Disputas sobre o Sagrado: O que a liberdade de imprensa e a figura do Profeta Mohammed têm em comum? (Artigo em magazine)

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Revista

Ano 1  •  Fer 2016 •  n° 02

Narrativas em movimento

TÃO LONGE, TÃO PERTO

CONEXÃO ARTÍSTICA ENTRE BEIRUTE E O RIO DE JANEIRO

Sumário

Por Liza Dumovich

RIO DE JANEIRO

Por Leila Lak

Por Monique Sochaczewski

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14

Confederalismo Democrático: A proposta libertária do povo curdo

10

Por Ana Maria Raietparvar

DISPUTAS SOBRE O SAGRADO:

Editorial

Por Liza Dumovich

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32

04

Por Bruno Bartel

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O QUE A LIBERDADE DE IMPRENSA E A FIGURA DO PROFETA MOHAMMED TÊM EM COMUM?

Por Ana Paula Massadar Morel

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•  Candido Mendes •  Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto •  Beatriz Bíssio •  Fernando Resende • Gisele Fonseca Chagas

BEIRUTE E O

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Conselho Editorial:

ARTÍSTICA ENTRE

OS UNIVERSOS XIITA E SUNITA

•  Monique Sochaczewski •  Ana Paula Massadar Morel •  Bruno Bartel •  Erick Diniz

CONEXÃO

Silêncio no Museu

27

Colaboradores:

20

TÃO LONGE, TÃO PERTO

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PEREGRINAÇÃO MUSICAL:

Diretor de Arte • Diego Torrão

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06

Chefe de Reportagem - Jornalista •  Leila Lak

A MULTIPLICIDADE NO ISLÃ:

Editora - Tradutora •  Ana Maria Raietparvar

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Produtora Executiva •  Liza Dumovich

ENTREVISTA COM O ANTROPÓLOGO LEONARDO SCHIOCCHET SOBRE PALESTINA, AMÉRICA LATINA E ASSIMETRIA SOCIAL.

Por Leila Lak

Redação:

AS VERDADES PARA ALÉM DAS NARRATIVAS

DE BEIRUTE A NOVA ORLEANS

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Editorial Narrativas em Movimento

A DIASPORA é para muitos. Sua raison d’être são os novos desafios humanitários e teóricos apresentados pela intensificação dos fluxos migratórios e da necessidade de refúgio enquanto dimensão fundamental da globalização. Numa era em que povos do Oriente Médio e do Norte da África protagonizam esse processo e, por conseguinte, o imaginário global sobre a alteridade, a Revista quer traduzir os esplendores da diversidade cultural dessas regiões, ao tornar suas diferenças familiares. Se os deslocamentos de coletividades implicam a circulação de ideias, conhecimentos e informação, a Revista se insere nesse movimento e contribui na forma de uma publicação livre, independente e colaborativa. Trata-se de um espaço de difusão e democratização de produções acadêmicas, jornalísticas e artísticas que apontem para a reconfiguração das noções de fronteira e identidade, dos significados de liberdade e cidadania.

Editorial | Pagina  •  04

O primeiro número da Revista DIASPORA contemplou um dos países mais afetados na atual e maior crise de refugiados desde a Segunda Guerra Mundial, a Síria. Colunas e matérias focadas em diversos aspectos da situação síria traçaram um pequeno panorama da política interna e externa do país, das estratégias de sobrevivência identitária e cultural e da complexidade das questões que envolvem o refúgio sírio no Brasil. Esse segundo número alarga seu escopo histórico até a Primeira Guerra Mundial e abrange uma outra catástrofe de repercussões globais e persistentes, que Hannah Arendt chamou de crise dos povos sem Estado.

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A Questão Palestina é o grande exemplo das consequências do colonialismo e da repartição de terras que se seguiram à Guerra. A entrevista concedida à DIASPORA pelo antropólogo Leonardo Schiocchet traz a Palestina Histórica à cena contemporânea e assenta o debate no Brasil. Embora diferente em muitos aspectos, o Curdistão compartilha com a Palestina essa desvantagem determinante na era dos Estados-nação. No entanto, Ana Paula Massadar Morel nos apresenta um movi Sobre coletividades fora de suas casas, em busca de novos projetos de vida, também nos fala Monique Sochaczewski Goldfeld, porém, a partir de outra perspectiva. A pesquisadora nos conduz pelo Museu da Imigração do Estado de São Paulo e nos lembra de que a memória também é feita de exclusões e apagamentos. Enquanto as diásporas mento libertário curdo que não tem o Estado, pelo menos na sua forma política contemporânea, como objetivo de sua luta. europeias e a japonesa no Brasil são cuidadosamente representadas no Museu, as diásporas provenientes de diferentes territórios antes sob domínio do Império Otomano foram silenciadas. Dentre os imigrantes de fala e cultura árabe, estão os libaneses, cuja integração na sociedade brasileira foi, e ainda é, reconhecidamente bem sucedida.

Outro efeito sociopolítico das duas guerras mundiais e dos projetos colonialistas que a elas se seguiram, foi a espiral de tensões entre imperativos liberais europeus e valores religiosos das populações muçulmanas sob protetorados franceses e ingleses. A crença na totalidade de uma liberdade de imprensa, de um lado, e as interpretações cognitivas e emocionais de uma figura sacra, de outro, compõem uma das arenas simbólicas onde um “Ocidente” laico se encontra com um “Oriente” fiel. Sobre os limites do que é sagrado para cada uma dessas partes, o antropólogo Bruno Bartel nos traz uma reflexão baseada em seu trabalho de campo no Marrocos. O atentado ao periódico Charlie Hebdo e suas repercussões no país de maioria muçulmana e ex-protetorado francês é o seu ponto de partida. Enquanto Bartel aponta para negociações entre posições seculares e pertencimento religioso, a editora da Revista DIASPORA Ana Maria Raietparvar relativiza as diferenças, que o senso comum crê irreconciliáveis, entre as duas principais divisões sectárias do islã: o sunismo e o xiismo. Ela discorre sobre as origens dessa distinção e alerta para o perigo dos reducionismos e das visões estereotipadas que costumam acompanhar os debates sobre conflitos no Oriente Médio. Ainda numa menção a ex-protetorados franceses e, ao mesmo tempo, num contraponto ao esquecimento de que fala Goldfeld, a jornalista Leila Lak nos apresenta duas histórias em que a arte conecta o Rio de Janeiro a Beirute. Numa delas, um documentarista britânico, radicado no Brasil, acompanha a jornada de uma banda de blues da capital libanesa pela cena musical americana. Na outra, uma artista plástica deixa o Líbano para viver uma experiência criativa em meio à natureza carioca. A Revista DIASPORA convida então o leitor a viajar da América Latina ao Oriente Médio, através de suas narrativas em movimento.

SOBRE A AUTORA:

Liza Dumovich é Antropóloga e Diretora Executiva da Revista DIASPORA.

