Discursos herero sobre uma África cristã: contribuições antropológicas para a compreensão de fenômenos sincréticos

May 29, 2017 | Autor: Josué Castro | Categoria: Namibian Studies, Estudos Da Religião, Teorias do Sincretismo, Religiões africanas
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAS

JOSUÉ TOMASINI CASTRO

DISCURSOS HERERO SOBRE UMA ÁFRICA CRISTÃ CONTRIBUIÇÕES ANTROPOLÓGICAS PARA A COMPREENSÃO DE FENÔMENOS SINCRÉTICOS

Porto Alegre 2006

JOSUÉ TOMASINI CASTRO

DISCURSOS HEREROS SOBRE UMA ÁFRICA CRISTÃ CONTRIBUIÇÕES ANTROPOLÓGICAS PARA A COMPREENSÃO DE FENÔMENOS SINCRÉTICOS

Monografia apresentada como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais pelo curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Airton Luiz Jungblut

Porto Alegre 2006 2

JOSUÉ TOMASINI CASTRO

DISCURSOS HEREROS SOBRE UMA ÁFRICA CRISTÃ CONTRIBUIÇÕES ANTROPOLÓGICAS PARA A COMPREENSÃO DE FENÔMENOS SINCRÉTICOS

Monografia apresentada como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências Sociais pelo curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Aprovada em _____ de ____________________ de________

BANCA EXAMINADORA: ______________________________________________ Prof. Dr. Airton Luiz Jungblut ______________________________________________ Prof. Dr. Bernardo Lewgoy ______________________________________________ Prof. Dr. Ricardo Mariano

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Àqueles que me incentivaram a crescer. Dedico em especial à minha família.

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AGRADECIMENTOS

Nas últimas páginas do seu Argonautas do Pacífico Ocidental, Malinowski1 tece alguns comentários em defesa da etnografia. Ela seria a única que teria o poder para vencer certos obstáculos. Um deles, o de conhecer melhor a nós mesmos: “nós não poderemos alcançar a sabedoria socrática final, de conhecer a nós mesmos se nunca deixarmos o restrito confinamento dos costumes, credos e preconceitos com os quais todo homem nasce”. Ao sair do meu “restrito confinamento” encontrei outra cultura, outras pessoas, outras formas de ver o mundo e vivenciá-lo, sendo que toda e qualquer aquisição que tenha tido, todo conhecimento adquirido, afinal, se enfim alcancei alguma sabedoria, isto foi graças a todos meus colaboradores em Okondjatu. A eles, faço meu primeiro agradecimento por terem me ensinado os aspectos de sua cultura que queria desvendar, por terem sido o pai, a mãe, a irmã, os professores e os amigos que durante aqueles três meses de trabalho tanto me fizeram falta. Há outras pessoas ainda, as quais sou grato, pois sem elas este trabalho e o ânimo para chegar até o fim não teriam existido. Ao meu pai, César Castro, agradeço pelo carinho imenso, à minha mãe, Dilce Tomasini, pelo conforto imensurável, à minha irmã, Jaquinha, a quem sempre quero impressionar, à Sarah pelo amor “cedido” durante todo este período, aos meus colegas de aula, especialmente ao Thiago de Aragão, Vanessa Santa Helena, Aline Palmieri e Antonio Haas pelo incentivo, apoio, pelas boas discussões e pelas “conversas de bar”, a todos meus amigos que, talvez, se fosse enumerar seus nomes, não caberiam nessas poucas páginas. Também, ao meu orientador e incentivador Prof. Dr. Airton Luiz Jungblut, por ter acreditado no meu trabalho. Aos demais professores que instigaram meu conhecimento em algumas aulas memoráveis e àqueles que também acredito terem sido bons orientadores. Ao Luciano e à Suzana Bornholdt, pelas boas conversas e pelas leituras e comentários a respeito deste trabalho. Por fim, mas jamais por último, dedico este trabalho àquele sem o qual nada disso teria sido possível, ao meu porto seguro, no qual sei que posso descansar – e em quem efetivamente descansei – e onde sou desafiado a crescer cada vez mais, ao meu Deus, por ter trilhado esta caminhada ao meu lado.

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MALINOWSKI, Bronislaw. Argonauts of the Western Pacific. 1984: 518. (Livre Tradução do Autor – LTA)

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“há deuses em todos esses homens com quem cruzo no caminho” 6

Roger Bastide, 2006: 93. RESUMO Baseado em trabalho etnográfico realizado na Namíbia, no vilarejo de Okondjatu (a 297 km ao norte da capital Windhoek), entre o povo Hereros, pretendemos fazer uma análise descritiva da rede de interações religiosas presenciadas pelo pesquisador e dos processos vividos por esses nativos na absorção de novas formas de justificar o religioso, a cura e o divino, criando assim experiências sincréticas de manipulação do sagrado. Pretendemos analisar estes exercícios sincréticos atentando, principalmente, para as articulações produzidas entre as idéias cristãs que eles absorvem e as práticas tradicionais de culto aos ancestrais que mantêm. Conjuntamente à experiência etnográfica, elaborar-se-á um amplo aparato teórico que possa trazer luz aos fenômenos sincréticos percebidos durante a realização da pesquisa. Isto feito, procurar-se-á usar o sincretismo como uma ferramenta para o entendimento das fronteiras dos diferentes sistemas religiosos presentes em Okondjatu atentando, também, para a importância das práticas correntes na Antropologia para a compreensão e análise dos discursos nativos. Palavras-chave: Hereros. África. Culto aos ancestrais. Sincretismo. Etnografia

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ABSTRACT Based on a fieldwork experience in Namíbia, in the village of Okondjatu (297km to the north of the capital city, Windhoek), among the Hereros, we intend to do a descriptive analysis of the net of religious interactions observed by the researcher and of the processes experienced by these natives on the absorption of new forms to justify the religious, the cure and the divine, creating, that way, syncretic experiences manipulating the sacred. It is our will to analyze these syncretic exercises atempting mainly to the produced articulations between Christian ideas absorbed by them and the still maintained traditional practices of workshipping their ancestors. Together with the ethnographic experience, a large teoretical instrument will be elaborated so we can bring light to the syncretic phenomena perceived during the realization the the research. From that point, syncretism will be used as a tool to understand the borders of different religious systems in Okondjatu, also attempting, to the importance of current practices on Anthropology to help understand and analyze natives discourses. Key words: Hereros. Africa. Ancestors worship. Syncretism. Ethnography.

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico A – Sistema de interdependência do Fogo Sagrado....................................................79 Gráfico B – O conhecimento religioso autóctone.....................................................................81 Gráfico C – O conhecimento religioso alóctone.......................................................................88 Gráfico D – O conhecimento religioso da Igreja Oruuano....................................................108 Gráfico E – O conhecimento religioso da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia..........120 Gráfico F – O conhecimento religioso da Igreja da Estrela de São Josué...........137

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................... 12

A EXPERIÊNCIA ETNOGRÁFICA ................................................................................................... 13 A ESCRITA ETNOGRÁFICA .......................................................................................................... 16 DEFINIÇÃO DO OBJETO............................................................................................................... 18 CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS ............................................................................................... 21

1.1 - SINCRETISMO: UMA BREVE PROBLEMATIZAÇÃO ................................................................ 22 1.2 - SINCRETISMO NA MENTE.................................................................................................... 29 1.2.1 - Os espaços mentais ............................................................................................... 29 1.2.2 - A normalidade do pensamento sincrético ............................................................. 30 1.2.3 - Elementos limítrofes ............................................................................................. 32 1.2.4 - O “Princípio da Integridade Cognitiva” ................................................................ 36 1.3 - SINCRETISMO NA CULTURA................................................................................................ 37 1.3.1 - As noções de cultura: a questão da pureza ............................................................ 38 1.3.2 - Formação dos fenômenos culturais ....................................................................... 39 1.3.3 - Cultura objetivada ................................................................................................. 40 1.3.4 - Caráter ambíguo da cultura ................................................................................... 41 1.3.5 - Continuidade cultural ............................................................................................ 46 1.4 - SINCRETISMO NA POLÍTICA. ............................................................................................... 47 1.4.1 - A construção dos repertórios: domínio dos significados ...................................... 48 1.4.2 - Poder e resistência: construção de identidades ..................................................... 49 1.4.3 - Os sujeitos sincréticos ........................................................................................... 52 1.4.4 - Duas categorias de análise..................................................................................... 53 1.4.5 - Sincretismo/Anti-sincretismo ................................................................................ 55 1.5 - CONCLUSÃO E DEFINIÇÃO DOS LIMITES DA ANÁLISE. ......................................................... 56 1.5.1 - E por que não sincretismo? ................................................................................... 57 1.5.2 - As elaborações teóricas ......................................................................................... 60 1.5.3 - Por uma Antropologia do Sincretismo .................................................................. 62 CAPÍTULO 2 - REPERTÓRIOS INICIAIS. .................................................................................................... 65

2.1 OS HEREROS DA NAMÍBIA. .................................................................................................. 65 2.2 OKONDJATU: BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO .......................................................................... 67 2.3 O FOGO SAGRADO: TRADIÇÃO AUTÓCTONE ......................................................................... 71 2.3.1 Símbolos e categorias .............................................................................................. 72 2.3.2 O funcionamento ..................................................................................................... 78 2.3.3 Resumo do quadro ................................................................................................... 80 2.4 PENETRAÇÃO CRISTÃ: TRADIÇÃO ALÓCTONE ....................................................................... 81 2.4.1 Discurso nativo: o enfraquecimento da tradição ..................................................... 83 2.4.2 Resumo do quadro ................................................................................................... 87 CAPÍTULO 3 - O CRISTIANISMO EM OKONDJATU ................................................................................ 89

3.1 - NO FLUIR DOS TEMPOS: A TRADIÇÃO REINVENTADA .......................................................... 90 3.2 - SINCRETISMO E RESISTÊNCIA: A IGREJA ORUUANO ........................................................... 94 3.2.1 - A objetivação reforçada da minoria ...................................................................... 96 3.2.2 - “Nós somos a igreja tradicional Hereros!” .......................................................... 101 3.2.3 - cristianismo e Fogo Sagrado: tentativas de reconciliação .................................. 103 3.2.4 - Sujeitos sincréticos .............................................................................................. 106 10

3.2.5 - Resumo do quadro............................................................................................... 107 3.3 - DISCURSOS ANTI-SINCRÉTICOS: A IGREJA MISSÃO ARREPENDAM-SE DA NAMÍBIA.......... 108 3.3.1 - Pastor Matuzee .................................................................................................... 111 3.3.2 - Delimitando as fronteiras: as estratégias de poder .............................................. 115 3.3.4 - Resumo do quadro............................................................................................... 119 3.4 - FRONTEIRAS EXPANDIDAS: A IGREJA DA ESTRELA DE SÃO JOSUÉ ................................... 120 3.4.1 - Os limites da fé: sincretismo e estrutura ............................................................. 127 3.4.2 - Sincretismo ou pluralismo: resolvendo alguns problemas .................................. 134 3.4.3 - Resumo do quadro............................................................................................... 136 3.5 - CRISTIANISMO E ÁFRICA .................................................................................................. 137 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................ 139 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................................................. 143

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INTRODUÇÃO

Os Antropólogos se assemelham a artistas do corpo que conduzem experimentos sincréticos em si mesmos. Nós vivemos a tradição de uma outra cultura ao mesmo tempo em que mantemos a nossa, e depois nós escrevemos sobre essa experiência a partir de um íntimo conhecimento pessoal. Stewart Shaw, 1994: 22.

Este trabalho é fruto de uma experiência de campo realizada no vilarejo de Okondjatu, situado a 297km ao norte de Windhoek, capital da Namíbia, entre o povo Hereros, durante um período de três meses entre dezembro de 2005 e fevereiro de 2006. É fruto do contato com o “outro”; de tentativas de traduzir aspectos de uma cultura distante para um dialeto familiar; de viver na fronteira, no limiar; de criar e ser criado; de dar significados; de descobrir; de sentir saudades; de novas amizades; e de viver os imponderáveis de uma vida da qual tento me apoderar. Antes de ir a campo, lembro de estar ansioso pelos corredores de minha universidade, ansioso pelo momento em que finalmente faria minha primeira etnografia. Imaginava o momento da saída, a chegada confusa e maravilhosa ao campo; os momentos de intensas e incríveis descobertas e aventuras; o momento final, o “retorno triunfal” à minha sociedade “com todos os meus troféus” – lembrando Roberto DaMatta2 em seu artigo sobre como ter anthropological blues. A verdade, é claro, é que esses interessantes passos que, acredito, ocorrem na vida de todo etnógrafo, nem sempre se dão de forma tão magnífica assim e não comunicam as incertezas, as imensas frustrações e os desafios encarados nessa caminhada. Neste encontro

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DAMATTA, Roberto. “O ofício do etnólogo, ou como ter anthropological blues.” 1978.

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com o exótico, vejo que o exótico sou eu3. Ao chegar ao campo, construo imagens e dou significados aos objetos que quero descobrir – que na medida do tempo vão sendo transformados por novas significações. Nessa descoberta, também sou achado, criado e recriado pelos nativos, objeto de seu estudo: o jovem, branco, brasileiro que diz querer conhecer sua cultura e história. Mas então o que há por entre os limites desse ritual – a saída, o encontro e o retorno – que envolve o trabalho do etnógrafo? Quais são seus tabus, suas regras, sua estrutura, sua função, seu contexto e finalidade? Compreender algumas dessas questões poderá auxiliar na leitura e compreensão de todo este trabalho.

A experiência etnográfica Evans-Pritchard, no segundo apêndice do seu Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, relata o momento em que ele se preparava para ir pela primeira vez à África e saiu a pedir aos antropólogos, pesquisadores de campo a sua volta, algumas orientações sobre os cuidados necessários a realização de um trabalho de campo. O parágrafo começa lembrando que Paul Radin, antropólogo austro-americano, “disse uma vez que ninguém sabe muito bem como faz o próprio trabalho de campo”. Isto já nos dá uma idéia do tanto de subjetivo e singular que envolve o trabalho de campo, de como o aparato conceitual que adquirimos durante nossas leituras e que é explicitado pelos professores não é o único elemento a se erguer contra o antropólogo durante a estada no campo.4 É esse tanto de improviso e surpresa que DaMatta procura trazer quando introduz a área básica dos seus anthropological blues “como aquela do elemento que se insinua na prática etnológica, mas que não estava sendo esperado.” Ao sair do Brasil não sabia o que esperar. Sabia que teria que fazer entrevistas, conhecer a vida nativa, entrar em contato com alguém que se mostrasse interessado no meu trabalho e me ajudasse com a língua nativa. Sabia que teria que encontrar fatos com os quais construiria um trabalho e sabia que esses dados estavam ali e – tal como um informante disse a Paul Rabinow – “só havia uma porta aberta para mim – paciência, somente paciência.”5 3

Como nos primeiros dias na África, quando as diferenças eram mais visíveis e eu parecia ter todos os aspectos ligados à diferença e escrevia em meu diário no dia 1o de dezembro de 2005 que “depois do apartheid, o exótico sou eu”. Claro está, no entanto, que qualquer esforço de “familiarização” eu nunca deixei de ser um estrangeiro. 4 PRITCHARD, E. E. Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. 2005: 243. 5 RABINOW, Paul. Reflections on fieldwork in Morocco. 1977: 126. (LTA)

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Mas, eu não imaginava que seria assombrado por pesadelos durante noites a fio, me lembrando que o tempo estava se esvaindo e que eu ainda tinha muito para fazer; que teria que disputar o espaço da cena etnográfica com meus colaboradores tentando, assim como eu, ser antropólogos; tão pouco fui avisado das mentiras que me contariam quando estava a procura do Fogo Sagrado – local de contato ritual entre os homens e seus ancestrais, como veremos nos próximos capítulos; da saudade de casa, que me deixou imóvel em algumas ocasiões; das dúvidas que me assaltariam muitas vezes, levando minha confiança e deixando a velha pergunta: Será que nasci para isso?6; de que os bêbados e os loucos nunca me deixariam passar por eles sem que fossem notados; ou ainda que seria mal visto por muitos, que diziam que o antropólogo era, na verdade, um missionário que trancaria a todos dentro da igreja e, como fizeram os missionários durante o início do último século, os queimariam vivos. A verdade, é que não sabemos o que fará parte do nosso encontro com o outro. O ritual de passagem, durante o qual tornamo-nos um “verdadeiro antropólogo”7 ocorre na fronteira mesmo de duas culturas diferentes. É lá, que o antropólogo em formação, se encontrará, “uma espécie de indivíduo duplamente marginal, alienado de dois mundos”8, tentando criar espaços que possibilitarão a troca de informações. Esses espaços, no entanto, nunca deixam de se situar nas fronteiras entre o longínquo e o próximo, e o antropólogo, junto com seus colaboradores, trabalhará nessa zona limítrofe. Pois é lá, onde os gregos diziam habitar a deusa Ártemis, fundadora de sua polis9, que o terreno etnográfico se cria; “é o local da antropologia; não existe posição privilegiada, perspectiva absoluta, e nenhum modo de eliminar a subjetividade de nossas atividades e das atividades dos outros.”10 Ali, o antropólogo pode ter os pés no chão. Este, não é muito seguro e está constantemente em transformação mas, o certo é que, como Homi Bhabha ressalta, “estar estranho ao lar[unhomed] não é estar sem casa[homeless]”11. O antropólogo tem onde caminhar e este local não é fruto de um esforço único do pesquisador. Aqueles que estão em

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Acredito que essas dúvidas são freqüentes a praticamente todos antropólogos e lembro particularmente de Malinowski em seu diário quando falava do sentimento de medo de não se sentir à altura da tarefa que o aguardava – MALINOWSKI, Bronislaw. Um diário no sentido estrito do termo. 1997: 42. 7 “No departamento de graduação de antropologia na Universidade de Chicago, o mundo era dividido em duas categorias de pessoas: aqueles que tinham feito trabalho de campo, e aqueles que não tinham; os últimos não eram realmente antropólogos...[suas] intuiçõe[s] não foram alteradas pela alquimia do trabalho de campo” – RABINOW 1977: 3 (LTA) 8 PRITCHARD 2005: 246. 9 AMORIN, Marília. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. 2001: 53-55. 10 RABINOW 1977: 151. (LTA) 11 BHABHA, Homi K. O local da cultura. 2005: 29.

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volta do pesquisador vão, tanto quanto ele, ao encontro do exótico e se aproximam, criando novas “redes de significação”12. É nesse processo que o objeto etnográfico é elaborado, fruto de um contato intersubjetivo, onde as diferentes subjetividades envolvidas – a do antropólogo e dos seus colaboradores – se inter-relacionam dando início a um produto híbrido que atravessa as fronteiras e as enfrenta. O objeto “é externo tanto para o antropólogo (não é seu próprio mundo) quanto para os informantes, que gradualmente aprendem a informar”. Mas isso não significa que as fronteiras estarão eliminadas, elas persistirão por todo o trabalho; seremos sempre estranhos: ...não podemos mentir para nós mesmos, pensando que isso realmente pode acontecer. Você continuará sendo o único branco vivendo entre aquele povo; você continuará fazendo suas “perguntas engraçadas”; as pessoas vão continuar perguntando o que você está fazendo ali; eles continuarão te olhando de forma engraçada; e no fim do dia, quando você estiver sozinho em sua barraca, escrevendo em seu diário, você verá que não há nada de familiar ali; o blues da antropologia te lembrará, como a mais saudosa melodia, que você não pertence a este lugar. Você irá lembrar das salas de sua universidade, dos rostos de seus amigos e do samba de sua terra...13

Após a construção desses objetos, cansativas entrevistas, observações e, após participar tanto quanto pôde do dia-a-dia da vida do grupo que se propôs estudar, o antropólogo volta ao seu local, à sua cultura, à sua realidade e percebe que já não é mais o mesmo, podendo ser assolado pelo mal que, Lèvi-Strauss,14 chamou de “desarraigamento crônico”. O ciclo ritual terminou e, ao chegar, percebe-se que algo foi modificado: “sua intuição foi alterada pela alquimia do trabalho de campo.”15 Agora, diante das gravações, desenhos e todo material coletado durante o campo o antropólogo se vê diante de um novo problema: avaliar seu trabalho, reler seu diário – o que vem a ser um processo bem interessante, quase um dejà vu onde a saudade, o medo, as angústias, as surpresas, as vitórias e todos os sentimentos que acompanham a experiência etnográfica, se fazem presentes novamente – e preparar-se para travar o que, para EvansPritchard16, é a batalha decisiva do pesquisador, a construção de um novo objeto híbrido: a escrita etnográfica.

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RABINOW 1977: 151. (LTA) 29.01.2006, diário de Campo, Namíbia. (LTA) 14 LÈVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. 1996: 53. 15 RABINOW 1977: 3. (LTA) 16 PRITCHARD 2005: 245. 13

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A escrita etnográfica O primeiro dia do último mês de trabalho começava em meio a turbilhões. O tempo estava passando e eu tentava elaborar um plano de trabalho que pudesse me ajudar a preencher as brechas que ainda ocorriam em meu cotidiano. Eu estava sentado dentro de um pequeno cômodo ao lado da casa do Pastor Matuzee, com alguns papéis na mão esperando a hora passar para entrevistar um homem que havia demonstrado interesse em me explicar alguns aspectos de sua tradição. Passando um pouco o horário do meio dia, uma mulher com quem eu havia conversado alguns dias antes, viu-me dentro do quarto – eu estava com a porta aberta – e resolveu passar para conversar um pouco e tirar algumas dúvidas a respeito do que eu estava fazendo lá. Suas perguntas não foram além disso e minhas respostas não passaram do usual: “estou aqui para entender melhor a cultura Hereros”. No entanto, um questionamento chamou minha atenção, na verdade, era mais uma dúvida, uma desconfiança. O diálogo se passou mais ou menos assim:

Mulher – Então, o que você está fazendo aqui mesmo? Pesquisador – Estou aqui para entender melhor a cultura Hereros e especificamente a tradição do Fogo Sagrado. Mulher – Hum, ok. Mas, e quando você voltar, o que você vai fazer com isso? Pesquisador – Terei que apresentar um trabalho na minha universidade sobre o que aprendi aqui. Terei que escrever sobre tudo isso e serei avaliado por algumas pessoas que dirão se meu trabalho ficou bom ou não. [a Mulher fica em silêncio, pensando por alguns segundos] Pesquisador – Mas, por que essas perguntas? Há algo que você queira saber? Mulher – Sim. Essas pessoas que irão te avaliar, elas já conhecem esse lugar, certo? Pesquisador – Como assim? Eles sabem que eu estou aqui mas eles nunca estiveram aqui. Mulher – Mas, se eles não sabem sobre o fogo dos Hereros, como eles poderão saber que você está dizendo a verdade? Pesquisador – Eles apenas sabem, eles irão ver minhas descrições e as fotos... 16

Mulher – [balançando a cabeça em sinal negativo] Mas, como eles vão acreditar em você sem nunca terem vindo aqui? Eles deveriam ter vindo primeiro para depois poder comparar os resultados. Havia pouco o que se falar e muito para se rir – realmente essas relações são irônicas. O problema é tão visível que, uma mulher que nunca havia ouvido falar de Antropologia, pode perceber que algo de perigoso ou talvez pretensioso demais ocorre neste trabalho. Afinal, o que qualifica um pesquisador como um intérprete fiel de uma sociedade, grupo ou espaço cultural? Se não existe um consenso em relação a possíveis respostas à essa pergunta, ao menos, não há dúvida do local onde a tradução final se dará, a escrita. Ela é o terreno onde as interpretações se dão, é onde as construções a respeito das verdades de um “outro” são possíveis de serem transmitidas e, por isso, é o local onde a etnografia está, como ressalta James Clifford17, do começo ao fim, imersa. A etnografia apenas poderá ser apreendida quando polida pelo exercício da escrita, pelo esforço de conjugar sob uma mesma estrutura as “insistentes vozes heteroglotas” que insistem em quebrar o “silêncio da oficina etnográfica”.18 Assim, escrever uma etnografia é mediar uma relação de poder, é criar, ajustar e transformar a realidade pesquisada ao mesmo tempo em que buscando uma verdade absoluta que não existe. Mas então, que verdade é essa que o pesquisador constrói? Para relembrar as palavras daquela mulher Hereros “como eles vão acreditar em você sem nunca terem vindo aqui?” e, mais exatamente, no que eles terão que acreditar? Se a escrita etnográfica é, tanto como a experiência de campo, um momento de construção e tradução e, se esses processos estão perpetuamente conectados às construções subjetivas isso se deve, sempre, a criação sui generis de uma verdade. A escrita não comprova a verdade antes, dá forma a uma verdade que só pode ser possível pelo uso de “poderosas ‘mentiras’ de exclusão e retórica”. Assim, qualquer texto etnográfico, “mesmo os melhores textos etnográficos – sérios, ficções verdadeiras – são sistemas, ou economias, da verdade.”19 Ainda assim, apesar dessa propriedade maleável e por vezes, insegura da escrita etnográfica, há certos aspectos que a subscrevem e a determinam, os quais, destaca James Clifford20, governarão a elaboração das “ficções etnográficas coerentes”:

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CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 2002:21. CLIFFORD 2002: 22. 19 CLIFFORD, James. “Introduction: partial truths.” 1986: 7. (LTA) 20 CLIFFORD 1986: 6. (LTA) 18

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A escrita etnográfica é determinada no mínimo de seis formas: (1) contextualmente (se origina e cria significativos meios sociais); (2) retoricamente (usa e é usada por convenções de expressão) (3) institucionalmente (se escreve de dentro, e contra, tradições específicas, disciplinas, auditórios); (4) genericamente (uma etnografia geralmente é distinguível de um romance ou um diário de viagem); (5) politicamente (a autoridade para representar realidades culturais não é dividida igualmente e é, por vezes, contestada); (6) historicamente (todas as convenções e construções acima estão em mudança).

O melhor que se pode fazer é deixar claros esses elementos determinantes e explicitar o fato de que, tudo o que será trabalhado, analisado e discutido neste trabalho está vinculado não só a experiência com o “outro” mas a experiência com o “self”. Assim, tal como um caçador Cree, da América do Norte, que foi requisitado a descrever seus modos de vida e, hesitante, duvidou que fosse capaz de dizer a verdade, é necessário ressaltar: “Não tenho certeza se posso dizer a verdade...eu apenas posso dizer o que sei.”21 Elaborados estes breves comentários posso introduzir melhor o trabalho que a seguir será exposto pois, agora, é possível entender as bases nas quais este trabalho etnográfico foi realizado, os elementos que acompanharam o pesquisador desde o primeiro dia em solo Africano, até a última página desta monografia.

Definição do objeto A pesquisa realizada concentrou-se em aspectos da vida religiosa dos moradores deste vilarejo Africano, no qual, foi possível perceber um interessante e vasto campo por onde diferentes símbolos sagrados transitam. Território esse, disputado por diferentes tipos de conhecimentos religiosos que concorrem entre si pela legitimidade do manuseio de cada um daqueles elementos. Observando as articulações de todas aquelas apropriações, foi possível perceber que os diferentes elementos tomados por aquelas comunidades nem sempre possuíam a mesma “origem”, ou seja, os símbolos adquiridos poderiam ser tanto de um repertório reconhecidamente cristão – oriundo dos tempos de colonização – como de um conjunto de tradições Africanas. Assim, os arranjos que poderiam ser elaborados estariam vinculados a dois repertórios principais e a um repertório marginal, de onde aqueles elementos são extraídos. O primeiro é 21

CLIFFORD 1986: 8. (LTA)

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de origem autóctone e caracteriza-se pelas crenças tradicionais que se afunilam sob o sistema do Fogo Sagrado de culto aos ancestrais; o segundo é de origem alóctone e se apresenta sob as bases do conhecimento cristão introduzido no território desde o século XIX. Há ainda um outro repertório presente nos limites deste território que, apesar de marginal, é igualmente conjugado dentro das diversas comunidades religiosas, tal seja, o repertório onde se encontram elementos ligados às práticas mágicas. Analisando as diferentes formas com que esses três repertórios foram elaborados por distintas comunidades no campo religioso em Okondjatu, é possível iniciar a demarcação e compreensão de algumas fronteiras entre um quadro e outro. Suas particularidades são muitas e são, todos, discursivamente opostos uns aos outros. Há apenas um fator com o qual seria possível defini-los indistintamente: todos se autodenominam cristãos; apesar da variedade de arranjos presentes em cada uma destas congregações, todas estão alicerçadas em uma mesma estrutura – a cristã. Inevitavelmente, fui levado a questionar os aspectos gerais de cada um desses complexos com o intuito de entender como aquelas articulações se davam. Enquanto me aprofundava no conhecimento das disposições gerais de cada tipo de conhecimento religioso, pude perceber alguns arranjos que possuíam certos atributos sincréticos e que estes, eram usados na própria definição das fronteiras de cada igreja. O centro da análise proposta aqui, é justamente desvendar como os discursos a respeito dessa amálgama de tradições podem contribuir para o esclarecimento dos limites das congregações religiosas existentes em Okondjatu, como que, cada uma dessas igrejas manipula o uso daqueles elementos, elaborando-os em um único sistema de fé fortificado pelas possibilidades sincréticas – possibilidades tanto positivas como negativas, ou seja, tanto sincréticas como anti-sincréticas. Valendo-me de um aparato teórico das discussões a respeito do sincretismo, procurarei definir cada uma das igrejas presentes em Okondjatu de acordo com suas estratégias diante daqueles repertórios iniciais, principalmente na relação mantida com as tradições autóctones pois, sendo todas aquelas congregações lideradas por nativos, este provou ser um ponto de importantes convergências. No sentido inverso, tem-se a possibilidade de compreender, a partir desta realidade empírica específica, os limites do próprio termo “sincretismo” pois, cada uma dessas igrejas, ao elaborar-se diante daqueles repertórios, ressalta distintos pontos a respeito de um conceito tão variavelmente estudado. Isto permitirá e exigirá a elaboração de um aparato teórico, ele 19

mesmo, híbrido. Uma tentativa de arranjar diferentes aspectos conceituais em um único instrumento – o qual, é uma construção erguida para servir aos propósitos deste trabalho; não se pretende, com tal produto, estabelecer os limites do uso do termo sincretismo. Tal como expresso no título deste trabalho, a Antropologia trará sua contribuição justamente na forma de encarar o objeto, na forma de manusear as matérias-primas deste estudo. Caracterizando-se pelo uso dos discursos nativos como aqueles que – isto procurarei comprovar – melhor podem definir os limites de um complexo religioso, erguendo, com suas argumentações, muros em torno de seus princípios de fé, hora abrindo brechas hora fechandoas para defender seus territórios. Assim, dividido em três capítulos, o trabalho procurará dar conta de uma realidade empírica a partir de um aporte teórico específico, esperando-se que, ao final, esta experiência etnográfica possa contribuir para o entendimento dos fenômenos sincréticos e para o entendimento de fenômenos religiosos, em geral. No primeiro capítulo, são discutidas as implicações do uso do sincretismo como um instrumento para auxiliar a compreensão das fronteiras entre um complexo religioso e outro. Para isso, foi necessária a elaboração de um instrumento amplo, com o qual fosse possível abarcar a imensa quantidade de reflexões a respeito do termo, para também com isso, poder abarcar os variados arranjos percebidos nas igrejas presentes em Okondjatu. No segundo capítulo, procurou-se familiarizar o leitor com algumas disposições inicias a respeito dos dois principais repertórios com os quais as sincretizações puderam ser elaborados. Assim, após tratar sobre a história dos Hereros e descrever as disposições gerais a respeito de Okondjatu, foram analisados e distinguidos os tipos de conhecimento religioso autóctone e alóctone, firmando assim, a base sobre a qual as análises seguintes serão realizadas. No terceiro capítulo, tentou-se definir os limites de cada uma das igrejas do território religioso de Okondjatu. A partir das análises teóricas feitas anteriormente, procurou-se situar os diferentes quadros religiosos, atentando para as articulações entre o cristianismo e as demais modalidades religiosas praticadas no local.

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CAPÍTULO I - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

“Naquele tempo nós não éramos como os Gregos e os Hebreus. Aquelas pessoas eram inteligentes e eu acredito que foi deus que os fez inteligente, porque tudo que eles faziam eles escreviam, eles escreviam, eles mantinham a história. Mas nós, Hereross, demoramos muito para começarmos a manter a história, a documentar a história. Nossos ancestrais apenas mantinham a história em suas mentes mas, se aquele que sabia certa história morresse, a história morria com ele. Sabe, nesse momento, quando a história se perdia, as pessoas começavam a cavar, e aqueles que estavam escavando a história a interpretavam da sua maneira. É daí que vem o problema.” Pastor Matuzee, 11.10.2006, Brasil.

Antes de iniciar a análise do material etnográfico, se faz necessário expor as linhas teóricas que conduzirão este trabalho; qual será a perspectiva escolhida para explicar os princípios lógicos percebidos nas relações inter-religiosas observadas. Relações que se dão quando do contato de diferentes complexos de fé, nas extremidades de sistemas religiosos distintos, nas fronteiras borradas da crença e da descrença; é preciso saber o que acontece quando culturas entram em contato, quando arranjos religiosos são modificados pela transformação do contexto histórico-social, por novas revelações da fé. Desde as primeiras décadas do século passado, entre os antropólogos do culturalismo norte-americano, o resultado destes encontros culturais passou a ser denominado sincretismo. Herskovits, tomando o termo de empréstimo de teólogos e historiadores, foi o primeiro a aproximar o termo aos debates antropológicos e desde seus primeiros escritos muito já foi debatido, criado e recriado. Nestes debates procurou-se identificar os momentos em que o uso do termo seria apropriado, procurou-se limita-lo a um certo tipo de contato, enquanto isso, novos termos eram usados – como será analisado no restante deste capítulo – na tentativa de significar tais contatos sem sacralizar um único termo. 21

A verdade é que, após quase um século de discussões e fracassadas tentativas para definir satisfatoriamente o termo, o que temos é uma vasta área de definições e outra igualmente vasta área de indefinições. Não se pretende alargar as áreas preenchidas e nem tão pouco preencher as que ainda se encontram infecundas – pelo menos não inteiramente. Buscase, isto sim, problematizar a questão e tentar aproximá-la dos debates atuais da antropologia, visando iluminar minhas próprias análises etnográficas e ajudar a elucidar questões ainda tão embaraçadas.

1.1 - Sincretismo: uma breve problematização O teólogo Kurt Rudolph22 lembra que entre as diversas definições da “natureza do sincretismo” a única coisa que é comum a todas é o acordo de que “sincretismo seria a expressão da dinâmica da religião.” Não é novidade o fato desse fenômeno causar divergências, afinal é preciso conceituar, é preciso dar significado – será? Desde crianças interpretamos e reinterpretamos, construímos estruturas básicas em nossos equipamentos cognitivos que vão tornando-se mais complexas no decorrer de nossa vida. Com nossa bagagem sócio-cultural criamos arranjos sempre lógicos para nós mesmos – seja sobre uma perspectiva de analogias e proximidades ou sobre uma plural, relacionando diferentes elementos com fins a alcançar um objetivo final – e muitas vezes ilógicos para aqueles que gostamos de chamar os “outros.” Diferentes acontecimentos, credos, objetos e teorias estão diante de nós e cabe a nós relacioná-los – ou não. Claro que isso não acontece fora do alcance de nossa sociedade, ou em termos foucaultianos, de nossa epistémê, afinal, o “homem é um produto social”, lembraria Peter Berger e Thomas Luckmann23. A socialização, e mais claramente, o pertencimento a algum tipo de organização sócio-cultural é a condição de possibilidades dos arranjos que poderemos elaborar. Dessa forma, para sincretizar é preciso relacionar de dentro de um contexto social específico elementos de uma socialização anterior com dois ou mais elementos advindos de um local diferente da realidade sócio-cultural ou mesmo de um novo complexo social.

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RUDOLPH, Kurt. “Syncretism – from theological invective to a concept in the study of religion.” 2005: 79 (LTA) 23 BERGER, Peter L; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. 1983: 87

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André Droogers24, diz que o sincretismo acontece quando “dois ou mais cenários de metáforas religiosas estão disponíveis aos crentes, que então podem combiná-las de várias formas.” Deixando de lado a questão de metáforas como condições para discursos religiosos, deve-se ressaltar, mais uma vez, a capacidade humana de combinar diferentes “pacotes conceituais” como pressuposto para criações sincréticas. Hendrik M. Vroom25, um Filósofo da Religião, ressalta a dinâmica dos complexos – e, porque não, processos? – religiosos ao dizer que “toda religião está imersa em um contínuo processo hermenêutico onde a herança religiosa transmitida é reinterpretada.” Essa reinterpretação é – para invocar Herskovits26 – o que possibilita o “diálogo entre o velho e o novo”, é o que permite, conforme Pierre Sanchis27, “uma convivência não explosiva de universos abstratamente contraditórios.” Mas afinal, reinterpretar faz parte de que processo? Será que estaria aí totalizado o conceito de sincretismo que tantos procuraram esclarecer? Creio que ainda não. Assim como outros termos, essa palavra é apenas mais uma definição do dialético processo de sincretizar. É o que acontece quando as religiões viajam e as culturas se encontram; adaptações são necessárias. Talvez, se o cristianismo tivesse resistido ao sincretismo, seus santos não teriam resistido ao confronto com os voduns, os ancestrais, os pajés e todo tipo de deidades presentes no complexo cultural de seus dominados. Não foi por nada que em 1963, no segundo ano do Concílio Vaticano Segundo (1962-65), a igreja Católica revisou suas práticas em vários pontos para torná-la compatível com as diferentes realidades culturais e sociais com que se confrontava. Ela reconheceu o que há muito tempo populações indígenas – e também algumas autoridades clericais – já haviam percebido, ou melhor, vivenciado, que fé e cultura são domínios diferentes da religião, pelo menos da religião cristã.28 Talvez seja possível ir ainda mais fundo na questão ao trazer para a discussão Plutarco, que, acredita-se, usou o termo pela primeira vez, e Durkheim, cuja importância para o estudo da religião é infindável. O historiador, biógrafo e filósofo grego Plutarco29, conforme

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DROOGERS, André. “Syncretism, power, play.” 2005: 219. (LTA) VROOM, Hendrik. “Syncretism and dialogue: A philosophical analysis.” 2005: 106. (LTA) 26 HERSKOVITS, Melville. Antropologia cultural, tomo II. 1973: 376. 27 SANCHIS, Pierre. “Para não dizer que não falei em sincretismo.” 1994: 7. 28 Conforme o artigo 395: “O Sagrado Concílio, retomando os ensinamentos do Concílio Vaticano I, declara que há ‘duas ordens de conhecimento’ distintas, a saber, a da fé e a da razão. Portanto a Igreja não pode absolutamente impedir que ‘as artes e disciplinas humanas usem de princípios e métodos próprios, cada uma em seu campo’. Por isso, ‘reconhecendo a justa liberdade’, afirma a legítima autonomia da cultura humana e particularmente das ciências.” In: FREDERICO, Vier Frei. Compêndio do vaticano II: constituições, decretos e declarações. 1999: 211. 29 FERRARI, Franco. “Plutarco: platonismo e tradição.” 2003: 151. 25

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André Droogers30, usou a palavra pela primeira vez para referir-se “aos habitantes de Creta que, quando diante de um inimigo em comum, esqueciam seus conflitos e juntavam suas forças”. Já Durkheim31, afirmou que a verdadeira função da religião não é nos fazer pensar, enriquecer nosso conhecimento, acrescentar às representações que devemos à ciência representações de uma outra origem e de um outro caráter, mas sim nos fazer agir, nos ajudar a viver. O fiel que se pôs em contato com seu deus não é apenas um homem que percebe verdades novas que o descrente ignora; é um homem que pode mais. Ele sente em si mais força, seja para suportar as dificuldades da existência, seja para vencê-las.

