Dispositivo-Favela, Relações de Poder e Produção de Subjetividade

May 27, 2017 | Autor: Pedro Paulo Bicalho | Categoria: Social Psychology, Critical Criminology
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BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P. G. Dispositivo-Favela, Relações de Poder e Produção de Subjetividade In: Subjetividades, Violência e Trajetória Juvenis. Rio de Janeiro : Gramma, 2014, p. 41-62. Impresso, ISBN: 9788598555683

DISPOSITIVO-FAVELA, RELAÇÕES DE PODER E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE

Roberta Brasilino Barbosa – Psicóloga e Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pedro Paulo Bicalho – Professor Adjunto do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Coordenador Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ).

BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P. G. Dispositivo-Favela, Relações de Poder e Produção de Subjetividade In: Subjetividades, Violência e Trajetória Juvenis. Rio de Janeiro : Gramma, 2014, p. 41-62. Impresso, ISBN: 9788598555683

Introdução “R: Qual a primeira coisa que vem a sua mente quando ouve a palavra favela? I: Meu nome.” Morador da Maré, Rio de Janeiro “R: Como é o trabalho na favela? C: você não sabe o que vem a frente, você não conhece. [...] E em locais onde a estrutura não é de alvenaria, as frestas te preocupam mais, porque pela fresta você pode ser alvejado.” Policial Militar, Rio de Janeiro

Deleuze (1990) aponta que o conceito de dispositivo trazido por Foucault pode ser comparado a um novelo, um conjunto de linhas presas e soltas, todas emaranhadas. Afirma ainda que os dispositivos possuem duas principais dimensões: as curvas de visibilidade e as curvas de enunciação. Essas curvas, forjadas pelas linhas de visibilidade e de enunciação que compõem os dispositivos, dão a ele um caráter de máquina capaz de “fazer ver e fazer falar” (idem: 155); a qual simultaneamente mostra (e produz) objetos presentes e resultantes do novelo. Não são apenas linhas dessas qualidades, contudo, que fabricam os dispositivos. Existem ainda as linhas de força, de subjetivação e as linhas de fuga. As primeiras, ao contrário das outras duas, são linhas invisíveis e indizíveis que respondem pelas dimensões de poder e de saber. As linhas de subjetivação são aquelas que produzem sujeitos e as linhas de fuga dizem sobre aquilo que escapa ao que está estabelecido, ao que está posto. Os relatos que dão início a este trabalho – trechos de entrevistas realizadas com policiais e moradores de favelas – possibilitam uma compreensão desses espaços enquanto dispositivo, ou seja, uma máquina de fazer ver e falar. Considerando as reflexões que deram origem a esta produção textual, o dispositivo-favela tornou possível um estudo cartográfico sobre relações de poder estabelecidas por policiais e moradores de favelas do Rio de Janeiro1. A cartografia, método de pesquisa inspirada na obra de Deleuze e Guattari, caracteriza-se por um estudo de processos formadores de subjetividades.

O ato de

pesquisar, assim, é afirmado necessariamente como um ato de produção em que não há lugar para a representação de uma realidade pré-existente, cabendo ao cartógrafo 1

As reflexões originárias deste artigo culminaram na defesa da dissertação intitulada Relações de poder e processos de criminalização em policiais e moradores de favelas: “mas não me bate doutor, porque sou de batalha” (ampliando sentidos para ‘doutor’ e ‘bater’) que ocorreu em março de 2012 como requisito final político-acadêmico para obtenção do título de mestre pelo Programa de Pós Graduação em Psicologia da UFRJ. Como forma de acesso a um território existencial marcado por relações de poder entre policiais e moradores de favelas, foram realizadas entrevistas com membros desses dois grupos, observações participantes em favelas e em encontros nos quais tais relações estiveram em pauta.

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BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P. G. Dispositivo-Favela, Relações de Poder e Produção de Subjetividade In: Subjetividades, Violência e Trajetória Juvenis. Rio de Janeiro : Gramma, 2014, p. 41-62. Impresso, ISBN: 9788598555683

acompanhar processos em curso. Autores dedicados à cartografia destacam a importância da habitação de territórios existenciais e a eleição de dispositivos como algumas pistas que possibilitam tal prática. Acerca da importância de se habitar um território, afirmam que para além de analisar um campo estudado, um território exterior, cartografar é misturar-se num território existencial (que não é concreto, nem físico) e deixar-se afetar, única maneira viável para o acompanhamento dos processos ali em curso. Eles também salientam que não se consegue mapear territórios sem o auxílio de certos instrumentos também chamados dispositivos, os quais criam “condições concretas para a prática da cartografia” (p. 80) na medida em que dizem sobre um plano de forças que os constituem. Os dispositivos são máquinas, redes, sempre parciais, momentâneas (nunca universais e eternas) que respondem por certos efeitos na medida em que se encontram em processo contínuo de produção de objetos (BARROS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009). Na habitação de um território existencial de relações de poder estabelecidas entre policiais e moradores de favelas, o dispositivo-favela destacou-se como um potente instrumento que permitiu um alcance a algumas características e alguns efeitos dessas relações de poder, entre eles uma produção de ‘subjetividade-policial’ e ‘subjetividademorador-de-favela’ intimamente relacionada com processos de criminalização.

