Dispositivos ubíquos de leitura, um passo além da escritura ou o retorno metafísico do livro?

May 31, 2017 | Autor: Elias Bitencourt | Categoria: Cultural Studies, Cibercultura, Livro Digital
Share Embed


Descrição do Produto

Jogos Eletrônicos, mobilidades e Educações Trilhas em construção

Jogos eletronicos e educacoes.indd 1

10/03/15 14:16

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Reitor João Carlos Salles Pires da Silva Vice-reitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira Assessor do Reitor Paulo Costa Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA Diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Conselho Editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Ninõ El-Hani Cleise Furtado Mendes Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria Vidal de Negreiros Camargo

Jogos eletronicos e educacoes.indd 2

10/03/15 14:16

Lynn Alves Jesse Nery Organizadores

Jogos Eletrônicos, mobilidades e Educações Trilhas em construção

Edufba Salvador, 2015

Jogos eletronicos e educacoes.indd 3

10/03/15 14:16

2015, autores. Direitos para esta edição cedidos à EDUFBA. Feito o depósito legal. Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1991, em vigor no Brasil desde 2009. Capa, Projeto Gráfico e Editoração Rodrigo Oyarzábal Schlabitz Revisão Eduardo Ross Normalização Adriana Caxiado

Sistema de Bibliotecas - UFBA Jogos eletrônicos, mobilidades e educações : trilhas em construção / Lynn Alves, Jesse Nery, organizadores. - Salvador : EDUFBA, 2015. 372 p. ISBN 978-85-232-1326-8 1. Tecnologia educacional. 2. Mídia digital. 3. Jogos educativos. 4. Inovações educacionais. I. Alves, Lynn. II. Nery, Jesse. CDD - 371.33

Editora filiada a

EDUFBA

Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina, 40170-115, Salvador-BA, Brasil Tel/fax: (71) 3283-6164 www.edufba.ufba.br | [email protected]

Jogos eletronicos e educacoes.indd 4

10/03/15 14:16

Sumário APRESENTAÇÃO | 7 Lynn Alves e Jesse Nery

TRILHA A – MOBILIDADE, TECNOLOGIAS E EDUCAÇÕES 1. EDUCAÇÃO E MOBILIDADE: DESAFIOS E PERSPECTIVAS A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DA REDE PÚBLICA MUNICIPAL DE SALVADOR – BAHIA | 15 Ezileide Santana, Jucileide Moraes e Mª Sigmar C. Passos

2. FRAGMENTOS QUE NARRAM: UM ESTUDO SOBRE TECNOLOGIAS MÓVEIS, NARRATIVAS E CURRÍCULO | 33 Daniel Marques, Isa Beatriz Nevese e Tatiana Paz

3. JOGOS EPISTÊMICOS: ESPAÇOS VIRTUAIS PARA O EXERCÍCIO DO PROFISSIONALISMO | 51 David Williamson Shaffer

4. DISPOSITIVOS UBÍQUOS DE LEITURA, UM PASSO ALÉM DA ESCRITURA OU O RETORNO METAFÍSICO DO LIVRO? | 59 Elias Bitencourt

5. CIBERNARRATIVAS DE SI: INTERFACEANDO EXPERIÊNCIAS SUBJETIVAS | 77 Ivana Carolina Souza

6. DISPOSITIVOS MÓVEIS E GAMIFICAÇÃO: INTERFACES LÚDICAS EM NOVAS PRÁTICAS EDUCATIVAS | 99 Tatiana Paz, Lygia Fuentes, Isa Nevese e Lynn Alves

7. O PORTFÓLIO ONLINE COMO DISPOSITIVO PARA A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE DO PROFESSOR REFLEXIVO | 115 Cláudia Regina Teixeira de Souza e Nohara Vanessa Figueiredo Alcântara Goes

TRILHA B – GAMES E SUAS INTERFACES 1. A JUVENTUDE CONECTADA – UM ESTADO DA ARTE | 139 Andersen Caribé, Ivana Souza, Janaína Rosado e Marcos Paulo Pessoa

2. ANTROPOLOGIA E GAME STUDIES: O GIRO CULTURAL NA ABORDAGEM SOBRE OS JOGOS ELETRÔNICOS | 157 Helyom Viana Telles

3. SOBRE LIVROS E GAMES: FUGINDO DAS ARMADILHAS DO ÓBVIO | 185 Aline Akemi Nagata

Jogos eletronicos e educacoes.indd 5

10/03/15 14:16

4. A GAMIFICAÇÃO DE CONTEÚDOS ESCOLARES: UMA EXPERIÊNCIA A PARTIR DA DIVERSIDADE CULTURAL BRASILEIRA | 205 Tatiane M. de O. Martins, Jesse Nery Filho, Frank Vieira dos Santos e Ewertton Carneiro Pontes

5. O USO DE JOGOS ELETRÔNICOS PARA O EXERCÍCIO DAS HABILIDADES COGNITIVAS: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA NO ENSINO FUNDAMENTAL | 225 Daniela Karine Ramos, Natália Lorenzetti Rocha, Maiara Lopes da Luz, Denise Silvestrin e Diego Schmaedech

6. PROCESSOS DE DESENVOLVIMENTO DE ROTEIROS PARA JOGOS DIGITAIS COM FINS EDUCATIVOS: CAMINHOS POSSÍVEIS ENTRE DINÂMICAS CRIATIVAS SINGULARES | 243 Gustavo Erick de Andrade e Lynn Alves

7. PRODUÇÃO DE GAMES NA ESCOLA: EM FOCO AS DIMENSÕES DA APRENDIZAGEM | 263 Sthenio Magalhães

8. CANUDOS – O GAME PEDAGÓGICO COMO ESTRATÉGIA DE CONTEXTUALIZAÇÃO DO MOVIMENTO DE CANUDOS | 281 Eveli Rayane da Silva Ramos e Iva Autina Cavalcante Lima Santos