Ao juntar, então, a perspectiva de Plutarco com a de Durkheim talvez seja possível delinear alguns traços interessantes do processo sincrético. A religião, conforme Durkheim, é o que nos dá forças para “suportar as dificuldades da existência”. Enquanto o sincretismo, proposto por Plutarco, em síntese, é uma estratégia de sobrevivência. Assim sendo, não poderia o sincretismo ser uma estratégia humana para garantir a existência do seu complexo social, religioso e/ou cultural e assim vencer um inimigo comum a todos: a vida e suas intempéries? Parece haver um certo receio no uso da palavra sincretismo como uma estratégia de sobrevivência – mais uma vez: não se pretende resumir o termo apenas a esta possibilidade. Talvez seria necessário desprender o termo de seus significados pejorativos. A palavra sobrevivência traz consigo uma idéia de poder, de dominado e dominador, e a partir dessas linhas se poderia chegar facilmente a uma idéia etnocêntrica do processo. Pensar o sincretismo como se este fosse “uma máscara colonial para escapar à dominação [branca]”32 é restringi-lo apenas a uma estratégia política contra-hegemônica e dar-lhe uma conotação que nem sempre – note-se: nem sempre – é verdadeira: de que este seria um processo consciente; como se com papel e lápis na mão, os africanos trazidos como escravos ao Brasil, tivessem, há mais de quatro séculos, começado a sintetizar algumas formas de analogias, para que, assim, ao olharem para a estátua da Virgem Maria não se esquecessem de seus próprios santos – para exemplificar: Roger Bastide33 relaciona a Virgem Maria, no Brasil, com as africanas Yemanjá ou Oxum – e, dessa forma, conseguissem burlar o poder dominante. 34

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DROOGERS 2005: 223. (LTA) DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa. 2000: 459. 32 FERRETTI, Sergio. Repensando o sincretismo. 1995: 88. 33 BASTIDE, Roger. “Problems of religious syncretism.” 2005: 118. (LTA) 34 Não quero dizer, com isso, que não compreendo estas questões como importantes para o estudo em questão, apenas que não as considero possíveis de, sozinhas, prover uma explicação a todo o processo. Como veremos a 31

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Com todas essas possibilidades e receios de prender o termo a um conceito fixo o que permanece? Quando pensamos nessa dinâmica e nesses confrontos, o fazemos em qual nível das relações humanas? “Nós localizamos sincretismo na mente, na cultura ou na política?”35 O sincretismo está ligado a uma intuição cognitiva do ser humano, a um processo reinterpretativo historicamente “natural” da cultura, ou a uma estratégia para burlar o poder dominante e garantir a sobrevivência de um grupo? Robert Baird36, um historiador da religião, ao se colocar, como estamos agora, diante da imensidão de processos e conceitos relacionados ao sincretismo e a constatação – até hoje discutida por alguns teólogos – de que “todas religiões são sincréticas”, defende que “se é verdade que tais empréstimos, sondagens e influências no curso da história fazem parte de todo processo histórico e é tanto inevitável e universal, então, não há nenhuma razão em aplicar o termo sincretismo para tais fenômenos”. Baird afirma que é uma mera equivalência dizer que um fenômeno é sincrético ou “admitir que cada um [cristianismo, religiões misteriosas, hinduismo, etc] tem uma história e pode ser estudado historicamente.” Não se espera dar uma resposta única a este fenômeno, nem fazer aqui o cansativo trabalho de elaborar prerrogativas conceituais restritas para a análise do conceito e tampouco lhe dar uma definição abrangente. Deve-se pensar que proveito isso terá para os pesquisadores de tais fenômenos. Talvez, mais interessante e frutífero do que forçar o termo a um conceito, é pensar os fenômenos que são compreendidos como sincréticos e a partir desses diferentes olhares pensar suas relações e elaborar comparações. Difícil saber. Mesmo que fosse apropriado definir sincretismo em termos teóricos, como fazê-lo se ser “sincrético” não possui uma definição clara, ou pelo menos uma única resposta? Ulrich Berner37, Filósofo alemão, comenta a respeito disso que se o significado do conceito de “sincretismo” não está claramente definido, então – obviamente – é impossível estabelecer uma teoria do sincretismo. Uma definição por si mesma, entretanto, não seria suficiente: Se partirmos de uma perspectiva abrangente, vários tipos de “sincretismo” terão de ser distinguidos (...) se a definição de “sincretismo” é restrita, conceitos alternativos devem ser definidos perto do conceito de “sincretismo.” Um catálogo inteiro de conceitos seria requerido.

seguir, a questão da política dos contatos inter-religiosos – questões de poder e dominação – é uma parte essencial para a análise de processos sincréticos, mas, repito, não a única. 35 LEOPOLD, Anita M; JENSEN, Jeppe S (ed). Syncretism in religion: a reader. 2005: 5. (LTA) 36 BAIRD, Robert. “Syncretism and the history of religions.” 2005: 51. (LTA) 37 BERNER, Ulrich. “The concept of ‘syncretism’: an instrument of historical insight/discovery?” 2005: 296. (LTA)

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Diversos autores tentaram definir o termo “sincretismo” de uma forma “acadêmica”, “científica” e totalizante. A percepção de Baird sobre a desnecessidade do uso do termo nem sempre é de todo descartada. A aflição em não poder conceituar realmente perturba, no entanto, seria proveitoso pensar qual seria a vantagem de restringir o termo conceitualmente, o que seria sacrificado e que lucros isso traria? Pierre Sanchis lembra a desconfiança que Gladys Reichard colocava diante da possibilidade da construção de um termo guarda-chuva que pudesse acolher em seus limites toda a variedade de fenômenos descritos sobre totemismo: “Escreveu-se demais sobre o totemismo” dizia, em 1938 a aluna do físico-antropólogo-etnógrafo Franz Boas. Sanchis continua, recordando que Lévi-Strauss teria resolvido o problema da definição do totemismo, com uma definição que abrangeu a heterogeneidade conceitual do termo, ao universalizá-lo. Também muito se escreveu sobre sincretismo e universaliza-lo poderia ser uma opção possível e foi isso que Sanchis38 procurou fazer. Mesmo ciente de que outros conceitos deveriam ser colocados ao redor do seu núcleo universalizante, ele propõe que sincretismo “seria a tendência a utilizar relações apreendidas no mundo do outro para ressemantizar o seu próprio universo.” No entanto, pararei aqui, diante da variedade, sem propor-lhe prisões conceituais. Enfim, ao pensar em sincretismo, pode-se pensar em: negociação, interação, confronto,

transmissão,

mistura,

adaptação,

assimilação,

sondagem,

transposição,

identificação, simbiose, fusão, amálgama, alienação, dinamismo, confluência, interação, etc. E por mais complicado que seja ajustar esses termos a um conceito mais abrangente e geral, em nossas mentes, análises e descrições, não faltam e não faltarão palavras para caracterizar estes processos. Parece que sincréticos somos nós, “mentes acolhedoras” de termos por vezes tão distintos, que, como a irônica “boca acolhedora e voraz” de Eustenes, lembrada por Foucault39, só podiam mesmo se encontrar aqui: Era decerto improvável que as hemorróidas, as aranhas e as amóbatas viessem um dia se misturar sob os dentes de Eustenes: mas, afinal de contas, nessa boca acolhedora e voraz, tinham realmente como se alojar e encontrar o palácio de sua coexistência.

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38 39

SANCHIS 1994: 6-7. FOUCAULT, Michael. As Palavras e as Coisas. 2002: XI.

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Seria muito proveitoso aprofundar ainda um pouco mais algumas questões tratadas nessa breve introdução. Ao propor descrever um complexo processo inter-religioso é preciso ter a certeza de se ter trabalhado suficientemente em uma base teórica que garanta a plausibilidade do estudo proposto, para quem sabe assim, poder contribuir de alguma forma aos estudos realizados sobre esta temática. Para tanto, pretende-se chegar ainda mais perto do fenômeno sincrético, elucidando algumas das variáveis que se mostram mais pertinentes ao trabalho que será exposto a seguir e sob o qual estarão postas estas problematizações. Pois certamente, o estudo – mesmo que breve – de uma realidade religiosa contemporânea dentro de um sistema social africano, poderá facilmente trazer fatos novos e interessantes para os estudiosos dos processos religiosos em geral, o desafio, no entanto, como lembra Evans-Pritchard40, é “propor uma nova idéia.” Isso só poderá ser feito a partir de uma análise minuciosa dos aspectos etnográficos visualizados a partir de uma acurada lente teórica. Esta lente será, todavia, o enquadramento específico que usarei para perceber as realidades que nos próximos capítulos serão descritas. Não há uma única forma de perceber a lógica dos processos sincréticos, sincretismo “não é um termo determinado com um significado fixo, antes ele foi[/é] historicamente constituído e reconstituído”41 e, sendo a história uma linha contínua que permanecerá a limitar e expandir os pensamentos, estes significados serão continuamente reconstituídos. Assim, por mais rigorosa que possa ser a análise teórica aqui proposta, será impossível prender-lhe historicamente como a uma base paradigmática, aplicar-lhe abusivamente um “ismo” – estruturalismo, funcionalismo, construtivismo, etc – como no intento de universalizá-lo e dar-lhe a eternidade. No entanto, em desacordo com alguns estudiosos dos fenômenos religiosos, acredito que a tarefa de dedicar um trabalho inteiro à análise crítica de um processo como este, pode ainda contribuir para elucidar os estudos sobre contatos interreligiosos. O que será proposto, enfim, parte da pergunta que Anita Leopold42 fez em seu recente “Syncretism in Religion: A Reader”: “Nós localizamos sincretismo na mente, na cultura ou na política?” Mais do que optar por esta ou aquela perspectiva, parece interessante atribuir às três variáveis igual valor, pois, nas elaborações sincréticas é impossível perceber apenas a mente, 40

PRITCHARD, E. E. Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. 2005: 245. STEWART, Charles; SHAW, Rosalinda. “Introduction: problematizing syncretism.” 1994: 6. (LTA) 42 LEOPOLD 2005: 5. (LTA) 41

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a cultura, ou a política envolvida no processo, antes, uma força a outra, uma é resultado da outra. O que será defendido no restante deste capítulo é uma análise ampla do termo “sincretismo”, procurando percebe-lo tanto como uma (re)elaboração de uma estrutura existente como o desenvolvimento desta estrutura acarretando na criação de um novo complexo sócio-cultural. Tomando como base a linha bergersiana de que a sociedade é fruto da exteriorização da experiência humana e sabendo que “a experiência humana, ab initio, é uma exteriorização contínua,”43 percebe-se que a sociedade está, desta forma, em constante modificação. Neste mesmo movimento, as estruturas sociais, sejam estruturas religiosas, políticas, institucionais, econômicas, ou individuais, como partes integrantes da sociedade, estarão igualmente em constante transformação. Para aproximar ao tema central deste trabalho – o sincretismo religioso –, acredita-se que o encontro entre diferentes sistemas religiosos em um contexto único – seja ele um contexto social (um vilarejo africano ocupado por forças coloniais), institucional (uma igreja que possui membros e líderes que praticam também outras religiões), ou ainda um contexto individual (quando um indivíduo sozinho se põe a navegar por entre diferentes complexos religiosos) –, irá, a partir da nova experiência humana proporcionada por esta nova realidade social, transformar estes contextos religiosos, de forma a re-elaborar as antigas conexões dos significados. Ou seja: os indivíduos, diante de duas ou mais realidades religiosas distintas, elaboram-nas cognitivamente (sincretismo na mente) para dar-lhes sentido – seja este positivo ou não – e exteriorizam essa elaboração individual; nessa exteriorização, sabemos, os homens recriam sua própria realidade religiosa, projetando nela seus próprios significados, e acabam por objetivá-la, tornando-a uma realidade sui generis. Assim, os processos antes percebidos cognitivamente nos indivíduos se vêem de uma nova forma, como regras e costumes que dotam a vida humana de sentido (sincretismo na cultura); por fim, essas regras agora se voltam aos homens e os coagem. É neste processo de “regulamentação” que os indivíduos interiorizam as construções sociais dessa nova sociedade, e se vêem assim produtos de seu produto. No entanto, essa interiorização é controlada e influenciada pela contingência das práticas hegemônicas e anti-hegemônicas, pelo poder e pela resistência (sincretismo na política).

43

BERGER; LUCKMANN 1983: 142.

28

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1.2 - Sincretismo na mente Foram muitos os cientistas sociais que em algum momento de seus estudos, baseados nas novas descobertas das ciências biológicas, transpassaram suas análises sociais pelas lentes naturalistas/biológicas de estudiosos de suas épocas. Foi dessa forma que Lewis Henry Morgan, aproximando-se das idéias darwinianas sobre a luta pela existência, procurou descrever em seu Ancient Society (1877), os “estágios de progresso da sociedade humana,”44 inserindo uma grade evolucionista na análise de sociedades “primitivas” – que estariam num longo processo evolutivo que culminaria no que era a Europa e o “mundo civilizado”; e para citar outro exemplo, foi também assim que Victor Turner45, em seus últimos escritos, começou a aproximar seus estudos sobre ritual aos novos descobrimentos de sua época sobre o cérebro e a mente humana. Nos estudos sobre religião muito se tem trabalhado sobre as idéias ligadas ao papel das estruturas cognitivas na criação das situações religiosas, quais sejam: situações de devoção, prece, arrependimento, contato “sobrenatural”, etc. Mas a importância maior da ciência cognitiva para o estudo da religião, lembra o historiador da religião Luther H. Martin46, está no fato dela “oferecer explicações para os modos de transmissão e conservação empregados por aquelas construções particulares [as construções religiosas] e também para explicar os compromissos individuais para com ela.”

1.2.1 - Os espaços mentais Ora, pensar o sincretismo a partir de uma perspectiva cognitiva talvez seja exatamente procurar explicar os “compromissos individuais” na criação de um fenômeno híbrido. Assim, advindo da elaboração de conceitos lingüísticos, trabalha-se o sincretismo como um processo onde um indivíduo, conscientemente ou não, seleciona diferentes elementos de diferentes estruturas presentes em seu contexto social e as engloba em um único e novo espaço mental.

CASTRO, Celso. Evolucionismo cultural: textos de Morgan, Tylor e Frazer. 2005: 13. TURNER, Victor. “Body, brain and culture.” 1992. 46 Martin, Luther. “Religion and cognition.” 2005: 481. (LTA) 44 45

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A idéia de espaços mentais, forjada pela teoria lingüística de Gilles Fauconnier, talvez possa ajudar a esclarecer melhor a perspectiva cognitiva no processo das criações sincréticas. Fauconnier47 definiu espaços mentais como sendo representados como estruturados; quadros incrementáveis – ou seja, quadros com elementos (a, b, c,...) e relações criando-se entre eles (R1ab, R2a, R3cbf,...), sendo que novos elementos podem ser adicionados a eles e novas relações estabelecidas entre seus elementos.

Partindo desta definição, as criações sincréticas seriam cognitivamente elaboradas dentro destes espaços cognitivos. No entanto, deve-se que ter em mente que, como qualquer outro fenômeno, tais criações são realizadas dialeticamente, como resultado do choque entre os atores e o estoque da estrutura social e simbólica presente na sociedade – pensar o sincretismo cognitivamente, como veremos nos próprios capítulos, não significa pensar os indivíduos fora da sociedade, pois, como lembra Berger48, “a sociedade nos define” tanto quanto nós a definimos e ainda, “são os encontros proporcionados pela história que são o pano de fundo dos movimentos sincréticos.”49 Assim, as teorias cognitivas procuram ilustrar como nós, indivíduos, tratamos cognitivamente com um “duplo estoque de significado”; como os homens elaboram novos significados quando “naturalmente” confrontados com uma diferente estrutura social.50 Isso não se aplica apenas à religião ou ao fenômeno sincrético especificamente: a linguagem, a tradição, a política e outros sistemas que procuram fixar os significados51 e dar à cultura seu sistema de plausibilidade52 também incorrem neste movimento. É, então, diante dessas distintas realidades que os indivíduos sondam, misturam e elaboram novos espaços de interação religiosa.

1.2.2 - A normalidade do pensamento sincrético Uma das conseqüências mais imediatas no uso da perspectiva cognitiva ao estudo dos processos sincréticos é que ela pode “ajudar a explicar a ‘normalidade’ da imaginação

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Fauconnier, Gilles. Mental spaces: aspects of meaning construction in natural language. 1985: 16. (LTA) BERGER, Peter L. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. 1986: 144. 49 CASTRO, Josué T. “Os hibridismos religiosos entre os Hereros: análise de alguns exercícios sincréticos africanos em suas semelhanças com casos análogos na América latina.” 2006. 50 LEOPOLD 2005: 154-6. (LTA) 51 TURNER 1992: 98. (LTA) 52 BERGER, Peter L. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. 1985. p. 58. 48

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sincrética”, por vezes ainda entendida como um processo não coerente.53 É o que Martin tenta fazer ao refutar “a clássica idéia do sincretismo como uma ‘mistureba’ de religiões.” Leopold destaca que, ao se basear em estudos sobre o cérebro humano, Martin sugere que as formações sincréticas “são elaboradas por sistemas seletivos e combinatórios que não se (com)fundem ou misturam suas semânticas.”54 Afastados dessas conceituações que os definem como formações ilógicas, e dando-lhes esse aspecto biológico “normal”, pode-se afirmar que os “sincretismos, como todas representações culturais, são produtos culturais apenas como procedendo de mentes humanas.”55 Ou seja, a sociedade depende da liberdade dos homens para mais tarde prenderlhes à suas estruturas. Na visão sincrética-cognitiva é essa “natural liberdade criativa”56 do homem em reconhecer novos elementos e elaborá-los em novos espaços mentais o foco específico de análise. Assim, em um processo de “trial and error,”57 os indivíduos conseguem distinguir diferentes elementos, resistir ao caos e reestruturar as situações de conflito, estabelecendo uma ligação entre os significados do passado e do presente o que, nesse universo social plural, possibilita aos indivíduos transmitir suas tradições de novas maneiras, alterando a cultura e as regras que a mantêm58 no entanto sem perder seu passado. Esse processo, para invocar Marshal Sahlins59, é o que cria “a possibilidade do presente vir a transcender o passado e ao mesmo tempo lhe permanecer fiel.” A análise desses transmutáveis elementos de acordo com as teorias cognitivas poderá aprofundar ainda mais esta análise.

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Definir o sincretismo como um processo ilógico e não coerente traz a tona a relação, muitas vezes antagônica, de quem está fora – o etnógrafo observador – e de quem está dentro – o fiel – do complexo religioso. Na análise dos estudos sobre contato inter-religioso pode-se perceber que, para os primeiros, os processos sincréticos foram quase sempre considerados incoerentes. Hendrik Vromm diz em seu artigo “Syncretism and Dialogue: A Philosophical Analysis” publicado em “Syncretism in Religion: A Reader” que “sincretismo em primeira instância é a incorporação de credos incompatíveis de uma religião por outra. Ser incompatível não é o mesmo que ser contestado, porque incompatibilidade não é uma categoria psicológica ou antropológica, mas uma categoria lógica. Ninguém pode acreditar que a terra é plana e redonda simultaneamente.” (VROMM 2005: 104. Livre tradução e grifos do autor) Acredito que em seu discurso Vromm esqueceu de considerar que os indivíduos que “trabalham” nas construções sincréticas não vêm a outra religião da mesma forma como os fiéis da mesma. Assim, o que para um missionário cristão era incoerência, para um nativo Hereros era totalmente lógico. Os homens se apropriam do presente para reinterpretar um passado próprio, daí resultam as singularidades dos processos sincréticos e o que muitos ainda insistem em erroneamente chamar de cristianismo africano, latino-americano, asiático, etc. 54 LEOPOLD 2005: 259-60. (LTA) 55 MARTIN, Luther. “Syncretism, historicism and cognition.” 2005: 290. (LTA) 56 MCLEAN, Geoger F. “Persons, peoples and cultures: living together in a global age.” 2004: 170. (LTA) 57 LEOPOLD 2005: 260. (LTA) 58 MCLEAN, George F. “Cultural heritage and contemporary creativity.” 1994: 10. (LTA) 59 SAHLINS, Marshal. Ilhas de história. 2003: 189.

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1.2.3 - Elementos limítrofes Timothy Light, ao trabalhar seu conceito de Ortosincretismo – resumidamente, a idéia de que a ortodoxia do presente é fruto da mistura do passado –, elabora-o a partir de uma concepção cognitiva do fenômeno descrevendo “sincretismo” como um desenvolvimento natural humano. Em seu artigo Orthosyncretism: an account of melding in religion ele procura “descrever os mecanismos cognitivos que levam ao entendimento do sincretismo como parte inerente do comportamento religioso humano,”60 chamando a atenção mais à simples existência do fenômeno do que à taxionomia dessas misturas. Sua importante contribuição se dá na separação, no nível mais alto de observação abstrata, das três entidades cognitivas que para ele definem nosso conhecimento religioso: “(1) Símbolos; (2) Categorias nas quais estes símbolos estão arranjados; (3) Regras organizacionais que relacionam as categorias dos símbolos.”61 Um por um, será apropriado trabalhar esses pontos mais a fundo pois, no decorrer do trabalho, eles poderão ser esclarecedores para a análise e entendimento dos dados etnográficos. 1.2.3.1 - Os símbolos Os símbolos (1) da religião são exatamente aqueles aos quais prestamos reverência, aos quais clamamos na hora da angústia, aos quais pagamos promessas em troca de favores, nos quais encontramos paz, direção, etc. São eles que, num processo de conversão, fixam-se primeiro em nosso imaginário religioso, eles estão “à mostra”. São deuses, demônios, santos, ancestrais, espíritos, anjos, templos, cruzes, livros sagrados e todo tipo de elemento ligado a esse universo sagrado. São símbolos que unem e separam, e assim o fazem por não possuírem em suas mãos a habilidade de carregar significados intrínsecos singulares à suas imagens, por não poderem objetivar aos seus fiéis coisa alguma que não a simples imagem de um algo religioso. No entanto, os símbolos não são fracos elementos significativos como se poderia supor. Conforme Clifford Geertz eles tem um “poder peculiar [que] provém de sua suposta capacidade de identificar o fato com o valor no seu nível mais fundamental, de dar um sentido normativo abrangente àquilo que, de outra forma, seria apenas real.”62 Ora, os acontecimentos 60

LIGHT, Timothy. “Orthosyncretism: na account of melding in religion.” 2005: 325. (LTA) LIGHT 2005: 326. (LTA) 62 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1989: 94. 61

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da vida social são percebidos de maneiras distintas por cada indivíduo, e os valores dados a tais acontecimentos também possuem graus diferentes. Portanto, a transmissão destes símbolos de um grupo ao outro, ou mesmo de geração a geração não necessariamente implica na transmissão dos significados que aquele grupo ou indivíduo transmissor dava para aqueles símbolos. Esta é a questão que precisa ser frisada, esta é a fraqueza dos símbolos: “Aderentes de uma dada tradição religiosa podem freqüentemente ter diferentes interpretações sobre os símbolos os quais chamam a atenção do corpo [religioso] como um todo.”63 1.2.3.2 - As categorias Seguindo ainda as idéias de Light, os símbolos por si mesmo não conseguem significar nada, eles precisam ser categorizados e, assim, eles passam a possuir algum significado apenas a partir do momento em que são arranjados em diferentes categorias (2); apenas quando essas categorias forem definidas é que os símbolos passarão a significar algo real para os indivíduos. No entanto, estes significados não estão objetivamente claros aos indivíduos como os símbolos, que são a “materialização” daqueles significados; os símbolos são percebidos mais facilmente que os significados. Podemos rapidamente perceber a existência dos seres sobrenaturais quando diante de um determinado contexto religioso. Apreender, no entanto, os significados que naquele contexto são colocados sobre aqueles seres é um processo muito mais complicado, que requer mais do que alguns minutos de contato áudio-visual.64 Light defende que, em um processo de mudança religiosa, seja pelo aprendizado – como ocorre com uma criança – ou pelo contato com outros complexos religiosos – como ocorreu com tantas sociedades indígenas quando missionários chegaram aos seus territórios –, “todo esforço será feito para manter os mesmos símbolos religiosos [deuses, santos, ancestrais, templos, sacerdotes, rituais de iniciação, bíblia, etc] e seus arranjos entre as diferentes categorias [agentes sobrenaturais, espíritos intermediários, especialistas religiosos, rituais em geral, livros sagrados, etc].”65 Caso isto não seja possível – o que em termos gerais, em grupos colonizados, não o era – novas significações terão de ser dadas, talvez novas

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LIGHT 2005: 326. (LTA) Acredito que esse é o grande desafio do pesquisador da religião. Perceber os significados dados aos símbolos religiosos do grupo pesquisado, perceber as conexões entre uma categoria e outra e as regras que regem aquele sistema – para usar uma terminologia cognitiva – específico. 65 LIGHT 2005: 341. (LTA) 64

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categorias serão admitidas e ainda muito provavelmente as antigas hierarquias (regras que organizam os símbolos e as categorias) modificadas. 1.2.3.3 - Os significados Parece ser interessante abrir um breve parêntese nesta discussão para pensar rapidamente a criação de significados, o “dar significado a”. Como dito anteriormente, esse é um processo que nem sempre tomamos conta de como ele acontece. Sabemos que acontece, estamos continuamente atribuindo significados a objetos, pessoas, processos, etc. Dar significado é uma ação natural do comportamento humano. Como visto no início, para Berger e Luckmann os significados são projetados na realidade a partir do processo de exteriorização humana,66 e ainda com Berger, numa linha durkheimiana, significado é também o que a religião provê à vida humana.67 Porém mais do que pensar os papéis que os significados cumprem na vida humana se faz necessário refletir onde exatamente estão os significados, em que “compartimento” da vida humana eles se encontram, como se manifestam? Clifford Geertz, ao definir o problema religioso com a pergunta “O que falamos quando falamos de religião?” responde que “em grande parte, certamente, o que falamos é ‘significado’.”68 Aí está o lugar privilegiado do significado, ele deve ser expressado; significar é praticar; falar é praticar tanto quanto agir dessa ou daquela maneira, vestir essa ou aquela roupa, ouvir este ou aquele estilo de música. Foucault69 lembraria que todas nossas atitudes querem dizer alguma coisa: Enfim, na superfície de projeção da linguagem, as condutas do homem aparecem como querendo dizer alguma coisa; seus gestos, até em seus mecanismos involuntários e até em seus malogros, têm um sentido; e tudo o que ele deposita em torno de si, em matéria de objetos, de ritos, de hábitos, de discurso toda a esteira de rastros que deixa atrás de si constitui um conjunto coerente e um sistema de signos.

Tudo em nossa vida significa. Para Turner, significar, “em sua simples definição léxica, é ter em mente, ter uma idéia, pretender,...’ter uma opinião.’ Amplamente falando, um ‘significado’ é ‘o que pretende ser, ou de fato é, significado, indicado, referido a, ou entendido.”70 Ao significar definimos uma posição. Para Turner, no entanto, essa 66

BERGER; LUCKMANN 1983: 142. BERGER 1985: 39 68 GEERTZ, Clifford. “Shifting aims, moving targets: on the anthropology of religion.” 2005. (LTA) 69 FOUCAULT 2002: 494. 70 TURNER 1992: 95. (LTA) 67

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compreensão só pode ser apreendida de forma retrospectiva; damos significado ao que já passou e ao que já existe. Podemos, é claro – para citar mais uma vez Tuner –, “fazer julgamentos, tanto ‘chutados’ quanto considerados, sobre o significado de eventos contemporâneos, mas todo tipo de julgamento é necessariamente provisório, e relativo ao momento no qual ele é feito.”71 Assim, a transmissão de novos significados sagrados em um processo de mudança religiosa não se dá como se os símbolos, suas devidas categorizações e as regras que os unem, fossem entregues dentro de pequenos pacotes conceituais que, então, sem nenhuma modificação – “contaminação” como muitos clérigos e líderes religiosos preferem falar – seriam incluídos em uma nova realidade social e passariam a ser usufruídos por uma nova e distinta sociedade. Pelo contrário, os significados do presente – para invocar Marshal Sahlins – são construídos com os significados do passado, “nada pode garantir que sujeitos inteligentes e motivados, com interesses e biografias sociais diversas, utilizarão as categorias existentes das maneiras prescritas.”72 1.2.3.4 - As regras Retornando aos pontos de Light sobre nosso conhecimento religioso, temos os símbolos (1), as categorias em que eles estão arranjados (2) e, por fim, as regras que relacionam as categorias com os símbolos (3). Uma mudança nas categorias (2) e nas regras (3) é o que realmente caracterizará uma verdadeira mudança nas idéias religiosas de um indivíduo, e serão as regras (3), que organizarão a disposição das categorias e dos símbolos e que marcarão o que virá a ser o mais sério entendimento desse novo momento. Ora, as regras são exatamente a lógica por trás dos acontecimentos, é o que separa as categorias, é o que dá razão aos fiéis, é o que liga os símbolos às categorias e o que hierarquiza as diferentes categorias. As regras, no entanto, nunca estão fixas – o que pode realmente estar fixo? Elas são redes que se intercomunicam e estão em constante reconfiguração e expansão, nunca cessam de trabalhar, ligar, desligar, aproximar e afastar, elas acompanham o “fluxo da vida.” Podemos comparar essas regras a nossa própria consciência – já que esse capítulo se presta justamente a analisar esse tipo de problema – que,

71 72

TURNER 1992: 98. (LTA) SAHLINS 2003: 7; 180; 192.

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conforme Owen Flanagan “parece constantemente em fluxo...nós estamos sempre em um novo estado mental.”73

1.2.4 - O “Princípio da Integridade Cognitiva” Por fim, uma última contribuição a esse aporte cognitivo do sincretismo é o que Light chamou de “Princípio da Integridade Cognitiva” que parte da idéia de que os seres humanos se consideram como sendo “um todo integrado”: “Indivíduos e grupos vêem a si mesmos como um todo integrado [e] não como pacotes de contradição e mistura caótica.” Assim é que, um indivíduo que tenha passado por um processo de transformação religiosa reconhecerá sua história como um processo de aprendizagem e não como um processo cheio de rupturas e brechas. Mesmo aqueles que admitam terem passado por uma profunda conversão religiosa, procurarão recontar sua história dotando-a de lógica e conectando cada transformação ocorrida com as peças do passado. Na perspectiva cognitiva, pensar que a imaginação religiosa sincrética é dividida em compartimentos que em diferentes momentos vão sendo acionados – compartimento africano, compartimento cristão, compartimento mágico, etc – é no mínimo ingênuo. O pensamento religioso é um todo individual; o que ocorre – e que acredito ser o que confunde mais facilmente um desavisado observador –, é que as regras que percorrem todo o sistema religioso humano prescrevem certas atitudes a despeito de outras em certos momentos, enquanto em outras situações essas exigências poderão ser invertidas. O que ocorre é uma reação lógica, orientada por uma certa “etiqueta” no tratamento com o sagrado. Não que um estado esteja inconsciente enquanto o outro está sendo usado, ou que o indivíduo possua duas personalidades, simplesmente seu aparato religioso é amplo o suficiente para peregrinar por entre símbolos que, para um observador, não deveriam se misturar – como por exemplo: símbolos Hereross, cristãos e mágicos – mas que, para o observado – o “homem da fé” –, não são percebidos como categorias diferentes e são, todos, símbolos sagrados. Os fiéis, ditos sincréticos, têm, assim, suas fronteiras religiosas alargadas. *** Antes de dar seqüência às próximas seções acredito ser necessário destacar algumas precauções necessárias para o entendimento dos mesmos. Como o primeiro, eles fazem parte 73

FLANAGAN, Owen J. Consciousness reconsidered. 1998: 159. (LTA)

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integrante do que estou chamando de “análise ampla do sincretismo”, no entanto eles devem ser vistos com cuidado para analisar questões tais como os movimentos de fé individual, ou seja, quando um indivíduo, sozinho, se põe a navegar por entre as redes religiosas, elaborando suas próprias conexões e correlações sem o intento de agregar ao redor de si um certo número de fiéis. Nestes casos, me parece não haver um intuito de recriar uma estrutura cultural para que esta venha mais tarde a constranger um certo grupo de pessoas. Pelo contrário, o que parece ocorrer é uma tentativa de fugir de compromissos deste tipo para criar uma estrutura que é limitada pela própria existência daquele indivíduo. Tal estudo, no entanto, mereceria uma reflexão mais aprofundada para que se pudesse sugerir algo mais que estas simples observações. Como este não é o foco do presente trabalho, limita-se à observação de que estas questões podem não se encaixar inteiramente nas estruturas que serão erguidas a seguir. ***

1.3 - Sincretismo na cultura Para pensar o papel da cultura nas formações sincréticas se faz necessário tentar definir o que será entendido aqui como cultura. Uma definição inicial – e ainda muito precária – diria que cultura é um sistema de regras, tradições e costumes que limitam, caracterizam e sustentam a ação de um grupo social específico, de uma certa quantidade de indivíduos, que se reconhecem como sendo parte de um único sistema que, de alguma forma, os une. Seria possível simplifica-la com as palavras de Geertz74, ao distinguir uma das formas mais usuais de caracteriza-la, o “estilo de vida de um povo”, ou seja, reconhece-se que as ilhas, as tribos, as comunidades, as nações, as civilizações...logo as classes, as regiões, os grupos étnicos, as minorias, os jovens (na África do Sul ainda as raças, na Índia as castas)...teriam culturas: formas de fazer as coisas que eram distintas e características de uma pessoa.

Mas se parasse por aqui, eu veria minha iniciativa de caracterizar um certo sistema sincrético frustrada. Muitos poderiam, a partir dessas incompletas definições, ser tentados a pensar a cultura de uma forma pura, imutável e com uma lógica própria a ela mesma, que se

74

GEERTZ, Clifford. Tras los hechos. 1995: 51. (LTA)

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estenderia indiscriminadamente por sobre todos os indivíduos de um grupo, constrangendo-os da mesma forma e com a mesma intensidade. Ela teria que ser admitida com um certo ar de sagrada, como a criadora de todas a coisas, criadora dos homens e da forma como estes se relacionam uns com os outros e com a natureza; como toda poderosa – o que me deixaria pelo menos quase um século atrasado.75

1.3.1 - As noções de cultura: a questão da pureza Uma questão – entre tantas outras – que deve ser devidamente elaborada para se trabalhar as engrenagens culturais dos processos sincréticos é o fato de que os aportes teóricos e práticos dados ao estudo das culturas, por muitas vezes ocultavam peças importantes de interação cultural. Estas inclinações restritas das noções de cultura, dizia James Clifford “às vezes reprimiam ativamente muitos processos impuros, ingovernáveis, de invenção e supervivências coletivas.”76 Os processos reprimidos eram justamente aqueles nos quais as transformações sincréticas se dariam. Claro que, neste trabalho, se fosse usar essa definição, não seria o caso de considerar como impuros ou ingovernáveis os processos sincréticos mas, pelo contrário, admiti-los como resultados naturais de uma certa continuidade cultural. O conceito de cultura foi, por muito tempo, entendido como um objeto rígido e fechado que, sucumbindo às “impurezas” coloniais, perdeu sua mácula inicial – para retratar o exemplo dos choques culturais proporcionados pelas colônias européias; acreditava-se nela como possuindo um passado realmente verdadeiro. Na antropologia tal fato pôde ser percebido, por exemplo, no uso do “presente etnográfico” nos escritos etnográficos. Os antropólogos – majoritariamente –, após meses pesquisando uma sociedade “primitiva” – para usar também a terminologia da época – procuravam, em suas descrições, discutir “os iroqueses ou os havaianos como eles eram no tempo da descoberta européia – ou seja, quando eles eram ‘verdadeiramente’ iroqueses e havaianos.”77 Ora, em tempos “mais do que modernos”, sabe-se que tais afirmações carregam certos conflitos; sabemos que as idéias relacionadas à pureza de um certo grupo social, de uma certa tradição, cultura ou costume, são na verdade mitos. Sabemos também que as tradições são

75

Esta questão foi melhor trabalhada em meu artigo “Antropologia: demarcando novas fronteiras” publicado na revista Conversas & Controversas do departamento de Ciências Sociais da PUC/RS em Maio de 2006. 76 CLIFFORD, James. Itinerarios transculturales. 1999: 13. (LTA) 77 SAHLINS, Marshal. Sociedade tribais. 1983: 12.

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inventadas78 e que as culturas são constantemente alteradas pela ação humana nas linhas impetuosas da história.79 Tomar consciência disso é um passo importante para perceber a validade dos estudos sobre o sincretismo que, ainda hoje, parecem fazer sombra àquelas ultrapassadas concepções de pureza cultural. São essas supostas sombras que fazem com que o uso do termo “sincretismo” como um instrumento heurístico ainda seja visto com um certo desprezo por muitos estudiosos. Isto ocorre justamente pela palavra invocar, para alguns – como salienta Charles Stewart e Rosalind Shaw em seu Syncretism/Anti-Syncretism –, “a existência de uma ‘pureza’ ou ‘autenticidade’ em contraste com a qual ele é definido.”80 Ou seja, pensa-se do sincretismo como sendo a poluição, e mesmo o processo de aculturação de uma sociedade antes em um estado puro e intocável.81

1.3.2 - Formação dos fenômenos culturais Sincretismo, como qualquer outro fenômeno cultural é uma formação histórica e está em constante mudança. James Clifford82, ao lembrar o que o etnólogo James Boon afirmou sobre a cultura balinesa, elucida esta questão, deixando claro que as estruturas culturais são processos e não instituições pré-estabelecidas no universo sócio-cultural de um território: O que comumente se denomina cultura balinesa é uma invenção de múltiplos autores, uma formação histórica, uma promulgação, uma construção política, um paradigma em transformação, uma tradução contínua, um emblema, uma marca, uma negociação sem consenso de identidades contrastantes e muitas outras coisas

Então, a cultura é um processo contínuo; continuará a influir sobre a história humana, porém sendo constantemente transformada por aqueles a quem coage e os quais a objetivam. A cultura está limitada à ação dos indivíduos – sabemos que em sociedades globalizadas tal fenômeno torna a “cultura” um termo muito escorregadio e em constante fragmentação, sendo que não se pode mais caracterizar um grande centro urbano como pertencendo a uma única cultura que os engloba; enquanto que em sociedades ainda fora de um “mercado mundial”, ou seja, comunidades com pouco ou nenhum contato com outras sociedades, esta realidade 78

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence(org.). A invenção das tradições. 1997. SAHLINS 2003: 7. 80 SHAW; STEWART. 1994: 2. (LTA) 81 Tais concepções não são mais aceitáveis e este como tantos outros trabalhos, procurará também mostrar isto. 82 CLIFFORD 1999: 38. (LTA) 79

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cultural se modifica de forma menos acentuada e de maneira mais lenta, pois, para como salienta Victor Turner83, “as diferenças de ‘situação’ e de prestígio nas sociedades pré-letradas só permitem pequeno alcance para a liberdade e a escolha individuais”. Mas, como não se pretende aqui pregar um certo ontologismo – homens como deuses supremos, criadores porém não criados –, admite-se que a cultura é, pela sua natureza mutável, “sem dúvida engendrada por indivíduos, mas mais durável do que qualquer um deles.”84

1.3.3 - Cultura objetivada Mas se ela não é pura, invariável e muito menos regida por forças sobrenaturais, cabe pensar sua origem, seus mecanismos e limites. A cultura, como instrumento para pensar partes dos processos sincréticos, sem voltas, coroações, e significações tautológicas, – e certamente correndo o risco de deixar muitas questões de fora – é o “registro objetivo do sentimento desenvolvido,”85 ou seja, a objetivação sui generis da exteriorização humana. Assim, para invocar Berger ainda mais uma vez a cultura é objetiva por se defrontar ao homem como um conjunto de objetos do mundo real existente fora de sua consciência. A cultura está lá. Mas a cultura também é objetiva porque pode ser experimentada e apreendida, por assim dizer, em companhia. A cultura lá está à disposição de qualquer um. O que significa que os objetos da cultura (repetimos, os materiais e os não-materiais) podem ser compartilhados com os outros.86

Pensar as formas nas quais a cultura se vê objetivada e alienada do pensamento individual – já que ela se confronta ao homem como um conjunto de objetos do mundo real que ele não percebe como criação sua87 – é pensar exatamente naquelas formas que aos homens muitas vezes parecem estranhas, que em diferentes situações lhes coube dotar de uma certa superioridade “espiritual”, e até mesmo chamá-las de “dupla-consciência”, da qual possuem pouca ou nenhuma consciência de suas origens. Assim, um poeta dirá não saber como cria suas linhas tão melódicas e um pintor poderá ser quase um mágico que com alguns traços em uma tela pode mostrar a verdade do homem. Mas um discurso esquematizado sob

83

TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. 1974: 158. LÉVI-STRAUSS, Claude. O olhar distanciado. 1986: 54. 85 LANGER, Susanne K. “Civilização científica e crise cultural.” 1971: 99. 86 BERGER 1985: 23. 87 BERGER 1985: 97. 84

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certa vertente ideológica, também, ao ser expresso, é objetivado e poderá também ser percebido como uma construção cultural. Nesse sentido, cultura pode se referir a qualquer coisa que nós podemos analisar como uma linguagem (incluindo sonhos, convenções de arte visual, ou estruturas cognitivas universais), ler como um texto cultural (incluindo materiais artísticos, formas de entretenimento, ou dramas sociais como revoluções), ou entender como um discurso (incluindo sistemas de lei e medicina, práticas sexuais, ou questões sobre colonialismo).88

Ora, o que são linguagens, textos culturais e discursos, senão exatamente estruturas que “estão lá” e que “lá estão a disposição de qualquer um”? Elas podem ser apreendidas; elas se confrontam e limitam os homens no que podem ou não fazer; elas dão aos homens impressões de familiaridade e exotismo. São essas as estruturas que, quando do contato entre diferentes povos, foram primeiramente estranhadas, discriminadas ou valorizadas. E eis aí o valor que esta abordagem traz à análise de certos fenômenos ditos sincréticos, é preciso discriminar que elementos estão em jogo para que os indivíduos possam re-elaborar seus repertórios. Assim, sabendo da dificuldade em se falar de uma única cultura em um mundo tão fragmentado, ela deverá ser aqui considerada como todo e qualquer sistema integrador – religião, ideologias políticas, costumes familiares, tradições nacionais, etc. Os elementos que estarão em jogo, disponíveis aos indivíduos, estão dentro destes sistemas; no jogo sincrético, a cultura cumpre seu papel como doadora de símbolos.

