DISCURSOS TRANSVERSOS: A compleição do discurso médico e seu imbricamento com o discurso jurídico na fundamentação das punições do comportamento delitivo

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5º SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN 2236-9651, n.5

DISCURSOS TRANSVERSOS: A compleição do discurso médico e seu imbricamento com o discurso jurídico na fundamentação das punições do comportamento delitivo. DAN, Evelin M. C. Professora Adjunta da Universidade do Estado de Mato Grosso. Mestre em Linguística. Doutoranda do Programa de Pós graduação em Sociologia e Direito da UFF. E-mail: [email protected]

GUIMARÃES, Daniel G. M. Dias. Bacharel em Direito da Universidade Cândido Mendes/RJ. E-mail: molinaroguimarã[email protected] DAN, Vivian L.C. Dan. Professora Adjunta da Universidade do Estado de Mato Grosso. Mestre em História. Doutoranda do Programa de Pós graduação em Sociologia e Direito da UFF E-mail: [email protected]

RESUMO O presente estudo apresenta uma síntese dos agrupamentos das teorias da personalidade contemporâneas. Além realizarmos essa suscinta abordagem buscamos colocar em evidência as implicações da sua incorporação em narrativas decisórias que tem fundamentado a negação da concessão de progressão de regime aos executandos no cumprimento de suas penas. Tal recrudescimento tem reportado discursos estigmatizantes (moduladores dos comportamentos humanos) e produzido um encadeamento de substituições que permitem as autoridades julgadoras dobrar o delito, isto é, qualificar tal qual a previsão legal e incluir nele outras coisas que não fazem parte da conduta delitiva descrita na norma penal, sendo estes considerados atributos apreciados numa perspectiva subjetiva do julgador, constituindo ai um duplo psicológico ético do delito. É desse modo que as análises empreendidas colocam em evidência a potencialidade da des-legalização do crime (fatotípico+antijurídico+culpável) tal como formulado no Código Penal. Tal substituição constitui uma irregularidade - em relação a certo número de regras que podem ser fisiológicas, psicológicas e morais – se tornando a substância própria da matéria punível e se voltando para a apreciação dos traços individuais, especialmente para a personalidade dos criminosos. É dessa maneira os fundamentos da pena transpõe o ato delitivo em si passando a incidir sobre o comportamento/conduta praticados e, por conseguinte passa a julgar a maneira de ser do indíviduos. As análises descritivas empreendidas nos recortes jurisprudências sustentam-se na filiação teórica à Análise de Discurso Materialista. Palavras-chave: Teoria da personalidade. Punição. Estigmatização. ABSTRACT This study presents an overview of the groupings of contemporary personality theories. In addition accomplish this succinct approach we seek to highlight the implications of its incorporation in decisionmaking narratives that have reasons for denial of the system of granting progression to executandos in fulfilling their sentences. Such intensification has reported stigmatizing discourses (modulators of human behavior) and produced a chain of substitutions that allow the judging authorities bend the offense, that is, qualify as such the legal provisions and include in it other things that are not part of the criminal conduct

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described in criminal standard, which are considered attributes assessed on a subjective perspective of the judge, being there an ethical psychological double of the offense. This is how the analyzes undertaken stress the potential of de-legalization of crime as set out in the Criminal Code. Such substitution constitutes an irregularity - for a number of rules that can be physiological, psychological and moral becoming the very substance of the matter and punishable turning to the assessment of individual traits, especially for the personality of criminals. The descriptive analyzes undertaken in support jurisprudence clippings on the theoretical membership in the Discourse Analysis Materialist. Key-words: Personality theory. Punishment. Stigmatization

2 1. INTRODUÇÃO A presente reflexão tem como objetivo compreender os funcionamentos discursivos, a partir das relações de sentido que se dão no interior de determinadas formações discursivas, e que por derradeiro, instalam o conflito entre o Discurso Médico e o Discurso Jurídico. Para tanto, tomaremos como fundamento a noção de formação discursiva, que deriva das condições de produção, nas quais os sujeitos se inscrevem ao tomar posição diante do dizer. O tema proposto cunha nosso interesse no discurso médico a partir da noção e funcionamento dos sentidos instalados sobre as noções de personalidade1 incorporadas na fundamentação das punições ou a manutenção destas. Tomamos como corpus uma narrativa jurisprudencial na qual aplicamos os dispositivos analíticos que a Teoria da Análise de Discurso Materialista dispõe. Inicialmente, (item II) consideramos relevante tratar dos aspectos histórico-ideológicos que instituíram a relação entre o discurso médico e o discurso jurídico bem como o seu deslocamento uma vez que, nessas formas de julgamento há a exaltação da noção de periculosidade e perversidade do criminoso atreladas aos entendimentos de laudos médicos ou psicológicos. No item subsequente (III) se fez indispensável expor um quadro suscinto sobre as teorias da personalidade contemporâneas, cunhadas pelo discurso médico e amplamente incorporadas nas produções dos discursos jurídicos, como veremos nas análises realizadas. No item IV, tratamos de apresentar os fundamentos teóricos da teoria da Análise de Discurso resgatando o projeto pêcheutiano, que introduz a noção de discurso e que por derradeiro promove uma intervenção epistemológica nas semânticas linguísticas. Nessa proposição, o nosso interesse centra-se na instituição do sujeito de direito e nos processos de responsabilização social daí decorrentes, uma vez que na injunção entre o médico e o jurídico toda a discussão restringe-se

