DISQUE RACISMO E O PAPEL DO CENTRO DE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO

June 14, 2017 | Autor: R. de Oliveira Lemos | Categoria: Racismo y discriminación, Políticas Públicas, Segurança Pública
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Salvador BA: UCSal, 8 a 10 de Outubro de 2014, ISSN 2316-266X, n.3, v. 18, p. 89-105

DISQUE RACISMO E O PAPEL DO CENTRO DE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO Lemos, Rosalia de Oliveira Doutoranda do Programa de Pós Graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro – UFF e Professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]

Resumo: Apresentaremos uma breve evolução da política de Segurança Pública, no período de 1982 – 2002 com ênfase às ações direcionadas às populações vitimadas pelo preconceito e racismo no Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Discutiremos a evolução dos trabalhos desenvolvidos pelo Centro de Referência Nazareth Cerqueira Contra o Racismo e o Antissemitismo (1999-2002), no âmbito da Secretaria Estadual de Segurança Pública que, através do Serviço Disque Racismo (2000), atuou na resolução de conflitos raciais, com equipe multidisciplinar, fundamentada na filosofia da Segurança Pública Cidadã, priorizando populações que tradicionalmente estiveram à margem do exercício pleno da cidadania. Como resultado, tivemos a criminalização das práticas racistas e a articulação com diferentes movimentos sociais, potencializando tal política na agenda e compromisso intragovernamental. Palavras-chave: Segurança Pública, Racismo e Políticas Públicas. Keywords: Public Security, Racism, and Public Policy. Abstract: This is presentation a brief evolution of Public Security policy in the period from 1982 - 2002 with emphasis on actions directed to people victimized by prejudice and racism in the state of Rio de Janeiro, Brazil. We will discuss the progress of work developed by Nazareth Cerqueira Reference Center Against Racism and Anti-Semitism (1999-2002), under the State Department of Public Safety that through the Service Dial Racism (2000), served in the resolution of racial conflicts, a multidisciplinary team, based on the philosophy of Citizen Public Security, prioritizing populations that traditionally were outside the full exercise of citizenship. As a result, we had the criminalization of racist practices and articulation with different social movements, with potentiality such a policy on the agenda and intra-governmental commitment.

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1. Reflexões sobre a importância de uma nova polícia no Rio de Janeiro: a cidadania em discussão A Constituição Federal de 1988 foi, sem dúvida alguma, um marco para a sociedade brasileira, tendo em sua formulação a participação de diferentes segmentos da sociedade como os movimentos feministas, favelados e negros, por exemplo. Era um momento de grande envolvimento e Carvalho (2003, p. 07) afirma que havia a crença de que a democratização das instituições traria rapidamente a felicidade nacional. Pensava-se que por termos conquistado o direito de eleger nossos prefeitos, governadores e presidente da república seria a garantia de liberdade, de participação de segurança, de desenvolvimento, de emprego, de justiça social, além do acesso às políticas sociais de qualidade. Queríamos muito, aliás, queríamos tudo! Mas, de certa forma, conquistamos a liberdade, o poder de livre manifestação e alguns direitos, que ao longo dos tempos tem sido ampliado, porém estamos ainda muito longe do ideal. Corroborando Fleury (2003, p. 06), a cidadania pressupõe a inclusão ativa dos indivíduos em uma comunidade política nacional que comparte um sistema de crenças em relação aos poderes públicos, à própria sociedade e ao conjunto de direitos e deveres que estão envolvidos nesta condição de cidadania. A esta dimensão pública dos indivíduos costumamos chamar de cultura cívica, que é fruto dos mecanismos de socialização – escola, família, comunidade – e dos mecanismos de repressão – comunidade, polícia. Esse artigo faz parte do resgate de um momento importante, quando cientes de que a ação da polícia do Rio de Janeiro traduzia um tratamento desigual e discriminatório em relação à população negra e favelada ao longo de sua história. Queremos compartilhar a experiência na implantação do Centro de Referência Nazareth Cerqueira Contra o Racismo e Antissemitismo, no ano de 1999, vinculado à Secretaria de Estado de Segurança Pública do Rio de Janeiro – SSP. Vale ressaltar, que essa política social encontra suas origens nas demandas dos moradores de favelas, da cidade do Rio de Janeiro, uma vez que foram - e ainda são registrados constantes conflitos entre moradores e policiais – mesmo com a implantação recente das Unidades de Polícia Pacificadora. Já nos anos 1980 ocorreram reivindicações e denúncias de setores do Movimento Negro do Rio de Janeiro, diante de práticas discriminatórias por parte dos agentes de segurança pública. Por isso, a afirmação aludida na DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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letra da música dos Titãs: Polícia para quem precisa de polícia! entoava como um hino por grande parte dos moradores e negros dessas áreas, mesmo reconhecendo o papel importante e necessário da segurança pública, mesmo que não estivesse ao acessível a todos. A letra da música a seguir diz muito sobre esse momento. Polícia Titãs Dizem que ela existe Prá ajudar! Dizem que ela existe Prá proteger! Eu sei que ela pode Te parar! Eu sei que ela pode Te prender!... Polícia! Para quem precisa Polícia! Para quem precisa De polícia... (2x) Dizem prá você Obedecer! Dizem prá você Responder! Dizem prá você Cooperar! Dizem prá você Respeitar!... Polícia! Para quem precisa Polícia! Para quem precisa De polícia... (2x)