A

discussão adiante, resultante de uma análise do dispositivo-favela, evidencia alguns mecanismos pelos quais se operam essas produções de subjetividades abordando aspectos relativos a uma dita ‘essência’ de alguns daqueles que vivem e trabalham nas favelas, assunto que mantém estreita relação com uma visão maniqueísta do tráfico varejista de substâncias tidas como ilícitas que acontece nesses espaços. Contempla ainda o apontamento de um efeito provocado por essa visão do tráfico, o qual é encarado como principal justificativa para diferentes ações (e omissões) nas favelas, ações estas que demarcam o território da violência e assim concretizam estratégias de controle, repressão e segregação. Antes de prosseguir faz-se importante afirmar que a noção de subjetividade que atravessa todo o texto tem como principal referencial teórico os estudos de Foucault (2009a, 2009b), para quem o sujeito constitui-se como uma produção emergente de relações de poder e saber. A leitura desse autor sobre poder inclui uma compreensão encarnada para o fenômeno; haja vista que, para ele, poder não pode ser entendido em separado das relações sociais que o efetivam e que por esse motivo não se constitui como força unidirecional, mas sempre relacional. É nesse sentido que recorrentemente refere-se a

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poder como prática e não como posse, possibilitando o uso do conceito como instrumento para se pensar efeitos engendrados pelo seu exercício. Favela, subjetivação e tráfico de drogas. Ainda quando Favella era um nome próprio que denominava o atual morro da Providência, diversos movimentos apontavam esse espaço como herdeiro de uma visão comum aos cortiços: aglomerado de pobres, vadios e malandros2. “Caracterizado como verdadeiro ‘inferno social’, o cortiço era tido não apenas como antro de vagabundagem e do crime, mas também das epidemias, construindo uma ameaça às ordens moral e social.” (VALLADARES, 2000: 7). E já naquele período as ações do poder público nas favelas estavam orientadas pelo caráter de ‘limpeza’ daqueles espaços. “Sobre ela recai agora o discurso médico-higienista que antes condenava as habitações anti-higiênicas; para ela se transfere a visão de que seus moradores são responsáveis pela sua própria sorte e também pelos males da cidade” (Idem: 8) Afinal, o meio configura-se como responsável pelos males físico e moral dos homens e por isso deve ser cuidado, afirmava o movimento higienista. Souza e Silva (2002) afirma que desde as primeiras formulações oficiais a respeito do fenômeno das favelas encontram-se presentes dois elementos: a ausência e a homogeneização. “O eixo paradigmático da representação desse espaço popular é a noção de ausência. A favela é definida pelo que ela não é ou pelo que ela não tem. Nesse caso, é apreendida como um espaço destituído de infra-estrutura urbana – água, luz, esgoto, coleta de lixo; sem arruamento; globalmente miserável; sem ordem; sem lei; sem regras; sem moral, enfim, expressão do caos. Outro elemento peculiar da representação usual das favelas é sua homogeneização. Existente em terrenos elevados e planos, reunindo de algumas centenas de moradores até alguns milhares, [...], sendo constituídas por casas e/ou apartamentos, com diferentes níveis de violência e presença do poder público, [...] as favelas constituem-se como territórios com paisagens razoavelmente diversificadas. A homogeneidade, no entanto, é a tônica quando trata-se de identificar esse tipo de espaço popular.” (SOUZA e SILVA, 2002: 110)

Segundo esse autor, ainda que muitas mudanças tenham ocorrido nesses espaços – o que não permite mais que tais definições sejam condizentes com a realidade das favelas de hoje – a permanência dessas representações evidencia um caráter sociocêntrico dos 2

Valladares (2000) afirma que foram dois os principais fatores que contribuíram para essa aproximação entre favela e cortiço: a semelhança dos aspectos estéticos e o deslocamento populacional para os morros daqueles que viviam nos cortiços demolidos.