Coluna | Pagina  •  06

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Por Monique Sochaczewski

Silêncio no Museu Nos

últimos tempos, museus de última geração foram inaugurados no Brasil, com enorme sucesso. O Museu do Futebol, o Museu do Amanhã e o agora tristemente destruído pelo fogo Museu da Língua Portuguesa, entre outros, trouxeram para o Brasil um novo conceito de museu, em que a experiência, a reflexão que se desenvolve a partir da visita é tão ou mais importante do que o acervo exposto. O Museu da Imigração do Estado de São Paulo, criado originalmente em 1998 e reaberto em 2014 com uma roupagem mais moderna e interativa, pode certamente ser incluído entre estes. O museu está estabelecido no mesmo lugar

onde funcionou a Hospedaria de Imigrantes, inaugurada em 1887, e que até 1978 recebeu mais de 2,5 milhões de recém-chegados de além-mar, e também de outras partes do Brasil, em busca de melhores condições de vida. Ele conta de maneira bastante sintética e atraente (com documentos, objetos, vídeos e depoimentos), em sua exposição permanente, tópicos da história da imigração no Brasil, as peculiaridades da travessia marítima, as fases da construção da Hospedaria do Brás, questões de migração interna, e conclui tratando de tópicos da imigração atualmente, bem como refletindo sobre o caráter global da cidade de São Paulo.

Há, porém, um silêncio ensurdecedor ali e é dele que quero tratar. Onde estão os árabes dos quais descendem os atuais governador do Estado e prefeito da capital de São Paulo, bem como o vice-presidente da República, o mais incrível escritor brasileiro (sim, assumo amar Milton Hatoum), e cerca de 7 milhões de brasileiros, para citar o número mais recente usado pelo Itamaraty quando da visita do chanceler Mauro Vieira ao Líbano em setembro último? Se for se levar em conta o que deveria ser o principal museu de imigração no Brasil, eles se encontram em fotos tímidas na parte final que apresenta uma cidade cosmopolita de hoje e no livro “Sírios e libaneses. Narrativas de história e cultura”, de Oswaldo Truzzi, à venda na livraria do museu. Em mais nenhum lugar, pelo menos não que eu tenha visto, mesmo tendo buscado bastante. O museu pretende tratar, sobretudo, do período da “grande imigração” (1880-1920), e acaba centrando-se naqueles que vieram de terras europeias ou do Japão. Estão ali largamente representados portugueses, espanhois, italianos, alemães e russos, com menções aqui e ali a gregos e croatas e aos atuais coreanos, bolivianos e paraguaios. O foco nos europeus e japoneses parece claro de explicar, porém. Tratou-se de imigrações estimuladas e mesmo subvencionadas pelos governos federal e estadual. O declínio da mão-de-obra escrava e a ascensão da economia cafeeira fazia com que fossem necessários braços alternativos à lavoura, e foi o Estado que passou a controlar o processo imigratório. Se ajudassem a “embranquecer” o país, tanto melhor. Além da construção da hospedaria – em lugar estratégico, próximo ao cruzamento dos trilhos das ferrovias que então serviam São Paulo, como a Central do Brasil, vinda do Rio de Janeiro, e a São Paulo Railway, que vinha de Santos, sendo ambas cidades portuárias -, cuidava-se de propaganda oficial no exterior e passagens subsidiadas, e também das políticas de preço mínimo para o café. Na hospedaria passava-se o tempo médio de dois dias, em que cuidava-se de questões médico-sanitárias, mas sobretudo buscava-se trabalho. Ali funcionou,

também a Agência Oficial de Colonização e Trabalho cuja principal função era o encaminhamento para empregos. Os imigrantes oriundos do Império Otomano, sobretudo árabes cristãos, muçulmanos e drusos da Grande Síria (que englobam a Síria e o Líbano atuais); os judeus vindos também dessa região, mas também de Salônica, Esmirna e Istambul; e os armênios sobreviventes de massacres na parte oriental da Anatólia, não passaram por ali. Vieram com seus próprios meios e atuaram em grande medida no comércio, começando como mascates até chegar a comerciantes e mesmo industriais. Como ressaltou Mussa Chacur em depoimento publicado no livro “Memórias da imigração: libaneses e sírios em São Paulo”, de Betty Greiber, “todos vieram por conta própria (…) ninguém veio por conta do governo daqui, como, por exemplo, os que vieram trabalhar na agricultura”. w No caso específico dos árabes, segundo Oswaldo Truzzi, vieram inicialmente temporariamente, para fazer um pé de meia e daí voltar

Hospedaria de Imigrantes, inaugurada em 1887, e que até 1978 recebeu mais de 2,5 milhões de recém-chegados de além-mar

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para o Líbano e Síria com recursos para comprar mais terras e melhorar as condições da família. Acabaram ficando no Brasil, porém, e se espalhando por todo o território nacional. Popularizaram o quibe e a esfirra, deixaram sua marca no comércio, criaram um hospital de ponta, ganharam grande projeção política e, segundo consta, cerca de 4% da população brasileira é sua descendente. O Museu da Imigração do Estado de São Paulo, porém, apesar de declarações publicadas pela Agência de Notícias Brasil-Árabe em 2008 de que pretendia ampliar o acervo árabe e ser um “museu de todos os imigrantes”, manteve-se, mesmo após a longa reforma, um museu com muitos silêncios. Não só árabes, mas também judeus, armênios e chineses não figuram por lá. Concluo aqui dizendo que vale muito ir ao Brás visitar o Museu da Imigração, passeando por suas exposições permanente e temporárias, checar novidades da lojinha, passear pelo jardim, andar de Maria Fumaça, e tomar uma bebida no charmoso café ao final. Agora, se for se levar em conta que o objetivo declarado do museu é de compreender e refletir sobre o processo migratório a partir das pessoas que passaram por aquele prédio, não tem como não se pensar também naqueles que não passaram por ali e nos porquês de não terem passado e do silêncio a esse respeito.

Imagens: Fotos pagina 06 e 07 por Lukaaz CC BY-SA 3.0, fonte Wikipedia. Foto pagina 08 por Monique Sochaczewski.

Confederalismo Democrático: A proposta libertária do povo curdo “Entretanto, os curdos existem.” (Abdullah Öcalan)

Por Ana Paula Massadar Morel

Como é a crítica ao Estado-nação e a organização por assembleias do movimento curdo

A

palavra Curdistão pode ser remetida à palavra suméria kurti que, há milhares de anos, significava algo parecido com “povo da montanha”. Desde então, a luta dos curdos pela sua existência atravessou um longo caminho até os dias atuais, quando vemos circulando pelo mundo imagens de mulheres curdas lutando nas montanhas com seus sorrisos e armas que se tornaram símbolos de resistência. Podemos dizer que a grande repercussão dessa luta hoje (assim como sua força e beleza) está ligada, dentre outros fatores, ao seu aspecto libertário. Diferente de uma ideia comum relacionada às lutas dos povos minoritários, o movimento de libertação curdo não busca construir um novo Estado. Atravessando a questão étnica, mas indo além dessa, o movimento apresenta uma proposta, que está sendo experimentada nos territórios liberados, de ruptura radical com a modernidade capitalista: o Confederalismo Democrático. Atualmente, o povo curdo é um dos maiores povos sem Estado, com cerca de 30 milhões de pessoas concentradas, principalmente, na região do Curdistão, que abrange uma parcela territorial dos Estados da Síria, Iraque, Turquia e Irã, com quem muitos grupos estão em conflito há décadas. Mais recentemente, os curdos também entraram em confronto com o Estado Islâmico (ISIS).