O processo histórico da polícia e moradores de favelas sempre foi conflituoso, uma vez que ela classificava cidadão em merecedores de respeito e aqueles que, por questões sociais e raciais, eram colocados em segundo plano e merecedores de tratamento de segunda classe, violento e discriminatório. “Elemento Suspeito” e “Elemento Cor Padrão” eram usados para designar pobres e negros – não obstante, ainda persiste essa cultura 1 . Assim, o governo fluminense foi obrigado a buscar ações concretas para mudar essa realidade. 1

Em 2013, a polícia de São Paulo foi acusada de racismo institucional, quando o Comando ordenou que fossem abordados, de forma prioritária, negros e pardos que circulassem nos bairros nobres, por serem considerados suspeitos. Disponível em: http://diariosp.com.br/noticia/detalhe/42509/PM+da+ordem+para+abordar+%91negros+e+pardos%92 DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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Em relação aos setores do Movimento Negro, que sempre denunciaram que a sociedade brasileira vivia uma extrema divisão étnicorracial proporcionando aos negros e pardos, os piores índices de qualidade de vida e, agregando à cultura racista, via na ação policial uma predominância de atitudes discriminatórias e preconceituosas. No Brasil, de certa forma se consolidou dois tipos de segurança pública: uma para o rico, outra para o pobre. Essa cultura, de certa forma provocou a consolidação de que, o acesso às políticas públicas, incluindo o direito à segurança, era um direito das classes dominantes. Foi sistematizada, então, uma visão de que segurança pública estava sempre associada ao caráter repressivo dos agentes policiais sobre as populações pobres, negras e pardas, que sempre estiveram à margem do direito de gozar, como qualquer cidadão, da sensação de se sentirem seguros. Assim, a imagem que nos vem à mente quando falávamos em segurança pública era a de um policial de arma em punho e arrogância no olhar, numa atitude explicita de repressão. Carvalho (2003, p. 53) constata que até hoje a população negra ocupa posição inferior em todos os indicadores de qualidade de vida. É a parcela menos acesso à educação, com empregos menos qualificados, os menores salários, os piores índices de ascensão social. Ao compararmos a Lei Áurea (1888), com o Estatuto da Terra, Lei Nº 601, de 18 de setembro de 1850 era composta por 26 artigos2. Podemos identificar a ausência de formulação de política pública para a população negra, uma vez que a Lei Áurea continha apenas dois artigos: um que abole a escravidão e o outro, que determina o dia 13 de maio para entrar em vigor. A população negra, segundo o autor, teve que enfrentar sozinha o desafio da ascensão social, e frequentemente precisou fazê-lo por rotas originais, como o esporte, a música e a dança. Segundo dados do IPEA (2013), ao analisar a PNAD 2011: (...) conquanto os negros representem 51,3% da população, correspondem a apenas 26,7% daqueles que concluíram ensino superior ou pós-graduação; o que corresponde a 3,8% da população negra, contrastando com 10,9% da população branca que alcançou este nível educacional IPEA (2013, p. 429).

