para a pobre verdade. O dogma enraíza-se na fraca mente; A doença tem de ter presente Para alcançar a mentira da plenitude.

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Crítica Vagueio sentado na nuvem viajante; Para trás fica o movimento De uma perpétua rotina gerada num falso contentamento. Espreito as escritas redundantes, Onde todos saboreiam a mediocridade Os discursos dos deuses ignorantes A falsa retórica de serenidade. Avança, porém, mais uma pequena jornada Em que o metal vence o pensamento Mascarando o verdadeiro desalento E no fim, ninguém acredita em nada.

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Metamorfose de Carácter Na chegada da insónia, Do manco dedilhar do piano Para o condenável [concurso do pensar]; O devaneio da ideia, O sentir Da Melodia sedenta que caiu no esquecimento. E assim, Através da mutilação das duas caras, A minha barca entre a ortodoxia do rio, E o mar liberal, No rugido dos ventos Numa tentativa falhada de alimentar toda a ignorância, Daqueles que oravam Para que a foz fosse o final da filosofia.

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O deus Deleitado neste cadeirão burocrático Vejo como um deus as pequenas almas Vagueando pelo destino através desse caminho; Talvez almas maiores que a deste deus. E quanto mais vagueio em páginas No vácuo deste poço Mais descubro o quão pequeno este deus é; Já nem é capaz de responder a si próprio. Ao ver simples flores dançando ao sol Sem se interrogarem sobre a sua condição Desejo, como o deus, saber cada vez menos; A dor de pensar consome-nos insensatamente. Mas vou caminhando no seu próprio trilho. Desse deus, que era o dia de ontem, e o seu conhecimento O mergulho no ser A que o deus se resumia

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E não esse poço caótico Que através da interrogação idiota e persistente Leva à cansada vírgula do saber; Porque quanto mais sabe, menor é a perfeição do deus.

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Natural Despedida Naquele teu lugar Na débil metáfora que eras, No teu volátil e desmedido pudor Não podia continuar no teu culto. Não, não podia. Não podia exceder o triste beijo. Esquecias a natureza minha, A do animal. Porque da turbulenta e absurda hora Nascia a indefinida, A desejada questão, Eu fiquei. Fiquei por preferires o rotineiro caos Quando eu buscava uma simples razão. Agora despeço-me por instantes, Enquanto vives do tédio, do contencioso passado.

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Se porventura soubesses A absoluta proximidade que sinto Quando te visito a todo o instante. Por momentos acreditas na verdade do que digo? Nestes cenários que crias incessantemente? Acredita. Mas no limiar da meditação, Onde o tempo exala de toda a razão, Tive de abandonar todos os rituais Que me elevavam em ti E tu sabes O poeta que faz da frase um contágio Não é igual ao homem que te traz como despesa.

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Noite Encerro-me no sopro da esperada morte, No seu edénico grito Tu, noite, Que diariamente te revisito. Outros, eufóricos, que aparentam força Desprezados por ti Os que minam a nobreza do teu sossego, E ignoram o teu precioso conselho. Tu, senhora, que docemente trucidas a luz Que fustigas o pavoroso ai dos caídos, Que tranquilizas o novato no cárcere. Quero em mim o teu pulsar, O impulsivo pugnar pelo que é falso, Tu que representas a certa e justa verdade Para os que não acreditam na hipocrisia do dia.

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Mísero Texto Prosaico O sedento odor, Que se adensava por entre a meritocracia, Que jazia no terreno murado e absorvente de capital; O mísero adjectivo que pensava ser Todo o expoente máximo da escrita poética Resumia-me em voltas num inútil esforço De teológica e rimática prosa, Porque não queria humilhar a palavra, Como aqueles que versam apenas o instante, Numa tentativa de vangloriar o inato, A rotina banal, o que a ninguém interessa, Nem às senhoras que rugem do decote da palavra. Por isso, cinjo-me à ortodoxia dos deuses Que como eu respiravam da cigarrilha, Rindo do mísero texto prosaico Resolvendo no fim Toda a promessa verbal.