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O termo personalidade é considerado como os aspectos únicos ou individuais do comportamento, designando aquilo que é distintivo no indivíduo e o que o diferencia das outras pessoas. 2

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à possibilidade de atribuir ou não responsabilidade sobre o delito e o consequente perigo que o sujeito pode representar para o que é da ordem do social. No item V analisamos as discursividades postas em circulação nos recortes jurisprudenciais, buscando dar visibilidade aos funcionamentos discursivos tomados como materialidade significante produzidos pela autoridade julgadora.

2. OS PROCESSOS HISTÓRICO-IDEOLÓGICOS DA INJUNÇÃO ENTRE O DISCURSO MÉDICO E O JURÍDICO Ao apresentarmos os aspectos histórico-ideológicos que levaram discursos tão distintos (médico x jurídico) serem imbricados no Sistema Jurídico Punitivo Brasileiro - evidenciado por meio das análises – não se quer dizer que nosso olhar sobre a História seja considerado o único possível de uma dada ordem social. Ao procedermos a análise histórica nos deparamos com mudanças bruscas que, ao seu modo, não correspondiam à imagem tranqüila e continuísta normalmente admitida nos processos históricos constituintes de certas ordens de saber. Dessa maneira, tal alusão norteou a apreciação destes, o que implicou o emprego dos conceitos de descontinuidade, de ruptura e de transformação dentre outros, num esforço do despojamento de uma série de noções que, cada uma à sua maneira, diversifica o tema da continuidade histórica. É desse modo que as noções de tradição2, de influência3, de desenvolvimento e evolução4 e por fim de mentalidade ou de espírito5, acabam por interligar os discursos, creditando um continuísmo de desenvolvimento nos processos históricos - o que não se sustenta já que há certas formas de saber empírico que não obedecem a essas sínteses acabadas- e em

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Por dar uma importância temporal a um conjunto de fenômenos que, ao mesmo tempo, se sucedem, sendo idênticos ou pelo menos análogos. 3

Por fornecer um suporte aos fatos de transmissão e comunicação, ou que atribui a um processo de andamento causal os fenômenos de semelhança ou de repetição, ou ainda que liga unidades definidas como indivíduos, obras, noções ou teorias. 4

Por permitir reagrupar uma sucessão de acontecimentos dispersos, relacionando-os a um único e mesmo princípio organizador. 5

Por estabelecer entre os fenômenos simultâneos de uma determinada época uma comunidade de sentido ou que fazem surgir, como princípio de unidade e de explicação, a soberania de uma consciência coletiva.

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decorrência não podem ser consideradas novas descobertas, uma vez que, em poucos anos, se instala um novo regime6 no discurso do saber (FOUCAULT, 2005, p. 23-24). Ao investigarmos os processos históricos que contribuíram com o projeto de medicalização da sociedade não podemos obscurecer o fato de que o saber médico não se desvincula da prática sócio-política do Estado Moderno, uma vez que se articula a esta e se autodetermina. O modelo de sociedade do século XVIII se caracterizou como um modo de organizar o espaço, de controlar o tempo e de vigiar a conduta dos indivíduos o que favoreceu o nascimento de determinados saberes, especialmente da ciência médica e o surgimento de determinadas instituições, que se articulavam ao surgimento de saberes e ao exercício de poder da época . Esse novo arranjo atendeu tanto a necessidade da ordem jurídica - já que o caráter punitivo do Estado passou a adquirir um novo status para sua legitimação devendo estar consubstanciado numa justificativa a que se vinculava a aplicação de determinada pena, e, portanto, a necessidade de individualizá-la e de humanizá-la - quanto da ordem médica e seu escopo de reforçar suas articulações com o Estado. Assim, “[...] se a Medicina se coloca a serviço do Estado, ela exige em contrapartida, que este se deixe instrumentalizar” (MACHADO, 1978, p. 126). O primeiro esboço de associação da alienação mental com os crimes cometidos por delinquentes foi delineado por Pinel (1809) que propô-se a identificar as manias sem delírio. Nessa mesma direção, Pritchard formula, em 1835, a teoria da moral insanity na qual os criminosos seriam loucos morais, incapazes de discernir entre o bem e o mal, sendo levados, portanto, ao crime como se fossem naturalmente predispostos a tal prática. Mas, é Lucas quem pela primeira vez formula, em 1847, um tratado sobre a hereditariedade criminosa, estribando sua posição teórica em alguns casos. Essa idéia é, então, retomada por Lombroso, que se apoiou em considerações biológicas, filosóficas e até mesmo teológicas do médico alienista Morel, que lançou o tratado das degenerescências físicas, intelectuais e morais da espécie humana, em 1857. Segundo este, a espécie humana se perpetuaria a partir de um tipo primitivo ideal que conteria o conjunto dos elementos da continuidade da raça e qualquer desvio desse esquema corresponderia a uma degenerescência de nossa natureza.