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olhares sobre esses locais de moradia. “O sociocentrismo se materializa quando, a partir dos padrões de vida, dos valores e crenças de um determinado grupo social, se estabelece um conjunto de comparações com outros grupos, colocados, em geral, em condições de inferioridade.” (SOUZA e SILVA, 2002: 113). Ele afirma ainda que as duas principais formas segundo as quais se torna concreto o sociocentrismo em relação às favelas – conservadora (jovens precisam ocupar seu tempo para não se tornarem criminosos) e progressista (moradores de favelas são passivos e infelizes) – precisam ser combatidas por ignorarem “a multiplicidade e diversidade de ações objetivas encaminhadas por diferentes atores dos espaços populares no processo de enfrentamento dos limites sociais e pessoais de suas existências.” (Idem: 116) A principal crítica que recai atualmente sobre as favelas (amplamente ratificada pelos policiais e moradores de favelas entrevistados para a pesquisa que originou este trabalho) relaciona-se às atividades de tráfico varejista de drogas que acontece nas suas dependências; empregando, muitas vezes, força de trabalho local e contando com a participação de agentes públicos de segurança. Ainda que não se possa afirmar que foi somente a partir do momento em que as favelas foram usadas como locais estratégicos para a compra e venda de psicoativos ilícitos que existe esse olhar de desconfiança acerca desse espaço e daqueles que lá residem/trabalham, esse é atualmente a mais considerável justificativa a que recorrem os que defendem a existência de uma ‘natureza criminosa’ (em uma parcela ‘deles’, moradores ou policiais) nas favelas. Durante as entrevistas realizadas observou-se esse mecanismo de naturalização da criminalidade tanto nas falas de policiais quanto naquelas proferidas por moradores de favelas. O tráfico de drogas é apresentado por esses atores como o principal crime (os demais acontecem em decorrência dele) que ocorre nas favelas, o causador de grandes prejuízos. Em conseqüência, qualquer um que a ele se associe (seja policial ou morador de favelas) passa a ser visto então como um possuidor de uma ‘natureza ruim’. “O que preocupa a gente aqui é o tráfico, mais nada. A gente pode entrar e sair a hora que quer, mas se a gente entra, não sabe se sai. E sai não sabe se entra, entendeu? Única coisa que preocupa a gente aqui é o trafico, com certeza.” (Morador da Maré, Rio de Janeiro) “[aqui moram] trabalhadores, pessoas boas de coração, pessoas más de coração também. Sei lá, humanos, gente. Acho que eles [os policiais] tinham que saber disso. Gente, mora aqui humanos como eles. [...] Tem gente, como eu falei, tem gente de bem e tem gente de mal. Tem mais gente pra bem de que pro mal.” (Morador da Maré, Rio de Janeiro)

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“‘Não invade não, é tudo amigo, fica cada um com a sua favela, você não tem a sua? Não é grande? Não tem dinheiro? Volta pra lá’. Ele vai aceitar, o traficante? Não vai! Infelizmente traficante entende a base de tiro. Perdi, acabou, morreu. Perdeu. Aí acabou porque não dá mais. Porque perdeu, morreu não sei quantos soldados, aí acabou. Então com bandido tem que entrar atirando. Porque o bandido ele não senta, não conversa. Acho que eles não sabem o que é isso não: diálogo. Sentar e conversar.” (Morador da Maré, Rio de Janeiro) “É aquela resistência, né, entendeu? Muitas das vezes é até por falta de conhecimento e impõe algum direito de que... chega até a extrapolar esse papo de... ‘tem mandado? Só entra na minha casa com mandado [...]’. Os oficiais também é trabalhador e a colaboração do morador é fundamental pro sucesso da operação. Por que resistir? Não tem motivo. O morador de bem, as pessoas de bem, ela tem que colaborar no sentido de que? Facilitar o acesso do policial, a incursão. [...] Não facilitar por quê? [...] A resistência muitas das vezes se funda nisso: familiar com algum ente comprometido... porque o morador de bem, o trabalhador, aquele que sabe dos seus direitos e dos seus deveres, ele não cria uma imposição.” (Policial Militar, Rio de Janeiro)

Entre os discursos produtores de subjetividades-criminoso pela via da ‘associação’ com o ‘mal’ presente nas favelas (ou seja, o tráfico varejista de substâncias tidas como ilícitas) encontram-se aqueles que se pautam nos argumentos da conivência em virtude de uma aceitação de convivência3. “Convivência a gente tem, não adianta, a gente mora, a gente vê, a gente sabe... Mas... tipo... fazer parte do tráfico, não. Que a gente mora na comunidade por falta de oportunidade, como eu já te falei, de ter um emprego melhor, de ter uma área de estudo, de educação melhor, entendeu?” (Morador da Maré, Rio de Janeiro) “Teve uma vez aqui, assim, eu tava na esquina, eu e uma colega a Ingrid tava aqui na esquina, veio assim cinco carros de bandido descendo o morro. E mais cinco, entre cinco e dez motos tomando a favela atrás. Eu entrando aqui dentro, daqui a pouco passou três Blazers da polícia e a gente falou: ‘É agora, né?! Eles vão bater aqui, vai matar...’ Não, pelo contrário. Os policiais tomaram realmente um susto. Desceram do camburão e os bandidos desceram do carro assim, tudo abusado. Aí desceram do carro, botaram a arma pra fora e falou assim pros policiais: ‘Tá fazendo o que aqui? Tá pago! Mete o pé’. Os policiais na mesma hora entrou no carro e foi embora. Aí você pensa assim, que polícia é essa? Realmente eu não quero um confronto ali e tal, mas aquilo ali foi absurdo. Aí depois você tem que acreditar em polícia? Quem acredita em polícia é porque não vê como é na favela, entendeu? A gente aqui dentro a gente vê como um policial age.” (Morador da Maré, Rio de Janeiro) “E aí, aquela falsa sensação de que o traficante dá uma assistência, mas a cobrança do traficante é trágica. Ele dá, mas ele cobra e é caro.” 3

Pude vivenciar uma interessante experiência nesse sentido quando, para realização de algumas entrevistas, desloquei-me de carro até a associação de moradores do Conjunto Esperança. Naquele momento compartilhei regras de convivência ao abaixar os vidros, desligar os faróis e acender a luz interna do automóvel que me conduzia ao local. Vi me igualmente aprendendo essas regras enquanto observava como os demais veículos transitavam por uma das ruas principais na qual existiam quebra-molas que de tão altos quase danificavam os assoalhos dos carros.