9. KIMERA – CIDADES IMAGINÁRIAS: UM ENSAIO SOBRE AS PROPOSIÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS NO DESENVOLVIMENTO DO JOGO-SIMULADOR | 301 André Luiz Rezende, Fabiana Nascimento, Josemeire Machado Dias e Tânia Maria Hetkowski

10. POLÍTICAS COGNITIVAS, APRENDIZAGEM E VIDEOGAMES | 323 Póti Quartiero Gavillon e Cleci Maraschin

11. UM MODELO DE CLOUD GAMING PARA JOGOS DIGITAIS | 343 Alberto Vianna Dias da Silva, Lynn Rosalina Gama Alves e Josemar Rodrigues de Souza

SOBRE OS AUTORES | 359

Jogos eletronicos e educacoes.indd 6

10/03/15 14:16

4

Dispositivos ubíquos de leitura, um passo além da escritura ou o retorno metafísico do livro? Elias Bitencourt

Da portabilidade à ubiquidade: a questão do livro A história é uma grande fábrica de fetiches. Dos mitos orais, das fábulas escritas às verdades científicas, prevalece algo comum, a visão de quem conta. Assim, sem deixar, entretanto, de reconhecer a existência de outras versões dos fatos, a história “oficial” do livro é narrada a partir de personagens apaixonados pela tradição, amantes dos clássicos, eruditos e requintadamente inclinados para o belo. Dos copistas, passando por Gutenberg, Aldus Manuzios, Francesco Griffo, Simon de Colines, P. Simon Fournier, Giambatista Bodoni, John Baskerville e tantos outros personagens da história do livro e da tipografia, não faltam elogios que enalteçam, desde o seu “princípio”, o ofício do livro, a nobreza de quem colabora e os méritos da sua finalidade. Apesar de sacralizado pelas religiões do livro, o berço da brochura, ao menos na história por ela mesma difundida, definitivamente não foi uma manjedoura pobre em Belém. Diversamente, o livro poeticamente parece ter surgido e evoluído em um berço áureo, cercado de amantes, bajuladores, porta-vozes, amigos e autoridades que dedicaram suas vidas bravamente à construção de um legado de

59

Jogos eletronicos e educacoes.indd 59

10/03/15 14:16

honra, tradição, beleza e mitologia. Eles compuseram tesouros, legitimaram impérios, fizeram parte de inventários milionários, deixados em herança, e serviram de diferencial até para meretrizes.1 De Aristóteles a Umberto Eco, portanto, os motivos pelos quais os livros deveriam ser acumulados, cuidados ou admirados variam conforme os interesses de seus proprietários, produtores e distribuidores. Mesmo quando a brochura tornou-se popularizada, após o surgimento da impressa, flexibilizando as barreiras do acesso que a faziam ainda mais aristocrática, ela permaneceu como um forte capital simbólico que migrou para o ordinário cotidiano, determinando hábitos, reconfigurando espaços – advento das bibliotecas ou locais domésticos aclimatados para a leitura –, móveis e utensílios ao seu entorno. Acerca dessa questão, Manguel (1997, p. 166-167) relata que: Na Europa dos séculos XVII e XVIII, pressupunha-se que os livros deveriam ser lidos no interior de uma biblioteca pública ou particular. No século seguinte, os editores publicavam livros feitos especialmente para viajar. Na Inglaterra, a nova burguesia desocupada e a expansão das ferrovias combinaram-se para criar um súbito anseio por viagens longas, e os viajantes letrados descobriram que precisavam de material de leitura com conteúdo e tamanhos específicos. (Um século depois, meu pai ainda fazia distinção entre os livros encadernados em couro verde de sua biblioteca, os quais ninguém tinha permissão para retirar daquele santuário, e as ‘brochuras ordinárias’ que ele deixava amarelar e fenecer sob a mesa de vime do pátio [...].

Não seria de se estranhar, então, que a popularização de tal aclamada tecnologia do conhecimento demandasse instrumentos voltados ao seu acolhimento, valorização ou otimização nas diferentes práticas que envolveram o livro. De estratégias para o armazenamento e catalogação, mobiliários para propiciar o conforto à leitura (cadeira de rinha, cama grega), às ferramentas que otimizassem a leitura de múltiplos títulos ao mesmo tempo – como a clássica máquina de leitura de Algostino Ramelli –, o que se presenciou foi uma transformação cultural recursiva e autorreferente que acolheu o livro e o legitimou como lugar de destaque a 1

Manguel (1997) comenta sobre o registro de uma certa madame de codinome Lucrezia Squarcia que, no volume Lista de Preços das Prostitutas de Veneza, de 1536, se apresentava em meio às concorrentes, não por atributos físicos, mas como uma amante da poesia que “sempre traz consigo um livreto de Petrarca, um Virgílio e às vezes até um Homero.” (MANGUEL, 1997, p. 162)

