Discursos políticos e a objetivação da cultura entre os Xikrin

May 28, 2017 | Autor: Clarice Cohn | Categoria: Etnologia, Povos Indígenas, Etnologia Indígena, Mebengokre, Xikrin
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30º Encontro Anual da ANPOCS 24 a 28 de outubro de 2006

GT 14 – Os regimes de subjetivação ameríndios e a objetivação da cultura

Discursos políticos e objetificação da cultura nos Mebengokré-Xikrin

Clarice Cohn Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Faz já mais de dez anos. Na aldeia do Bacajá, os Xikrin viviam uma crise e várias indefinições. Eram meados dos anos 1990, quando a frente madeireira estava definitivamente focando sua atenção nas terras kayapó mais ao Norte: as dos Xikrin. Pareceu-lhes que a idade de ouro se abria, e que finalmente as oportunidades que eles viam ser aproveitadas em outras terras kayapó lhes eram oferecidas. Mas isso não podia acontecer sem disputas, sem negociações. Negociações internas, negociações com os madeireiros e seus intermediários, negociações com todos com que lidam. Disputava-se poder e legitimidade, assim como alianças. E, claro, disputava-se quem ficaria no controle da situação – das negociações, do dinheiro e das mercadorias obtidas com a venda da madeira. Essa história foi contada em diversos lugares, e suas conseqüências para os Kayapó debatidas e analisadas. Os casos xikrin, do Bacajá e do Cateté, também têm sido analisados1, e suas conseqüências são conhecidas. Não se trata, aqui, de recuperar essa história, em seus eventos ou conseqüências, mas de demonstrar como esse cenário levou a um debate político e de legitimidade e legitimação em que a noção de kukradjà teve participação importante, em diversas roupagens e papéis. Porque o discurso de que partimos aqui foi realizado neste contexto. Foi em meio a um debate sobre os destinos da aldeia, sobre os benefícios de fazer negócios com os madeireiros e se posicionar frente a possíveis aliados que os desaprovam – como os antropólogos e a Funai – ou mesmo afrontar antigos parceiros, como os garimpeiros, que Onça, o chefe Bep-Tok, fez seu discurso. Foi também em meio a um debate que acontecia naqueles dias, sobre a juventude e suas atitudes, que ele falou. Em sua fala, escolhas entre ‘tradição’ e mudança, entre uma atitude tradicionalista e uma mais voltada à novidade, remetiam diretamente a esse contexto e a essas preocupações. Como ‘tradição’ ou ‘mudança’ não eram posições marcadas de modo rígido, mas abraçadas ora pelos jovens, ora pelos velhos, ora por uma das metades, ora pela outra, o recurso à noção de kukradjà em seus vários níveis de significado e abrangência torna-se particularmente interessante. 1

Veja-se para os Xikrin do Cateté Vidal & Giannini 1991, Giannini 1993, Gordon 2003; para os Xikrin do Bacajá, Fisher 1991 e 2000. Para os demais Kayapó, Turner (1988, 1992, 1993) e Inglez de Souza 2000. Aproveito para agradecer a Bill Fisher, que compartilhou comigo o campo, minha segunda visita aos Xikrin, sendo generoso em compartilhar comigo também suas apreciações dos acontecimentos que presenciávamos, e que ele depois transformou em livro. Lux Vidal, minha orientadora no mestrado, e Bel Giannini também foram muito importantes ao me apoiar e esclarecer em uma entrada tão conturbada em campo. Agradeço também a Beatriz Perrone-Moisés, que me auxiliou a fazer sentido a tudo isso durante a pesquisa posterior.

O discurso foi realizado em uma tarde de dezembro de 1994, em uma construção anexa à casa do chefe Onça, para uma audiência mista, reunindo homens e mulheres, adultos e crianças. Durou pouco mais de duas horas, e foi brevemente interrompido pela chegada de um avião, e pelo cumprimento do piloto ao “cacique”. Assim, foi também uma demonstração de poder com vistas aos madeireiros – a notícia da reunião se espalhando, a capacidade de Onça de reunir toda a aldeia em um longo discurso deveria aumentar sua fama e legitimidade2. De fato, Onça continuou, aparentemente imperturbável, seu discurso, incompreensível ao piloto, que realizou seus afazeres e partiu – ouve-se ao fundo o avião novamente levantando vôo. A excepcionalidade da situação – o contexto de decisões e negociação, de grande trânsito de madeireiros na aldeia, de afluxo de mercadorias chegando de avião, do conflito com a Funai, que chegou a retirar seus servidores da aldeia, a audiência mista em um discurso diurno, o local – é exatamente o que possibilita Onça brincar com tantos significados de kukradjà. Ele ora se dirige às mulheres, ora aos homens; às vezes, usa das distinções de categorias de idade, e fala como velho para os moços; fala de kukradjà indo das coisas que se produz aos meios de produzi-las; das relações que produz aos meios de conduzi-las; das pessoas por meio dele criadas aos meios pelos quais as cria. Transita do kukradjà atribuído às coisas – moja, sejam elas adornos, conhecimentos, alimentos – a uma ética que lhe define como mais propriamente mebengokré. 