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O profeta de Nietzsche Pastor, que procurais no trigo? Que geravas do caos? Ceifar o que há do saber? Conspurcar o que é digno? Mas que saber existe, Para a natureza do homem? É preciso ser Ser o animal

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Ode ao enorme Lago Ó imensa cidadela, Que guardas adversos conselhos Que defendes o desejado éter da razão: Embala-me no enleio do teu sossego Ó azul tranquilo da riqueza Onde descansa o enorme génio E os que buscam no teu esplendor Refúgio para o nosso acre modo de viver. Ó mar que gritas o ensurdecedor adeus, Esperando o meu embarque, Enquanto caminho no teu delicado adarve Ó enorme lago que desvaneces em mim a tua espuma Deixa sentir o forte, o cruel, o feliz festim O anseio da poderosa mão Estendida às naufragadas memórias Guarda nesse profundo vazio a enorme crispação A vontade de usar do poder, Ó mar que perpetuas até o mais estéril dos homens. 26

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Arte deliberada em Não querer Pensar No baptismo da manhã primaveril ao sabor do violão, e do som nostálgico das letras quisera forçar-me a qualquer coisa, a rasurar qualquer apologia, entre o que parecia ser belo, (sinónimos de luxo) O poder divagar; O sofrimento, o amor, a morte: podia espezinhar qualquer tormento. Mas nunca pensei sobre a morte - nunca quis: já era caro pensar, demasiado caro... a morte é a única verdade Já o afirmara o senhor do País Possível; (talvez retirar) Quero acreditar nessa profecia, não quero outra

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Mas se gasto os suores desta manhã liberal, que acrescenta intelecto, ao ego frio, e escraviza o carácter, Não estarei já a moderar a reflexão na morte? (Silêncio) Já não desejo escrever A manhã soalheira virou tarde de desculpas Já não quero poder na retórica deste pensamento, É caro, muito caro, a morte (a verdade)

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Valsa dos Cinco Tempos Imagina Quando o sol se esconde atrás do monte E atravessamos a ponte Calcando o indiferente rio, o violino dos sonhos, e os animais mugindo pela dor dos serrados Imaginas? E o mudo poeta que serra as montanhas e silenciosamente se livra do ser, do saber, dos instrumentos? Imaginas? Não imagines. As utopias são noites de mentiras para quem sonha, São valsas dos cinco tempos que se perpetuam e fazem doer do vazio sem face, até ao acordar do mais ingénuo dos seres que atravessa os sons do desespero...

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O Lavrador da Cidade A tertuliana vida na cidade, Onde os privados da razão Eram protegidos, Nas trincheiras do mito. Os desertores do nada E todos os seus protestos Silenciados no parasitismo da pólis, Louvavam o disfarce do bem. E por momentos, o lavrador ensinava ao aristocrata Que o tropel oriundo do sofista Fazia da sociedade uma doença Onde não cabia a eloquência do puritanismo.

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O pensador do Olimpo No Olimpo, onde senhores saboreavam o discurso E manipulavam os gentios num jogo do xadrez, Constrangiam o pensador na coerência O pensador, Questionava qualquer metáfora, Capaz de acordar os fiéis. O homem, fiel do ressentimento Despojado do necessário Adulterado pela génese dos semideuses Confluía para os sacrifícios, no caminho dos escravos em direcção à Roma (do nada) Porém, o animal sereno no ateísmo da palavra Por entre o iluminismo, Permanecia sóbrio ao assédio do discurso incoerente. Assim ia o pensador do Olimpo, amigo de Narciso, O pensamento que devolvia ao escravo a sua liberdade.

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A história do Mendigo do Chiado Sobre a calçada preta, Tu gritavas E gemias do beijo. E quando escapavas Pelas espinhosas ruelas da poesia do toque todas as verdades piedosas dançavam, e giravam entre a valsa do alívio, porque se afastavam de mim as tormentas do ser amado, Não por aquilo que esperávamos que eu fosse Mas sim pelo que era. Assim Todo este conto que me fazia mendigar era o mais sinceros dos diários exultando o teu, todo, instante.

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Lusa Saudade Jazia onde o cânon me impedira de assentar a caneta no muro lacustre e me proibia matizar as lembranças da cidade dos cheiros e dos sabores, esquecida pelos homens, que saqueavam a sua prudência... Mas tinha de voltar à minha origem O sintoma jacobino da elite que forçara a romper a carapaça do que alguma vez tinha (e desejava ter) sido, e voltei, assim, no barco a vapor que fumegava o iníquo da minha alma para me transformar no simples ser que vagueia ao sabor da maresia. Já sentia, Lisboa nossa, a saudade Irónico o termo... a saudade é só nossa; Nem pertence à elite inglesa (astuta) que presunçosamente sabe de tudo.

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Regressei à tua miséria, Como lacaio que vem saborear o verde do poder... (Essa era a minha saudade): Terra lusa, casa da minha saudade, tive de regressar a ti; Já não aguentava mais o sangue, subindo desesperado à garganta pelo medo animalesco que me lancetava, por sentir a tua falta (a tua saudade). Voltei. Estamos juntos de novo; O renovar do desejo soturno, devolvendo o necessário silêncio, para escrever nas tuas paredes terra minha, onde só em ti encontrava a minha saudade...