1.3.4 - Caráter ambíguo da cultura Na seção anterior foi lembrado que os homens elaboram cognitivamente apenas os elementos que estão objetivados na sua realidade (materiais e não-materiais), que fazem parte de sua vida social. Ora, o que está objetivado nas diferentes realidades humanas são exatamente as culturas, os costumes e as tradições e, assim, deve-se também destacar que a cultura existe e pode ser vista como estruturada apenas porque produzida pelos indivíduos que irá constranger. Ou seja, a cultura deve ser vista como um processo dialético: Ela é tanto criadora dos homens quanto criada por eles.

88

HULSETHER, Mark. “Religion and Culture.” 2005: 489. (LTA)

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Nesse sentido, e na mesma linha das idéias de Berger, Zygmunt Bauman, na introdução da reedição, 30 anos depois, do seu Culture as Praxis nos lembra com clareza esse caráter ambíguo da cultura89: A ambigüidade que realmente importa, a ambivalência percebida, o fundamento genuíno onde a habilidade cognitiva de conceber os hábitos humanos como o “mundo da cultura” descansa, é a ambivalência entre “criatividade” e “regulação normativa”. As duas idéias não podem mais estar separadas, antes as duas são – e devem permanecer – presentes na idéia composta da cultura. “Cultura” é tanto sobre inventar quanto preservar; sobre descontinuidade como sobre continuidade; sobre novidade como sobre tradição, sobre rotina como sobre quebra de padrões; sobre obedecer a normas como sobre transgredi-las; sobre o singular como sobre o regular; sobre mudança como sobre monotonia e reprodução; sobre o inesperado como sobre o previsível.

É essa natural habilidade dialética, conflitiva e mutável da cultura que se faz necessário ter em conta para que o fenômeno do sincretismo possa ser enfrentado. O “mundo da cultura” é um mundo em aberto, é um mundo inventado, ou antes constantemente repensado. Há momentos em que este mundo é percebido como mais ou menos regulado, regido por uma certa lógica alienada aos indivíduos e é realmente isso que ele deve fazer. Este mundo deve preservar os significados que os indivíduos exteriorizaram em suas estruturas e assim mantê-los, regulando o mundo dos homens até que estes se vejam em meio ao caos e se coloquem novamente a reordená-lo. Assim, a cultura funciona “como uma síntese de estabilidade e mudança, de passado e presente, de diacronia e sincronia.”90 É possível definir, pensando nessa síntese, dois componentes necessários para o entendimento do sincretismo. As culturas – os sistemas integradores comentados acima – mudam apenas quando suas estruturas normativas são confrontadas – não se está pensando necessariamente em um momento belicoso – por novos acontecimentos ou mesmo por novas estruturas normativas – como ocorre quando do contato entre diferentes grupos sociais –, sua estabilidade depende da forma como aqueles sistemas se colocarão diante dos novos fatos sociais e como serão reorganizadas as categorias em contato. Assim, uma abordagem interessante para entender os dados etnográficos que serão trabalhados nos próximos capítulos, seria a de separar esses dois momentos contínuos das construções culturais, ou seja, trabalhar sumariamente e separadamente os momentos de ruptura e reordenação (estabilidade) cultural, procurando esclarecer o papel das estruturas culturais naqueles processos específicos de transformação religiosa. 89 90

ZYGMUNT, Bauman. Culture as práxis. 2000: XIV. (LTA) SAHLINS 2003: 180.

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Marshal Sahlins propõe, em seu estudo sobre a relação entre havaianos e ingleses, o termo mitopráxis, supondo uma continuidade do passado no próprio desenrolar do presente, na ação. Da mesma forma, ao falar de ruptura e estabilidade cultural, convém, neste caso, pensar que a estabilidade do passado no presente, onde o passado é modificado, não deve ser considerado como uma nova estrutura. As estruturas são históricas e, por isso, cada reavaliação de certos símbolos e significados é antes a manutenção de um sistema e não necessariamente a criação de um novo – pode-se manter o sistema religioso de um fiel ao amplia-lo, no entanto um novo sistema religioso poderá ser criado caso este fiel se perceba legitimado para dar início a uma igreja, seita, religião ou filosofia de vida a qual não existia anteriormente. 1.3.4.1 - Ruptura Os momentos de ruptura do passado – momento muito constante em nossas sociedades globais e não tão freqüente em grupos reclusos – seriam os momentos em que os homens se percebem confrontados com uma estrutura, um evento ou/e um símbolo o qual desconhecem e por isso não podem naturalmente dar-lhes significados; é o momento em que os sistemas culturais de significado, nossos “equipamentos para viver”91 se vêem confrontados com novas formas comunicativas, religiosas, sociais, políticas, etc; é o momento onde as antigas significações são usadas para tentar significar novos símbolos, novas estruturas, novas hierarquias. Este é o ponto que, para o entendimento do sincretismo, deve ser exposto: a ruptura se dá quando se percebe que as antigas significações não são suficientes para explicar os novos acontecimentos. Isto nem sempre ocorre, como se poderia supor, de maneira trágica, caótica ou aterrorizante, de fato, muitas vezes, esses momentos são vividos e resolvidos com muita normalidade. Aprender uma nova língua, por exemplo, é um processo de ruptura, assim como aprender um novo significado religioso, ou tentar entender as atitudes políticas de certo indivíduo, a forma como isto ocorrerá – passiva ou subversivamente – dependerá de como os diversos agentes nestas situações conduzirão suas ações. Assim, as rupturas ocorrem “quando eventos e fenômenos não podem ser interpretados apelando para as estruturas sociais e simbólicas existentes”92 e os indivíduos se vêem em um momento intermédio, procurando reavaliar os novos acontecimentos, procurando dar-lhes 91 92

Termo cunhado por Kenneth Burke (1941) e citado por Clifford Geertz (2005: 6). DROOGERS, André. Joana’s story: syncretism at the actor’s level.” 2001: 147. (LTA)

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sentido. A história humana é uma história de avanço em meio à estes momentos liminares e isto está na base de toda construção cultural, desde as mais simples até as mais complexas sociedades. A ruptura é o momento da troca, da convergência, das adaptações, dos sincretismos, das reavaliações. No entanto isto não deveria sugerir, nem mesmo ao mais crítico dos estudiosos, que este é um momento carente de lógica e coerência. Os antropólogos André Droogers e Sidney Greenfield, trabalhando também com conceitos sobre sincretismo, lembram que “os seres humanos são vistos...como equipados para produzir uma cultura que combina continuidade e ruptura, interpretação e reinterpretação, tradição e inovação...eles podem conviver com dicotomias e percebê-las.”93 Parece então, que se pode supor, que os processos de ruptura estão na base das criações sincréticas. Isso pode ser reforçado com as palavras do teólogo Kurt Rudolph, para quem “é o ‘encontro’, o ‘contato’ incluindo ainda a ‘confrontação,’ que são os pré-requisitos universais e os princípios práticos do sincretismo.”94 1.3.4.2 - Reordenação (estabilidade) cultural Suzanne Langer, nas palavras de Geertz95, afirma que “os homens podem se adaptar de alguma forma a tudo que sua imaginação pode classificar; mas ele não pode lidar com o Caos.” Caos aqui poderá também ser entendido como um momento de ruptura que deve ser estabilizado. Esse “deve”, no entanto, se aproxima menos de um desejo inerente aos homens do que ao curso natural da atividade humana. Assim, estabilidade é o que procuramos fazer ao reavaliar certos acontecimentos, símbolos e significados. Os homens não querem conviver no “caos”, não gostamos de não entender o que se passa, de não entender o que nos falam, o que significa certo objeto. O homem pode produzir uma cultura que combine “continuidade e ruptura, interpretação e reinterpretação, tradição e inovação,” apenas se essas dicotomias em algum momento se tornarem familiares, percebidas, regidas por certas regras. A partir deste momento, as dicotomias serão apenas percebidas como tais por observadores estranhos àquele contexto particular. Quando diante de um processo que desconhecem, os homens procurarão dar um certo sentido aos aspectos estranhos, procurarão resolver as rupturas e ordena-las em seus 93

GREENFIELD, Sidney; DROOGERS, André. “Recovering and reconstructing syncretism.” 2001. (LTA) RUDOLPH 2005: 80 (LTA) 95 GEERTZ 2005. (LTA) 94

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repertórios sócio-culturais. É o que as crianças procuram fazer quando estão aprendendo a falar e é também o que os antropólogos procuram fazer durante seus trabalhos de campo. De fato, essa busca por estabilidade cultural se parece muito com aquele movimento tão conhecido entre os etnógrafos de “transformar o exótico em familiar.” É tornar entendível uma certa atitude, um certo objeto ou ritual. Nos processos sincréticos, este é o momento em que certo símbolo desconhecido passa a ser entendido, deixa de ser estranho e passa a ser “reconhecido como.” Este “reconhecer como” é um processo significativo, influenciado pelos regimes culturais, mas estabelecido por uma certa “criatividade idiossincrática (‘idiossincrética’...)”96 individual na medida em que permitida por aquele mesmo regime. Ou seja, os sentidos não serão como alimentos enlatados distribuídos e consumidos por todos da mesma forma, antes, eles serão resultados da particularidade da ação humana. A reordenação cultural é uma forma de legitimar certos padrões culturais e de tornalos aceitos em uma nova estrutura sócio-cultural – ou cognitiva/individual. É isso que procuravam fazer os missionários liberais engajados na transmissão do cristianismo a partir da reconfiguração de certos aspectos “tradicionais” africanos97, ameríndios98, chineses99, etc. Isto também é o que indivíduos engajados em uma busca religiosa particular100 procuram fazer para sustentar sua fé em coisas que, para um observador, poderiam ser contrastantes. Não se deve supor, a partir disto, que a reordenação cultural ocorra apenas com uma estrutura que se viu fragilizada durante o contato, como se as demais construções culturais envolvidas no “confronto” não fossem igualmente atingidas por um momento de ruptura. Talvez um indivíduo que procura elaborar sínteses religiosas por sua própria conta e risco não estará em jogo com nada mais do que os diferentes processos religiosos já conhecidos por ele, os quais não será sua intenção transformar. A princípio ele é o único homem a se colocar nos limites do seu campo estrutural. Ele não é um fiel de uma igreja particular; ele é pastor de si mesmo e rebanho único de seu único sacerdote. Mas, no sentido contrário, quando dos contatos intertribais, coloniais e missionários, o que ocorre é justamente a formação de um campo de interação no qual todos estão envolvidos

96

SANCHIS, Pierre. “O campo religioso contemporâneo no Brasil.” 1997: 105. RANGER, Terence. “Missionary adaptation of african religious institutions: the masasi case.” 1976. 98 FERRETTI, Mundicarmo M. Terra de caboclo. 1994. 99 PETER, Burke. Hibridismo cultural. 2003. 100 DROOGERS 2001. 97

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e é impossível sair ileso desta situação. E aqui vale lembrar as palavras de Geertz101: “não é na solidão que se constrói a fé”. Ainda no mesmo sentido, Pierre Bourdieu102, discorrendo sobre o contato entre mulçumanos e sociedades africanas, lembra que “enquanto a religião agrária [norte-africana] é constantemente reinterpretada na linguagem da religião universal [islamismo], os preceitos da religião universal se redefinem em função dos costumes locais.” Ou seja, não foram apenas as construções africanas que reordenaram alguns de seus conceitos religiosos, o jogo colonizador também afetou a religião dos europeus. No limite, no entanto, isto não significa que após um longo período de contato as duas estruturas tendem a ficar iguais, antes, como sublinha Marshal Sahlins103 “não se deve esperar que as sociedades tribais [/globais] fiquem [totalmente] iguais às suas vizinhas como resultado de um contato prolongado.” Assim, os processos de reordenação cultural e de restauração do nomos104 – o edifício erguido contra as forças do desconhecido –, são processos que normalizam situações que podem ser diferenciadas, que adicionam elementos que podem ser conflitivos e que reconfiguram relações que podem ser hierarquizadas com o fim de classificar o que antes não existia.

1.3.5 - Continuidade cultural A história de todas as culturas é uma história de ruptura e estabilidade. A cultura e seus elementos constituintes estão intrinsecamente ligados a estes processos. As crenças e práticas cristãs, para citar um exemplo105, “devem sua sobrevivência no curso do tempo à sua capacidade de transformação à medida que se modificam as funções que cumprem em favor dos grupos sucessivos que as adotam.” Dessa forma, a reordenação da ruptura gera um movimento que permite que as culturas sobrevivam, sendo que elas dificilmente morrerão, mas elas jamais serão as mesmas. Nesse sentido também, as estruturas religiosas podem ser entendidas em constante modificação, como constante reordenação em meio ao “caos”. Susanne Langer106, nesse sentido, está correta ao afirmar que “as convulsões do mundo são funções de transição.” 101

GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. 2002: 164. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 2005: 68. 103 SAHLINS 1983: 72. 104 BERGER 1985: 36-7. 105 BOURDIEU 2005: 52. 106 LANGER, Susanne K. 1971: 99. 102

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Assim, as estruturas culturais estão em constante modificação, cada nova geração, cada viagem, cada contato restabelecerá o local de cada cultura no mundo. Enfim, para invocar Geertz107 mais uma vez: “crenças, credos, fé, weltanschauungen, ‘religiões’, viajam, mudam enquanto viajam, e trabalham a si mesmos, com graus variantes de sucesso e permanência, dentro da melhor das estruturas das histórias mais locais.”

1.4 - Sincretismo na política. Procurou-se, até aqui, demonstrar como os processos sincréticos se desenvolvem simultaneamente aos processos cognitivos e culturais e como os indivíduos envolvidos nestes processos vivenciam momentos dialéticos de criar e ser criado, estruturar e ser estruturado. Elaborou-se que tais reações apenas poderiam ser possíveis pelo contato histórico entre diferentes culturas, religiões, línguas e costumes; é neste ponto que esta discussão se inicia. Ora, as zonas limítrofes, onde os contatos se originam e as fronteiras começam a ser borradas pelo grande fluxo migratório de elementos sócio-culturais estrangeiros, são locais mediados por certos esquemas de privilégio e poder, por certas “regras de mercado”. Essas regras de mercado nem sempre se dão de forma democrática, elas possuem alguns “mandatários” que procurarão usufruir um status reconhecido – seja pela força ou não – para controlar as trocas em favor de certas percepções que podem legitimar suas posições de domínio. Tal processo, como descrito acima, poderia representar de forma muito simplória muitos dos contatos coloniais. Sabe-se, no entanto, que o sincretismo não se limita apenas a estes momentos da história e, igualmente, a questão do poder e da dominação não pode ser apenas percebida durante aquelas excursões colonialistas, pois as ações na história “não ocorrem em espaços livres [das engrenagens] do poder”108. Assim, os processos de formações híbridas em nossas civilizações fragmentadas também ocorrem sob a influência de uns sobre os outros, sob a influência de poderes dominantes. Da mesma forma, os processos sincréticos de criação única e individual acontecem sob o domínio dos processos hegemônicos de socialização. No entanto, para a análise deste trabalho, deve-se manter estes limites para que a construção teórica não se delongue por questões que não serão abordadas durante a análise do material etnográfico. 107 108

GEERTZ 2005. (LTA) KEMPF, Wolfgang. “Ritual, Power and Colonial domination.” 1994: 118. (LTA)

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1.4.1 - A construção dos repertórios: domínio dos significados Gustavo Benavides109 define sincretismo como “o ordenamento natural de um repertório de elementos dos quais um fiel pode escolher.” Essa escolha resultaria em certas formações que, geralmente contraditórias em natureza, “podem se tornar significados perigosos e poderosos, dependendo da situação política e histórica, na reconstrução da sociedade”. O repertório de um indivíduo é exatamente um grupo de elementos aos quais o fiel pode recorrer para entender sua realidade. Estes elementos, tais como os símbolos discutidos na segunda seção deste capítulo, estariam divididos em pequenas caixas conceituais, onde os indivíduos organizariam seus significados e, os quais, com o decorrer do tempo, seriam modificados, sendo que novos elementos poderiam ser adicionados e outros removidos110. A modificação destes repertórios e a própria escolha dos indivíduos irá depender dos elementos que estarão “colocados no mercado”, os quais, a partir de uma lógica própria às condições de “mercado”, serão apresentados pelos diferentes “mandatários” – líderes tradicionais, missionários, indivíduos carismáticos, etc. – como certos e errados, sagrados e profanos. Nesse sentido, a questão da política nos processos sincréticos, pode ser entendida como a dependência dos repertórios individuais de um certo domínio na criação e valorização dos significados. A questão do domínio, para invocar Max Weber, afeta profundamente “todas as áreas da ação social” e, é “um caso especial de poder” que se resume na “possibilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade própria.”111 Trazendo esta breve construção à análise do sincretismo, entende-se como poder, “a capacidade de influenciar o repertório de outras pessoas – mesmo contra as suas vontades.”112 Aproximando, mais uma vez, essa questão aos elementos vinculados a um repertório religioso, entende-se que este domínio estaria ligado ao “poder de identificar a verdadeira

109

LEOPOLD 2005: 153. (LTA) Tais como a categorização de Timothy Light vista anteriormente, estas caixas poderiam ser divididas em “Eclésia”, “Cultura”, “Família”, “Trabalho”, etc. e conteriam todos elementos que os indivíduos reconhecem e significam como pertencendo a tais âmbitos da vida social. 111 WEBER, Max. Economia e sociedade (vol. 2). 1999:187-8. 112 Agradeço ao Prof. Dr. André Droogers pelos comentários a respeito da relação entre repertórios e a política dos movimentos sincréticos. 110

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religião e autorizar algumas práticas como ‘verdadeiras’ e outras como ‘falsas’.”113 Ora, aqueles que possuem este poder, para usar as palavras de Weber,114 podem possuí-lo em virtude de uma “situação de monopólio” ou de uma “situação de autoridade”. No âmbito dos complexos religiosos, a primeira poderia ser definida como o monopólio adquirido pelos missionários europeus em terras colonizadas – monopólio não necessariamente numérico mas, em geral, expresso por uma “constelação de interesses” interdependentes entre nativos e europeus (terra por mantimentos, por exemplo) –, enquanto que a segunda poderia ser visualizada na autoridade tradicional dos líderes religiosos daquelas mesmas terras. Essas duas formas de dominação – freqüentemente vistas como irredutivelmente opostas em campos coloniais – ressalta, novamente, a questão do poder de dominar a caracterização dos símbolos, neste caso, religiosos. Percebe-se que, para além dos dominadores – os quais podem ser líderes coloniais e/ou carismáticos, assim como certas regras sociais que, a partir dos processos de socialização e aprendizado, também se manifestam como potência dominante –, há um grupo que deverá ser dominado, que deverá manipular seus novos interesses globais junto aos seus deveres locais a partir dos elementos de seu repertório. Esse será o grupo que mais facilmente irá incorrer em sincretismos, e que, como defende James Clifford115 ressaltando a questão estratégica dos complexos híbridos, seriam “impostos de ‘cima’ e inventados de ‘baixo’.” A construção dos repertórios está, por fim, ligada aos limites da criação de significados, ou antes, da possessão dos mesmos; e a política dos movimentos sincréticos está justamente na “luta por possuir, controlar e transformar os significados simbólicos”116 dos elementos presentes nos repertórios de um grupo.

1.4.2 - Poder e resistência: construção de identidades O sincretismo, entendido como um instrumento estratégico de resistência, tem suas origens desde Plutarco (AD 45-125). Shaw e Stewart117 lembram as palavras de Kenneth George, para quem a própria história do termo cunhada pelo filósofo grego – de que sincretismo seria a junção estratégica de diferentes tribos cretenses, que, por um momento,

113

VAN DER VEER, Peter. “Syncretism, multiculturalism and the discourse of tolerance.” 1994: 196. (LTA) WEBER 1999: 188-9. 115 CLIFFORD 1999: 227. (LTA) 116 LEOPOLD 2005: 155. (LTA) 117 SHAW; STEWART 1994: 3. (LTA) 114

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deixavam suas desavenças de lado para lutar contra inimigos estrangeiros – deveria lembrar que “a arena do sincretismo é um local de diferença, contato e reconciliação profundamente politizada.” O uso de sincretismos como estratégias de sobrevivência cultural há algum tempo já vem sendo descartada e rigidamente contrariada. A idéia evolucionista, defendida por Nina Rodrigues118, do sincretismo afro-brasileiro como uma “ilusão de catequese” e a idéia funcionalista que o entende como uma “máscara colonial para escapar à dominação”119 vêm sendo duramente criticada por alguns estudiosos. Mas, fato é que, em situações em que duas culturas diferentes – duas tradições ideológicas, dois povos, duas religiões, dois sistemas econômicos, etc. – mantiveram um prolongado contato uma com a outra, geralmente se percebe certas restrições de um sistema ao outro, certas imposições, alguns “controles de estoque” e defesa de algumas fronteiras, o que acaba por hierarquizar certas posições de poder e domínio. Em geral, essas definições, quando em tempos coloniais, como ressaltam Berger e Luckmann120, seriam determinadas “por aqueles que impunhavam as melhores armas e não por aqueles que possuíam o melhor argumento.” Essas imposições de um sistema ao outro, se dão pelo fato de que, como as religiões, as culturas também tendem a lograr um status de verdadeiras, as únicas verdadeiras – vale dizer. Lévi-Strauss lembra como esta tendência é percebida nas “sociedades abandonadas pela história”:121 Cada cultura se afirma como a única verdadeira e digna de ser vivida; ignora as outras, chega mesmo a negá-las como culturas. A maior parte dos povos a que nós chamamos primitivos designam-se a si mesmos com nomes que significam “os verdadeiros”, “os bons”, os “excelentes”, ou mesmo “os homens” simplesmente; e aplicam adjetivos aos outros que lhes denegam a condição humana, como “macacos de terra” ou “ovos de piolho”.

Tais julgamentos de valor – isto é verdadeiro, isto é falso, isto é divino, isto é demoníaco, etc. – acarretarão na definição de uma cultura padrão, de uma atitude a ser copiada, na tentativa de legitimar uma tradição autêntica em relação a uma tradição que deve ser “convertida”.

118

RODRIGUES, Nina. O animismo fetichista dos negros baianos. 1935; RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. 1977. 119 FERRETTI 1995: 88. 120 BERGER; LUCKMANN 1983: 148. 121 LÉVI-STRAUSS 1986: 26.

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A religião, como construção cultural – como visto no capítulo anterior –, da mesma forma que outros processos culturais – e às vezes de forma mais radical – é um instrumento usado para julgar padrões sociais e definir hierarquias sócio-cosmológicas. Sabe-se que no decurso dos anos coloniais, os missionários cristãos, sedentos por almas, tal como os mercadores, sedentos por iguarias, foram os primeiros contingentes europeus a se acampar ao redor dos povos que viriam a subjugar. Com a continuidade e o reforço da situação colonial, muitos dos novos convertidos ao cristianismo europeu, viram-se engajados em algo mais que as conhecidas teodicéias, antes, como destaca Bourdieu122, na tentativa dos nativos de dar significado às “causas e razões das injustiças e privilégios sociais” que aumentavam a cada dia, as teodicéias transformaram-se em “sociodicéias”. No entanto, o discurso weberiano destacado por Bourdieu123, de que a “religião cumpre uma função de conservação da ordem social contribuindo (...) para a ‘legitimação’ do poder dos ‘dominantes’ e para a ‘domesticação dos dominados’” não pôde se manter por muito tempo. Muitas vezes, a religião dos dominantes, foi apropriada pelos subalternos para enfraquecer o poder da dominação simbólica – do controle dos repertórios – da religião dos colonos, tomando posse de certa quantidade de significados sagrados. Essa tomada de território não deve ser vista como uma tentativa de esconder deuses nativos da perseguição da igreja cristã, mantendo, dessa forma, viva as tradições dos povos dominados. Antes, como ressalta Andrew Apter124, ao tratar sobre o sincretismo na diáspora Africana: O Catolicismo do Vodoum, Candomblé e Santería não era uma tela ecumênica, escondendo a adoração de deuses Africanos da perseguição oficial. Era a religião dos senhores, revisada, transformada, e apropriada por escravos para enfraquecer seu poder dentro do universo de discurso dos escravos.

Mas tanto quanto os povos dominados pelas forças coloniais, muitas foram as apropriações realizadas pelos próprios missionários, que, para aumentar o número de convertidos, procuravam limitar – se não mesmo extinguir – as dicotomias existentes entre as religiões dos seus dominados e a religião cristã. Isto geralmente ocorria em tentativas de cristianizar os rituais “pagãos”, trocando símbolos, palavras, gestos, locais e quaisquer outros

122

BOURDIEU 2005: 49. BOURDIEU 2005: 32. 124 APTER, Andrew. “Herskovists’s heritage: rethinking syncretism in the African diaspora.” 2005: 178. (LTA) 123

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elementos que agredissem a fé cristã, por novas simbologias.125 Percebe-se assim, que os movimentos sincréticos foram, paradoxalmente, tanto subversivos quanto favoráveis à dominação colonial, sendo que foi nesse terreno que as incursões sincréticas puderam ser mais facilmente percebidas. Enfim, como sincretismo, presumidamente, “faz parte da negociação de identidades e hegemonias em situações de conquista, comércio, migração, disseminação religiosa”, etc, a questão da resistência a um poder hegemônico não deve ser percebida unicamente como uma “política contra-hegemônica para burlar um poder dominante”, antes, como lembram Shaw e Stewart126: Sincretismo pode ser (ou talvez apenas se pareça como) uma forma de resistência, porque práticas hegemônicas nunca são inteiramente absorvidas através de uma aculturação passiva; no limite, esta incorporação envolve algum tipo de transformação, algum tipo de desconstrução e reconstrução que a converterá em significados e práticas de um grupo.

1.4.3 - Os sujeitos sincréticos Uma breve discussão sobre os agentes que individualmente se põem a realizar tais apropriações comentadas acima, irá contribuir para que se possa entender, de forma mais pormenorizada, os processos de resistência e incorporação de discursos cristãos aos repertórios de seus dominados. A abordagem que se pretende aqui não será aquela de uma perspectiva cognitiva; o esforço, no entanto, será feito para destacar o papel de indivíduos sincreticamente motivados na construção e reconstrução do poder hegemônico. Deve-se ressaltar a importância, na criação de objetos – materiais e imateriais – sincréticos, de certos indivíduos especialmente atraídos pela possibilidade de reforçar suas posições dentro de um determinado grupo a partir da aquisição de certos elementos estrangeiros, pois, como destaca Leopold127, o “poder está relacionado com o instinto mais ou menos psicológico de adquirir elementos de prestígio do grupo conquistador”, isso poderá ocorrer tanto apropriando objetos cristãos – discursos, histórias, valores, símbolos, etc – de origem estrangeira aos costumes religiosos nativos, quanto expressando a religião cristã através de objetos e conhecimentos locais. Os indivíduos que incorrem nestes movimentos

125

RANGER 1976; KEMPF 1994. SHAW; STEWART 1994: 20. (LTA) 127 LEOPOLD 2005: 153. (LTA) 126

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poderão ser chamados indivíduos sincréticos128 pois, estando atrelados socialmente – através de processos de socialização e convívio – à crença nativa, põem-se a navegar por crenças estrangeiras – através de processos de “discipulado” e também convívio – sendo que este não abandonará nem uma nem outra, havendo uma mútua falha de conversão, podendo mesmo usar as duas tradições como correlatos corroborativos, o que, para Peter van der Veer129, poderá fortalecer o sincretismo: “no caso do sincretismo há uma falha de conversão”. Alguns exemplos dessas apropriações podem ser percebidos nos discursos afrobrasileiros das primeiras décadas do séc. XX, nos quais, muitos praticantes do candomblé e da umbanda, se diziam católicos, valendo-se do discurso da elite branca euro-brasileira. Há também, outro interessante exemplo, descrito por Gustavo Benavides130, sobre Túpac Amaru e seus seguidores, que se diziam verdadeiramente cristãos e que, partindo de uma aquisição muito profunda dos significados cristãos, podiam afirmar que “os Índios que vivem de acordo com seus ritos e cerimônias são os verdadeiros cristãos; os Espanhóis são os heréticos: é por isso que eles devem morrer.” Um último exemplo, a respeito dessas interações, também pôde ser percebido durante a etnografia na qual este trabalho está ancorado, quando alguns indivíduos, apesar de construírem pontos de sincretismo e convergência entre elementos cristãos e africanos e trabalhar conjuntamente com estes repertórios – usando-os como correlatos corroborativos assim como diferentes formas de alcançar um sortilégio –, comumente, diante do pesquisador e sem hesitação, diziam-se cristãos e não que, por exemplo, adoravam aos ancestrais. Isto parece ocorrer porque desde os tempos de colonização a religião legitimada era a Cristã, assim, apropriar-se de alguns de seus discursos e mesmo, colocar-se debaixo de suas estruturas, é uma apropriação de poder, status e legitimação.

1.4.4 - Duas categorias de análise André Droogers, ao tratar sobre as relações de poder nas estruturas sincréticas, destaca que existem dois modelos analíticos que podem ser usados para compreender esta questão. A

128

Um interessante texto a respeito disso foi publicado no Journal of Material Culture sobre como cristãos aborígines de Taiwan misturavam objetos cristãos, como a cruz, com objetos nativos, como as imagens dos chefes ancestrais, dando origem assim, a um objeto híbrido onde o corpo de Cristo foi substituído pela imagem de um ancestral, dando origem ao que os cristãos chamam de “Cruz de Paiwan” – TAN, Chang-Kwo. “Syncretic objects: material culture of syncretism among the Paiwan catholics, Taiwan.” 2002:167-187. 129 VAN DER VEER, Peter. “Syncretism, multiculturalism and tolerance.” 1994: 198. (LTA) 130 BENAVIDES, Gustavo. “Syncretism and legitimacy in Latin American religion.” 2005: 208. (LTA)

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opção escolhida – que irá automaticamente restringir a outra – define, por sua vez, não apenas a forma como o pesquisador estudará os fenômenos sincréticos, ela irá igualmente definir a forma que este percebe o mundo ao seu redor. A primeira categoria é funcionalista, se aproxima das conotações reinterpretativas de Herskovits, e vê o sincretismo como uma nova síntese criada para acabar com os conflitos existentes entre duas tradições distintas. O sincretismo é, deste ponto de vista, um processo de aquisição de coesão e caracteriza-se pela reconciliação de dicotomias existentes. A segunda categoria é Marxista, e percebe os conflitos e as dicotomias como condições eternas da realidade social, como, para ressaltar Michael Foucault131, a oposição permanente entre “legítimo-ilegítimo”, “luta e submissão”. Deste ponto de vista, o sincretismo “é interpretado como um instrumento de opressão, criando falsas unidades e escondendo conflitos sociais,”132 e em vez de criar uma nova síntese na qual as diferenças seriam abstraídas, o que ocorre poderia ser definido como a criação de “hifenizações híbridas”, tal como proposto por Hom Bhaba133, que “enfatizam os elementos incomensuráveis – os pedaços teimosos –” e que jamais poderão ser inteiramente misturadas. Carlos Rodrigues Brandão134, opondo uma categoria a outra e manifestando-se, como muitos dos estudiosos dos fenômenos religiosos, a favor do segundo modelo, afirma, dessa forma, que não é funcionalmente social, mas socialmente político, o processo de gênese e de transformação de aparelhos e ideologias religiosas que transforma também as regras de trocas entre os agentes de igrejas, seitas ou surtos confessionais.

Partindo também de uma visão de mundo de cunho marxista, Shaw e Stewart135, percebem a sociedade como composta por grupos envolvidos em um conflito irremediável, destacando o estudo do sincretismo como “a política das sínteses religiosas”, entendo que este seria um percurso natural quando do contato entre diferentes grupos, onde cada indivíduo estaria a todo o momento procurando “revisar seus significados simbólicos enquanto competindo com os outros por domínio.”136

131

FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. 1995: 177. DROOGERS, André. “Syncretism: the problem of definition, the definition fo the problem.” 1989: 18. (LTA) 133 BHABA, Hom K. O local da cultura. 1998: 301. 134 BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo, um estudo sobre a religião popular. 1986: 87. 135 SHAW; STEWART 1994: 7. (LTA) 136 DROOGERS; GREENFIELD 2001: 30. (LTA) 132

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1.4.5 - Sincretismo/Anti-sincretismo Seguindo ainda com o mesmo foco de análise e como conseqüência lógica de seus pensamentos, Shaw e Stewart vão além no estudo das relações de poder nos domínios sincréticos, ao caracterizar duas atitudes políticas – talvez mesmo ideológicas – que poderiam ser tomadas diante de uma situação de mistura: aceitá-las como possibilidades de aumentar o campo de ação de um indivíduo, que poderia mostrar-se “africano” ou “cristão” dependendo da situação na qual estava inserido; ou rejeitá-las e, ao invés de procurar expandir suas fronteiras, fortificá-las com discursos de autenticidade. Os autores definem essa rejeição às sínteses religiosas como “Anti-sincretismo”, ou seja: “o antagonismo das sínteses religiosas (...) está freqüentemente amarrado com a construção de ‘autenticidade’, a qual, por sua vez está geralmente ligada à noções de ‘pureza’.” A questão da pureza nem sempre está necessariamente presente, e a construção de autenticidade – originalidade de um certo complexo cultural – não depende das noções de pureza, antes, um grupo que se pretenda autêntico, defenderá suas singularidades, sendo que “tanto tradições [ditas] puras e misturadas podem ser únicas”.137 A autenticidade, bem como as atitudes anti-sincréticas, são elaborações discursivas que envolvem a construção de poder, retórica e persuasão. Ou seja, o que ocorre são reclames de autenticidade que irão caracterizar, mais uma vez, certos complexos como verdadeiros e outros como falsos. A partir da negação do outro afirma-se uma identidade única e poderosa – e o ponto, mais uma vez, não está no fato desta ser uma autenticidade pura e tradicional, antes, poderia até ser argumentado que “sondagens sincréticas são mais singulares, justamente porque elas são historicamente não repetíveis”.138 Uma questão interessante é perceber o fato de que, definir-se como singular, deixando claro os limites de suas fronteiras, é também uma forma estratégica de defesa e de legitimação de um grupo. E este é um ponto que muito freqüentemente é relatado por estudiosos, além de um ponto usualmente destacado por membros de grupos religiosos que competem entre si pelo monopólio de um campo sagrado. De fato, dificilmente o discurso de agentes religiosos será “oficialmente” sincrético, a grande parte dos grupos religiosos se declaram mais puros que os demais; as disputas por um domínio neste campo, passam necessariamente por discursos de autenticidade e tradição. É isso que as religiões afro-brasileiras tem feito ao buscarem o que se tem denominado de 137 138

SHAW: STEWART 1994: 7. (LTA) Op. Cit.

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“africanização”139, um processo discursivamente anti-sincrético. Da mesma forma, verifica-se no estudo realizado por Ferretti140, na Casa das Minas em Maranhão, que se caracterizar “tradicional”, em uma casa igualmente caracterizada como “sincrética”, e admitir ambos – tradicionalismo e sincretismo – convivendo igualmente sem descaracterizá-los mutuamente, é um discurso anti-sincrético no sentido de que defende uma certa autenticidade, o que há não é uma simples mistura, mas, antes, uma síntese tradicionalmente sincretizada. Entende-se então que, buscar ser ou afirmar-se “tradicionalmente” – autenticamente – africano, Hereros, católico, cristão, etc, é um discurso anti-sincrético de defesa estratégica de fronteiras e de apropriação de discursos estrangeiros com fim de dominar um certo repertório de significados, e defendê-los como seus. Funcionando, assim, como um controle de recursos, quando um certo grupo de pessoas envolvidas em um sistema religioso, se identificam como pertencendo à única e verdadeira religião “cristã” – Túpac Amaru, por exemplo –, isto lhes dará poder e um acesso privilegiado a certos significados religiosos. Por isso, em geral, afirmações anti-sincréticas são afirmações de legitimidade. Aceitar conscientemente as amálgamas é aceitar sua própria não autenticidade, é aceitar sincretismos que, nesse sentido, são percebidos como atitudes subversivas às pretensões de poder. Assim, os discursos anti-sincréticos são discursos que instauram – ou ao menos tentam instaurar – limites fronteiriços. Droogers auxilia para o entendimento desta questão ao afirmar que “sincretismo implica o acesso a um duplo estoque de significados, muito freqüentemente invejosamente percebido por elites religiosas em competição que não apreciam tais misturas e que usarão seus poderes para prevenir que elas aconteçam.”141 1.5 - Conclusão e definição dos limites da análise. Enfim, é chegado o momento de concluir todas estas argumentações, de fechar a caixa (muito pesada, talvez, mas com sorte o esforço terá sido válido) com a qual espera-se poder detectar a lógica por trás de fenômenos específicos de interação religiosa e, sem a qual, os discursos, os olhares e as percepções não seriam nada mais do que lembranças confusas e, talvez, até mesmo interessantes, porém sem significados válidos dentro do estudo das Ciências Sociais e mais especificamente da Antropologia.

139

PRANDI, Reginaldo. “Referências Sociais das Religiões Afro-brasileiras: Sincretismo, Branqueamento, Africanização.” 1998: 151-167. 140 FERRETTI 1995: 217. 141 DROOGERS, André. 2005: 220. (LTA)

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Com a finalização deste instrumento de análise, espera-se poder incitar ainda mais, a discussão de processos por vezes desmerecidamente excluídos dos altos debates acadêmicos. Excluídos, é claro, apenas em um plano terminológico, pois de fato, sincretismo está presente em todo o lugar – e com isto, todos poderão concordar, já que positiva e negativamente esta afirmação é amplamente aceita entre os cânones acadêmicos. Shaw e Stewart142 comentam a respeito desta percepção: “nós ouvimos muito menos sobre culturas como sincréticas do que sobre culturas [ou religiões] como colagem, como crioulizada, como fragmentada, como ‘intercultural’, como subversiva invenção híbrida.” De fato, essas transformações híbridas parecem estar mais correntes nas análises dos antropólogos contemporâneos que, ressalta Teresa Caldeira143 – antecipando as preocupações de Marc Auge144 –, nas últimas décadas parecem estar se preocupando mais “com transformações, com história, com sincretismo e encontros, com práxis e comunicação, e principalmente com relações de poder”.

1.5.1 - E por que não sincretismo? Sincretismo pode, sem muita dificuldade, ser considerado um termo escorregadio, mas em tempos pós-modernos, o que não é? Diz-se que o sincretismo não pode ser aceito, por retratar as antigas imagens culturalistas de corrupção da autenticidade de um sistema, grupo ou tradição, que estariam, antes do contato com estrangeiros, em estados sócio-culturais puros – como se os estudiosos destes fenômenos desconhecessem as transformações a muito ocorridas nas ciências humanas e, especificamente, na Antropologia. Stewart145, afirma a respeito disso que: Sincretismo não é mais um “estágio” de transição que irá desaparecer quando, com o tempo, a assimilação ocorrer. Empréstimos e interpretações culturais são vistos como parte inerente da natureza das culturas.

