Discursos e práticas: mil e uma noites das (inter)faces feministas e jurídicas

July 4, 2017 | Autor: M. Oliveira | Categoria: Criminal Law, Media Studies, Feminist Theory, Discouse analysis
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

MARIA DE FÁTIMA CABRAL BARROSO DE OLIVEIRA

Discursos e Práticas: Mil e Uma Noites das (Inter)Faces Feministas e Jurídicas

Versão Corrigida São Paulo 2011

Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Departamento de Letras Modernas Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês

Discursos e Práticas: Mil e Uma Noites das (Inter)Faces Feministas e Jurídicas

Maria de Fátima Cabral Barroso de Oliveira

Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês, do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras.

Orientador: Prof.a. Dra. Anna Maria Grammático Carmagnani

Versão Corrigida

São Paulo 2011

DEDICATÓRIA

Dedico esta tese aos professores, principalmente aos meus mestres da USP, exemplos de dedicação e vida, que me fizeram viajar por caminhos inesperados e excitantes: partidas, voltas e experiências - tempo e espaço envoltos em um sonho contínuo; nunca conseguirei transmitir, em palavras, o significado de Anna Maria Grammático Carmagnani, Lynn Mario Trindade de Souza, Marisa Grigoletto, Walkyria Monte Mór, ou de Sérgio Salomão Shecaira, José Eduardo Faria, Eduardo C. B. Bittar, mesmo que elas/eles, não tenham a menor ideia do que “eu” esteja falando. A esses mestres, só posso dizer que, mesmo advogada “formada”, quando a primeira vez fui chamada de “professora”, materializou-se o momento em que a minha “realidade” fez sentido; um peixinho que voltava ao aquário depois de - fora dele quase sufocar sem “ar”, metáfora que um amigo judeu-canadense se utilizou para explicar o seu sentimento, quando, um dia, conhecendo pela primeira vez Israel, se reconheceu “judeu” e, portanto, indivíduo-humano-social, fruto de uma sociedade na qual não “crescera”. Ele estava respondendo a minha indagação: por que Israel é tão importante para você, que é canadense? Também aos professores de outros tempos-espaços, e histórias mais distantes; apesar de não mais me lembrar, todos eles/elas estão aqui comigo, mesmo que agora sejam apenas flashes: o ensino básico, com seis anos de idade em português, e com vinte e tantos, em inglês, a formação na cultura brasileira, e na canadense, a postura/cultura indígena-negro-branco e a anglo-saxônica, que tantas vezes me confundiram, mas também me conduziram a questionamentos e dúvidas, contribuíram para o meu crescimento, tanto em nível pessoal, quanto profissional. Quando, no Canadá, dei a minha primeira aula, e estava (muito) insegura, alguém me disse: “sabe aquele professor(a) favorito (a)? Se inspire nele(a)!” Como se fosse fácil. Acho que fui privilegiada: os meus modelos foram muitos e, basicamente, positivos. Mas, teve um, em especial, que me fez querer apre(e)nder mais e mais: ele era transdisciplinar: sabia como inter-relacionar a música (matéria que lecionava), com discussões políticas, com teatro e, com raciocínio. Portanto, aqueles que me fizeram pensar, na vida em comunidade como um todo, foram (e são) os meus melhores modelos. Enfim, não só aos “meus” mestres na escola, mas a todos aqueles que fazem do conhecimento aplicado na comunidade, mais que uma opção profissional, uma escolha de vida, dedico este trabalho.

AGRADECIMENTOS

À Anna Maria G. Carmagnani, pelo apoio, orientação e oportunidade de discussão das leituras realizadas em reuniões mensais com os colegas orientandos. Mas, principalmente, por acreditar neste projeto, que é a continuação da pesquisa de mestrado;

A Lynn Mario T. de Souza Menezes e Walkyria Monte Mór, pela análise do trabalho e pelas sugestões no exame de qualificação, contribuição ímpar na realização deste projeto;

A Sérgio Salomão Shecaira pelo ensinamento e interlocução;

Aos meus colegas do grupo de estudos de pós-graduação, cujas discussões promoveram questionamentos instigantes e provocadores;

Aos meus alunos que, mesmo sem perceberem, “discutiram” comigo vários temas relacionados a esta tese, e me fizeram pensar, especialmente a Milton C. F. de Souza.