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E, claro, havia a antropóloga e seu gravador. Me é difícil avaliar o quanto minha presença lá, ou mesmo o registro no gravador, poderia ter pautado o discurso. Esse foi um dos primeiros campos, e nos conhecíamos, ainda. Por vezes, associavam-me às autoridades com que lidavam e ao Estado; por vezes, a uma aliada “independente”. Seja como for, sempre deixaram claro que minha presença lá era bem vinda, contanto que eu não me posicionasse em relação à madeira e a suas relações com os madeireiros. Estavam cientes de minha reprovação, e jamais me procuraram para intermediar negociações ou contatos, mas por outro lado não me tomaram por alguém com autoridade para decidir algo em relação à exploração – ilegal, sabe-se – da madeira, ou mesmo julgá-los por isso. A título de informação, esse afluxo de mercadorias e a exploração da madeira continuou por muitos anos, e continua, mesmo que em menor escala, atualmente. Os efeitos da venda da madeira e os rearranjos na produção e distribuição de bens e mercadorias no Bacajá foram cuidadosamente analisados em Fisher (2000). Apenas recentemente os Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá começaram a se mobilizar para realizar um projeto de manejo sustentável, criando para isso a Associação Bebý Xikrin do Bacajá – ABEX em 2003.

O conceito de kukradjà envolve, para os Mebengokré, um campo semântico abrangente, que denomina de componentes da pessoa a uma condição de sujeito. Por ele, se fala de coisas aparentemente tão díspares como particularidade cultural, usos e costumes, conhecimentos e técnicas, assim como elementos que compõem a pessoa e sua produção. Ele é necessário para garantir a construção de novas pessoas, assim como a condição mebengokré no mundo. Articula a produção de uma condição “cultural”, ou “social” – tal como entendida pelos Xikrin – e a construção da pessoa xikrin. Vários pesquisadores dos Kayapó têm comentado sobre a importância desse conceito, e suas definições variam tanto quanto é amplo o campo semântico que a palavra recobre. Kukradjà é definido por parte de um todo ou algo que é por definição parcial, assim como se refere à associação, feita pelos próprios Kayapó, com a idéia de “cultura” (Lea 1986: 64-65, Fisher 1991: 313-315). Aponta-se também seu papel como constituinte da pessoa kayapó, como o faz Fisher (1996: 3-4), que o remete ao “conhecimento específico de tradições culturais”, ou o mais autêntico dos conhecimentos, “centrado em códigos de conduta e em regras de saúde, assim como conhecimento cerimonial, mitologia, etc.”, que define a “qualidade de ser kayapó”. Esse termo recobre também as prerrogativas rituais, como já apontava Vidal (1977: 205, nota 1), e tem nesse sentido maior alcance para os Xikrin do que para os demais Kayapó, que se utilizam do termo nekretch para falar dos bens transmissíveis. Gordon (2003), ao falar de riquezas e mercadorias dentre os Xikrin do Cateté, aborda o valor de kukradjà na fabricação de pessoas e seu “sacrifício ritual”, que o faz perder valor e distintividade, e leva à necessidade contínua de reposição e revalorização. Já tive ocasião de argumentar que, se devemos ficar atentos ao uso pelos próprios Mebengokré desse conceito para abarcar a nossa noção de cultura, devemos estar igualmente atentos à sua particularidade, que está exatamente na concepção mebengokré de que ele é por princípio e constituição aberto e mutante. O kukradjà deve ser compreendido, em seu campo semântico ampliado, como algo que conforma uma identidade mebengokré, mas que é visto por eles como fluido, mutável e mutante – ao contrário de uma visão que tendemos a abraçar e que tomaria a “cultura” xikrin como estável e constituída de elementos imutáveis (Cohn 2001: 40). Para além de sua contínua produção, a mutabilidade advém (mais do que advém, é produzida) por uma transmissão de conhecimentos não-

regrada ou normatizada, que enfatiza a iniciativa pessoal para a aprendizagem (o pedido para ser ensinado, kukiere), e a construção do conhecimento por cada um (cf. Cohn 2000: cap. 4). Em outro trabalho (Cohn 2006), explorei ainda mais o campo semântico que kukradjà tem para os Xikrin, e demonstrei ser ele continuamente construído pelas relações pautadas por uma Abertura para o Outro (Lévi-Strauss 1991) – especialmente guerra e troca, mas também o xamanismo e a caça –, pelas quais novos objetos, rituais, saberes, pessoas e componentes de pessoas são trazidos (o bôx), e sua potência criadora refeita e reposta. De fato, a reposição e a introdução de novos kukradjà é a condição mesmo de sua potência criadora, e por isso a importância das relações de diferença na constituição contínua de mebengokré. Assim, kukradjà aparece como aquilo que constitui a pessoa e as coletividades, mas também aquilo que realiza sua constituição e construção. Compondo e diferenciando pessoas, o kukradjà também permite a efetivação de coletivos. Por ele, distinguem-se aldeias, grupos, os mebengokré dos não-mebengokré – verdadeiros traços diacríticos (Carneiro da Cunha 1986) que permitem a expressão e a criação da diferença e da identidade. Permite, também, a realização daquilo que define e constitui o mebengokré, uma condição no mundo. Esta é continuamente reposta pela criação de semelhanças e semelhantes, pela construção de pessoas e sua fabricação em pessoas belas, mex, verdadeiramente mebengokré. Sendo assim, essas acepções de kukradjà unem-se e articulam-se na produção contínua de uma condição Mebengokré, assim como a de novas pessoas e coletivos – sua renovação e inovação contínua e continuada é a condição de sua potência e força criativa. Rituais, prerrogativas rituais, nomes, e tudo o que compõe e fabrica pessoas devem sempre ser renovados, para que sua potência criativa se mantenha operante. Isso se faz ao trazer (o bôx) sempre novas coisas, e tornando continuamente mebengokré aquilo que tem valor exatamente por seu estatuto exógeno e exótico. Tornando continuamente Mebengokré pessoas que devem assim ser construídas, em comensalidades, fabricação do corpo, nominação, aprendizagens e conhecimentos, e tratamentos rituais. Portanto, o kukradjà cria novas pessoas e as faz belas (mex) e mebengokré exatamente pelas diferenças internas a esse campo, que para os próprios Xikrin deve ser plural. As pessoas são compostas diferentemente, o que as faz plurais e divíduos (Strathern