Sabe-se que o contato inter-religioso – para usar o presente exemplo –, as misturas, os empréstimos – e, para usar termos mais “modernos” –, os hibridismos, crioulismos e sincretismos, existem desde que a primeira idéia religiosa surgiu, desde que o homem olhou

142

SHAW; STEWART 1994: 2. (LTA) Citado em FERRETTI 1995: 38. 144 AUGÉ, Marc. Por uma antropologia dos mundos contemporâneos. 1997. 145 STEWART, Charles. “Relocating Syncretism in Social Science Discourse.” 2005: 274. (LTA) 143

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para o céu e resolveu dotá-lo de poder, ou mesmo, desde o momento descrito por Marcel Mauss, em que o homem, “depois de ter sido deus, povoou o mundo de deuses”.146 Essas relações de contato sempre estiveram presentes no mundo social humano: Yavé, o deus dos judeus, não foi o único a proibir esses contatos; as civilizações dos tempos helênicos não foram as únicas a misturar diferentes religiões e culturas; tão pouco foi Plutarco, filósofo grego, o primeiro a falar sobre o assunto. Outra problemática questão a respeito do termo é que ele geralmente não está presente nos discursos nativos, ou seja, na visão dos insiders e é, por isso, um termo aplicado por pesquisadores, pelos outsiders. Robert Baird147, defendendo o abandono do termo, afirma que “sincretismo é um conceito aplicado à uma religião por aqueles que estão de fora do seu círculo de fé e por isso falham em perceber ou experimentar a sua unidade interior”. A verdade, no entanto, é que ele apenas não está presente enquanto discurso oficialmente positivo, ou seja, dificilmente se ouvirá – seguindo a lógica estudada na seção anterior –, de um indivíduo comprometido religiosamente com alguma tradição que procura seu espaço e reconhecimento dentro de um universo fragmentado, as palavras: “Ah! Sim, é verdade, eu sou sincrético”. Sabe-se, que os indivíduos procurarão conectar cada elemento aparentemente oposto presente em um único complexo, procurando acabar com qualquer “mistura caótica”. Assim, ao fazer uma análise mais profunda da realidade – ao perceber elementos estrangeiros dentro de um discurso nativo, por exemplo –, e notar a presença de um forte discurso anti-sincrético, há de se pensar em sincretismo. O primeiro se define pela possibilidade do segundo. É a lógica derridariana da diferença que se aplica aqui: os discursos anti-sincréticos são “originários e congenitais àquilo mesmo que transgridem”148, ou seja, aos discursos sincréticos. Esta questão pode ser – e nos próximos capítulos será – melhor entendida se a seguinte situação for analisada: toma-se dois complexos religiosos autodenominados como cristãos em um campo religioso onde antes do cristianismo a base da fé era o culto aos ancestrais. Os membros daquelas igrejas cristãs, são todos membros dessa mesma comunidade e convivem junto com aqueles que, neste local não são cristãos. O que ocorre é que uma igreja irá enriquecer seus repertórios com o uso das tradições do seu povo dentro do seu quadro

146

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. 2003: 51. BAIRD 2005: 57. (LTA) 148 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 2002: 188. 147

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religioso, enquanto que a outra tomará a atitude contrária, mantendo-se afastada de tais práticas e mesmo as combatendo. O que ocorre é que aqueles que admitem sua tradição, continuam autodenominando-se cristãos, não percebem nada de contraditório, tecem similaridades, aproximam os extremos em defesa de uma tradição que durante algum tempo foi duramente atacada. A outra igreja, que se manteve afastada das suas tradições, acusa a primeira de estar corrompendo a verdadeira religião, de estar misturando, sincretizando a religião cristã. Esta, por sua vez, acusa a segunda de estar perdendo sua tradição, de não respeitar os ancestrais que, antes da chegada do cristianismo tanto os ajudava, os acusam por omissão, afinal, eles eram cristãos e ao utilizar os elementos das tradições do seu povo não o deixaram de ser. Os discursos podem ajudar o pesquisador a perceber a ocorrência de fatos que não são assumidamente admitidos mas que estão presentes, como afirmações silenciosas. Talvez, uma boa maneira de se vencer este obstáculo – insiders x outsiders –, seja usar as mesmas ferramentas bakhtinianas149 de heteroglossia, ou cliffordianas150 de “dar voz aos nativos”, o que, na antropologia, só foi possível ao se perceber os trâmites de poder e agência, de criação e autoridade, dos discursos nativos presentes nas etnografias. Nos estudos sobre sincretismo, tais tentativas151 parecem, inevitavelmente, terem aproximado a questão do campo antropológico. Assim, o fato de quem “está fora” – outsider – presumir entender a quem “está dentro” – insider – não deveria ser suficiente para sugerir o abandono da noção de sincretismo. Estas constantes tentativas de interpretar o desconhecido e traduzi-lo àqueles a quem este desconhece, é uma lógica amplamente aceita e incessante, no discurso das Ciências Sociais, como destaca Bauman152: “Agora, nós todos somos tradutores”. A expectativa, portanto, é que, com o uso desse termo, se possa chegar mais perto dos significados “de dentro”. Pois, para invocar Zygmunt Bauman153 ainda mais uma vez, pode haver várias interpretações dos que “estão de fora”; ainda assim, em algum momento, todos elas distorcem o entendimento dos que “estão dentro”. Se assumirmos que a interpretação daquele que está dentro é privilegiada em relação às outras, paralelamente ao privilégio gozado pela verdade sobre os erros, entender-seá que o alvo ideal das leituras “de fora” é o de se aproximar o mais perto possível do significado que certo produto cultural tem para seus produtores/consumidores nativos. 149

BAKHTINE, M. “Discourse in the novel.” 1981: 259-442. (LTA) CLIFFORD, James. “Sobre la autoridad etnográfica.” 2003: 141-70. (LTA) 151 SHAW; STEWART 1994; DROOGERS 2001; LEOPOLD 2005. 152 BAUMAN 2000: XLIX. (LTA) 153 BAUMAN 2000: XLV. (LTA) 150

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Este deve ser, enfim, o objetivo de uma ferramenta heurística: procurar dar significado à lógica presente nas relações percebidas dentro de um contexto específico da realidade social. Assim, O uso de um termo como o sincretismo, não deverá servir – ao menos neste trabalho – para afirmar o por que algo é sincrético – no intento de restringir o termo conceitualmente –, mas, antes, para definir como é que indivíduos, tradições, religiões e culturas incorrem nesta prática e qual o resultado disso.

1.5.2 - As elaborações teóricas “E daí? E daí que vocês tenham todos esses ricos e fascinantes dados, e daí? O que eles lhe dizem? O que há de significância generalizável nestes dados?” Esta, lembrou Linda Woodhead154, foi a imperativa reação que teve Peter Berger quando um grupo de estudantes foi ao seu escritório para lhe falar sobre certos dados de pesquisa. As interrogações, continua Woodhead, deveriam lembrar “a importância da teoria em Ciências Sociais (...), os dados devem ser teorizados para ter relevância a algo mais que si próprios.” Uma elaboração teórica, como visto a cima, existe para ser “usada para” entender e explicar certos fenômenos existentes em nossas sociedades. No entanto, lembrando o paradoxo da constante modificação – e por isso fragmentação – do(s) mundo(s), ressaltado por Marc Augé155, as realidades, assim como os fenômenos, estão em constante modificação. Propor induções – do tipo “ciência natural” – diante de um mundo que não se permite estagnar, seria talvez ingênuo. Possivelmente, esse é um dos grandes desafios das ciências humanas, pois, como ressalta Geertz156, “o mundo não irá esperar você completar seu parágrafo, e o máximo que pode ser feito com o futuro é perceber sua iminência”. Justamente por isso, talvez seja necessário deixar claro o que Hans-Georg Gadamer157 já nos havia lembrado, de que nas ciências humanas – e por conseqüência neste trabalho – o objetivo não é [ou pelo menos não deve ser] confirmar e alargar (...) experiências universais no intento de obter o conhecimento de uma lei – por exemplo, como homens, povos, e estados se desenvolvem – mas, entender como este homem, este 154

WOODHEAD. Linda. “Introduction.” 2001: 6. (LTA) AUGÉ 1997: 141. 156 GEERTZ 2005. (LTA) 157 GADAMER, Hans-Georg. Truth and method. 2004: 4. (LTA) 155

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povo, ou este estado é o que ele se tornou ou, mais generalizadamente, como é que ocorreram essas transformações.

Cautela, portanto, deverá ser a atitude tomada frente a qualquer tentativa de definir conceitos ou princípios a respeito de fenômenos sejam eles quais forem. Os diversos argumentos aqui expostos – que se constituem, em si, verdadeiros sincretismos –, como foi escrito anteriormente, não se pretendem unificar para a elaboração de um conceito paradigmático a respeito do sincretismo, antes, eles devem expor os limites das análises que serão propostas. Nesse sentido, todo o repertório teórico exposto, deve ser visto como a tentativa de definir a forma como o objeto de estudo será percebido, manuseado. As definições aqui construídas, não se pretendem as verdadeiras, únicas e nem mesmo um exemplo a ser seguido. Sabe-se que as “definições não podem ser, por sua própria natureza, ‘verdadeiras’ ou ‘falsas’, podem apenas ser mais ou menos úteis.”158 As fronteiras aqui expostas, assim o foram exatamente por parecerem úteis ao pesquisador e, a extensão destas fronteiras se deu pela ansiedade do mesmo em elucidar algumas discrepâncias entre as diversas definições do sincretismo, que, como destaca Peter Berger159, se evitadas, poderiam tornar os limites da pesquisa imprecisos: “Parece-me que a principal conseqüência de se evitar ou adiar definições em ciência é que ou o campo de pesquisa se torna impreciso (...) ou operase com definições implícitas em lugar das explícitas (....). A elucidação parece o caminho mais desejável.” Em suma, procurou-se deixar claro e discutir, nesse sentido, as diferentes utilidades de todos aquelas esquematizações teóricas para o estudo que será proposto a seguir, sendo que, o resultado do esforço aqui empreendido, pode apenas ser chamado “teoria” caso esta seja entendida como a construção de uma “caixa de ferramentas”, tal como recomendada por Gilles Deleuze e Michael Foucault160: A noção de uma teoria como uma caixa de ferramentas significa que (I) A teoria a ser construída não é um sistema mas sim um instrumento, uma lógica da especificidade das relações de poder e das lutas ao redor delas; (II) e esta investigação só pode ser considerada passo a passo baseada em uma reflexão (que necessariamente será histórica em alguns de seus aspectos) sobre situações determinadas.

158

BERGER 1985: 181. BERGER 1985: 182. 160 FOUCAULT, Michael. Power/Knowledge. 1980: 145. (LTA) 159

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1.5.3 - Por uma Antropologia do Sincretismo Todos estes limites devem agora convergir para um último salto em direção àquilo que irá determinar como este instrumento será utilizado. É esta definição que irá caracterizar a análise proposta como uma de cunho antropológico pois, o foco de manuseio dessas ferramentas, estará alicerçado nos discursos dos diversos indivíduos envolvidos nos processos religiosos que serão descritos nos próximos capítulos, ou seja, em “pessoas reais fazendo coisas reais”161. O que está suposto aqui é a “Antropologia do Sincretismo”, proposta por Charles Stewart162, particularmente naquilo que se refere aos “vários argumentos criados a favor ou contra a noção de mistura religiosa” e, mais especificamente ainda, ao que ele chamou de meta-sincretismo ao atentar para o fato de que onde quer que sincretismo ocorra, ou ocorreu, ele é normalmente acompanhado por um discurso paralelo que pode ser chamado de meta-sincretismo: os comentários, e as percepções dos atores registrados sobre se a amálgama ocorreu ou não e se isso é bom ou ruim. Uma visão estritamente objetivista nunca será suficiente.

O intuito, é de destacar o fenômeno sincrético enquanto presente em diferentes indivíduos que combinam “elementos de duas ou mais diferentes tradições religiosas dentro de um mesmo quadro”163. Assim, ao separar e definir o escopo de cada uma das “diferentes tradições religiosas” com as quais um indivíduo poderá interagir, bastará definir os quadros sociais – os frames – e as formas de interação que ocorrem em cada um desses momentos para que seja possível elaborar análises mais precisas. 1.5.3.1 - Análise de quadros A análise dos diferentes quadros pelos quais um indivíduo se locomove deve, contudo, ser feita com cuidado. Assim, por quadro, tomaremos as mesmas idéias defendidas por Stewart164, de que o termo seja usado “na própria definição de religião, especialmente na definição das fronteiras que estão postas entre religião e cultura.”

161

DROOGERS 2001: 145. (LTA) STEWART 2005: 282. (LTA) 163 Op. Cit. 164 STEWART 2005: 281. (LTA) 162

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Os quadros, então, seriam representados pelas fronteiras que um sistema religioso defende e expõe diante de fiéis e incrédulos. Para citar um exemplo: sabe-se que os protestantes não devem cultuar Maria, mãe de Jesus, sendo este um dos limites do quadro protestante; por sua vez, a mesma prática, se encontra obrigatoriamente atrás das fronteiras católicas, nas quais aquele elemento tem um papel muito importante. Nesse sentido, poder-seia dizer que uma religião protestante seria sincrética, se passasse a admitir aquele elemento em suas práticas, ao mesmo tempo em que mantêm suas demais fronteiras. Isso não significa que um indivíduo que transita entre um complexo religioso e outro, tomando para si diferentes elementos em diferentes momentos de sua vida – a depender de suas necessidades –, faça, daqueles complexos sincréticos, antes, é ele quem incorre nesses sincretismos, tomando dentro de um mesmo quadro – o da sua vida – elementos de diferentes religiões que poderão contribuir à sua existência à medida que forem requisitados. Neste caso o indivíduo toma proveito de uma situação de pluralismo religioso e não uma de sincretismos. Outro ponto ao qual Stewart chama atenção, caracteriza-se pelas fronteiras que os quadros religiosos expõem aos quadros culturais, sociais e mesmo ideológicos. No mais das vezes essas barreiras poderão ser usadas estrategicamente como formas de legitimar discursos aparentemente em contraste. Assim, para um cristão – o uso constante deste exemplo se dá por este estar próximo das questões que serão analisadas nos próximos capítulos – que entenda que sua tradição deva ser de alguma forma mantida, três possíveis atitudes podem ser tomadas, das quais, vale dizer, apenas a primeira, poderá ser caracterizada, sem maiores entraves, como anti-sincrética, sendo que um mesmo grupo poderá usar de todas estas estratégias para defender e fortalecer suas fronteiras diante de um contexto plural: (1) Diabolização/mundanização de aspectos tradicionais entendidos como religiosos. Esta atitude poderá se caracterizar, por exemplo, em um discurso anti-sincrético em relação ao culto aos ancestrais, sendo que este não será visto como um elemento cultural, mas como uma religião concorrente – como outro quadro do campo religioso – e que por isso deve ser evitada. Os motivos podem ser pelo fato desta pertencer às forças do mal (diabolização), ou mesmo por ser uma mera construção humana (mundanização). No entanto, esta mesma lógica poderá tentar encontrar certos aspectos culturais não-religiosos que possam ser mantidos dentro do quadro – repertório – cultural, seja de forma integral – alimentação, vestimentas – ou sincretizando-os – ritos fúnebres, casamentos, músicas; (2) Assimilação de elementos tradicionais em um mesmo repertório religioso. O que resultará em uma larga fronteira religiosa, que vai além dos limites tradicionais e cristãos. Entenderá o culto aos ancestrais – 63

para seguirmos na mesma lógica – como uma possibilidade religiosa legítima dentro de um quadro – uma igreja – cristã; (3) Separação de elementos ditos cristãos dos elementos tradicionais em quadros e níveis estruturais diferentes. Esta atitude se caracterizará numa clara divisão do que é religioso – cristianismo – e do que é cultural – culto aos ancestrais. Qualquer dicotomia entre um e outro não deverá ser frutífera, pois Jesus e os Ancestrais estariam em diferentes quadros – o da igreja cristã e o da tradição cultural – que não possuem as mesmas características estruturais e por isso não faria sentido contrapô-los.165 1.5.3.2 - Cuidado analítico Por fim, todo o esforço será feito para manter os discursos de cada agente daquele contexto social em preferência às próprias racionalizações do pesquisador. De acordo com Stewart que, por sua vez, se aproxima muito da argumentação que Edmund Leach tece a respeito dos discursos e definições nativas a respeito de certos aspectos de suas vidas, tomarse-á cada argumento como elemento discursivo de poder, com o intuito de não cair em falsas identificações, tal como destaca Leach166: Devemos aceitar cada caso como ele é. Se em Trobriand se diz – como é dito em palavras e fatos – que o parentesco entre um pai e seu filho é praticamente o mesmo que entre primos cruzados masculinos ou entre cunhados, mas completamente diferentes do que há entre uma mãe e seu filho, então temos que aceitar o fato de que realmente é assim. Estaremos nos enganando e a todos, se chamarmos esse parentesco de filiação.

Aceitam-se, assim – não esquecendo todos os argumentos de poder presentes por trás dessa “permissão” –, os discursos nativos como possuindo valor positivo na análise das questões que serão propostas, como posições verdadeiras – tal como discutido na introdução deste trabalho – a respeito da realidade. Estas, ao serem somadas com as argumentações daquele que se coloca “de fora” e, ao serem analisadas sob a ótica de todas as argumentações teóricas aqui expostas, poderão contribuir clara e objetivamente para a finalização deste trabalho.

165

Tal como discutido na primeira seção deste capítulo, esta foi a atitude tomada pela igreja católica durante o Vaticano II, onde procurou-se eliminar certos elementos que dificultavam a aceitação do cristianismo através da “culturalização” de elementos antes “diabolizados”, tornando o cristianismo mais aceitável em locais onde este era fortemente contrário às crenças nativas. 166 LEACH, E. R. Repensando a Antropologia. 2005: 27.

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CAPÍTULO 2 - REPERTÓRIOS INICIAIS.

“Quando você voltar, leve junto tudo que estou lhe falando, leve e compartilhe com seu povo, que todos saibam sobre nossa história.” Denzel, 07.02.2006, Namíbia.

Antes de poder entender qualquer tipo de fenômeno sincrético, faz-se necessário expor aqueles elementos que serviram de base para essas elaborações criativas. Para entender o funcionamento deste jogo, ocorrido em um lugar particular, é preciso descrever como as diferentes peças se movimentaram – estrategicamente ou não – em cada situação. Seria impossível compreender qualquer alegação de sincretismo, sem que antes fosse exposta a base histórica, bem como os diversos elementos que, postos diante de indivíduos de “criatividade idiossincrática”167, foram utilizados dentro de um mesmo repertório. Entender algumas das características daqueles repertórios iniciais poderá contribuir contundentemente na análise dos discursos nativos sobre seus universos sagrados. 2.1 Os Hereros da Namíbia. Por volta de 1500, os Hereros168 iniciaram sua migração ao atual território da Namíbia. Oriundos das regiões dos grandes lagos da África oriental, cruzaram, antes disso, o Zâmbia e 167

Para relembrar Pierre Sanchis mais uma vez. Durante o decorrer da história alguns acontecimentos foram responsáveis por algumas divisões na raiz Hereros. Dessas divisões, surgiram grupos tais como Ovahimba, Ovambanderu, Ovatjimba, Ovazemba e Vakwandu, todos possuem praticamente os mesmos traços culturais e lingüísticos, com algumas poucas variações, já que estes diferentes grupos se afastaram também geograficamente e por isso estiveram em contato com diferentes sociedades e realidades ambientais – GEWALD, Jan-Bart. “I was afraid of Samuel, therefore I came to Sekgoma.” 2002: 211-234. (LTA) 168

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o sul da Angola para, entre o século XVII e XVIII, adentrarem a região do rio Kunene – hoje a sétima das 13 regiões que dividem a Namíbia –, estabelecendo-se, mais tarde, em Okahandja, que viria a ser o principal assentamento Hereros durante os próximos séculos. Desde estas primeiras migrações, os Hereros, entraram em contato com outros grupos étnicos. Nas primeiras incursões, na região do Etosha Pan, os Ovambo, que haviam chegado ao local pouco antes que os Hereros, os fizeram retroceder até as zonas mais áridas e montanhosas de Koakoland, onde hoje se encontram, majoritariamente, os Ovahimba. Mais tarde alguns subgrupos dos Hereros migraram para as regiões centrais da Namíbia. Os Nama, outro grupo com o qual houve constantes contatos e conflitos, haviam migrado das regiões do sul da África e foram responsáveis por um empobrecimento de alguns daqueles subgrupos, tendo roubado seus gados e tomado alguns Hereros como prisioneiros de guerra durante os anos de 1860.169 Estes contatos, assim como outros que se deram durante o transcorrer daqueles anos, acabaram também por gerar certos empréstimos culturais e religiosos. Em meados do início do século XIX, os primeiros Europeus iniciaram sua entrada permanente no território, iniciando aquele que seria o mais forte e trágico contato Hereros com um grupo estrangeiro. Após se estabelecerem na região litorânea, os primeiros colonos adentraram as zonas centrais do continente na tentativa de dominar aquelas terras e seus bens naturais, nesse trajeto encontram os grupos Hereros. A partir dessas tentativas européias de controle do território, os Hereros – assim como a maioria dos demais grupos sob o domínio alemão – lutaram, entre os anos de 1904 e 1906 seu maior conflito contra as forças colonizadoras alemãs. Para os Hereros, isto resultou no que hoje é assumidamente conhecido como o primeiro genocídio do século XX, quando 65 mil Hereross (75% de todo o grupo) foram dizimados pelas circunstancias da guerra – mortos em batalha, durante as fugas pelo deserto, ou subnutridos em campos de concentração. Hoje, sua população varia entre 120 mil e 135 mil pessoas vivendo majoritariamente na Namíbia (mais de 110 mil), os demais estariam divididos entre os países vizinhos Botswana, Angola e África do Sul como resultado dos conflitos durante os tempos coloniais que forçaram muitos a fugir de suas terras. Originalmente um povo seminômade pastoril, vive hoje, em sua totalidade como mão-de-obra nas grandes fazendas do país ou nas grandes cidades. O Otjihereros, língua socializante Hereros, faz parte da família Niger-Congo, situada entre aquelas do grupo Bantu.

169

DIERKS, Klaus. Chronology of Namibian History. 2002: 20. (LTA)

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2.2 Okondjatu: breve contextualização Okondjatu é o principal vilarejo da região de Otjozondjupa, situada ao norte de Windhoek, capital da Namíbia. A região possui mais de 38 mil hectares povoados por pouco mais de 6 mil pessoas. Okondjatu, possui uma população média de mil pessoas – delimitando sua fronteira a um raio de 5 à 8km do centro, excluindo as fazendas próximas da localidade. O vilarejo, assim como toda a região, é povoado principalmente por Otjihereros-falantes, em sua grande maioria da raiz Hereros (70-75%), alguns poucos Ovahimba (3-5%), pouquíssimos Ovambo170 (1-2%) e um número um pouco mais expressivo de Bushmen – como foram chamados pelos colonizadores – ou San como são chamados pelas demais comunidades171 (18-25%). Como os demais vilarejos do país, Okondjatu está localizado no meio de terras áridas e secas. À medida que se afasta das cidades mais próximas, como Okahandja, Okakarara ou a capital Windhoek, percebe-se uma mudança abrupta na paisagem, que troca o asfalto pela estrada de chão e os tijolos das casas de alvenaria pelo zinco, pela madeira – realmente pedaços, já que são galhos cortados e enfileirados em forma de parede – e pelo esterco de vaca usado na maioria das construções nos vilarejos172. As pessoas, no mais das vezes, não mudam muito, já que há um constante trânsito de um local ao outro – principalmente dos mais jovens que, uns em busca de emprego e outros já empregados, fazem constantemente este caminho para visitar suas famílias.173 Ao chegar próximo a Okondjatu, um pequeno portão, seguido de um cercado, indica o nome da região na qual se está entrando, é como se estivéssemos entrando em uma fazenda qualquer. No entanto, para quem vem de Windhoek, além desta placa inicial, não há nenhuma 170

Os Ovambo, se encontram no mesmo guarda-chuva lingüístico-cultural Bantu. Sua língua materna é o Otjivambo. 171 Considerados como os primeiros moradores do sul-africano – San em Otjihereros significa “primeiras pessoas” (DIERKS 2002:15 - LTA) –, viviam reclusos no interior do continente, longe do contato com outras tribos. No entanto, com o início da massiva exploração territorial e humana européia e o fim da possibilidade de migrar livremente de um local ao outro, os Bushman – também chamados de comunidade San – passaram a migrar aos vilarejos na busca de comida. Seu contato com outras sociedades foi marcado pela Marginalização e exploração no trabalho – por vezes escravo – e tais traços ainda permanecem presentes na realidade social da maioria do território namibiense, sendo eles constantemente discriminados e considerados por muitos como um obstáculo ao desenvolvimento do país. 172 Com algumas poucas exceções, como as fazendas administradas por empresas e empresários europeus. Nos vilarejos a exceção é em relação àqueles que possuem algum tipo de negócio e então possuem dinheiro para comprar ou fazer tijolos, construindo casas não muito elaboradas mas que se distinguem daquelas feitas com zinco e pedaços de madeira. 173 Com os brancos, descendentes de europeus o que ocorre, é claro, é o contrário. Em geral, eles se encontram nas cidades ou nas grandes e bem equipadas fazendas que possuem.

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sinalização que indique a existência de Okondjatu; não há placas, nomes, distâncias, nada, como se esta fosse terra de ninguém ou terra onde ninguém quer ser achado. Passando pelo portão, algumas casas de folhas de zinco, outras de pedaços de madeira com esterco – a partir de agora todas construções são assim, e as que não são, destacam-se facilmente entre as outras –, todas devidamente alocadas dentro de pequenos lotes, onde algumas famílias vivem criando seus gados. Há até uma placa – feita a mão – indicando o nome de um outro vilarejo antes de Okondjatu, Okatupapa, que não passa de um agrupamento de algumas pequenas fazendas. Segue-se em frente e a paisagem continua a mesma. Alguns minutos depois – talvez uns 5 ou 8km à frente – aparecem algumas casas dispersas por um campo que agora começa a se abrir, vê-se a imagem de uma certa quantidade expressiva de casas que se espalham por todos os lados do terreno, concentrando-se perto do que seria o centro deste aglomerado. Seguindo nesta mesma direção – como quem vem da capital – chegar-se-á até uma estrada “de chão” – sempre “de chão” – mais ampla, ali, cortando todas aquelas casas, no coração de Okondjatu. Esta estrada, é uma das poucas estradas principais que cortam o país. Neste caso, ela liga o leste ao oeste do país, sendo normalmente usada por alguns turistas no intento de visitar os diferentes parques nacionais espalhados pelo país. Para quem segue por esta estrada, Okondjatu será uma visão muito breve e passageira, já que a vila não se estende pela linha da estrada, antes, se espalha transversalmente a ela. Na região central do vilarejo, a luz elétrica faz com que a maioria das atividades econômicas se encontre ali. São pequenos mercados onde se vendem alimentos, fumo e outros suprimentos básicos; alguns bares – uma média de nove em toda a vila – que me parecem os negócios mais rentáveis na vila174; uma barraca muito apertada, onde um homem fica o dia todo ao lado de um telefone e de um aparelho de fax, vendendo seus serviços àqueles que precisam; e uma pequena loja onde é possível comprar, além de roupas, todo tipo de bugigangas. Além desses bares e mercados, que fazem com que Okondjatu esteja sempre movimentado nos finais de semana, com os jovens que chegavam das outras vilas ou fazendas para se reunir. Há também algumas mulheres que, espalhadas por todo o centro, chegavam de manhã cedo de suas casas, ao mesmo tempo em que as crianças iam para a escola, e faziam

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Suas caixas de som, distorcendo as graves entonações de suas músicas, atraem basicamente aos jovens, que se empulham em frente aos bares para beber e dançar ao som de músicas de artistas Hereros – Noki, um de meus colaboradores, sempre que podia, afirmava que, os Hereros, só ouviam essas músicas porque eram cantadas por Hereross pois, caso contrário, eles não fariam questão de ouvi-las.

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um pequeno fogo onde colocavam uma panela para esquentar. Ali, elas vendiam, no que podemos chamar de suas cabanas, pedaços de carne e uns pequenos bolinhos de pão, os fat cake, como são chamados – alimentação preferida de antropólogos carentes de conhecimentos culinários. Um pouco mais ao norte do vilarejo, temos o Posto Policial de Okondjatu, que conta com apenas três guardas que, em termos gerais, não trabalham muito pois, as desavenças existentes, no mais das vezes, são resolvidas pelo escritório da Família Real de Kambazembi, igualmente legitimados pelo governo para trabalhar com questões de roubo, estupro e etc. Próximo a este escritório se encontra também o escritório político do partido NUDO, formado por Hereross unicamente, além do escritório da Wilddog Conservancy, organização que pretende proteger uma espécie de cachorro-do-mato presente em todo território namibiense. Ainda no centro da cidade, voltando um pouco para trás, vê-se um local mais amplo, delimitado com uma bem elaborada cerca, onde ocorrem, todos os meses, leilões para vender bois, vacas e pequenos bezerros175. Além do gado, outros compartimentos no local são separados para a venda de animais menores como ovelhas e cabritos. Estes leilões fazem com que o vilarejo fique bem agitado durante o evento. Além dos ricos fazendeiros que vêm aumentar suas possessões e de uns poucos menos favorecidos que vêm vender o que lhes resta, há ainda uma quantidade grande de pequenas barracas ao redor do local, montadas por pessoas que aproveitam a agitação para vender comida, roupas e outros serviços mais. Seguindo pelo centro, em direção ao leste do país, passarão mais alguns bares e logo será possível perceber, à direita, algumas casas diferentes das que se vêem no centro e no resto do vilarejo. Estas casas, construídas com material de alvenaria, ainda estão, em sua maioria, inacabadas. Elas são habitadas, basicamente, pelos professores da Escola Júnior Secundária de Okondjatu, localizada, a mais de 30 anos, no fim desta mesma rua. Ali é o limite informalmente estabelecido do vilarejo, é onde se encontra, além da escola, uma creche para as crianças dos professores da escola e de outros funcionários do governo, um escritório para o desenvolvimento agrícola e um centro médico com dois enfermeiros onde as pessoas podem ter acesso a remédios e alguns atendimentos superficiais.

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Estes, ficavam separados por pequenas divisões dentro do terreno e depois levados por seus donos – geralmente os empregados dos donos – até algo que, parecido com um ringue, ficava em frente à uma pequena arquibancada, de onde os maiores eram encaminhados por um estreito corredor para serem pesados e quiçá vendidos.

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Por fim, tem-se ainda o terreno religioso de Okondjatu, que deve ser brevemente descrito, para que no decorrer do trabalho, seja possível pensar estes complexos de forma não tão abstrata. Da mesma forma que em outros aspectos, o vilarejo, possui um complexo religioso plural. Possuindo três diferentes igrejas cristãs, além de dois Fogos Sagrados176, as opções são relativamente amplas para aqueles que desejem adquirir um produto religioso. As igrejas, se encontram todas, na região central de Okondjatu. Logo ao chegar no vilarejo, pelo mesmo trajeto descrito anteriormente, se tomarmos a direção do local onde o gado é vendido, encontraremos, no lado oposto da estrada, a Igreja da Estrela de São Josué. Sem placa e nenhuma indicação do local da igreja, os membros se encontram em um pequeno quarto situado no pátio onde mora o seu líder junto com sua família. Seguindo daí para o meio do vilarejo, encontraremos, talvez à 2km da última, a Igreja Oruuano. Uma construção inacabada, sem portas, janelas e sem piso, em meio de um terreno amplo entre algumas casas e, também, sem placas que indiquem o local. A igreja, possui uma construção que se aproxima um pouco dos aspectos físicos usuais de uma igreja, possuindo até mesmo um pequeno cilindro de metal pendurado em uma árvore que funciona como um sino para alertar os fiéis do início do culto. Passando ao outro lado do vilarejo, temos a Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia, uma tenda azul e branca situada no mesmo local onde mora seu líder junto com sua família. Ao lado da tenda, uma nova igreja está sendo construída com armações de ferro e telhado de zinco. Esta igreja, é mais visível que as demais. Além de uma placa à sua frente indicando seu nome, o local pode ser avistado de longe, chamando atenção àquele que se encontra no centro da cidade, na estrada que corta o vilarejo. Além do templo, a igreja também possui um terreno localizado à 1km desta, separado para um projeto que a igreja realiza com os Bushman, abrigando os que freqüentam a igreja, em dois pequenos quartos estruturados com madeira e forrados com zinco. Ali, também se encontra o poço de água usado pela família do líder da igreja e pelos abrigados do projeto. Os dois Fogos Sagrados presentes em Okondjatu, estão no mesmo lado das outras igrejas, porém longe delas, na mesma região leste do vilarejo, dentro do terreno de suas duas famílias e, justamente por isso, de difícil acesso e visibilidade a pessoas de fora de suas famílias.177

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Local de culto aos ancestrais, o qual cada núcleo familiar, em sua maior extensão possível, deve possuir um. O que dificultou o início de meus trabalhos, quando, ainda desconhecido por todos procurava encontrar algum destes locais, sendo constantemente enganado pelos nativos que, pareciam, querer esconde-los. Foi apenas com o início de algumas amizades e ao adquirir confiança de algumas pessoas que finalmente fui levado a um deles. 177

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Okondjatu é, por estes aspectos comentados acima, um local bem freqüentado e geralmente movimentado. Capital de uma região, possui um tráfego constante de carros, o que também é possibilitado – ao mesmo tempo em que possibilita – pela existência de um posto de gasolina e de algumas oficinas mecânicas também geralmente ocupadas, já que as condições das estradas são, em geral, muito desfavoráveis. 2.3 O Fogo Sagrado: tradição autóctone Adentremos agora em direção ao terreno propriamente religioso e aos aspectos que devem ser explicados antes que seja possível aproximar tais fenômenos do instrumento analítico construído no capítulo anterior. Começarei descrevendo o que se caracteriza como a religião tradicional178 Hereros, um dos elementos do repertório nativo, que será um ponto importante para que os complexos religiosos a serem descritos nos próximos capítulos possam ser corretamente entendidos em relação aos discursos a respeito dos sincretismos. A tradição religiosa Hereros que descreverei aqui é o que esse grupo denomina Fogo Sagrado (okuruwo). Trata-se de um acesso mágico-religioso usado para entrar em contato com seus ancestrais e para que os mesmos entrem em contato com deus – o distante e intocável deus –, visando que o grupo obtenha ajuda para superar as dificuldades diante de uma doença, das intermináveis secas ou de qualquer outra aflição. A descrição que aqui será feita a respeito desta tradição, estará, como o restante deste trabalho, baseada nos discursos dos próprios nativos, porém, ao descrever o funcionamento desta tradição, não se estará fazendo referência ao uso particular deste sistema em Okondjatu – o que será melhor entendido no decorrer dos próximos capítulos. O objetivo, assim, é descrever o seu funcionamento da forma como os nativos o entendem e não necessariamente como o fazem, já que a lógica do primeiro nem sempre se aplica ao segundo. Assim, acredito que para entender como esta tradição se desenvolve ao lado das igrejas cristãs em Okondjatu, é preciso saber e apreender como esta se manifesta enquanto conhecimento autóctone adquirido pela força da socialização.

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Parece-me ser interessante fazer uma observação em relação ao uso desta palavra para que possíveis conflitos sejam evitados. Meu uso dela neste trabalho se resume ao simples uso nominal dela, não pretendo preenche-la de nenhuma idéia além do uso da mesma para caracterizar as crenças autóctones deste grupo e que o mesmo entende como seu.

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2.3.1 Símbolos e categorias Antes de descrever as engrenagens deste sistema, parece ser necessário expor todos os símbolos que estão categorizados e hierarquizados dentro deste complexo. Situando-os brevemente, para que o leitor possa perceber mais claramente as disposições estruturais destes, dentro do funcionamento do sistema, bem como os valores atribuídos pelos nativos a cada um deles. 2.3.1.1 Ndjambi e Mukuro: as divindades A relação dos Hereros com suas divindades supremas é superficial e quase inexistente. Acredita-se em um deus supremo (Ndjambi) e em um homem, criação sua, dotado de poderes sobrenaturais (Mukuro), porém a devoção religiosa, comumente prestada a estes seres superiores, é dada aos ancestrais. Assim, sua crença é monoteísta, mas como este deus não cumpre um papel importante dentro do seu conhecimento religioso e sendo os ancestrais aqueles a quem os homens devem cultuar através do Fogo Sagrado, os Hereros podem igualmente ser considerados politeístas, ou seja, estes possuem, além do deus criador um certo panteão de ancestrais os quais são o centro de sua devoção. Ndjambi seria o grande criador que, após criar o mundo e tudo que nele há, criou os principais personagens da vida Hereros: o homem, a mulher e o gado. E após sua criação, retornou ao seu local, ao céu. Conforme observa o antropólogo espanhol Francisco Abati179, em um trabalho sobre a religião dos Ovahimba – que possui o mesmo tipo de culto aos ancestrais – a figura de Ndjambi é vista como estando “acima, no céu, e não no mundo espiritual. É um deus benévolo, porém distante; não se incomoda nem castiga a ninguém. Não causa mal e, portanto, não suscita terror.” Mukuro teria sido o primeiro Hereros. Também conhecido como “o Velho”, acreditase ter sido criado junto com Kamungarunga, a primeira mulher Hereros, e da mesma árvore que os gados – que, têm um papel muito importante para a existência dos ancestrais e, em conseqüência, do próprio Fogo Sagrado. Pode ser entendido como o grande antepassado, “o Velho” que pleiteia as necessidades dos seus herdeiros a deus, mas também é reconhecido como uma divindade, um ser dotado de poderes dados pelo próprio Ndjambi, seu criador.

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ABATI, Francisco Giner. “La religión de los Himbas.” 1992: 158. (LTA)

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O desuso ritual destas duas divindades faz com que haja uma certa confusão, por parte dos nativos e dos estudiosos, na explicação destes como seres superiores. Em minha pesquisa, o que ocorreu foi não só uma confusão, como uma omissão, pois, de fato, tais nomes jamais foram comentados durante minha estada em campo. Meu primeiro contato com os termos Ndjambi e Mukuro, ocorreu alguns meses depois de minha pesquisa ter sido realizada, quando tive a irônica oportunidade de receber um dos meus colaborares (Pastor Matuzee) em minha casa por alguns dias e pude rever algumas questões que me pareciam em aberto. Entre uma questão e outra, começamos a conversar sobre quando os Hereros desciam do norte em direção ao que hoje é a Angola e a Namíbia, no meio dessa descrição, Matuzee comentou a respeito dessas divindades: “Eles [os Hereros] estavam vindo do norte (...), enquanto viajavam, eles estavam olhando ao redor e vendo coisas que tinham sido criadas por deus, eles começaram a ver tantas coisas diferentes (...) que em suas mentes eles pensavam que ‘não, essas coisas não podem existir por si mesmas, tem alguém que criou tudo isso que estamos vendo e essa pessoa é o Velho’, e começaram a chamá-lo Mukuro. Ao perceberem que esse Mukuro começou a dar chuva enquanto eles viajavam, eles o chamaram de outro nome, Ndjambi, que significa ‘alguém que te dá o presente’ e o chamaram novamente de Ndjambi. Se alguém morria entre eles (...), eles diziam que essa pessoa que morreu foi ao ‘Velho’, que é Mukuro, ‘o Velho’.” 180

A confusão parece contribuir à omissão. Ambos, Ndjambi e Mukuro, aparecem como seres superiores, parecem dois nomes para um mesmo deus. No entanto, a descrição de Matuzee contrasta com a descrição do mito da criação do mundo e dos homens. Aqui Mukuro também aparece como criador de todas as coisas, enquanto que Ndjambi parece ser apenas o deus do céu, como afirma Abati181, “Ndjambi está no céu, eles crêem que a chuva, o raio e o trovão vêem dele. O raio e o trovão seriam a voz de Ndjambi.” De fato, as definições são precárias, e não há material suficiente para discuti-las mais profundamente. Ainda assim, pode-se afirmar que a presença destas divindades no exercício da crença no Fogo Sagrado ocorre apenas vagamente; sabe-se que existe um deus, que criou tudo e que “dá o presente”, mas isto não está intrinsecamente ligado à crença do Fogo Sagrado, que depende muito mais dos ancestrais, do gado e do Velho – como veremos a seguir – do que da presença real de Ndjambi e Mukuro. Esse desaparecimento das divindades parece estar de acordo com uma tendência a qual – com todas as precauções possíveis e necessárias – pode ser percebida em Mircea Eliade182, quando este ressalta que 180

11.10.2006, Brasil. (LTA) ABATI 1992: 158. (LTA) 182 ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. 1992: 103. 181

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os Seres supremos de estrutura celeste têm tendência a desaparecem do culto; “afastam-se” dos homens, retiram-se para o Céu e tornam-se dei otiosi. Numa palavra, pode-se dizer que esses deuses, depois de terem criado o Cosmos, a vida e o homem, sentem uma espécie de “fadiga”, como se o enorme empreendimento da Criação lhes tivesse esgotado os recursos. Retiram-se, pois, para o Céu, deixando na Terra um filho ou um demiurgo, para acabar ou aperfeiçoar a Criação. Aos poucos, o lugar deles é tomado por outras figuras divinas: os Antepassados míticos, as DeusasMães, os Deuses fecundadores etc.

Eliade183 continua suas argumentações dando uma série de exemplos onde esse afastamento do deus criador ocorre. Entre os exemplos ele cita o próprio Ndjambi, deus supremo dos Hereros, que “abandonou a humanidade às divindades inferiores”. Assim, talvez seja possível fazer, a partir da fala de Matuzee, uma pequena diferenciação: Ndjambi seria o deus supremo, vivendo não em um mundo espiritual, mas em um mundo celeste longe dos seres humanos; enquanto que Mukuro seria o deus presente, divindade inferior, emissário de Ndjambi no reino espiritual, seria à ele que os ancestrais recorreriam quando requisitados pelos homens. 2.3.1.2 Os ancestrais São estes os verdadeiros seres sobrenaturais existentes neste complexo religioso; os intermediários entre o mundo dos homens e o mundo sobrenatural; entes respeitados e procurados por terem poderes de alçar vôos mais altos que os homens, por chegarem-se a Mukuro, por chegarem aonde a voz humana não consegue chegar. Tem-se, assim, um deus supremo (Ndjambi) que como o deus cristão é considerado o criador de todas as coisas. Foi ele quem deu o fogo aos primeiros Hereros, e alguns afirmam que foi para não esquecê-lo que “o fogo foi guardado”, e foi ainda, ao perceber que esse deus não era um ser tão próximo assim, que os ancestrais (Oohokuro - plural) ressurgiram para mediar a relação dos homens com Ndjambi através do Mukuro. Vivendo, assim como Mukuro, em um mundo sagrado e misterioso aos homens, apenas os mortos seriam capazes de se chegar até ele e mediar a relação entre o terreno (profano) e o sagrado. Uma questão importante que deve ser destacada é que estes ancestrais são realmente os antepassados de uma linha genealógica, ou seja, ao invocar um ancestral, o homem que o faz, está invocando ao seu pai, avô, bisavô, etc sendo impossível e inútil que um indivíduo de uma linhagem vá ao Okuruwo (Fogo Sagrado) de outra linhagem em busca de favores. 183

ELIADE 1993: 105.