São claras as tentativas de etnocídio e genocídio em relação ao povo curdo. Enquanto alguns árabes chamam os curdos de “árabes do Iêmen”, alguns turcos os denominam “turcos das montanhas”, expressando alguns dos mecanismos da tentativa de assimilação que sofre esse povo. Além disso, a região montanhosa onde vivem é uma das mais ricas em florestas e água de todo o Oriente Médio, o que tem chamado atenção de diversas potências estrangeiras. Entretanto, os curdos existem e lutam... Atualmente, a perspectiva política que tem mais força na região está ligada ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) – é principalmente dessa perspectiva que tratamos quando mencionamos o movimento curdo. O PKK foi fundado em 1978 na Turquia, sob orientação do marxismo-leninismo, começando um confronto de guerrilhas em 1984, que tinha como objetivo a libertação nacional, através da formação de um Estado Curdo independente. No final da década de 90, o movimento rompe com essa perspectiva e desenvolve a proposta do Confederalismo Democrático, sistematizada por Abdullah Öcalan de dentro da prisão. Essa proposta tem como influência os escritos do anarquista Murray Bookchin e a experiência do movimento zapatista que constrói toda uma vida baseada na autonomia em Chiapas, no México.

1- Há uma grande faixa de territórios liberados diante dos conflitos com o ISIS e Estados-nações da região, a mais conhecida delas é Rojava, região também chamada de Curdistão Sírio onde a autogestão tem sido intensamente implementada. 2- A língua curda é de origem indo-europeia. Os curdos são, em sua maioria, muçulmanos sunitas, mas há curdos judeus, cristãos e yazidis. 3- Abdullah Öcalan é uma das principais referências do PKK e segue preso pelo Estado turco acusado de traição.

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O Confederalismo… é aberto a outros grupos, é flexível, multicultural, antimonopolista e orientado para o consenso.

O movimento curdo passa a apontar para o estabelecimento dos Estados-nações, central no paradigma da modernidade capitalista, como um dos grandes pilares da opressão que sofrem, evidenciando a conexão causal entre essa opressão e a dominação global do sistema capitalista. Os Estados-nações se desenvolveriam através de todo tipo de monopólio (político, econômico, ideológico), tendo como base o sexismo e o nacionalismo. A escravidão da mulher seria a opressão mais profunda e disfarçada, enquanto o nacionalismo teria propiciado séculos de destruição em nome de uma sociedade unitária imaginária. Diante disso, os curdos acreditam que a criação de um novo Estado só iria perpetuar opressões, ainda mais ao considerar a diversidade de povos que habitam o mesmo território na região do Curdistão. O Confederalismo não pode ser pensado, então, como uma entidade monolítica homogênea, uma vez que ele é aberto a outros grupos,é flexível, multicultural, antimonopolista e orientado para o consenso. Ele se estabelece por um amplo projeto visando a soberania econômica, social e política, assim como a criação de instituições necessárias para possibilitar à sociedade um autogoverno. As eleições perdem a importância em prol de um processo político dinâmico e contínuo baseado nas intervenções diretas do povo. A população deve estar envolvida em cada processo de debate e decisão.

Este modelo pode ser organizado por conselhos abertos, parlamentos locais e congressos gerais. Nesse sentido, não há uma forma única a ser estabelecida, a ideia, inclusive, é valorizar as experiências históricas da sociedade e sua herança coletiva, baseadas em clãs e tribos, em oposição às estruturas centralizadoras do Estado-nação. Os diferentes atores sociais formam unidades federativas, células germinais da democracia participativa, que podem se associar em novas confederações mais amplas. Ainda que o foco esteja no nível local, organizar o Confederalismo globalmente é importante para mudar radicalmente a sociedade.

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Atualmente, o povo curdo é um dos maiores povos sem Estado, com cerca de 30 milhões de pessoas espalhadas no mundo e, principalmente, na região do Curdistão que brange uma parcela territorial dos Estados da Síria, Iraque, Turquia e Irã, com quem muitos grupos estão em conflito há décadas. mais do que isso, sem a libertação da mulher é impossível pensar uma sociedade igualitária. A ecologia é outro pilar central: a proteção do meio ambiente, incompatível com o capitalismo, deve ser levada em consideração seriamente durante o processo de mudança social. Apesar da guerra e dos confrontos constantes que assolam a região, a proposta do Confederalismo Democrático do povo curdo (que como vimos vai muito além dele)

Para garantir que esse processo de democratização possa se realizar, a autodefesa é fundamental. Diferente da militarização verticalizada típica dos Estados, as forças de segurança devem responder às decisões populares tomadas de baixo para cima e todos que participam da autodefesa frequentam cursos de resolução de conflitos não violenta e de teoria feminista. A ideia em médio prazo é que toda a população possa receber treinos de autodefesa, para que não seja necessário polícia. Além disso, as unidades militares elegem seus oficiais. Assim funcionam a Unidade de Proteção do Povo (YPG) e sua fração feminina, a Unidade de Proteção Feminina (YPJ). Esta última está ligada a outro pilar do Confederalismo: o feminismo. É fundamental a ideia de que as mulheres organizadas podem gerenciar a si mesmas e,

Fonte foto: http://kurdishstruggle.tumblr.com/

tem possibilitado uma série de experimentações. Cooperativas de trabalhos, terras coletivizadas, coletivos de mulheres, assembleias comunitárias, justiça restauradora substituindo o sistema de tribunal, reconstrução de cidades, criação de mecanismos horizontais de autodefesa, dentre muitas outras a serem apoiadas e mais bem conhecidas em outras partes do mundo.

TÃO LONGE, TÃO PERTO.

Cultura | Pagina  •  14 Por Leila Lak

CONEXÃO ARTÍSTICA ENTRE BEIRUTE E O RIO DE JANEIRO

Carla Barchini, artista greco-libanesa, mudou

com sua família para a Europa durante a Guerra Civil do Líbano, em 1975. Como muitos da sua geração crescendo no exílio, ela sonhava em um dia poder voltar à sua terra natal. Quando finalmente se mudou de volta para o Líbano, em 2013, ela realizou sua primeira mostra individual e, desde então, tem crescido como artista e exposto o seu trabalho também em diversas mostras coletivas.Carla Barchini Photo Atualmente, Barchini é artista residente no Largo das Artes/Despina, no Rio de Janeiro, e sente que seu trabalho na cidade está sendo muito influenciado pela natureza que a cerca. Carla Barchini passou seus anos de formação artística em Florença, estudando restauração de móveis e madeiras antigas. Ela refinou essa prática e a estudou dentro do contexto da arte renascentista, adquirindo habilidades que até hoje usa em composições com a sua técnica original, a pintura. “Eu escolhi esse tipo de arte e técnica por ser muito direto,” diz Barchini. “Tocar a madeira, trabalhar com a madeira, esculpir e dourar.” Seu trabalho não trata apenas da peça final, mas do processo de produção. “Todas as minhas peças têm uma coisa em comum umas com as outras, todas têm uma história por trás,” ela diz.

O material que ela utiliza é recolhido na natureza e em locais de construção - pedaços de madeira que ela encontra na carpintaria do seu pai ou nos jardins da sua residência no Cosme Velho. A artista procura objetos que signifiquem algo para ela, que ela possa limpar, moldar e pintar. “Mais do que o trabalho em si, se trata da história de onde encontrei o objeto,” diz Barchini. “Por que eu o peguei? O que ele diz? Essas questões estão ligadas a tudo em que eu trabalho.” Ao se mudar de Florença para Beirute, Barchini rapidamente imergiu na cidade de sua infância.