Em se tratando de segurança pública para essa população, De acordo com a Nota Técnica do IPEA: Vidas Perdidas e o Racismo no Brasil:

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A Lei em questão dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica: e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de Colônias de nacionais, e de estrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonização estrangeira na forma que se declara. DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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Analisando os dados sobre letalidade violenta no Brasil, apontamos que a violência atinge diferentes grupos da população brasileira. No entanto, as mortes violentas – homicídios, acidentes de transporte, suicídios e outros acidentes – geram perda maior de expectativa de vida ao nascer para os homens e, dentre estes, para os negros. (IPEA, 2003, p. 14).

Casos recentes sobre incidentes de violência envolvendo a população negra têm sido recorrentes, seja por causa da fluidez das notícias ou pela coragem em denunciar, possibilitam fazer a leitura de que problemas dessa natureza estavam submersos devido a invisibilidade histórica vivida por essa parcela da população em relação aos meios de comunicação. No entanto com as ferramentas de acompanhamento de dados instituídos na esfera pública tais questões vieram a tona e estão sendo disseminadas: Segundo informações do Sistema de informações sobre Mortalidade (SIM/MS) e do Censo Demográfico do IBGE, de 2010, enquanto a taxa de homicídios de negros no Brasil é de 36 mortes por 100 mil negros, a mesma medida para os “não negros” é de 15,2. Essa razão de 2,4 negros para cada indivíduo de outra cor morto é muito mais ampla quando se analisa a vitimização por Unidades Federativas. (IPEA, 2013, p. 06).

Um exemplo recente foi em decorrência do assassinato por policiais, na favela do Cantagalo, em 23 de abril de 2014, do bailarino Douglas Rafael da Silva Pereira, conhecido como DG, de 26 anos. Tais problemas demonstram a necessidade da mudança da postura dos agentes de segurança pública para com essa população. No entanto, esforços nesse sentido tem um processo histórico, que procuraremos demonstrar analisando o período de 1998-2002 no estado do Rio de Janeiro, como veremos a seguir.

