Discursos Religiosos, Recriação Histórica e “Cultura do Caminho” nos Caminhos de Santiago

Share Embed


Descrição do Produto

Dossiê

DISCURSOS RELIGIOSOS, RECRIAÇÃO HISTÓRICA E “CULTURA DO CAMINHO” NOS CAMINHOS DE SANTIAGO* Raquel Bello** Resumo: este artigo investiga as imagens dos visitantes brasileiros em Santiago de Compostela, na Espanha. Apresenta os dados de ampla pesquisa que vem sendo realizada acerca do imaginário e do turismo na região, destacando o papel das representações e das práticas religiosas nesse importante centro de peregrinação. Palavras-chave: Compostela. Representações. Religiosidade. RELIGIOUS DISCOURSES, HISTORIC AND RECREATION “PATH CULTURE” IN THE WAYS OF SANTIAGO Abstract: this article investigates the images of Brazilian visitors in Santiago de Compostela, Spain. It presents data from extensive research that has been conducted about the imaginary and tourism in the region, highlighting the role of representations and religious practices in this important pilgrimage centre. Keywords: Compostela. Representations. Religious experience.

N

 o quadro do projeto de investigação Discursos, Imagens e Práticas Culturais sobre Santiago de Compostela como meta dos caminhos abordamos o papel da religião, da espiritualidade e do esoterismo na construção dos discursos sobre o Caminho de Santiago e da imagem prévia sobre a cidade de Santiago de Compostela, com os subsequentes impactos nas práticas culturais efetivas desenvolvidas pelas pessoas que visitam a cidade. Esta pesquisa faz parte também de um projeto amparado pela CAPES sobre os discursos do coletivo brasileiro de visitantes a Santiago –através de um estudo de caso no Rio Grande do Sul-, e o efeito desse discurso nas suas atividades no Brasil ao regresso da viagem a Compostela. Neste projeto analisamos tanto os perfis socioculturais das pessoas que fazem o Caminho como os modos e os materiais repertoriais 2 com que os seus discursos são elaborados, assim como

* Recebido em: 15.10.2014. Aprovado em: 20.11.2014. ** Professora na Universidade de Santiago de Compostela. e na Universidade UniRitter (RS) com bolsa da CAPES. Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

