Discurso para a posse da Direção da FCL/Unesp em 23-01-2017

May 24, 2017 | Autor: J. Portela | Categoria: Discurso
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Discurso proferido pelo Prof. Dr. Jean Cristtus Portela na sessão solene da Congregação da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara para posse e transmissão das funções de Diretor e Vice-Diretor aos Professores Doutores Cláudio César de Paiva e Rosa Fátima de Souza Chaloba, em 23/01/2017.

Boa noite. Depois do apagão que nos obrigou a deixar o Anfiteatro A e a nos instalarmos na biblioteca, não poderia mais surpreendê-los. Deixo as eventuais surpresas aos colegas que me sucederão: a Vice-diretora, o Diretor e, naturalmente, o Reitor.

Saúdo vivamente todos os presentes, especialmente os estudantes, os servidores técnicoadministrativos e os servidores docentes da Faculdade de Ciências e Letras, representados pelas autoridades que compõem a distinta mesa diretora, assim como as demais autoridades presentes, com especial deferência ao Magnífico Reitor.

Saúdo também os cidadãos araraquarenses, paulistas e brasileiros, sobretudo aqueles que jamais conhecerão a nossa pequena cidadela: um câmpus universitário. É por eles finalmente que trabalhamos, que persistimos em nossos projetos e levamos a vida adiante, moldando a universidade segundo a medida dos nossos sonhos.

Eu sempre vi com reserva o gênero de discurso que aceitei fazer nesta sessão de posse. Muitas vezes, estive do outro lado, do lado da audiência, criticando, alfinetando e, confesso, me divertindo com os oradores que são instados a assumir a palavra na cerimônia de posse de um diretor, com a missão de dizer algo de... dizível sobre o diretor cessante e sobre o diretor eleito.

De um orador que aceita tal empreitada, é comum que se diga: vendido! E quando dizemos “vendido”, como se não estivéssemos nós mesmos no mercado de ações das ideias e dos afetos,

2 queremos dizer “implicado” e “limitado” pelas circunstâncias. O que me consola, nessa história de poder ser considerado “vendido”, é que tampouco fui “comprado” e, portanto, não poderia, tecnicamente, me considerar “vendido”.

Hoje, mais do que vendido ou comprado, eu me sinto honrado e tocado pela capacidade de trabalho, pelos ideais e pela persistência de Arnaldo Cortina, de Claudio César de Paiva e de Rosa Fátima de Souza Chaloba. Eu me sinto implicado pela esperança da FCL que se renova nesta cerimônia de posse.

Arnaldo Cortina – que estranho chamá-lo assim em público. É pouco usual me dirigir nesses termos ao meu pai acadêmico, que se tornou há quatro anos o diretor da FCL, com a minha torcida e com meu entusiasmo, mas também com a minha preocupação.

Arnaldo, tenha a certeza de ter combatido o bom combate, em um momento sensível da nossa faculdade, da nossa universidade e do nosso país, em que o diálogo foi mais do que nunca necessário, mas, também, mais do que nunca difícil, quando não impossível.

Myrna, pseudônimo de Nelson Rodrigues, cunhou a seguinte pérola em seu consultório sentimental: “Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo”. Da minha parte, nesta sessão que dizem solene, eu me perguntaria – ou LHES perguntaria: “Não se pode fazer gestão e ser feliz ao mesmo tempo?”.

Na minha breve experiência de gestão e na convivência com amigos gestores, eu me perguntei várias vezes como poderíamos conjugar felicidade e gestão: felicidade pessoal e gestão, felicidade do bem comum e gestão.

3 Sobre a felicidade, fiquemos com o desejo, o esforço, o “conatus” spinoziano, do ser que permanece, que persiste no caminho da emancipação, da liberdade. Ser feliz, para Spinoza, é ser livre. Que grande desafio para a felicidade é a liberdade...

Se deixarmos a dimensão individual e ganharmos a esfera do bem comum, que é aquela do gestor público, entramos em um terreno mais acidentado. O “bem comum” é uma categoria ética, é uma ficção filosófica e científica que já mereceu toda sorte de definições e de cuidados.

O gestor, o diretor de uma faculdade, reporta-se ao “bem comum”, tem no “bem comum” o seu destinador. É o bem da sua comunidade que preside a sua palavra e a sua caneta. Esse bem de todos e para todos é o grande valor a ser cultivado, debatido e ampliado, na medida em que não se reduz a um bem de execução, a um bem gerencial de obrigações profissionais e trabalhistas. O bem comum de que trata a universidade transcende o que acontece como trabalho nas nossas salas de aula, nos nossos gabinetes e nas nossas seções.

O diretor de uma faculdade não dirige propriamente uma faculdade como quem opera uma máquina, como quem anima um realejo. O diretor de uma faculdade é levado todos os dias a se ocupar da máquina, da inércia da máquina administrativa, e, ao mesmo tempo, dos homens que movimentam, lubrificam, obliteram e reinventam essa mesma máquina, que se move – e então voltamos à questão que nos interessa – na direção do bem comum.

De que bem comum estamos falando quando pensamos na missão da universidade? Daquele bem mais profundo, mais constitutivo e distintivo da experiência humana: o bem de ser, de se tornar, de se afirmar livre, autônomo e, portanto, pleno e, como previa Spinoza, “feliz”.