60

Jogos eletronicos e educacoes.indd 60

Jogos eletrônicos, mobilidades e educações

10/03/15 14:16

partir de ferramentais simbólicos e artefatos culturais a ele orientados. Ademais, mesmo reconhecendo a evolução da mobilidade da brochura, que aos poucos deixou o clássico formato in-folio para galgar dimensões menores, conferindo mais flexibilidade e portabilidade ao livro, sua dimensão informacional e os modos de acessá-la permaneceram estáticas. O conteúdo escrito, concebido por um autor e dirigido a um leitor-modelo, se apresentava através de um encadeamento lógico pré-definido e gozava do apoio de estratégias compositivas e estruturais da concepção da brochura. Na contemporaneidade, entretanto, o livro se desprende do suporte, que sempre reverenciou, para se plasmar/atualizar através das interfaces cognitivas (ROCHA, 2010) dos atuais dispositivos móveis de leitura. Acerca destes, aparentemente distantes dos padrões normativos do suporte que o legitimou, o acesso ao conteúdo livresco é atravessado pela ubiquidade, um diferencial em relação aos suportes até então reconhecidos pela cultura livresca. De outra forma, ao pensar o objeto livro, voltado ao contexto da mobilidade, não se pode reduzir a questão do suporte informacional a uma mera questão de ordem técnica. Os dispositivos ubíquos de acomodação da matéria livresca estão longe de ser apenas “dispositivos que permitem a comunicação oral, mas sim um sistema de comunicação multimodal, multimídia e portátil”. (SANTAELLA, 2013) Sistemas esses cujos ordenamentos informacionais são definidos a partir de roteiros à la carte que carregam em si narrativas que permitem procedimentos particulares de acesso/recepção da informação por eles mediada. Outrossim, ao se disponibilizar a informação sob esses meios – mais frequentemente associados a narrativas distintas dos livros tradicionais –, também a leitura passa a assimilar padrões e modelos de realização de tarefa menos vinculados à cultura livresca e mais próximos dos repertórios comportamentais das redes sociais, jogos eletrônicos e dispositivos multimidiáticos. Ao acomodar-se sobre os citados suportes ubíquos, portanto, o livro, tal qual foi culturalmente internalizado, é paradoxalmente contaminado por lógicas opostas às dicotomias historicistas que o conceberam e que, se ainda não possibilitaram uma emancipação das amarras das tradições fonocêntricas da escrita/imprensa, ao menos permitem experimentações e diálogos transmidiáticos entre narrativas. Assim, acerca da relação livro-leitor-leitura na contemporaneidade, não há como desconsiderar que a “mobilidade física do cidadão cosmopolita foi acrescida

Dispositivos ubíquos de leitura...

Jogos eletronicos e educacoes.indd 61

61

10/03/15 14:16

à mobilidade virtual das redes. Ambas as mobilidades entrelaçam-se, interconectam-se e tornaram-se mais agudas pelas ações de uma sobre a outra”, (SANTAELLA, 2013) produzindo uma hipermobilidade (SANTAELLA, 2010, 2013) e uma consequente mudança no perfil cognitivo dos leitores-modelos cibernativos. Isto posto, as narrativas livrescas, quando repousadas sob tais plataformas móveis de acesso/conexão, são contaminadas pelas características do meio, distinguindo-se daquelas sob as quais tradicionalmente se acomodou. A presente investigação, então, toma como corpus de reflexão a categoria dos dispositivos ubíquos de leitura – Kobo (Kobo) e o Kindle (da Amazon) –, cujas interfaces físicas e perceptivas, (ROCHA, 2009) diferentemente daquelas orientadas para execução de múltiplas tarefas, como as tablets e smartphones, se apresentam notadamente focadas e inclinadas a uma otimização do ato de ler através de simulação claramente alusiva aos materiais e experiências do livro impresso. Tal escolha se deu pelo fato de se observar que, mesmo reconhecendo-se os esforços de se emular a brochura impressa – através de processos maquínicos que simulam a experiência do papel em tela, como prometem as telas e-ink –, tais plataformas gozam antes de uma infraestrutura viabilizada por banco de dados e algoritmos curadores capazes de mapear comportamentos de leitura, registrar perfis de usuário e sugerir títulos para compra, proporcionando experiências mais condizentes com o meio digital. Outrossim, se, de um lado, o livro-arquivo (pdf, epub, etc.), apresentado em um Kindle, por exemplo, assemelha-se com o impresso, tanto no quesito formal – dimensões, formatos, mancha gráfica, etc – quanto na experiência – telas sem iluminação que simulam a experiência física da leitura no impresso, etc. –, de outro, a infraestrutura utilizada para disponibilizar/permitir acesso à informação-livro faz uso de dados da experiência de uso de cada leitor, potencializando estratégias de produção, distribuição e acesso mais próximas à lógica pós-massiva do que propriamente aquelas recorrentes na cultura tradicional do livro, da escrita, das bibliotecas e das livrarias. Desse modo, os dispositivos ubíquos de acomodação da matéria livresca focados na leitura, diversamente dos demais hardwares multitarefa ou livros aplicativos (FLEXOR, 2012) programados para aproveitamento otimizado desses hardwares, parecem apontar para um híbrido-transitório, um espaço contaminado, de passagem entre a tradição editorial e as mudanças paradigmáticas provocadas pela

62

Jogos eletronicos e educacoes.indd 62

Jogos eletrônicos, mobilidades e educações

10/03/15 14:16

cultura digital, necessitando, por isso, de uma análise mais pormenorizada dos seus modos de funcionamentos e potencialidades. Nesse sentido, o artigo em questão tem como objetivo problematizar as transformações ocorridas no livro – e suas respectivas implicações para os modos de disponibilização e acesso da informação – quando da sua apresentação nesses referidos dispositivos ubíquos de leitura. Para tal, tomando como objetos de reflexão os supracitados hardwares e respectivos softwares, a pesquisa, metodologicamente, adota o raciocínio lógico indutivo, fazendo uso de pesquisa bibliográfica e procedimentos de análise e síntese, buscando, assim, levantar possíveis argumentos e características aplicáveis ao campo geral dos estudos relacionados à Cultura Digital, ao livro e a outros produtos culturais possíveis.