“Eu voltei para o Líbano com o sonho de encontrar um lar para redescobrir minhas raízes.” Ela acabou encontrando objetos que permaneceram na casa de sua avó ou nas terras de seu pai, objetos que lhe permitiram produzir trabalhos que, segundo ela, a levaram de volta à sua própria história de vida.

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Cultura | Pagina  •  17

Cultura | Pagina  •  16

Beirute é uma cidade onde, frequentemente, há escassez de água, cortes de eletricidade e um tráfego intenso. Uma cidade sinuosa entre as montanhas e o mar, onde o caos e a guerra deixaram marcas. Beirute é uma cidade que captura a imaginação e atrai uma cena artística vibrante. “Muitas vezes fico presa no trânsito e, então, um dia comecei a desconstruir os carros na minha cabeça,” diz Barchini. “Eu criei meu primeiro trabalho nessa época. Eu fiz um tapete do teto de um carro e o chamei de tapete voador.” O carro, ela o encontrou num local de construção. A artista conta que, frequentemente, trabalha com objetos grandes e pesados, objetos que não têm mais valor, mas que lhe são caros e aos quais ela confere uma segunda vida. Ao se mudar de Florença para Beirute, Barchini rapidamente imergiu na cidade de sua infância.

“Eu voltei para o Líbano com o sonho de encontrar um lar para redescobrir minhas raízes.” Ela acabou encontrando objetos que permaneceram na casa de sua avó ou nas terras de seu pai, objetos que lhe permitiram produzir trabalhos que, segundo ela, a levaram de volta à sua própria história de vida. Beirute é uma cidade onde, frequentemente, há escassez de água, cortes de eletricidade e um tráfego intenso. Uma cidade sinuosa entre as montanhas e o mar, onde o caos e a guerra deixaram marcas. Beirute é uma cidade que captura a imaginação e atrai uma cena artística vibrante. “Muitas vezes fico presa no trânsito e, então, um dia comecei a desconstruir os carros na minha cabeça,” diz Barchini. “Eu criei meu primeiro trabalho nessa época. Eu fiz um tapete do teto de um carro e o chamei de tapete voador.” O carro, ela o encontrou num local de construção. A artista conta que, frequentemente, trabalha com objetos grandes e pesados, objetos que não têm mais valor, mas que lhe são caros e aos quais ela confere uma segunda vida. Quando ela veio ao Rio, decidiu não pesquisar a cidade. Claro que ela visitou o Cristo Redentor, o oceano, a natureza, mas ela queria descobrir a cidade e permitir que seus sentidos se encarregassem da descoberta. “Eu estou no meio do processo de me apaixonar pelo Rio,” diz. “Faz um mês que cheguei e, a cada dia, eu me torno mais e mais fascinada pela natureza e pela caótica harmonia existente aqui.” “Para mim, Beirute é totalmente diferente, uma vez que a guerra está sempre presente. A guerra mudou as pessoas lá e distorceu a natureza ao nosso redor. Aqui no Rio, há uma sensação de harmonia, já que é a natureza que direciona a cidade.”Barchini viajou muito, viveu em vários

Imagens por: Carla Barchini.

países e conheceu a diáspora libanesa em todo o mundo. O que a surpreende no Brasil é que, completamente diferente dos outros lugares, aqui a diáspora se define, antes de tudo e principalmente, como brasileira enquanto nos outros lugares eles mantêm sua identidade libanesa. “Eles são profundamente brasileiros,” observa. “Quando eles falam sobre o Líbano, há uma nostalgia cheia de respeito. Eu não senti isso em nenhum outro lugar. Aqui eles têm um grande respeito por seus avós e suas trajetórias.” “Para mim, é um prazer conhecer os libaneses aqui,” ela diz. Barchini vê na comunidade um desejo de saber mais sobre o Líbano e a cultura de seus ancestrais, e por isso ela está planejando um intercâmbio artístico intercultural entre o Rio e Beirute no próximo ano.

Barchini acredita que tanto o Rio quanto Beirute compartilham um sentido artístico de atração criativa. No Rio, ela vê isso na Cidade do Samba, onde cada escola se expressa criando seus próprios temas e arte. Em Beirute, três gerações de artistas estão trabalhando em vários ateliês pela cidade, com muitas galerias que os representam.

“São duas culturas tão diferentes entre si, mas de certa forma tão próximas” , diz.

O Largo das Artes/Despina fica na Rua Luís de Camões, nº2, Centro, Rio de Janeiro. A entrada é gratuita.

“E essa distância permite a curiosidade e o respeito mútuo.”

Barchini acredita que a sua vinda ao Rio não foi acidental e que essa é uma jornada que está apenas começando. O trabalho de Carla Barchini pode ser visto numa mostra coletiva no Largo das Artes/Despina, no dia 25 de Fevereiro, às 19h.

AS VERDADES PARA ALÉM DAS NARRATIVAS ENTREVISTA COM O ANTROPÓLOGO LEONARDO SCHIOCCHET SOBRE PALESTINA, AMÉRICA LATINA E ASSIMETRIA SOCIAL. Ao ler “Entre o Velho e o Novo Mundo: a

diáspora palestina desde o Oriente Médio à América Latina” (Chiado Editora, 2015), livro organizado pelo antropólogo Leonardo Schiocchet, deparamos com uma situação social que nos parece geograficamente distante, mas que nos soa muito familiar. Uma sociedade indígena tem seu território ocupado e usurpado, enquanto sua população é dominada, humilhada e deslocada.

Como o Brasil, a Palestina foi colonizada. Contudo, as conexões entre os dois mundos, a América Latina e o Oriente Médio, não se limitam ao infortúnio histórico e se revelam nas imigrações, nos refúgios e, sobretudo, na dimensão transnacional da experiência palestina, “um povo essencialmente diaspórico”, como escreve Schiocchet.

Por Liza Dumovich

Entrevista | Pagina  •  20

Retrato de Leonardo Schioccher por: Phillip Steinkellner, 2010.

Capa do Livro por: Francis Rivas, 2015 Foto Capa por: Leonardo Schiocccher

Frente a uma relação de poder extremamente desproporcional, em que perdura um sistema de apartheid, porta-vozes da crítica social, sejam acadêmicos ou personalidades públicas, vislumbram a neutralidade enquanto posicionamento ético. Crêem no “meio-termo” como o princípio da análise e do julgamento. No entanto, não se dão conta da falácia desse argumento, que parte da premissa de que existe um equilíbrio de forças onde há, de fato, uma profunda assimetria social. Tal ingenuidade blitera o que escancara a realidade empírica. É da urgência de encarar essas verdades para além das narrativas produzidas pelos diversos atores sociais que nos falou o pesquisador curitibano, numa pausa em seu trabalho de campo em Jerusalém. LeoS: O livro se insere num projeto muito maior meu, que é trabalhar com processos de pertencimento social palestinos em vários contextos diferentes no mundo. Foi o que eu comecei a fazer quando acabou meu doutorado, quando eu trabalhei com grupos de palestinos refugiados no Iraque que foram assentados no Brasil. Depois eu trabalhei com um grupo de palestinos que tomaram cidadania dinamarquesa em Aarhus e depois com palestinos na Áustria, ou seja, eu pego vários contextos diferentes. A América Latina era um desses contextos, que passou a ser importante para mim justamente porque meu pós-doutorado foi no Brasil. Naquela época, dava aula na UFF (Universidade Federal Fluminense) e não tinha material em português, o que eu achava um problema grave, porque a gente dependia de material em inglês e então eu achava que a gente deveria construir nosso próprio material. Havia quem trabalhasse com palestinos na América Latina, mas o recorte teórico era restrito à imigração e eu achava que a gente deveria trabalhar com outros temas e também levar o tema da América Latina para o conhecimento geral. A ideia era fazer esse primeiro livro em português e depois fazer em árabe, uma coisa que eu ainda estou pensando, para que os próprios árabes e palestinos tenham conhecimento e tenham acesso a esse tipo de informação.