À Secretaria de Pós-Graduação e à Edite Pi, pelo suporte;

E, ao meu companheiro (e marido), pela paciência e apoio.

RESUMO

Esta tese apresenta uma análise discursiva das articulações e efeitos gerados pelos discursos feminista e jurídico, inter-relacionados com a mídia. O feminismo teórico constitui uma fonte poderosa de análise, principalmente por mostrar o modo como a cultura constrói categorias e posições de sujeito - que assumimos como “já-existentes”, universais e imutáveis -, apontando para as contradições e os conflitos na articulação das ideologias na arena políticosocial; ele (o feminismo teórico) permite que as relações de poder bem como a “resistência” sejam reveladas. Como discurso oposicionista na sociedade patriarcal, a teoria feminista contribui para que haja um maior entendimento das relações sociais uma vez que lida com temas como igualdade, diferença, exclusão, marginalização e opressão. Desse modo, um dos principais objetivos dessa tese foi investigar, e desnudar, como se dá a articulação do discurso feminista e jurídico, tendo sido a mídia utilizada como meio para “ilustrar” tal articulação, a fim de que a nossa hipótese fosse comprovada. “Mulher” - termo aqui utilizado em sua concepção universalista e liberal - ainda ocupa uma posição “subalterna” (termo pós-colonialista) na sociedade patriarcal, mesmo quando a conjuntura pós-moderna afirma a “inclusão” (termo liberal) dela no mundo globalizado, uma vez que os discursos da contemporaneidade reproduzem modelos patriarcais de poder, apesar do avanço tecnológico e das previsões otimistas de que as mulheres estejam se liberando das estruturas patriarcais, de que os papéis sexuais e a noção de humano, do “feminino” e do “masculino” estão em transição, de que a igualdade dos gêneros já foi alcançada e, os modelos de linguagem, gêneros e sexualidade repensados. A conclusão principal é a de que o sistema jurídico, mesmo quando supostamente aplica os modelos teóricos da pós-modernidade/pós-estruturalismo, como na discussão sobre a flexibilização do direito - “novas” leis civis e criminais que se referem à “igualdade”, ou à “diferença” -, isto é, à “proteção” e à necessidade da inclusão das minorias nos discursos, como é o caso de “mulher”, na verdade, não consegue lidar com as questões dos gêneros sexuais e, conceitos como “igualdade”, “liberdade”, “autonomia” e, “diferença”, permanecem dentro de um modelo humanista e “masculino”, principalmente porque as teorias feministas, apesar de “conceituadas” globalmente são praticamente desconsideradas, inclusive aquelas que estudam as teorias e as práticas jurídicas, fazendo com que a análise seja empobrecida, pois somente um pólo continua a ser privilegiado: o masculino.

Palavras-chave: mulher, discurso, feminismos, mídia, sistema jurídico.

ABSTRACT A discursive analysis of feminist and legal discourses’ articulations and effects intersected with the media is the main target of this thesis. Feminist theory constitute a powerful tool of analysis mainly because shows how culture construct categories e subject positions universal and immutable givens - as an “always already there”, addressing ideologies’ contradictions and conflicts in the social-political arena which allows the uncovering of “power relations” and “resistance”. Feminist theory as a critique of patriarchy, thus a counter hegemonic discourse, contributes to a better understanding of the social relations mainly because it is concerned with questions related to equality, difference, justice, exclusion, marginalization, subordination and oppression. It was one of the main targets of this doctoral thesis, therefore, to investigate and uncover the intersections of feminist and legal discourses having the media “illustrating” this articulation in order to prove our hypothesis. “Woman” term here used in its liberal (and universal) meaning - still occupies a “subaltern” (a postcolonial term) position into the patriarchal society even when the postmodern context account for its “inclusion” (a liberal term) into the globalized world, mostly because the contemporary discourses (re)produce patriarchal patterns of power, despite the optimistic forecasting of women’s emancipation from the patriarchal structures of power, because of social and technological advancements, the understanding that gender roles and the meaning of human, “feminine” and “masculine” are in transition, that sexes equality was reached and patterns of language, gender and sexuality “already” rethought. The main conclusion is that law system, even when applying postmodernist/poststructuralist theoretical models, mainly in its discussion about the “flexibilization” or “reconfiguration” of the law and the minorities’ inclusion into the main stream discourses, such as the debates about “women” and the “new” criminal and civil laws regarding “equality” or “difference”, i. e. “protection” and “inclusion”, in fact, it cannot deal with issues related to gender mostly because conceptions such as” equality”, “freedom”, “autonomy” and mainly “difference” remain into a humanist frame, therefore, a masculine pattern, and feminisms or feminist theories, though recognized globally - including those which are directly related to the practice and theory of law - are basically disregarded, which impoverishes the law system’s analysis because just one side continues to be privileged: the masculine side.

