Discurso e Prática Social na Idade Média

Share Embed


Descrição do Produto

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 886

Discurso e Prática Social na Idade Média Selene Candian dos SANTOS (USP) [email protected] Resumo: No âmbito do estudo de textos medievais, existe uma perspectiva de estudos que tem estabelecido a relevância da linguagem nas práticas sociais no medievo através da investigação acerca de teorias e práticas retóricas desenvolvidas ao longo desse período. Nesse contexto pós-clássico e cristão, a retórica greco-latina foi recepcionada e reformulada enquanto um conjunto de preceitos de composição textual. Um dos conceitos estruturais para a retórica clássica e medieval é o conceito de gênero, o qual também é uma categoria de análise para a Teoria Social do Discurso, desenvolvida por Norman Fairclough em Analysing discourse: textual analysis for social research (2003). Como a Teoria Social do Discurso constitui um modelo teórico-metodológico que visa contribuir para as ciências sociais no que diz respeito à análise textual, o estudo de textos medievais com base em ao menos algumas das categorias de análise propostas por Fairclough, como a estrutura genérica, pode levar a discussões mais fundamentadas sobre o uso da linguagem como prática social historicamente situada. Palavras-chave: retórica medieval; Análise de Discurso Crítica; Teoria Social do Discurso; análise textual; estrutura genérica.

1. Introdução O surgimento de algumas correntes de pensamento contemporâneas como o pós-modernismo engendrou reflexões sobre a relevância da linguagem nas práticas sociais durante o período que convencionamos chamar Idade Média, especialmente por meio da investigação acerca de teorias e práticas retóricas recepcionadas e formuladas ao longo desse período. Em nosso artigo, propomos que essas reflexões históricas podem beneficiar-se com um contato interdisciplinar com a Análise de Discurso Crítica (ADC) e, em particular, a Teoria Social do Discurso, principalmente no que diz respeito ao uso de enquadres teórico-metodológicos para a análise textual. Neste artigo, trataremos especificamente de uma categoria de análise da ADC que pode ser utilizada em textos medievais: a estrutura genérica.

2. Retórica na Idade Média Segundo John O. Ward e Virginia Cox (2006), até meados do século XX, aparentemente havia uma presunção geral de que a retórica fosse algo estranho ao medievo, possivelmente por esse ser um período orientado por e para verdades teológicas, e de que um legado clássico nesse sentido fosse demasiadamente fragmentário no período e só tivesse sido retomado no chamado Renascimento italiano – presunção a qual parece ser evidenciada pela inexpressividade do tema em publicações até então na área de História Medieval. Contudo, nas últimas décadas, reflexões sobre a contraposição entre narrativa histórica e a representatividade do discurso e um novo olhar lançado sobre manuscritos medievais tendo em mente suas possíveis relações com teorias e práticas retóricas têm possibilitado que uma nova perspectiva de estudos seja desenvolvida, a qual enfatiza a centralidade da linguagem enquanto prática social em textos medievais.

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 887

A importância das teorias e das práticas retóricas ao longo da Idade Média é inegável, visto que a retórica greco-latina foi recepcionada e reformulada nesse contexto pós-clássico e cristão. Os mais importantes manuais de retórica clássica para o medievo foram o De Inventione, de Cícero, e o Rhetorica ad Herennium, de autoria desconhecida, porém atribuído a Cícero no ocidente medieval; a importância desses manuais é evidenciada, por exemplo, pelo volume de manuscritos que contêm cópias desses textos e que chegaram aos dias atuais: são mais de 600 manuscritos contendo o Rhetorica ad Herennium e aproximadamente o mesmo número para o De Inventione (COX; WARD, 2006). Apesar de muitas das cópias trazerem os textos com erros ou lacunas, isso não nega o fato de que houve um interesse ao longo da Idade Média na retórica clássica. Além disso, várias obras que de alguma forma tratam de retórica foram escritas nesse período, como De topicis differentiis (ca. 523), de Boécio; Expositio Psalmorum (ca. 540) e Instituitiones (ca. 562), de Cassiodoro; De schematibus et tropis (ca. 710), de Beda; Disputatio de rhetorica et de virtutibus (ca. 790-800), de Alcuíno; os comentários sobre De Inventione e sobre Rhetorica ad Herennium (ca. 1130-1140) de Thierry de Chartres, entre tantas outras.