Entrevista | Pagina  •  21

Conexões Sul-Sul D: Nós da DIASPORA percebemos uma semelhança entre a proposta do seu livro e a nossa proposta, porque elas buscam essa relação Sul-Sul, as conexões entre Oriente Médio e América Latina, de que Rosemary Sayigh fala tão bem no seu capítulo [no livro], inclusive também por essa falta de material em português que você citou e que foi um dos motivos de a gente ter criado a Revista. LeoS: Sim. D: Nós poderíamos dizer que essas categorias “Oriente Médio” e “América Latina” são menos áreas geográficas do que criações de um pensamento colonialista imperialista ocidental? LeoS: Em parte sim, mas não é uma construção que existe apenas enquanto pensamento imperialista. Você tem uma identidade latino-americana que não é uma coisa absoluta nem uma coisa objetiva. Mas você tem um sentimento de pertencimento social quando - isso não é uma coisa também que todo cidadão tem – vamos dizer assim, um argentino encontra um brasileiro e fala “Ah nós somos latinoamericanos, a gente compartilha muita coisa...”. Não é sempre que isso vai acontecer, mas isso acontece várias vezes. D: Nem todos os argentinos e brasileiros têm essa identidade de latinoamericano... LeoS: Nem todos, mas é uma coisa que várias pessoas compartilham, esse é o ponto! E quando várias pessoas compartilham, ela existe, não precisa todo mundo compartilhar nem compartilhar da mesma maneira. Tem gente que vai dizer que é o sangue quente, tem gente que vai dizer que é uma história compartilhada contra o colonialismo ou coisa do gênero, tem gente que vai dizer que é porque dança para caramba. As pessoas fazem a construção que quiserem sobre isso, mas o ponto importante é a gente entender que várias pessoas, de fato, sentem que existe alguma coisa que elas compartilham. A mesma coisa no mundo árabe. Antropólogo adora dizer “Marrocos não tem nada a ver com o Líbano”. Claro, tudo bem, de um ponto de vista, não tem nada a ver, mas se você perguntar para o marroquino e para o libanês, é bem possível que, ainda que eles digam que são diferentes, vão dizer que têm alguma coisa em comum. Então, para nós enquanto antropólogos, eu acho que é muito importante a gente se perguntar também como é que as pessoas formam um grupo, o

que é essa cola, o que é essa coisa que faz com que a gente se identifique com outras pessoas e forme um grupo. Um grupo que não precisa ser necessariamente completamente rígido e eterno, mas você tem uma dinâmica de formação, de aproximação de certos sujeitos em relação a outros, como a ideia de palestinidade, justamente o que a gente está discutindo no livro.

Se nem todo palestino é igual, a gente pode dizer que existe uma palestinidade?

Entrevista | Pagina  •  22

Dizer que não existe palestinidade é um pouco bizarro, é como dizer que só existem algumas vidas na palestina, mas ninguém se identifica com algo maior. As pessoas se identificam sim! O nacionalismo, por exemplo, é uma construção sobretudo do meio do século XIX em diante, mas isso não significa que nacionalismo não exista na cabeça das pessoas, no coração das pessoas, certo? D: Sim. LeoS: Então esse sentimento Sul-Sul de que você está falando, quer dizer, se a gente falar só que a América Latina e o Oriente Médio são construções completamente imperialistas, a gente perde um pouco de foco a questão de que muitas vezes as pessoas sentem que existe uma certa aproximação e isso é algo que eu estou interessado em entender. Como é que a gente pode aproximar e usar essa aproximação, essa solidariedade? A relação de você entender, estudar o outro não é só uma relação colonizadora ou de império, você pode ter outros tipos de relação para estabelecer aí. E quais aspossibilidades de estabelecimento dessa relação, o que a gente pode fazer com isso é justamente uma das coisas que eu estava tentando explorar nesse livro.

Má informação e a ficção do meio-termo D: Há algumas semanas, houve um debate intenso nas redes sociais acerca das crônicas de viagem do Deputado Jean Wyllys, aos territórios ocupados da Palestina Histórica, para usar a categoria que você usa na introdução do livro. Você teve oportunidade de acompanhar esse debate? LeoS: Claro, claro.

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D: Nas crônicas dele, identificamos a crença no que você chamou de “ficção do meio-termo”. Ele se coloca contra o BDS (Boycotts, Divestment and Sanctions) por acreditar que essa medida prejudica uma população inteira (os israelenses), cuja maioria seria constituída por pessoas contrárias à política de Estado israelense, o que seria uma injustiça. Isso nos remeteu ao seu conceito de “assimetria social”, algo que ele parece não ter percebido. LeoS: Eu acho que é um pouco mais complicado do que isso, eu acho que o Jean Wyllys realmente está mal informado. Antes de mais nada, ele não entende que o problema não é ele ir e dialogar com pessoas que estão querendo dia logar contra a ocupação, certo? O problema é você ir num contexto de financiamento de Hasbara, propaganda estatal israelense. Quer dizer, você tem um financiamento de uma universidade, como a Hebraica de Jerusalém, uma universidade historicamente implicada no tratamento completamente desigual aos palestinos, que apoiou oficialmente o exército israelense durante o último cerco de Gaza, através de uma nota. Todo o esforço do BDS é um esforço no sentido de você falar “Olha, essa história de sentar e dialogar a gente já está vivendo há 68 anos”. Essa ideia de que você vai sentar na mesa e dialogar é uma falácia. É a mesma coisa que você sentar com um monte de banqueiros na mesa, com as maiores fortunas brasileiras, e tentar racionalizar, falando “Olha, a gente pode conversar, a gente pode fazer vocês verem racionalmente como vocês têm que dividir o dinheiro com os pobres brasileiros”. Você acha que isso vai funcionar? Não funciona assim, infelizmente. A relação entre poder e sujeito é muito mais complicada, e poder constrói inclusive a maneira como as pessoas pensam. Elas constroem narrativas para si mesmas, castelos, vamos dizer assim, dos quais elas não conseguem sair. E da mesma maneira, várias partes da esquerda israelense constróem a ideia de que eles estão abertos para um diálogo, quando na verdade a gente tem exatamente o oposto, historicamente, os Palestinos cedendo, cedendo, cedendo em todos os pontos, inclusive nas negociações de paz. E o esforço é usar justamente instituições de ensino acadêmicas e de pesquisa enquanto uma forma de dizer que você é democrático, quando na verdade isso simplesmente está indo como uma fachada para legitimar uma série de outras questões que são completamente absurdas, que é um Estado realmente de apartheid, comparável à África do Sul. D: Por isso, uma certa urgência de ação, frente a essa contínua Nakba (catástrofe, em árabe). LeoS: Exatamente. Você tem essas coisas usadas como uma fachada de democracia, na forma de propaganda do Estado, a Hasbara, mostrando “Olha, vejam bem como a gente é democrático”, “Olha, vejam bem como a gente defende os homossexuais, como isso e aquilo”. Quando, na verdade, a coisa é muito mais complicada, entende? Sobretudo acadêmicos têm que se levantar e se colocar contra. Você não pode mais dizer de dentro dessa estrutura que você quer diálogo. A única maneira que você tem de mudar essa situação é você sair dessa estrutura. Então, o BDS reconhece isso, que você tem que quebrar essa estrutura de dominação, essa estrutura hierárquica altamente desproporcional, assimétrica. E que serve para legitimar uma série de atitudes de Israel que são o contrário daquilo que eles dizem que fazem. É um pouco naïve da parte do Jean Wyllys até, de imaginar que o BDS está fechando as portas para o diálogo, quando é justamente o contrário, Israel fechou todos os espaços para diálogo já faz muito tempo. E também tem muita má informação. Não é que o BDS é contra que o Jean Wyllys vá e converse com essas pessoas, pessoas que supostamente se colocam contra a ocupação, mas que ele vá dentro de um esforço de Hasbara. Então se ele quiser ir, ele que vá com dinheiro próprio ou ele que convide gente para ir pro Brasil para dialogar ou coisa do gênero, mas você ir com dinheiro do governo israelense, seja por financiamento através de universidades ou de alguma outra maneira, é aí que mora o problema. O Jean Wyllys não consegue perceber isso.