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(Policial Militar, Rio de Janeiro) “O traficante manda as pessoas pra rua. Uns vem obrigados e outros vêm porque gostam, realmente tem uma ligação. Na maioria das vezes esses que vem porque gostam, que tem ligação (...)” (Policial Militar, Rio de Janeiro)

Nos trechos acima se observam sugestões de uma produção tanto de ‘subjetividadepolicial’ quanto de ‘subjetividade-morador-de-favela’ em que na base encontram-se mecanismos de criminalização pela conivência com o tráfico de drogas. Os moradores de favelas e policiais entrevistados cujos relatos estão transcritos acima sugerem conseqüências provenientes de uma possível aproximação (no segundo relato a escolha pelo não enfrentamento é o que oferece esse tipo de indício) com o tráfico de drogas. Silva e Leite (2007) abordam esse mesmo assunto ao analisarem especificamente a criminalização de moradores de favelas. Eles afirmam que em virtude dos moradores descumprirem regras de conduta da moral dominante – uma vez que a convivência com traficantes produziu diferentes tipos de aproximação – eles são frequentemente identificados como coniventes com esses ‘bandidos’. “Os moradores de favelas são tomados como cúmplices dos bandos de traficantes, porque a convivência com eles no mesmo território produziria aproximações de diversas ordens [...] e, assim, um tecido social homogêneo que sustentaria uma subcultura desviante e perigosa. Esta, por sua vez, fundamentaria a aceitação e banalização do recurso à força, o que terminaria por legitimar e generalizar a chamada ‘lei do tráfico’. Em consequência, os moradores de favelas estariam recusando a ‘lei do país’ ao optarem por um estilo de vida que negaria as normas e valores intrínsecos à ordem institucional.” (SILVA E LEITE, 2007: 549)

A respeito dessas diversas formas de aproximação entre moradores de favelas e traficantes, Misse (2003) e Lacerda (2009) ressaltam que as características do negócio de compra e venda de drogas – não regulado e ilegal – criam a necessidade de estabelecimento de certos tipos de relacionamento que, segundo o primeiro autor, variam entre mandonismo, dominação não-legítima com pretensão de legitimidade local, tirania centralizada e tirania segmentada. “A relação com a população local [...] segue, em geral, algumas características que podem ser reunidas em quatro padrões: 1) mandonismo: a população local se divide no apoio ao ‘dono’, geralmente herdeiro familiar e líder conhecido de todos [...]; 2) dominação não legítima com pretensão de legitimidade local: é o caso em que o ‘dono’ e os gerentes são nascidos e criados na comunidade, pertencem a famílias locais, respeitam os moradores e tendem a protegê-los [...] 3) tirania centralizada: dominação não legítima, sem pretensão de legitimidade local, impõe-se um único ‘dono’ pelo medo e se isola da comunidade local [...] 4) tirania segmentada: vários donos estranhos à comunidade disputam territórios

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pela imposição do medo e pela guerra permanente entre si, sem qualquer interesse pelos moradores.” (MISSE, 2003: 153)

Ainda segundo Silva e Leite (2007), as recorrentes críticas que moradores de favelas fazem à maneira discriminatória segundo a qual Estado e polícia lidam com as favelas é mais um argumento utilizado a favor do que chamam de ‘mito da conivência’ entre moradores e traficantes. “Esta ‘aversão’ aos procedimentos típicos da atuação institucional da polícia e à conduta de seus agentes tem sido entendida como conivência com o crime violento.” (IDEM: 562 – grifos dos autores). Os autores apontam ainda que as queixas dos moradores de favelas estão muito mais voltadas à polícia do que aos traficantes por diversas razões, entre elas: “Como demandar respeito a seus direitos, à sua integridade pessoal, de ‘bandidos’? [...] Deve-se ressaltar que, para os moradores de favelas, o silêncio e a submissão diante da violência do tráfico constituem as respostas possíveis à opressão dos traficantes, diante do que vivenciam como isolamento e desamparo.” (SILVA E LEITE, 2007: 569)