Key words: woman, discourse, feminisms, media, law.

SUMÁRIO Introdução

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Capítulo 1 1. O Feminismo, o Pós-Modernismo/Pós-Estruturalismo e o Sistema Jurídico.............................. 20 1.1Do Binarismo Sexo/Gênero ao Sexo/Sexualidade ou...da “Igualdade” à “Diferença”........................... 1.2 O “Feminino” e o Sistema Jurídico: Questões sobre a Igualdade e a Diferença....................................................... 1.3 O Corpo e a Subjetividade........................................................ 1.4 Entre-Espaços: Entre-Tempos e Histórias................................

20 26 45 49

Capítulo 2 2. O(s) Feminino(s) e o Jurídico: Divisões, Práticas e “Diferença”..... 58 2.1 As “Ondas” - e a Menopausa - do Movimento Feminista......... 59 2.2 Divisões, Teoria e Prática.......................................................... 71 2.3 A Perspectiva Feminista na Teoria Jurídico-Legal................... 74 2.4 O Jurídico e a Mídia.................................................................. 81 2.5 Reestruturação: O Político, O Econômico, O Jurídico... e os gêneros, excluídos.........................................................98 2.5.1 Superando o Conflito dos Gêneros... e das Diferenças......................................................108 Capítulo 3 3. As HIStórias Dele Mesmo....................................................................121 3.1 A Princesa Feliz ...Para sempre(!?)..........................................123 3.1.1 Feminização ..............................................................123 3.1.2 A Bela e a Amnésia - Me conte: “como” eu (não) sou eu?........................................................138 3.1.3 A (In)Tolerância e a Questão do “Outro”: “Nós” Sabemos que “Nós” não Somos Geisy........ 146 3.1.4 Verdade ou Versão?.................................................. 154 3.2 As Princesas Torturadas e Desaparecidas... Para Sempre!........................................................ 164 3.2.1 A “Vítima” do Sistema Penal-Criminológico......... 164 3.2.2 A (In)eficácia das Estruturas................................... 170 3.2.3 A Violência (Sexual) e o Estado............................. 178 Considerações finais ……………………………………………………200 Referências Bibliográficas...................................................................... 213

In other words, the issue is not one of elaborating a new theory of which woman would be the subject or the object, but of jamming the theoretical machinery itself, of suspending its pretension to the production of a truth and of a meaning that are excessively univocal. Which presupposes that women do not aspire simply to be men’s equals in knowledge. That they do not claim to be rivaling men in constructing a logic of the feminine that would still take onto-theo-logic as its model, but that they rather attempting to wrest this question away from the economy of the logos. They should not put it, then, in the form “What is woman?” but rather, repeating / interpreting the way in which, within discourse, the feminine finds itself defined as lack, deficiency, or as imitation and negative image of the subject, they should signify that with respect to this logic a disruptive excess is possible on the feminine side. Luce Irigaray, 1985

Introdução

_______________________________Introdução_______________________________

If the only constant at the dawn of the third millennium is change, then the challenge lies in thinking about processes, rather than concepts. (Braidotti, 2002, p. 01)