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Esse regime é consequência da modificação nas regras de formação dos enunciados, não sendo, contudo, uma mudança de conteúdo (refutação de erros antigos), nem tampouco uma alteração da forma teórica (renovação do paradigma). 4

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Casper e Winslow, contemporâneos de Morel, estudaram a fisionomia dos criminosos e as relações entre o crime e a loucura. Do mesmo modo, em 1868, o alienista Despine consagra um longo estudo aos criminosos no seu Tratado sobre a Loucura e, em seguida, o alienista inglês Maudsley, na obra Mental Responsibitiy, publicada em 1873, apura a noção de moral insanity, que toma a loucura como sendo um mal hereditário. É, pois, assomando-se a esse frenesi de patologização dos comportamentos delituosos, que se agrega o positivismo lombrosiano, cujo escopo deve-se, em grande parte, às projeções alcançadas pelas considerações dos alienistas sobre a alienação mental dos criminosos. Nessa direção, Darmon (1991, p. 43-44) assevera que: Naquela época, Lombroso estava, portanto, em condição de recolher os frutos de uma vasta reflexão criminológica de caráter antropológico. Ele próprio confessará com muita modéstia no seu discurso de abertura do Sexto Congresso Antropológico que apenas deu um corpo mais orgânico a essas conclusões. Na verdade, a maior parte dos precursores de Lombroso tinha-se atrelado ao estudo das anomalias psíquicas dos delinquentes, criando uma espécie de psicologia criminal. Sem ignorar esse aspecto do problema, o mestre de Turin iria dar prioridade a um outro objetivo: o inventário sistemático das taras e malformações da organização física dos criminosos. É o resultado desses trabalhos que vai ser publicado em 1876 em O Homem criminoso.

Nesse processo, o positivismo criminológico inevitavelmente desloca a teoria da loucura mental, propugnada pelos alienistas, pela suposta existência de um conjunto de características ou uma estrutura psicológica delitiva, lançando a teoria da personalidade delitiva. Com esta, exalta-se o princípio da diversidade do delinquente e a necessidade de isolar, mensurar e quantificar os fatores que incidem nos indivíduos, determinando-lhes o delito (LOMBROSO, 2007). É, pois, dessa estrutura psicológica delitiva, que atualmente o sistema jurídico vem tomando os traços da personalidade do indivíduo como indicadores de uma anormalidade7. 3. AS TEORIAS DA PERSONALIDADE X AS TEORIAS DA PSICOLOGIA Diversos autores se dedicaram à pesquisa da personalidade, cada um com ênfases teóricas e metodológicas diferentes. Devemos considerar as possíveis distinções entre as Teorias da Personalidade e as Teorias Psicológicas. Isso se deve em razão da tradição clínica como fonte principal 7

Concepção propugnada por Michel Foucault em sua obra Os Anormais (2000). Para o autor as decisões punitivas vem exaltando a diversidade do delinquente, destacando sua perversidade e enfatizando a periculosidade que representam à sociedade por meio do resgate de uma série de atributos subjetivos respaldados, muitas vezes, por laudos médicos. 5

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influenciadora das Teorias da Personalidade, embora esse corpo de teoria faça parte do amplo campo da Psicologia Social. Em outras palavras, os teóricos da personalidade partiram da experiência clínica tendo como precursores médicos que, em sua condição prática, esboçaram seus diversos “achados” como problemas empíricos norteadores de suas pesquisas, enquanto que os psicólogos experimentais tinham seus valores arraigados nas ciências naturais. É sabido que a psicologia se 6

desenvolveu no século XIX como produto da filosofia e da fisiologia experimental. Uma teoria da personalidade “[...] deve consistir em um conjunto de suposições e definições para permitir sua interação com eventos empíricos ou observáveis. (HALL, 2008, p. 38)”. Este preceito seria o norteador dos aspectos distintivos entre as teorias da personalidade e a psicologia experimental. A convicção do teórico da personalidade tem como premissa o estudo da pessoa em sua totalidade ao analisar o comportamento, constituindo-se como uma teoria integrativa. Enquanto que para os psicológos o estudo do comportamento humano deve se dar em um contexto, “com cada evento comportamental examinado e interpretado em relação ao resto do comportamento do indivíduo” (HALL, 2008, p. 31). As teorias estão agrupadas em 4 (quatro) famílias que obviamente compartilham certas características. Segundo HALL (2008, p. 39) 1- As teorias psicodinâmicas enfatizam os motivos inconscientes e o conflito intrapsíquico resultante; 2- As teorias estruturais focalizam as diferentes tendências comportamentais que caracterizam os indivíduos. 3- As teorias experienciais observam a maneira pela qual a pessoa percebe a realidade e a experiência de seu mundo; 4- As teorias da aprendizagem enfatizam a base aprendida das tendências de resposta, com uma ênfase no processo de aprendizagem em vez de nas tendências resultantes;