No entanto, conforme indica o trecho abaixo, uma transcrição de parte de uma das entrevistas feitas com um morador de favela, esses mesmos motivos podem ser usados para criminalizá-los. “Dentro da comunidade é a lei do silêncio. Na comunidade a gente tem que ver com quem a gente fala, tem que ver o que a gente vai falar, entendeu? A gente não pode se desentender com ninguém porque quem resolve é eles [traficantes], entendeu? Tem muitos moradores que, entendeu? Que deixam a desejar, é, é, é eu não sei se já acostumaram com isso, eu não sei te explicar. Porque eu não concordo, mas enfim, eu tenho que ficar calada, porque é a lei do silêncio. Quer dizer, tá acontecendo alguma coisa, tudo é com eles [traficantes]. Tem muitos moradores que, sabe?, vai a eles, pra eles resolver entendeu? e eles já vem, porque eles já... já ouvi várias vezes eles gritar na rua: ‘Quem manda aqui somos nós’, entendeu?” (Morador da Maré, Rio de Janeiro)

Assim como o tráfico é visto como a personificação do ‘mal’, o exercício de um trabalho legitimado (ou a freqüência a uma instituição escolar, dependendo da idade) ocupa o outro extremo dessa visão maniqueísta. Ser de ‘bem’ significa trabalhar e/ou estudar tanto para moradores de favelas, quanto para policiais. Nesses casos, comete-se um grave erro quando se confunde ‘trabalhador’ com ‘traficante’. “Colega meu, o policial levou ele lá pra trás e deu muito nele sem ter o porquê. Trabalhador, carteira assinada, trabalhava desde 16 anos, não tinha nada com tráfico, nem sonhava em participar. Bateu muito nele. Só não matou ele porque uma vizinha nossa foi lá interceder pela vida dele.”

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(Morador da Maré, Rio de Janeiro) “Porque tem muita gente envolvida com o tráfico, né?! A maioria é, então foi aquilo que eu te falei. Pra que vão falar que um por cento não é se noventa e nove é? Vão falar que todo mundo é logo. ‘Bota a cara na parede aí, rapá! Vambora! Abre a perna aí! Tá com o que na mão?’, ‘Mas senhor...’, ‘Cala a boca! Não tem nada de senhor não!’. Acabou. É mais prático pra eles [policiais] do que perguntar: ô cidadão, tu mora aqui? Trabalhor? Mostra a carteira!’. Pra que fazer isso? Dá tapa na cara, ‘abre as pernas aí, vambora, nego safado! Tá escondendo o que de mim?’”. (Morador da Maré, Rio de Janeiro – grifos nossos) “É, eu vou ser sincero, eu me sinto constrangido. Revista é uma coisa constrangedora. Ainda mais quando você realmente não tem..., é só a fundada suspeita mesmo, você não tem a certeza. Não está naquela ‘esse cara aqui ele está armado’ Aí você vai até mais dentro daquela legitimidade. Mas quando é uma pessoa que está saindo do trabalho, está saindo para trabalhar... , caraca! Ele tá..., poxa.” (Policial Militar, Rio de Janeiro)

Albernaz (2010), em estudo sobre ética profissional e moral religiosa com policiais cariocas, chama atenção para o uso estratégico que é feito por esses agentes do processo de demonização do crime. A autora afirma que um enfrentamento dualista (‘bem ou mal’, ‘vida ou morte’) das questões tipicamente vivenciadas no cotidiano profissional parece estar a serviço de uma neutralização da culpabilidade e de uma desresponsabilização pelos atos cometidos. “Para preservar a sua vida e a de terceiros, esgotadas todas as alternativas de uso da força disponíveis, o policial está autorizado a utilizar a sua arma para atentar contra a vida de seu agressor em legítima defesa. Entretanto, o fato de estar respaldado não torna as circunstâncias do confronto armado menos tensas e eticamente conflituosas [...] Os policiais militares tendem a construir justificativas para reduzir as ambigüidades morais envolvidas na letalidade. Uma estratégia bastante comum de neutralização da culpabilização [...] é a caracterização da situação de ‘vida e morte’.” (ALBERNAZ, 2010: 533)

Relativamente a esse discurso maniqueísta recorrentemente manifesto quando o assunto é criminalidade, Foucault (2009b) oferece uma interessante contribuição. A idéia de normalidade, estreitamente associada a um exercício de poder disciplinar, frequentemente se encontra atrelada aquela outra que informa (e produz) acerca da essência (boa ou má) do sujeito. “Este mecanismo de dois elementos permite um certo número de operações características da penalidade disciplinar. Em primeiro lugar, a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do mal: em vez da simples separação do proibido, como é feito pela justiça penal, temos uma distribuição entre pólo positivo e pólo negativo; todo comportamento cai no campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus pontos.” (FOUCAULT, 2009b: 173)