1988) – essa composição diversa o é nas relações que as compõem, assim como no kukradjà que as criou e foi por elas gerado. O conhecimento é gerado a cada momento, mas também tornado múltiplo e diferenciado por um aprendizado que privilegia o interesse e a iniciativa pessoal, tornado possível pelo pedido (kukiere) para ser ensinado. Distinções tais como de gênero ou hierárquicas operam e são geradas a partir de diferenças no kukradjá. Assim, tal como já demonstrado para diversos ameríndios (cf. McCallum 2001), a construção do gênero envolve saberes e uma produção, ou uma capacidade, específica; assim também, a fala e as modalidades de discurso marcam distinções de gênero e idade e condições de liderança. O kukradjà, prerrogativas rituais em ornamentação e participação ritual, compõe a pessoa e torna sua identidade visível, a expressa (amerin). A “boa fala” (me kaben mex, cf. Cohn 2004, 2006) traduz uma comunicação propriamente mebengokré, assim como se distingue com referência ao gênero – o discurso formal masculino, ou o choro ritual feminino, que Lea (1994: 113) lembra ser a oratória feminina 3. A realização dessas falas segue uma lógica dada pelas categorias de idade, e só os velhos efetivamente realizam discursos em suas diversas modalidades – como para grande parte dos conhecimentos, nesses casos os Xikrin não regulam o momento de aprendizado, mas o de sua efetivação e expressão (amerin), o de torná-lo público (Cohn 2000a: 131, passim). Os discursos, como já o demonstrou Verswijver (1992: 68-69), são também atributos da chefia, ou correspondentemente, espera-se que um chefe, ou um líder, fale bem; inversamente, a fala má, porque mal intencionada, é tida como motivo e motivação de cisões e guerra. A oratória como ação política revela a política e o político como um modo de se fazer humano e uma ação social, mais do que um papel ou uma instituição. Partindo de outro lado que não a capacidade redistributiva do chefe, sua atuação na organização do trabalho, ou seu papel de líder, apreendemos uma característica da chefia que é fundamental do ponto de vista dos Mebengokré: a boa fala. Para eles, um bom chefe deve necessariamente ser alguém que fala bem – e isso tem uma dimensão retórica, falando de habilidades narrativas e literárias, mas também, e principalmente, uma dimensão ética. O chefe fala em diversas ocasiões; suas falas são mais ou menos formais, mais ou menos 3

Esse fato é importante, já que a oratória foi por muito tempo definida por vários antropólogos dos Mebengokré como um atributo masculino. Por outro lado, o valor da fala, e o valor correlato da audição, tem sido apontado desde que Seeger (1980) afirmou que a ênfase na audição, marcada pela ornamentação auricular, indicava para os Jê uma moral e uma intervenção corporal relativa à moral e seu desenvolvimento; cf. também Turner 1995 e Cohn 2000..

formalizadas. Na exortação cotidiana, o chefe comenta ao público presente os acontecimentos recentes e exorta comportamentos que lhe parecem adequados; em discursos formais, fala de coisas que lhes parece relevantes para a constituição presente de mebengokré, como mitos, eventos, guerras, etiquetas, rituais; na modalidade mais formalizada de todas, o ben, a fala ritual, pontua diversas ocasiões, dando-lhes começo, meio e fim, e permitindo e legitimando sua efetivação. Em termos gerais, o ben não é uma modalidade oratória exclusiva da chefia, nem restrita ao âmbito público ou político. De fato, ben são pronunciados em momentos tais como a realização de rituaus ou o nascimento de uma criança, em casa, pelo amigo formal de seu pai, quando da primeira reentrada do novo pai na casa 4. E há diversos tipos de ben, sempre um texto memorizado e enunciado com uma cadência e um ritmo que são próprios a essa oratória. Não devemos, por isso, mais uma vez tomar um aspecto por uma essência ou uma característica definidora, e concluir ser o ben um atributo ou uma função da chefia. Ele de fato perpassa grande parte dos eventos importantes na vida das pessoas e dos coletivos Mebengokré, marcando-os e fazendo-os acontecer. Se não é a função primordial e o atributo do chefe, porém, o chefe é pensado em relação a essa sua atuação – ele é o benadjwyry, literalmente o dono ou enunciador do ben, e por ele faz as coisas acontecerem. Se essa não é sua única atribuição, e se ela não lhe é exclusiva, é não obstante definidora de sua condição aos olhos dos Mebengokré. Essa definição da chefia funda-se no valor que os Mebengokré dão à língua, e à fala, como definidor da condição Mebengokré no mundo. Esse valor pode ser percebido em diversos momentos, como mostram de modo crítico a valorização da aquisição da competência lingüística da criança (Cohn 2000b) e do cativo (Giannini 1991, Cohn 2006). Assim, o primeiro reconhecimento de autonomia da criança na primeira infância, que vem marcado por uma pintura corporal, uma tonsura e uma ornamentação específica, acontece quando ela demonstra iniciar o domínio de duas habilidades: quando dá seus primeiros passos, e quando começa a falar. Seu desenvolvimento no domínio lingüístico e na 4