Diante da multiplicidade de teorias da personalidade, cada conjunto das teorias enunciadas acima deverá ser descrita de maneira mais completa, o que neste artigo torna-se inviável realizar esse processo comparativo. 4. OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA TEORIA MATERIALISTA DO DISCURSO A efervescência cultural francesa, iniciada na década de 60, produziu, em 1969, dois projetos distintos que instalaram a noção de discurso. Trata-se, de um lado da publicação, por Michel Foucault, da obra “Arqueologia do Saber” (1969) e, de outro, da publicação, por Michel Pêcheux, da Análise Automática do Discurso (AAD69).

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Esses dois teóricos apresentam trajetórias epistemológicas distintas para a questão do discurso, embora haja aproximações possíveis entre ambos. Michel Foucault, ao tratar do discurso, formula o conceito de formação discursiva e sistematiza uma série de conceitos basilares para a abordagem do discurso. Contudo, sua formulação inscreve-se em temáticas mais amplas da História e da Filosofia, relacionando-as com os saberes e poderes instituídos pela história da sociedade ocidental. Nesse sentido, dialogando com Nietzsche, Freud e Marx, o autor exemplifica a noção de formação discursiva a partir do discurso da história das ciências, verificando as condições que possibilitam a irrupção e a legitimação de certos discursos como sendo verdadeiros em uma determinada época (GREGOLIN, 2006). De outro lado, Michel Pêcheux se preocupa com a construção de um corpo teóricometodológico para a análise de discurso, no qual ele articula, a um só tempo, a língua o sujeito e a história, uma vez que dialoga com Saussure, Marx e Freud. Mas Pêcheux não constrói uma teoria que resulta apenas da junção de três outras áreas de conhecimento, pois, ao tomá-las, o autor produz sobre elas questionamentos que desestabilizam, de início, suas searas teóricas. Nessa direção, a noção de formação discursiva, desenvolvida por Pêcheux como um objeto teórico, se dá a partir dos discursos ideologicamente marcados, notadamente o da luta política8. Assim, o autor reinterpreta o conceito foucaultiano de “formação discursiva”, tomandoo pelo viés althusseriano, pois considera Foucault um “marxista paralelo”, em razão de perceber nele a ausência de categorias clássicas do marxismo. O conceito de formação discursiva aparece pela primeira vez em Michel Pêcheux no seu artigo “A semântica e o corte saussuriano: língua, linguagem e discurso” (1971). Nessa ocasião Pêcheux mostra que, ao se pensar a língua como sistema, como um continuum de níveis, o que os linguistas fazem é recobrir o corte saussuriano entre langue/parole, ou seja, é manter presente a dicotomia entre língua e fala, instalada por Saussure. Nessa direção, o autor afirma que “[...] o elo que liga as significações de um texto as suas condições sócio-históricas, não é secundário, mas constitutivo das próprias significações” (PÊCHEUX, 1971, p.147). Desse modo, o autor introduz a noção de discurso, uma vez que considera necessário fazer uma intervenção epistemológica nas semânticas linguísticas. Pêcheux assume, então, que é preciso “mudar de terreno” e encarar a linguística a partir 8

A atualidade de Pêcheux se faz marcar pelos embates políticos considerados em seu projeto teórico, pois, se naquele momento a luta política marcava-se pelas relações de classe, hoje ela se marca pela volatilidade do mercado, que estende seus efeitos voláteis para as instituições e para os sujeitos instalando sentidos de uma permanente inconstância. 7

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da concepção de discurso, que deve ser pensado à luz do materialismo histórico, o que implica na introdução de “novos objetos” tomados em relação ao “novo terreno teórico”. Nessa direção, propõe, entre outros conceitos, o de “formação discursiva” e o de “formação ideológica”. O autor considera o discurso não como uma propriedade do falante, mas como um objeto teórico sem sujeito. Nessa direção, afirma que [...] apoiando-nos sobre um grande número de propostas contidas naquilo que se denomina os “clássicos do marxismo”, propomos que as formações ideológicas,8 assim definidas, comportam, necessariamente, como um de seus componentes, uma ou mais formações discursivas interligadas, que determinam aquilo que se pode e se deve dizer (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um programa etc.) a partir de uma posição dada em um conjuntura dada: o ponto essencial aqui é que não se trata somente da natureza das palavras empregadas, mas também (e sobretudo) das construções nas quais essas palavras se combinam, na medida onde elas determinam a significação que tomam essas palavras [...] as palavras mudam de sentido de acordo com as posições sustentadas por aqueles que as empregam; pode-se precisar, então: as palavras mudam de sentido ao passarem de uma formação discursiva para outra. (PÊCHEUX, 1971, p. 102-103).