3. ADC e Estrutura genérica Um dos conceitos estruturais para a retórica clássica e medieval é o conceito de gênero, o qual também é uma categoria de análise para a Análise de Discurso Crítica e, mais especificamente, para a Teoria Social do Discurso, conforme desenvolvida por Norman Fairclough (2003) em Analysing discourse: textual analysis for social research. Como a Teoria Social do Discurso constitui um modelo teóricometodológico que almeja contribuir para as mais diversas áreas das ciências sociais e das humanidades no que diz respeito à análise textual, o estudo de textos medievais com base em ao menos algumas das categorias de análise propostas por Fairclough, como a estrutura genérica, pode levar a discussões mais aprofundadas e fundamentadas sobre o uso da linguagem como prática social historicamente situada. De acordo com Fairclough (2003, p. 26), diferentes gêneros textuais podem ser pensados como diferentes formas de (inter)agir discursivamente. Apesar de alguns gêneros serem tão fixos ao ponto de serem praticamente ritualizados, Fairclough reconhece que muitas vezes os gêneros variam de forma considerável, tendo pouca estabilidade ou homogeneidade. Por esse motivo, ele ressalta que não existe uma terminologia determinada para os gêneros textuais. Fairclough (2003, p. 69) chega a propor uma terminologia mais ampla para a referência aos gêneros tendo em mente seus diferentes níveis de abstração: ‘pré-gênero’ (pre-genre) faz referência à categorização mais abstrata de um gênero, e nesse sentido o texto pode ser um diálogo, um argumento ou uma narrativa; ‘gênero desencaixado’ (disembedded genre) remete a uma categorização um pouco menos abstrata do texto, como, por exemplo, a classificação de um texto como uma entrevista; e, finalmente, ‘gênero situado’ (situated genre) é a categoria mais específica, como a identificação de um texto como uma

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 888

entrevista etnográfica. Entretanto, mesmo com essa proposta terminológica, Fairclough enfatiza que os textos não são a materialização de um gênero, já que eles se relacionam com esse tipo de classificação de formas complexas e criativas: “os gêneros associados a uma rede específica de práticas sociais constituem um potencial que é acessado em textos e interações reais”1 (FAIRCLOUGH, 2003, p. 69). É possível, inclusive, que um mesmo texto transcorra em diferentes gêneros (genre mixing), e muitas vezes também é possível identificar, nesses casos, um gênero predominante e subgêneros. A análise da estrutura genérica de um texto pode levar a reflexões sobre seus propósitos. Se um gênero pode ser pensado, como propõe J. Swales (1990), como uma categoria de eventos comunicativos cujos participantes têm alguns propósitos comunicativos em comum, o mesmo gênero pode ter diversos propósitos, sejam eles explícitos, sejam implícitos. No entanto, ainda que alguns gêneros textuais possam ser claramente identificados a certos propósitos sociais (por exemplo, o gênero entrevista), isso nem sempre acontece (por exemplo, conversas com amigos nem sempre são direcionadas a um propósito). Isso não significa que não seja possível refletir sobre propósitos na análise da estrutura genérica, mas sim que o gênero depende mais do tipo de interação do que de seu propósito. Tendo em mente essa ressalva, Fairclough (2003, p. 72) afirma que a análise de textos em sua estrutura genérica é importante, desde que não se tenha a expectativa de que os textos transcorram em apenas um gênero e de forma ritualizada e que “a análise da estrutura genérica é útil para gêneros mais estratégicos e direcionados a um propósito”2.

4. Gênero na retórica medieval Quando pensamos a questão do gênero nos textos medievais, muitas dessas mesmas observações também são aplicáveis. Tanto o Rhetorica ad Herennium quanto o De Inventione – ou seja, os manuais de retórica clássica de maior circulação na Idade Média – tratam dos gêneros textuais, acolhendo plenamente o esquema aristotélico de três gêneros discursivos. Em Rhetorica ad Herennium I.II.2, seu autor explica os três gêneros: 3

4

Há três gêneros de causas de que o orador deve tratar: epidítico , deliberativo e judicial . O gênero epidítico é dedicado ao louvor ou à censura de uma pessoa em particular. O deliberativo consiste na discussão de políticas e envolve persuasão e dissuasão. O judicial é baseado em controvérsias legais e abrange querelas criminais ou processos civis e 5 defesa . ([CÍCERO], [?], p. 4)

Já Cícero (2006, p. 14-16), em De Inventione, define assim os três gêneros:

1

“The genres associated with a particular network of social practices constitute a potential which is variably drawn upon in actual texts and interactions.” 2 “Analysis of generic structure is of value for more strategic, purpose-driven genres.” 3 Também comumente referenciado como “demonstrativo”. 4 Também comumente referenciado como “forense”. 5 “Tria genera sunt causarum quae recipere debet orator: demonstrativum, deliberativum, iudiciale. Demonstrativum est quod tribuitur in alicuius certae personae laudem vel vituperatione. Deliberativum est in consultatione, quod habet in se suasionem et dissuasionem. Iudiciale est quod positum est in controversia, et quod habet accusationem aut petitionem cum defensione.”

