Discutindo algumas questões historiográficas a partir do romance História do cerco de Lisboa de José Saramago

June 6, 2017 | Autor: Rodrigo Conçole | Categoria: Literatura Portuguesa, Ensino de História, Teoria da História
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DISCUTINDO ALGUMAS QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS A PARTIR DO ROMANCE HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA DE JOSÉ SARAMAGO Rodrigo Conçole Lage1

Resumo: O objetivo desse trabalho é discutir como a literatura pode ser utilizada para a discussão da ideia de verdade histórica, utilizando como fonte o romance História do cerco de Lisboa de José Saramago. Na primeira parte, examinamos a ideia de verdade histórica. Na sequência, apresentamos o romance, abordando a questão da falsificação da história e de como ela pode ser utilizada por professores para se trabalhar a questão da verdade. Por fim, tratamos dos excluídos da história oficial. Palavras-chave: José Saramago, História do cerco de Lisboa, Verdade Histórica. Excluídos da História

Resumen: El objetivo de nuestro trabajo es discutir como la literatura puede ser utilizada para debatir la idea de verdad histórica, utilizando como fuente la novela História do cerco de Lisboa de José Sartamago. En la primera parte examinamos La Idea de verdad histórica. En la secuencia, presentamos la novela, abordando la cuestión de la falsificación de la historia y como ella puede ser utillizada por professores para trabajar la cuestión de la verdad. Por último, tratamos de los excluidos de la historia oficial. Palabras clave: José Saramago. História do cerco de Lisboa. Verdad Histórica. Excluídos de la Historia.

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Graduado em História (UNIFSJ). Especialista em História Militar (UNISUL).

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Introdução O que é a verdade dentro da História? Como lidar com as diferentes versões de um determinado fato histórico em sala de aula? Como trabalhar com o aluno essa questão. Com o surgimento da internet e a facilidade de acesso a informação que ela nos dá o professor que se limitar a ser um mero reprodutor de fatos corre o risco de não despertar o interesse dos alunos e se tornar irrelevante. Diante desse fato o professor deveria buscar alternativas, repensando sua atuação, não se vendo mais como um mero reprodutor de uma determinada visão da História, mas como alguém que pode realmente contribuir para a formação dos alunos como cidadãos verdadeiramente críticos e reflexivos. Com esse objetivo, entendemos que questionar a noção de verdade deve ser o primeiro passo para aqueles que desejam seguir por esse caminho.

1- Discutindo a noção de verdade histórica A noção de verdade é um dos pilares do ofício do historiador. Toda a pesquisa histórica está, de um modo ou de outro, pautado na ideia de que é possível descobrir a verdade e/ou identificar os erros e as falsificações cometidas por outros historiadores. Além disso, desde a antiguidade, a produção historiográfica está fundamentada na escrita de fatos reais, daquilo que teria realmente acontecido e não naquilo que poder ter acontecido. Esse fato é o que, comumente, distingue a história da literatura. Em sua Poética Aristóteles (1966, p. 50) afirma:

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Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser histórias, se fossem em verso o que eram em prosa), diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Contudo, essa ideia de verdade tem sido contestada na contemporaneidade. Esse questionamento está baseado na convicção de que o fato histórico não existe em si mesmo, ele é "uma construção, um discurso elaborado por quem escreve os textos" (ROIZ; SANTOS, 2012, p. 281). Partindo desse fato, o professor que deseja contribuir de forma eficaz para a formação dos alunos não pode se limitar a ser o mero reprodutor de uma determinada visão dos acontecimentos. Ele deve procurar levar o aluno a perceber como a História é construída e assim ser capaz de refletir a respeito desse processo de construção, da ideologia que está por trás desse processo. Ao mesmo tempo, acreditamos que o diálogo interdisciplinar com a literatura pode ser uma forma eficaz de trabalhar a questão e, juntamente, procurar despertar o interesse pela literatura, contribuindo assim para a formação de novos leitores. Para isso, escolhemos trabalhar com o romance História do cerco de Lisboa de José Saramago.