Foto pagina 22 por: Banksy

A MULTIPLICIDADE NO ISLÃ: OS UNIVERSOS XIITA E SUNITA

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Cotidiano | Pagina  •  25 esse ritual, podendo inclusive não celebrá-lo.

Por Ana Maria Raietparvar

É importante pensar que o Islã não é distinto de outras religiões e que, portanto, a dedicação a ele se traduz de diversas formas e cada sujeito combina a religião com outras visões sobre o mundo. Assim como cristãos evangélicos, católicos ou espíritas, os muçulmanos podem ter variadas formas de interagir com suas religiões e compartilhar diferentes posições políticas. Desse modo, uma mulher xiita pode ter uma visão bastante liberal de mundo e ser

Não é raro vermos nos noticiários matérias sobre

confrontos entre xiitas e sunitas no Mundo Islâmico. A disputa entre os dois grupos é comumente apontada como a causa responsável por boa parte dos conflitos, reduzindo a complexidade da questão à diferença religiosa. Para um leitor desavisado, há a impressão de que o convívio entre quaisquer seguidores desses grupos é impossível e que a intolerância estaria na base da diferença religiosa. Essa visão simplificada leva a equívocos graves, que podem culminar na formação de estereótipos e preconceitos, como na popularização do termo xiita como sinônimo de radicalismo e intolerância. Para evitar essa confusão, é importante, portanto, a compreensão do que de fato é essa divisão no Islã, quais são suas verdadeiras implicações práticas e também entender que os conflitos devem ser compreendidos pelos fatores políticos, econômicos, culturais e sociais, não relegando sua causa principal, ou mesmo única, à questão religiosa. O que é então a divisão entre xiismo e sunismo e o que eles significam? A divisão entre xiitas e sunitas remonta a modos diferentes de interpretar e praticar o Islã. A divisão surgiu à época da sucessão do profeta Muhammad, no século VII d.C. Após sua morte, os seguidores de Ali, seu genro, formaram uma legião, ou o Partido do Ali, Shi’a Ali, os xiitas. Entre os sunitas, estão aqueles que seguiram os

eleitos após a morte do Profeta na formação do Império Árabe e Muçulmano. A divisão criou distintos grupos com diferentes crenças e vivências religiosas. Algo parecido às divisões existentes no cristianismo, com suas devidas motivações que, em algum momento histórico, justificaram a ruptura e o surgimento de ramificações. Dentro do próprio xiismo existem diversas vertentes, com seu arcabouço de valores e crenças próprios, como por exemplo os xiitas duodecimanos (presentes majoritariamente no Líbano, Irã e Iraque) e os Alauítas, minoria presente na Síria. Também entre os sunitas seguem-se diversas tradições religiosas, como os salafitas e os wahhabitas, na Arábia Saudita. Na prática, essas tradições religiosas implicam em celebrações, rituais, festividades e condutas comportamentais particulares, que, por sua vez, serão praticadas por cada seguidor a partir de sua interpretação pessoal. Na ‘Ashura, por exemplo, ritual praticado por xiitas duodecimanos que rememora a morte de Hussein, neto de Muhammad e filho de Ali, múltiplas formas de praticar e entender a mensagem do ritual são encontradas. O ritual tem um teor de lamentação, de sofrimento pelo Martírio de Hussein, e foi bastante explorado pela mídia, com imagens de praticantes se autoflagelando para reviver o martírio. No entanto, a autoflagelação, por exemplo, não é praticada por todos e é, inclusive, questionada por muitos xiitas, que vivenciam de outras formas

Imagem de domínio publico: Brooklyn Museum - Battle of Karbala - Abbas Al-Musavi

ativista em prol de um governo secular, assim como sunitas podem formar um grupo que pretende formar um “novo califado”, como o Estado Islâmico. A Turquia, por exemplo, é um país majoritariamente sunita e com forte tradição secular, mas ocasionalmente tem governos mais próximos do Islã político. Isso demonstra que no Mundo Muçulmano também há multiplicidade de opiniões e alternâncias de grupos no poder, como é próprio da democracia representativa. Em relação à ideia que se tem sobre o Islã

político, ou seja, grupos que baseiam suas ações políticas em interpretações do Islã, também acontecem equívocos. Dado o estereótipo existente no Brasil de que “xiitas são radicais”, é comum acreditar que todos os grupos islâmicos com ações políticas seguem essa linha (além de acreditar que todo grupo de Islã político seja “radical”). Embora um dos exemplos mais bem sucedidos de Islã político, a República Islâmica do Irã, seja xiita, outro grande ícone de país com a religião oficial islâmica, a Arábia Saudita, é sunita. Diversos outros grupos conhecidos por suas atuações políticas se dividem entre as variadas ramificações e filosofias. O Hezbollah, grupo libanês, é xiita. Já o Hamas é sunita. Ou seja, a multiplicidade dos praticantes de uma ou outra tradição não cabe nos estereótipos. A chave para resolver a questão parece ser a diversidade. Nada é absoluto e determinado, e é sempre importante desconfiar de rótulos homogêneos. Nenhum país ou religião é totalmente conservador, extremista ou intolerante. A diversidade de opiniões e ideias pode ser evidente, ou estar calada, camuflada, escondida, mas, de qualquer forma, ela sempre existe

PEREGRINAÇÃO MUSICAL: DE BEIRUTE A NOVA ORLEANS

‘WALK IT HOME’: Ben Holma, Red Bull TV 2015.

DOCUMENTÁRIO REVELA EXPERIÊNCIA DA BANDA DE BLUES LIBANESA THE WANTON BISHOPS EM SOLO AMERICANO Por Leila Lak

O

blues e a cidade de Beirute não são duas palavras que você geralmente vê numa mesma frase, mas a primeira banda de blues libanesa The Wanton Bishops está acrescentando o estilo à eclética cena musical local. Ben Holman, um documentarista inglês que vive no Brasil, acompanhou a jornada da banda do Líbano até o extremo sul dos Estados Unidos. “Beirute me lembra o Rio há 10 anos atrás,” diz Holman sobre sua estadia na capital libanesa. Holman foi enviado a Beirute pela Red Bull para filmar a viagem do gaitista e cantor Nader Mansour e do guitarrista Eddy Ghossein aos Estados Unidos. Seu longa-metragem, Walk it Home, captura o percurso desde as movimentadas ruas de Beirute até os pântanos de Nova Orleans. “As pessoas são muito abertas (no Líbano). Eu entrei num taxi no aeroporto e o motorista me ofereceu um cigarro.