Pêcheux empresta o termo formação discursiva de Foucault, mas, dá-lhe um sentido mais abrangente, uma vez que a relaciona com a questão da ideologia e da luta de classes. Para o autor, a formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito. Assim, as suas formulações consideram que o sentido das palavras mudam de acordo com a posição dos sujeitos que as empregam. Logo, podemos dizer que o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas, colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. Do mesmo modo, Pêcheux (1971) afirma que uma dada formação ideológica caracteriza um conjunto complexo de atitudes e de representações – que não são nem individuais e nem universais – que se relacionam com as posições em que se inscrevem. Mas, é só em 1975 que o autor publica o quadro epistemológico geral da Análise de Discurso, articulando-o a três regiões do conhecimento científico 1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria da ideologia. 2. a linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao mesmo tempo. 3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos. (FUCHS, PÊCHEUX, 1975/1993, p. 163).

Essas três áreas de conhecimento são articuladas entre si por uma teoria da subjetividade, de natureza psicanalítica.

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Em sua obra “Les Vérités de La Palice”9, o autor retoma o conceito de formação discursiva, do texto de 1971, e acrescenta a ele a reflexão sobre a materialidade do discurso e do sentido. Assim, a partir das teses de Althusser, Pêcheux redefine conceitos que se tornaram clássicos na Análise de Discurso, principalmente a noção de ideologia e de assujeitamento ideológico, tendo por objetivo afirmar as bases de uma teoria materialista do discurso, retomando duas ideias althusserianas centrais: a reprodução/transformação e a interpelação ideológica. 9 5. O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL BRASILEIRO NA NEGATIVA DE PROGRESSÃO DE REGIME NA LEI DE EXECUÇÃO PENAL Verifica-se na atualidade que algumas decisões punitivas vêm apresentando um deslocamento da natureza disciplinadora e reguladora do sistema jurídico. Tal indício pode ser avaliado nos recortes jurisprudenciais na medida em que se verifica a negação da progressão de regime aos detentos, tendo como fundamentação balizadora a exaltação da perversidade e periculosidade desses indivíduos. A referência às condições de produção nos processos discursivos estabelece a existência de uma determinação exterior ao discurso, sendo revelado por meio da análise discursiva do texto. Desse modo, a teoria do discurso considera que um discurso é sempre atravessado pelo “já ouvido” e pelo “já dito”, enredando o sujeito falante nessa memória discursiva. Portanto, existe uma relação de dominância derivada das condições de produção que fixam o lugar do sujeito no discurso. No caso em questão, a posição sujeito-juiz inscreve-se discursivamente, enquanto sujeito interpelado na/pela história, colocando-se em condição de confronto com a posição sujeito-condenado. Essas posições em confronto instalam, no processo discursivo, os modos de apuração da verdade. Há aí, em funcionamento, um saber/poder que, de início, coloca as duas partes do confronto em desigualdade. Tem-se, de um lado, o Juiz dispondo-se pela defesa da sociedade e, de outro, o condenado, que respondeu aos questionamentos formulados pelo pelos peritos, fornecendo-lhe elementos de prova que constituirão sua consequente manutenção no regime fechado. Passamos então a análise do corpus mencionado 1) Trata-se de habeas corpus de n°198.693 - SP (2011/0041421-8-STJ), com data publicada em 23/05/2011 no DJE, relator Ministro Og Fernandes, impetrante Laura 9

Traduzida, no Brasil, por Eni Orlandi, como Semântica e discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio (1988). 9

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Gouveia Monteiro de Ornellas, impetrado Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, paciente Raphael Lousada de Araujo. O habeas corpus foi impetrado em desfavor do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que negou provimento ao agravo em execução defensivo, mantendo a decisão que indeferiu o pedido de progressão para o regime semiaberto. 2) Descrição do Caso: O paciente foi condenado a 24 (vinte e quatro) anos de reclusão por roubo circunstanciado e extorsão. Após ter cumprido o exigido pela LEP, requereu a progressão de regime do fechado para o semi-aberto uma vez que preencheu os requisitos objetivos e subjetivos para a concessão deste beneficio. O juiz determinou que o paciente fosse submetido a exame criminológico, que o considerou inapto para o convívio social. O relator do caso fundamenta seu voto explicando que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é que o juiz pode indeferir o pedido de progressão de regime caso existirem justificativas que recomendam tal medida. E estas estão demonstradas na objeção que traz o laudo pericial que respalda a decisão de manutenção do cumrpimento da pena em regime fecahdo, denegando, portanto o Habeas Corpus. Segue abaixo a sua narrativa decisória: [...] Trata-se de expediente de progressão de regime, com manifestação ministerial desfavorável. Decido. 1) Respeitada a manifestação da douta defesa, de rigor a negativa do benefício, neste momento. Com efeito, a concessão de progressão demanda a análise de requisitos objetivos e subjetivos, não tendo o sentenciado direito absoluto a ela, como pretendido. Na espécie, o aspecto subjetivo do sentenciado não atende ao mínimo exigido para a progressão. Não bastasse a extrema gravidade dos delitos a que o sentenciado fora condenado, fato é que a avaliação psicológica consignou expressamente que "Através de avaliação projetiva apresenta certa insegurança, agressividade controlada através de mecanismos contensores, fantasia maior que a capacidade de realização, fuga da realidade, ambivalência de comportamento " (fl. 90).Ainda em complemento, a avaliação psiquiátrica trazida aos autos pela defesa consignou que "Embora seu grau de fantasias esteja ligeiramente maior que sua capacidade de realização, consegue controlar, embora com dificuldades, o seu comportamento ", não se olvidando, de todo modo, que indigitado especialista tenha concluído pela possibilidade de progressão.De toda sorte, a análise conjuntural das avaliações indica pela negativa de benefício, mormente, pela já mencionada agressividade e nível de fantasia.Mas não é só.O sentenciado apresenta em seu histórico a prática de duas faltas graves, ambas vinculadas à tentativa de fuga (12/3/2007 e 20/6/2007).Cogitado histórico, em cotejo com a avaliação técnica do sentenciado,indicam que o benefício, por ora, não é de ser deferido, podendo,conseguintemente, ser reavaliado no futuro. Ante o exposto, INDEFIRO o pedido de progressão do sentenciado,por não atendido o aspecto subjetivo[...]