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Para além de afirmar sobre a participação do poder disciplinar na produção de uma ‘natureza criminosa’, Foucault (2009b) igualmente se posiciona de forma crítica a esse respeito ao ressaltar que o dispositivo símbolo dessa modalidade de poder, a prisão, visa primeiramente à fabricação – e não correção, retorno à normalidade – de um tipo específico de criminoso: o delinquente. “O delinquente se distingue do infrator pelo fato de não ser tanto seu ato quanto sua vida o que mais o caracteriza.” (FOUCAULT, 2009b: 238). Não é qualquer ilegalidade que será punida com prisão, não é qualquer infrator que se torna um delinquente. Também sobre a prisão, Foucault (2009a: 119) destaca que a maneira segundo a qual se lida com o corpo do aprisionado parece oferecer fortes indícios de uma afirmação da importância social do trabalho. “O corpo [...] deve adquirir aptidões, receber um certo número de qualidades, qualificar-se como um corpo capaz de trabalhar.” Foucault (2009b: 226) salienta ainda que “o trabalho não é nem uma adição nem um corretivo ao regime de detenção: [...] é concebido, pelo próprio legislador, como tendo que acompanhá-lo necessariamente”. E tal fato se justifica porque é preciso criar a noção de que o trabalho faz parte da natureza do homem de ‘bem’, o que reforça a idéia de que “o trabalho não é absolutamente a essência concreta do homem, ou a existência do homem em sua forma concreta. Para que os homens sejam efetivamente colocados no trabalho, ligados ao trabalho, é preciso uma série de operações complexas pelas quais os homens encontram-se efetivamente [...] ligados ao aparelho de produção para o qual trabalham (FOUCAULT, 2009a: 124)

Aliado aos processos que compõe as díades tráfico-‘mal’ e trabalho-‘bem’, observa-se nas falas de policiais e moradores de favelas uma construção frequente de um outro criminalizado. Vaz, Carvalho e Pombo (2006) relacionam esse mecanismo à emergência de uma nova forma de poder: o poder pelo risco. Para Vaz (1997) experimenta-se no período atual uma tolerância cada vez maior em relação às diferenças comportamentais já que o modo de exercer o poder nos dias de hoje necessita dessa variedade entre ações. Isso, pois, o foco não está mais no que se faz, mas sim na intensidade com que se faz de modo tal a esquecer-se dos riscos. Como conseqüência dessa intensa preocupação com o que pode vir a ser, observa-se a evitação do sofrimento virtual pela via da antecipação e extirpação dos riscos possíveis. “O indivíduo continua a ser punido pelo que é, mas seu ser se define pela virtualidade de cometer crimes no futuro. E como diria o senso comum do mundo afora, é melhor mantê-los presos do que 10

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deixar que cometam crimes contra os ‘homens de bem’” (VAZ; CARVALHO; POMBO, 2005: 6). Mantê-los presos ou matá-los, dependendo do caso. Segundo esses autores, a criação de um criminoso virtual vem sempre acompanhada de uma vítima virtual. E dessa forma, “O risco de vitimização cria uma nova forma de alteridade que opõe o ‘nós’ cidadãos e vítimas ao ‘eles’ que nos põem em risco e que, portanto, não respeitam valores básicos da sociedade contemporânea, como a vida, o direito de escolha e a liberdade. Na utopia da vítima virtual, ninguém deveria precisar alterar seu estilo de vida porque outros o colocam em risco.” (VAZ; CARVALHO; POMBO, 2005: 10)

Tráfico de drogas como estratégia de controle, repressão e segregação E antes de finalizar esta discussão, faz-se relevante o destaque daquele que é um importante efeito provocado por relações de poder em curso no universo que une policiais e moradores de favelas, relações essas que respondem pela produção de subjetividades criminoso. Segundo Fernandes (2005), encontra-se em funcionamento no contexto atual do Rio de Janeiro um processo contínuo de destruição da urbanidade, ou seja, de restrição de espaços de encontro das diferenças e cerceamento, para certos grupos sociais, da participação na vida urbana em sua totalidade. “A cidade, assim, vai se fragmentando, e o direito a ela em sua plenitude [...], torna-se cada vez mais distante dos setores populares. Ao que parece, construiuse no Rio uma cultura de convivência forçada, cuja solução encontrada pelos setores dominantes na tentativa de se isolarem – ou de isolarem os favelados –, tiveram nos discursos e nas representações sobre os moradores de favelas uns de seus principais instrumentos. [...] a destruição da urbanidade empreendida pelos setores dominantes cariocas incorporou, para além das intervenções urbanas e estéticas da cidade, um discurso sobre os setores populares.” (FERNANDES, 2005: 46)

Para o autor os efeitos desse processo atingem tanto o exercício pleno da democracia, quanto o respeito à alteridade e intensificam a estigmatização dos moradores de favelas, experimentada simbólica e concretamente. O trecho de uma das entrevistas transcrito abaixo é um exemplificador dessa realidade, o qual traz um relato-denúncia sobre algumas dificuldades encontradas por moradores de favelas em virtude de seus locais de moradia, ou melhor, dos significados atribuídos a morar em favelas. “É problema com a polícia, com outra facção por causa do tráfico, então tudo que entra na favela vem por conta do tráfico. A gente aqui está mal vistos através do tráfico, às vezes nós não conseguimos um emprego bom por causa do tráfico porque acha que todo mundo é favelado e vai roubar, tudo é ladrão. Aí