2. Tempos de mudança As primeiras iniciativas que buscavam tratar pobres de forma respeitosa por parte dos agentes de segurança pública, surgiram no então governo do estado do Rio de Janeiro durante a gestão de Leonel de Moura Brizola, no ano de 1982, quando a foram dadas orientações para que os policiais modificassem suas ações em comunidades de baixa renda. Estes deveriam seguir padrões que respeitassem os Direitos Humanos. Talvez venha deste tempo a confusão do que sejam Direitos Humanos, uma vez que muitos policiais entenderam que ao serem orientados a respeitar as casas de moradores de favela, estariam protegendo de forma indireta bandidos, na perigosa associação de que todos dos moradores de favelas estavam implicados com o tráfico de drogas e, a associação direta de que Direitos Humanos era para bandidos e não para policiais. No entanto, o período, de 1995 a 1998, na gestão do governador Marcelo Alencar, a área de segurança pública sofreu muito com as novas orientações, quando segundo dados DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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oficiais, foram registrados um número significativo de crimes, com a justificativa de “resistência à prisão”, ou seja: auto de resistência e uma medida administrativa que tem origem no período da Ditadura, que geralmente legitima o assassinato de pessoas, muitas vezes inocentes, por considerar que estes resistiram à prisão. Nesse tempo, a ação policial era contemplada com a “gratificação faroeste”, valor pago aos policiais por cada cadáver computado na sua ação “profissional”. O governo de Antony Garotinho, eleito em 1998, foi instalado nomeando a área de segurança pública como prioridade. Um estudo minucioso desenvolvido por uma equipe de intelectuais propõe mudanças significativas. Eles definiram que o comportamento do policial era decisivo para a promoção da credibilidade das instituições democráticas, mesmo que nas esquinas dos bairros pobres, o representante fardado do Estado revelava a todos que o princípio universalista da cidadania só valeria para os membros das elites: o que se observava são tratamentos diferenciados para classes desiguais (SOARES, 1998). Por isso, podemos afirmar que o Estado passou por um momento singular no tratamento dispensado à Secretaria de Estado de Segurança Pública – SSP, que investiu e priorizou a integração de agentes de segurança pública com os movimentos sociais organizados: homossexuais, negro, mulheres, favelas, dentre outros. As primeiras sementes plantadas durante a gestão do Coronel Nazareth Cerqueira nos anos anteriores, quando esteve à frente da segurança pública do estado, possibilitou rediscutir – ainda que timidamente – o papel tanto da polícia militar e o da civil em relação aos negros residentes do estado, de fato estavam dando seus frutos. Vale lembrar que naquele período, anos 1980, o Movimento Negro participou de inúmeras palestras, visando sensibilizar os agentes policiais sobre as questões raciais. O IPCN – Instituto de Pesquisa e Cultura Negra desempenhou papel fundamental neste processo com criação do SOS RACISMO. Foram desenvolvidas ações integradas pela Secretaria de Desenvolvimento e Promoção da População Afro-brasileira - SEDEPRON, culminando na criação da Delegacia Especializada em Crimes Raciais. A polícia estava presente em nosso cotidiano de diferentes formas: seja numa revista em ônibus, seja numa incursão na favela que morávamos, seja numa blitz, quando nossos carros eram abordados de forma altamente intimidatória. Essas experiências induziram à associação da imagem do policial como algo negativo e perigoso, ou seja, o perfil repressor dos agentes de segurança pública e não daquele que proveria nossa proteção estava presente em nossas mentes. DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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Mas, uma experiência que tentaria modificar essa realidade, ainda estava por vir, como veremos mais adiante. Em janeiro de 1999, o então Subsecretário de Pesquisa e Cidadania, da SSP, Prof. Luiz Eduardo Soares convidou entidades do Movimento Negro, para discutirem a filosofia de uma nova política. Como resultado desta reunião, foi criado um grupo de trabalho visando a elaboração de aulas para policiais que faziam o segundo grau dentro de Batalhões da Polícia Militar. Quando recebi o convite para compor a equipe, a princípio fiquei em dúvida, mas o desafio era estimulador. A partir daquele momento, entramos em contato com pessoas que não podiam lavar seus uniformes de trabalho em suas residências, por medo de serem identificados como policiais e mortos por traficantes do local, uma vez que grande parte dos policiais mora favelas. Ouvimos depoimentos que demonstravam criatividade em burlar tal dificuldade, quando alguns secavam suas fardas atrás da geladeira, aproveitando o calor do motor numa tentativa de proteger suas vidas. O curso era ministrado no Quartel General – QG e ao falar para turmas de 150 a 180 PM, num total de 3.200 homens (apenas duas mulheres neste universo) vivemos vários momentos de tensão ao debater sobre a diversidade social e racial que nosso país fecunda. Vivemos momentos de crise ao ver alunos, que passavam pelo curso, mortos. Sofremos ao sermos informadas que a cabeça de um soldado “passeou” pela comunidade, numa demonstração corriqueira da violência que vivemos em nosso estado. Vimos pessoas criativas, mas também pessoas ruins e cruéis. Outras, que saiam de casa e não sabiam se iriam voltar, depois de um dia de trabalho e do confronto diário. Sofremos com a morte do Coronel Nazareth Cerqueira e de tantos outros. Ficamos indignadas com o assassinato à queima roupa, depois de várias horas de tortura, de um soldado de apenas 29 anos, após deixar em casa sua namorada, numa das favelas da cidade. Entretanto temos que falar que víamos – e vemos -, muitos jovens de favelas morrendo precocemente, vítimas deste mesmo conflito, como foi assinalado anteriormente. Alguns policiais negros relatavam seu cotidiano com o racismo, quando estavam sem fardas (voltando dos “bicos” que faziam em dias de folga) e sofriam constrangimentos com as abordagens preconceituosas de seus colegas que faziam blitz nos ônibus. Naqueles momentos eles passavam a vítimas da cultura preconceituosa que elegia – e elege - todo negro como suspeito imputando as mais humilhantes revistas policiais. Percebíamos a dor por terem que permanecer calados e se tornarem “elemento cor padrão” - termo empregado pela corporação DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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para definir negro suspeito3. Era visível a revolta por esta situação vivida, por sentirem na própria pele a naturalização dessa prática, que muitas vezes eles eram os protagonistas, quando estavam no exercício profissional com suas fardas. Bourdieu (2012) oferece uma reflexão sobre esse problema: As distinções, enquanto transfigurações simbólicas das diferenças de facto, e mais geralmente, os níveis ordens, graus ou quaisquer outras hierarquias simbólicas, são produto da aplicação de esquemas de construção que, como por exemplo, os pares de adjectivos empregados para enunciar a maior parte dos juízos sociais, são produto da incorporação das estruturas a que eles se aplicam; e o reconhecimento da legitimidade mais absoluta não é outra coisa senão a apreensão do mundo comum como coisa evidente, natural, que resulta da coincidência quase perfeita das estruturas objectivas e das estruturas incorporadas. (BOURDIEU, 2012, p. 145).