35

as especificidades culturais que condicionam a construção das imagens sobre a experiência do Caminho a e experiência vivida nele. Exploraremos neste trabalho as presenças do discurso religioso e a (re)elaboração de repertórios históricos nas opiniões expressas por visitantes brasileiros a Santiago de Compostela através de inquéritos realizados in situ durante a sua presença na cidade. Levaremos em conta para a nossa análise as relações estabelecidas no discurso turístico entre antiguidade, patrimônio, história e cultura. Um dos nossos objetivos é verificar até que ponto é o que denominamos Cultura do Caminho que condiciona a visão que os visitantes –peregrinos e não peregrinos- têm da cidade. Entendemos por Cultura do Caminho um conjunto particular de princípios de visão e de divisão do mundo, de gestão da expectativa, de explicação da experiência e de normas de comportamento- na visão dos peregrinos brasileiros. É uma das hipóteses do projeto que esta Cultura do Caminho, de alguma forma, possa entrar em contradição ou eventualmente anular a experiência das culturas locais, sobrepondo-se a estas e invisibilizando-as. A bibliografia utilizada no projeto, e da qual a nossa análise se deriva, foca o choque entre as imagens prévias, as imagens elaboradas e as expectativas bi-direcionais entre a população local e as pessoas visitantes (ANDERECK et al., 2005; ANDRECK, NYAUPANE, 2011; GURSOY, CHI, DYER, 2010; LEE et al., 2010; PIZAN, 1978; HAUKELAND, 1984; SHELDON, VAR, 1984; JOHNSON, SNEPENGER, AKIS, 1994); foca a qualidade de vida das populações locais (ANDERECK; NYAUPANE, 2011); e explora a relação imagem-ideologia (ATELJEVIC; DOORNE, 2002). Dos desenvolvimentos da nossa equipa, utilizamos a análise específica do Caminho de Santiago como fenômeno (TORRES FEIJÓ, 2011; 2012), e a discussão do conceito de autenticidade (PEREIRO PÉREZ, 2009). O nosso corpus é conformado por 1600 entrevistas a visitantes à cidade realizadas durante um ano, e um recorte da produção cultural (romances, guias de viagem, filmes, documentários sites web e blogues) relativa a Santiago de Compostela e ao Caminho a partir de 2008, em quatro grupos alvo selecionados: visitantes procedentes da Galiza, Espanha, Portugal e Brasil.3 Para este artigo selecionamos uma parte do corpus composta pelas entrevistas realizadas durante o primeiro trimestre do que denominamos Observatório. Estas foram realizadas entre 23 de abril e 26 de julho de 2013. Ao todo, foram 409 inquéritos semi-estruturados que se distribuíram de seguinte forma: 66 de origem brasileira, 79 de origem portuguesa, 181 espanhola e 83 galega. As quotas foram proporcionalmente atribuídas a partir do inquérito de ocupação hoteleira da cidade. Os inquéritos foram realizados em português por 4 pessoas de diferentes origens e sotaques lusófonos (Portugal, Brasil e Galiza) para minimizar o eventual impacto que estes pudessem ter na expressão de opiniões por parte dos sujeitos. Analisaremos a seguir resultados obtidos a partir da população brasileira entrevistada: 66 sujeitos, dos quais 15 são peregrinas/os e 51 não peregrinas/os, o que mostra uma percentagem favorável à primeira categoria ligeiramente superior à média do total de visitantes. Isto pode ser devido a várias causas que deverão ser estudadas: o fato de incluir o mês de maio, um dos meses preferidos pelas pessoas brasileiras que fazem o Caminho de Santiago, ou uma maior percentagem de pessoas brasileiras peregrinas frente a não peregrinas, extremo este que deverá ser verificado. A partir do inquérito –veja-se completo no anexo- Elaboramos dados relativos às imagens prévia e atual sobre Santiago de Compostela e os resultados da pergunta sobre que acha a pessoa que é obrigatório fazer numa visita a Santiago de Compostela, tentando averiguar até que ponto poderemos encontrar uma correlação entre as imagens prévias e a prescrição sobre o que deve ser feito na cidade apôs a visita. Alguns fatos básicos sobre o Caminho de Santiago e a emergência do turismo em Santiago de Compostela. A narrativa histórico-religiosa do Caminho de Santiago é estabelecida arredor de uma peregrinação católica ao suposto túmulo do apóstolo Santiago, localizado na cidade galega de Santiago de Compostela. Embora existam registos anteriores desta peregrinação, é no século XII que o Papa Calisto II estabelece os Anos Santos, nos quais é concedido perdão especial aos peregrinos que Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

36

chegam à Catedral. Em termos contemporâneos, são as declarações institucionais de 1987 como Primeiro Itinerário Cultural Europeu e de 1993 como Patrimônio da Humanidade que moldam a imagem do Caminho, acrescentando ainda (TORRES FEIJÓ, 2011) o discurso promovido por Paulo Coelho n’O Diário de um Mago, também de 1987. Mesmo sendo a origem do Caminho de Santiago historicamente vinculada com a religião católica, as suas funções específicas têm variado ao longo dos seus nove séculos de existência como rota legitimada pela igreja católica, adquirindo uma dimensão fortemente política, por exemplo, entre os séculos XVI e XVIII, nas conflituosas relações entre o reino da Galiza e a coroa de Castela (VIGO TRASANCOS, 2012). A emergência do Caminho de Santiago moderno, deve ser situada na viragem entre as décadas de 80 e 90 do século XX, ligada a uma reação frente ao enfraquecimento da posição da religião católica na Europa, dentro de um contexto, por um lado, de secularização da vida pública e, por outro, de discussões sobre o alargamento da União Europeia a áreas geo-culturais de substrato não cristão. Estes aspetos foram já analisados dentro do nosso projeto por Elias Torres (2011), colocando em diálogo os discursos do papa João Paulo II, Paulo Coelho e a UNESCO. Por outro lado, o Caminho de Santiago foi considerado pola UNESCO e a própria União Europeia como um itinerário fundamentalmente cultural, a partir de considerações de tipo histórico e religioso. O conselho de Europa (CE) proferiu a 23 de outubro de 1987 a chamada “Declaração Santiago de Compostela”, que instituía o primeiro de uma série de itinerários culturais na Europa. Nesta declaração, depois de invocar a existência de caminhos que atravessam a Europa como cerne para a sua identidade, faz um chamado às instituições e à cidadania para a revitalização do Caminho de Santiago: “the Council of Europe is proposing the revitalisation of one of those roads, the one that led to the shrine of Santiago de Compostela. That route, highly symbolic in the process of European unification, will serve as a reference and example for future projects”. As propostas concretas do CE passam pela identificação de diversas rotas com destino a Santiago de Compostela, a rotulação dos lugares, a preservação e recuperação do patrimônio presente nas rotas, o estabelecimento de laços entre as cidades do Caminho, etc., e conclui com uma invocação à fé dos peregrinos: “May the faith which has inspired pilgrims throughout history, uniting them in a common aspiration and transcending national differences and interests, inspire us today, and young people in particular, to travel along these routes in order to build a society founded on tolerance, respect for others, freedom and solidarity”. Já no caso do ICOMOS, da UNESCO, os critérios explicitamente invocados são três: The Pilgrimage Route of St James of Compostela played a fundamental role in facilitating the two-way interchange of cultural developments between the Iberian peninsula and the rest of Europe during the Middle Ages; Pilgrimages were an essential part of European spiritual and cultural life in the Middle Ages and the routes that they took were equipped with facilities for the spiritual and physical well-being of pilgrims. The Route of St James of Compostela has preserved the most complete material record in the form of ecclesiaistical and secular buildings, settlements bath large and small, and civil engineering structures; The Route4 of St James of Compostela is outstanding testimony power and influence of faith among people of all classes and countries in Europe during the Middle Ages and later.