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 889 Aristóteles, por outro lado, que fez muito para melhorar e ornamentar essa arte [retórica], pensava que a função do orador estava relacionada a três tipos de assuntos: o epidítico, o deliberativo e o judicial. O epidítico é dedicado ao louvor ou à censura de uma pessoa em particular; o deliberativo está relacionado ao debate político e envolve a expressão de uma opinião; o judicial diz respeito ao tribunal e envolve acusação e defesa ou 6 reivindicação e contestação .

Além disso, muitos dos textos sobre retórica escritos ao longo da Idade Média apresentam os gêneros discursivos mantendo essa classificação em três gêneros e mantendo inclusive essa terminologia. Citamos como exemplo um trecho de Disputatio de rhetorica et de virtutibus (ca. 790-800), um diálogo entre Carlos Magno e Alcuíno no qual Alcuíno é o mestre que instrui seu pupilo sobre a arte retórica: 7

CH. Se a retórica diz respeito a casos e a questões políticas, me parece necessário que os próprios casos tenham certos gêneros: eu gostaria de conhecê-los e que eles fossem 8 demonstrados com exemplos. ALB. A arte da retórica está envolvida em três gêneros: o demonstrativo, o deliberativo e o judicial. O gênero demonstrativo está dividido entre elogio e culpa de uma pessoa em particular; por exemplo, está escrito no Gênesis sobre Caim e Abel [Gênesis IV, 4-5+: “e o Senhor tinha respeito por Abel e suas oblações, mas 9 por Caim e suas oblações ele não tinha qualquer respeito” . O gênero deliberativo está relacionado à persuasão e dissuasão; por exemplo, está escrito no livro dos Reis como Aquitofel deu conselhos para arruinar Davi, e como Cusai dissuadiu-o desse plano, salvando assim o rei. O gênero judicial é aquele que contém acusação e defesa; por exemplo, lê-se nos Atos dos Apóstolos como os judeus, juntamente com certo orador chamado Tertulo, acusaram Paulo perante o governador Félix, e como Paulo defendeu-se perante o mesmo magistrado. Porque nas causas legais a questão é frequentemente o que é equitativo, nas demonstrações compreende-se o que é honrável e nas deliberações 10 considera-se o que é honrável e útil . (COPELAND; SLUITER, 2012, p. 289-290)

Ainda que Alcuíno remeta às Escrituras para exemplificar os gêneros, o que seria algo impensável para a chamada juvenilia retória ciceroniana – ou seja, para as obras que Cícero teria escrito sobre retórica em sua juventude -, já que essas obras foram escritas no século I a.C., a nomenclatura dos gêneros e seus propósitos são mantidos, em conformidade com a tradição clássica. Isso poderia nos levar a pensar que os gêneros textuais eram, na Idade Média, mais ritualizados e fixos do que em textos que nos são contemporâneos e que seus propósitos eram mais claramente identificáveis. Entretanto, duas observações

6

“Aristoteles autem, qui huic arti plurima adiumenta atque ornamenta subministravit, tribus in generibus rerum versari rhetoris officium putavit, demonstrativo, deliberativo, iudiciali. Demonstrativum est quod tribuitur in alicuius certae personae laudem aut vituperationem; deliberativum, quod positum in disceptatione civili habet in se sententiae dictionem; iudiciale, quod positum in iudicio habet in se accusationem et defensionem aut petitionem et recusationem.” 7 Carlos Magno. 8 Albinus, ou Alcuíno. 9 Na Bíblia de Jerusalém, “Ora, Iahweh agradou-se de Abel e de sua oferenda. Mas não se agradou de Caim e de sua oferenda.” 10 “CH. If rhetoric is concerned with cases and political questions, it seems necessary to me that the cases themselves have certain kinds [genra]: I would like to know them and have them demonstrated with examples. ALB. The art of rhetoric is involved in three kinds, the demonstrative, deliberative, and judicial. The demonstrative kind is divided into praise or blame of a particular person, e.g. it is said in Genesis about Cain and Abel [Genesis 4, 4-5+: ‘and the Lord had respect to Abel and to his offerings, but to Cain and his offerings he had no respect.’ The deliberative kind rests on persuasion and dissuasion, e.g. it is read in the book of Kings how Achitophel gave the advice to ruin David, and how Chusai dissuaded him from that plan, so that he saved the king. The judicial kind is that which contains accusation and defense, e.g. we read in the Acts of the Apostles how the Jews together with a certain public speaker names Tertullus accused Paul before the governor Felix, and how Paul defended himself before the same magistrate. For in law cases the question is often what is equitable, in demonstrations one understands what is honorable, in deliberations one considers what is honorable and useful.”