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Apenas os de sua família poderão o ajudar e estes apenas podem interagir com o requisitante caso este esteja diante do Okuruwo de sua família, ao lado de seu Velho – homem responsável pelos rituais. Assim, os ancestrais estão ligados à família de seu possuidor e portanto, ao local onde esta se encontra e aos bens que possui – entende-se aqui, basicamente o gado. As pontes parecem ser várias, e discuti-las seria desnecessário, é importante apenas ressaltar a importância dos ancestrais na crença do Fogo Sagrado. Como dito, estes são entes queridos que devem ser invocados continuamente para que possam favorecer os seus familiares que ainda vivem. Além disso, eles devem ser respeitados pois, diferentemente de Ndjambi, os ancestrais podem se enfurecer e atacar sua descendência caso sejam tratados mal ou com desprezo, destruindo suas vidas, seu gado, seu terreno e deixando-os sozinhos.184 Assim, o papel que os antepassados cumprem neste complexo é de extrema importância para o entendimento de toda a crença Hereros. 2.3.1.3 O Velho O Velho, como é comumente chamado, ou o Mukuro vivo como poderíamos também chamar, é o homem responsável pelos cuidados rituais com o Fogo Sagrado. Ele pode ser comparado ao líder espiritual, assim como ao sacerdote,185 mas suas funções não possuem por isso, um ar sacerdotal, antes, são socialmente aceitas como mais uma das funções dos chefes de cada linhagem. Assim, o Velho – como irei chamar durante o restante do trabalho –, é geralmente o homem mais Velho de uma linhagem familiar. Ele foi escolhido por seu pai, ou tio para ser responsável pelos rituais do Fogo Sagrado de sua família. Para ser escolhido alguns requisitos devem ser preenchidos para que este possa realizar estas funções perfeitamente: ele deve necessariamente ser casado e possuir filhos; ter um curral (kraal) em frente à sua casa que deve abrigar algumas cabeças de gado – o que possivelmente foi herdado do antigo Velho, já que o Fogo Sagrado em geral permanece no mesmo local; conhecer todos os trâmites ritualísticos do sacrifico, oferendas e preces que o antigo Velho conhecia. Ele precisa ser um

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O gado é um elemento muito importante no trato com os ancestrais, e a satisfação dos ancestrais está ligada a presença destes diante do Fogo Sagrado. 185 Sabemos que essas funções, em muitas “sociedades sem história” estão correlacionadas, sendo o líder da tribo um ser também motivado religiosamente, às vezes o próprio sacerdote. Entre os Hereros, parece não haver esta distinção especial de sacerdote, o homem que lida com o Fogo Sagrado, é apenas o homem escolhido pelo seu pai como o mais apto a realizar as tarefas necessárias. Sendo assim, as funções rituais se combinam naturalmente com a autoridade social do líder – FRAZER, James. The golden bough. 1993: 9. (LTA)

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grande conhecedor da tradição de seus pais. Estes fatos o tornarão apto para exercer sua função legitimamente. Instituído como líder será, doravante, da sua responsabilidade observar as restrições alimentares e sociais – quando necessárias – e apenas ele pode e deve conversar com os ancestrais. Sua filha mais velha, caso solteira, e no caso da ausência desta, sua primeira mulher – em caso de poligamia – será a responsável por acender o fogo no Okuruwo e de mantê-lo aceso dentro da casa do Velho. Porém, hoje, alguns nativos, discordam desta afirmação, dizendo que sua família apenas o poderá auxiliar quando ele não estiver em casa – já que os ancestrais exigem que as brasas de dentro da casa sejam levadas ao Fogo Sagrado diariamente e, “caso isso não ocorra [lembram os nativos186] as pessoas começam a desaparecer e os ancestrais não aparecem mais”. A partir desta perspectiva, a família do Velho pode apenas realizar algumas poucas tarefas e estas dependerão ainda da situação física da pessoa pois, caso esteja doente, ela não estará apta para realizar as atividades necessárias. A importância das regras estabelecidas ao homem que se tornará o Velho – ser o adulto mais experiente de todo o corpo familiar (poucas são as exceções à esta regra), ser casado e ter filhos - não está apenas ligada à idéia de que na sua ausência alguém deve realizar o ritual, mas também a um pressuposto de que este homem é mais confiável. Afinal, a sobrevivência dos ancestrais para auxiliá-los e a subseqüente sobrevivência do grupo está em suas mãos. 2.3.1.4 A casa A casa do Velho é outro elemento importante na cosmologia do Fogo Sagrado. Antes de ser construída o seu centro é delimitado e um tronco erguido no local. A parte superior do tronco sustentará o centro da casa e a parte inferior terá, aos seus pés, um pequeno pedaço de madeira, metal ou pedra, onde serão colocadas as brasas do Fogo Sagrado para que descansem na parte da noite. Esse poste, erguido verticalmente no centro da casa do Velho, parece funcionar tal como o Fogo Sagrado, como o contato entre o céu e a terra, deus e os ancestrais. A presença deste poste e a sua importância, se aproxima da idéia que os Achilpa – nômades australianos pertencentes aos Arunta – tinham a respeito de seu poste sagrado, o kauwa-auwa, que, como

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18.02.2006, Namíbia. (LTA)

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lembra Eliade187, “‘sustenta’ o mundo deles e assegura a comunicação com o céu”. Talvez a função da “casa sagrada” dos Hereros ou Otjizero, como também é chamada, seja não a de fazer comunicação com o céu – já que esta não é a grande preocupação dos nativos – mas sim com o plano sobrenatural onde se encontram os ancestrais. Enfim, a casa do Velho é a principal do terreno, além de guardar o fogo durante a noite, é também onde estão guardados os objetos pessoais que pertenceram aos antepassados – tais como a bengala e o chapéu que devem passar de geração à geração –, e outros objetos sagrados tais como os instrumentos usados para o sacrifício e os galhos especiais que são usados para acender o fogo. 2.3.1.5 O gado Os Hereros são um povo pastoril e, por isso, o gado está fortemente presente em todas as áreas de sua vida. Ao nascer, a primeira coisa que a criança recebe é um bezerro que será seu e ficará aos seus cuidados; nas demais fases da vida de um indivíduo (início da puberdade, casamento, nascimento dos filhos e morte) o gado estará sempre presente. Porém, ao contrário do que se poderia imaginar, o gado não é, por isso, divinizado, eles são vistos, isto sim, como símbolos importantes na cosmologia social Hereros, são parte importante da tradição possuindo certos atributos sagrados mas nem por isso são idolatrados tal como em certas religiões orientais. Nas questões religiosas, essa importância se dá como resultado natural da afinidade dos homens com o gado. Assim como os vivos, os ancestrais possuem uma forte ligação com o gado que antes lhes pertenciam, por isso, o cuidado dado a estes animais é visto também como uma forma de agradar aos antepassados que poderão atender aos pedidos de seus herdeiros de forma benévola e mais rápida. Dos gados dispostos dentro do kraal situada ao oeste, na frente da casa do Velho, deverão ser separados uma ou mais vacas que serão consideradas sagradas (Ozongombe Ozomwaha). Estas vacas são aquelas que estão mais próximas da família do Velho, apenas estes podem beber de seu leite e, caso alguém de fora da família o beba, essa pessoa poderá morrer. O animal escolhido é também uma das principais ligações dos ancestrais com os homens, ele deve ser, por isso, muito bem cuidado e, caso morra, um período de “caos” irromperá até que uma nova vaca seja escolhida no lugar da outra. 187

ELIADE 1993: 36.

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Assim, um homem sem gado não poderia possuir um Fogo Sagrado e um Velho que possua um kraal vazio, está amaldiçoado pelos seus ancestrais, sendo que muitos acreditarão que o próximo a desaparecer será o próprio Velho. 2.3.1.6 O Fogo Sagrado Por fim o Fogo Sagrado, o elemento ao qual todos os demais convergem, é o centro da religião Hereros, porém sozinho não terá valor algum. Ele depende dos demais elementos, que todos conjugados darão a força necessária para que o Velho obtenha suas petições. O Fogo Sagrado é um pequeno local situado entre a casa do Velho e o kraal, onde estarão colocados alguns galhos no chão e estes cercados por alguns pequenos troncos de árvores ou por pedras, criarão um pequeno templo onde o Velho encontrará seus antepassados. Muitas vezes esse pequeno templo poderá ser cercado por uma cerca de palha, mas em termos gerais, entre os Hereros essas cercas não são mais usadas.188 Ali é o local onde os sacrifícios requisitados pelos ancestrais serão realizados, onde os doentes serão levados para que o Velho sopre uma água sagrada em suas faces para que possam ser curados. É também ali o local onde o Velho passará alguns momentos do seu dia, às vezes sozinho, outras vezes acompanhado de algum de seus filhos pequenos, para os quais contará histórias e explicará o significado de sua crença.

2.3.2 O funcionamento Não se faz necessário uma cansativa análise dos trâmites rituais que envolvem o trato com o Fogo Sagrado e os Ancestrais, tendo explicado os principais símbolos dessa crença, espera-se poder apenas deixar claro as noções básicas a respeito deste complexo religioso. Já que o ponto principal da análise posterior está vinculado apenas aos aspectos mais gerais desta crença, eu estaria me delongando por demais em questões interessantes, porém desnecessárias para que meus argumentos sejam entendidos, caso levasse adiante uma profunda análise deste sistema. Assim,

devo explicar as questões básicas para que o

leitor possa acompanhar e entender as racionalizações e os discursos nativos que nos próximos capítulos serão discutidos. 188

Os Ovahimba, no entanto, ainda conservam estas e outras tradições. São um povo mais recluso e se mantiveram sempre que possível, longe dos contatos coloniais. Em Okondjatu, no entanto, essas cercas não existem mais.

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Não serão expostas aqui as especificidades rituais que envolvem sacrifícios ou algum tipo de realização mágica para a cura de um familiar, etc. Antes, buscar-se-á entender a manutenção diária deste sistema, já que este é o ponto principal de convergência nos discursos sincréticos e anti-sincréticos dos nativos. Como regra geral o que ocorre é o seguinte: O Velho – ou a sua filha mais velha, ou sua mulher, caso a primeira seja casada – deve visitar o Fogo Sagrado diariamente, ao nascer do sol e ao pôr do sol, sentar-se diante do Okuruwo, quando então, os “espíritos dos mortos sopram as brasas” trazidas de dentro de sua casa levantando assim uma pequena fumaça que pode ser vista por todos no terreno, lembrando-os sempre de seus pais, já falecidos, e que hoje são os intermediários entre eles e deus. Diante dos galhos, queimando vagarosamente, o homem conversa com seus ancestrais, expõe suas necessidades, presta-lhes reverência e garante, assim, o bem estar de sua família e as respostas às suas preces. As brasas, com as quais se acende o Fogo Sagrado, devem ser retiradas da frente do tronco que se encontra no meio da casa do Velho e, ao anoitecer, novas brasas devem ser trazidas do Fogo Sagrado para dentro da casa, mantendo a chama dos ancestrais continuamente acesa. Nada mais precisa ser acrescentado a não ser as interdependências diretas de todos aqueles símbolos na eficácia do Fogo Sagrado. Tentar-se-á demonstrar, tal como me foi explicado pelos nativos a importância de cada um daqueles elementos no funcionamento da crença Hereros. A análise do gráfico A poderá auxiliar na reflexão destas interdependências. O que parece ocorrer entre esses elementos é uma certa divisão valorativa para que um 100% de eficácia seja atingido. Gráfico A. Sistema de interdependência do Fogo Sagrado.

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Assim, a total eficácia do Fogo Sagrado dependerá 50% da vontade divina189 – seja ela quem for – e outros 50% da bondade dos ancestrais. Os 50% de deus, parecem estar sempre lá, podendo mesmo ser anulados, já que os nativos não dão uma importância fundamental a esta categoria. A disputa se passa, no entanto, em outro plano, ela está muito mais centrada nos 50% dos ancestrais que, caso insatisfeitos, poderão desaparecer, deixando os homens sem correspondentes com Mukuro. O 50% dos ancestrais pode ainda ser divido em dois. 25% dependeria da manutenção do kraal e mais exatamente da separação da vaca sagrada, enquanto os outros 25%, seria o valor dado à casa do Velho e a todos elementos que estão ligados a ela, ou seja, ao poste no meio dela – que dependeria também das brasas do Fogo Sagrado –, aos materiais ritualísticos – os pertences especiais dos antepassados – e à própria existência do Velho, que deveria observar as regras estabelecidas a ele pelos ancestrais. Caso estes 50% dos ancestrais não sejam atingidos, há o perigo destes irem embora. Para citar alguns exemplos: caso o Velho vá ao Fogo Sagrado bêbado, os ancestrais não irão gostar; o Velho não estará respeitando eles e, por causa disso, eles poderão matá-lo para em seguida desaparecer, deixando sua descendência abandonada diante das intempéries da vida. A cada obrigação descumprida os ancestrais irritam-se e afastam-se mais, como conseqüência, o Fogo Sagrado tornar-se-á mais fraco. Outro exemplo, que já foi brevemente comentado, é a questão da morte da vaca sagrada que, caso morra, deve ser imediatamente substituída através de rituais para a escolha de uma nova vaca que possa então garantir estes outros 25%. Em termos gerais, ao comentar sobre sua crença, os Hereros não a explicam tal como procurei explicar aqui. Esta foi a forma como um deles encontrou para que o pesquisador pudesse entender melhor as suas crenças. Assim como o pesquisador, os nativos também aprendem a informar.

2.3.3 Resumo do quadro Este, enfim, é o aparato simbólico com que tradicionalmente se trabalha o ritual do Fogo Sagrado. A base do sistema se encontra no culto aos ancestrais através do Fogo Sagrado, que por sua vez deve ser manipulado por um homem, o “Velho”. A eficácia deste sistema, ou antes a revelação desta fé, dependerá do cumprimento das regras estabelecidas 189

Ao se referir a esta divindade, os homens sempre se referiam a deus como sendo Mukuro.

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para cada ritual. Tal como descrito no primeiro capítulo, durante o contato com outras tradições religiosas – através dos processos de migração, colonização e do constante exercício da globalização –, estes símbolos, na maioria das vezes, continuaram no mesmo local da estrutural religiosa nativa, sendo por vezes dispostos diferentemente dentro da categorização e regulamentação religiosa dos novos convertidos. Um novo gráfico pode ser elaborado para que seja possível entender melhor estas questões. Usando as construções de Timothy Light – discutidas no primeiro capítulo – será possível fazer em um resumo esquemático a respeito das bases do conhecimento tradicional Hereros, definindo as categorias nas quais estes símbolos estão arranjados – seu(s) “agente(s) sobrenatural(is)”, os seres de “mediação”, o “local sagrado”, os “especialistas” que manipulam os rituais e, ainda, o entendimento dos seus fiéis sobre os caminhos necessários para que ocorra a “revelação” do sagrado neste mundo. Este esforço, conjugado ao que será aplicado na análise dos demais sistemas de conhecimento religioso, contribuirá para que as relações entre um complexo religioso e outro e seus discursos a respeito destes contatos sejam melhores entendidos. Gráfico B. O conhecimento religioso autóctone.

2.4 Penetração cristã: tradição alóctone A tradição cristã, que será brevemente descrita aqui, foi o outro elemento com o qual os nativos puderam elaborar seu repertório religioso. Se de um lado havia a tradição do Fogo Sagrado, socialmente impregnada no cotidiano nativo através do culto aos seus antepassados, no lado oposto, a partir das primeiras décadas do século XIX, havia o culto cristão, 81

continuamente pregado por seus porta-vozes, que tomou parte daquele mesmo espaço social e incluiu, através de novos processos de socialização, a tradição cristã através do culto protestante de tradição majoritariamente luterana. Nestes processos de proselitismo e conversão, o que ocorreu, é claro, foi não só a conquista das almas, mas primordialmente a conquista dos corpos, da terra e a legitimação190 do poder colonial através dos novos convertidos, os quais eram ensinados de acordo com a crença cristã ocidental dos europeus. Estes novos convertidos – que em grande maioria eram uma difícil seara – conjugados com os esforços cristãos de acabar com os “costumes pagãos” foram responsáveis por grandes mudanças dentro dos sistemas tradicionais nativos – sem contar as inúmeras modificações sócio-estruturais advindas com as intenções políticas e militares dos missionários, que funcionavam, muitas vezes como um braço estendido da opressão colonialista. Essa tendência missionária colonialista pôde ser fortemente percebida nos trabalhos do missionário luterano da Rhenish Missionary Society, Carl Hugo Hahn, que, na década de 1840, tentam estabelecer uma missão política e economicamente autônoma em Otjimbingwe, ao norte da Namíbia, através do que ele chamava de “missão através de colonização”191. Klaus Dierks192, ao fazer um estudo documental sobre a história da Namíbia, ressalta algumas características das campanhas missionárias em solo namibiense, que poderiam caracterizar também tantas investidas coloniais em outras localidades do mundo: A campanha missionária para cristianizar a África não apenas converte “heathens” em cristãos, mas também tenta converter africanos em Europeus. Muitas das tradições africanas (e Namibienses) desapareceram não tanto por causa das críticas de matriz teológica, mas sim por causa do imperialismo cultural dos primeiros missionários europeus.

Para além das transformações de ordem religiosa, nas quais o “terreno sagrado” de Okondjatu é mais um resultado desta mudança no conhecimento religioso nativo, Dierks193 continua, salientando que estudos históricos e antropológicos mostraram que o advento das missões cristãs muda fundamentalmente a imaginação cultural dos africanos. Os esforços dos missionários cristãos são decisivos na imposição de um novo modo de ser, na reconstrução da religião, da estética, do conhecimento, da representação corporal, da

190

“A religião foi historicamente o instrumento mais amplo e efetivo da legitimação.” BERGER 1985: 45. DIERKS 2002: 24. (LTA) 192 DIERKS 2002: 23. (LTA) 193 Op. Cit. 191

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sexualidade, das relações de gênero, das instituições sociais tais como o casamento e a família, e de fato, da maioria dos aspectos na vida das pessoas.

Assim, com poucas exceções, as relações entre líderes tradicionais Hereros e missionários cristãos, foram comumente conflitivas. A religião européia, parece ter sido um forte braço na destruição de laços tradicionais e na destruição do próprio povo durante os conflitos armados. Essas atitudes totalmente “antinativas” – que nas missões Anglicanas e CatólicoRomanas eram menos presentes, porém ainda existentes – foram responsáveis por criar uma relação muito difícil entre os Hereros e a grande maioria dos missionários luteranos. No decorrer das atividades colonialistas, os missionários iam movimentando-se estrategicamente uma hora a favor de um grupo outra hora a favor de outro, dando-lhes tanto armas como asilo. Porém, em situações em que a colônia alemã era um desses grupos, os missionários se colocavam a favor desta e em oposição aos nativos. De acordo, é claro, com suas locomoções estratégicas para que, assim como os demais mercadores europeus, pudessem garantir seu poder soberano sobre os sistemas nativos. As investidas proselitistas no território namibiense e, especificamente entre os Hereros, foram revestidas de tomadas estratégicas de poder, e a relação dos novos “convertidos”, parece, foram resultado de uma certa reação antiestratégica que resultou – como será pontuado a seguir – na criação de um cristianismo forrado por interesses igualmente estratégicos – que podem ser claramente percebidos na criação, mais tarde, da Igreja Oruuano. Estes foram os primeiros contatos entre Hereross e cristãos e, parte do conhecimento cristão atual dos Hereros em Okondjatu, é resultado dessas relações. É preciso deixar claro, no entanto, que as motivações religiosas atuais não estão mais intrinsecamente ligadas com estes acontecimentos, sendo que os movimentos cristãos mais recentes, pouco – ou nada – se importam com estas questões na hora de definir as fronteiras de suas crenças.

2.4.1 Discurso nativo: o enfraquecimento da tradição O percurso histórico que aproximou temporalmente – e por certas vezes estruturalmente – cristianismo e Fogo Sagrado, tal como entendido do ponto de vista dos nativos, poderá acrescentar alguns pontos importantes para a discussão. É interessante perceber que a chegada dos cristãos ao território Hereros, é comumente vista, mesmo pelos 83

próprios convertidos, como uma aproximação subversiva e, até hoje, com exceção de alguns fiéis da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia, a presença de um branco por um tempo relativamente longo, é vista como um incomodo por muitos nativos – “e essa barreira [foi] realmente um forte obstáculo que eu precis[ei] atravessar”194. Esta posição negativa em relação aos acontecimentos do passado, está geralmente vinculada aos fatos ligados ao enfraquecimento da tradição Hereros, e em especial da crença no Fogo Sagrado e nos ancestrais. No entanto, diferentemente dos não-convertidos e mesmo de alguns outros cristãos, há aqueles que, mais motivados em relação às suas crenças cristãs, tratam a questão com um certo cuidado, admitindo que os missionários mantiveram posições opressivas em relação ao seu povo, mas tendo o cuidado de esclarecer que o cristianismo não foi o responsável direto pelo enfraquecimento da crença tradicional Hereros. É assim que Zarorwa, uma senhora Hereros de 89 anos, convertida ao pentecostalismo da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia, percebe que os cristãos não destruíram sua tradição, quem o fez, no entanto, teria sido os próprios não-convertidos que buscaram elementos de outras tribos para tentar fortalecer sua crença. Certa vez Zororwa mencionou que antes da chegada dos missionários às terras de seus avós – ao norte do que hoje é a Namíbia –, o Fogo Sagrado era usado para tudo. Os pedidos, feitos em forma de favor,195 eram levados a deus pelos ancestrais. “Nada mais era usado”, dizia Zarorwa. Deste ponto em diante, ela começa a descrever196 o que parece ser a história do enfraquecimento da crença no Fogo Sagrado, o momento em que, com a chegada dos missionários, as estruturas de plausibilidade197 do sistema tradicional Hereros começam a enfraquecer, dando espaço não só à Bíblia, mas, a partir desta primeira ruptura, abrindo-se para as práticas mágicas de seus vizinhos198 que teriam sido o real motivo daquela ruptura: “Quando os missionários chegaram, eles apresentaram a bíblia e disseram que o Fogo Sagrado não prestava. Muitos acreditaram e começaram a seguir os 194

Diário de campo. 09.01.2006, Namíbia. Ela explica que os pedidos deveriam ser feitos da seguinte forma: “Pai [nome do ancestral ao qual quer se dirigir], por favor, converse com deus para que ele nos dê chuva”. 09.12.2005, Namíbia. (LTA) 196 09.12.2005, Namíbia. (LTA) 197 Processo que pode ser entendido melhor na análise que Peter Berger (BERGER 1985:59) faz sobre a perda de plausibilidade do mundo religioso do Peru pré-colombiano. Deve-se apenas acrescentar que, a perda dos traços anteriores ocorreu tanto do lado nativo quanto do lado cristão e ambos incorreram em processos de reestruturação em meio ao “caos” tal como descrito no capítulo anterior. 198 Não é possível sustentar o argumento de que antes disso tal abertura não existisse, mas pode-se supor que este momento tenha se diferenciado dos que ocorriam anteriormente, por ser este um momento em que as bases da crença no Fogo Sagrado haviam sido fortemente atingidas, deixando seus fiéis em um momentâneo caos estrutural, o que teria dado uma certa legitimidade àquelas incursões. 195

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ensinamentos da bíblia, esses diziam que tinham sido ajudados pela bíblia dos missionários. Então, aqueles que ainda acreditavam no Fogo Sagrado tornaram-se fracos porque sua religião tinha se dividido. Assim, os que haviam rejeitado a bíblia começaram a procurar outras coisas para ajudá-los também. Eles viram que o Fogo Sagrado não era o único que podia os auxiliar, então, como esses não queriam se juntar aos cristãos, acabaram se envolvendo com os feiticeiros Ovambo. Como muitos Hereross tinham contatos com Ovambos acabaram por seguir algumas de suas práticas, sem, no entanto, afastar-se do Fogo Sagrado, pelo contrário, tais práticas foram misturadas com as do Fogo Sagrado. Após algum tempo, Hereross iam às terras dos Ovambo para serem treinados feiticeiros. Foi assim que as crenças do Fogo Sagrado e dos feiticeiros misturaram-se. Hoje, quando alguém está doente ou quando eles precisam de chuva, eles pedem aos feiticeiros, mas também mantêm o Fogo Sagrado por precaução, assim os ancestrais não ficarão bravos com eles”

Ora, parece plausível afirmar que o que ocorreu, conforme Zorowa afirma, foi que os homens perderam a confiança, ou pelo menos a certeza única no poder de seus ancestrais e, ao sentirem-se ameaçados por essa fraqueza, foram em busca de outras formas de preencher esse vazio, procurando, conscientemente, novas formas de auxílio. Seu universo religioso rompeu com os laços que mantinham sua existência e limitavam as atitudes marginais dando espaço a elementos estrangeiros. Documentadas em momentos que a tradição deste grupo era discutida frente às transformações ocorridas a partir do século XIX, quando data a chegada dos primeiros missionários ao território, os discursos desta senhora, assim como de outros membros da mesma igreja, não relacionam a influência do cristianismo com a culpa do Fogo Sagrado ter enfraquecido; ele pode ter colocado o sistema em um momento de suspensão, mas a culpa parece ter sido dos feiticeiros. Mavis199, mulher do Pastor daquela mesma igreja, parece concordar com essa análise ao afirmar que “o Fogo Sagrado é inofensivo agora, eles misturaram essa crença tradicional com aquelas dos feiticeiros e agora apenas estes têm poder.” Talvez, fosse interessante ainda atentar para um diferente ponto de vista, um olhar afastado de qualquer vínculo com o cristianismo; isto permitirá fazer um contraponto aos discursos anteriores dando uma idéia mais ampla das perspectivas nativas a respeito daquelas cruzadas cristãs, possibilitando uma outra visão a respeito do enfraquecimento da tradição Hereros. Denzel, um curioso homem de 33 anos, trabalha gerenciando um bar e um pequeno mercado em Okondjatu. Sem saber ler e escrever, não me permitia passar um dia sequer em frente ao seu estabelecimento sem que me chamasse para conversar por pelo menos uma hora. Nossas conversas percorriam assuntos ligados à política mundial, desenvolvimento local, 199

05.12.2005, Namíbia. (LTA)

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tradição Hereros, os períodos de colonização européia e qualquer assunto que lhe parecesse interessante. Em uma dessas conversas, Denzel, que é um homem muito crítico, tentou avaliar comigo os períodos em que os missionários cristãos entraram em contato com seu povo e tentaram converter os Hereros ao cristianismo. A visão que ele tem sobre aqueles acontecimentos é muito mais negativa do que a visão daqueles que, convertidos ao cristianismo, acreditam que o que corrompeu a crença Hereros foram os feiticeiros. O foco da influência cristã, para ele, tanto quanto para os demais Hereros, parece estar focada no “poder” da Bíblia. Para Denzel, no entanto, a forma como ela foi pregada e ensinada entre seu povo foi tal que os negros pudessem ser dominados. Entre muitas interpretações a respeito da crença cristã ele200 afirma: “Eu posso ser namibiense, ir até a África do Sul dizer que sou um cidadão sulafricano ou que nasci nos EUA e as pessoas poderão acreditar em mim. Por isso, eu não acredito que as palavras da Bíblia foram realmente escritas por deus, acho que foi um homem muito esperto que a escreveu (...) ela pode ter sido escrita na Inglaterra ou em algum lugar da Europa (...) pelos brancos para que estes pudessem dominar os africanos”

Ou seja, da mesma forma que um homem poderia ser esperto para enganar alguém de outro país e usufruir certos benefícios, alguém também pode ter criado a Bíblia para poder, a partir dela, atingir certos objetivos, tais como colonizar a alma para melhor atingir o corpo. Para Denzel201, ainda, as pinturas que geralmente são colocadas ao lado das passagens bíblicas – as quais ele me mostrava em uma Bíblia e em alguns livros sobre os ensinamentos cristãos enquanto conversávamos –, eram uma grande prova de que ela foi e ainda é, um instrumento para mostrar que a cultura Hereros não é boa. “Todas as figuras que ilustram a Bíblia são de pessoas brancas. Por que é assim? Não haviam negros naquela época”, pergunta, curioso em saber porque ele deveria acreditar na Bíblia se ela parece não acreditar no seu povo. Assim, diferente dos cristãos, Denzel acredita que foram os missionários e não os feiticeiros que enfraqueceram sua tradição, foram os brancos e não outros africanos os responsáveis por isso. Essa posição pôde ser percebida também na forma como alguns comentavam a minha presença no local. Enquanto eles não entendessem que eu estava ali para estudar sua cultura e não para pregar-lhes uma nova tradição, eu continuava ouvindo mentiras 200 201

07.02.2006. Namíbia. (LTA) Op. Cit.

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a respeito de sua tradição e eles continuavam dificultando o contato e mesmo evitando qualquer conversa mais profunda. O receio é muito forte, mesmo com os próprios Hereros que fazem parte de alguma das igrejas cristãs no local, os quais, para Denzel202 e outros nativos, estão sendo enganados por “pastores que só querem seu dinheiro”.

2.4.2 Resumo do quadro Em nenhum momento a intenção aqui foi fazer um aprofundado estudo a respeito das especificidades do contato cristão com a tradição Hereros, antes, procurou-se limitar a análise aos pontos que poderão contribuir verdadeiramente para aprofundar o entendimento dos complexos religiosos que serão comentados no próximo capítulo. Objetivou-se explicar brevemente, o passado e o presente da influencia cristã na crença nativa, o primeiro a partir de algumas análises históricas e o segundo a partir dos discursos nativos. No entanto, uma última construção deve ser erguida para permitir um diálogo mais profundo e claro entre as construções elaboradas anteriormente e as posteriores descrições. Da mesma forma que na seção anterior, parece ser interessante descrever brevemente o funcionamento deste sistema de conhecimento religioso, definindo assim, a partir daquelas mesmas categorias distinguidas no complexo religioso tradicional Hereros, os símbolos que cumprem funções centrais dentro desta crença. O tipo de conhecimento religioso dos missionários cristãos baseia-se na crença em um único agente sobrenatural, no seu único Iahweh. Este, criador do mundo e de tudo que nele há, está disponível aos homens através de seu filho Jesus e do Espírito Santo, que cumprem o papel de mediadores entre deus e os homens. Os homens, necessitam confessar seus pecados, arrepender-se das antigas práticas e estar presente no local sagrado, a igreja – que nos tempos coloniais poderia ser debaixo de uma árvore, na casa do missionário, assim como em um templo construído especificamente para esta finalidade –, onde o missionário, especialista neste contexto religioso, treinado e preparado para pregar a palavra de seu deus “até os confins da terra” se coloca em pé diante de seus fiéis e, através da Bíblia e das revelações dadas pelo Espírito Santo, ensina ao seu “rebanho” a natureza divina e as regras de profissão e prática de sua fé.

202

18.02.2006. Namíbia. (LTA)

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O gráfico B irá contribuir para visualizar estas regulamentações e irá facilitar as construções analíticas a serem elaboradas nos próximos capítulos. Gráfico C. O conhecimento religioso alóctone.

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CAPÍTULO 3 - O CRISTIANISMO EM OKONDJATU

“As igrejas são quase como o Fogo Sagrado porque é na igreja que eles oram, e eles oram para os seus mortos e deus. Aqui, no Fogo Sagrado, é da mesma forma, então é o direito deles, não tem problema.” Kaveru, 18.02.2006, Namíbia.

O cristianismo, como se sabe, protege – caso queira ou não – atrás de suas fronteiras, uma quantidade imensa de fenômenos distintos que lutam por um lugar ao sol do criador Iahweh. Em Okondjatu, a multiplicidade de eventos, rituais, locais, templos, línguas e interpretações podem apenas ser conjugadas sob o caminho de Cristo e mais exatamente na existência do criador, de deus, o pai – e mesmo que este caminho possa ser expandido por artifícios sincréticos, a direção deverá ser ainda a mesma. Qualquer outro elemento simbólico deste repertório poderá ser alterado, existir e deixar de existir assim como tantos outros também poderão ser adicionados a um complexo que continuará se autodenominando cristão. As fronteiras do cristianismo são amplas, largas e estão em constante modificação – tanto na forma como os pesquisadores das religiões as vêem como na forma como seus fiéis a re-elaboram. Mesmo antes de 1054, quando a igreja cristã foi repartida em católica romana e ortodoxa, diferentes crenças já se diferenciavam debaixo deste mesmo grande guarda-chuva. Passando pelas expansões helênicas, pelas Cruzadas, pelos períodos de colonização, até aos nossos tempos globalmente multiculturalistas, as religiões cristãs passaram por uma série de divisões e criações que, como as divisões matemáticas do espaço entre dois pontos, nunca encontrarão seu fim. Foram essas próprias divisões e modificações no decorrer dos séculos que garantiram sua universalidade e a sua própria sobrevivência.203 203

GAARDER, Jostein et al. O livro das religiões. 2005: 192.

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Assim, o que caracterizarei aqui como cristianismo em Okondjatu é mais uma dessas apropriações, sendo que, o que será exposto aqui possui muitos correlatos estruturais em outras regiões do mundo, e até mesmo no Brasil. No entanto, o contexto e os agentes destes complexos religiosos são o que tornam estas igrejas formações sui generis de um quadro que se permite expandir, o cristianismo. Para esclarecer a análise que farei aqui, deve-se admitir que, entre os Hereros que vivem em Okondjatu, além do Fogo Sagrado, não há outro tipo de crença religiosa204 socialmente legitimada, senão a cristã. Notar-se-á que as definições do que vem a ser o cristianismo para estes indivíduos, está, em grande parte, relacionada com a disposição estrutural da crença nos ancestrais dentro do conhecimento religioso de cada indivíduo e grupo – ou seja, está diretamente relacionada com os discursos sobre os sincretismos, as misturas, os empréstimos, as apropriações, etc. Assim, se a raiz da fé não muda (o caminho de Jesus e a crença no deus criador), a maneira como se acredita nela, com certeza, não será a mesma de fiel para fiel. 3.1 - No fluir dos tempos: a tradição reinventada Antes de descrever o mosaico das criações híbridas em Okondjatu, há alguns fatores históricos que, mesmo resumidamente esboçados, poderão definir a tela onde algumas fronteiras culturais começaram a ser borradas e os novos arranjos da experiência religiosa –os próprios sincretismos – puderam encontrar um terreno fértil para sua frutificação. Afinal, como visto no primeiro capítulo, são as particularidades históricas as responsáveis pela forma e intensidade das relações de contato cultural – neste caso, especificamente o contato entre diferentes complexos religiosos. Durante o tempo em que estive em Okondjatu, poucos souberam me descrever algo mais do que algumas simples observações sobre a origem deste vilarejo. É consenso, entre aqueles com quem conversei informalmente em algumas ocasiões, que o vilarejo é fruto da rivalidade entre dois chefes de famílias Hereros que queriam o domínio sobre a área, no entanto, não há concordância de como esse conflito foi resolvido. Alguns dizem que foi realizado um sorteio para decidir quem ficaria com a terra e que a sorte teria sido lançada com pequenos objetos – pedras, sementes; também não há concordância em relação a isto – dentro 204

Esta definição visa apenas excluir os processos ligados à feitiçaria e bruxaria, já que estes, não são legitimados socialmente. Realizados ocultamente, estes rituais são vistos negativamente por cristãos e nãocristãos.

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de um saco, que em Otjihereros significa justamente Okondjatu, dando origem ao nome do vilarejo. Outros, ainda afirmam que as desavenças foram decididas com o uso de palavras enfeitiçadas205, lançadas um contra o outro durante anos, até que um deles morreu, fazendo com que a família deste fosse enfim para outro lugar. A data exata destes acontecimentos não é conhecida mas pode-se supor, que o vilarejo possua pelo menos 100 anos, já que, além de construções que datam dos tempos da colonização alemã – os períodos da África do Sudoeste206 –, também é possível encontrar, nas margens de um pequeno lago situado no meio da vila, alguns antigos reservatórios de água usados na criação de gado. Se recordarmos que os Hereros eram um povo pastoril – e, na medida do economicamente possível, ainda são – e que estas terras do sudoeste africano não eram – e ainda não são – tão ricas em água e vegetação, este poderia ser mais um forte argumento para acreditar que a região vinha sendo habitada já há algum tempo. Mas, apesar de acreditar que a presença humana no local seja uma realidade desde pelo menos um século atrás, alguns outros aspectos históricos dão indícios de que o local tenha começado a ser mais densamente povoado apenas entre o fim da década de 60 e o início da década de 70 do século XX, quando datam respectivamente, os primeiros anos da Escola Secundária Júnior de Okondjatu e o início dos trabalhos da Igreja Oruuano – igreja de tradição luterana, como será explicado em seguida. A construção destas duas instituições no local, aponta para o fato de que este, já seria reconhecido como um ponto central na região. Assim, o fluxo migratório iniciado acentuadamente durante aqueles anos, teria apenas reforçado esta importância territorial e não dado início a ela. O aumento populacional de Okondjatu, ocasionado pela presença de uma escola e de uma igreja, deu origem a um segundo fator migratório importante – porém de menor intensidade –, que foi a abertura de pequenos mercados para o comércio de alimentos e bebidas. Estes, trouxeram ao vilarejo, pessoas economicamente favorecidas que lá chegaram com o único intuito de construir seus mercados e atender à crescente e potencial demanda por seus produtos.

205

As palavras, afirmam alguns nativos, seriam a forma com que os Hereros lançavam feitiços. Matuzee afirma (11.10.2006, Brasil) que não haviam feiticeiros ou bruxos Hereros conhecidos como tais, mas, no entanto, todos os chefes de família – os homens mais velhos de um núcleo familiar – eram conhecidos como possuindo o poder de amaldiçoar. A idéia de homens preparados especialmente para serem bruxos ou feiticeiros – defende Matuzee e também Zororwa membra de sua igreja – adveio dos contatos com Ovambos durante o fim do século XIX. 206 Período iniciado oficialmente – reconhecido internacionalmente – a partir de 1884, mais especificamente aos 14 do mês de Agosto quando a “Grã-bretanha reconhece as possessões alemãs no território através de um telegrama oficial” – DIERKS 2002: 59. (LTA)

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Resultando das emigrações humanas, o universo econômico e social, bem como a cultura, a religião e outros aspectos importantes da vida tradicional Hereros sofrerão interessantes mutações. No campo religioso, essas mudanças contribuíram para a formação de fenômenos religiosos não-tradicionais que, como veremos, serviram não para enfraquecer os laços “autóctones”, mas para modificá-los com o fim de preservá-los.207 Por isso, a importância desta breve análise histórica, para o estudo proposto aqui. No último capítulo, foi descrito como a crença tradicional Hereros, de culto aos ancestrais, está intimamente ligada ao núcleo familiar. Esta particularidade fazia com que a decisão de procurar outro local para se estabelecer fosse tomada pelos homens mais velhos do grupo que, por sua vez, apontavam o caminho que todos deveriam seguir. Assim, tomavam-se todas as disposições estruturais – as casas, o kraal, as cercas, o Fogo Sagrado, etc. – daquele grupo e as re-alocavam em um novo local onde o sistema tradicional funcionaria da mesma forma. Os processos migratórios em Okondjatu, no entanto, parecem não terem seguido as prescrições feitas pela tradição – o que não seria uma particularidade do local pois, sabe-se, que o mesmo ocorreu em outros processos semelhantes. Os primeiros agrupamentos humanos a chegarem no local, foram, em sua maioria, pequenos grupos familiares que, por vezes, poderiam até ser formados apenas por uma mulher e seus filhos. Esses indivíduos, ao que tudo indica, haviam se retirado de seu núcleo familiar não a partir de uma decisão que envolvia a locomoção de toda sua família mas, talvez na esperança de encontrar ali algum tipo de ascensão social e econômica – que poderia mais tarde, até mesmo beneficiar seu grupo familiar,208 as famílias se dividiram. A família, tal como entendida anteriormente foi desfeita e isto fez com que alguns elementos de importância central em seus sistemas tradicionais não pudessem ser revividos ali. Dentre eles, o que claramente encontrou mais dificuldades para se reproduzir, foi o sistema religioso, o Fogo Sagrado e todos os símbolos que este carregava em seu quadro. As dificuldades encontradas em Okondjatu para que o complexo religioso Hereros fosse recriado, adviram das próprias regras que lhe estavam prescritas. Ou seja, o fogo dos ancestrais de cada família só poderia queimar em um único local e diante de pessoas socialmente legitimadas para isso. Da mesma forma, a casa do Velho, que possui um valor 207

“Dessa forma, a reordenação da ruptura gera um movimento que permite que as culturas sobrevivam, sendo que elas dificilmente morrerão, mas elas jamais serão as mesmas.” (cf. pg. XX deste trabalho) 208 Isto pôde ser confirmado em conversas com alguns dos moradores, quando pude descobrir, que a maioria deles faz parte da segunda geração que nasceu lá, enquanto outros chegaram junto com seus pais quando pequenos por causa da escola e das facilidades existentes na vila.