Pesquisas próprias têm apontado para a hipótese de que, mesmo sendo as pessoas que realizam a peregrinação a Santiago de Compostela aproximadamente 10% do total dos visitantes que a cidade recebe, o que denominamos a cultura do caminho condiciona significativamente a visão que o conjunto de visitantes tem sobre a cidade (TORRES FEIJÓ; BELLO VÁZQUEZ, 2012). Tendo em conta estes três fatores, queremos avançar no conhecimento do papel desenvolvido pela religião e a história na cultura do caminho contemporânea, procurando a existência de eventuRevista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

37

ais correlações entre esta, a visão da cidade de Santiago de Compostela no seu conjunto e as práticas culturais efetivamente realizadas. DISCUSSÃO DOS DADOS

Figura 1: Imagem de prévia de SCQ

Fonte: elaboração própria/Grupo Galabra (USC).

A primeira questão que analisamos é qual a ideia prévia que as pessoas manifestaram ter sobre SCQ antes da sua visita. Se agruparmos as respostas obtidas, podemos ver que 41% se vinculam com a religião e 19% com a história e o patrimônio. Consideramos para este cômputo as respostas que fazem referência à Catedral (29%), como maior símbolo religioso da cidade, as referências mais gerais à religião (7%) assim como ao «Santo» (o apóstolo Tiago ou Santiago), que somam 5%. Quanto à história, agrupamos aquelas respostas que explicitamente expressam este conceito (12%) e aquelas que nos falam do patrimônio urbano da cidade, considerado de um ponto de vista histórico (7%). A este volume, ainda deveríamos acrescentar o 21% das respostas que afirmam que a sua imagem prévia é a que relaciona a cidade com o Caminho de Santiago, as quais consideraremos de forma isolada, para não prejulgarmos se a visão do caminho é religiosa ou histórico-cultural/patrimonial. Ao todo, o eixo religião-cultura-património-história soma 81% das respostas sobre a imagem prévia de Santiago de Compostela, deixando um espaço relativamente reduzido para outras visões como a afetiva (utilizamos esta denominação para as pessoas que conhecem a cidade, fundamentalmente através de relações familiares ou de amizade). Quando perguntamos às pessoas pela sua ideia “atual”, as respostas que ofereceram são recolhidas na Figura 2:

Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

38

Figura 2: Imagem atual de Santiago

Fonte: elaboração própria/Grupo Galabra (USC).

Se fizermos os mesmos somatórios que na imagem prévia, vemos que a religião, com uma presença de 30% perde peso de forma notável, enquanto que os itens vinculados com o patrimônio arquitetônico ganham força, representando 20% das respostas, enquanto as referências genéricas à história desaparecem como item isolado. Por sua parte, o Caminho de Santiago também vê matizada a sua relevância, perdendo 5 pontos percentuais até 16%, enquanto emergem elementos diretamente ligados à experiência vivida, como a gastronomia (6%) e os hábitos ou costumes locais (10%). Na Figura 3 apresentamos a comparativa das duas imagens, incluindo alguns itens relevantes que não alcançam 5% e que nas Figuras anteriores ficavam sumidos na epígrafe “outros”:

Figura 3: Imagens prévia e atual de Santiago

Fonte: elaboração própria/Grupo Galabra (USC). Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