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Silêncio Entro como espectador da própria escrita; O instante, a vírgula, toda a sensação Que impõe a representação das horas vagas Assisto à maestria do infinito movimento, à tranquilidade da alma, toda a assimilação da bela da perfeita dança, à bela, à perfeita dança leva à dissipada hora do esquecimento. Debruçar-me-ei sobre essa pobre mesa; A interpelação que o venerado tempo me impele a outras e tão desejadas vivências, o perfilado rosto da mera satisfação do poder da enorme rejeição pela vivência mundana, E que só agora o imperativo relógio me abre a porta à cor do feliz silêncio.

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Recordação Nesse muro do brilhante granito, Da obsoleta varanda que adormece Espreito aquele doce e inocente modo: Todo esse retrato a preto e branco. Olho para a gaveta da enorme frase; Nela recordo todo o prazer sensual, O encanto da alma, as delícias do coração, O pedantismo deslumbrante da mera desordem que provocavas. Vivo da tua perfeita recordação, do tão desejado abrir da janela, da abstracta e cómoda sensação que me fazia crescer para ti...

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Lisbon Revisited (2008) À semelhança d’ontem, também hoje desprezo o tudo - e o nada Já tive o poder outrora, nestas mãos de poeira... Mas que poder? Que moral há para dizer que tive a força Enquanto descobria a fraqueza que me encobria da luz de todos os fins?! Desconheço o que é o saber, a fatalidade das ciências que tudo presumem, o futuro, o passado, o presente... Qualquer coisa elas presumem; inúteis as ciências - como o tudo e o nada (Mas como vou saber eu das ciências, que me fazem perder a cabeça, se nem eu me conheço a mim?! Mais vale saborear com Baco do que ouvir o conluio dessas profecias...)

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Por fim, Revejo-te Lisboa minha A ti e a mim, tão decadentes como sempre... E no alto, em que me fundia contigo, Cidade onde revisito das tuas muralhas e vejo lá ao longe, onde as pessoas já não te pertencem, o meu coração para lá do pôr-do-sol. Redigimos letras e futuros e gravámos na memória o cheiro da nossa partida Quando eu era estrangeiro em ti Descia pelo véu do Tejo E partira para o meu destino Mas que destino é o meu? Nada me prende a nada, nem o meu próprio destino Apenas levo-te a ti, Lisboa minha...

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O Ridículo do Poeta Inúmeras vezes que corremos atrás das pequenas poças, de água no topo do abismo E tantas outras foram as vezes que roçamos a pele na perseguição do célebre E o silêncio, meu amor? O Silêncio? E quando me tornavas sóbrio no seio da tua intimidade? Sim sóbrio - talvez ridículo, no meu mais íntimo do ridículo. Mas porquê contigo? Com essa tua alma efémera? O porquê de todas as memoráveis danças que fazias elevar este poeta - Esta carcaça das letras e dos sentidos

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Mas existiria algum porquê? Talvez haveria - há mas o tempo é doente na resposta

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Memórias do Tempo No tempo que não podia fazer espera No instante em que diluímos todas as vontades, E partimos... Nas paredes onde soprava o vento que nos dava o fim das tréguas, Onde gastávamos tudo o que não era em vão e assediávamos o que nos era só a nós, desejado, Só a nós... Era a soberba que nos cobria como únicos, e na arrogância do toque Que esse tempo jamais poderia levar Porque tudo era tão real como eu desejara ser, alguma vez, real E com o gesto provocaste o apagar da moral, o simples respeito pelas memórias. Mas continuaria a pedir esmolas ao tempo...

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(Não era isso que queria!) Quis presenciar verdadeiro tempo (aquele que não nos exige as esmolas das lágrimas) e conhecer tudo o que de belo existia, e estavas lá... Insultei os velhos, os doentes, os fracos, a mim próprio Mas descobri-te E parti sem ti

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Canção à Mãe No recanto sórdido do meu espaço, Guardado de ti, Por toda aquela biblioteca do saber Favorecias, como parte de ti, a razão do ser que só a mim pertencia, e que rodavas no pensamento para ser parte da tua projecção no masculino Seria justo o sufoco, por não quereres ambicionar mais? (Mas que posso, eu, divagar sobre o justo?) Bem sei da nossa corcunda agitação. E sei que merecias - talvez também eu merecia Não consegui descobrir todas as questões do ser, mas ergui-me do meu cadeirão burocrático, por ti. Limitaste-me dos numerosos senhores sem razão.