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2- História do certo de Lisboa e a falsificação da História Uma das mudanças promovidas pela historiografia do século XX e a difusão da utilização da literatura como uma fonte histórica. Partindo do princípio que ela tem o mesmo valor que as fontes comumente utilizadas pelos historiadores (documentos oficiais, cartas, etc.) decidimos trabalhar com a obra de Saramago, que no âmbito da crítica literária tem sido amplamente discutida no que diz respeito a questões referentes à escrita da história. Como muitos alunos, e mesmo professores, podem não conhecer o escritor apresentaremos um breve resumo. O romance, publicado em 1989, narra a história do revisor Raimundo Benvindo Silva que, um dia, ao revisar o tratado histórico intitulado História do Cerco de Lisboa introduz um "não", alterando assim a versão oficial da história:

É evidente que acabou de tomar uma decisão, e que má ela foi, com a mão firme segura a esferográfica e acrescenta uma palavra à página, uma palavra que o historiador não escreveu, que em nome da verdade histórica não poderia ter escrito nunca, a palavra Não, agora o que o livro passou a dizer é que os cruzados Não auxiliarão os portugueses a conquistar Lisboa, assim está escrito e portanto passou a ser verdade, ainda que diferente, o que chamamos falso prevaleceu sobre o que chamamos verdadeiro, tomou o seu lugar, alguém teria de vir contar a história nova, e como (Saramago, 1989, p. 50). Esse ato introduziu alterações em sua vida sendo que a mais importante foi o fato da editora contratar Maria Sara como diretora dos revisores. Ela vai incentivar Raimundo a escrever uma nova versão da história a partir dessa ideia de que os cruzados não ajudaram a

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reconquistar Lisboa. Com o passar do tempo os dois vão se apaixonar e essa paixão vai ser representada na história que Raimundo está escrevendo por meio do romance entre o protagonista, Mogueime, e Ouroana. Em linhas gerais, essa é a história do livro. Na seqüência iremos discutir dois pontos a serem trabalhados no que diz respeito a questão da falsificação da história. Em primeiro lugar, é preciso destacar o fato de o "não" introduzido pelo revisor não foi algo inventado, mas feito baseado em fontes históricas como, por exemplo, a carta Conquista de Lisboa aos Mouros (1147) de Osberno: "a informação é de boa origem, diz-se diretamente do célebre Osberno" (Saramago, 1989, p. 124).Assim, o que temos são diferentes versões do fato e essa divergência deve ser utilizada pelo professor para se discutir a ideia de verdade. Incluímos nas referência uma edição da carta que pode ser acessada na internet e trabalhada pelo professor que pode propor aos alunos uma pesquisa para verificar até que ponto a história oficial e o relato da carta são divergentes.

3- Um olhar sobre os excluídos da História Outra opção, para um trabalho interdisciplinar com a literatura, seria uma comparação do relato da carta com a nova versão da história escrita pelo protagonista de Saramago. Esse tipo de trabalho poderia ser realizado pelo professor de literatura em um trabalho conjunto com o de história. Outro fato que pode ser discutido é a questão dos excluídos da História. Se durante muito tempo a História estava voltada para os grandes homens e grandes feitos, deixando de lado grande parte da

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humanidade, na contemporaneidade a produção historiografia tem procurado resgatar os que foram dela excluídos, apresentando assim outra visão dos fatos, procedimento também utilizado pelo escritor:

Um outro momento da obra, em que Saramago também utiliza uma fonte histórica, desse vez a chamada A conquista de Santarém, é no trecho no qual é mencionada a personagem histórica Mogueime. Ele depois se tornará um dos protagonistas do livro que Raimundo Silva escreve como versão alternativa ao cerco de Lisboa. Mogueime foi um soldado lusitano que participou da batalha em Santarém e que, por ser mencionado na crônica de D. Afonso Henriques, possui uma notoriedade histórica mínima (...) (MATIAS; ROANI, p. 6-7).