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 890

a esse respeito aproximam a problemática quanto à estrutura genérica conforme exposta por Fairclough do contexto de produção textual medieval.

Resignificação dos gêneros clássicos A primeira observação diz respeito à existência de alguma resignificação dessa classificação dos gêneros textuais clássicos ao longo da Idade Média. Muito embora a mesma nomenclatura fosse utilizada nas obras que tratam de retórica escritas nesse período, a forma como os gêneros eram descritos era, em alguns casos, completamente distinta. Por exemplo, Cassiodoro, em sua obra Expositio Psalmorum (ca. 540), faz uma leitura retórica dos Salmos e reformula os tradicionais três gêneros da retórica: o gênero deliberativo, tradicionalmente relacionado a determinar a utilidade ou a desvantagem de um procedimento que se aconselha ou se desaconselha, é reformulado como um gênero de busca por instrução divina; o gênero judicial ou forense, tradicionalmente associado a determinar a justiça ou a injustiça de uma ação, é reformulado como um gênero de penitência; e o gênero epidítico ou demonstrativo, tradicionalmente composto para louvar ou censurar alguém ou algo, é reformulado como um gênero de revelação divina (COPELAND; SLUITER, 2012, p. 211). Para ilustrar como um dos gêneros, o forense ou judiciário, é reformulado, citamos um trecho do comentário de Cassiodoro (COPELAND; SLUITER, 2012, p. 218-219) sobre o Salmo VI: Apesar de devermos aplicar nossa apaixonada inteligência a todos os salmos, já que as maiores fontes para a vida são procuradas neles, ainda assim devemos dar particular atenção aos salmos dos penitentes, pois eles são como um remédio apropriado prescrito para a raça humana. [...] Eles formam um tipo de gênero forense, no qual o acusado comparece diante dos olhos do Juiz, expiando seu pecado com lágrimas, e desfazendo-o ao confessá-lo. Ele oferece o melhor tipo de defesa ao condenar a si próprio. [...] Então, a 11 única abordagem necessária é aquela chamada admissão de culpa [concessio] , na qual o 12 acusado não defende o que ele fez, mas sim pede para ser perdoado .

Quanto ao gênero demonstrativo, Cassiodoro (COPELAND; SLUITER, 2012, p. 219-220) reformula-o ao escrever sobre o Salmo XXVIII: Então o profeta canta esse salmo, tão rico na glória do ensinamento cristão, em louvor ao Espírito Santo [...]. O salmo todo está repleto de louvor ao Espírito Santo e por várias alusões ele faz a proclamação de Sua majestade. Isso é o que os oradores chamam de gênero demonstrativo, quando alguém é revelado e reconhecido pela descrição deste 13 gênero .

11

Cf. De Inventione I.IX.12. “Though we should apply our eager intelligence to all the psalms, since the greatest resources for living are sought from them, yet we ought to pay particular attention to the psalms of the penitents, for they are like suitable medicine prescribed for thehuman race. *…+ They form a sort of judicial genre, in which the defendant appears before the sight of the Judge, atoning for his sin with tears, and dissolving it by confessing it. He offers the best type of defense by condemning himself. *…+ So the only approach necessary is that called concession, in which the defendant does not defend what he has done, but asks to be pardoned.” 13 “So the prophet sings this psalm, so rich in the glory of Christian teaching, in praise of the holy Spirit *...+. The whole psalm is teeming with praise of the holy Spirit, and by various allusions it issues proclamations of His majesty. This is what orators call the demonstrative type, when someone is revealed and acknowledged by description of this kind.” 12

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 891

Por fim, sobre o gênero deliberativo, Cassiodoro (COPELAND; SLUITER, 2012, p. 218) escreve, comentando o Salmo II: 14

E agora, reis, sedes prudentes . Chega-se à terceira parte do salmo aqui, na qual o profeta agora urge a raça humana, humildemente, a obedecer ao Criador pela revelação desses terríveis mistérios. Aqui o gênero deliberativo de expressão começa, expresso da forma mais bela, pois quando os corações dos homens são paralisados pela revelação do mistério, esse conselheiro, muito útil e vital, aparece, urgindo-nos a servir o Senhor verdadeiro com medo e tremendo e mostrando-nos que as palavras ditas são valiosas da perspectiva do útil e do honrável, motivos extremamente eficazes em discursos 15 deliberativos .