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importante na soma total do potencial do Fogo Sagrado, não poderia se duplicar e as vacas sagradas, nas quais os espíritos dos ancestrais “repousavam”, não poderiam também sair de seu local determinado. Logo, dependendo da distância dos seus familiares, um indivíduo poderia ficar anos sem visitar seus ancestrais, o que, inevitavelmente, iria modificar seus vínculos pessoais com aquela crença.209 Não posso supor, com os dados disponíveis até o momento, que aqueles indivíduos, ao deixarem suas famílias, estivessem negando suas tradições, mas é inevitável perceber que as próprias regulamentações tradicionais foram responsáveis por esse novo210 enfraquecimento no vínculo tradicional Hereros com seus ancestrais, negando-lhes, ela mesma, a sua própria existência. Ou seja, mantendo-se as regras que dizem que deve haver apenas um Fogo Sagrado por linhagem familiar – ao qual toda uma linhagem deverá recorrer – e que exigem uma disposição territorial específica, os indivíduos que agora estivessem longe dos seus ancestrais e de suas famílias, estariam condenados a uma possível destradicionalização.211 Seu sistema religioso seria enfraquecido pelas contingências históricas da ação e pelos limites de sua própria tradição, o que poderia favorecer o florescimento de um campo religioso fértil para as imaginações sincréticas. Agora, tome tais acontecimentos e acrescente-os ao fato de haver uma igreja de tradição cristã e a presença de uma instituição de função não-religiosa – a escola – no vilarejo. As possíveis modificações que, dessa realidade, podem surgir toma rumos diversos, podendo ser tanto de cunho religioso – a religião do branco reinterpretada –, secular – o enfraquecimento dos vínculos religiosos em geral –, cultural – a cultura do branco reinterpretada – ou mesmo político – o envolvimento nativo em assuntos políticos coloniais (o que já existia há algum tempo). As modalidades sincréticas que desse momento em diante foram criadas, seriam fruto da tentativa – individual ou comunitária – de reordenar um universo que rompe com as significações do passado – e, portanto, resignifica –, neste caso, com os laços religiosos tradicionais. Sabe-se que, nessa reordenação, todo o esforço será feito para manter os mesmos símbolos e significados do passado, que serão – excluindo casos extremos de conversão – re209

Uma questão que irá comprovar tais argumentos em relação à distância destes grupos de seus respectivos complexos religiosos, é o fato de que, em Okondjatu haviam apenas dois Fogos Sagrados o que, nem por isso, significa que o vilarejo estaria divido em duas grandes famílias, muito pelo contrário. Outra questão importante é que, em conversas informais, pude perceber que a grande maioria das pessoas não tem um acesso freqüente ao Fogo Sagrado, sendo que este se encontra, no mais das vezes, muito distante deles. 210 Novo, pelo fato de que este já vinha sendo combatido a muito pelos missionários europeus. 211 Não devemos entrar neste mérito da questão. O termo em sua forma, aqui empregado, visa apenas significar o enfraquecimento, ou antes a modificação, dos vínculos tradicionais de culto aos ancestrais.

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alocados a um novo tipo de conhecimento religioso, dando origem, talvez, a novas regras estruturais; caso estes não possam ser mantidos, novos significados poderão ser dados ou talvez acrescentados ao conhecimento religioso de um indivíduo, não significando, com isso, a perda total do passado tradicional, mas antes, uma modificação do mesmo. Enfim, parece lógico afirmar que – e nas próximas seções isto ficará mais claro – a Igreja Oruuano presente em Okondjatu desde o início da década de 1970, possivelmente possa ter servido não para destruir as crenças tradicionais, mas justamente para que os ancestrais não fossem esquecidos. Modificando, é claro, a forma como certos indivíduos se relacionavam com sua tradição, mas dando-lhes um sentimento de plausibilidade que, caso contrário, não existiria e que era essencial para a continuidade do sistema religioso Hereros.212 Assim, é possível acreditar, que as conversões – ou talvez as falhas das conversões entendidas como sincretismos213 – ao cristianismo não teriam encontrado muitos obstáculos durante aqueles anos, pelo contrário, as condições históricas eram muito favoráveis ao estabelecimento de uma crença cristã, que por sua vez, viria a se desenvolver sincreticamente. As possíveis dicotomias que líderes cristãos poderiam enfatizar, já haviam sido resolvidas. Como numa analogia natural, a liderança do Velho diante dos Ancestrais, se assemelhava à liderança do Pastor diante de Jesus que, por sua vez, representava, como os Ancestrais, a mediação entre deus (Ndjambi ou Mukuro) e os homens.214 Este é apenas o contexto no qual os sincretismos em Okondjatu parecem ter começado a surgir. Claro que estes fatos também são resultados de transformações históricas ainda mais amplas, que estão relacionadas com as mudanças ocorridas em todo o mundo, inclusive dentro do próprio horizonte dos Hereros em geral. 3.2 - Sincretismo e resistência: a Igreja Oruuano O sol estava começando a se pôr, as cabanas começavam a fechar – a comida já havia acabado – e eu retornava para meu quarto, uma barraca alocada em um pequeno quarto sem piso, junto ao terreno da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia. O dia havia sido 212

Peter Berger ressalta isto ao afirmar que: “Cada mundo requer, deste modo, uma ‘base’ social para continuar a sua existência como um mundo que é real para os seres humanos reais. Essa ‘base’ pode ser denominada a sua estrutura de plausibilidade.” – BERGER 1985: 58. 213 “…no caso do sincretismo há uma falha na conversão (…) essa é uma falha da igreja em não autorizar as práticas sociais efetivamente...” – VAN DER VEER 1994: 198. (LTA) 214 Geertz, mais uma vez, parece se enquadrar perfeitamente nesta descrição ao afirmar, em relação a fatores da cultura balinesa que: “O que se acredita como verdade não mudou para essas pessoas, ou não mudou muito. O que mudou foi a forma como se acredita nela.” – citado em GEERTZ 2005. (LTA)

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divertido, passei a maior parte dele com Clerence e Kambila conversando sobre diferentes assuntos, andando por todo vilarejo. Eu já havia me despedido deles, estava a alguns metros do local onde estava hospedado, quando um senhor de mais ou menos 50 anos de idade gritou: “Indjo” – “vem aqui” em OtjiHereros. Ele me chamava para uma breve conversa. Este homem, Caspa – que mais tarde descobri ser o diretor da Escola Júnior Secundária de Okondjatu e Presbítero da Igreja Oruuano – e mais dois amigos seus que estavam escorados em um carro, queriam saber o que eu estava fazendo em Okondjatu. Ele afirmava já ter me visto andando pelo vilarejo mas como é um homem muito ocupado não tinha conseguido conversar comigo ainda. Fui questionado sobre o porquê de estar ali já há algum tempo, e sobre qual era o meu interesse no local; aproveitei o momento para fazer mais alguns contatos e deixar claro que não havia qualquer vínculo meu com o local onde eu estava morando – o terreno de uma igreja – e que eu estava lá para estudar melhor algumas questões relacionadas com a cultura e a religião Hereros. Ao ser perguntado como estava indo minha pesquisa, disse que tudo estava se encaminhando tranqüilamente, comentei brevemente que eu havia ido até a Igreja da Estrela de São Josué para assistir a um culto na noite anterior, mas que o Bispo havia cancelado o culto, um comentário totalmente despretensioso, apenas para demonstrar meu interesse e me afastar de qualquer conexão com a igreja onde eu estava hospedado – já que, como será discutido mais tarde, estas duas igrejas não possuem um relacionamento muito amigável. Ao ouvir isto, Caspa comentou com um certo desconforto, que isso acontecia regularmente e que ele mesmo ia à igreja algumas vezes e, sozinho, orava e lia a Bíblia enquanto esperava por aqueles que deveriam estar lá, mas não estavam. Após esse comentário, ele aponta para seus dois amigos e afirma: “esses dois mesmo, eles deveriam ir e não vão há muito tempo”. Os dois homens baixam a cabeça, mas sem muito constrangimento, enquanto Caspa continua: “todos deveriam ir lá, são todos nossos membros (...) nós somos a igreja tradicional Hereros”.215 Nossa conversa foi rápida, talvez 15 minutos apenas, mas esses poucos minutos me deixaram pensando a noite toda. O que significa afirmar ser a igreja cristã tradicionalmente Hereros? A palavra tradição, até então, nunca havia sido usada nesse sentido “cristão”, não havia uma “tradição cristã” entre os Hereros, havia o culto aos ancestrais e, este sim, o tradicional Fogo Sagrado. 215

12.01.2006. Namíbia. (LTA)

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Uma breve observação deve ser feita, apenas para esclarecer uma confusão que demorei alguns dias para resolver. Meu comentário havia sido sobre a Igreja da Estrela de São Josué – a qual sua igreja também se opõe – e parece que ele entendeu que eu estava comentado a respeito da igreja a qual ele pertence – Igreja Oruuano; eu falei sobre A e ele respondeu sobre B. Mais tarde, como disse acima, descobri que Caspa era um dos líderes da Igreja Oruuano e, ao descobrir isso, fiquei imaginando o que levaria ele a afirmar ser uma outra igreja que não a sua, a verdadeira igreja tradicional Hereros. O fato foi esclarecido quando alguns dias depois, em uma entrevista realizada com ele, as mesmas afirmações foram repetidas, fortalecendo a minha hipótese de que o que ocorreu naquele dia foi perigoso descuido auditivo. Vencido este pequeno – mas por alguns dias perturbador – problema, devese, mais uma vez, conjugar alguns esforços históricos para entender a afirmação “Nós somos a igreja tradicional Hereros!”

3.2.1 - A objetivação reforçada da minoria Seria difícil supor que durante todo o período colonial – da chegada dos missionários até a criação das primeiras igrejas lideradas por nativos –, as crenças nativas teriam sido simplesmente deixadas de lado por aqueles corações africanos convertidos de suas práticas passadas; como se a crença cristã tivesse sido “inteiramente absorvidas através de uma aculturação passiva”.216 Tal como discutido no segundo capítulo deste trabalho, não podemos esperar que esses processos de conversão ocorram da forma esperada por seus protagonistas, pois as motivações para tais “conversões”, tal como os convertidos, variam em grau e gênero. Assim, procurar-se-á compreender a Igreja Oruuano, como o ápice das re-elaborações nativas da crença cristã, como o ponto culminante onde todas as demandas nativas, não legítimas perante o aparato cristão, foram re-alocadas dentro de um novo quadro que, tal como as demais igrejas presentes no mercado religioso namibiense – e mais exatamente no universo Hereros –, foi objetivado à vista de todos, uma opção legítima entre outras. O processo que entendo como essencial para a criação dessa igreja está, claramente, num plano de negociação de identidades e reforço da tradição nativa. Objetivar tais discursos de poder foi um passo importante para tentar recuperar os espaços perdidos para as forças coloniais – onde se incluem as forças proselitistas dos missionários europeus. A análise histórica desse processo irá auxiliar no entendimento destas questões. 216

SHAW; STEWART 1994: 20. (LTA)

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A Igreja Oruuano é uma dissidência dos Hereros com os trabalhos da Sociedade Missionária Rhenish, uma das maiores sociedades missionárias da Alemanha de base Luterana. Uma amálgama de várias pequenas missões, a Sociedade foi criada oficialmente no ano de 1828 e, já ao fim do mesmo ano, havia ordenado os primeiros missionários e os enviados ao sul da África. Logo no início dos trabalhos, os missionários começaram a migrar para o norte, em direção ao sudoeste africano. Neste trajeto, deram-se os primeiros contatos entre a missão e os Hereros, contato este, que viria a continuar por um longo tempo. Desde os primeiros anos, a relação entre a Sociedade e os grupos locais, foi uma relação política; tal como as demais sociedades missionárias em relação a outros grupos, estes usavam seu domínio colonial – e mesmo armamentista – para controlar e fazer guerras – a Sociedade teve, também politicamente, um papel importante no início dos debates, na Alemanha, sobre o estabelecimento de uma colônia imperial Alemã.217 Nos anos que antecederam a guerra entre Hereross e alemães, a Sociedade Missionária Rhenish estava em próxima relação com Samuel MaHereros o qual, apoiado pelos missionários e pelos próprios alemães, ajudou as forças coloniais a matar MaHereros, seu pai e um dos grandes chefes Hereros. Samuel havia feito um acordo com as autoridades coloniais para que com a morte do seu pai e sua nomeação como chefe Hereros, parte da terra fosse dada aos Alemães em troca de armas, roupas, alimentos, bebidas, etc os quais, acreditava Samuel, iriam ajudar sua comunidade. Mas, de fato, Samuel não herdou as possessões de seu pai, ramificando ainda mais os Hereros e aumentando o domínio dos colonos sob as terras nativas. Este foi um dos fortes argumentos que ocasionalmente levou Samuel MaHereros a travar a sua mais dura guerra contra as forças coloniais. No período do conflito com os alemães, os missionários Rhenish controlavam “15 estações missionárias, 32 estações avançadas, e 48 escolas missionárias com 1.985 alunos e 7.508 fiéis”,218 o que se caracterizava pela maior infiltração missionária naquela região da África – Durante os anos de 1904-1906, estes locais servirão de prisão para aproximadamente 12.500 Hereros – sendo que mulheres e crianças eram a maioria.219 Passados estes anos de guerra e após o desmantelamento dos Hereros como um grupo bem estabelecido e organizado, estes começam a organizar-se novamente como uma nação.

217

Em 1880 o território atual da Namíbia foi estabelecido como a colônia da África do Sudoeste Alemã, região com muitos trabalhos iniciados pela Sociedade Missionária Rhenish. 218 DIERKS 2002: 96. (LTA) 219 DIERKS 2002: 120. (LTA)

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Sob a liderança de alguns de seus evangelistas e seguindo os ensinamentos do cristianismo Luterano, os Hereros iniciam um ainda pouco significativo movimento nacionalista – já que grande parte do grupo estava ainda disperso pelos países vizinhos e muitos dos seus líderes estavam mortos. O movimento, no entanto, aos poucos ganha força com a liderança de Hosea Kutako – “conhecido como o pai do nacionalismo moderno Namibiense”220 – que teria um papel muito importante na criação da Igreja Oruuano e na organização dos Hereros. Um aspecto interessante nestes movimentos iniciais, é a forma como as novas conversões se distinguem das anteriores a 1903: “Os Hereross convertidos antes de 1903 tinham aceitado o conceito moral missionário da Sociedade Missionária Rhenish. Os Hereros convertidos no período entre 1904 a 1914 mantêm o paradigma das estruturas de liderança tradicional existentes antes da guerra.”221 Assim, assume-se que, nos períodos imediatos ao pós guerra, todas as reivindicações feitas anteriormente começaram a tomar formas mais objetivas a serem reconhecidas e percebidas pelas forças dominantes. No início da década de 1920, com uma certa liberdade momentânea permitida pelo governo Sul-africano que, com o fim da Primeira Guerra Mundial, anexa o território Alemão à colônia Inglesa, o movimento se fortalece ainda mais e no dia primeiro de setembro de 1920, uma carta é submetida ao então Primeiro Ministro Sul-africano Jan Christian Smuts em nome dos Hereros, pedindo para que os missionários Alemães fossem removidos do território pois eles haviam traído os Hereros durante o período da guerra de 1904-1906 e o continuaram fazendo.222 O pedido foi aceito, porém três anos mais tarde os primeiros missionários Alemães voltam ao território. Menos de um ano depois, em abril de 1921, Eduard Kriele, inspetor da Sociedade Missionária Rhenish, confirma tais fortalecimentos nacionalistas, ao perceber o fenômeno de uma crescente “obsessão por liberdade misturada com um espírito de não-arrependimento”.223 Estes elementos, vistos do ponto de vista Hereros, seriam uma tentativa de recuperar o que foi perdido e se livrar das prisões salvacionistas dos missionários europeus, podendo aproximarse de seus antigos costumes novamente – a Igreja Oruuano foi também resultado destas motivações. Ainda outro evento marcou este momento e foi responsável por agravar as já complicadas relações entre os missionários Rhenish e os Hereros. No dia 23 de agosto de

220

DIERKS 2002: 203. (LTA) DIERKS 2002: 147. (LTA) 222 DIERKS 2002: 174. (LTA) 223 Citado em DIERKS 2002: 176. (LTA) 221

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1923, ocorreu em Okahandja, o enterro de Samuel MaHereros – no mesmo local onde seu pai, seu avô e outros heróis Hereros foram enterrados –, um símbolo do orgulho Hereros recuperado, já que Samuel morreu exilado em Bachuanaland e, portanto, trazê-lo de volta a Okahandja, principal assentamento Hereros, era um gesto de desafio às autoridades e reforço nacionalista de todas as nações Hereros e não só especificamente dos Hereros. Seguido de um culto liderado pelo Missionário Rhenish Heinrich Vedder, o funeral ocorre no pátio da igreja, liderado por Hosea Kutako e de acordo com a tradição Hereros. Isto acabada, enfim, por aumentar a crise com a Missão Rhenish, já que esta, ainda mantinha sua visão de “civilização cristã Ocidental” e uma interpretação pietista do cristianismo,224 o que impossibilitava qualquer tolerância por parte dos missionários a respeito do ocorrido. Seguindo esse mesmo percurso, outros acontecimentos foram somados àqueles, contribuindo igualmente para o crescimento dos movimentos nacionalistas e a organização dos Hereros. Um ponto importante nesse processo foi a criação do Conselho dos Chefes Hereros em 1945. Criado por Hosea Kutako em cooperação com o filho de Samuel MaHereros, Chefe Frederick MaHereros, o conselho foi responsável por uma maior legitimidade dos Hereros enquanto nação, conjugando esforços dos diferentes líderes contra o domínio Europeu. Conjuntamente ao aumento dos movimentos nativos, um outro elemento que contribuiu para que os valores da minoria nativa pudessem ser objetivados, percebidos e entendidos por todos, foi o enfraquecimento da Sociedade Missionária Rhenish. Resultado das crescentes críticas de seus adeptos africanos às atitudes colonialistas de seus missionários, a Sociedade começa a perder forças, tendo algumas de suas congregações entre os Hereros, desvinculadas da missão por seus líderes nativos. O elemento final a compor este quadro que, acredito, culminou na criação da Igreja Oruuano como um aparelho de resistência nativa, foram os discursos dos missionários cristãos a respeito do movimento Apartheid. Em 1950, o ex-missionário Rhenish, Heinrich Vedder – o mesmo que presidiu o culto no funeral de Samuel MaHereros – aceita o cargo de senador no Senado Sul-africano onde seria responsável pelo “Departamento das Questões Nativas” e, em seu discurso oficial, ele comenta: “Nosso governo na África do Sudoeste tem herdado uma ótima herança. Desde o início o Governo Alemão temos realizado aquilo que infelizmente ainda não foi realizado na África do Sul, o apartheid”.225

224 225

DIERKS 2002: 179-80. (LTA) Citado em DIERKS 2002: 211. (LTA)

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No mesmo sentido, e minando ainda mais o domínio da Missão Rhenish, foi realizado em Windhoek, algumas semanas depois das declarações de Vedder, a Conferência Missionário Rhenish, na qual o Apartheid foi o principal tópico, sendo entendido, por grande parte dos conferencistas, como um movimento positivo que, acreditavam eles, promovia “o desenvolvimento separado dos nativos de acordo com suas distintas características”.226 Pouco mais de um mês após essa conferência, Hosea Kutako se encontra em Windhoek com Preses Diehl da Sociedade Missionária Rhenish, esperando traçar alguns objetivos conjuntos que poderiam mudar o futuro da sua comunidade e, de fato, de todos os namibienses. No entanto, a declaração feita por Kutako – de que conforme a concepção Hereros, a igreja, como igreja nacional, não poderia existir sem incluir os direitos do povo onde se encontra – não foi suficiente. A Missão Rhenish manteve o discurso de que caso confundisse questões mundanas com espirituais o trabalho missionário teria que acabar.227 Assim, apesar de algumas outras frustradas tentativas de unir as Missões Rhenish sob uma única igreja para tentar impedir o fortalecimento das congregações nativas, no dia 25 de agosto de 1955, os Hereros, assumidamente deixam a Missão Rhenish e criam o Movimento Oruuano (Oruuano em OtjiHereros significa Comunhão), liderado por Reinhard Ruzo, ordenado em 1949 pela Missão Rhenish – ao lado de Ruzo, Hosea Kutako e outros Chefes Hereros, cumprem um papel central na formação da “Igreja Anti-apartheid”. Nasce, enfim, a Igreja Oruuano, movimento reforçado das demandas nativas, vista pelos missionários como mais um setor aquecido pelas ondas de nacionalismos da Namíbia, um movimento “confuso e que prega falsas doutrinas”, um “despertar nacionalista (...) que trouxe um certo reavivamento da velha adoração aos ancestrais”.228 A objetivação reforçada das demandas por terra e liberdade pelos Hereros, pela minoria. É a religião do branco, do colono, transformada para reforçar os sistemas nativos de fé e política. As fronteiras, que antes eram controladas por homens armados nas trincheiras coloniais, foram ultrapassadas; os controles de estoque acabaram. Os nativos, ao reivindicar uma igreja cristã Hereros, tomam posse daquilo que lhes controlava; procuram se elevar a um status que antes não lhes era possível possuir. Nessa absorção229 de novos territórios, a

226

Citado em DIERKS 2002: 211. (LTA) Op. Cit. 228 DIERKS 2002: 216. (LTA) 229 Talvez, a palavra apropriação seja melhor para definir este movimento de inclusão de elementos cristãos ao sistema nativo ou, da inclusão inversa, de elementos nativos ao sistema cristão, já que não se deve presumir que todos Hereros fossem convertidos à religião cristã. 227

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fronteira religiosa de seus fiéis se alarga, mantendo em seu quadro, tanto a crença no Fogo Sagrado, que antes lhe era contrária, como as doutrinas cristãs.

3.2.2 - “Nós somos a igreja tradicional Hereros!” Talvez agora, após essas observações, seja possível imaginar o porquê desta igreja ser considerada por muitos a “igreja tradicional Hereros”. Sem muitas dificuldades seria ressaltado que isto ocorre pelo fato dela ter sido um dos resultados de um amplo movimento de luta a favor da tradição e do povo Hereros do qual os grandes líderes Hereros fizeram parte. No entanto, pensando mais criticamente e rompendo com toda essa historicização até aqui empregada, parece inevitável questionar o que uma frase como aquela - “Nós somos a igreja tradicional Hereros!” – pode significar em um local como Okondjatu. Dizer-se tradicionalmente Hereros, em um local onde a distinguida “tradição do Fogo Sagrado” não possui raízes muito profundas, pode ter um significado sincrético de poder ainda um pouco mais elaborado. Nesse sentido, afirmar-se como um cristão tradicionalmente Hereros em meio a um povo que tem orgulho de seu passado e de suas tradições – por mais que o Fogo Sagrado não seja um elemento muito presente na vida de grande parte dos moradores de Okondjatu, a maioria deles respeita sua tradição, vendo-a, por vezes, como um presente do próprio deus –, é esforço de controle maior de um certo estoque de significados. Afinal, eles não só vão à igreja, como também vão ao Fogo Sagrado. Eles não só pedem a Jesus, como pedem também aos ancestrais. Afastando todos aqueles movimentos nacionalistas do passado, os quais não necessitam mais serem tão exercitados, deve-se poder perceber que os significados de discursos estruturalmente semelhantes – como o de afirmar-se a igreja tradicional Hereros – se modificaram durante o tempo. Não há mais necessidade de pregar a criação de uma forte igreja Hereros, o inimigo colonialista, a ser combatido, já foi derrotado – restam, talvez, apenas as armaduras, as armas e o sangue – o território agora é um de livre competição entre diferentes sistemas religiosos. Ora, se apelar para um passado heróico não causa mais o mesmo efeito – e em Okondjatu, a ineficiência destes apelos pode ser verificada no fraco interesse da população na Igreja Oruuano –, novas estratégias devem ser traçadas com o fim de desviar destes 101

obstáculos. O processo é quase como um de qualificação, pois a medida em que a competição pelo mercado religioso aumenta, novos elementos devem ser lançados para obter adeptos; se certa estratégia que vinha funcionando anteriormente, já não funciona mais, algumas alterações devem ser feitas. Em Okondjatu, no discurso de Caspa, essa estratégia, foi a de tomar um importante tópico existente entre os Hereros – qual seja: o culto aos ancestrais – e colocá-lo como um elemento importante dentro deste complexo, para assim, poder afirmar com todas as palavras e em oposição a outros sistemas religiosos: “nós não somos contra o Fogo Sagrado porque nós nascemos com ele”230 Esse parece ser o maior objetivo em colocar-se como pertencente a igreja tradicionalmente Hereros: afirmar-se defensor de uma tradição há muito combatida, e isto, para as atuais populações Hereros, é uma questão de orgulho, tanto pelos feitos do passado como pelas suas tradições que continuam sendo combatidas por alguns outros tipos de conhecimento religioso. Analisando ainda um pouco mais esta mesma frase, e pensando na posição do próprio pesquisador diante da situação, pode-se supor que, Caspa, procura relacionar dois sistemas religiosos em um único quadro não apenas com o intento de convocar os seus próprios compatriotas, mas também de se mostrar legítimo diante de um homem, branco, que sem muita dificuldade poderia ser denominado cristão. Separando a frase estruturalmente pode-se elaborar um breve resumo a partir do seguinte esquema: “Nós somos a igreja tradicional Hereros!” As partes sublinhadas deverão situar os elementos pertencentes ao conhecimento religioso Hereros, enquanto que a parte sem sublinhado, significará os elementos pertencentes ao conhecimento religioso cristão. Destacados esses diferentes quadros – os quais foram esquematizados em gráficos anteriormente – e verificada a origem da frase – do Presbítero da Igreja Oruuano – é possível perceber que aqueles dois quadros foram re-alocados a um novo tipo de conhecimento religioso, o conhecimento religioso da Igreja Oruuano que, por sua vez, pretende-se ampla o suficiente para abrigar em seu templo diferentes crenças, sem que elas pareçam contraditórias.

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Caspa. 12.02.2006, Namíbia. (LTA)

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3.2.3 - cristianismo e Fogo Sagrado: tentativas de reconciliação Uma análise mais focada no quadro específico da Igreja Oruuano poderá auxiliar no entendimento de como estas conciliações ocorrem com vias a acabar com quaisquer supostas dicotomias e alegações de sincretismo, sendo que este último é contundentemente negado e combatido – o que vem a ser outro ponto interessante para o estudo em questão. Tem-se, assim, dois sistemas lógicos, usados para dar uma base suficientemente firme para que a afirmação discutida anteriormente pudesse ser formulada. Os dois teriam como objetivo acabar com o conflito entre as concepções cristãs a respeito do Fogo Sagrado. O primeiro, de aparência anti-sincrética, buscando fornecer algumas modificações estruturais, tentará reforçar o próprio cristianismo afastando, dessa forma, possíveis contradições; o segundo, a partir de um processo de reinterpretação das crenças nativas pelas lentes das concepções cristãs, procurará reforçar a tradição Hereros. 3.2.3.1 - Reforço do cristianismo Em uma das conversas que tive com Caspa, alguns dias após aquela intrigante definição da sua igreja, comentávamos a respeito do valor do Fogo Sagrado para a Igreja Oruuano, de como esta questão foi importante no combate ao controle hegemônico das forças colonialistas. Nesta discussão, aparecem as primeiras articulações com vias a acabar com qualquer possível dicotomia entre a aparente existência mútua da crença cristã e daquela dos ancestrais em um mesmo quadro. É necessário legitimar o uso destes dois elementos religiosos distintos em um mesmo conhecimento religioso, já que, por ambos os lados há a exigência de uma certa exclusividade. Zororwa, a mesma senhora citada anteriormente, lembraria que os ancestrais já não são mais os mesmos. Com a chegada dos missionários ao território, seu sistema de culto e devoção se fragmentou e foi posto no mercado sem maiores implicações para aqueles que daquele momento em diante o rejeitaram. A Bíblia, Jesus e Iahweh também já haviam perdido seu sistema legitimador tal como ocorria na Europa. No entanto, as críticas elaboradas pelos missionários continuavam pois, sabe-se, o caminho proposto por estes é um de dimensões bem restritas e, entre elas, o culto aos mortos é um ponto amplamente combatido desde o antigo testamento. Assim, seria preciso elaborar algumas modificações que permitissem o uso conjugado destes dois sistemas religiosos em um único universo religioso. 103

A estratégia, para Caspa, foi a de elaborar algumas distinções entre a igreja e o Fogo Sagrado, entre religião e cultura. Tomando a mesma direção do Concílio Vaticano II a ser realizado alguns anos mais tarde, Caspa defende, neste momento, uma cisão entre o conhecimento religioso e os costumes culturais, transformando discursivamente, algumas relações estruturais, assim, ele231 pode afirmar que “nós não somos contra o Fogo Sagrado, sabe, ele é como um presente, todas nações têm seus presentes e isso é natural. É como eu e você, nós comemos coisas que você não come, que você não sabe e isso não é errado. Mesmo o pastor da nossa congregação tem seu próprio Fogo Sagrado. Aos domingos pela manhã, ele vai acordar no nascer do sol, vai se sentar lá [diante do Fogo Sagrado] e fará as coisas culturais, depois ele vai pegar sua bíblia e virá pregar na igreja”

Muito interessante esta separação que ele tece entre as coisas culturais e as coisas – agora digo eu – religiosas –, separando a crença dos ancestrais do quadro da Igreja Oruuano. Aquilo é outro departamento. Talvez, Caspa poderia dizer, como disseram alguns missionários Rhenish, que não seria bom misturar questões mundanas com questões espirituais. Uma coisa é ir à igreja, outra coisa é ir ao Fogo Sagrado, não há contradição nisso. Religião e cultura estão dispostos em diferentes quadros no conhecimento religioso da Igreja Oruuano. Ao analisar alguns outros comentários a respeito das doutrinas dessa comunidade religiosa, percebe-se que, no quadro geral da igreja, este sistema funciona, aparentemente, exatamente da forma como foi prescrito: “nossas doutrinas são relacionadas com as de Martin L. King”.232 Assim, o Fogo Sagrado e os ancestrais não são invocados na igreja, dentro do quadro Oruuano. Ao comentar sobre os processos de cura – de muita procura em Okondjatu e na Namíbia em geral –, Caspa233 parece confirmar ainda mais suas afirmações anteriores, ao afirmar que “na nossa igreja, se você diz que está com AIDS nós iremos apenas orar por você, não temos nada para dar para você beber ou o que seja, seremos apenas eu e você orando pela cura, nós não temos todas aquelas coisas [como outros conhecimentos mágico-religiosos] de fazer isso e aquilo (...) depois, de orar, você poderá ir ao Fogo Sagrado, mas isso não tem nada a ver com a igreja.”

Certo é, no entanto, que mesmo estruturalmente dispostos em quadros diferentes, tanto igreja como Fogo Sagrado, são elementos presentes dentro do repertório dos fiéis desta 231

01.02.2006, Namíbia. (LTA) 12.02.2006, Namíbia. (LTA) 233 01.02.2006, Namíbia. (LTA) 232

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congregação e, por isso, não se anulam. Eles funcionam como oportunidades plurais de acesso aos bens sagrados, o que torna ainda mais difícil entender a lógica defendida por Caspa. É como se houvesse um link dentro do quadro religioso que, permitiria ao indivíduo se reportar religiosamente ao aparato cultural sem no entanto negar seu aparato religioso. 3.2.3.2 - Reforço da tradição Hereros Em aparente oposição às definições anteriores, Caspa parece trazer o Fogo Sagrado, mais uma vez, para dentro do quadro de seu conhecimento religioso. Tecendo algumas outras articulações com vias a garantir também a sua crença no Fogo Sagrado, legitimando sua cultura a partir de arranjos que expliquem a mesma a partir dos discursos religiosos. Assim, religião e cultura, antes quadros opostos um ao outro, agora formam um sistema corroborador, onde ambos se justificam, sendo este o momento mais visível do encontro entre a crença no Fogo Sagrado com os ideais cristãos da igreja Oruuano: “mas, se você voltar, na bíblia, os Israelitas tinham um altar. O altar é como o Fogo Sagrado, sabe, aquilo é o tipo de crença dos Hereros...e nós acreditamos nele porque é o nosso presente, é aonde os mais velhos vão para falar com os ancestrais, para que estes falem com deus e peçam chuva...eles pedem ajuda para deus, assim como os Israelitas faziam quando chamavam Abraão, Jacó e Isaque”234

Logo, o culto aos ancestrais e conseqüentemente a crença no Fogo Sagrado, não poderiam ser combatidas nem mesmo pelos cristãos mais fervorosos, afinal, está na Bíblia. O altar dos Israelitas, onde os sacrifícios eram feitos e a presença de deus se manifestava, muito se aproxima com o Fogo Sagrado – que, tal como é chamado ainda em algumas tribos Hereros, por muito tempo era também conhecido como o “Local dos Sacrifícios”. A própria questão do culto aos ancestrais pode ser legitimada trocando-se a concepção de “culto aos ancestrais” pela de “petição aos ancestrais”, dessa forma, Caspa235 afirma que “nós não podemos dizer que nós oramos àquelas pessoas, aos ancestrais, nós não os cultuamos, apenas pedimos a eles para que eles peçam para deus nos ajudar (...) como disse, funciona da mesma forma com os Israelitas, porque eles estão chamando a Abraão senão justamente para que este leve seus pedidos direto a deus?”

234 235

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Assim, para Caspa, não há nada de contraditório entre o uso do Fogo Sagrado e a crença na Bíblia e na religião cristã. Diferentemente de alguns outros cristãos, a Bíblia, para Caspa, serve para corroborar sua fé cultural – expressão dele – e não para negá-la como que dando um pano profano a algo que deve ser evitado. Nesse sentido, o antes afastado quadro da tradição Hereros, agora se aproxima ao ser justificado pelo aparato religioso cristão.

3.2.4 - Sujeitos sincréticos Feitas essas distinções se torna difícil visualizar onde, exatamente, se encontrão as incursões sincréticas; em que momento pode-se perceber dois elementos de diferentes sistemas religiosos interagindo em um único quadro. Se estruturalmente os arranjos favorecem a distinção – entre cristianismo e Fogo Sagrado –, na prática, fazendo uma análise dos diferentes quadros em questão – religião e cultura –, a própria estrutura da Igreja Oruuano abrange essas distinções. Ou seja, afirmar que a crença nos ancestrais é uma crença cultural e não religiosa, é uma estratégia para legitimar o que, antes da “tomada do poder”, era ilegítimo. Por isso, o sincretismo, como estratégia de poder e redefinição de identidades, está vinculado àqueles que, sincreticamente motivados, traçam reelaborações de dois sistemas religiosos distintos, de forma a abrigá-los em um único complexo de conhecimento religioso, eclesiasticamente cristão, mas tradicionalmente Hereros – daí a frase “nós somos a igreja tradicional Hereros!”. Por isso, parece mais correto afirmar que sincréticos são os indivíduos que se apropriam de diferentes discursos para corroborar suas próprias construções de fé. Não há sincretismos quando o Pastor da Igreja Oruuano, acorda pela manhã e se dirige ao seu Fogo Sagrado onde fala com seus ancestrais, assim como não há sincretismos quando o mesmo, toma sua Bíblia e vai à igreja pregar a palavra de deus. Os diferentes complexos religiosos não foram “infectados”, nem mesmo “corrompidos”, continuam existindo da forma prescrita sem misturar elementos de outros sistemas sagrados. É o próprio sujeito, ao que parece, quem traça sincretismos ao justificar sua crença, ao abrigar em si, dois sistemas de contato com o sagrado – um a partir da religião e outro a partir da cultura –, não ao vivenciá-los pois, ao fazê-lo, ele estará apenas tomando proveito de uma situação plural, acrescentando elementos em seu repertório. Os sincretismos existem como justificativas individuais de re-apropriação de uma identidade antes combatida – a dos Hereross. 106

3.2.5 - Resumo do quadro Estas são as especificidades do conhecimento religioso da Igreja Oruuano em Okondjatu; suas fronteiras, limitadas pelo zelo cristão e pelo respeito à cultura Hereros, muitas vezes parecem borradas aos que, como o pesquisador, se posicionam fora de seu quadro de ação, fora de seus limites. No entanto, para seus líderes e fiéis, não há dúvidas quanto ao seu limite, “nós somos a igreja tradicional Hereros!”, isso parece dizer muita coisa. No entanto, a igreja, que está estabelecida em Okondjatu a mais de 30 anos, passa por um momento difícil, parece que a disputa nesse território plural tem lhe sido perversa. Na única vez que ouvi o sino da igreja tocar, nos três meses que estive lá, me senti realmente transportado pelo tempo, como que no meio do processo de colonização, quando a igreja era o centro e braço forte dos colonos. No entanto, o pedaço de metal pendurado em uma árvore – que nada lembra um sino de verdade –, ao tocar apenas aquela única vez em todo o tempo que estive lá, traz à mente uma igreja vazia e a imagem é verdadeira, têm-se a percepção de que há 30 anos nada mudou. Os tradicionais membros da igreja – lembrando a afirmação de Caspa de que todos os Hereros deveriam ir a sua igreja – a tem abandonado, uns por motivos seculares e outros pela adesão as outras igrejas de Okondjatu. Talvez o desanimo em relação à igreja seja pelo fato de que seus discursos de poder não são mais necessários para vencer um inimigo em comum, talvez seja pelo fato do próprio Pastor da igreja não parecer interessado em sua manutenção – já que este mora em outro vilarejo à 14km de Okondjatu e não esteve presente no local um dia sequer durante minha estada –, ou ainda, talvez, mesmo pelos trabalhos proselitistas das demais igrejas no vilarejo. Seja como for, a igreja está lá, seu templo e mesmo um líder que, por mais que não seja seu Pastor, responde em nome da igreja e é reconhecido como tal pelos moradores do vilarejo – antes de conversar mais profundamente com Caspa, todos se referiam a ele como Pastor da Igreja Oruuano, além de Diretor da escola. Na base de seu conhecimento religioso é possível conjugar os outros dois tipos de conhecimento religioso definidos no capítulo anterior: o autóctone tanto quanto o alóctone. Suas regras doutrinais seguem os princípios das missões luteranas européias, porém suas fronteiras permitem que os costumes de seu povo sejam mantidos sem conflitos; sem diabolizações, porém também sem assimilações – todo tipo de hibridismo é veementemente 107

combatido por Caspa, que afirma ser tão errado misturar elementos religiosos distintos em uma única religião quanto casar com uma pessoa de outra tribo, por exemplo. Tomando então, os gráficos B e C tais como explicados no último capítulo, e realocando-os em um novo gráfico D, é possível definir melhor o conhecimento religioso da Igreja Oruuano. Assim, o conhecimento religioso Hereros é subtraído como elemento de um repertório religioso e acrescentado a um quadro cultural que, ainda sagrado, é legitimado pelos próprios elementos daquele repertório religioso o que faz com que, na perspectiva da Igreja Oruuano em Okundjatu, religião e cultura estejam em quadros diferentes, mas se relacionem para se justificar. Uma última particularidade desta igreja, está no fato do seu Pastor, tal como informou Caspa, possuir também um Fogo Sagrado, sendo assim um especialista tanto religioso como cultural236 – para usar as separações do próprio Caspa – podendo clamar pela cura tanto a Jesus quanto aos ancestrais, a depender, é claro, do quadro no qual se encontra. Gráfico D. O conhecimento religioso da Igreja Oruuano.

3.3 - Discursos anti-sincréticos: a Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia Era o quinto dia do mês de janeiro, eu havia passado a manhã toda organizando os materiais até aquele momento “coletados”, separando alguns tópicos que ainda não estavam bem retratados e pensando alguns novos para dar força às minhas reflexões sobre os aspectos do terreno religioso Hereros em Okondjatu. 236

O que não o caracterizará, necessariamente, como um “sujeito sincrético”, já que pressupõe-se, a partir das entrevistas realizadas com Caspa que o Pastor não confunde sua posição religiosa com sua posição cultural.