4 Desse modo, nós, acadêmicos, não somos apenas os guardiões do conhecimento e os portadores de vestes talares que nos distinguem na hierarquia quase militar dos títulos universitários, somos, antes de tudo, guardiões da plenitude. Mas no que consiste essa plenitude no atual contexto da universidade?

É certo que como agentes da produção do conhecimento, a inovação e a sustentabilidade das nossas técnicas constituem valores diretivos, valores objetivos de mensuração científica, econômica e social do trabalho. Nessa lógica, valemos quanto pesamos, valemos pelo número de patentes e discursos que somos capazes de fazer vicejar. Essa lógica não nos basta, não nos convém completamente, pois é estranha ao pensamento humanista.

Foi essa lógica que levou, em outro contexto, avaliando os métodos contemporâneos de gestão, o sociólogo francês Luc Boltanski a clamar: “Abaixo a excelência!”. Ou seja: abaixo a excelência que subjuga os homens em nome de um ideal estreito de produção.

Mas o que representa a plenitude em seu sentido mais amplo e humano? O diretor de uma empresa que fabrica sardinhas em lata talvez hesite em relação à definição de plenitude que nos interessa, mas não o diretor de uma faculdade. O diretor de uma faculdade deve manter o olhar elevado, olhar para além do tabuleiro, para além das latas e do lucro.

Pensar na plenitude a que o diretor deve nos conduzir na Faculdade de Ciências e Letras não é difícil, é de uma obviedade lancinante. Na FCL, formamos linguistas, estudiosos da Literatura, professores de língua materna e estrangeira, pedagogos, cientistas sociais, administradores e economistas. Quem poderia estar mais apto à plenitude? Temos a chave da cidade em nossas mãos. Se não da cidade, a chave da cidadania, o que é muito, o que é tudo.

5 A plenitude que nos interessa é aquela que só pode se estabelecer em um cenário de responsabilidade e de justiça sociais. E até que essa plenitude se cumpra, nosso desejo é o de liberdade e de igualdade de condições de expressão, de meios de reflexão, de raça, de religião, de sexo, de gênero e de orientação sexual. Na falta dessa plenitude, que excelência é possível – e para quem? Na falta do que comer, de onde morar, de como se deslocar, de como se vestir, de como fruir a vida e amar, como podemos inovar cientificamente de modo pleno, com a certeza de que fazemos a boa escolha diante dos nossos semelhantes?

Sabemos que o desafio atual da universidade, especialmente na nossa Unesp, é o de consolidar e ressignificar a nossa vocação de universidade de massa, que, salvo engano, só pode ser a vocação principal da universidade brasileira.

Para tanto, é preciso resistir, persistir em nosso ideal de plenitude como liberdade de ação individual e social extensiva a todos. Se a palavra não pode libertar, se a palavra não serve à inclusão, de que ela nos serve afinal? E a quem ela serve?

O remédio é amargo e resvala em aparentes contradições. Inovação, empreendedorismo e excelência não são os simples estandartes da universidade plena. No lugar da inovação, que se cultive a reflexão e a dúvida. No lugar do empreendedorismo, a empatia e o altruísmo. No lugar da excelência, a inteligência e a solidariedade.

Da minha parte, esse não é um mero jogo de palavras, não é uma simples retórica para agradar a audiência – ou parte dela. É um firme desejo de que se cumpra um ideal de plenitude que reencontre o princípio mais nobre da nossa atividade-fim: a formação.

6 Cláudio César de Paiva, seu desejo se cumpriu. Seu desejo de intensificar a grande busca, de nos guiar na busca pelo conhecimento, pela plenitude, se concretizou. Você é jovem e isso me entusiasma. Não estou aqui menosprezando, com irreverência de jovem, a contribuição dos menos jovens ou, se preferirem, dos velhos. A juventude não é uma qualidade e nem um defeito, é apenas a projeção de uma potência que faz sombra à experiência. Se a juventude é um defeito, como querem alguns, é um defeito que se corrige, infelizmente, muito rápido.

Claudio, o que lhe desejo é fôlego, é ainda mais disposição para a compreensão e para o diálogo. E não basta instaurar o diálogo, é preciso constituir um discurso sobre o diálogo. Em nossos dias, o diálogo é a moeda compulsória. Resta saber qual é o seu valor, qual é o seu lastro.

Rosa, na firmeza e na acuidade do seu olhar residem as nossas esperanças. Que seu percurso de pesquisadora excelente e de gestora humana continue a frutificar entre nós.

A FCL, Claudio e Rosa, aguarda o melhor de vocês. Saibam que o reconhecimento do que vocês são e do que fizeram pela FCL até o momento é que produziu a sua eleição e, hoje, a sua unção como diretor e vice-diretora da nossa faculdade.

Vida longa à FCL, mesmo sabendo que longa é a arte e a vida é breve. Arte e vida plenas a todos nós. Que venham os desafios e que nossa consciência esteja vigilante e serena. E que nossa autoindulgência seja mínima. Apenas a reflexão genuína que nasce da alteridade e da autocrítica pode nos guiar na selva da gestão.

Fico tentado a trocar “selva” por “felicidade”: apenas a reflexão genuína que nasce da alteridade e da autocrítica pode nos guiar na felicidade da gestão. E que a felicidade, mesmo duramente conquistada, seja livre, igualitária e altaneira – e sem soberba. Muito obrigado.

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