A metafísica do livro Do silêncio de um Deus se fez o verbo, que encarnou-se livro, pensou-se códice, sagrou-se santo e calou a todos que puseram-se a experimentá-lo como Outro. Da violência do traço, a serviço dos primeiros registros escritos, aos cânones do pensamento científico moderno, apresentam-se a fala, a escrita e o livro como protagonistas de um sistema que se concebeu, por excelência, autorreferente. Nas palavras de Derrida, a respeito da concepção de livro em Jabès, “não se sai do livro a não ser no livro [...] o livro não está no mundo, mas o mundo no livro”, (DERRIDA, 1995, p. 69) nota-se tamanha referência à estrutura que fez da brochura um produto, uma ideia que atravessou mais que territórios, gerações. Se a verdade transcendente contida na fala (ARISTÓTELES apud DERRIDA, 1976) reproduz-se na escrita que determina, ontologicamente, a ideia de livro e o lugar do livro na cultura, então não somente o livro materializa os princípios semiológicos contidos no signo linguístico saussurianos que transporta, mas, principalmente, se mostra a serviço de uma metafísica ocidental que lhe é anterior. (DERRIDA, 1976) Nesse sentido, há muito mais por detrás da lógica serial com que se organizam as páginas ou se arrumam os volumes em uma estante da biblioteca. O jogo de forças culturais que formaram o livro é, também, o jogo da escritura sob a qual o livro reproduz o logocentrismo europeu, a partir do borramento das possibilidades que ameaçam o centro ao redor do qual se estruturou o pensamento moderno, conforme termos derridianos.

Dispositivos ubíquos de leitura...

Jogos eletronicos e educacoes.indd 63

63

10/03/15 14:16

Por conseguinte, ao reconhecer a legitimidade produzida pelo livro – e também dele produtora –, quaisquer tentativas de flexibilizar a estrutura da brochura, seja no campo das ideias ou na sua dita materialidade, estarão longe de figurar enquanto experimentações evocadas ao sabor das novidades de cada formação cultural. (SANTAELLA, 2004) Antes, (re)pensar o livro é (re)pensar os princípios que subjazem os modos pelos quais internalizamos e comunicamos o mundo a partir da linguagem. Se a leitura do mundo começa com a leitura da “palavramundo”, (FREIRE, 1989) então refletir – reflectere – o livro é rever a estruturalidade da estrutura derridiana presente na escritura e dobrar – indiretamente – o suposto eixo transcendente ao redor do qual se organiza a metafísica ocidental. Metafísica esta da qual, já nos advertia Jaques Derrida, é impossível fugir. Não se toca em questões de natureza ontológica, portanto, sem algum nível de resistência inversamente proporcional à energia investida nessa tarefa. Não seria de se estranhar, então, que, em uma era onde se celebra a mobilidade informacional e física dos usuários, a tecnologia do livro fosse facilmente associada a um passado remoto de prensas e tipografia, cuja aura de sacralidade se mostrasse ameaçada pelos discursos apocalípticos apregoados pelo fetiche das novas mídias. Contudo, entre o substrato mais remoto de um códice, um aparelho de rádio, uma televisão ou mesmo um blu-ray, existem mais analogias e similitudes que se possa imaginar. Do surgimento da escrita à sistematização da imprensa, ou o aparecimento dos meios de massa, a lógica implícita nos referidos processos midiáticos mantém a citada relação assimétrica logocêntrica, presente nos binômios fala/escrita, escrita/suporte ou emissor/receptor, recorrente nos meios de massa. Seja através de um tubo de raios catódicos ou por meio de uma sequência de páginas, existe uma hierarquia explícita entre emissor/telespectador e autor/ leitor na qual o primeiro, embora legitimado pelo segundo, acaba por determinar e dirigir os processos de recepção e acesso da informação pelo leitor/espectador. Mesmo estando separados por quase cinco séculos, o livro e a televisão (por exemplo) carregam, implicitamente, modelos assimétricos (e dicotômicos) análogos no modo de difundir a informação. Modelos estes que acabaram por definir/reproduzir toda uma lógica de produção, armazenamento, distribuição e acesso à informação, que se perpetua mesmo após a chegada das tecnologias do descartável e do disponível, características da cultura das mídias. (SANTAELLA, 2004)

64

Jogos eletronicos e educacoes.indd 64

Jogos eletrônicos, mobilidades e educações

10/03/15 14:16

Dessa maneira, embora se reconheçam os processos evolutivos que acabaram por hipercomplexificar os princípios semióticos, presentes nos adventos tecnológicos que marcaram diferentes formações culturais, (SANTAELLA, 2004) há de se considerar o continuum que sinalizaria para o mito do eterno retorno (NIETZSCHE, 2001) da citada metafísica, sob o rótulo da novidade. A velocidade de transformação dos fenômenos midiáticos vem apontando para uma substituição (ou evolução) paulatina dos modelos universais e totalizantes, (LÈVY, 1999) estabelecidos pela escrita – e replicados pela mídia de massa –, por processos mais colaborativos que sugerem uma inversão no polo da emissão. (LEMOS, 2009) Nesse sentido, cabe questionar se os tradicionais modelos, ontologicamente derivados da lógica fonocêntrica, (DERRIDA, 1976) estariam, aos poucos, migrando para modelos autoecoorganizados, (MORIN, 2011) revelando a estruturalidade da estrutura (DERRIDA, 1995) e denunciando, a partir da emancipação do usuário à condição de foco, (SANTAELLA, 2004, 2010) a pluralidade de centros-possíveis. E mais, será que os pressupostos de acesso à informação, fundamentados no logocentrismo historicista, que encontrou, nas diferentes mídias criadas, ferramentas de perpetuação do jogo metafísico, estariam, supostamente, sendo postos à prova pelas novas modalidades de economias das trocas simbólicas da informação na era digital? (SANTAELLA, 2004)

A escritura digital do ebook Apesar das previsões sobre o fim do livro impresso ou da hipotética canibalização do mercado das brochuras pela comercialização dos chamados ebooks, os dados e relatórios comerciais das grandes empresas representantes do setor apontam para um cenário diferente. A canadense Kobo reportou que seu negócio de vendas de livros eletrônicos, em 2012, teve um aumento nas vendas na casa dos 400% para ebooks e 160% para os e-readers, em relação ao mesmo período em 2011, contrariando as expectativas do setor. Do mesmo modo, a Amazon – pioneira no comércio eletrônico de livros digitais – alega que dois anos após o lançamento do Kindle, para cada 100 livros (hardcover e paperback) impressos comercializados, 114 ebooks são baixados dos servidores da empresa.2

2

Segundo o relatório anual da amazon (disponível em: . Acesso em: 23 mai. 2013) e declarações feitas na mídia (. Acesso em: 08 abr. 2013), esses dados incluem as vendas dos livros impressos que não possuem versão para o Kindle, mas excluem os livros eletrônicos gratuitos. 3

O relatório Rise of e-reading está disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2013.