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Após o almoço, li alguma coisa sobre a história Hereros e fui dar uma volta pelo vilarejo. Ao retornar para a igreja onde eu estava acampado, encontro o Pastor Matuzee e um homem “contratado” por ele, em cima da tenda da igreja que havia sido desmontada para que pudesse ser limpa. Nos cumprimentamos e, alguns minutos depois, após tomar um copo de água, fui ao encontro dele para conversar um pouco. Ele perguntou como estava indo minha pesquisa, mostrando-se não muito interessado após minhas poucas palavras. No entanto, como que sentindo o silêncio, ele murmurou – enquanto continuava varrendo a tenda azul e branca –: “É, Castro. Não é fácil trabalhar aqui!”; “eu posso ver”, comentei. Rapidamente ele dá seqüência à sua frase anterior, tecendo uma breve descrição da origem das causas de o trabalho da sua igreja em Okondjatu ser tão difícil: “Sabe, quando cheguei aqui para começar os trabalhos da igreja, as pessoas me ameaçavam, dizendo que iriam me expulsar daqui e me maltratar pois eles não queriam nenhuma igreja pentecostal no local, pois nós somos contra o Fogo Sagrado (...) por isso, o trabalho foi sempre muito árduo. Por causa da crença nos ancestrais, os Hereros são difíceis de se arrepender mas, quando se arrependem, eles se tornam cristãos fervorosos.”237

Neste rápido comentário, se encontra presente o âmago doutrinal, mais forte e visível, da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia – a igreja pentecostal, como seu Pastor costuma afirmar –, a partir de onde os discursos anti-sincréticos surgem: ela não aceita o Fogo Sagrado e não permite que tais práticas se misturem positivamente ao seu conhecimento religioso, antes, as combate com todas as forças, fazendo com que este seja o front de seu principal embate com as demais igrejas. Para deixar mais claro estas primeiras observações, remeto-me à noite do dia 24 de fevereiro. Eu estava arrumando minhas malas para a viagem que faria para Windhoek antes de embarcar de volta ao Brasil e, enquanto isso, conversava com Matuzee sobre os planos para que o meu retorno fosse tranqüilo – já que era necessário encontrar uma boa e barata carona para chegar a capital. Em meio à conversa, Matuzee me entregou uma carta, que ele iria colocar no correio assim que chegássemos na capital e pediu para que eu fizesse uma breve revisão dela – já que a carta seria endereçada para um dos seus mantenedores no Brasil. A carta238, escrita em Inglês, era breve. Descrevia o andamento do trabalho, agradecia todo o

237 238

05.01.2006, Namíbia. (LTA) Matuzee deixou que eu fizesse uma cópia da carta no dia 25.02.2006, Namíbia. (LTA)

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suporte dado por estas pessoas e, no final, destacava alguns pedidos de oração. Entre eles, os três primeiros chamaram a atenção: “(1) Ore para que os Hereross sejam libertos do culto aos ancestrais; (2) Ore para que a igreja das falsas profecias [a Igreja da Estrela de São Josué] não destrua e roube as pessoas, suas possessões e seu dinheiro através dos seus processos de cura; (3) Ore pela imoralidade sexual e pelo abuso de bebidas alcoólicas.”

Matuzee pontua claramente, nestes pedidos, aquelas que são suas principais intenções em Okondjatu: fazer com que os incrédulos percebam que devem “adorar apenas a Jesus Cristo”239; “livrar as pessoas dessa confusão[o sincretismo]”240; além de “libertar eles de tudo isso [da imoralidade]”.241 Com estes três princípios básicos, a igreja se coloca neste terreno religioso como a única que não aceita o Fogo Sagrado e o sistema religioso – para eles é religioso e não cultural, como na Igreja Oruuano – de culto aos ancestrais. Procurando se desvincular ao máximo de qualquer proximidade com a tradição dos seus antepassados, Matuzee e seu rebanho, buscam se afastar ao máximo de qualquer mistura teológica, cultural e mesmo física, entre os “verdadeiros cristãos e os falsos cristãos” – como sem dificuldade Matuzee costumava diferenciar. Ao rejeitar amálgamas entre a tradição do Fogo Sagrado e as crenças cristãs, os membros da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia não estão simplesmente excluindo certos elementos de um certo repertório religioso, estão, na verdade, procurando fortificar as fronteiras de seu próprio quadro através de discursos que lhe dêem uma maior legitimidade, com os quais eles procurarão “garantir” uma posição privilegiada de domínio “verdadeiro” de um repertório religioso específico, destacando os demais repertórios no mercado como falsas reelaborações da verdade cristã. Este antagonismo às sínteses religiosas, quando percebido por outros agentes deste cenário religioso – os “falsos cristãos”, aos olhos da igreja pentecostal –, gera interessantes comentários a respeito daqueles reclames de poder e podem auxiliar no entendimento da tendência anti-sincrética desta igreja. Discursos, tais como o do Presbítero Caspa242, da Igreja Oruuano, que comenta a respeito disso que: “de alguma forma eles não querem reconhecer nossa igreja, eles vem até nós e dizem que nós precisamos nos arrepender (...) nós não 239

11.10.2006, Namíbia. (LTA) 12.02.2006, Namíbia. (LTA) 241 07.01.2006, Namíbia. (LTA) 242 12.02.2006, Namíbia. (LTA) 240

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entendemos o porque disso (...) eles se dizem os únicos verdadeiros cristãos”. Ou, como os discursos dos membros da Igreja da Estrela de São Josué – aqueles que, aos olhos de Matuzee, “estão mais enganados” –, tal como o de uma senhora que comentou comigo que, em um domingo, após o culto, Matuzee e alguns outros membros da igreja pentecostal foram até o centro do vilarejo, onde realizaram um breve culto ao ar livre. Ela afirma243 que , após a pregação: “Ele veio conversar comigo e disse que eu precisava me arrepender. Eu respondi que eu já era cristã, pois eu vou a igreja também [a da Estrela de São Josué], mas ele me respondeu dizendo que eu ainda tinha algumas coisas das quais eu precisava me arrepender.”

Percebe-se que, quando os fiéis da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia se afirmam como os “verdadeiros cristãos”, ao mesmo tempo em que procuram se afastar dos discursos sincréticos, tentam desvincular o cristianismo – ou pelo menos o “verdadeiro cristianismo” – daqueles que se utilizam das estratégias sincréticas. Assim, ao defender suas fronteiras com o uso de discursos anti-sincréticos, tentam ampliar seu próprio território, desapropriando, com aqueles mesmos reclames de autenticidade, os terrenos cristãos dos demais agentes religiosos presentes em Okondjatu.

3.3.1 - Pastor Matuzee Será possível visualizar melhor as fronteiras deste quadro religioso, atentando para aquele que foi o principal responsável pela criação desta igreja, há pouco mais de 6 anos atrás. Tomando como base os discursos feitos pelo Pastor Matuzee a respeito do seu percurso até a criação da igreja e, mais especificamente, o relato da sua conversão, poder-se-á localizar melhor a base originária daqueles discursos anti-sincréticos.244 Matuzee tem hoje 31 anos de idade, é casado com Maves, também com 31 anos, e é pai de três crianças. Sua mãe, se separou de seu pai quando ele tinha ainda alguns meses e, pouco mais de um ano depois, em 1978, casou-se com Jefta, com quem permanece ainda hoje. Matuzee cresceu junto com outros três irmãos mais novos, e foi criado ao lado de sua mãe e

243

17.01.2006, Namíbia. (LTA) Todas as citações feitas nesta subseção foram extraídas de entrevista realizada com Matuzee no dia 11.10.2006, em Porto Alegre. As citações que não se remetem a este dia, serão distinguidas. 244

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Jefta – seu padrasto –, que faziam parte da Igreja da Cura da Fé de São Felipe – igreja que funciona da mesma forma que a Igreja da Estrela de São Josué. Sua família sempre esteve muito presente nos trabalhos da igreja e esse envolvimento influenciou o próprio Matuzee que, com apenas 12 anos de idade, realizava reuniões religiosas com colegas em seu colégio, sendo que em 1995, já com 20 anos de idade, foi ordenado um dos pastores da igreja, responsável pelo trabalho com os jovens – nessa época seu pai era o Bispo da igreja, líder máximo da congregação. No início de 1997, seu irmão mais novo, Clement, se alistou na Marinha Namibiense e foi enviado ao Rio de Janeiro por quatro anos, como parte de um treinamento que a Marinha Brasileira havia sido contratada para ministrar. Logo ao fim de 1997, antes do seu primeiro retorno à Namíbia, Clement se converteu ao cristianismo da igreja Assembléia de Deus e em Dezembro, ao retornar para casa, reuniu toda a família e começou a explicar tudo o que lhe haviam ensinado no Brasil. Matuzee e Jefta, ainda ativos na liderança da igreja, não se agradaram das palavras de Clement pois este, dizia que os sacrifícios e a forma como as demais coisas do Velho Testamento estavam sendo pregadas na igreja de seus familiares não eram corretas. “Ele tentou nos explicar sobre o novo testamento, mas nós não queríamos saber (...) eu o ouvi, mas como eu era o pastor dos jovens e ele não era nada, eu me recusei a aceitar suas palavras, eu não queria acreditar naquilo”, recorda Matuzee. Clement retornou para o Brasil no início de 1998 e no final do mesmo ano, já estava de volta, com seus familiares. Ao retornar à Namíbia, Clement voltou a falar tudo o que já havia comentado da vez anterior. “Mas, dessa vez”, comenta Matuzee, “eu peguei minha bíblia e comecei a checar as coisas que ele havia falado, comparando os versos do Antigo e do Novo Testamento”. Após checar algumas vezes o que seu irmão falava, Matuzee conta como, na noite do Ano Novo, “enquanto todos gritavam”, ele foi “completamente transformado”: “Eu estava sozinho no meu quarto e de repente eu comecei a chorar enquanto eu me perguntava ‘porque eu digo que sou cristão?’ Por que, eu olhava pra minha igreja e via que eu não estava vivendo uma vida santa, eu podia ter quantas namoradas eu quisesse, eu podia ir aos meus ancestrais o quanto eu quisesse, eu podia fazer feitiçaria o quanto eu quisesse e fazer várias coisas o quanto eu quisesse. Não havia nada me dizendo que eu era filho de deus, sabe? Por isso eu comecei a chorar e disse para deus: ‘deus, se eu sou pecador, realmente, está na hora de você mudar minha vida’. Eu comecei a chorar em 1998. Enquanto todos gritavam e se divertiam, eu estava chorando sem paz no meu coração. Na manhã seguinte, eu estava completamente transformado, e eu dizia: ‘esse ano, 1999, a partir do primeiro de Janeiro, eu não vou pecar mais’.”

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Em Fevereiro do mesmo ano, Matuzee, Clement e Jefta, foram para Windhoek e se encontraram com outros cristãos da Igreja Seguidores de Cristo que lhes falaram sobre as mesmas coisas que Clemente já havia lhes falado. “E nós vimos que realmente tudo aquilo era verdade, como que eles falavam sobre a mesma coisa sem se conhecerem? Algo estava para acontecer! Nós tínhamos que entregar nossa vida a Jesus.” Durante esta época eles ainda eram membros da Igreja da Cura da Fé de São Felipe, onde eles retornaram ainda algumas vezes até que, em um domingo, Matuzee se levantou para dar uma palavra à igreja – como veremos na próxima seção, nestas igrejas todos podem trazer uma mensagem antes que o pregador comece a falar – e as pessoas se opuseram a ele, dizendo que ele não poderia falar por que ele não estava propriamente vestido – cada uma dessas igrejas possui um uniforme especial que os membros devem usar –, alguns minutos depois, ele se levantou novamente e, mais uma vez, eles se opuseram, afirmando que “nós não permitimos os ‘nascidos de novo’ aqui”. Após este acontecimento, toda a sua família saiu da igreja – seu pai, no entanto, já havia se afastado. Ao saírem daquela igreja, eles decidiram dar início a um novo trabalho. Usando o templo que havia sido construído na fazendo da família, para ser usado como uma filial da outra igreja, Matuzee, Jefta e Clement, fundam a Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia. Nos primeiros meses de atividade, a nova comunidade contava apenas com os ensinamentos de Clement, que passou parte daquele ano na Namíbia. Não havia mais ninguém para os ensinar, no entanto, “o trabalho havia sido começado”. Ao comentar sobre as transformações ocorridas na vida de sua família, Matuzee procura elaborar, ao discorrer sobre o uso dos sacrifícios, o que, para ele, é o principal ponto de convergência em relação às práticas passadas: o uso do sangue de Jesus para expiar os pecados e curar os doentes e não mais o sangue de animais. Esse discurso, quando melhor analisado, parece estar na origem dos pensamentos anti-sincréticos desta igreja: “Quando nós estávamos na Igreja da Cura, nós misturávamos estes dois sangues [do velho e do novo testamento], o sangue dos animais somado ao sangue de Jesus Cristo, nós não tínhamos o significado correto para o sangue de Jesus. Hoje, não há necessidade para nós sacrificarmos animais, eles são coisas do velho testamento, agora, no novo testamento, o sangue de Jesus é pra sempre, não há mais necessidade em sacrificar animais.”

As primeiras barreiras começavam a ser expostas, as primeiras distinções entre “nós” e “eles” que, não se erguiam apenas contra aos membros da sua antiga igreja ou das demais igrejas que sacrificavam animais, mas contra as próprias tradições do povo Hereros, que 113

começavam a ser analisadas com cuidado, para que fosse possível definir as fronteiras exatas até onde um “verdadeiro cristão” poderia ir, para identificar as falsas doutrinas. Dessa forma, ao mesmo tempo em que as demais igrejas, o Fogo Sagrado e todos os seus ancestrais, se viram renegados a um campo profano. Não era mais possível ser cristão e permanecer pedindo benefícios aos ancestrais, a mudança para um outro “sistema de fé” não permitia isto. O novo sistema, o cristão, exigia a completa sujeição ao único caminho dado por Jesus, sem misturas, sem atalhos ou caminhos paralelos, deve-se adorar “ao senhor Jesus Cristo apenas”. Esta decisão, no entanto, poderá ser recompensada, ensina Matuzee. Ele comenta, a respeito disso que, ao se converter – e deixar as práticas de culto aos ancestrais, que vivia paralelamente às atividades de sua igreja –, ele conseguiu o emprego que há muito tempo estava procurando: “Eu estava fundo no Fogo Sagrado e sempre que eu tinha algum problema grave eu ia até ele para pedir ajuda, como no período antes de me converter. Eu estava sem trabalhar já há algum tempo e estava indo regularmente ao meu Velho pedindo que ele falasse com meus antepassados que eu estava precisando de um emprego e que eu precisava saber o que fazer pois eu estava perdido. Meu Velho me levava ao Fogo Sagrado e, diante dos ancestrais, me lavava com água, fazia sacrifícios, conversa com os ancestrais e eu acreditava e voltava para Windhoek para procurar emprego. Os Boas – os brancos que podiam lhe empregar – apenas me olhavam de longe e diziam: ‘hei, você! Você não deve vir aqui, vá embora’. Eu havia me tornado mais azarento ainda. Aquele caminho não era a vontade de deus pra mim. Por isso, tudo aquilo continuou acontecendo, até que eu percebi que eu deveria adorar ao senhor Jesus apenas e, assim, um ano após eu dar minha vida pra Jesus eu comecei a trabalhar. Não é complicado, é apenas um sistema de fé, meu amigo, as pessoas precisam mudar suas mentes. Apóstolo Paulo diz que nós devemos ser transformados pela renovação da nossa mente.”

A “renovação da mente”, tal como comentado por Matuzee, citando o Apóstolo Paulo, deve assim, ser entendida, como a mudança de um “sistema de fé” sincrético para um de tipo anti-sincrético. Não se deve misturar as coisas, pois, às vezes, reforça Matuzee, “o diabo se faz de anjo de luz”. O testemunho de sua vida como pastor continua com algumas revelações, sonhos e uma viagem ao Brasil, na qual Matuzee foi batizado e participou de um curso de liderança. A viagem foi organizada por um missionário brasileiro que conheceu a Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia ao final do ano 2000, quando esteve acompanhando a congregação por alguns meses, dando-lhes algumas orientações. Em 2001, Matuzee vai ao Brasil, onde é batizado e, ao voltar à Namíbia junto com o missionário, batiza os primeiros membros da igreja. 114

Enfim, motivado com o tempo que havia passado no Brasil e com o crescimento da igreja na fazenda, Matuzee decide começar um trabalho em Okondjatu. Ao chegar no vilarejo, como já foi lembrado no início desta subseção, seus planos não foram vistos favoravelmente pelos líderes do local, que se opõem veementemente à sua permanência ali. Mas, apesar de todas tentativas de impedir o início dos trabalhos, a igreja enfim consegue se estabelecer no vilarejo. O caminho, deste ponto em diante, é direcionado ao estabelecimento de uma igreja que procura ser competitiva no mercado religioso de Okondjatu. Não será necessário, para o entendimento destes discursos anti-sincréticos, descrever como essa luta ocorre, isto levaria o trabalho a uma direção diferente da que está sendo proposta até aqui. No entanto, parece interessante destacar as estratégias usadas – conscientemente ou não – para fortalecer as fronteiras da igreja e delimitar com clareza o tipo de conhecimento religioso defendido neste “sistema de fé”.

3.3.2 - Delimitando as fronteiras: as estratégias de poder As fronteiras de um grupo religioso são, em grande parte, traçadas a partir dos limites de outras comunidades. Ou seja, os discursos afirmativos – na defesa de uma identidade religiosa – de um sistema religioso, procurarão valorizar suas crenças ao mesmo tempo em que negar os discursos concorrentes. Algumas comunidades negarão apenas certos aspectos dos demais grupos, apropriando-se de alguns elementos e descartando outros. No entanto, em grupos nos quais as estratégias anti-sincréticas podem ser percebidas claramente, os discursos que fortalecem as suas barreiras estarão declaradamente contrapostos a qualquer outro grupo que esteja presente em certo mercado de bens religiosos. Estes discursos anti-sincréticos podem ser percebidos tanto nos “insiders”, através dos discursos sobre sua autenticidade, quanto nos “outsiders”, em geral, oponentes dos primeiros, a quem serão dirigidas palavras de acusação de falsidade. Ambos discursos já foram analisados aqui mas, é necessário expor ainda o funcionamento daquelas estratégias em relação a cada um dos grupos aos quais a Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia – os “insiders” – se opõe.

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3.3.2.1 - O Fogo Sagrado: diabolização/mundanização da tradição As muralhas erguidas contra o culto aos ancestrais não estão muito bem alinhadas em todas as bordas deste quadro religioso. Ao refletir sobre as tradições às quais um dia recorreram, os convertidos à Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia, procuram explicar sua oposição àquele sistema, tanto a partir de discursos que exibem a fraqueza do sistema em oposição a grandeza da fé “verdadeiramente cristã”, como a partir de discursos que mundanizam e diabolizam a tradição, definindo-a como uma criação humana influenciada pelos espíritos das trevas. A primeira estratégia – a de demonstrar a fraqueza do sistema tradicional –, pode ser percebida nos comentários sobre a própria história Hereros, feitos por Zororwa, onde ela aponta para o fato de que o cristianismo é mais forte do que o Fogo Sagrado que, enfraquecido pela chegada dos missionários ao local, foi misturado com as práticas mágicas dos Ovambos, perdendo a batalha contra a Bíblia e seus evangelistas. Da mesma forma, Mavis, mulher do Pastor Matuzee, afirma que o Fogo Sagrado perdeu seu poder ao se misturar com práticas ocultas – tal como visto no capítulo anterior. Assim, o sistema de conhecimento religioso tradicional é negado, aparentemente, pela sua simples fraqueza e insignificância diante dos ensinamentos cristãos. Certa vez, eu conversa com Clement245 a respeito do Fogo Sagrado e de como ele via esta tradição do seu povo. Ao refletir sobre sua descrença, ele explicava que “durante suas orações, às vezes, eles começam a dizer: ‘sim, sim, eu te ouço’, como se eles estivessem realmente ouvindo os seus ancestrais”. Mais tarde, no mesmo dia, ele comenta sobre o caso de um Velho que destruiu seu Fogo Sagrado enquanto estava bêbado, corroborando a lógica da igreja pentecostal de que o Fogo Sagrado não possui mais poder algum: Ano passado, em um vilarejo próximo a Okakarara, um homem estava bêbado e foi ao seu Fogo Sagrado – ele era o Velho daquele Fogo Sagrado, seu pai tinha lhe dado ele. Quando ele estava diante daqueles galhos, bêbado, ele disse: ‘essas pessoas que morreram! Eles me deram esse fogo, mas eu ainda estou bebendo, eu ainda estou tendo problemas, que tipo de Fogo Sagrado é esse que não está me ajudando’. Depois ele tomou tudo aquilo, os galhos e tudo mais e começou a jogar fora enquanto ele dizia: ‘você, Fogo Sagrado, você deve ir agora’. Daquele momento em diante o homem começou a acreditar nele mesmo, não havia nenhum Fogo Sagrado e ele parou de beber e começou a viver uma boa vida”

245

10.12.2005, Namíbia. (LTA)

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Todos esses comentários, no entanto, não deixam de estar articulados com os discursos elaborados pelo Pastor Matuzee, que estabelece a cisão anti-sincrética com o culto aos ancestrais ao definir o Fogo Sagrado como uma religião criada por homens, influenciada pelos espíritos do mal. Dessa forma, entende-se que a crença deve ser abandonada pela verdade única da Bíblia que, usada de maneira diferente daquela da Igreja Oruuano, provê não a legitimidade mas a ilegitimidade do Fogo Sagrado.246 Assim, o deslocamento estratégico da igreja pentecostal, em relação ao sistema religioso tradicional Hereros, dá-se a partir de reinterpretações da própria história do Fogo Sagrado. Essas percepções históricas, acredita Matuzee, foram reveladas a ele por deus para que ele pudesse compreender e ensinar ao seu rebanho a verdade. Tais afirmações, podem ser resumidas na constatação de que “antes da criação do Fogo Sagrado, ele era só uma fogueira onde os homens costumavam sentar para conversar” e podem ser melhor entendidas na seguinte explicação: “Existem muitos locais diferentes onde os homens costumam ir. Quando eles sacrificavam, eles costumavam ir para trás das casas e ficar lá por um longo tempo, até que a carne do animal esfriasse (...) Existem muitos locais onde os homens ficam em um lugar e as mulheres em outro, aquele fogo estava apenas lá, na frente da casa do principal homem do local, para que os homens pudessem ficar sozinhos. Até que um dia o espírito de idolatria colocou em suas mentes: ‘Oh, nós precisamos adorar’. Na verdade, deus criou uma pessoa para adorar a ele, e essa sede, essa brecha que estava no homem, o levou a adorar outras coisas. O espírito precisa adorar mas ele não sabe como adorar, não havia nenhuma Bíblia para mostrar de que forma eles precisavam adorar a deus. Foi por isso que, aquele espírito, os encorajou: ‘Tudo bem, vocês precisam adorar, mas através dos seus ancestrais.’ Mas isso foi acontecendo apenas até que a Bíblia trouxe toda a verdade: que nós precisamos adorar apenas através de Jesus Cristo, para que este vá ao pai.”

A partir dessa lógica, é possível re-alocar todo o conhecimento religioso anterior dos convertidos para um status de profano, diabólico e secular, ou seja, tudo o que a Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia procura rejeitar: “as coisas da carne”. Que, para Matuzee247, logo serão extintas: “Sabe, no final, essas coisas chegarão a um fim, tudo o que nasceu da carne deverá chegar a um fim. A feitiçaria chegará ao seu fim, o Fogo Sagrado chegará ao seu fim, toda idolatria, todas aquelas coisas, elas deverão chegar ao seu fim.”

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Isso, se dá basicamente pela separação, anteriormente discutida por Matuzee, de que o sangue do Novo Testamento não deveria mais ser misturado ao do Antigo Testamento. Essa restrição proposta por Matuzee, faz com que a própria afirmação positiva do Novo Testamento acabe sendo um discurso anti-sincrético em relação às articulações deste com o Velho Testamento. Essa articulação não permitiria que a Bíblia fosse utilizado para legitimar o culto aos ancestrais – esta mesma lógica será percebida na definição de outras fronteiras. 247 11.10.2006, Brasil.

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3.3.2.2 - Os “falsos cristãos”: “eles estão transformando o cristianismo em tradição” Há ainda uma outra fronteira com a qual a igreja pentecostal procura contrapor-se identitariamente. É aquela referente às igrejas cristãs que mantém as práticas de culto aos ancestrais e que, além disso, possuem também elementos mágicos, sendo que, muitos dos líderes destas igrejas, são, eles mesmos feiticeiros – essa fronteira em Okondjatu é explicitamente percebida em oposição à Igreja da Estrela de São Josué. Durante minha primeira semana na Namíbia tive a oportunidade de fazer uma viagem com Clement e seu pai, Jefta, até a casa de sua avó, com quem conversaríamos por alguns dias. Durante a longa viagem até a fazenda de Zororwa, passamos por um local, no meio da estrada, onde, de um lado, havia uma placa pendurada em um pequeno poste e, do outro lado, uma grande quantidade de pedras perto de uma pequena cerca que pareciam ter sido jogadas uma por uma. Na placa – branca –, havia sido desenhado – em preto – uma cruz no centro, um nome em cima – “Kurama Jambera” – e o nome de um vilarejo em baixo – “Okozonduzu”. De longe pude avistar a placa e, por curiosidade, perguntei o que era. Clement, já parando o carro, explicou que no local está enterrado um Bispo de uma das igrejas como a que ele e sua família pertenciam. Antes de morrer, dizem, o Bispo, que também era um poderoso feiticeiro, pediu para que fosse enterrado ali e que fosse colocada uma placa com seu nome e que, também, fosse colocado uma cerca ao redor de seu túmulo para que o local pudesse ser melhor preservado. “Depois”, continua Clement, “quando estava muito próximo de morrer ele jogou uma maldição, dizendo que todos os que passassem diante de seu túmulo e não jogassem uma pedra para mostrar respeito por ele iriam morrer”. Clement se mostrava bastante incomodado com o local, acredito que não por causa da história em si, mas sim pelo fato de que, segundo suas palavras, “muitas pessoas se apresentam como cristãs mas, quando passam diante daquele túmulo, ou em qualquer outro altar como aquele, mostram respeito, assim como eles o fazem na igreja.” Isto, para Clement, é o maior problema das outras igrejas, “como aquelas de Okondjatu". Ele afirma que, no momento em que eles misturam elementos cristãos com aqueles dos ancestrais e dos feiticeiros, “eles estão transformando o cristianismo em tradição”.248 Nesta frase, Clement conseguiu descrever as principais fronteiras da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia. Em uma única sentença, parecem estar discriminados, tanto aqueles que buscam os ancestrais, como aqueles que buscam – ou são – os feiticeiros; além 248

09.12.2005, Namíbia. (LTA)

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disso, a frase distingue o quadro positivo, que deve ser buscado constantemente – o cristão – e o quadro negativo, diabolizado, que deve ser vencido e combatido a toda hora – o “Tradicional”.

3.3.4 - Resumo do quadro O tipo de conhecimento religioso da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia é definido pela sua reconhecida posição anti-sincrética diante de qualquer possibilidade de amálgama, em um único quadro, de diferentes elementos de distintas tradições religiosas. A regulamentação de seu “sistema de fé” não pode ser entendida sem que sejam percebidos os argumentos a favor de sua autenticidade e da subseqüente acusação aos outros sistemas com os quais se relaciona. Definidas estas fronteiras, pouco há para ser acrescentado. De acordo com as categorias que até aqui têm sido distintas – Agente sobrenatural, Mediação, Local sagrado, Especialista, Revelação – a igreja pode ser explicada tal com a Igreja Oruuano. As distinções teológicas entre essas duas igrejas não serão retratadas neste esquema por não serem importantes para o entendimento dos discursos anti-sincréticos aqui analisados. Fazendo questão de limitar suas fronteiras em relação àquelas tradições religiosas consideradas falsas, a igreja pentecostal mantém a base de sua fé próxima do modelo dos missionários cristãos, mas expande essas fronteiras ao distinguir sua base de qualquer outro sistema religioso que possa se dizer cristão, criando assim, como poderá ser percebido na análise do gráfico E, expansões para desapropriações anti-sincréticas elaborando discursos que visam separar o “verdadeiro cristianismo” do “falso cristianismo”.

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Gráfico E. O conhecimento religioso da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia.

3.4 - Fronteiras expandidas: a Igreja da Estrela de São Josué Era domingo de manhã. Uma manhã como todas as outras se não fossem as mulheres, as crianças e alguns homens, todos bem vestidos, se dirigindo aos dois templos cristãos que, naquele dia, abriam suas portas aos interessados – fiéis, curiosos, antropólogos desesperados, etc – em adquirir algum(uns) dos seus bens. A Igreja Oruuano mantinha suas portas fechadas, obrigando seus membros mais zelosos a escolher entre a Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia ou a Igreja da Estrela de São Josué. Neste dia, minha escolha havia sido outra. Um homem de um vilarejo próximo a Okondjatu, com quem havia conversado no dia anterior, marcara uma entrevista comigo. Havíamos combinado de reservar aquela manhã para que ele pudesse me explicar melhor alguns aspectos sobre a tradição Hereros e, mais especificamente, sobre o Fogo Sagrado. O sol já se encaminhava às 10 horas da manhã e o homem ainda não havia chegado. Como estava acertado, eu o esperava em minha barraca, a esta altura já muito incomodado pois nossa reunião havia sido agendada para as 8 horas da manhã. Às 10 horas e 15 minutos, quando minha paciência estava começando a diminuir consideravelmente, Noki249 aparece, me procurando para acompanhá-lo ao culto da Igreja da Estrela de São Josué liderada pelo Bispo Abiud. 249

Membro da Igreja da Estrela de São Josué. Se mostraria ser um bom amigo e colaborador de meus trabalhos.

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Fazia algumas semanas que eu tentava participar de um culto da igreja do Bispo Abiud, no entanto, sempre que chegava no local encontrava o Bispo e seus Pastores sentados à sombra conversando. Sem o menor interesse em realizar o culto, eles me diziam que estavam muito ocupados. Dessa vez, acredito que, por ser o principal culto semanal, não havia dúvidas, o culto seria realizado. Não demorei muito para decidir que iria ao culto, duas horas de atraso era demais. Combinei com Noki de encontrá-lo em sua casa, já que eu teria que me vestir apropriadamente para ir ao culto – não era permitido entrar de calção na igreja – e ele teria que colocar a roupa especial que ganhara em Okakarara, ao se tornar membro de uma igreja como essa – um manto branco (algo como um jaleco), um tecido branco ao redor do seu pescoço, que possuía de um lado uma estrela azul e do outro uma estrela amarela, além de uma corda branca amarrada na cabeça. Em alguns minutos, já estávamos nos dirigindo para o local do culto. Durante o caminho, muitos riam das roupas de Noki, chamando-o de pastor e pedindo sua benção, o que apenas o fazia rir também. O templo era dentro do terreno do Bispo da igreja, onde ele morava com sua mulher e seus 15 filhos, um pequeno quarto perto da estrada principal pintado de vermelho na parte de baixo, na porta e nas janelas e branco nas demais partes. Ao nos aproximarmos do local, já era possível ouvir as vozes que eram acompanhas pelas entusiasmadas palmas guiando as músicas. A porta da igreja mantinha-se fechada durante toda a reunião e só poderia ser aberta, permitindo a entrada e a saída das pessoas, enquanto todos estivessem cantando. Assim, ao chegarmos na igreja, Noki esperou alguns minutos até que os cânticos começassem novamente para bater na porta. Nisso, um homem abriu uma pequena fresta da porta, fechando-a rapidamente e abrindo-a novamente, saindo com um pequeno pote de água na mão – fechando a porta atrás dele mais uma vez. Noki estendeu suas mãos e pediu para que eu fizesse o mesmo, explicando-me que o homem devia derramar um pouco de água em nossas mãos e rostos para que pudéssemos nos purificar antes de entrar no local – além disso, estávamos sendo purificados de alguma doença ou feitiço lançado contra nós. Logo nos primeiros minutos, enquanto os gritos, vozes e palmas cresciam dentro do templo e a água “limpava nosso interior”, lembrei-me da semelhança deste processo com aqueles realizados pelos Velhos para abençoar seus familiares, nos quais, tal como Noki mesmo havia me dito, o homem toma o infortunado e, diante do Fogo Sagrado e dos seus

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ancestrais, sopra água em sua face para que os espíritos maus o deixem e para que este possa ser beneficiado pelos seus antepassados. Meras coincidências? Após este breve ritual, o homem abriu a porta permitindo nossa entrada no interior. As vozes e palmas se tornaram mais fortes, ganharam rostos – que por alguns momentos estavam fixos na minha pessoa – e movimentos. Assim que entramos, Noki dirigiu-se à esquerda da porta, onde encontramos dois lugares vazios ao lado de outros homens. Ali, pude perceber melhor o local, suas estruturas e a forma como os fiéis estavam organizados. O templo é muito pequeno, sua área é de no máximo 30m2, possuindo pouco mais de 2m de altura, o que, combinado com sua estrutura física de folhas de zinco, com o ardente sol que brilha incessante em um céu com muitas poucas nuvens e com o fato de que a porta e as duas janelas – uma de cada lado da porta – permanecem fechadas o tempo todo, faz do local um ambiente muito abafado e escuro. Apenas algumas velas ajudam a iluminar o pequeno cômodo. De frente para onde estávamos, havia uma mesa posta transversalmente à porta, a qual todos pareciam encarar. Em cima da mesa havia uma Bíblia que, durante todo o culto, foi manuseada apenas uma vez para que as ofertas fossem colocadas dentro dela. Na outra extremidade da mesa, queimava uma pequena vela azul que, além de liberar um odor estranho, era usada por se acreditar que ela mantinha os espíritos maus e todo tipo de feitiçaria longe das pessoas que haviam sido amaldiçoadas, para que assim estas pudessem ser curadas durante a reunião. No meio da mesa, à frente de todos, estavam dois castiçais, ambos com capacidade para nove velas. Em um deles, em cima da mesa, havia apenas quatro velas, enquanto que no outro, na frente da mesa, no chão, havia apenas uma vela. Atrás da mesa haviam duas cadeiras, uma delas, colocada à direita da outra, ainda se encontrava vazia e viria a ser usada pelo Bispo da igreja que entraria apenas uma hora depois, enquanto que a segunda cadeira já estava ocupada por uma mulher, a esposa do Bispo Abiud. Ao redor da igreja, estavam colocados alguns bancos e cadeiras que, no entanto, não eram suficientes para abrigar todo mundo, fazendo com que muitos tivessem que se sentar no chão, em frente desses bancos. Dois postes estavam colocados na região central do templo, alinhado um com outro; cada um deles situado de um lado da porta – que também situava-se na região central do local. O posto do lado esquerdo ficava junto à mesa do Bispo, não sendo usado para nada, já o do lado direito era usado para auxiliar nas danças, quando algumas pessoas formavam um círculo ao redor do poste e dançavam juntos.

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Havia, aproximadamente, 45 pessoas e a igreja já estava lotada. Muitas mulheres e crianças precisaram sentar no chão durante o culto. Destes 45, oito são homens, 25 são mulheres e 12 são crianças. As mulheres ficam de um lado da igreja, de frente para a porta e os homens, por estarem em menor número, ficam todos juntos à esquerda da porta, deixando os espaços livres à direita da porta para algumas crianças e outras mulheres que não encontraram espaço do outro lado. Quase todos estavam vestindo as mesmas roupas especiais. Os homens usavam apenas algo como um jaleco branco com uma estrela bordada nas costas e calças compridas; as mulheres usavam um vestido branco com algumas estrelas azuis, um lenço azul na cabeça e uma corda branca na cintura. Apenas eu e mais duas mulheres – além das crianças – não estávamos vestidos como os demais. Noki, apesar de não estar vestido exatamente como os demais, usava as roupas especiais da igreja onde ele foi primeiramente batizado. Nós havíamos chegado um pouco atrasados, o culto já havia começado e os fiéis estavam bem agitados e envolvidos na reunião. Dessa mesma forma o culto continuava, alguns minutos de cânticos, palmas e danças e alguns minutos de palavra. Qualquer um dos que estavam vestidos apropriadamente podia se levantar e falar alguma coisa. Uns iriam apenas dar um testemunho de algo que lhes aconteceu e como deus os livrou de certa desgraça; outros pediriam para que alguém lhes profetizasse algo ou lhes dissesse uma passagem bíblica para ajudar a resolver um problema, outros, ainda, iriam ministrar as profecias e palavras de encorajamento. Acontecia que, quando alguém se levantava para falar algo, nada impedia que outra pessoa, no meio da palavra do que estava falando, se levantasse e começasse a cantar, o que, caso acontecesse, seria feito por todos, mesmo que por alguns poucos minutos. Ao fim desta interrupção, a primeira pessoa continuaria a trazer sua mensagem que, ao final, seria seguida por mais músicas até que, entre um cântico e outro, uma nova pessoa começaria a ministrar – por vezes, uma pessoa podia ser interrompida por mais de três vezes até que conseguisse falar tudo que desejava. Durante as mensagens trazidas pelos membros, muitos continuavam se movimentando, enquanto outros davam fortes gritos como que concordando com tudo o que estava sendo dito. As músicas podiam ser iniciadas por qualquer pessoa, sendo que, às vezes, os membros iriam pedir para que alguém começasse uma música em especial. Durante os cânticos, geralmente, quem os começava, chamaria certas pessoas para dançarem ao redor do poste, onde todos dançariam em círculos ao redor dele, fazendo uma pequena coreografia que se resumia em uma seqüência de três passos seguidos por um giro em si mesmo. Os demais 123

também permaneciam cantando, fazendo algumas interessantes harmonias, ora dividindo as estrofes em uma parte para os homens e outra para as mulheres, ora todos cantando juntos. Durante os momentos das mensagens, parecia haver uma certa ordem pois, da esquerda para a direta, uma por uma – com algumas poucas exceções –, as pessoas iam dando suas palavras. A maioria continuava em seus lugares enquanto falava, apenas alguns homens se dirigiam ao meio da igreja para falar. Durante todo o culto, Noki traduzia o que era dito em OtjiHereros e, ele mesmo, fazia comentários sobre o que estava acontecendo. Um resumo possível de tudo o que foi dito naqueles breves testemunhos, encorajamentos e profecias, poderia ser a palavra “problema”. Como uma mulher que, chorando, dizia que seu primo havia morrido e ela não sabia o porque, ela precisava saber qual era o problema e o que fazer. Mais tarde, a mulher do Bispo apenas lhe falou que ela deveria ser a primeira a chegar no enterro. Outra mulher, após algumas crianças e mulheres saírem e entrarem na igreja novamente, comentou que quando uma dessas mulheres retornou ao templo, havia um pequeno macaco que a seguia. Esse macaco era um fantasma que havia sido ordenado por um feiticeiro para destruir a vida desta mulher que agora teria que fazer algum tipo de trabalho – sacrifícios, oferendas, etc – para que pudesse ser liberta deste infortúnio. Mais tarde, ainda mais uma mulher, chorando, começou a falar como ela estava triste por causa das crianças que estavam na igreja, que não eram comprometidas com Jesus como ela quando criança. Assim, não houve uma única palavra que não tivesse a intenção ou de expor ou de sanar algum problema. Uma pequena observação pode ser feita em relação ao pequeno macaco que estaria seguindo a jovem mulher que entrara na igreja. A forma como esta questão foi tratada no momento em que foi mencionada, fez ressaltar aos meus olhos um fato importante das reuniões desta igreja. Tal como ocorrido em outros cultos, quando alguém falava alguma coisa sobre fantasmas, bruxos e feiticeiros todos se calavam, esperando o final da palavra quando o/a profeta mencionaria o nome da pessoa infortunada. Estes acontecimentos, parecem destacar um elemento importante dentro do repertório religioso desta igreja, com algumas facetas mágicas, este parece ser um traço importante da crença daqueles fiéis.250 250

Tal fato, poderá ser percebido mais claramente, em conversar com o Bispo Abiud, quando ele, mais uma vez ressalta as questões referentes a este tipo de acontecimento, quando então, ele deverá operar “magicamente” para cessar a maldição que perturba o infortunado. Outro fator interessante, porém que não pôde ser verificado, é o fato de que muitos no vilarejo, diziam que Abiud era, além de Bispo, mágico. No entanto, o que não pode ser verificado às escondidas, pode ser percebido na própria história de vida de Abiud, na qual ele parece ressaltar muitas influências mágicas, sendo que, muito do que ele faz como Bispo – os sacrifícios, as oferendas e os segredos que mantém em relação aos seus rituais para cura e quebra de maldição – pode ser claramente caracterizado como “mágico” e não meramente “religioso”.