Lembre-se que a residência é uxorilocal; quando um casal tem um novo filho - e de modo mais pronunciado no primeiro -, o marido de sua mãe de retira da casa, para passar um tempo no centro da aldeia, no ngà. Lá ele dorme e é alimentado, passando também seus tempos livres, enquanto cumpre os resguardos. Quando a criança recebe a primeira pintura, o pai é readmitido à casa. Para tal, circula em companhia de seu amigo formal (e dos demais pais da criança, quando os há) o pátio, devidamente pintado e ornamentado, e entra na casa, onde o amigo formal pronuncia um ben para os pais, que tem como tema o cuidado com os filhos e a responsabilidade dos pais.

formulação de idéias próprias é acompanhado e celebrado de perto pelos mais velhos. A demora em falar ou o domínio tido por inadequado das habilidades oratórias levam a intervenções curativas específicas. Quanto ao cativo, o momento em que passa a dominar a língua mebengokré – me kaben, nossa fala – marca definitivamente sua condição mebengokré: não mais estrangeiro, não mais cativo, mas alguém a quem finalmente é permitido casar e formar família. Os Xikrin dizem expressamente que quando o/a cativo/a começa a falar – ou seja, quando domina sua língua – pode casar, e assim iniciar uma vida própria: o equivalente à autonomia infantil. A oratória é, por fim, meio privilegiado de transmitir mensagens e debater. Os discursos são enunciados pelos chefes (ou por pessoas mais velhas, mebengêt) a uma platéia atenta mas também participativa5. Os discursos tematizam fatos do cotidiano, relações, etiqueta – kukradjà. Por ele, o kukradjà, que é posto em ação, é também enunciado, debatido, refletido, renovado, tornado potente. Mas a fala é também e prioritariamente kukradjà. Não porque enuncie conteúdos que são kukradjà – isso seria retornar a uma visão essencialista do quê é dito – embora seja disso mesmo que se trata às vezes, como nesse caso. O fato é que o que faz da fala kukradjà é a atuação e a ação social que estão dadas no ato de falar. Este é muito codificado: a oratória é algo que se aprende e domina, algo que se aperfeiçoa, algo que só se efetiva quando a pessoa tem idade para tal, para revelar (amerin, ver acima) seu conhecimento; ela é diferenciada por gêneros narrativos e retóricos; ela atua no mundo. A atuação do chefe por meio de sua oratória está dada em todas as modalidades de discurso que enuncia. Mas ela está epitomada pelo ben, fala ritual por excelência, modo de ação no mundo. Pelos discursos, o chefe pode fazer fazer, ou fazer com que se faça (algo): regular comportamentos e relações, regular atividades e ações. Pelo ben, ele age. Por meio de uma modalidade altamente codificada, especializada e ritualizada disso que concorre para definir a condição mebengokré no mundo, o chefe age sobre o mundo, atua, o modifica, o torna cada vem mais mebengokré. O kukradjà, definindo uma condição mebengokré, um modo de fazer humanos e de se fazer humano, já desafiava os conceitos

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Vale comentar que a platéia normalmente é muito mais ruidosa que reza nossa etiqueta em eventos como simpósios, aulas ou audições. Há sempre comentários paralelos, debates, interjeições de apoio ou repúdio. De fato, esses eventos são sempre um debate rico, com diversidades de opiniões, que exige que se aprenda a ouvilo!

antropológicos de cultura e sociedade. Mas a política mebengokré parece, se vista em sua ação que lhe serve de epítome – a fala ben que abre e fecha rituais, que abre e fecha ciclos sazonais de produção, que recebe um recém-nascido e faz de seus pais enfim adultos, que inicia rapazes – também modificada. Não um cargo, não uma função, nem coerção nem redistribuição, mas um exercício da ação mebengokré no mundo. É a esse amplo, extenso e algo maleável campo semântico que recorre Onça quando faz seu discurso. E é com essa potência criativa de kukradjà, e de sua fala mesmo, que joga. De certo modo, ou de diversos modos, Onça subverte contextos, significados, valores. Faz do kukradjà coisas, conteúdos, relações, ética. Tudo isso para legitimar uma escolha, e sua legitimidade em fazer a escolha. 