66

Jogos eletronicos e educacoes.indd 66

Jogos eletrônicos, mobilidades e educações

10/03/15 14:16

trônicos de leitura e os livros impressos. Contrariamente ao que se possa deduzir, as referidas pesquisas demonstram que os portadores desses hardwares de leitura não apenas leem mais, como se mostram mais abertos e flexíveis para ler em diversas modalidades, quando comparados com os tradicionais leitores da brochura. A maioria dos entrevistados,4 proprietários de dispositivos ubíquos de leitura, não só apresentou maiores índices de leitura – uma média de 24 livros/ano contra 15 livros/ano dos que afirmam não consumir ebooks –, como se mostrou mais flexível para ler em diversos formatos – 88% dos leitores de livros digitais afirmam ter lido também livros impressos. Nesse sentido, contrariando as expectativas e pressuposições, se os dispositivos ubíquos de leitura estão produzindo mudanças significativas na cultura livresca, certamente, ao que parece, sugerem uma ampliação dos modos de acesso à informação e um dado reforço/manutenção do objeto livro como tecnologia de informação, independente dos seus distintos modos de apresentação e respectivos suportes sob os quais se acomoda. Dito de outra forma, há de se reconhecer que o livro, diferentemente de outras tecnologias que caíram em desuso quando do choques culturais promovidos por adventos posteriores, permanece autorreferente e referendado mesmo por processos autopoiéticos de escrita algorítmica, (MATURANA; VARELA; ACUÑA LLORENS, 1997; MANOVICH, 2002) meios e lógicas pós-massivas (NEGROPONTE, 1995) que aparentemente divergem da sua base ontológica logocêntrica. (DERRIDA, 1976) Contudo, há de se considerar, diante desse cenário em expansão, algumas especificidades do referido objeto livresco, bem como os possíveis adventos que potencializaram a popularização do ebook a ponto de torná-lo um negócio promissor no comércio editorial. Em primeira mão, cabe reconhecer que o objeto ebook relatado neste texto, distintamente de outras modalidades de livros digitais, refere-se à categoria dos livros-arquivo proposta por Flexor (2012) que, por conseguinte, demanda duas outras categorias apresentadas pela autora – os softwares de leitura e hardwares de leitura, respectivamente – para fins de sua disponibilização. Nesse sentido, não há como desvincular o crescimento notório do mercado de

4

A pesquisa foi realizada a partir de entrevistas com 2.986 americanos com idade acima de 16 anos, entre 16/11/2011 e 21/12/2011; 5 a 8/01 e 12 a 15/01/2012; 19/01 e 20/01/2012. Para maiores esclarecimentos metodológicos, consultar o relatório de pesquisa disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2013.

Dispositivos ubíquos de leitura...

Jogos eletronicos e educacoes.indd 67

67

10/03/15 14:16

ebooks do advento das tecnologias ubíquas de acesso e seus respectivos softwares/ interfaces de visualização. Nesses termos, os gadgets de leitura são, ao mesmo tempo, a interface do produto/serviço comercializado e, também, lugar de comercialização. Um produtoferramenta que, juntamente aos algoritmos curadores e bancos de dados, compõe a infraestrutura do comércio eletrônico no setor. Entretanto, se tais composições parecem, em uma primeira análise, previsíveis e comuns para o contexto do e-commerce em geral, o ambiente maquínico dos suportes de leitura ubíquos e as respectivas linguagens que mediam a conectividade e a convergência entre os diferentes meios que compõem as plataformas de comércio/leitura do livro digital afetam, de modo particular, a natureza do objeto em questão, impactando não apenas seus modos de distribuição, mas, principalmente, o acesso e produção da informação no referido contexto. A disponibilização informacional do livro digital não mais se apresenta repousada sob um suporte passivo. Do contrário, os algoritmos, que viabilizam a apresentação do conteúdo nas telas dos dispositivos de leitura, fazem parte de um conjunto de ferramentas da mesma natureza, também capazes de mapear não apenas os perfis de compra, mas os hábitos de leitura e comportamentos particulares de cada usuário. Assim, o livro também se configura como porta de entrada para a informação de perfil/comportamento/hábito de cada leitor, alimentando um banco de dados que será posteriormente visitado, escrutinado e articulado a outros presentes na rede, por meio de ferramentas curatoriais algorítmicas. Fatos estes que viabilizam uma infraestrutura referendada em registros tão particulares de comportamento de acesso, capazes de servir de base para processos de remediação (BOLTER; GRUSIN, 2002) em narrativas sob demanda e, por conseguinte, um possível repurpose (BOLTER; GRUSIN, 2002) do próprio livro em si. Se a escritura está para a fala como o livro está para a escritura, ambos reproduzindo a metafísica ocidental denunciada por Derrida, (1976, 1995) então há de se observar os reflexos, na estrutura e nos modos de configuração do livro na cibercultura, dessa escritura informática, cuja sintaxe é orientada a objetos e bancos de dados. Se, nas palavras de Manovich (2002, p. 226, tradução nossa), O desenvolvimento de trabalhos para as novas mídias pode ser entendido como a construção de uma interface para um banco de