O presente trabalho tem a ver com a continuação da pesquisa desenvolvida quando do meu mestrado, que iniciei em 2001. O interesse pelo tema “feminismo” nasceu da comparação da sociedade canadense com a brasileira, no tratamento dado aos vários temas relacionados às mulheres, principalmente na imprensa canadense; ela (a imprensa) abordava questões como a “violência contra as mulheres”, “aborto” e “equiparação salarial”, entre outros. A mídia jornalística, que contava com profissionais assumidamente feministas, trazia textos e até encartes especiais sobre a “violência doméstica” e alguns crimes “novos”, como o assédio sexual e o criminal harassment (o chamado stalking), bem como a (re)discussão de alguns “velhos”: o estupro, por exemplo, que se apresentava analisado sob uma perspectiva “diferente” da brasileira na sociedade norte-americana, aqui entendida como os Estados Unidos e o Canadá. Os

temas

relacionados

aos

gêneros

sexuais

eram

questionados

e

“desconstruídos”, ao mesmo tempo em que a categoria “mulher”, se apresentava - pelo menos sob a minha ótica - como uma categoria político-social “forte” na década de 1990, época em que morei no Canadá. Depreendia da leitura dos periódicos jornalísticos uma relação “pacífica” dos gêneros; não tinha dúvidas sobre a “igualdade” entre homens e mulheres na sociedade norte-americana, e passei a ter um posicionamento mais crítico em relação à imprensa brasileira. Na medida em que me familiarizava com o idioma e me aprofundava no entendimento daquela sociedade, as minhas concepções foram sendo desafiadas, principalmente pela leitura de certas obras de autores feministas, que criticavam a representação das “minorias” pela “grande” mídia (eu não era consciente do fato de “mulher” ser “minoria”!). Na verdade, esses trabalhos apontavam para o fato de que a mídia era a grande responsável pela perpetuação da reprodução dos estereótipos que envolviam as minorias

e, no caso das mulheres, do backlash

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contra elas, ou seja, as conquistas alcançadas

pelo movimento feminista estavam em pleno processo de retrocesso (Cf. Faludi, 1991) e a mídia era uma das principais responsáveis. Não havia como não questionar se, no final das contas, aquelas relações de gênero eram tão cordiais quanto pareciam num primeiro momento. Diante disso, a minha pesquisa de mestrado, 2 já aqui no Brasil, não deixou de refletir essa vivência que experimentei fora do meu país de origem na sociedade norteamericana e, no meu entender, teve duas “fases” importantes para o amadurecimento do trabalho: em um primeiro momento, eu tentava demonstrar - ainda que não assumidamente - como estávamos (nós, o “terceiro” mundo, os países periféricos) “atrasados” em relação ao universo “feminino” (termo utilizado no Brasil para se referir a “mulheres”) norte-americano que era muito mais “amplo”, “interessante” e “inclusivo” do que o nosso, que considerava extremamente “local” e, portanto, “alheio” em relação aos temas “femininos” debatidos em países centrais. Julgava (e ainda julgo) as matérias jornalísticas brasileiras, de modo geral, machistas e sexistas, e constatava que “mulher” estava excluída dos temas considerados “importantes” e “sérios” do mundo masculino. Ou, quando presente, a representação dela se dava (ou se dá) dentro de certas categorias rígidas e estereotipadas - mesmo quando os autores dizem levar em conta o “feminino” - com a utilização, muitas vezes, de uma linguagem despreocupadamente sexista. De fato, me causava estranheza (e ainda me causa) a linguagem sexista dos periódicos nacionais - em contraste com a grande preocupação da mídia canadense, por exemplo, no uso de uma linguagem jornalística não sexista - e, que a mulher fosse representada sempre dentro de categorias tão inflexíveis quanto extremamente estereotipadas, como já dito. Mas, quando apontava para esse fato, as pessoas pareciam não concordar muito comigo: elas não viam nada de errado no fato do uso de uma adjetivação excessiva, para descrever uma mulher, como por exemplo, as palavras, “gorda”, “feia”, “coroa”, “loira”, “perua”, e outras “menos nobres” como “velha”, 1

O backlash é uma forte reação por um número grande de pessoas contra um desenvolvimento ou um evento político ou social, ou uma resposta raivosa de um grupo para aquilo que é considerado como uma ameaça ou uma provocação, de acordo com a Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English da Oxford University Press, 1995. Tradução livre. 2

Cf. OLIVEIRA, Maria de Fátima Cabral Barroso de (2006). A Mídia e as Mulheres: Feminismos, Representação e Discurso. Dissertação de Mestrado. Disponível em www.teses.usp.br .