Ainda custaria a entardecer, e as mulheres vieram reunindo as crianças que passavam o tempo no fundo das casas, na área das cozinhas dessa aldeia em formato circular, espaço da comensalidade e da sociabilidade, chamando porque “seu avô vai falar”, ou “o velho vai falar’, ou “venha ouvir seu avô falar”, amre ten angetê ma. Esse é um modo de tratamento que não remete ao parentesco pautado por reações interpessoais, mas ao prestígio e à hierarquia presente nas relações velhos/jovens, chefes e comuns, ou “a comunidade”. Onça chamava a todos para ouvirem seu discurso, que iria realizar de uma construção anexa à sua casa. O arranjo era inovador. De fato, freqüentemente os velhos – mebengêt – falam da frente de suas casas, posicionando-se assim no círculo das casas, voltados para o centro. Nessas falas, usam a entonação e a retórica da fala formalizada, e exploram temas de interesse comum, como atividades de produção, rituais, mitos, histórias, guerras. São ouvidos por todos, que no entanto se mantêm onde estão, ou transitam pelo pátio, dando continuidade a seus afazeres. Os velhos discursam também, e rotineiramente, no centro do pátio, no ngà, para os homens lá reunidos. Reuniões no círculo da casa, mais precisamente na casa do chefe, não têm um caráter universalista, reunindo apenas seus correligionários para encaminhar as atividades do dia e decidir coisas que os afetem, mas não necessariamente ao resto da aldeia, como a roça que eventualmente abram juntos para o chefe, para a produção de farinha – enquanto a mesma lógica preside as reuniões femininas

de pintura corporal, lideradas pela esposa do chefe e realizadas nos arredores de sua casa6. Uma reunião vespertina nas vizinhanças da casa do chefe reunindo a todos os residentes da aldeia combina os elementos de todas essas outras ocasiões, não se confundindo com nenhuma. Sendo assim, o discurso se desamarra de qualquer princípio de formalização desses outros discursos, embora permaneça um discurso formal, que lhe caracteriza como um discurso de chefe, e condizente com a posição daquele que o realiza. Onça começa seu discurso formando sua audiência: aponta para a importância desse tipo de discurso, lembra que eles são – ao contrário dele, que discursa – jovens, crescidos há pouco (me abatohn ny), e que muito têm a aprender com as falas dos mais velhos; ressaltando sua posição de liderança e a necessidade de seriedade a ela devida e acoplada, levando as mulheres a silenciarem seus filhos e lembrando que ele não está brincando (ibixaere kêt; djam ibixaere o dja, got?; ibenadjwyry rax ibixaere kêt). É essa introdução, esse discurso sobre o discurso, sua seriedade, e a correspondente seriedade da audiência, que é interrompida pelo piloto do avião que acabara de pousar. Depois dos cumprimentos em português, volta a falar para sua audiência, e conta que falará a ela do kukradjà: ari kukradjà dja ba ari kumaren, moja kuni dja ba ari kumaren. Passa então a falar da madeira, e de sua exploração. Comenta das várias terras que conhece, tanto kayapó quanto dos Gavião de Mãe Maria, para recusar a possibilidade de ficar parecidos com os Gorotire, que são, afinal, inimigos, kuredjwy. Mas lembra que, se antes (amrebê) não se apreciava o comércio de madeira, a situação mudou desde que o garimpo foi fechado. Essa sendo a terra deles (imõro djà), a madeira é deles, cabendo a eles decidir se ela fica na floresta ou é vendida – são afinal Mebengokré, verdadeiros Mebengokré – mebengokré kumren –, e não Kuben – aqui, muito precisamente os brancos, e as autoridades que reprimem a venda de madeira. É quando sua fala sofre uma torção, e ele passa a – um tanto surpreendentemente para mim, já que seu esforço era de legitimar sua posição como negociador com os madeireiros – denunciar os males trazidos pelos brancos e pelo contato com eles. São os brancos, afinal, que lhes trouxeram as doenças com que eles sofrem hoje. Por isso, os jovens devem deixar de falar besteira – kaben punu –, por isso se deve agir como

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Ver Fisher (1991, 2000) para uma análise dessas reuniões, das associações masculinas e femininas, e dos efeitos desse arranjo para a chefia e sua legitimação.

mebengokré. Sistematicamente recusa as coisas do branco, e os exorta a trabalhar, a deixar de ser preguiçosos (ara ben adjukanga kêt), a se comportar apropriadamente (kam axwe kêt). Sua fala passa a listar as coisas que se deve fazer: plantar os produtos da roça em um conjunto legitimado como mebengokré – batata e mandioca, principalmente, para comer com a carne. Deve-se evitar o cultivo de arroz, e, mais radicalmente, o consumo de coisas como açúcar e bolachas. Deve-se evitar, também, o consumo de alimentos cozidos (omron). Deve-se consumir a carne de caça – anta, jabuti, paca – ou peixe. Mas não se deve consumir as coisas do branco: daqui em diante, não terão mais apetite para essas coisas, gwaj ba ijé arym kuben nhõ moja kren prãm kêt. Porque eles devem voltar a ser como antes: antes, se plantava, trabalhava: amrebê me ari puru õ karê, prin-ne moja o mex. A juventude lhe parece preguiçosa, indolente, e por isso ele se envergonha, tem pia’am. As pessoas estão prestes a se chamar pelos nomes – arym tu anidji aren, moj dja ga kumaren?. Abandonarão, assim, o modo de tratamento correto – pelos termos de parentesco, pela relação – e passarão a usar os nomes onde e quando não se o deve. Volta a lembrar à sua audiência suas responsabilidades: kute kra kadjy tep o abin, mry bin, puru karê, djwy ngrà: em nome dos filhos, ou para os filhos, deve-se pescar, caçar, limpar a roça, fazer farinha. Onça volta então às coisas que recusarão: roupas, sapatos. Deixarão de se vestir como os Kuben, com as coisas dos Kuben, e voltarão a usar o estojo peniano, a pintura corporal, o vermelho do urucum, os adornos, o corte de cabelo. Sua audiência acha graça, ri – especialmente os jovens, que nunca receberam um estojo peniano para uso, que cresceram usando calções, e se afligem com a possibilidade. Mas Onça é duro: afirma não estar brincando – ibixaêre kêt –, que abandonará os sapatos, que as pessoas deverão seguir seu exemplo – dja me idjua parikà adjoro kêt –, e que vão abandonar o kukradjà dos brancos – arym kuben kukradjà kanga. Assim, vão abraçar novamente seu kukradjà, o modo dos antigos, me kukradjà tum, Finalmente, exorta-os a ficarem em suas terras, passar tempo na aldeia, não ir à cidade (“o que vocês vão fazer na cidade?” – kri rax mã tem kêt – mokan dja ga kri rax ten?), permanecer com os seus em suas casas e na aldeia. Assim, as pessoas voltarão a conviver, e podem voltar a realizar rituais, como o mereremex e o kworokangô. Devem