Por isso, quando fomos convidadas para ministrar aulas no Grupamento de Policiamento de Áreas Especiais – GEPAE, sob o comando o Major Carballo, projeto que foi o embrião para as UPPs, vimos possibilidade de trilharmos mais um caminho em busca de minimização – em longo prazo – para a diminuição dos conflitos em diversos pontos do estado, e assim contribuir para aumentar nossa sensação de segurança. Corroborando o pensamento dos autores do livro Violência e Criminalidade no Rio de Janeiro, o terrível desafio que a segurança pública representa exige de todos uma atitude mais humilde e mais séria. Mais humilde, para compreender sua complexidade; e mais séria, para enfrentá-la com mais eficiência (SOARES, 1998, p. 18). Sobre esse ponto sou obrigada a refletir, que não basta eficiência técnica e das ideias trabalhadas em cursos de capacitação. A articulação e visão política é também um dado de contínua resistência, para a promoção de mudanças da realidade. Foi assim que me senti quando houve a crise na segurança pública, culminando com a destituição de Luiz Eduardo Soares. Houve naquele momento, um desmonte no trabalho já iniciado, vi as salas vazias, computadores sem memória, o que me fez sentir no gueto, no vazio. Foi na resistência, adquirida nos vinte e tantos anos de militância no Movimento Negro e no Feminismo Negro, que pude ter a humildade preconizada pela equipe de Luiz Eduardo, e reunir forças para prosseguir mais uma etapa enquanto uma mulher militante por justiça racial e pelo fim da violência policial. De acordo com o sociólogo Monteiro (2003):

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Não podemos esquecer que durante o treinamento dos aspirantes ao cargo de policiais, o alvo usado para o treinamento de tiros é um boneco negro, coisa que sempre mereceu críticas por parte de militantes do Movimento Negro. DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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Segundo a professora Rosalia Lemos, existiram fatores que teriam contribuído para a permanência do centro de combate ao racismo. Tendo entrado em contato a equipe de Luiz Eduardo, ainda no período das aulas ministradas nos batalhões de polícia, a professora, responsável pelos assuntos ligados à questão da mulher negra, dada sua história de militante do movimento negro e também no movimento de mulheres, já havia encaminhado um pedido de financiamento para um projeto com as feições do Disque-Racismo ao Ministério da Justiça que se demonstrou solícito em apoiar o empreendimento. Rosalia Lemos destaca que o contexto nacional e internacional era favorável, pois já estavam iniciadas as mobilizações para a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, que seria realizada em Durban, no ano de 2001. A questão “racismo” estava colocada como uma espécie de tema da moda, o que ajudava a demonstrar a pertinência do centro. Neste contexto, é ainda lembrado que a polícia fluminense ainda era alvo de observação de entidades internacionais de defesa dos direitos humanos, o que fica bem exemplificado na visita que a Alta Comissária das Nações Unidas, Mary Robinson fizera aos Centros de Referência da Cidadania. Visita esta onde a presença de policiais, mesmo da alta cúpula da Segurança Pública, teria sido impedida como forma de garantia de uma interlocução mais franca com os militantes das minorias ali representadas (MONTEIRO, 2003, p. 30).

Dizem os mais velhos, que é na dificuldade que encontramos os verdadeiros parceiros e, foi na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, através do deputado Carlos Minc, que estabelecemos estratégias para manter o trabalho, realizando diversas Audiências Públicas, que não só aprofundou o papel dos Centros de Referências, como consolidamos a sua importância para contribuir para a mudança do quadro naquele momento. Consideramos esse processo vitorioso para a consolidação de uma política social. O Estado ganhou com a manutenção desta política na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Os movimentos sociais também ganharam por tornar sua bandeira parte de uma política pública na área social. A seguir apresentaremos a concepção dos Centros de Referência de Cidadania.