39

Vemos na Figura 3 como devemos somar ainda à imagem atual alguns itens vinculados com o eixo objeto do nosso interesse (espiritualidade –4%-, referências à história –4%- e espaço urbano –3%), que somam em conjunto mais 12% de respostas, deixando, na realidade uma imagem pouco alterada em termos globais entre a expectativa e realidade vivida. Produz-se, na nossa análise, uma redistribuição entre os itens presentes na imagem prévia, muito mais do que uma reelaboração dessa imagem. Só dois itens aparecem como novidade: a gastronomia e a língua, já que o item «Arquitetura/Construções/Monumentos» é mais uma matização das referências ao urbanismo, à história e ao espaço urbano, já presentes na imagem prévia, do que uma nova incorporação na imagem atual. As perguntas que esta relativa invariabilidade suscita são: a) Está (a invariabilidade) relacionada com o tempo de estadia na cidade? b) Está (a invariabilidade) relacionada com a profundidade da experiência vivida? c) Está (a invariabilidade) relacionada com o fato de a expectativa ser tão poderosa que não é modificada pola experiência? As Figuras apresentadas mostram agrupamentos feitos a partir da análise das respostas. Para vermos a concretização destas decidimos realizar nuvens de palavras que pudessem oferecer maiores matizes em relação às caraterísticas da religião e da história na imagem de Santiago de Compostela.

Figura 4: Caraterísticas da religião e da história na imagem de Santiago de Compostela Fonte: elaboração própria/Grupo Galabra (USC).

O resultado da nuvem de palavras mostra a predominância da catedral, mas também podemos ver a concretização ou o detalhamento da visão do patrimônio urbanístico (cidade pequena, românico, labirinto de ruelas, cidade muito antiga...) e como emergem, ao lado do catolicismo elementos espirituais menos definidos como paz interior, energia, fé ou, até, especial. Contrastamos esta imagem prévia declarada, com a imagem que as pessoas entrevistadas reconhecem como a atual, quer dizer, a elaborada depois da sua chegada à cidade e expressada no momento de realização da entrevista, o que não significa que seja a imagem definitiva com que partem no final da sua viagem. Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

40

Figura 5: Igreja e peregrinação

Fonte: elaboração própria/Grupo Galabra (USC).

Mais palavras ou conjuntos de palavras aparecem, mostrando uma imagem mais complexa (repare-se no «muitomaisdoquepensava»), elementos novos que tomam destaque, como a universidade ou as experiência vividas (referências a refeições, locais, etc.). No entanto a Catedral continua ocupando o centro, e as palavras de maior tamanho –portanto, as mais relevantes- continuam sendo aquelas vinculadas com a igreja e a peregrinação, se bem estas ideias passam a ser mais concretas, focadas no «santo», frente a ideias mais genéricas como «energia», «fé» ou «paz interior». Quanto à história, mesmo se este item perdeu relevância, está ainda presente como referência genérica, e ganham importância apreciações mais específicas como a comparação com Minas Gerais –relevante porque, como é sabido, cidades do de Minas Gerais como Ouro Preto ou Mariana funcionam, no imaginário brasileiro, como referente monumentalidade do patrimônio histórico mais antigo e melhor conservado do país-, a monumentos ou à construção «cidadehistorica» ou «arquiteturamedieval». Em definitivo, entre a imagem prévia e a imagem atual, ganha presença a experiência vivida através de gastronomia e da reflexão sobre os hábitos e costumes locais (que somam 16% ao todo), mas a percepção global da religião e da história como elementos dominantes continua sendo maioritária, com 66% das respostas vinculadas com o eixo religião-cultura-património-história, se bem estas sejam matizadas pola experiência direta, o que tem o seu reflexo numa maior concretização. Quanto às correlações que estas imagens podem ter com os usos da cidade, muita mais pesquisa será ainda precisa (e está a ser desenvolvida neste momento), mas uma aproximação pode ser feita a partir do estudo de uma pergunta do inquérito em que quisemos sintetizar a imagem definitória da cidade, questionando as pessoas sobre o que acham que é obrigatório fazer em Santiago. Os resultados são mostrados na Figura 6. Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

41

Figura 6: O que o visitante brasileiro deve fazer em Santiago Fonte: elaboração própria/Grupo Galabra (USC).

Se agruparmos as respostas por categorias, temos os resultados:

Figura 7: Respostas dos visitantes brasileiros quanto ao que devem fazer e ver em SCQ Fonte: elaboração própria/Grupo Galabra (USC).