fazer como ele, que canta, trabalha e pesca ritualmente com os outros – me kôt itoro, me kôt idjàpex, me kôt tep ikaôn. Repete então que se deve plantar apenas mandioca, não arroz, e que se deve deixar de falar mal, kaben punu. Com isso Onça termina sua fala. Ele usa a fórmula “acabou, era isso que eu tinha a dizer para vocês”, repetindo-a de diversos modos, e lembrando-lhes que lhes contou do kukradjà tum, do mekukradjà. 

Onça produz nesse discurso uma certa reificação do kukradjà, tornando-o marcador da diferença mebengokré/kuben. As coisas do Kuben são sistematicamente recusadas: suas roupas, seus sapatos, suas comidas. Ele propõe que só se produza nas roças alguns alimentos, tais como batata e mandioca, em oposição ao arroz. Propõe o abandono de alimentos industrializados, o açúcar e a bolacha. Propõe também o abandono dos calçados, e das roupas, em oposição à pintura corporal e aos adornos. Açúcar, bolacha, roupas, sapatos: todas essas são coisas que os madeireiros, assim como antes os garimpeiros, os gateiros, os caucheiros, oferecem em troca dos recursos de suas terras. São também coisas que a Funai ofertou para convencê-los ao contato e à pacificação – e que agora, lembram sempre, não mais é capaz de fornecer. No entanto, açúcar e bolachas são exemplos do consumo de alimentos dos Kuben sempre criticados pelos próprios Kuben. Médicos e dentistas não se cansam de contar a eles o mal que o consumo de açúcar faz. Mas todo servidor da Funai, toda professora, todo auxiliar de enfermagem, e mesmo os antropólogos – estão todos sempre repetindo os malefícios do açúcar e das bolachas, mesmo que não se recusem a fornecê-los. Ofertados, continuamente fornecidos, consumidos pelos Kuben não só nas “suas” terras, mas também na deles – todo Kuben que vai passar um tempo na aldeia leva seu “rancho”, que os inclui –, usados para convencê-los a firmar uma aliança com o Estado, utilizado como moeda de troca em inúmeras transações – esses bens são onipresentes tanto quanto consensualmente criticados. Não poderiam ser exemplos maior de uma recusa do kuben kukradjà, das coisas do branco, de sua cultura. Esses itens são sempre repetidos por Onça nos discursos para os Kuben em que quer comunicar sua consciência de que adotar as coisas do branco é ruim. Aqui, repete na aldeia, ciente de que sua audiência sabe de que está falando – eles também vivem essa

tensão entre a oferta, o fornecimento e a crítica. O mesmo segue para as roupas e sapatos: os Xikrin estão bem cientes do estereotipo carregado pelos Kuben, e às vezes referem-se aos tempos em que eram “brabos”, utilizando-se não só da terminologia como desse imaginário. Trocar vestimentas por adornos e pintura é, aos olhos do Kuben, voltar a ser índio, voltar a uma pureza (ou, inversamente, barbárie) originária que os Kuben lhes atribuem. Aqui, Onça constrói uma ponte entre os discursos sobre o kukradjà – o mebengokré, para quem fala, e o dos kuben, a quem sua fala remete. Mas o que é interessante perceber é que essa fala “tradicionalista” está pautada e fundamentada nas razões e na lógica mebengokré. Onça vai construir uma outra ponte, esta interna ao discurso, que faz com que o tradicionalismo reificador dirigido aos Kuben possa fazer sentido para sua audiência, possa torná-la cúmplice. Ele tem um problema: a noção de kukradjà compartilhada pela sua audiência, como comentamos acima, não é nem reificadora nem estática. Para eles, mudanças e novidades são o motor mesmo do kukradjà. Esse problema é perceptível pela reação da audiência, em alguns momentos críticos. Por exemplo, quando ele enumera as espécies que doravante serão cultivadas, ou, mais precisamente, quando exclui o arroz como espécie cultivável em roças mebengokré. As mulheres reagem imediatamente, debatem, criticam. Isso porque cada qual cultiva uma roça que é rica em diversidade exatamente por sua capacidade de domesticar espécies alheias, que enriquece a diversidade de espécie já cultivadas assim como nas espécies cultivadas, acrescentando às roças coisas exatamente como o arroz. Isso tem sido feito desde sempre, e dá às roças xikrin não só sua riqueza como sua variedade e distintividade – cada mulher possui um conjunto de cultivares e variedades a plantar em suas roças, e a diversidade é para elas um orgulho, fruto de uma biografia, dos lugares onde andou e das relações que estabeleceu com outras mulheres e outras gentes7. Plantar arroz é acrescentar na riqueza e na diversidade de suas roças, é produzir kukradjà, e deixar de plantá-lo é, ao contrário de retornar a uma pureza cultural originária, dada pelo imaginário Kuben, empobrecer seu kukradjà, ou, pior, negar sua própria lógica. A recusa à comida cozida, por outro lado, ganha outros significados. A comida cozida sempre foi objeto de desconfiança pelos Xikrin, que lembram de sua resistência