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BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P. G. Dispositivo-Favela, Relações de Poder e Produção de Subjetividade In: Subjetividades, Violência e Trajetória Juvenis. Rio de Janeiro : Gramma, 2014, p. 41-62. Impresso, ISBN: 9788598555683

não tem aquela confiança de colocar até numa empresa grande! Às vezes o morador de favela não consegue um emprego de administração porque acha que vai roubar por morar em favela. Já tem aquela visão já: morador de favela é favelado, é ladrão, é traficante. Então a maioria de coisas que tem na favela tem relação com o tráfico. Essa relação com a bandidagem.” (Morador da Maré, Rio de Janeiro)

O morador, em referência explícita às atividades de tráfico de drogas que acontecem nas favelas, aponta-as como responsável por diversos problemas que acometem aqueles que residem nesses mesmos espaços: confrontos com a polícia, brigas entre ‘facções criminosas’ e até dificuldades na busca por ‘empregos bons’. Aquilo que atribui como causa, Soares (2010) explica como conseqüência de um processo em curso na atualidade que transforma violência em sinônimo de pobreza. “Outro problema grave [...] é a idéia de que violência e criminalidade possam ser referidos no singular, como se houvesse uma só forma ou como se todas as formas pudessem ser sintetizadas em uma palavra e um conceito. A suposição é falsa e serve à reprodução das práticas estatais (na área da segurança pública e da política criminal) que se têm revelado opressivas, brutais e iníquas”4

Colaborando com essa discussão Fernandes (2005) apresenta um elemento crucial: o papel que vem sendo atribuído às atividades de tráfico de drogas que acontece nas favelas. O autor chama atenção para o fato de que, como o fenômeno da violência é encarado exclusivamente a partir dos atos relacionados ao tráfico de drogas e as favelas são um desses espaços nos quais ocorre compra e venda de substâncias ilegais, favela virou sinônimo de violência e isso acarreta uma série de conseqüências para aqueles que lá residem. “Diante disso, coloca-se a questão da cidadania dos moradores das favelas. Até que ponto a condição de insegurança lhes é um obstáculo ao direito à cidade? Até que ponto o estigma que lhes recai – como moradores de espaços historicamente associados à violência – os impede de se apropriar dos espaços da cidade e das oportunidades que a cidade cria em termos de mercado de trabalho, acesso à educação e cultura? Mais ainda, em que sentido a condição histórica das favelas [...] é um obstáculo para a implementação de políticas públicas integradas e, efetivamente, eficazes que possibilitem aos moradores uma vida digna e lhes confira a garantia de respeito aos seus direitos fundamentais enquanto cidadãos?” (FERNANDES, 2005: 39)

A partir de Barbosa (2008) é possível propor novos questionamentos acerca do quadro apresentado. A associação que é feita entre favela e violência ocorre em decorrência daquele ser um palco onde se concentram pessoas que, por motivos diversos, 4

Trecho de entrevista de Luiz Eduardo Soares ao site Le Monde Diplomatique Brasil. Disponível em: . Acesso 13.abr.11.

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BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P. G. Dispositivo-Favela, Relações de Poder e Produção de Subjetividade In: Subjetividades, Violência e Trajetória Juvenis. Rio de Janeiro : Gramma, 2014, p. 41-62. Impresso, ISBN: 9788598555683

dedicam-se a diferentes funções na compra e venda de substâncias ilícitas? Ou a escolha pelo combate majoritário do crime de envolvimento com o tráfico varejista de substâncias psicoativas pode estar relacionado ao fato desse acontecer principalmente nos espaços das favelas, empregando como força de trabalho quase exclusivamente aqueles que lá residem/trabalham? O autor acredita que o combate ao tráfico de drogas da forma como ocorre no Rio de Janeiro hoje se configura prioritariamente como um instrumento de controle das populações pobres. Uma das razões que apresenta para tal está pautada na diversidade de ‘tráficos de drogas’ (varejista, atacadista, nas favelas, nos portos e aeroportos, nos condomínios fechados) em operação na cidade atualmente, o que acaba mascarado tanto quando nominalmente todos são designados por ‘tráfico’, quanto quando se escolhe um deles (aquele varejista que ocorre nas favelas) para concentração das forças públicas de repressão ao crime. Para Coimbra (2001), tal cenário se explica como uma espécie de perpetuação de concepções tipicamente presentes no período de vigência da Ditadura Militar quando se encontrava em vigor a Doutrina de Segurança Nacional. No campo da segurança pública conservam-se discursos voltados ao combate ao ‘inimigo interno’, ainda que o ‘inimigo’ agora seja outro. A fala de um policial abaixo transcrita confirma essa idéia. “Você está lá, infelizmente com essa nossa visão militarizada, naquele momento é o inimigo que existe. Existe um inimigo ali dentro e nós estamos combatendo um inimigo. [...] O inimigo é a pessoa que está envolvida com o tráfico e armada. [...] O inimigo é o cara que está armado mesmo, é o cara que está pondo em risco a minha vida. Que pode me fazer cometer um erro também.” (Policial Militar, Rio de Janeiro)