68

Jogos eletronicos e educacoes.indd 68

Jogos eletrônicos, mobilidades e educações

10/03/15 14:16

dados. De modo elementar, a interface simplesmente promove o acesso a um banco de dados a ela subjacente.5

Então a estruturalidade da estrutura (DERRIDA, 1995) do ebook se revela não apenas nos estratagemas fonocêntricos implícitos na escrita que forjou a cultura livresca, mas, principalmente, em um logocentrismo encapsulado, a partir de uma escritura algorítmica subjacente à criação dos bancos de dados e respectivas ferramentas de acesso a estes. Dito de outro modo, se a escrita carregou a aura estigmatizada da verdade pneumática6 aristotélica associada à fala e reproduziu a metafísica ocidental através de ferramentais de borramento da estrutura como o modelo códice, também os algoritmos e banco de dados borram essa referida estruturalidade por meio do estigma de neutralidade e autonomia a eles conferido, deslocando os questionamentos críticos a respeito das lógicas centrais que estão por detrás da programação. Neste sentido, parece oportuno tomar como categoria de análise esses ditos dispositivos ubíquos de leitura que, se de um lado apresentam-se como o duplo da brochura impressa no meio digital, de outro, são um ponto de venda com especificidades muito potentes. Diz-se isso pelo fato de que estes, apesar de enaltecerem como diferenciais as características que aludem/simulam os suportes do livro impresso – telas sem iluminação com tintas eletrônica, leveza, formatos e dimensões recorrentes no segmento editorial –, se presentificam sob suportes que, como já dito, além de permitirem a mobilidade informacional e física já comentadas por Santaella (2013), integram recursos, linguagens e processos comumente associados à pós-massividade. (NEGROPONTE, 1995) Recursos esses que, inclusive, por lançarem mão de ferramentas algorítmicas de curadoria e captura de dados, permitem,

5

Original: “creating a work in new media can be understood as the construction of an interface to a database. In the simplest case, the interface simply provides access to the underlying database.”

6

Em “gramatologia”, Derrida (1976) alerta para o privilégio da phoné na metafísica ocidental. Retomado as associações aristotélicas entre a voz e os significados da alma, tal qual as palavras escritas e os símbolos das palavras emitidas pela voz. Neste sentido, para Aristóteles, sendo a voz a produtora dos primeiros significantes, ela não poderia igualar-se aos demais, evocando para si o estatuto de “estado da alma”. Dentro dessa perspectiva, todo significante, “e em primeiro lugar o significante escrito, seria derivado. Seria sempre técnico e representativo. Não teria nenhum sentido constituinte”. (DERRIDA, 1976, p. 14) Como consequência, se a noção de signo saussuriano implicaria na distinção do significado e do significante, o referido conceito permaneceria na descendência do logocentrismo que acaba por também figurar enquanto um fonocentrismo: “a proximidade absoluta da voz e do ser, da voz e da idealidade do sentido.” (DERRIDA, 1976, p. 14)

Dispositivos ubíquos de leitura...

Jogos eletronicos e educacoes.indd 69

69

10/03/15 14:16

agora, no livro, níveis de mapeamentos dos modos de acesso à informação sem precedentes na cultura livresca. Faz-se digno de nota, aqui, o fato de que os dispositivos ubíquos de leitura, diferentemente dos seus predecessores, não se configuram mais enquanto um simples ponto de acesso ao livro-informação. Dada a emergência de uma pluralidade de gadgets, orientados aos mais distintos fins e dotados também de lógicas e culturas próprias, (SANTAELLA, 2004) o livro digital precisa ser onipresente, convergir entre os múltiplos locais e dispositivos de acesso disponíveis. Nesse fazer, ele não se configura mais a partir do binômio fixo informação/suporte, mas através de uma relação devir-informação/plataforma de leitura. Assim, um dispositivo Kindle ou um Kobo não deveriam ser tomados metonimicamente apenas como os suportes de leitura, mas parte de uma infraestrutura que permite a leitura, a produção textual, o consumo e uma cartografia de todos os hábitos e comportamentos que envolvem tais práticas. O banco de dados se tornou o centro do processo criativo na era computacional. Historicamente os artistas desenvolviam um trabalho único, em um suporte específico. Portanto, a interface e o trabalho eram uma só coisa; em outras palavras, o nível da interface não existia. Com a nova mídia, o conteúdo do trabalho e a interface estão separados. Neste sentido é possível criar diferentes interfaces para um mesmo material. Essas interfaces podem apresentar diferentes versões do mesmo trabalho. (MANOVICH, 2002, p. 227, tradução nossa)7

Por conseguinte, na condição de plataforma de leitura integrada, esses hardwares de leitura permitem, na medida em que apresentam o livro para o leitor, uma interconexão imediata entre bancos de dados, viabilizando e complexificando as estratégias algorítmicas em um ecossistema de trocas simbólicas assistidas. Dessa forma, se não é possível desconectar conceitualmente o ebook do quatrilho hardware de leitura, software de leitura, arquivo e plataforma comercial, também não é possível compreender os dispositivos Kindle ou o Kobo como suportes de leitura desvinculados dos recursos que estruturam e, em boa medida, justificam 7

Original: “The database becomes the center of the creative process in the computer age. Historically, the artist made a unique work within a particular medium. Therefore the interface and the work were the same; in other words, the level of an interface did not exist. With new media, the content of the work and the interface are separated. It is therefore possible to create different interfaces to the same material. These interfaces may present different versions of the same work”.