“biscate”, “vaca”, “piriguete” etc. para mencionar apenas alguns adjetivos mais “leves” utilizados na descrição do “feminino”, mas também alguns adjetivos positivos que contribuem para a imobilidade da “feminilidade” como: mulher “bonita”, “magra”, “bem sucedida”, “mãe” de “x” filhos etc.; além disso, a palavra “feminino” ou “feminina”, ainda era (é) sinônimo de “mulher”, o que pode causar um certo desconforto linguístico, uma vez que a palavra está carregada de significados opostos ao “masculino”, que tem sentido positivo. No entanto, entendemos que na língua latina o sexo “feminino” é sinônimo de “mulher”; o desconforto, então, tem a ver com as discussões sobre a dicotomia sexo/gênero na teoria norte-americana: quando se refere à mulher, em termos biológicos, usa-se o termo “female” (mulher) que não é sinônimo de “feminine” (feminino), termo que se refere, portanto, ao gênero, e não ao sexo. Expressei essa estranheza tentando demonstrar que, o universo das mulheres - e as próprias definições de “mulher” - eram de alguma maneira diferentes (das definições brasileiras de mulher) no hemisfério norte, talvez porque a mídia estivesse “noticiando” muitos dos temas levantados pelos feminismos, como a violência contra as mulheres, o aborto, a opressão, a desigualdade salarial, a saúde, a molestação sexual, o estupro, a criminalidade etc. Além disso, a pornografia, o ageísmo,

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a prostituição e até o

humorismo eram “notícia”, uma vez que estavam relacionados com a “violência contra as mulheres”, de acordo com a opinião de muitos teóricos feministas sobre tal assunto. Como uma piada de “loira”, ou uma cena de sexo mais explícita, podem ser consideradas “violência contra a mulher” era algo inusitado para mim. Comecei a perceber que as definições - inclusive as jurídico-legais - eram diferentes; o estupro, por exemplo, dentro de uma formação discursiva,

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pode ter um significado, e ressoar ou

significar de modo diverso em outra. Em resumo, a mídia debatia os fatos noticiosos também sob a ótica do discurso feminista e, não deixou de ser uma experiência muito interessante observar os efeitos que esses deslizamentos/deslocamentos - provocados pela “movimentação” feminista causaram, os quais, na minha visão, foi o rito de passagem dos problemas “femininos”: 3

Discriminação de pessoas pelo fator “idade”, ou seja, ser considerado muito velho ou muito jovem para a realização de determinadas funções, por exemplo. 4 Trabalhamos com a noção de formação discursiva definida por Orlandi (2001, p. 43), que diz: “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica – determina o que pode e deve ser dito {...} E todo discurso se delineia na relação com outros: dizeres presentes e dizeres que se alojam na memória”.

tornando-se adultos, eles se transformaram nos problemas das “mulheres”, problemas considerados “agora” pertencentes à esfera pública, “importantes”, que afetavam não só a esfera privada, doméstica, mas a sociedade de maneira geral. A violência doméstica, por exemplo, já não era um “problema de marido e mulher” e sim, uma questão de direitos humanos; na transferência da esfera privada para a esfera pública, o direito “local” teve que se render ao direito “internacional” na questão dos problemas “femininos”. Outras palavras, outros significados; mesmas palavras, porém, outras definições; outra linguagem enfim, diferente da linguagem jornalística (e jurídica) escancaradamente “masculinista” nacional, era a minha visão. A segunda “fase” do meu trabalho aconteceu quando as minhas análises sobre a representação das mulheres em dois jornais canadenses de grande circulação estavam mais maduras e, percebi no processo que, em se tratando das representações das mulheres pela mídia, tanto lá quanto aqui, elas (as representações) giravam em torno dos mesmos estereótipos: as mulheres eram as “mães”, o “símbolo sexual”, a “vítima” etc. 5 Ou seja, a definição de “mulher” já não me parecia assim tão diferente; apesar dos temas feministas terem sido uma constante nos periódicos - dando a impressão da igualdade dos gêneros sexuais - a mídia, utilizando-se de um discurso que aparentemente prestigiava todas as categorias sociais das mulheres, na verdade, excluía e silenciava várias categorias, legitimando certas identidades e marginalizando outras, mantendo, dessa maneira, o status quo, o que comprovou a minha hipótese desta etapa mais amadurecida do trabalho. Esta pesquisa, então, é o resultado de uma série de questionamentos sobre a formação da identidade “feminina”, e da posição de sujeito “mulher”, em certas formações discursivas, mas, principalmente, a tentativa de investigar como o discurso feminista se articula com o discurso jurídico, e os efeitos gerados. Esta tese, assim, se originou do interesse em estudar os trabalhos feministas desenvolvidos, principalmente, nos Estados Unidos, no Canadá e na França, sobre os vários “feminismos” existentes, sejam eles “ativistas” ou “teóricos”. Pondero que, na minha visão, existe uma “riqueza teórica” feminista e uma das “causas” dessa opulência