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Mas não podia, senhora, Ficar apenas erguido, enquanto te deixava Sozinha, sem mim, fazeres o meu puzzle E levares-me o desejo teu (não meu), Febril, orgulhoso, de tudo aquilo que querias que fosse por ti São árduas as linhas que te esboço. É tarde. As palavras escorrem pelos cantos dos olhos; Frias que são, mas justas. Ninguém disse, deusa da fecundidade, que seria fácil, Mas tinha de ser Já não têm os números, os rostos, Mais nada para nos dar, E por isso tu sabes que tenho de partir. Partir sem ti, Como realmente tu e nós queremos, e deixarmos de ser rascunhos de vidas opiadas Pelo negro do que éramos outrora. Mas agora tenho mesmo de partir. Partir para as estrelas.

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Perdido, mas Encontrei-te Perdido nos campos de trigo, acompanhado pelos sóis que embebiam no difundir da tua imagem, e, enquanto sentada, sentias a espuma do mar... E eu?, via-me envolto em grandeza, por ver a tua cerca aberta que provocava o ócio, por te ver a girar em rodopios de sabores, de sorrisos, de alegrias, de tristezas até... Mas tu, tornavas os problemas em aventuras e celebravas com o mar a mestria, enquanto podia subir à minha galé e deitado, saborear-te nessa tua harmónica agitação.

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Um verbo Vazio e Branco Existe uma euforia no vazio O poema é palidamente colorido. A raiva emancipa-se do verbo Vazio e branco, Como a besta que ruge, ainda aprisionada. Existem felizes e agoniantes, coloridos sem cor saberes falsos Existem mistos de nada saber. O que resta? O dia-a-dia burocrático

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Tu Tu, ser imperfeitamente perfeito Retrato de um rosto [metafísico, Transcendente,] Onde nem o mais profundo pensamento filosófico penetra Uma suave pele. Tu, Uma quimera e uma utopia no presente Uma realidade esperada amanhã. Tu, O aperto do coração Quando nos vidros do inconsciente Não te via a meu lado. Porque tu És a minha fonte hedonista, Um prazer intenso, mas suave, O girar num turbilhão de sentimentos em que todos os instantes gastos longe de ti são desperdiçados.

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Mas tu... Tu percebes? Tu não és apenas o meu consolo. Tu és o complexo labirinto, Nesta náusea em que apodrecemos, Ficam as palavras Ditando as nossas regras

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Sleepless Heart Hoje, só hoje (o melhor será dizer todos os dias) revivo, no teu último deserto, ainda, aquilo que eras. Perdeste, nas searas alentejanas, das casas brancas (as da verdade), e dos montes amarelos de pelas enrugadas pelo trabalho, a sintonia do coração. Desejara, um dia, ter sido contigo, mas, como em tudo humano, que acaba, já não havia o brilho daquele que houve, lembras? Mas teve de acabar... O amor é decadente (tu sabes) como qualquer coisa mundana, (embora te pense, ainda, com algum brilho que, porventura, restou como o nosso Alentejo).

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E sabes porque acabou, meu amor? porque insistimos no ainda, quando no primeiro roçar de lábios tudo vacilou, resvalou... (qualquer sinónimo que queiras). Esse foi o nosso mal: alimentámos o ainda tormentoso, na esperança de dizermos palavras de veludo, e elevarmos os rituais de gestos rudes...

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Auto-Biografia de um homem Passo os dias a retratar-me em letras, - talvez demasiados dias para aquilo que sou. Sou apenas aquilo que sou: Nada mais. Tudo é demasiado rápido e confuso, menos as minhas letras: elas deixam-me ser apenas o ser. Sou feito de hipérboles e versos metafóricos, tentativas de rasgos de moralidade lancetados pela razão. Tudo é demasiado sufocante. Aquilo que sou? As minhas letras o escrevem

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José Borges Alves

Pedido Tento descobrir o que é este desejo Todo o argumento que desvenda o mistério; basta olhar para o teu pequeno retrato para tremer como um mero inocente da sensação a que chamámos perfeita Esta névoa está corrompida pelo sentimento que te apelido; Beija, abraça, sorri-me simplesmente Qualquer pedido parece decadente Mas satisfaz-me esta minha tua necessidade Deixa-me sentir só mais um instante esse teu justo e sincero olhar Leva-me ao estado em que aguardarei todo o enorme segundo em prazer, Traz contigo a roubada alegria

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José Borges Alves

Traz contigo a minha descoberta O tão enorme desejo de cumplicidade Suporta-me nesse teu doce modo... Faz-me renascer para o teu respeito Para o teu ego, para a tua simplicidade Para o teu amor.

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Colecção World Art Friends XII Título: Autor: Concepção: Design: Fotografia: Impressão:

Discurso do Cadeirão Burocrático José Borges Alves Ex-Ricardo dePinho Teixeira Bruno Gomes Bruno Gomes

ISBN: xxx-xxx-xxx-xxx-x Depósito Legal: xxxxxx/xx

1ª Edição: Julho de 2011

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