Segundo Felipe dos Santos (2008, p. 6), “trata-se de uma fonte histórica muito fecunda e importante, resgatada e divulgada por Frei António Brandão, na qual o rei narra alguns pormenores da conquista de Santarém”. Saramago utilizou uma pessoa que realmente existiu e que foi citada em um texto histórico, mas que não recebeu nenhum destaque. Apesar de não ter maior importância dentro da história Saramago fez dele um dos personagens centrais de seu livro. Os alunos devem tomar consciência de que determinados grupos e pessoas não foram(estão) inseridos na História. Negros, mulheres, por exemplo, estão entre os grupos sociais que passaram por esse processo de exclusão e que tem trabalhado para promover esse resgate. Por se tratar de um romance metahistórico, escrito por um militante político, é natural que o romancista lide com a questão:

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O curioso é notar que Saramago utilizou o personagem histórico Mogueime para inserir esse texto histórico na sua narrativa. Ao optar por fazer com que o soldado narrasse o que ocorreu em Santarém, Saramago dá voz àqueles que a história silenciou e esqueceu. Talvez seja a forma que o escritor português encontrou para narrar esse acontecimento por uma outra ótica, pela visão de um simples subalterno, aquele que conseguiu amarrar a escada ao muro para que os portugueses pudessem invadir e conquistar Santarém, e que depois o crédito da façanha ficou quase todo para o seu superior, o senhor Mem Ramires, o qual é exaltado pela historiografia lusitana por ser o bravo e corajoso homem que conseguiu invadir Santarém.

Do ponto de vista de uma prático pedagógica, esse tema pode ser desdobrado pelo professor em muitas questões, tais como: Por que isso acontece (u)? Até que ponto essa exclusão falsifica ou distorce a História? Qual o caráter ideológico dessa exclusão? O que pode ser feito para mudar essa situação? Tais questionamentos podem servir de ponto de partida para a discussão da confiabilidade dos fatos históricos. Podemos dizer que esses são os dois principais pontos para os que desejarem trabalhar com esse tema. A discussão desses fatos não pode se restringir ao meio acadêmico, ao debate historiográfico, mas deveria ser levado ao ambiente escolar de modo a contribuir para a formação de alunos críticos. Conclusão Como vimos, a questão da verdade na história, e dos excluídos, tem sofrido importantes transformações ao longo do tempo. Acreditamos que

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tais questionamentos não devem ficar restritos ao âmbito historiográfico, mas devem ser levados para as salas de aula porque podem contribuir para a formação de alunos críticos. A partir dos questionamentos desenvolvidos ao longo do texto o professor tem uma base a partir da qual possa trabalhar com os alunos e desenvolver novas problemáticas. Ao mesmo tempo, propomos um enriquecimento do ensino da História a partir do diálogo com a literatura. Nossa intenção, ao discutir a questão da verdade e dos excluídos, não é esgotar o assunto, mas apresentar algumas propostas de trabalho que podem levar a outros assuntos como, por exemplo, a questão da construção do conhecimento ou dos usos da história. Com isso o ensino da História poderá ser relevante não só para a formação dos alunos, mas também dos próprios professores. A crítica literária já tem estudado as características metahistóricas do romance e os historiadores e professores de história também podem, a partir dessas pesquisas, utilizá-lo para refletir sobre essas questões e seus ofícios.

Referências ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966. BRAWDSEY, Osberto de. A Conquista de Lisboa aos Mouros, 1147. Disponível em: . Acesso em: 13 dez. 2015. GUTERRES, Tiago da costa. ‘Heródoto e a noção de verdade na historiografia grega: um breve comentário’. Revista Historiador, Porto Alegre, ano 04, n. 04, p. 15-22, 2011. Disponível em: .

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MATIAS, Felipe dos Santos; ROANI, Gerson Luiz. ‘História do cerco de Lisboa: as fontes medievais de José Saramago e a transfiguração literária da história’. Revista Vertentes, São João Del-Rei, v. 32, p. 1-12, 2008. Disponível em: . ROANI, Gerson Luiz. No limiar do texto: literatura e história em José Saramago. São. Paulo: Annablume, 2002. ROIZ, Diogo da Silva; SANTOS, Jonas Rafael. As transferências culturais na historiografia brasileira: leituras e apropriações do movimento dos Annales no Brasil. Jundiaí: Paco Editorial, 2012, 296 p.

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