A concentração da imagem prévia dominada pela catedral e o patrimônio histórico-arquitetônico, pouco modificada pela experiência real vivida na cidade tem a sua correspondência na síntese realizada pelas pessoas entrevistadas quando têm de escolher uma só cousa para fazer em Santiago de Compostela, pois num grau muito elevado se vincula com a catedral, com o santo e, em menor medida, com a parte histórica, sendo estas duas percepções –religião e história- as dominantes em todos os casos. Assente a ideia de que religião e história constituem os eixos arredor que é organizada a visão da/o visitante do Brasil a Santiago de Compostela, fica aberta a questão de que significa na prática real cada um destes elementos. Dos dados aqui analisados sobressaem, do nosso ponto de vista dois elementos centrais: a catedral e o santo e, portanto, a visão mais canônica da espiritualidade católica, mesmo se convive com algumas expressões mais genéricas de espiritualidade não expressada em termos de religião institucionalizada; e a projeção sobre o patrimônio material de uma perspectiva de Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

42

história substancialmente mais antiga do que é na realidade, concretizada nas expressões «românico» e «medieval», criando uma mistificação sobre a antiguidade da cidade, que, é nossa hipótese, exerce um grande apelo para o/a visitante brasileiro/a. Mais pesquisa está sendo realizada neste momento por integrantes da equipa para analisar estas questões, tanto de um ponto de vista comparativo –são estes elementos exclusivos e/ou diferenciais de algum modo da experiência brasileira em relação ao resto dos grupos analisados?- como do ponto de vista dos materiais repertoriais que os definem. Vale a pena salientar neste sentido as conclusões preliminares do trabalho de doutorado de Luísa Fernández, que enfrenta a análise dos materiais repertoriais na produção cultural espanhola sobre o Caminho de Santiago, identificando a figura dos templários –presentes na produção cultural e também de forma notável, recentemente, das montras das lojas de souvenirs da cidade- como um dos elementos que podemos considerar históricos que emergem associados ao Caminho e, por extensão, à cidade. Tracejando as origens desta associação, o trabalho de Fernández (em fase de preparação para submissão) mostra como a presença templária é historicamente pouco relevante em Santiago de Compostela identificando apenas pequenos traços no patrimônio arquitetônico da cidade. Hipotetiza-se, a partir da análise d’O Diário de um Mago que a nova presença da imaginaria templária como souvenir de Santiago de Compostela estaria diretamente vinculada com a patrimonialização do discurso de Paulo Coelho, primeiro em determinados lugares do caminho (nomeadamente Castrojeriz e Ponferrada) e depois na própria cidade. Esta mistificação seria coerente com o apontado em relação à antiguidade. Quanto à religiosidade, um outro trabalho está a ser desenvolvido por meio de entrevistas qualitativas realizadas no Brasil (especificamente no RS) com peregrinas/os que realizaram o Caminho (em diferentes épocas desde a década de 90 até o próprio ano 2014) e retornaram. Na análise ainda muito preliminar dos resultados destas entrevistas em profundidade vai-se desenhando um perfil em que a espiritualidade ou o que podemos denominar como motivações espirituais para a caminhada ganham uma maior dimensão do que nos inquéritos –por motivos que estão sendo também abordados na pesquisa- e que confirma Santiago de Compostela como um destino fundamentalmente religioso-espiritual. CONCLUSÕES A Cultura do Caminho de Santiago elaborada a partir da viragem da década de 80 para 90 sustentou-se sobre a religião católica e sobre a ideia de patrimônio histórico material. Os nossos dados, mesmo se preliminares, mostram que essa ideia está consolidada entre a/os visitantes brasileira/os, que de forma consciente ou não acompanham os grandes discursos elaborados sobre o Caminho de Santiago, de forma muito particular o de Paulo Coelho. Esta ideia é projetada além do caminho para a própria cidade, considerada a sua meta, e vista predominantemente como um lugar perpassado pela religião católica e por um patrimônio monumental muito antigo. A consequência é que os visitantes concentram intensamente a sua atividade arredor da catedral, que se mostra central tanto nas nuvens de palavras como na própria localização geográfica dos lugares em que acontecem as cousas segundo os visitantes. Referências ANDERECK, K. L.; K. M. VALENTINE; R. C. KNOPF; C. VOGT. Residents’ ������������������������������ perceptions of community tourism impacts. Annals of Tourism Research, v. 32, n. 4, p. 1056-1076, 2005. ANDERECK, K. L.; NYAUPANE, G. P. Exploring the nature of tourism and quality of life perceptions among residents. Journal of Travel Research, v. 50, n. 3, p. 248-260, 2011. ATELJEVIC, I.; DOORNE. S. Representing New Zealand: tourism imagery and ideology. Annals of Tourism Research, v. 29, n. 3, p. 648-667, 2002. BELLO VÁZQUEZ, Raquel. A existência de uma comunidade luso-galega como elemento afetivo nas visitas a Santiago de Compostela procedentes de Portugal: primeiros resultados através de inquéritos Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