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Durante toda a primeira hora da reunião, o Bispo Abiud não estava presente e sua cadeira permanecia vazia, ao lado de onde se encontrava sua esposa. Logo que entrei na igreja, eu o estava procurando e, não o encontrando, pensei que ele não se faria presente naquele dia. No entanto, durante uma música, enquanto eu e Noki estávamos sentados, descansando por causa do calor quase insuportável que fazia lá dentro, um homem, sentado a direita da cadeira do Bispo – que parecia ser um dos principais líderes do local –, fez um sinal a todos para que ficássemos em pé, indicando a chegada do Bispo. De olhos fechados, ele entrou rápido em meio a um cântico e, segurando uma bengala, dirigiu-se direto a sua cadeira, onde permaneceu sentado até começar a pregar. Durante todo o resto do culto, e mesmo durante sua pregação, o Bispo continuava com os olhos fechados. É claro que, aqueles que como eu, durante as orações, não ficavam o tempo todo de olhos fechados, podiam perceber que em alguns momentos Abiud abria seus olhos rapidamente, como que querendo ver quem estava no local, inclusive eu. Ainda algumas pessoas se manifestaram depois da chegada do Bispo Abiud ao templo, entre elas, o homem que havia pedido que todos os que tivessem sentado se colocassem de pé para a entrada do mesmo. Seu comentário deve ser separado dos demais, por ser interessante para a compreensão de alguns traços parciais a respeito do quadro religioso da Igreja da Estrela de São Josué. Entre uma música e outra, em um momento de intensa comoção coletiva, este homem dirigiu-se ao meio da igreja como poucas vezes ele costumava fazer – já que ele não participava muito das músicas e das palmas. Ali, ele olhava para o alto e clamava251 “Muhona, Muhona, Muhona...” – “Senhor, Senhor, Senhor...” em Otjihereros – “me ajude”. Após alguns minutos exclamando estas mesmas palavras, ele parecia endereçar seu pedido não mais ao seu Senhor, mas sim ao seu ancestral: “pai, porque você quer me levar? Meu pai que está lá, no túmulo. Aqui estou meu ancestral, não me leve. Diga ao meu pai, no túmulo, que eu estou aqui. Me dê sua benção, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Este é outro ponto necessário para entender, com mais precisão, as fronteiras deste conhecimento religioso. Mais alguns minutos passaram até que a mulher do Bispo deu a última palavra antes que este iniciasse sua pregação. Ela começou dizendo que realmente seu coração estava chorando, pois ela via muitas pessoas na igreja que, de noite, iam aos bares beber e ter uma 251

Todas as citações nesta subseção são referentes à gravações feitas no dia 15.01.2006 na Namíbia, traduzidas do OtjiHereros para o Inglês por Noki e livremente traduzidas pelo autor para o português. As citações que referem-se a outros dias, serão destacadas normalmente.

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vida pecaminosa. Ela também ressaltou que todos deviam mostrar respeito dentro do templo e, por isso, deveriam manter seus olhos fechados durante as orações. No final, após alguns minutos e sem interrupções, como que preparando o ambiente para a palavra do pastor ela finaliza em baixa voz: “Nós saudamos a todos que aqui estão e também ao homem branco que está entre nós, pois nós devemos recebê-lo. Algumas pessoas fizeram isso e acomodaram anjos. Agora, povo, nós estamos morrendo e não sabemos qual é o problema, por isso, devemos estar preparados para enterrar ao nosso irmão.”

Logo após sua esposa, Abiud tomou a palavra e, de olhos fechados, virou-se na minha direção pedindo que Noki se colocasse de pé, apresentasse-me e permanecesse de pé para traduzir tudo o que ele iria pregar. Suas primeiras palavras são para dizer que ele estava muito feliz com minha presença no local, que eles iriam orar para que deus me ajudasse a realizar minha pesquisa para que eu pudesse tomar nota de tudo e voltar ao Brasil para contar como eles vivem. Em seguida ele continuou dizendo: “Nós estamos muito felizes por você estar aqui estudando nossa cultura, isso é motivo de orgulho para nós...e, apesar dessa não ser a cultura Hereros [o cristianismo], nós somos Hereros!” Em seguida, o Bispo virou-se para toda a igreja e começou a pregar sobre a ressurreição de Jesus e como Maria Madalena teria sido corajosa para avisar a todos sobre o ocorrido. Ele continuava dizendo que as mulheres deveriam ser mais fortes, tal como a mulher que criou este tipo de igreja, na década de 70, em Botswana, para que assim, elas pudessem suprir as brechas deixadas pelos homens, pois, como ele afirmou: “nós homens, nós não conseguimos acreditar como vocês.” Ao fim, ele conclama toda a igreja “a sermos como Maria: corajosos para levar Jesus a todos nossos amigos e famílias (...) Por isso, hoje, ao sairmos desta reunião, não nos esqueçamos de ir falar a todos sobre Jesus.” Excluindo os gritos que eram extremamente altos e emocionados e algumas poucas afirmações, sua pregação poderia ser ouvida em qualquer uma das demais igrejas em Okondjatu. Achei isto muito estranho e mesmo contrastante com algumas outras conversas que tive com o próprio Bispo e com alguns dos membros da igreja, o que me fez atentar com cuidado redobrado à todos os discursos que, daquele dia em diante, ouvia referente a esta comunidade. De fato, isto viria a se repetir durante algumas outras reuniões em que estive presente no local. Em oposição ao que em outros momentos me era dito, isto me levava a perceber aqueles discursos não apenas como uma tentativa de talvez se parecer mais cristão diante de 126

um observador branco – e, por isso, presumivelmente cristão – e que poderia contribuir com os trabalhos da igreja mas, também, pude percebê-los como elementos presentes no próprio repertório da igreja, como “uma possibilidade entre outras”, como mais um elemento importante para delinear as fronteiras desta igreja. O culto encaminhava-se para o final. O Bispo sentou enquanto o homem a sua direita colocou a Bíblia aberta em uma cadeira no centro do cômodo, onde, ao som de um cântico, todos eram convidados a trazer suas ofertas – os homens deveriam colocá-las no lado direito e as mulheres no lado esquerdo. Um menino contava o dinheiro dos homens – N$ 4,00 (quatro Dólares Namibienses) 252 – e uma mulher, o das mulheres – N$ 8,00. Mais uma música foi cantada, seguida de uma oração feita pelo Bispo enquanto todos se alinhavam no meio da igreja, de costas para ele, com as mãos levantadas, acompanhando sua prece. Ao final, algumas pessoas se ajoelharam no chão e oraram ainda mais uma vez e, ao se levantarem, entoaram ainda mais um cântico enquanto iam embora.

3.4.1 - Os limites da fé: sincretismo e estrutura Com esta descrição inicial é possível começar a delinear as principais linhas fronteiriças do conhecimento religioso da Igreja da Estrela de São Josué. Definindo os elementos-base do repertório eclesiástico proposto aos fiéis desta igreja será possível perceber os limites deste sistema religioso bem como de suas estratégias sincréticas, ou seja, a forma como símbolos religiosos de diferentes “origens” puderam ser elaborados conjuntamente sob as estruturas desta congregação. De maneira distinta das outras igrejas em Okondjatu, a igreja do Bispo Abiud procura expandir os limites de seu território religioso sem muitas restrições, elaborando arranjos que permitam que o sagrado possa ser abordado a partir de diferentes perspectivas que, todas aos pés do deus criador – que é a mais sublime entidade desta crença – sustentam a vida dos fiéis com um largo aparato simbólico. O território onde estes arranjos se dão, pode ser divido em três zonas distintas que se encontram conjugadas sob um único agente superior, o deus supremo. Duas dessas áreas

252

No início do ano R$ 1,00 valia N$ 3,00.

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podem ser percebidas quando o Bispo253 afirma que “deus é o dono de tudo de que foi criado na terra, Jesus é seu filho e os ancestrais também, os dois podem ir até deus (...) o Espírito Santo, Jesus e os ancestrais, são todos de deus”. Ao afirmar isso, Abiud toma posse tanto de elementos religiosos de vínculo alóctone (Jesus, Espírito Santo) como de vínculo autóctone (ancestrais; Fogo Sagrado) e, sem confusão alguma, os insere lado a lado, como possibilidades de acesso ao ser supremo. A terceira zona não é de um tipo reconhecidamente religioso e se manifesta em alguns trâmites rituais usados durante os cultos – como a vela em cima da mesa, acesa para manter os feitiços longe da igreja –, nos processos de cura – como a forma que os sacrifícios são usados para coagir deus a curar o enfermo – e na própria causa dos infortúnios. Assim, esta região será entendida como uma de um vínculo mágico, fortemente identificado na figura do Bispo Abiud. Destaco esta região das demais pois acredito que para os fins que pretendo alcançar nesta discussão, será melhor diferenciar cada um destes repertórios ao invés de diluir estes vínculos mágicos nas outras zonas que serão analisadas. Isso não significa que nos vínculos alóctones e autóctones não existam características que possam ser entendidas como mágicas, apenas pareceu-me interessante separar analiticamente cada uma dessas regiões para depois poder perceber de forma mais consistente os limites – do que se poderia chamar de – doutrinários da Igreja da Estrela de São Josué. Uma outra observação deve ser feita a respeito do que classificarei aqui como os vínculos alóctones, autóctones e mágicos. Ao usar o termo “vínculo” quero apenas me referir aos laços que envolvem as crenças desta congregação, ou seja, às bases nas quais o repertório desta igreja está alicerçado. Não se está querendo supor “vínculos sociais” como é uso corrente nas Ciências Humanas antes, refiro-me a uma situação de dependência – e talvez mesmo, interdependência – de uma zona à outra e dessas ao repertório final da igreja. 3.4.1.1 - O vínculo alóctone O vínculo com elementos do conhecimento religioso cristão é aquele que parece reger os arranjos com as demais zonas e apesar de ser aqui analiticamente percebida como uma área separada das demais, ela parece estar infiltrada nas demais, como que lhes dando legitimidade, permitindo aos membros da igreja caracterizarem sua fé como cristã. São aos

253

Traduzido por Noki no dia 26.01.2006, Namíbia. (LTA)

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elementos desta região que seus fiéis se reportam quando diante de um dos “outros cristãos” em Okondjatu para, igualmente aqueles, se autodenominarem cristãos. Muitas vezes, o fato destes elementos estarem sincreticamente arranjados com os elementos dos outros repertórios (zonas) pode fortalecer os discursos cristãos. Por exemplo, Noki, membro desta igreja, um dia discutia com um jovem que haviam se desvinculado da igreja pentecostal, dizendo que sua igreja era mais fiel aos princípios bíblicos do que aquela pois, afirma Noki,254 “você não precisa seguir tantas regras, você deve apenas viver sua vida e ir orar na igreja. Se, durante a semana, você bebeu de mais ou transou com alguém, terá apenas que falar com o pastor e ele te dirá o que fazer para ser perdoado (...) o importante é ir na Igreja”

Disse ainda que os cristãos das outras igrejas “são como as placas na estrada. Elas informam: ‘Windhoek – 100km’, mas na verdade, as placas mesmo, nunca estiveram lá”. Para Noki, sua igreja está mais perto do “verdadeiro cristianismo” por não pregar o que não pode cumprir, pois, ele255 conclui: “como eles podem apontar para uma direção: ‘faça isso e aquilo para encontrar Jesus’, se eles mesmos nunca estiveram lá? (...) nós apenas exigimos o que conhecemos”. Assim, nos cultos, durante as pregações e durante as conversas que tive com alguns membros desta igreja, o cristianismo aparece claramente na crença em um ser supremo, na crença em Jesus como seu legítimo filho e na crença do Espírito Santo como aquele que traz as palavras de deus aos líderes e fiéis da igreja e não na espera por um reino celeste, pela volta do salvador, o qual resgatará aqueles que tenham tido uma vida pura e sem pecados256 – este ponto será reforçado na análise dos vínculos mágicos. Um outro importante aspecto deste território, é justamente por ele ser aquele que todas as demais áreas, de alguma forma, são dependentes, seja a partir da figura do Bispo, “homem de deus” – como no vínculo mágico, o qual depende dele que, enquanto Bispo, além de realizar os trabalhos da igreja também executa os rituais “mágicos” –, ou da figura do próprio deus, o qual está acima de tudo e que, coagido, atende aos pedidos de seu séqüito de fiéis – como no vínculo autóctone e de igual forma no de matriz mágica.

254

13.01.2006, Namíbia. (LTA) Op. Cit. 256 Esse é, justamente, o discurso da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia. Tal como pregou seu Pastor em uma manhã: “se você quer morrer, vá e peque. Mas, se você quer viver, não peque, se você quer a vida eterna, não peque!” – 08.01.2006, Namíbia. (LTA) 255

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Assim, para além das pregações, de algumas poucas reações de caráter moralista – que em algumas ocasiões se aproximam daquelas da Igreja Missão Arrependam-se da Namíbia257 – e do uso de seus elementos na definição da identidade cristã, este conjunto de crenças possui uma certa centralidade dentro do conhecimento religioso dos fiéis da igreja pois ela é, no mais das vezes, o ponto de partida para as demais regiões. Como comentou o Bispo Abiud: “Se alguém doente vem falar comigo a primeira coisa que eu faço é orar e abrir a bíblia. Depois, com a Bíblia aberta, tenho que esperar o Espírito profetizar, então saberemos o que será preciso fazer”. Este, é o momento inicial de qualquer produto que a igreja venha a criar, de qualquer cura que venha a ser ministrada e de qualquer pedido que venha a ser atendido. Em qualquer situação, os líderes esperam que desta relação com os elementos do repertório alóctone venha a direção em relação aos procedimentos a serem tomados diante daquelas diferentes situações. Ou seja, o Espírito Santo, a partir da Bíblia ou de uma revelação, irá proferir o problema e sentenciar a resolução que, esta sim, permitirá que as demais áreas deste sistema religioso possam ser exploradas. 3.4.1.2 - O vínculo autóctone Esta é a zona onde se encontram os elementos do conhecimento religioso tradicional Hereros, é onde estão os ancestrais, os Fogos Sagrados, os Velhos e todos os demais símbolos do repertório autóctone que foram adicionados inteiramente dentro dos limites da igreja. Ou seja, eles permaneceram exatamente onde estavam anteriormente, o que ocorreu, foi que as fronteiras da Igreja da Estrela de São Josué foram alargadas, penetrando nos recônditos das crenças nativas, limpando o caminho e criando ligações entre aquelas e as demais regiões do seu “sistema de fé”. Assim, de forma não fragmentada, o complexo do Fogo Sagrado foi realocado a este quadro, sendo estruturalmente disposto tal como o era em seu local de “origem”, porém, por vezes, passando por algumas modificações para se adequar ao quadro da igreja.

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As semelhanças ocorrem em dois discursos muito parecidos. O Pastor Matuzee afirma que a Namíbia precisa da igreja para ser liberta de toda imoralidade; enquanto o Bispo Abiud, comentando a respeito das contribuições que sua igreja dá para o desenvolvimento de Okondjatu, afirma que sua igreja procura tirar os jovens de uma vida de bebedeiras e sexo antes do casamento. – Respectivamente: 07.01.2006 e 26.01.2006, Namíbia. (LTA)

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O que ocorre, me parece, são dois tipos diferentes de arranjos. No primeiro, o Fogo Sagrado é levado até a igreja a partir de discursos que permitam um homem clamar, como visto no início desta seção, em meio a um culto cristão, ao seu antepassado: “Pai, porque você quer me levar? Meu pai que está lá, no túmulo. Aqui estou meu ancestral, não me leve. Diga ao meu pai, no túmulo, que eu estou aqui. Me dê sua benção, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”

Ora, sabe-se que o Fogo Sagrado é o único local onde os ancestrais podem contatar o mundo dos vivos, e que apenas o Velho poderia intermediar esta situação. No entanto, o que pude presenciar naquele dia foi a própria igreja transfigurando-se em Fogo Sagrado e, o Bispo, aquele que orienta os rituais, personificando o Velho. Essas resignificações permitiram que aquele homem entendesse que seus antepassados também estavam naquele local, corroborando o argumento do Bispo Abiud de que, tanto quanto Jesus e o Espírito Santo, os ancestrais são intermediários eficazes entre os homens e deus. Deste ponto, segue-se para um segundo arranjo, um movimento contrário, onde não mais o Fogo Sagrado parece ser resimbolizado no templo, mas o templo passa a ser – em uma transfiguração que se assemelha com a anterior – o Fogo Sagrado. Ou seja, a igreja, entendida como o local da cura e da libertação é expandido ou, antes, recriada diante do Fogo Sagrado. Isto, por sua vez, permite que, após abrir sua Bíblia, o Bispo possa afirmar – continuando a frase da subseção anterior –: “Tenho que esperar o Espírito profetizar e então saberemos o que será preciso fazer (...) Às vezes o Espírito vai dizer que os ancestrais do infortunado estão com saudades e que será preciso apenas ir até seu Fogo Sagrado e apresentar-se junto com o velho aos seus ‘pais’.”

Assim, esses dois tipos de arranjos entre Fogo Sagrado e a igreja fazem com que, diferentemente da Igreja Oruuano, o Fogo Sagrado tenha uma posição religiosa, e não cultural, nos discursos de seus fiéis e permite também afirmar que, nesta igreja, não há negação do Fogo Sagrado e nem mesmo a idéia de que este se poluiu e, portanto, perdeu seus poderes – como alguns crentes da Igreja Missão Arrependam-se acreditam. De fato, analisando os discursos dos seus membros, os vínculos autóctones, como os vínculos alóctones, servem para dar mais segurança daquilo que não podem governar.

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3.4.1.3 - O vínculo mágico Com a mesma força com que o vínculo alóctone permite que este complexo religioso seja chamado cristão, a relação com os elementos do repertório das práticas mágicas, permite que este mesmo quadro religioso possa ser também entendido como mágico-religioso ou, para seguir os argumentos de Pierucci258, como uma religião mágica. Já que não pretendo descaracterizar a magia dentro da religião, pois ela é, tal como os demais vínculos expostos acima, um importante elemento para se entender o quadro da igreja do Bispo Abiud e, diluí-la entre os demais vínculos – religiosos – existentes nesta congregação poderia ocultar alguns importantes aspectos para o entendimento deste sistema. Como um sistema destacado – porém não totalmente independente – das demais, ele funciona, tal como o Fogo Sagrado e as orações do Bispo, como uma possibilidade a qual deus, através de seus intermediários, poderá revelar necessária para que um pedido seja atendido. Assim, além dos caminhos trilhados até os ancestrais, as práticas mágicas também são, agora na figura do Bispo, formas disponíveis para encontrar alento. Abiud,259 confirmando as afirmações ditas anteriormente, explica que “quando uma pessoa quer ser curada, antes de qualquer coisa, nós iremos orar por ela. Assim, o Espírito Santo irá nos mostrar de que maneira esta pessoa deve ser tratada, se ela deve ser levada a um local especial onde iremos dar-lhes alguns remédios ou se devemos sacrificar algum animal.”

Mesmo sendo um agente tipicamente religioso – o Espírito Santo – o que irá indicar o caminho a ser tomado, isso não descaracteriza a manipulação, em segredo260, de remédios sagrados261 ou o ato do sacrifício262 como práticas mágicas. São, ambos, formas de coagir os seres superiores através da figura do próprio Bispo que, neste momento, será também o mágico. Trata-se de outro atributo que se assemelha àqueles das práticas mágicas, ou seja, 258

PIERUCCI, Antônio Flávio. A magia. 2001: 98. Traduzido por Noki no dia 26.01.2006, Namíbia. (LTA) 260 Durante entrevista realizada com Abiud, ao tratar sobre a questão dos remédios que ele usa nos processos de cura, ele afirma que essas “poções” são dadas pela própria profecia e que, por isso, ele não tinha nenhuma forma usual de prescrever tais medicinas. A forma como ele curou um homem de HIV/Aids não será a mesma forma como ele tratará o problema em outra pessoa – tal como ele me explicou ao contar como ele curou um homem infectado com o vírus, usando uma mistura de alguns remédios que ele dizia nem lembrar mais – entrevista traduzida por Noki no dia 26.01.2006, Namíbia. (LTA) 261 Tal como os Azande de Evans-Pritchard em seu “Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande” no qual descreve o aprendizado de seu informante na manipulação de diferentes plantas. 262 Sir. James Frazer, em seu “The Golden Bough”, em um capítulo sobre a possibilidade de controle das condições do tempo a partir de ritos mágicos, lembra de alguns povos, como os Anula, do norte Australiano e os Wambugwe, do leste africano, que usavam os sacrifícios de animais para conter ou trazer a chuva – FRAZER 1993: 72. (LTA) 259

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aquele que pressupõem a presença de um líder carismaticamente263 motivado, que exercite eficazmente suas faculdades mágicas, criando e re-criando continuamente, sem regras muito claras. Além destes discursos oficiais do líder da igreja, durante os cultos, é possível perceber que os vínculos com argumentos mágicos não estão presentes apenas na revelação da cura mas, na própria doença que deve ser sanada. Pela mágica benéfica do Bispo ela some, mas pela magia negra dos feiticeiros e bruxos invejosos – aparentemente, um dos agentes das trevas mais temido – ela aparece. Durante os cultos, pode-se perceber isso claramente a todo tempo, os profetas clamarão que “você foi amaldiçoado por alguém e por isso deve voltar aqui amanhã para ver o que devemos fazer”; “alguém rogou uma praga em você e agora você está sendo seguido por um macaco”; “é melhor você ser o primeiro a chegar no enterro de seu primo, pois senão, você poderá ser assombrada pelo seu espírito”. Ou então alguém poderá clamar, dizendo: “orem por mim, estou doente, acredito que minha família esteja me invejando pelas minhas últimas conquistas financeiras”; “preciso de um emprego, mas não consigo, algo que desconheço deve estar trancando meu caminho”. Todos estes comentários são argumentos que ajudam a favorecer a idéia de que o campo da magia, dentro do quadro religioso da Igreja da Estrela de São Josué, é comumente utilizado tanto para entender algum problema que esteja acontecendo como para sanar este mesmo infortúnio. Isto só pode ser feito através do Bispo Abiud, indivíduo que – para lembrar Pierucci264 – os fiéis acreditam ser capaz de “controlar forças ocultas”. Ainda, um último aspecto permitirá perceber outras convergências importantes do vínculo mágico ao domínio geral deste quadro religioso. Trata-se de a um dos pontos centrais no entendimento das práticas mágicas, qual seja, a idéia de que a magia é “para agora”, é imanente, enquanto que a religião é “para amanhã”, é transcendente, visa o futuro eterno “ao lado de deus”.265 Lembro de perguntar ao Noki como sua igreja respondia a afirmações – como as da igreja pentecostal – do tipo “Jesus está voltando”. Sua resposta, me parece, apela

263

Indivíduo que, como é possível perceber na figura do próprio Bispo Abiud, terá um certo prestígio e exercerá uma dominação carismática sob um séqüito de fiéis – WEBER, Max. Os três tipos de dominação legítima. 1986: 134-5. 264 PIERUCCI 2001: 9. 265 “Oferecendo miracles and oracles, a magia deve servir para melhorar a vida ‘aqui e agora’, não no ‘outro mundo’; no futuro, só se for o imediato, jamais na ‘vida eterna’.” PIERUCCI 2001: 83.

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para os vínculos mágicos: “nós também acreditamos em Jesus e acreditamos que ele virá, mas nós não estamos muito preocupados com isso como os outros cristãos.”266 Malinowski267 – um entre tantos – dizia que a magia, tanto como a religião, permite a um indivíduo escapar de situações de infortúnio e desgraça, dando-lhe soluções aos intermináveis problemas da vida humana; é uma opção entre outras. Opção, por vezes, dependente de um indivíduo qualificado para manipulá-las, indivíduo que, agora para invocar Frazer268, pode ser tanto religioso como mágico, é o bispo e o feiticeiro combinados em um único homem. Assim, os vínculos mágicos, fortalecem as fronteiras deste quadro religioso e se articulam com as demais regiões ampliando os campos de ação dos seus fiéis. Procurei explicar as três áreas que, ao meu ver, compõe e delimitam o quadro de conhecimento religioso da igreja do Bispo Abiud. Os argumentos criados, foram usados para compreender o percebido fato de que ali, cristianismo, tradição e magia caminham juntos para dar a um certo número de fiéis o fim que precisarem. Assim, aqueles três diferentes vínculos funcionam como distintas possibilidades de produção religiosa mas, isto, como discutirei a seguir, não deve ser entendido como uma situação plural, o que negaria os discursos sincréticos tal como estudados até aqui.

3.4.2 - Sincretismo ou pluralismo: resolvendo alguns problemas O limite entre o que é sincrético e o que é plural está relacionado às fronteiras entre o que é objetivo e o que é subjetivo, ou seja, entre o quadro religioso e o indivíduo vinculado a este quadro. A definição do que é sincrético e do que é plural, está ligada à forma com que um indivíduo percorre certo terreno religioso, à forma como ele se apropria de certo repertório simbólico. Duas situações podem auxiliar na resolução deste problema. Ambas permitirão entender um pouco mais das condições nas quais as fronteiras desta congregação se encontram e serão suficientes para separar estas duas estratégias para abordar o sagrado – a sincrética e a plural.

266

12.01.2006, Namíbia. (LTA) “Tanto a magia como a religião permitem escapes para tais situações e impasses, e só proporcionam uma saída empírica, passando pelo ritual e pela crença, para o domínio do sobrenatural.” – MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, ciência e religião. 1984: 90. 268 Deixando os graus evolutivos de lado – magia-religião-ciência – é possível tomar de Frazer a seguinte frase: “Em um estágio anterior, as funções de pastor e feiticeiro eram normalmente combinadas...” FRAZER 1993: 52. 267

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As fronteiras da Igreja da Estrela de São Josué, tal como descrito na última subseção, são amplas e permitem, por vezes, uma congestionada circulação entre diferentes terrenos “sagrados”. Porém, não há nada de caótico nesses percursos, eles dependem todos, de um direcionamento que passa sempre pelo mesmo local: o Bispo Abiud. Este, tal como explicado anteriormente, é o responsável por definir o caminho a ser tomado, tal como Abiud comenta – agora trazendo a citação inteira –: “Se alguém doente vem falar comigo a primeira coisa que eu faço é orar e abrir a bíblia. Depois, com a Bíblia aberta, tenho que esperar o Espírito profetizar, então saberemos o que será preciso fazer, se será preciso sacrificar, tomar algum remédio especial que é prescrito pela profecia mesmo, fazer algum trabalho ou ir ao Fogo Sagrado. Às vezes o Espírito vai dizer que os ancestrais do infortunado estão com saudades e que será preciso apenas ir até seu Fogo Sagrado e apresentar-se junto com o velho aos seus ‘pais’.”269

As distintas possibilidades descritas nessa frase delimitam os três vínculos retratados na última subseção – alóctone, autóctone e mágico – e os alocam em um único quadro de possibilidades. Qualquer que seja a prescrição dada, o indivíduo que incorrer em qualquer um desses vínculos estará interagindo com elementos presentes em um único quadro. No entanto, um indivíduo que, tendo buscado ajuda na igreja, sinta-se insatisfeito com as decisões do Bispo, poderá ser levado a apelar para outros quadros. Nesse sentido, Noki270 afirma que “as pessoas vão lá para procurar ajuda para alguma doença ou algum problema financeiro, mas se Jesus não os ajudar eles vão pro Fogo Sagrado”. A interação agora é diferente, o indivíduo está saindo de um quadro para interagir com elementos de um outro sistema de fé. A análise de quadros até aqui proposta ajuda a resolver a questão rapidamente. Nesta perspectiva, sincretismo seria a absorção de elementos de distintos repertórios de fé em um único quadro, permitindo a um indivíduo navegar por este terreno sem ultrapassar suas fronteiras. Pluralismo, seria a migração de um indivíduo situado em um quadro, para um outro, à procura de outros elementos que lhe permitam alcançar seus objetivos. Ao expandir suas fronteiras incluindo elementos dos demais repertórios postos no mercado religioso de Okondjatu, a Igreja da Estrela de São Josué, permite aos seus fiéis navegar dentro de seus próprios campos sincréticos sem precisar incorrer em pluralismos. Isso, no entanto, não garante a fidelidade exclusiva de seus membros; as fronteiras da igreja

269 270

Op. Cit. 12.01.2006, Namíbia. (LTA)

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não são rígidas. Maleáveis como são, permitem aos seus adeptos recorrerem a outros quadros religiosos sem nenhum constrangimento ou coação social.

3.4.3 - Resumo do quadro Seria arriscado definir sucintamente tudo o que foi descrito até aqui. Talvez fosse possível apenas afirmar que esta congregação estaria próxima do que, sem muito consenso, poderia ser entendido como uma igreja cristã independente. O termo, no entanto, não permitiria ter uma clara idéia das fronteiras em questão, afinal, esta igreja trabalha com um largo aparato simbólico. São sacrifícios, profecias, magias, orações, curas e cultos cercados de cerimônias para estabelecer contato com o sagrado. Cada um desses momentos exige a presença de certos vínculos que serão acrescentados a partir das revelações proféticas, as quais, ocupam uma posição central em todos os eventos ritualísticos. São as profecias que limitam as ações de cada indivíduo, são elas que direcionam os fiéis – hora de encontro a um vínculo, hora de encontrou a outro. Ministrada através da oração e da Bíblia e revelada ao Bispo a partir da intervenção do Espírito Santo, a profecia é o que caracteriza os sincretismos, é o que aproxima as diferentes regiões. Assim, o Bispo abrirá sua Bíblia e, com a revelação dada a ele, os arranjos serão legitimados. Esta interação é o que caracteriza o tipo de conhecimento religioso da Igreja da Estrela de São Josué. Dentro de seu quadro, é possível encontrar elementos presentes em outros tipos de conhecimento religioso que, em diferentes contextos, caso conjugados, seriam percebidos como conflitantes. Vale-se assim, de estratégias sincréticas as quais abrem caminho entre uma região e outra, permitindo que um amplo território religioso seja descoberto por seus fiéis. O gráfico a seguir (F), permitirá visualizar que os sincretismos estão legitimados sob poucas correlações essenciais. Deus é o último a quem se recorre e a quem muitos podem se achegar. Jesus, o Espírito Santo, os ancestrais e mesmo o Bispo, a partir de suas intervenções mágicas, podem mediar a relação entre os homens e deus, sendo muitas vezes os únicos a serem invocados. Deus está lá, mas são aqueles separados por ele que influenciam e transformam as vidas de seus fiéis; por aqui está Abiud aquele que, acredita-se, pode “mover as montanhas”.

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Gráfico F. O conhecimento religioso da Igreja da Estrela de São Josué.

3.5 - cristianismo e África “Podem as culturas africanas adquirir a mensagem cristã?”271 Esta, seria uma pergunta interessante a se fazer ao final deste capítulo que, de alguma forma, ajuda a responder esta questão. A contribuição, dá-se justamente pela análise dos fenômenos sincréticos que, ao que parece, são as ferramentas que permitem que tais conjugações existam e que, invertendo a ordem da pergunta, a mensagem cristã adquira traços das culturas africanas. Para uns, “falha de conversão”, para outros, “estratégias contra-hegemônicas”, certo é, no entanto, que a maneira como cristianismo e tradições africanas se enfrentaram jamais permitiria que um deles saísse ileso. O cristianismo perdeu o controle de suas fronteiras, a África, perdeu povos, línguas e tradições pois, já lembrava Peter Berger272, “o desfecho histórico de todo choque entre deuses foi determinado por aqueles que empunhavam as melhores armas e não por aqueles que possuíam o melhor argumento.” Os discursos dos períodos coloniais, altamente anti-sincréticos, defendiam a delimitação precisa das fronteiras. Para os missionários e seus seguidores, ser cristão significava negar as tradições africanas e impor a “vontade de deus” a todo homem que estivesse sendo “enganado pelas trevas”. Para os nativos, adotar o cristianismo significava o fim de suas tradições e a aceitação dos preceitos religiosos de uma cultura que não era a sua. Os resultados desse confronto, muitas vezes, não estavam devidamente previstos; as assimilações, as reinterpretações, as adições, subtrações, hibridismos e sincretismos não eram esperados e, para muitos, nem mesmo desejados. Nem totalmente cristão, nem totalmente 271 272

ODUYOYE, Mercy. “Christianity and african culture.” 1995: 14. BERGER 1983: 148.

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africano, algo como um curioso crioulismo, um “isso” e “aquilo também!” que ressaltava a situação de interdependência entre o local e o global,273 entre as tradições africanas e as tradições cristãs – os sistemas religiosos estudados acima, parecem justamente retratar esta interdependência entre elementos cristãos e africanos o que, nesse sentido, colocaria a questão também no âmago das criações sincréticas.274 Agora, passados alguns anos das guerras pela independência dos últimos países do continente africano, os discursos são outros, há de se valorizar os africanismos, há de se tomar posse dos antigos instrumentos coloniais. Okondjatu, talvez, seja mais uma dessas apreensões. Um cristianismo em um vilarejo africano, liderado, defendido e expandido por africanos: “apesar dessa não ser a cultura Hereros, nós somos Hereros!”

273

TRAJANO FILHO, Wilson. “Uma experiência singular de crioulização.” 2003: 4. No sentido de que, retirar um elemento qual seja – de “origem” cristã ou africana – de dentro do quadro de alguma das igrejas descritas neste capítulo, poderia causar uma momentânea ruptura até que os laços de interdependência se reestabilizassem novamente, já que cada um desses elementos estaria vinculado um ao outro por estratégias sincréticas que previam proporcionar ao fiel um sistema de fé plausível. 274

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Um homem deve julgar suas obras pelos obstáculos que superou e as dificuldades que suportou e, por tais padrões, não fico envergonhado dos resultados. E. E. Evans-Pritchard, 2002: 15.

Em todos os seus trabalhos, Evans-Pritchard fazia importantes ressalvas a respeito do valor das elaborações teóricas nos trabalhos etnográficos. Para ele – e para tantos outros pesquisadores de campo –, era na volta do Antropólogo à sua sociedade que os maiores obstáculos se levantavam. Ele discutia a respeito disso, que – tal como citado anteriormente – “qualquer um pode mostrar um fato novo; o problema é propor uma nova idéia”.275 Ou seja, mais do que “estar lá”, é necessário “estar aqui” e pensar o campo com instrumentos teóricos que permitam contribuir para o esclarecimento de certos desdobramentos históricos, sociais, culturais, individuais e políticos. São necessários mais do que boas falas nativas e observações para se poder chegar em algum lugar em Antropologia. Atentando a estes cuidados, acredito ter sido possível elaborar aqui uma daquelas “etnografias coerentes”. Já que a verdade está fora de alcance, foi possível dizer e analisar apenas aquilo que sei sobre a realidade deste grupo, aquilo que descobri, quando envolto por situações limítrofes que, por vezes, eram acompanhadas por tempestades e espessas nuvens teimando em ocultar certos elementos, permitindo-me ver o que, conscientemente, acredito ser apenas uma parte da vida nativa. O esforço deste trabalho foi justamente para vencer as intempéries da experiência etnográfica e ultrapassar os obstáculos que se apresentaram até o ponto em que estou agora. Por isso, chegar ao fim de um trabalho como este, é realmente uma vitória, é o troféu do qual

275

PRITCHARD 2005: 245.

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DaMatta falava. Mas, faltam-me algumas poucas páginas, onde ainda parece necessário expor aquilo que acredito ser a real validade de todo esse esforço, aquilo para o que, espero, ele possa servir. A relação destas últimas considerações com aquelas primeiras palavras introdutórias vem agora à tona. Aqui, é onde poderei reafirmar aquelas observações, atentando para o desenrolar do trabalho, ou seja, se foi possível ou não realizar o que havia objetivado. Se foi possível documentar corretamente aquilo que vivi sem afastar-me dos esforços teóricos; se foi possível conjugar coerentemente teoria e prática em um único trabalho, elaborando elementos de repertórios diferentes em um mesmo quadro – agora um de base acadêmica –, numa verdadeira constatação sincrética. Então, a pergunta que deve ser respondida, seria se o sincretismo pode ser uma poderosa ferramenta na definição das fronteiras de um conhecimento religioso específico ou não? E caso positivo, como isto pode – ou deve – ser feito e a partir de que perspectiva analítica? A tentativa de descrever o terreno religioso em Okondjatu, de forma a mais verossímil possível, a partir dos discursos cristãos a respeito das tradições não-cristãs e das posições destas últimas aos complexos cristãos, parece-me ter sido um ponto interessante e fecundo para as análises que me propus fazer. Sabe-se que as construções de nosso “self” são sempre elaboradas sob as estruturas dos “outros”. Ou seja, nossa identidade, a definição daquilo que somos está impreterivelmente ligada ao que não somos, mais uma vez, aos “outros”. É a partir da definição do que é este outro, que podemos começar a definir o “self”. O estilo de música que ouvimos, as roupas que vestimos, as palavras que usamos, estão todas presentes em únicos repertórios de onde cada um retira aquilo que deseja e se cria e recria, sendo que mesmo que por vezes muito parecidos, somos todos sincreticamente sui generis. Assim, pensando em diferentes quadros religiosos, isto pode ser elaborado da mesma forma. Cada conjunto religioso criará suas ideologias a partir de elementos de diferentes repertórios postos no mercado. Em Okondjatu, eram três os repertórios de onde estes elementos poderiam ser extraídos: o autóctone, o alóctone e o mágico – lembrando o cuidado que procurou-se ter com essa separação. O resultado da escolha de cada um desses elementos por cada uma daquelas igrejas é o que permitiu o estabelecimento de fronteiras diferentes umas das outras, com certas justaposições e correlações, mas com muitas particularidades, formando assim realidades sincreticamente sui generis. 140

Sincréticas, justamente porque se definem de acordo com elementos que “originalmente” não eram seus, que foram usados por elas para recriar seus espaços de fé, para recriar sua abordagem com o supranatural, com o sagrado. É nesse sentido que o sincretismo pode ser percebido como um elemento importante na compreensão das fronteiras de um sistema religioso, pois observando-o pode-se dar atenção justamente a estes empréstimos, à análise daqueles elementos de repertórios diferentes que formam cada uma das fronteiras de determinado quadro religioso. Isto permite ir além da confusão comumente atraída ao termo, permite perceber um local exato onde ele pode ser utilizado, qual seja, na definição dos limites de uma religião, sendo que entendê-la como sincrética ou não, não terá valor, pois sabe-se, todas religiões são de alguma forma sincrética. Assim, a importância do uso deste conceito deve estar na possibilidade de valer-se dele como um instrumento que permita perceber os trâmites internos a cada quadro religioso, perceber como se dão os arranjos, as estratégias sincréticas que procuram fechar as brechas da “incoerência”. Nesse sentido, durante a exposição deste trabalho constatou-se que os arranjos sincréticos/anti-sincréticos elaborados por cada uma das igrejas presentes em Okondjatu são importantes fatores na definição das fronteiras próprias de cada um daqueles complexos e, foi a partir da análise antropológica daqueles discursos que foi possível elaborar quadros que permitiram visualizar de forma mais pormenorizada como aquelas estratégias fronteiriças se dão. Não foi minha intenção apenas definir o que é sincrético e discutir as causas desta “acusação”, pelo contrário, o foco foi justamente entender como esses sincretismos ocorrem e como são usados, atentando para o que Robert Baird276 afirmou sobre a desnecessidade do uso: Se é verdade que tais empréstimos, sondagens e influências no curso da história fazem parte de todo processo histórico e é tanto inevitável e universal, então, não há nenhuma razão em aplicar o termo sincretismo para tais fenômenos (...) admitir que cada um [cristianismo, religiões misteriosas, Hinduismo, etc] tem uma história e pode ser estudado historicamente.

Ou seja, procurar definir o que é sincrético não acrescenta nada a este conhecido fato de que “todas as religiões são sincréticas”. Por isso, e para vencer este obstáculo, procurou-se usar o sincretismo, não “como uma categoria – um “ismo” –”, antes tentou-se “focar os

276

BAIRD 2005: 51.

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processos de síntese religiosa e os discursos do sincretismo.”277 Não há análise histórica que possa fazer isso, pois, por mais que este trabalho esteja preso a história, as análises que aqui objetivou-se fazer, são de cunho antropológico. Aqui, a história cumpre um papel marginal, ela é aquela sob a qual os encontros se dão. Dizer que todas as religiões são sincréticas não defini o conceito de sincretismo e muito menos as religiões das quais se está falando. Assim, buscou-se dar sentido ao termo sincretismo utilizando-o justamente como uma ferramenta para desvendar a lógica por trás dos fatos – talvez mesmo, da história –, para desvendar o universo religioso de uma comunidade, atentando “às formas nas quais as pessoas negociam e redefinem as fronteiras de suas idéias e práticas”278 no plano sagrado. Isso fez com que aquilo que poderia ser um impedimento ao estudo dos sincretismos se tornasse seu próprio campo de ação. Shaw e Stewart279 mais uma vez trabalham esta questão: “a fluidez e a contingência política de fronteiras tais como ‘religião’ e ‘cultura’ torna-se parte central nas discussões sobre sincretismo ao invés de impedimentos ao seu estudo.” A antropologia, como procurei mostrar neste trabalho, contribuiu ainda mais para o esclarecimento daqueles arranjos. Tomando os discursos nativos, tal como proposto e realizado durante todo este trabalho, foi possível estabelecer os limites de cada tipo de conhecimento religioso presente em Okondjatu, foi possível definir os pontos em que as discussões teóricas poderiam ser feitas e destaca-los do meio das descrições. Assim, acredito que a perspectiva antropológica, conjugada aos aportes teóricos a respeito dos sincretismos foi uma opção central para a explicitação daquelas fronteiras, deixando clara as intenções defendidas no título deste trabalho: que a antropologia contribua para clarificar os limites de complexos religiosos a partir da análise de arranjos sincréticos. Não há dúvida que outros pontos poderiam ter sido abordados no decorrer deste trabalho. Outros discursos poderiam ter sido analisados e muitas páginas poderiam ter sido acrescentadas. Entretanto, pelos objetivos propostos, acredito que este esforço tenha sido suficiente para sugerir uma verdade da qual espero ter me aproximado, e iluminar os estudos sobre sincretismos, propondo mais do que simples tautologias a um termo tão interessante.

277

SHAW; STEWART 1994: 7. SHAW; STEWART 1994: 10-1. 279 Op. Cit. 278

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