70

Jogos eletronicos e educacoes.indd 70

Jogos eletrônicos, mobilidades e educações

10/03/15 14:16

a existência desses hardwares. Se não existe ebook sem arquivo para ser lido, sem hardware para lê-lo, sem interface para visualização de dados, também não existe Kindle sem Kindle Public Notes/Highlights, Amazon Direct Publish, Kindle User Profile na web e na Amazon.com. Do mesmo modo que não se concebe o Kobo Reader sem seus serviços de integração social: Kobo Reader Life, Kobo Pulse, Kobo Writing Life e, no caso do Brasil, a Livraria Cultura. Diferentemente do livro impresso, portanto, o ebook, se acomoda não mais sob um suporte físico imediato, mas sob um ecossistema social fluido viabilizado por uma escritura numérica e modular, (MANOVICH, 2002) que permite a apresentação/acesso à informação a partir de trajetórias e modalidades em potência. Se tais condições fazem desse livro um espaço de troca assistida, socialmente organizada a partir de modelos pós-massivos, de outra forma também parecem manter disfarçada a estruturalidade da estrutura, (DERRIDA, 1995) presente nas orientações que antecedem o ato da programação e da escrita do código, a metafísica ocidental derridiana. Assim, os livros acomodados sob os dispositivos ubíquos são também leitores dos usuários que os leem, coletando dados e alimentando fontes que permitem uma evolução/construção/adaptação informacional sob demanda, em uma espécie de poiesis auto-orientada que parece literalizar a fala de Jàbes: “[...] não se sai do livro a não ser no livro”. (DERRIDA, 1995, p. 69) O ebook, ao que parece, deixa, aos poucos, o lugar de fonte unilateral de saberes para funcionar como espaço de troca informacional imediata, ainda que os conteúdos cambiados não digam necessariamente de uma vinculação exclusiva para com a matéria literária. Nas palavras de Manovich: (2002, p. 37, tradução nossa) “Nos [...] suportes informáticos, essa imediaticidade é real. [...] a mesma máquina é usada como expositor e fábrica, [...] o mesmo computador gera e exibe a mídia – e [...] o meio existe não como um objeto material, mas como dado [...]”.8 Nesse sentido, o ebook configura-se como espaço de visualização e, também, de produção de dados. Uma fonte de informação pré-escrita pelo autor e uma isca de dados para usuários/leitores que, como alerta Manovich (2002), através da lógica do banco de dados presente nas entrelinhas da estrutura, alimentam uma base modular passível de permitir a construção variável de futuras narrativas sob 8

Original: “in […] computer media, such immediacy is reality. […] the same machine is used as both showroom and factory, […] the same computer generates and displays media – and […] the media exists not as a material object but as data […]”.

Dispositivos ubíquos de leitura...

Jogos eletronicos e educacoes.indd 71

71

10/03/15 14:16

demanda. Por detrás de uma Public Note ou Public Highlight no Kindle ou no Kobo, existe uma infraestrutura que articula os dados que um leitor julga relevante com todos os outros dados de igual destaque naquele título, em outros títulos da biblioteca pessoal e/ou repercussão na rede social, permitindo a sugestão de conteúdos análogos presentes no catálogo de vendas e a produção futura de narrativas alimentadas/contextualizadas pelo acesso. Entretanto, tais grifos sociais, de modo análogo ao conceito de interpelação de Althusser, (MANOVICH, 2002) carregam um alto potencial sugestivo à adoção de lógicas e associações pré-programadas que interferem na percepção e modos de acesso ao conteúdo a partir de baremas pré-legitimados. Processos esses que, se de um lado sugerem aproximações às lógicas pós-massivas, de outro, parecem remontar a estruturalidade da estrutura, (DERRIDA, 1995) organizada ao redor de um eixo que transcende a escritura do texto e a determina ontologicamente através das orientações implícitas no ato de escrever o código que viabiliza a informação em tela. Portanto, se o ato de marcação/notas coletivas aponta para uma potência de socialização e encontro na/através da narrativa, então, ao se apresentar como dado pré-selecionado algoritmicamente sob o crivo de um coletivo de leitores – rico em número e aderência ao conteúdo específico –, a informação já traz consigo também as diretrizes que hierarquizam e orientam previamente o ato do acesso/recepção. Remonta-se, assim, em tempos de inversão dos polos de emissão, (LEMOS, 2009) a reprodução da assimetria logocêntrica da metafísica derridiana em uma escritura digital de algoritmos e bancos de dados. Diz-se isso pois cabe reconhecer que a estrutura algorítmica que viabiliza a visualização/disposição dos dados marcados é a mesma que, ao ser selecionada (por indução ou não), alimenta o banco de dados que irá potencializar as interpelações futuras na narrativa e cujos sujeitos atuantes não foram os leitores, mas os autores do código que compõe a caixa-preta (FLUSSER, 2007) do sistema.

Considerações finais Cabe reconhecer, por conseguinte, que tais problemáticas levantadas parecem apontar, em primeiras análises, para o provável retorno da metafísica ocidental que concebeu o livro, mesmo quando da sua contaminação com as lógicas pós -massivas presentes nos dispositivos ubíquos de acomodação da matéria livresca.