43

quantitativo-qualitativos. In: XI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. Mindelo: Universidade de Cabo Verde, 2014. EUROPEAN COUNCIL.The Santiago de Compostela Declaration. 23 October 1987. Disponível em:

http://www.culture.routes.lu/uploaded_files/infos/posts/231/6403e2cfaab236ab96a3e7166559 71ac.pdf?PHPSESSID=bc9b07bb18d840519d4391fb9d56faab. Acesso em: 06.10.2014. EVEN-ZOHAR, Itamar. Polysystem studie: a special issue of poetics today. [S.l.]: Duke University Press, 1990. GURSOY, D.; CHI, C. G.; DYER, P. Local’s attitudes toward mass and alternative tourism: the case of sunshine coast. Australia. Journal of Travel Research, v. 49, n. 3, p. 381-394, 2010. HAUKELAND, J. V. Sociocultural impacts of tourism in scandinavia: studies in three host communities. Tourism Management, v. 5, p. 207-214, 1984. JOHNSON, J. D.; SNEPENGER, D. J.; AKIS, S. Residents’ perception of tourism development. Annals of Tourism Research, v. 21, n. 3, p. 629-642, 1994. LEE, C-K; KANG, P.; LONG, Y. Reisinger. Residents’ perceptions of casino impacts: a comparative study. Tourism Management, v. 31, n. 2, p. 189-201, 2010. PEREIRO PÉREZ, X. Turismo Cultural- Uma visão antropológica. ACA e PASOS, RTPC. El Sauzal, 2009. PIZAN, A. Tourism’s impacts: the social costs of the destination community as perceived by its residents. Journal of Travel Research, v. 16, p. 8-12, 1978. RODRÍGUEZ PRADO, M. Felisa. Textos ficcionais e práticas culturais de portugueses com relação a Santiago de Compostela: contrastes e homologias. In: XI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. Mindelo: Universidade de Cabo Verde, 2014. SAMARTIM, Roberto. Bases de dados para o estudo da cultura: apresentação do catalogador e possibilidades de abordagem sobre o corpus documental do Projeto Caminho de Santiago. In: XI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. Mindelo: Universidade de Cabo Verde, 2014. SHELDON, P. J.; T. VAR. Residents attitudes to tourism in North Wales. Tourism Management, v. 5, p. 40-47, 1984. TORRES FEIJÓ, Elias. Discursos contemporâneos e práticas culturais dominantes sobre Santiago e o caminho: a invisibilidade da cultura como hipótese. In: LOURENÇO, A. A.; SILVESTRE, O. M. (Eds.). Literatura, espaço, cartografias. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2011. p. 391-449. TORRES FEIJÓ, Elias. Interesses culturais e âmbitos receptivos em dous romances sobre o Caminho de Santiago: Frechas de Ouro e O Enigma de Compostela. Romance Notes, v. 52, n. 2, p. 135-149, 2012. TORRES FEIJÓ, Elias; BELLO VÁZQUEZ, Raquel. Tranquilo para viver, bom para comer, mau para ir à praia”. A visão dos visitantes sobre Galiza e a cidade de Santiago de Compostela. Relatório de investigação do Grupo GALABRA e FAZ Cultura e Desenvolvimento. 2012. Documento científico inédito. UNESCO. Route Of Santiago de Compostela. Advisory Body Evaluation. 1993. Disponível em: http:// whc.unesco.org/archive/advisory_body_evaluation/669.pdf. Acesso em: 06.10.2014. VIGO TRASANCOS, Alfredo. Barroco: la arquitectura sagrada del Antiguo Reino de Galicia 16581763. Santiago de Compostela: Teofilo Comunicación, 2012. VILLARINO PARDO, Carmen. Produtos literários e práticas culturais de brasileiros sobre Santiago de Compostela: proposta de análise contrastiva dos corpora (romances e inquéritos). In: XI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS. Mindelo: Universidade de Cabo Verde, 2014. Revista Mosaico, v. 7, n. 1, p. 35-44, jan./jun. 2014.

44

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.