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Inialmente o relator afirma o seguinte: [...] a concessão de progressão demanda a análise de requisitos objetivos e subjetivos, não tendo o sentenciado direito absoluto a ela, como pretendido. [...]. A sua formulação pré-anuncia os argumentos da sua negativa na concessão de progressão de regime. O discurso jurídico demanda um posicionamento das autoridades julgadoras quanto ao que está se requerendo. E comumente, as decisões denegatórias apresentam em suas primeiras enunciações, a possibilidade de fazê-lo. Por meio dos mecanismos analíticos da linguagem podemos verificar que a autoridade julgadora (relator) expõe os argumentos que fundamentarão a sua decisão

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denegatória ao prenunciar que para a concessão da progressão requerida o condenado não possui direito absoluto a ela. No fragmento não bastasse a extrema gravidade dos delitos a que o sentenciado fora condenado - o relator exalta o caráter gravidade do delito cometido colocando em funcionamento um discurso sintomático caracterizador da periculosidade sendo tomado como um índice revelador da personalidade criminal. Em continuidade argui – [...] fato é que a avaliação psicológica consignou expressamente que "Através de avaliação projetiva apresenta certa insegurança, agressividade controlada através de mecanismos contensores [...]- vejamos que a expressão insegurança promove a exaltação do

atributo de periculosidade do condenado. Segundo Dan (2013, p. 11) A avaliação do grau de periculosidade dos indivíduos criminosos na atualidade atende a uma dupla finalidade: a de defesa social, que segrega os considerados perigosos, e a do tratamento, que tem o objetivo de fazer cessar a periculosidade, cabendo, então, ao perito dizer se o individuo é perigoso, de que maneira a sociedade pode proteger-se dele, como intervir para modificá-lo e, ao mesmo tempo, se é necessário reprimir ou tratar.10

A fundamentação da necessidade de continuidade da aplicação dos mecanismos repressores ao condenado é respaldada pelo laudo psicológico que atesta sobre agressividade controlada através de mecanismos contensores. Tal alusão passa a percepção de que a agressividade é um estado emocional constante do condenado e que a manutenção deste indivíduo na instituição prisional se faz necessário como medida controladora e contensora da mesma. O que por sua vez constitui-se como uma ideologia ressocializadora que permeiam as instituições carcerárias, reproduzindo os objetivos da pena e sua funcionalidade ressocializadora e reintegradora do indivíduo dissidente à sociedade. Logo em seguida o relator reproduz sobre noção de perversidade, tomada nesta análise pela utilização das expressões: fantasia maior que a capacidade de realização, fuga da realidade, ambivalência de comportamento. Não é sem razão que as noções de periculosidade e perversidade se

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DAN, Evelin Mara Cáceres Dan .O apelo às estruturas estigmatizantes da anormalidade e sua implicaçäo no caso richthofen. Cáceres:mimeo,2013.p.11. 11

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imbricam e se autodeterminam, uma vez que se instalam na ordem jurídica como fundamentadoras dos discursos positivistas, em que toma como condicionante a avaliação das causas ou motivações do delito, legitimando-se, para tanto, na personalidade que o indivíduo criminoso possui. Nesse entendimento, o funcionamento das noções de periculosidade e de perversidade remete o dizer, imediatamente, de acordo com Orlandi (2010), a uma Formação Discursiva e, logo, a uma formação ideológica (e não outra), dominante naquela conjuntura. O emprego das expressões definidoras da personalidade do condenado quais sejam, agressividade, fantasia maior que a capacidade de realização, fuga da realidade, ambivalência de comportamento colocam em funcionamento a noção do que seja duplo psicológico ético do delito, pois consideramos como sendo um deslocamento da função punitiva produzindo um encadeamento de substituições que permitem as autoridades julgadoras dobrar o delito, isto é, qualificar tal qual a previsão legal e incluir nele outras coisas que não fazem parte da conduta delitiva descrita na norma penal, sendo estes considerados atributos apreciados numa perspectiva subjetiva do julgador. É desse modo que esse deslocamento coloca em evidência a potencialidade da des-legalização do crime tal como formulado no Código Penal. O exame psicológico possibilitou a transferência da aplicação do castigo definido em lei