Assim, como em alguns textos sobre retórica produzidos na Idade Média os gêneros clássicos, apesar de mantida a terminologia, têm seus propósitos alterados nesse contexto pós-clássico e cristão, a estrutura genérica de textos medievais, principalmente quando pensada com relação a seus propósitos, também precisa ser analisada como algo complexo e criativo.

Gêneros medievais: ars poetriae, ars dictaminis e ars praedicandi A segunda observação está relacionada ao fato de que a Idade Média não conheceu apenas os gêneros textuais clássicos, já que durante esse período surgiram e foram preceituados outros gêneros discursivos: ars poetriae, ars dictaminis e ars praedicandi. A ars poetriae surgiu no século XII, sendo que, em cerca de um século, seis obras sobre a arte de escrever em verso foram produzidas: Ars versificatoria (ca. 1175), de Mateus de Vendôme; Poetria nova (1208-13) e Documentum de modo et arte dictandi et versificandi (depois de 1213), de Geoffrey de Visnauf; Ars versificatoria (ca. 1215), de Gervase de Melkley; De arte prosayca, metrica, et rhitmica (depois de 1229), de João de Garland; e Laborintus (depois de 1213 e antes de 1280), de Everardus Alemannus (MURPHY, 1974, p. 135). Talvez pareça estranho tratar obras que preceituam a composição em verso como um gênero retórico, porém, como explica James J. Murphy (1974, p. 135), essas obras trazem preceitos sobre a invenção, o ordenamento e a escolha de palavras, o que, em última instância, é “a essência do espírito preceptivo que sempre caracterizou a retórica”16. O Ars Versificatoria de Mateus de Vendôme, por exemplo, é dividido em quatro partes: na primeira, ele discute como começar um poema e questões de decoro e de estilo, principalmente ao compor descrições; na segunda, escreve sobre a elegância da dicção; na terceira, trata das cores da retórica, tropos etc.; e na quarta, discorre sobre o tratamento a ser dado ao material (exsecutio materiae) (COPELAND;

14

Salmo II, 10. “And now, O ye kings, understand. The third limb of the psalm is reached here, in which the prophet now urges the human race humbly to obey the Creator at the revelation of these fearful mysteries. Here the deliberative type of utterance begins, expressed most beautifully; for when men’s hearts are paralyzed by the unfolding of the mystery, this most salutary and vital adviser appears, urging us to serve the true Lord with fear and trembling, and showing us that the words spoken are valuable from the viewpoint of the useful and the honorable, motifs extremely effective in deliberative speeches.” 16 “the essence of that preceptive spirit which has always characterized rhetoric.” 15

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 892

SLUITER, p. 559). Suas maiores autoridades teóricas são, por um lado, o Ars poetica,de Horácio e, por outro lado, o De Inventione, de Cícero. Para ilustrar como a ars poetriae está relacionada a preceitos retóricos, citamos um trecho da primeira parte do Ars Versificatoria, na qual Mateus de Vendôme (COPELAND; SLUITER, 2012, p. 564-565) fala sobre a descrição: E já que a principal busca da faculdade poética está na habilidade de descrever, neste ponto meu conselho é cultivar a precisão na expressão descritiva, para que as coisas verdadeiras ou verossimilhanças possam ser expressas, de acordo com aquela passagem de Horácio: “Ou siga a tradição ou descubra coisas que sejam consistentes em si 17 mesmas” . [...] Note-se também que a descrição de uma pessoa deve conter principalmente seu ofício, sexo, qualidade, posição, condição, idade e aparência. Para que essa diversidade entre palavras não confunda o aluno, aceitaremos que “a decoração 18 retórica da obra”, as ”características”, os “epítetos” e os “atributos pessoais” significam a mesma coisa. E como as propriedades de qualquer pessoa consistem em seus atributos pessoais, para maior clareza eu as explicarei brevemente e sucintamente, para que o aluno diligente consiga, em seus versos, atribuir com maior clareza lugares-comuns ou argumentos a ações e a pessoas de acordo com seus atributos. [...] Aqui, formar um argumento ou para obter um lugar-comum do nome ou da natureza não é nada além de, através da interpretação de um nome ou através de características naturais, provar ou refutar alguma coisa a respeito de alguém, afirmar que algo pertence a essa pessoa ou negá-lo. [...] Os atributos de ação, assim como os de pessoas, estão contidos neste pequeno verso: 1920 “Quem, o quê, onde, com quê, por quê, como, quando” .