Os autores citados acreditam que uma das marcas principais da relação que o Estado estabelece com os espaços populares de habitação, em especial as favelas, é a atenção majoritária ao aspecto da segurança pública (em sua vertente criminal), especialmente ao combate das atividades relacionadas à compra e venda de substâncias ilícitas. No trecho de uma das entrevistas feitas, um policial ratifica tal crença apontando que a dinâmica atual é tal que essas decisões justificam-se em nome da preservação de vidas e mais uma vez os efeitos de uma política são tratados como causas de outras. “olha, algumas vezes aconteceu como busca de veículos roubados que ficaram lá dentro, mas até isso já foi questionado. A questão do seguro e acho que algum iluminado pensou ‘vou colocar em risco meus policiais, ou a própria comunidade para buscar um carro, um BMW? Pô, mas o cara que tem um BMW deve ter um seguro.’ Não que o local não é para acontecer isso. A polícia

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tem que entrar e trazer o BMW, mas é que vale a pena o custo benefício disso? Uma vida humana vale a pena buscar um carro lá dentro? [...] Então realmente, é basicamente, 99.9% é em relação às questões das drogas mesmo. Não tem outro motivo para se entrar na favela. Imagina o Complexo do Alemão antigamente, antes da ocupação agora, da pacificação, imagina no meio lá em cima da Chatuba, daquela área ali uma briga de casal, uma mulher liga ‘pô, eu estou aqui com um conflito familiar, meu marido está me espancando’. Não tem como ir, né? A não ser que tivesse todo um aparato policial, uma guerra toda para entrar,” (Policial Militar, Rio de Janeiro)

E retomando a discussão sobre urbanidade, é possível afirmar, a partir de Fernandes (2005), que as ações do Estado nas favelas são marcadamente policiais, considerando o termo em amplo sentido: seja por meio da presença da polícia de fato, seja por meio de outras medidas com iguais intenções de controlar aquela população. Para o autor tal cenário pode ser explicado a partir dos interesses dos setores dominantes, que, por meio de discursos sobre a favela e seus moradores pretendem: marcar uma distinção entre os grupos sociais (transformação da diferença em desigualdade), expressa majoritariamente nos territórios da cidade (polícia como defensora da não ‘invasão’ de territórios); conter as classes populares para garantia de uma ordem pública (discurso criminalizante legitima ação policial); e promover um projeto de cidade comprometido com uma melhor reprodução social dos setores dominantes. Considerações Finais As discussões propostas, fruto de uma análise do dispositivo-favela, buscaram evidenciar algumas características e efeitos de relações de poder estabelecidas por moradores de favelas e policiais do Rio de Janeiro no momento atual. Essas discussões apontam produções de subjetividades que afetam tanto policiais quanto moradores de favelas e mantém estreita ligação com processos de criminalização relacionados ao tráfico varejista de psicoativos tidos como ilícitos. Dois aspectos destacam-se daí e merecem ser observados ainda que rapidamente. A primeira idéia a qual comumente os leitores remetem-se nas leituras sobre processos de criminalização é aquela que associa o termo à legislação, ou melhor, ao seu aspecto legal. No entanto, Foucault (2008) oferece-nos pistas para uma distinção conceitual entre incriminar e criminalizar. Enquanto o primeiro termo refere-se àqueles processos de separação dos indivíduos com base nas leis penais oficiais, o segundo diz sobre tantos outros processos que igualmente operam distinções entre a população sem, no entanto, estarem apoiados em mecanismos positivadamente formais. Os processos de

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BARBOSA, R. B.; BICALHO, P. P. G. Dispositivo-Favela, Relações de Poder e Produção de Subjetividade In: Subjetividades, Violência e Trajetória Juvenis. Rio de Janeiro : Gramma, 2014, p. 41-62. Impresso, ISBN: 9788598555683

criminalização estão pautados em subjetividades, em conjuntos de determinações sobre maneiras normalizadamente corretas de ser e existir. No universo que se apresenta a partir de dispositivo-favela, produções de ‘subjetividade-policial’ e ‘subjetividade-morador-de-favela’ estão recorrentemente sendo operadas a partir de mecanismos de regulação da vida, os quais nem sempre estão materializadas na forma da lei. E os agentes responsáveis pela operação dessas produções frequentemente surpreendem, haja vista que, ao contrário do que muitas vezes se espera, não apenas policiais criminalizam moradores de favelas como também são criminalizados pelos mesmos e até por outros policiais. Esse fato foi evidenciado nos diferentes trechos de entrevistas transcritos ao longo deste trabalho, trechos esses em que a condição para que se efetivem esses processos de criminalização não parece relacionar-se primeiramente ao grupo a que pertence o autor da fala (policial ou morador de favela), mas à ligação daquele de quem se fala com atividades relacionadas ao comércio varejista de psicoativos nas favelas. Por fim, esses argumentos parecem sinalizar a necessidade de formulação de questionamentos acerca do tratamento a assuntos referentes ao tráfico de drogas. Afinal, “O crime não é uma virtualidade que o interesse ou as paixões introduziram no coração de todos os homens, mas que é coisa quase exclusiva de uma classe social; que os criminosos, que antigamente eram encontrados em todas as classes sociais, saem agora ‘quase todos da última fileira da ordem social’” (FOUCAULT, 2009b: 261)

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