Eu não fumo, mas aceitei porque pensei, ‘que gentil’, ” diz Holman.

Não é que a vida seja banal, apenas dá às pessoas uma atitude mais despreocupada.”

O que mais o impressionou sobre Beirute foi a espontaneidade das pessoas e que, como no Rio, cidade que adotou para viver, as pessoas vivem o momento.

Num país onde a indústria musical não é um grande comércio estabelecido, Mansour e Ghossein não conseguem viver da venda de discos e de shows. “É clichê, mas eles são libaneses e comerciantes, roqueiros à noite e comerciantes durante o dia” diz Holman. Mansour é dono de bares e Ghossein trabalha com equipamentos médicos.

“As pessoas estão vivendo em circunstâncias extremas, em que a morte é uma ameaça constante,” diz ele. “Há dez anos, a violência nasfavelas era mais presente, a ditadura mais recente na memória e, em Beirute, há o medo constante da guerra.

A cidade de Beirute é pequena, em um país pequeno e há poucos estúdios de gravação e gravadoras. The Wanton Bishops lota os seus shows que ocorrem duas vezes ao ano, mas, provavelmente por cantarem em inglês, a audiência e o potencial de alcance são pequenos.

Foto por: Shawn Butcher

O Líbano tem muita gente que foi morar fora no mundo todo e retornou, então a geração mais nova tende a falar inglês ou francês ou, geralmente, as duas línguas, mas é somente um estrato da sociedade. As bandas mais bem-sucedidas, como a banda de rock alternativo Mashrou’ Leila, cantam em árabe.

A cultura jovem em Beirute é altamente criativa e as ruas de bairros como Hamra estão cheias de bares, clubes e galerias.

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“Você pode ouvir o chamado à oração na entonação deles,” diz Holman;

“O Islã tem soul!”

Holman ficou impressionado com as semelhanças visuais entre Beirute e o Rio de Janeiro, com as duas cidades entre as montanhas e o mar. Mansour, como muitos libaneses, passa muito do seu tempo fugindo da cidade em direção à casa da sua família, nas montanhas que crescem acima da cidade. Montanhas estas que se cobrem de neve no inverno e de figueiras e oliveiras no verão, com exuberantes paisagens verdes e córregos de águas cristalinas, remetendo às descrições bíblicas do Éden, que tornam as terras da região tão sagradas para muitas religiões e localizadas a um mundo de distância da paisagem que deu origem ao blues. Para Mansour e Ghossein, por terem crescido no Líbano e possuírem o passaporte libanês, viajar não é tão fácil, uma vez que há dificuldade para conseguir os vistos. Essa foi sua primeira viagem aos Estados Unidos e Holman teve que planejar sua viagem meticulosamente, já que os dias de gravação eram limitados. Eles passaram pelas profundezas do sul dos EUA, seguindo os caminhos do blues: Mississípi, Nova Orleans e os pântanos da Luisiana. Enquanto viajam de barco pelos pântanos, Mansour poeticamente descreve a água como um“Bourbon escuro”, e você sente o ambiente entrando na consciência dos dois músicos. Eles conheceram vários blues men em sua viagem e tocaram com algumas lendas, como Vasti Jackson e Glenn David Andrews. Para os dois homens na faixa dos 30 anos, que se voltaram ao blues ainda cedo, essa homenagem à terra do estilo de música por eles escolhido é palpável. Antes da peregrinação, os shows em Beirute tinham um tom mais de rock, mas, conforme a viagem segue, eles voltam para a raíz do blues, Fonte imagem : http://www.beijafilms.com/walkithome

adicionando um toque do Oriente. À medida que eles viajam, são convidados a tocar nos espaços mais importantes do blues e, embora suas habilidades musicais possam não ser tão boas quanto às dos grandes nomes do gênero, Holman diz que a sinceridade deles foi muito bem recebida. Mansour diz que ele pode ser o melhor gaitista do Líbano, mas acrescenta que isso não diz muito. Durante a viagem, os dois músicos puderam aprimorar suas habilidades musicais, uma vez que tocar com músicos tão talentosos era um desafio. Holman diz sobre o filme que, devido à falta de tempo, não houve muita chance para o improviso. Mas tiveram também seus momentos de espontaneidade, que se traduziram em cenas mágicas do filme. Uma delas foi quando a dupla visitou uma Igreja gospel e o pastor lhes pediu para trazerem seus instrumentos e tocarem para a congregação. Mansour ficou visivelmente tocado e comenta sobre o fato de que, para a Igreja, o blues é a música do demônio, mas ainda assim eles deram as boas vindas para seus visitantes do Oriente Médio e desfrutaram do que eles tinham para oferecer através da música. Ao longo da jornada, os libaneses se entusiasmam cada vez mais com a ideia de retornar para casa e ver aonde a experiência levará a sua música. Ao mesmo tempo, é possível sentir a confiança adquirida pelos artistas ao adicionarem elementos da música libanesa tradicional ao blues. O próximo álbum deverá ser um novo caminho de blues com um toque de Oriente Médio. O filme está disponível para ser visto online.

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1° Foto por: Balazs Gardi 2° Foto por: Shawn Butcher

DISPUTAS SOBRE O SAGRADO:

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Por Bruno Bartel

O QUE A LIBERDADE DE IMPRENSA E A FIGURA DO PROFETA MOHAMMED TÊM EM COMUM?

Um ano após o atentado ao periódico Charlie Hebdo, antropólogo traz reflexão sobre as tensões entre política e religião, a partir de sua experiência no Marrocos

Após o atentado ao periódico francês Charlie

Hebdo, a 7 de janeiro do ano passado, o tema da liberdade de imprensa retornou ao espaço público marroquino acionado pelas publicações das charges contendo a figura do profeta Mohammed. A edição do semanal satírico que se seguiu ao evento ocorrido em Paris trouxe consigo a célebre frase “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie) em apoio às vítimas do massacre. Tal síntese acabou não apenas funcionando como um símbolo de defesa à liberdade de impressa na França, mas também reforçou o debate sobre as múltiplas formas de presença do Islã no país. Porém, dessa vez, com o cuidado de se evitar referências islamofóbicas. O apoio de diversos países do mundo ao atentado em solo francês representou um ganho de aliados na luta contra o radicalismo islâmico na Europa. Entretanto, algumas divergências políticas relativas aos pormenores do que se define como os limites dessa liberdade de imprensa do “Ocidente” novamente foram levantadas por países do Oriente Médio, Norte da África e pelas demais nações onde a religião islâmica é majoritária. No Marrocos, a circulação do número 1178 do Charlie Hebdo, que portava a imagem do profeta Mohammed com um cartaz onde se podia ler “Je suis Charlie” (Eu sou Charlie) e com o título extra de “Tout est Pardonné” (Tudo está Perdoado), numa referência ao ocorrido com os cartunistas, foi proibida pela monarquia Alauíta de Mohammed VI (no poder desde 1999). O rei, inclusive, se recusou a participar da marcha organizada em Paris, que contou com líderes de diversas nações em solidariedade a François Hollande. Além disso, o periódico marroquino MarocHebdo estampou em sua capa, dois dias após a edição do Charlie Hebdo, uma imagem Figura 01 – Capa da Edição nº 1178 da Charlie Hedbo. 14 de Janeiro de 2015. Fonte: http:// www.liberation.fr/societe/2015/01/12/mahomet-en-une-du-charlie-hebdo-de-mercredi_1179193. Acesso em 16 de Janeiro de 2015.