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Para a variedade das roças xikrin no Bacajá, cf. Fisher 1991. Para uma discussão detalhada dessa contínua renovação e ampliação dos cultivares plantados pelas mulheres no Bacajá, cf. Cohn 2006: 70-79.

inicial a consumir a comida oferecida pelas Frentes de Atração quando querem comunicar a complexidade dessas relações iniciais, e da decisão entre compactuar ou não com esses Kuben. Essa resistência encontra uma forte razão na classificação dos alimentos: alimentos tidos como moles são próprios para crianças pequenas, doentes, pessoas em resguardo, e logo devem ser substituídos, gradativamente, por alimentos “duros”, que sustentam, tal como a carne de caça. O arroz não é apenas cultivado pelos Kuben: ele também só pode ser consumido cozido, ao contrário da batata, que é assada e torna-se o acompanhamento ideal da carne – por isso diz Onça que se deve cultivar a batata para acompanhar a carne de caça – ou a mandioca, que pode ser assada ou torrada para fazer farinha. Mas Onça lembra também outra coisa: a ética envolvida na produção desses alimentos. É quando remete à responsabilidade e ao cuidado dos pais, que devem abrir e plantar roça para seus filhos, em benefício dos seus filhos, assim como pescar e caçar. E isso a um passado idílico, um antigamente (amrebê), quando todos trabalhavam, abriam roças, cuidavam de tudo (moja o mex) para obter o alimento que sustentará seus filhos. Isso, quando as pessoas não eram preguiçosas, não perdiam tempo brincando em vez de trabalhar, e cuidavam de seus parentes produzindo para eles. A comensalidade é importante veículo de efetivação de relações e meio de produção de pessoas, e corpos, mebengokré. Liga-se assim a outro importante aspecto da ética e da etiqueta mebengokré: o tratamento correto, que dá o reconhecimento das relações e permite sua ativação e efetivação. Por isso Onça comenta da necessidade de plantar, caçar, pescar para produzir corpos e pessoas mebengokré, emendando-o nessa crítica ao uso dos nomes pessoais em detrimento dos termos de parentesco e afinidade. Aqui, encontra ressonância em outros discursos feitos pelos mebengêt, os velhos, durante aquele período, que falavam aos jovens da necessidade de se comportar apropriadamente, ou seja, mantendo o pia’am, o respeito, frente aos mais velhos e frente a seus afins. Feita a ponte, fundamentada a tese, Onça volta porém a insistir no abandono do kukradjà dos Kuben em suas coisas, especialmente os sapatos. Frente à reação de hilaridade, insiste mais, afirma que vai dar o exemplo, que espera ser seguido. Sua frase é construída do modo que denota a continuidade, utilizada para falar da transmissão de prerrogativas – usa o adorno dando seguimento a meu uso – de papéis – como o de “dono do maracá”, ngô-kon-bàri, que passa de um irmão para outro sempre que o primeiro casa e

tem filhos – ou da transmissão de conhecimentos e do kukradjà em seu sentido mais amplo. Mas se fazer seguir em uma atitude é também uma ação política e de liderança. E correlata à exortação do uso do estojo peniano, que causou tamanha impressão na parcela jovem de seu público. Ou ao uso da pintura e dos adornos, modo de se apresentar que lista detalhadamente, e que, como já apontou Vidal (1992) comunica o estatuto e a situação da pessoa, assim como é o modo belo e apropriado de se apresentar, tornando visual e visível uma ética e uma estética. Definitivamente abandonando os novos modos e abraçando os antigos. A última referência pontual de Onça a esses modos antigos fala da co-residência, do tempo passado juntos, do convívio. Fala do ideal da aldeia grande, que reúne muita gente, em que as famílias e as gerações convivem, colaborando para produzir novas pessoas e dar continuidade a seu kukradjà. Mas que possibilita também o meio mais poderoso de produção de pessoas belas, mex, e mebengokré: os rituais. Quanto maior a aldeia, e quanto mais envolvidos os participantes, maior será a potência criativa desses rituais, como salienta Fisher (2003). Mais do que um protocolo a seguir, esses rituais – dos quais Onça cita dois, um de nominação, freqüentemente realizado porque pode confirmar nomes de diversas raízes, o mereremex, e o kworo kangô, muito apreciado atualmente pelos Xikrin – devem ao entusiasmo da participação de todos os envolvidos, e seu engajamento, seu sucesso. Por todas essas razões, remeter-se aos rituais é remeter à produção mesmo de mebengokré, e de kukradjà. Por isso ele pode encerrar sua fala, lembrando-lhes que discorreu sobre o kukradjà antigo, ancestral, tum, ou seja, deles: mekukradjà. Sua fala se encerra retomando a oposição sobre a qual foi produzida, entre tipos de kukradjá, nesse caso o dos Kuben – esses a que usualmente referimos como “brancos” – e os deles. E se encerra exortando-os a definitivamente abraçar seu kukradjà, em uma ética e uma etiqueta que os faz mebengokré. 