72

Jogos eletronicos e educacoes.indd 72

Jogos eletrônicos, mobilidades e educações

10/03/15 14:16

Diferentemente, portanto, da ideia de que os produtos nativos da cultura digital geralmente espelham o conceito de inteligências coletivas (LÈVY, 1998) e os modelos todos-todos de socialização da informação (LEMOS, 2009), a lógica reproduzida pela escritura dos algoritmos parece, em primeira mão, repetir, sob outras roupagens, os mecanismos de borramento da estrutura realizados pela escritura no livro escrito/impresso. À guisa de considerações finais, recobram-se as discussões apresentadas, recordando-se os vetores culturais que permitiram a construção social do livro e a partir dos quais se questionou as possíveis transformações no objeto, quando da sua contaminação nos suportes ubíquos de leitura próprios da Cultura Digital. Nesse sentido, reconhece-se as especificidades do meio que se apresenta como possibilidade para a acomodação da matéria livresca, em contextos de mobilidade informacional e física, embora ainda se questione, ao menos no atual momento, a reprodução, no livro, dos modelos culturais pós-massivos defendidos por Lemos (2009) e Santaella (2004, 2010, 2013). Ademais, ao se problematizar acerca das bases ontológicas dos ambientes informáticos – algoritmo e bancos de dados – defendidas por Manovich (2002), buscou-se verificar possíveis reproduções dos modelos logocêntricos da metafísica ocidental, propostos por Jaques Derrida (1976, 1995), quando do aparecimento de uma escritura digital que se pensa autopoiética (MATURANA E VARELA, 1997) e capaz de promover, no ebook, o jogo da estrutura. (DERRIDA, 1995) Por fim, sinaliza-se para o fato de que os citados processos de informatização do livro envolvem, para além das questões já levantadas, reflexos em dimensões constitutivas das produções simbólicas humanas, carecendo, então, de análises e projeções destas discussões para outras esferas da sociedade. Se a história cuidou de elevar o livro à condição de modelo, as tecnologias e a cultura parecem também referendar sua condição ativa na consolidação dos modos de pensar, produzir, armazenar e acessar a informação ao longo de tantas eras. Problematizar o livro e seu duplo digital, o ebook, portanto, é um dos caminhos possíveis para se refletir acerca das novas configurações da economia de trocas simbólicas na contemporaneidade.

Referências BOLTER, J. D.; GRUSIN, R. Remediation: understanding new media. Cambridge and London: MIT Press, 2002.

Dispositivos ubíquos de leitura...

Jogos eletronicos e educacoes.indd 73

73

10/03/15 14:16

DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995. DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1976. DERRIDA, J. Papel Máquina. São Paulo: Estação Liberdades, 2004. FLEXOR, C. O. Appbook raízes: bibliogênese e devir livro. 21 de setembro de 2012. 180 páginas. Mestrado (Dissertação) - Faculdade de Artes Visuais, FAV, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012. FLEXOR, C.; BITENCOURT, E.; ROCHA, C. O leitor contemporâneo e os novos dispositivos de acomodação livresca. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE ARTE E TECNOLOGIA, 10., 2011, Brasília. Anais... Brasília: UnB, 2011a. v.1. FLEXOR, C.; BITENCOURT, E.; ROCHA, C. Um ensaio sobre a experiência de leitura e o devir do livro eletrônico. In: SEMINÁRIO NACIONAL DE PESQUISA EM CULTURA VISUAL, 2011, Goiânia, Anais... Goiânia: UFG, 2011b. v. 1. FLUSSER, V. A filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Relume-Dumara, 2007. FREIRE, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989. GRAU, O. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: UNESP, 2007. LEMOS, A. Mídias locativas e territórios informacionais. In: AFANTES, P. (Org.). Estéticas tecnológicas: novos modos de sentir. São Paulo: EDUC, 2008. LEMOS, A. Ciber-cultura-remix. In: SEMINÁRIO SENTIDOS E PROCESSOS, Mostra cinético digital. São Paulo: Itaú Cultural, 2005. LEMOS, A. Cidade e mobilidade: telefones celulares, funções pós-massivas e territórios informacionais. Matrizes, revista do programa de pós-graduação em ciências da comunicação, São Paulo, ano 1, n. 1, p. 121-137. 2007. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2013. LEMOS, A. Cibercultura como território recombinante. In: A cibercultura e seu espelho, p. 38-46. São Paulo: ABCiber, Instituto Itaú Cultural, 2009. LEMOS, A. Dispositivos de leitura eletrônicos. Revista Comunicação, Mídia e Consumo (CMC), São Paulo, v. 9, n. 24, p. 115-131, 2007. LÉVY. P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 1998. LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. MANGUEL, A. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das letras, 1997. MANOVICH, L. The language of the new media. Kindle Version. MIT Press, 2002. Versão impressa.

74

Jogos eletronicos e educacoes.indd 74

Jogos eletrônicos, mobilidades e educações

10/03/15 14:16

MANOVICH, L. Media after software. 2012. Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2013. MARTIN, H.-J. The french book. Religion, absolutism and readership, 1585-1715. London: The Johns Hopkins University Press, 1996. MARTIN, H.-J. The history and power of writing. Chicago: The University of Chicago Press, 1988. MATURANA R. H.; VARELA GARCIA, F. J.; ACUÑA LLORENS, J. De máquinas e seres vivos: autopoiese, a organização do vivo. 3.ed. Porto Alegre: Artes Médicas: 1997. MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2011. NEGROPONTE, N. A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. NIETZSCHE, F. W. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. NORMAN, D. A. O design do dia-a-dia. Tradução de Ana Deiró. São Paulo: Rocco, 2006. ROCHA, C. de S. Interfaces computacionais e experiência sensível. In: ENCONTRO NACIONAL DA ANPAP, 19, 2010, Cachoeira. Anais... Cachoeira: [s.n.], 2010. SANTAELLA, L. Cultura das mídias. São Paulo: Experimento, 1996. SANTAELLA, L. Ecologia pluralista da comunicação: conectividade, mobilidade e ubiquidade. São Paulo: Paulus, 2010. SANTAELLA, L. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual e verbal. São Paulo: Iluminuras, 2005. SANTAELLA, L. Navegar no ciberespaço: perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. SANTAELLA, L. A aprendizagem ubíqua substitui a educação formal? Recet – Revista de computação e tecnologia, São Paulo, v. 2, n. 1 2010. SANTAELLA, L. Desafios da ubiqüidade para a educação. Revista Ensino Superior UNICAMP, 4 abr. 2013. Disponível em: . Acesso em: 08 abr. 2013. SAUSSURE, F. de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1996.

Dispositivos ubíquos de leitura...

Jogos eletronicos e educacoes.indd 75

75

10/03/15 14:16

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.