à criminalidade apreciada do ponto de vista psicológico-moral, pois, no final das contas, a partir da realização do exame criminológico possibilita-se julgar também as condutas irregulares que terão sido propostas como causas ou motivações da prática delitiva condizentes com o que se toma como personalidade do indivíduo em questão. O exame criminológico, na atualidade, irrompe-se exatamente na fronteira entre o judiciário e a medicina, não assegurando uma natureza jurídica própria por não ser homogêneo nem ao direito, nem a medicina. Nesse sentido: Nenhuma prova histórica de derivação do exame penal remeteria nem a evolução do direito, nem a evolução da medicina, nem mesmo a evolução gemeada de ambas. É algo que vem se inserir entre eles, assegurar sua junção, mas que vem de outra parte, com termos outros, normas outras, regras de formação outras. No fundo o exame médico-legal, a justiça e a psiquiatria são ambas adulteradas. Elas não tem haver com seu objeto próprio, não põem em prática sua regularidade própria (sic) (FOUCAULT, 2001, p. 51-52).

Tal prática discursiva se sobrepõe à psiquiatria e ao direito penal, tornando-os alheios às suas próprias regras específicas. Disso advêm uma importante questão: A quem dirige-se então o exame médico legal? Foucault (2001) responde a essa questão dizendo que o exame médico legal dirige-se a algo que está na categoria dos anormais. Assim, com o exame, tem-se

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uma prática que faz intervir certo poder de normalização e que tende, através dos efeitos de junção do médico e do judiciário, a transformar tanto o poder judiciário como o saber psiquiátrico, instituindo-se, assim, uma instância médico-judiciária de controle, não do crime nem da doença, mas do anormal. Desse modo, o aparelho judiciário volta-se para a penalização das maneiras de ser dos indivíduos e não objetivamente para a conduta delitiva praticada. CONCLUSÃO Buscamos compreender as implicações produzidas pelo discurso médico sobre a personalidade na decisão jurisprudencial que nega a progressão de regime (discurso jurídico) e o consequente apelo às teorias da personalidade do indivíduo que acaba por definir a periculosidade do indivíduo dito perverso. Ou dito de outro modo, como o discurso médico passa a fazer escopo sobre o discurso jurídico, determinando a este os mecanismos institucionais que instalam e que mantêm a unidade em duas ordens de discurso tão distintas. As sequências discursivas, que recortamos do material de análise, deu visibilidade aos modos como o sentido não se dá fora da ideologia, ou seja, ele é marcado ideologicamente, concorrendo, para esse funcionamento, as condições de produção do dizer. Compreendemos, então, com Pêcheux (1988) e com Orlandi (2010) que o sentido não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas, colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. De outro modo, os sentidos mudam segundo as posições daqueles que as empregam, não tendo sua origem no sujeito, mas se realizando necessariamente no sujeito. Nas análises em questão o próprio do discurso jurídico, entre aqueles que julgam a posição sujeito-juiz inscreve-se discursivamente, enquanto julgador, como um sujeito interpelado por sentidos instituídos nos/por funcionamentos histórico-ideológicos que instalam e institui sentidos colocados em circulação através de funcionamentos histórico-ideológicos. É, pois, com base nessa conjuntura teórica que exploraramos – através das marcas, pistas e traços do processo discursivo, materializados pela língua na história, presentes, portanto, na superfície linguística dos respectivos recortes – o movimento teórico empreendido pelo projeto pêcheutiano. Em que pese o aparente respeito dos procedimentos adotados no julgamento apreciado, às garantias legais e à derivação epistemológica processual jurídica – reiterando, desse modo, o entendimento de que o Direito é formal, objetivo e universal, e promovendo o funcionando dos discursos afeitos e produzidos nos procedimentos judiciais que acabam por corroborar a natureza própria do Direito na medida em que garante a subordinação do homem às leis, com seus direitos e deveres – causou-nos admiração a incorporação do discurso sobre a anormalidade, pois esse 13