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Em nossa dissertação de mestrado encontramos as seguintes representações: a domesticidade (representações que definem a identidade das mulheres dentro de um contexto familiar); a erotização (representações de uma sexualização irrelevante que objetifica e fragmenta a mulher, erotizando-a); a infantilização da mulher e representações que a definem como vítimas.

se dá porque “mulher” é tema de estudos acadêmicos desde a década de 1960 - a matéria Women’s Studies, por exemplo, pertence à grade curricular de várias universidades norte-americanas -, pelo fato do movimento feminista “ativista” ser organizado e “maduro”, naquela sociedade e, finalmente, pelo chamado feminismo francês - “l’écriture féminine” - que, apesar de não ter sido bem compreendido pelas feministas norte-americanas, em um primeiro momento, posteriormente contribuiu de maneira fundamental para a quebra de certos paradigmas teóricos. O trabalho feminista, desse modo, produz conhecimento e gera efeitos, criando diferentes posições de sujeito; ao “reconhecer” que as mulheres foram excluídas das grandes “verdades universais”, princípios como o da “igualdade”, “liberdade” e “autonomia”, dentre outros, são desnudados, confrontados e colocados em xeque, afetando o próprio discurso jurídico, que teve que “ressignificar”. O feminismo teórico constitui, portanto, uma fonte poderosa de análise, principalmente, porque mostra o modo como a cultura constrói categorias e posições de sujeito - que assumimos como “já-existentes” - universais e imutáveis, apontando para as contradições e os conflitos na articulação das ideologias na arena político-social; ele (o feminismo teórico) permite que as relações de poder, bem como a “resistência”, sejam reveladas. A teoria feminista, como discurso oposicionista na sociedade patriarcal, contribui para que haja um maior entendimento das relações sociais, uma vez que lida com temas como a exclusão, a marginalização e a opressão. Ainda que muitos considerem que a “igualdade”, e a “emancipação” da mulher, sejam conquistas já realizadas, essa posição é sistematicamente desmentida pelas relações socioculturais de nosso contexto histórico. Basta observar as instituições jurídicas, a mídia e os próprios feminismos - ou “lutas” feministas - para se concluir que estamos longe da justiça social. Mesmo nas instituições consideradas mais democráticas, como nas universidades, por exemplo, não é difícil perceber que a “inclusão” da mulher é tema a ser debatido. As instituições não deixam de reproduzir os estereótipos “femininos” das mais diversas formas; quer seja através das piadas contadas pelos mestres (que pedem para que as mulheres não se sintam ofendidas, mas a piada será mesmo para ridicularizar, de alguma maneira, o “comportamento feminino”) ou por estar claro quem tem voz nessas instituições: “mulher”, como categoria política e histórica, praticamente não aparece em trabalhos acadêmicos, livros, teses ou dissertações das mais variadas áreas do conhecimento; a história, a psicologia, a