Nesse discurso, estão presentes portanto os vários níveis, as várias esferas em que opera, os vários contextos de kukradjà, passando da visão reificadora e estática daqueles com quem lidam cotidianamente, os Kuben, àquelas coisas que remetem ao modo de

produção de kukradjà, pessoas, mebengokré. Onça faz uma ponte entre a “retomada da cultura”, de que são continuamente cobrados, e um discurso ético e moral, que lhe repõe a cumplicidade na produção de sentidos com sua platéia, assim como sua condição de chefe, que lhes pauta as ações e sua condução. Para isso, opera principalmente uma cisão entre dois tipos de kukradjà, o deles, mebengokré, mekukradjà, e o dos Kuben; essa cisão é feita em termos das coisas que os expressam – o que se come, planta, veste –, como traços diacríticos, mas logo passa a expressar um modo mebengokré de ser – como se come, planta, veste. Esse discurso não nos conta nada sobre as decisões tomadas por Onça ou pelos Xikrin do Bacajá. Ou mesmo pode nos dar a impressão de que eles recusarão a venda da madeira e tudo o que ela envolve – o que, a história prova, não foi o caso, mesmo porque eles já negociavam madeira há algum tempo, assim como já haviam negociado outros recursos, tais como pele de onça, caucho ou ouro8. Isso porque o discurso de Onça não tem efeitos diretos, imediatos. Sua fala é uma tomada de posição, sim, mas não deve ser tomada literalmente. Ele não vai deixar de usar sapatos, nem sonha com um mundo sem arroz. Sonha, sim, em manter um mundo em que o kukradjà seja capaz de continuar produzindo mebengokré. E isso, como já sabemos, e como ele bem sabe, não é feito à custa das mudanças, ou reestabelecendo uma pureza cultural originária que nunca existiu. Pelo contrário, isso se faz renovando e mudando continuamente o kukradjà, que assim ganha renovado valor e potência na produção de pessoas e coletivos mebengokré. É por isso que as mulheres reagem: elas sabem que acrescentar o arroz nas roças – coisa que, literalmente, nunca aconteceu, mas, digamos, seu princípio – é um meio de enriquecer krukadjà, e portanto de fazer pessoas belas. Com o arroz, suas roças ficam mais diversas, suas crianças serão alimentadas, seus corpos terão saúde, elas poderão, com seus maridos, oferecer nos rituais comida para uma quantidade de gente que o faça belo e potente, e com isso a seus filhos. Assim também, os sapatos ganham novas capacidades distintivas – de gênero, de idade, de status – ou as roupas mal escondem elaboradas pinturas corporais feitas com todo cuidado por mães, irmãs e esposas. O contexto do discurso nos obriga a lembrar que a opção pela exploração de madeira, ou garimpo, em áreas indígenas tem graves conseqüências – ambientais, de 8

Mais uma vez remeto o leitor a Fisher (2000) para essa história e essas comparações.

sustentabilidade, sociais. Dito isso, é preciso que se diga que ela não tem, necessariamente, uma conseqüência “disruptiva”, como se costuma dizer, ou que negue a lógica cultural dos Mebengokré. Eles fazem com madeireiros, mesmo que, neste caso, pagando um preço alto, e que talvez eles não tenham ainda aferido, o que buscam fazer com todos os seus Outros: incorporam kukradjà. É verdade que todo esse discurso “tradicionalista” não levou a que não se explorasse ilegalmente a madeira da área indígena, assim como é verdade que Onça não abandonou os sapatos esperando que os outros o fizessem. A eficácia de seu discurso não se mede pela sua realização literal ou imediata. Ela está na legitimação de sua posição, na sua tomada de posição, e naquilo que é no fundo a mensagem central: na continuidade de um modo de ser mebengokré, ou seja, de se relacionar, de se fazer belos. E, se isso se faz, de modo grandioso, na grande cena ritual, nisso o discurso de Onça teve conseqüências. Logo em seguida, um grande mereremex foi realizado, e os jovens responderam com afinco sua atribuição de dançar bem e forte (tôx) a noite inteira, sem parar, contribuindo assim para fazer o ritual belo (mex) e potente. E o fizeram carregando uma dobradura de palha de buriti, que expunham, brincalhonamente, de tempos em tempos: os estojos penianos que deverão usar quando os Mebengokré finalmente abandonarem a cultura dos Kuben para abraçar a sua. Não poderia haver melhor crítica cultural, em meio a seu engajamento em fazer do ritual o mais belo. 

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