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tipo de discurso se organiza exatamente na fronteira entre o conhecimento jurídico e o médico, dessa forma, não assegura uma natureza jurídica própria por não ser homogêneo nem ao direito, nem à medicina, se sobrepondo à psiquiatria e ao direito penal, tornando-os alheios as suas próprias regras específicas. Isto porque, duas noções se combinam e estruturam o discurso sobre a anormalidade: a de periculosidade e a de perversidade. Se por um lado, a noção de perversão está imbricada aos conceitos médicos, instituídos pelo discurso médico que exalta a diversidade do delinquente, por outro, a noção de perigo ajusta-se aos conceitos instituídos pelo discurso jurídico, recorrendo, assim, ao estereótipo do anormal. Desse modo, esse discurso possui uma natureza híbrida, justamente por conter fundamentos do discurso jurídico e médico concomitantemente. O laudo psicológico, constitutivo do exame criminológico que fundamenta a decisão que nega a progressão de regime resgata uma série de atributos que se voltam para os traços individuais da personalidade do condenado, demonstrando que o aparelho judiciário tem instaurado formas alternativas de punição ou de manutenção destas, uma vez que tem se voltado a penalizar as maneiras de ser dos indivíduos e não objetivamente a conduta delitiva praticada. Assim, o discurso jurídico, autorizado a julgar, volta-se para a individualização para imputar responsabilidade, ou seja, é ao psicológico, aos traços da personalidade do indivíduo, uma prática do discurso médico, que se imputa a responsabilidade. O discurso sobre a anormalidade, que motivou a decisão denegatória de progressão de regime analisada, torna manifesto as funções que os exames criminológicos vêm desempenhando no aparelho jurídico, quais sejam: a) a de dobrar o delito tal como é qualificado pela lei – incluindo nele outros aspectos que não são o delito em si, mas uma série de comportamentos que constituem o duplo psicológico-ético do delito; b) a de dobrar o autor do crime com esse personagem que é o delinquente – demonstrando como o indivíduo já se assemelhava com seu crime antes de o ter cometido, colocando em evidência noções infra patológicas que possuem apenas um efeito moral; c) na constituição de um perito que será ao mesmo tempo médico-juiz – uma vez que instruirá o processo, não no nível da responsabilidade jurídica dos indivíduos, mas nos traços de sua conduta, que acabam por revelar a culpa real, cabendo-lhe dizer se o individuo é perigoso, de que maneira a sociedade pode proteger-se dele, como intervir para modificá-lo e, ao mesmo tempo, se é melhor tentar reprimir ou tratar. Tais artifícios ajustam-se às necessidades da medicina, enquanto higiene pública, e da punição legal, enquanto técnica de transformação individual. Assim, diante dessa nova concepção de punição, os juízes passam a julgar um indivíduo tal como ele é e segundo aquilo

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que ele é. Disso advém, por fim, a reflexão de que é possível que, partindo da intervenção do saber médico no âmbito penal, se tenha também passado a autorizar ou não o direito a intervir sobre os indivíduos em função do que eles são, pois esse comportamento tido como insuportável para a ordem social não é algo que se atribui diretamente ao Direito, mas como ele tem de responder para a sociedade, não lhe resta outra alternativa a não ser reconhecer os seus limites e recorrer ao discurso médico para julgar isso que é da ordem de um inusitado, de um não 15

esperado. Principais referências bibliográficas BARROS, Daniel Martins de. O que é Psiquiatria Forense. São Paulo: Brasiliense, 2008. DARMON, Pierre. Médicos e Assassinos na “Bele Epoque”: a medicalização do crime. Tradução Regina Grisse de Agostinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. DON E. SCHULTZ,Ellen Schult. Teorias da Personalidade. Tradução da 9ª edição norteamericana. 2012. FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Tradução de Lilian Rose Shalders. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. _________________. Os anormais - Curso no Collége de France (1974-1975). Trad Bras. Eduardo Brandão. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2001. _________________. A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France (1970). Trad. Bras. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo, SP: Loyola, 1996.

________________. A verdade e as formas jurídicas. 3 ed. Rio de Janeiro, RJ: NAU Editora, 2002. ________________. A arqueologia do saber. Tradução Brás. Luiz Felipe Baeta Neves. 7 ed. Rio de Janeiro: Foresense universitária, 2005. GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso: diálogos & duelos. 2 ed. – São Carlos, SP: Claraluz, 2006. HALL, Calvin S. Teorias da Personalidade; Cavin S. Hall, Gardner Lindzey e John B. Campbell. Trad. Maria Adriana Veríssimo Veronese. – 4ª ed.- Porto Alegre: Armed, 2000. MACHADO, Roberto. Danação da Norma: a medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

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MUCHAIL, Salma Thannus. Foucault simplesmente: textos reunidos. São Paulo, SP: Loyola, 2004. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 9 ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. ORLANDI, Eni Puccinelli. O que é Linguística. 5 ed. São Paulo, SP : Brasiliense, 1992. _____________________. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 9 ed. Campinas SP: Pontes Editores, 2010.

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_____________________. Discurso em Análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012. PÊCHEUX, Michel. Discurso :Estrutura ou Acontecimento. Trad. Bras. Eni Puccinelli Orlandi. 5 ed. Campinas SP: Pontes Editores, 2008. ________________. Semântica e discurso : uma afirmação do óbvio ; tradução Eni Puccinelli Orlandi et al. 4 ed. Campinas, Sp : Editora da Unicamp, 2009.

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