sociologia, o direito etc., ainda são sempre do “homem”, mesmo quando as discussões sobre o sexismo na linguagem e a violência simbólica, para citar apenas dois temas, já estejam completando cinquenta anos de idade. Os autores nacionais também ainda se utilizam do termo “homem” para definir o “genérico”, o que é “importante” na sociedade hodierna, aparentemente, de uma maneira “despreocupada”. “Sem voz”, é interessante observar que, quando alunas universitárias tomam a palavra, há sempre uma espécie de pedido de desculpas que antecede a fala: “não sei se vou falar bobagem, mas...”; “não sei se entendi direito, porém, em minha opinião” ou “não querendo contrariar... não seria melhor...”. Os livros em geral e a televisão, desde a infância, que me conduziram a mundos fantásticos e a “linguagens diversas”, me apresentaram (e ensinaram) modelos de “mulher”, de “feminina” e de “feminilidade”: heterossexualidade, raça branca e classe média, “gravitar” em torno de “homem”, chorar muito e ser “bonita” são alguns dos requisitos que parecem compor a “mulher” do imaginário social. No entanto, o mundo “masculino”, vivenciado principalmente na FDUSP 6 foi o mundo mais admirado, imitado e invejado, com o qual (melhor) me identifiquei e comprovei: a liberdade de expressão e ação (mesmo que aparentes), a política, mas principalmente, o exercício da crítica, decididamente, não deixava dúvidas: a vida “pública” era fascinante e “masculina”, e a “privada”, aborrecida e “feminina”. Quais seriam, então, os efeitos de sentido produzidos por um discurso oposicionista, como o discurso feminista, na sociedade patriarcal? Como o discurso jurídico-legal é afetado pelo discurso feminista? Que representações do “feminino” são encontradas nos discursos feministas e jurídico? Como a “igualdade”, ou a “diferença”, está representada na teoria feminista e na teoria jurídica? Pelas últimas três décadas, testemunhamos as teorias feministas sendo aplicadas em diversas áreas do conhecimento, como nas ciências jurídicas, por exemplo. Através das várias alterações de leis civis e penais, ou até mesmo pela construção de novas tipificações legais

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- como o assédio sexual, uma inovação feminista -, os papéis dos

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde obtive o título de bacharel em direito.

DOWER, Nelson Godoy Bassil (2005, p. 113): “Quando uma determinada ação ou omissão foi praticada e é igual à descrita pela lei penal, diz-se que é uma ação típica. O tipo é, pois, um modelo legal de ação ou omissão, descrito pelo legislador penal, ao qual corresponde uma conduta punível, desde que seja ilícita, embora nem toda ação típica seja ilícita, como é o caso da legítima defesa {...} Não há tipo

gêneros sexuais, na doutrina jurídico-legal, tiveram que ser repensados. Podemos dizer, então, que as perspectivas feministas têm um papel importante na reforma das práticas sociais, e das doutrinas propriamente ditas, mesmo quando estão “apagadas” pelos discursos dominantes, ou quando o próprio discurso feminista produz categorias rígidas de “mulher”, como a “mulher-vítima”, por exemplo. O pós-estruturalismo argumenta que “mulher”, assim como outros grupos de minoria, não existe pré-discursivamente, isto é, certas categorias existem pelo próprio funcionamento do discursivo feminista; o discurso feminista, assim como o discurso jurídico-legal, produz imagens sobrepostas e conflitantes do que seja “mulher”. A delimitação do campo temático deste trabalho tem como propósito identificar o perfil do(s) feminismo(s) teórico(s) surgido(s) pós-1960, que problematizou o fenômeno social, isto é, redesenhou as práticas sociais, quebrou paradigmas teóricos e reinterpretou as “fronteiras”, objetivando, através de uma análise discursiva emoldurada pelo pós-modernismo/pós-estruturalismo, a reflexão acadêmica sobre os efeitos dos “feminismos”, quando articulados, principalmente, com o discurso jurídico, mas também com o da mídia. Como já dito, as teorias feministas contribuem para o desenvolvimento da teoria e da prática em diversas áreas do conhecimento; no entanto, ao examinar a relação entre a “ciência jurídica” e o discurso feminista, investigaremos como o sistema jurídico-legal suprime e controla tal discurso. Apesar do avanço tecnológico e das previsões otimistas de que as mulheres estão se liberando das estruturas patriarcais de poder, de que os papéis sexuais e a noção de humano, do “feminino” e do “masculino”, estão em transição, de que a igualdade dos gêneros já foi alcançada e, os modelos de linguagem, gêneros e sexualidade repensados, investigaremos quais os efeitos causados pelos discursos feministas e se o sistema jurídico, e a mídia, reproduzem modelos patriarcais de poder mesmo quando afetados pelos “feminismos”. A hipótese geral a ser defendida é a de que “mulher”, termo aqui utilizado em sua concepção universalista e liberal, ainda ocupa uma posição “subalterna” (termo póscolonialista e, portanto, um construto acadêmico), mesmo quando a conjuntura hodierna afirma a “inclusão” (termo neoliberal) dela no mundo globalizado.

sem o seu verbo, podendo haver tipo com mais de um verbo {...} Todo o tipo tem o seu verbo específico, que define a ação praticada pelo agente.”