A ars dictaminis, por sua vez, é o que Murphy (1974, p. 194) chama “uma invenção verdadeiramente medieval”21, já que existe uma quebra na tradição clássica referente à escrita de cartas. Na Antiguidade, argumenta Murphy, a prática de enviar mensagens para pessoas distantes era essencialmente oral e apenas ocasionalmente acompanhada por textos escritos; quando existia, o documento escrito era apenas lido em voz alta para o destinatário, o que significa que “a transmissão de mensagens foi uma função da linguagem oral por todo o mundo antigo”22 (MURPHY, 1974, p. 194). Murphy não ignora o fato de que alguns antigos são conhecidos por sua produção de cartas, como o próprio Cícero, mas ele afirma que esse tipo de composição era mais baseado em habilidades literárias do que em fórmulas rígidas e princípios teóricos. 17

Ars poetica 119. Colores operum; proprietates; epitheta; personae attributa. 19 Cf. De inventione I.XXIV.34. 20 “And since the chief pursuit of the poetic faculty lies in skill in description, on this point my advice is to cultivate accuracy in descriptive expression, so that true things or verisimilitudes may be uttered, in accordance with this passage from Horace: ‘Either follow tradition or invent things that are self-consistent’. *…+ It must also be noted that the description of a person ought to be informed chiefly by his office, sex, quality, rank, condition, age, appearance. In order that diversity among words may not confuse the student, let us accept ‘rhetorical decoration of the work’,‘characteristics’, ‘epithets’, and ‘personal attributes’ as meaning the same thing. And since the properties of any person consist of his personal attributes, for the sake of greater clarity I will run through them briefly and succinctly in order that the diligent student may be able in his verses to assign with greater clarity commonplaces or arguments to actions and to persons in accordance with their attributes. *…+ Here, to form an argument or to draw a commonplace from name or nature is nothing other than, through the interpretation of a name and through natural characteristics, to prove or disprove something about a person, to affirm that something belongs to him or to deny it. *…+ Attributes of action as well as of persons are contained in this little verse: ‘Who, what, where, with what aid, why, how, when’”. 21 “a truly medieval invention”. 22 “Message transmission remained a function of oral language throughout the ancient world.” 18

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 893

É apenas no século IV da era cristã que tem início uma discussão sobre a epistola. Em Ars rhetorica, Caio Júlio Vitor apresenta a tradição retórica ciceroniana – principalmente com base em De oratore e Orator (TIN, 2005, p. 28) - acompanhada de três apêndices (de exercitatione, de sermoncinatione e de epistolis), sendo que nos dois últimos desenvolve alguma teorização, ainda que não muito aprofundada, da arte de escrever cartas (MURPHY, 1974, p. 195-196). No entanto, muitos séculos se passaram antes de que outras obras nesse sentido fossem escritas: é só no final do século XI, na abadia de Montecassino, na Itália, que Alberico escreve Dictaminum radii e Breviarium de dictamine, obras nas quais estabelece uma relação entre retórica e a escrita de cartas e padroniza a partes de uma carta. Diversas obras sobre a ars dictaminis foram escritas depois, no século XII, muitas delas em Bolonha, mas também outras na França e na Alemanha. A arte de escrever cartas tinha profunda relação com a retórica. Segundo Tin (2005, p. 32), Alberico de Montecassino, nas Flores rhetorici (ou Dictaminum radii), ressalta a importância da retórica na escrita, discute as partes do discurso, mas concentra-se no exórdio e nas ‘cores’, que são os tropos e figuras usados para adornar o discurso e mover a audiência, na qual já refere o leitor [...].