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contendo milhares de muçulmanos em peregrinação a Meca (cidade sagrada para a religião islâmica) com a frase: “Je suis mahométan” (Eu sou maometano). Embora o conteúdo da revista criticasse o uso da violência contra os cartunistas, reforçando a imagem de um Marrocos combatente aos grupos ligados ao fundamentalismo islâmico delineado pelo “Ocidente”, a exposição da figura do profeta Mohammed em um jornal satírico não deixou de ser apontada como uma possibilidade real de incitação ao ódio por parte de alguns marroquinos. Logo, o que se veria ao longo de todo o mês de janeiro de 2015 seria uma série de debates nos meios de comunicação do país (televisão, rádio, internet e mídia impressa) sobre os limites do uso da imagem do Profeta e as razões de o “Ocidente” querer representá-lo.

As argumentações religiosas atuantes na mídia marroquina reafirmaram a impossibilidade de se fazer o uso da representação de Mohammed, devido ao seu caráter sacro, e exigiram também um compromisso da comunidade marroquina que vive na França de repudiar quaisquer out ros atos da mesma magnitude na Europa. Além disso, a tensão entre o que se define como liberdade de imprensa, inspirada em processos de secularização, e a capacidade de agência da religião em sociedades islâmicas, como no caso do Marrocos, fornece um contexto específico de imbricação e tensão entre política e religião. Produções de alteridade A capa pós-atentado do Charlie Hebdo não agradou à maioria das populações islâmicas. As autoridades religiosas (‘ulama) no Marrocos foram

categóricas em criticar a publicação com a figura do profeta Mohammed estampada na companhia da frase “Tout est Pardonné” (Tudo está Perdoado). O rei Mohammed VI, denominado comandante da crença (amir al-um’minin), ou seja, uma espécie de “guardião” simbólico da religião islâmica do país, ordenou publicamente a proibição do jornal satírico em seu território como forma de contemplar aos anseios da elite religiosa.

Assim, a imagem do Profeta foi usada em favor da defesa dos valores religiosos marroquinos como uma forma de produzir uma distinção perante outros sistemas de crenças como, por exemplo, a laicidade francesa. Mas nem tudo se resumiu a repúdio por parte dos marroquinos. Dois dias depois do ocorrido, centenas de pessoas se manifestaram no centro da capital, Rabat, em protesto aos atentados. Convocados através das redes sociais, muitos manifestantes compareceram ao ato, na frente do prédio de um veículo de comunicação francês, vestidos de preto e com uma vela em memória aos mortos. Alguns também carregavam cartazes com mensagens “Je suis Mohammed, mais je suis Charlie” (Eu sou Mohammed, mas sou Charlie) ou “Je suis marocain mais je suis aussi Charlie” (Eu sou marroquino mas também sou Charlie). Entre os presentes, foi possível ver jornalistas, intelectuais laicos, militantes da esquerda e de organizações pró-direitos humanos e muitos professores universitários. O embaixador da França e outros diplomatas de sua delegação também compareceram ao protesto. A disputa em torno da condenação ou da liberdade do uso da figura do Profeta se prolongaria durante todo aquele mês no país. A mídia promoveu uma série de debates, enquetes e opiniões públicas como uma forma de apresentar e de posicionar os diversos grupos políticos, religiosos e demais setores da sociedade civil. Figura 02 – Capa da Edição nº 1101 da MarocHebdo. 16 a 22 de Janeiro de 2015. Fonte: Foto do autor em 16 de Janeiro de 2015.

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A produção dessas distinções se pautou na defesa expressa dos reais interesses ligados a cada grupo, mais uma vez a partir dos valores morais em jogo. As formas de controle, silenciamento e apagamento de um grupo sobre o outro foram notórias e expuseram os eixos de sacralidade do Profeta provenientes da imagem de um senso comum atuante sobre a religião islâmica. Entre discursos afinados com perspectivas voltadas aos valores normativos de um “Islã universal”, a partir do que se considera como uma “tradição”, e argumentos mais atípicos, centrados na crença de um “Liberalismo universal”, alguns meios de comunicação foram verdadeiros palcos de exibição de alteridades. Limites do sagrado As definições do que seria o “Islã”, o “muçulmano”, ou a “liberdade de expressão” foram os centros das disputas desses grupos que, a partir de seus valores (especialmente os do campo religioso), se posicionaram na sociedade marroquina. Em primeiro lugar, a proibição do Charlie Hebdo e a contestação do uso da imagem do profeta Mohammed, por meio de uma revista parceira do jornal satírico francês, identificam o Marrocos como pertencente à comunidade islâmica, a umma. O processo de transnacionalização dessa “comunidade imaginada” produz uma percepção compartilhada de que os “muçulmanos” e o “Islã” estão sob ataques e necessitam de defesa.

A (re)invenção dos muçulmanos na Europa após os ataque de 11/09, através do rótulo de “terroristas”, faz com que seus praticantes criem novas fronteiras de diferenciação entre si. Esses pertencimentos refletem os interesses dos grupos, mas também os posicionamentos dos indivíduos, consciente ou inconscientemente, com relação ao senso comum e às associações a determinadas alianças políticas.

Em segundo lugar, a questão dos marroquinos que vivem na França estabelece uma maior tensão para as “minorias muçulmanas” numa Europa cada vez menos tolerante com a presença do que se convém denominar de “Islã” e de suas formas de atuação (ora de invisibilidade ora de promoção no espaço público). A liberdade de expressão como valor caro ao “Ocidente” foi incorporada por grande parte da comunidade marroquina em solo francês, mas também encontrou vozes consoantes no Marrocos, e não somente na manifestação ocorrida na capital. A significação moral contida nos discursos e nas práticas dos muçulmanos, tanto no Marrocos quanto na França, se move a partir de dispositivos advindos de várias fontes que formariam as suas “culturas”. Porém, as formas de se acionar esses valores são particularizadas quando o assunto é apresentar os contornos que fazem dessas fronteiras a sua raison d’être. Cada um procurou controlar a sua imagem diante do que disse ser o “outro”. A distinção continua a ser um princípio dinâmico à espera de outras configurações a partir dos contextos particulares das relações desenvolvidas entre os dois países.

Seja como for, o que o atentado em Paris parece indicar é a controvérsia entre projetos que envolvem a produção de alteridades. De um lado, a sacralidade da liberdade de imprensa que se impõe como um importante valor moral no processo de secularização francês. Já do outro, a sacralização da figura do profeta Mohammed cria as condições para se discutir as formas de poder que estabelecem os limites da liberdade de imprensa marroquina e a inibem de seguir um caminho nos moldes do “Ocidente”. No final das contas, a incomunicabilidade desses diversos domínios se configura como um obstáculo tanto na percepção quanto no trato das diferenças existentes entre o que se considera como sendo “sagrado”.

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