Alguns enunciados como igualdade, liberdade e tolerância se articulam dentro do espaço discursivo da hegemonia patriarcal dominante, isto é, conceitos oriundos daquelas formações históricas onde ciência, progresso/evolução e conquista estão diretamente relacionados à fantasia (masculina) do homem, branco, cristão e heterossexual, na civilização ocidental. Visando a uma melhor interpretação analítica, nos utilizamos de alguns excertos de textos jurídicos, com o objetivo de investigar o posicionamento teórico de certos juristas quando “mulher” entra na equação legal, o que esperamos que contribua para a análise de nosso corpus, qual seja, excertos de textos jornalísticos de quatro casos famosos na mídia: o caso “Geisy Arruda”, o caso “Bruno”, o caso “Mércia” e o caso da “Escrivã Despida”. Como uma última consideração, apontamos para o fato de colocar-se “aspas” em certos termos como “mulher”, “feminino”, “feminina”, “masculino” e “homem”, dentre outros, a fim de que sejam “desnaturalizados” e/ou para chamar a atenção sobre eles, ou ainda, de acordo com Butler (1995, p.54), “para designar estes signos como um lugar de debate político”. No entanto, para Hennessy (2000, p. 19), sob a perspectiva do materialismo histórico, as diferenças sociais, construídas e organizadas pela cultura e pela ideologia, simplesmente, não são questões de linguística ou de relações discursivas, como apregoa o pós-estruturalismo que nega qualquer referente que esteja fora das relações instáveis dos significantes (o fundamento do significado está na différance, termo cunhado por Derrida). Assim, utilizando as palavras dessa autora (ibid., p. 20), ser “homem” ou “mulher”, ou as diferenças entre tais conceitos, são “sítios de conflitos”, uma vez que essas denominações podem, e foram utilizadas, para “justificar, legitimar, autorizar e justificar as contradições nas quais as relações capitalistas de produção se fundamentam”. A diferença entre Ms., Miss e Mrs., por exemplo, não trata-se apenas de uma diferença entre significantes; o termo Ms. foi um evento histórico que surgiu da luta política sobre a ideologia hegemônica da definição de “mulher”, interpretado como “interrompendo o sistema patriarcal dos gêneros” (op. cit.). Desse modo, este trabalho se enquadra teoricamente nos estudos pósmodernistas/pós-estruturalistas e nos Estudos Culturais, estudos esses que fornecem as ferramentas teóricas para que a análise discursiva, aqui proposta, possa ser desenvolvida.

O trabalho para a execução do propósito descrito acima, foi estruturado em três capítulos, além desta Introdução e das Considerações Finais. O capítulo 1 da tese discute os conceitos teóricos pelos quais esse trabalho está orientado, ou seja, a perspectiva feminista pós-modernista/pós-estruturalista que embasa a análise discursiva de nosso corpus. O capítulo 2 aponta para as condições de produção do discurso feminista, que inclui a articulação entre a teoria feminista, a teoria jurídico-legal feminista, a teoria jurídica propriamente dita, inter-relacionados com a mídia, discutindo algumas divergências e convergências, pontos de encontro e de deriva, levando-se em consideração o debate acadêmico feminista no seu embate com o discurso jurídico. O capítulo 3 destaca como funcionam, e se articulam, os discursos feminista e jurídico no sistema jurídico-legal que se “utilizam” da mídia como “mediador”, através da análise discursiva do corpus selecionado, que visa a investigar como a “mulherpessoa” (ou o “sujeito” de direitos) está enredada, se constitui e é constituída pelos embates discursivos. A seguir, são apresentadas as nossas considerações finais, seguidas da bibliografia.

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