Para exemplificar como a ars dictaminis se relaciona com a retórica - principalmente, neste caso, com a ideia de divisão em partes e dispositio -, citamos um excerto de um tratado chamado Rationes dictandi, escrito em 1135 por um autor desconhecido, o qual é geralmente referenciado como Anônimo de Bolonha: Uma epístola ou carta, então, é o adequado arranjo das palavras assim colocadas para expressar o sentido pretendido por seu remetente. Ou, em outras palavras, uma carta é um discurso composto de partes ao mesmo tempo distintas e coerentes, significando plenamente os sentimentos de seu remetente. Há, de fato, cinco partes em uma carta: a Saudação, a Captação da Benevolência, a Narração, a Petição e a Conclusão. (TIN, 2005, p. 83)

Por fim, apesar de a pregação não ser uma invenção medieval – na verdade, nem mesmo cristã (MURPHY, 1974, p. 269) -, a ars praedicandi, enquanto um conjunto de preceitos para a pregação, começa a ser desenvolvida por Santo Agostinho em De doctrina christiana (ca. 426). Agostinho limita o esquema ciceroniano das cinco partes da retórica23 a apenas duas partes: o modus inveniendi (que corresponde à inventio) e o modus proferendi (que corresponde à pronunciatio). Nesse sentido, Agostinho (2002, p. 41) escreve que “há duas coisas igualmente importantes na exposição das Escrituras: a maneira de descobrir o que é para ser entendido [modus inveniendi] e a maneira de expor com propriedade o que foi entendido [modus proferendi+”. Outras obras nesse sentido foram escritas ao longo dos séculos, como Cura

23

Em latim, inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronunciatio. As cinco partes da retórica são as cinco fases pelas quais passa, segundo o preceito, quem compõe um discurso. A primeira é a inventio, que é a “busca que empreende o orador de todos os argumentos e outros meios persuasivos relativos ao tema de seu discurso” (REBOUL, 2004, p. 34); a segunda é a dispositio, ou seja, “a ordenação desses argumentos, donde resultará a organização interna do discurso, seu plano” (REBOUL, 2004, p. 34); a terceira é elocutio, a qual diz respeito ao estilo (ou seja, quais palavras e figuras serão escolhidas para expressar os argumentos selecionados); a quarta é a memoria: a memorização dos argumentos, das palavras escolhidas para expressá-los e de sua ordenação; e a quinta é a pronunciatio, que concerne a como será proferido o discurso em termos de gestos e voz.

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 894

pastoralis(591), de Gregório Magno; De instituitione clericorum (819), de Rabano Mauro; Liber quo ordine sermo fieri debeat (ca. 1084), de Guibert de Nogent; e De arte predicatoria (ca. 1099), de Alain de Lille. A respeito da relação entre retórica e a ars praedicandi, Caplan (KING; NORTH, 1970, p. 81) escreve que [...] a pregação tinha uma função retórica na exposição clara das Escrituras, com o propósito persuasivo de ganhar almas para Deus – uma função e um propósito que estão relacionados ao uso universal da retórica. Com o auxílio de critérios retóricos, então, a pregação pode ser estudada nos tratados que estamos agora considerando. Neles, encontramos a característica desconfiança com relação aos ornamentos da retórica, mas 24 também uma percepção viva e uma consideração das autoridades retóricas clássicas .

Assim, a ars praedicandi se relaciona com a retórica, muitas vezes, no que diz respeito à elocutio. Nesse sentido, Alain de Lille (apud KING; NORTH, 1970, p. 81-82) explica em seu De arte predicatoria que A pregação não deve conter palavras obscenas ou pueris, ou melodias rítmicas, ou consonâncias métricas. Isso contribui mais para agradar o ouvido do que para instruir a mente. Esse tipo de pregação é teatral e por isso deve ser unanimemente desprezada. [...] Mas apesar de a pregação não dever brilhar com ornamentos verbais púrpuras, ela também não deve ser diminuída por palavras sem vida. Pelo contrário, um meio termo 25 deve ser buscado .

Outra importante relação da retórica com a ars praedicandi é a inventio. Harry Caplan (KING; NORTH, 1970, p. 85) afirma que alguns tratados sobre a arte da pregação tinham “uma retórica da invenção altamente desenvolvida, particularmente quanto ao método de aplicar lugares-comuns”26 – fazendo referência, especificamente, a Liber quo ordine sermo fieri debeat, de Guibert de Nogent, De arte praedicatoria, de Alain de Lille, Liber de eruditione praedicatorum (século XIII), de Humberto de Romans, entre outros. Dessa forma, ainda que não escritas como manuais de retórica, obras sobre a composição em verso, a composição de cartas e a pregação são identificadas como parte do sistema retórico medieval por preceituarem estruturas genéricas com base em noções que são caras à retórica, como a de invenção, disposição, elocução, memória e ação. A classificação de um texto medieval como transcorrendo no gênero epistolar, por exemplo, talvez não informe muito sobre o propósito do texto (e nesse sentido esses gêneros medievais parecem ser um tanto como os ‘pré-gêneros’ de Fairclough, tendo em mente o nível da abstração dessas categorizações), mas certamente auxilia na análise da disposição (dispositio) do texto, o que não deixa de remeter a uma ritualização do gênero.

24

“*…+ preaching had a rhetorical function in the clear exposition of Scripture, with the persuasive purpose of winning souls to God – a function and a purpose germane to the universal uses of rhetoric. With the aid of rhetorical criteria, then, preaching can be studied in the treatises we are now considering. In them we find the characteristic distrust of the ornaments of rhetoric, but, as well, a live awareness of and regard for classical rhetorical authorities.” 25 “Preaching ought not to contain scurrilous or puerile words, or rhythmic melodies, or metric consonances. These contribute rather to soothing the ear than to instructing the mind. Such preaching is theatrical, and therefore should be unanimously contemned. *…+ Yet though preaching should not shine with purple verbal trappings, neither should it be depressed by bloodless words. Rather a middle course should be pursued.” 26 “a highly developed rhetoric of invention, particularly in the method of applying commonplaces.”

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 895

5. Considerações Finais A análise da estrutura genérica de textos medievais pode auxiliar na análise de textos enquanto elementos constituintes de práticas sociais na Idade Média. Uma análise mais profunda e fundamentada deve, por um lado, levar em conta características específicas da retórica medieval (recepção da retórica clássica; resignificação de gêneros clássicos em um contexto cristão; preceituação de novos gêneros) e, por outro lado, ter em mente questionamentos, conforme propostos por Fairclough, sobre a ritualização e a variabilidade dos gêneros, sobre a possibilidade de identificação de propósitos associados a gêneros e sobre a relação entre gênero predominante e subgêneros em um mesmo texto.

Referências bibliográficas AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona, 354-430. A doutrina cristã: manual de exegese e formação cristã. São Paulo: Paulus, 2002. CÍCERO. On Invention; Best Kind of Orator; Topics. Tradução: H.M. Hubbell. Cambridge: Harvard University Press, 2006. [CICERO]. Rhetorica ad Herennium. Tradução: Harry Caplan. Cambridge: Harvard University Press, [?]. COPELAND, Rita; SLUITER, Ineke (org.) Medieval Grammar and Rhetoric: language arts and literary theory, AD 300 – 1475. Oxford: Oxford University Press, 2012. COX, Virginia; WARD, John O. (org.) The rhetoric of Cicero in its medieval and early renaissance commentary tradition. Leiden: Brill, 2006. FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. Londres: Routledge, 2003. KING, Anne; NORTH, Helen (ed.). Of Eloquence: Studies in Ancient and Medieval Rhetoric by Harry Caplan. Ithaca: Cornell University Press, 1970. MURPHY, James J. Rhetoric in the Middle Ages: a history of rhetorical theory from St. Augustine to the Renaissance. Berkeley: University of California Press, 1974. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo, Martins Fontes, 2004. SWALES, J. Genre analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. TIN, Emerson (org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2005. Biblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2011.

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

I C o n g r e s s o I n t e r n a c i o n a l d e E s t u d o s d o D i s c u r s o P á g i n a | 896 Abstract: In the field of medieval text studies, there is a study perspective that has been establishing the relevance of language in social practices in the Middle Ages by researching into the rhetorical theories and practices that were developed at that time. In that post-classical and Christian context, Greco-Latin rhetoric was received and recast as a set of compositional precepts. One of the core concepts in classical and medieval rhetoric is the concept of genre, which is also an analytical category in the Social Theory of Discourse, developed by Norman Fairclough in Analysing discourse: textual analysis for social research (2003). As the Social Theory of Discourse constitutes a theoretical and methodological model that aims to contribute to social sciences when it comes to textual analysis, the study of medieval texts based upon at least some of the categories proposed by Fairclough, such as generic structure, may lead to more reasoned discussions on the use of language as a historically situated social practice. Keywords: medieval rhetoric; Critical Discourse Analysis; Social Theory of Discourse; textual analysis; generic structure.

SANTOS, Selene Candian dos | I CIED (2015) 886-896

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.