3. O papel dos Centros de Referência da Cidadania Formular políticas de segurança pública nos tempos atuais (ano 2000) é tentar sair do senso comum que consolidou o aspecto repressivo, em detrimento da integração, participação, negociação e tolerância na relação cotidiana entre agentes – policiais civis e militares – e a população na sua totalidade. Neste sentido, a Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro investiu em ações em da busca da cidadania plena de populações tradicionalmente marginalizadas das políticas de segurança. Como vivemos numa sociedade que apresenta uma enorme diversidade sociocultural e econômica. Sociedade composta por negros, brancos, judeus, ciganos, turcos e indígenas. Se DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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pensarmos sob o ponto de vista da opção sexual, temos os heterossexuais e os homossexuais, masculinos e femininos. Temos ainda, pessoas pobres e ricas; moradoras de bairros de classe média e de favelas. Enfim, se fossemos elencar toda a diversidade este artigo não teria fim. Então, esta sociedade – como muitas – apontava para a necessidade de criação de mecanismos sociais, para que a diferença não fosse usada para oprimir, agredir ou constranger os Outros. Viver a diferença, mas na perspectiva e prática da igualdade de direitos. Assim, o acesso à segurança pública deveria ser entendido como um direito universal e acessível para a população em geral. E visando garantir esse direito, o Coordenador Setorial de Segurança, Justiça, Defesa Civil e Cidadania, Professor Cel. Jorge da Silva, também não mediu esforços para promover a mudança de paradigma e reconhecer a grande dificuldade das populações discriminadas de exercerem seus direitos. Por isso foram criados os Centros de Referência da Cidadania, com a missão de desenvolver, irradiar, integrar e monitorar políticas de ampliação do direito à segurança pública alicerçada na busca de consolidação da segurança pública cidadã. Os Centros de Referência da Cidadania foram estruturados a partir da construção e consolidação de parcerias diretas com os diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil que atuavam nessas áreas sociais, propiciando uma relação mais aberta e democrática entre Poder Público e Comunidade. A equipe do Professor Luiz Eduardo Soares concebeu os Centros de Referência da Cidadania com o objetivo de implantar novas culturas no interior dos órgãos de polícia e a difusão da existência de novos padrões de segurança, visando que seus agentes pudessem conhecer não só a dinâmica interna dos Movimentos Sociais - Negro, GLTS (Gays, Lésbicas, Travestis e Simpatizantes), Comunitário e de Gênero -, como tivessem acesso às informações técnicas, que contribuíssem para a melhoria no atendimento das demandas diárias no exercício profissional. Com a implantação dos Centros de Referência de proteção àqueles que sofriam discriminações – homossexuais, negros, mulheres, favelas, idosas e ambientais – tornou possível criar um canal de interlocução entre estes diferentes segmentos da sociedade. Neste sentido, além da simples constatação dos problemas vividos por estas populações, se buscou soluções para aperfeiçoar o padrão profissional da ação policial, numa aliança inédita em nosso estado. A seguir apresentaremos o Centro de Referência Nazareth Cerqueira Contra o Racismo e Antissemitismo. DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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4. Centro de Referência Nazareth Cerqueira Contra o Racismo e Antissemitismo O primeiro nome dado ao que atuaria contra a violência racial, foi Centro de Referência Contra a Discriminação Racial, no entanto, foi reformulado em virtude à homenagem prestada ao exemplar Coronel Nazareth Cerqueira. No ano de 1999 nasceu o Centro de Referência Nazareth Cerqueira Contra o Racismo e o Antissemitismo que contou com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, com a concessão de uma bolsa de pesquisador mestre. Outra parceria foi com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, que aprovou o projeto de criação do serviço DISQUE RACISMO, aberto ao público visando atender denúncias de racismo, com o devido acompanhamento jurídico e psicológico, para pessoas vítimas de racismo, que acionavam o serviço através do telefone: 3399-1300.

Figura 01: Cartaz de divulgação do Disque Racismo

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Este foi um projeto inovador e só tornou realidade devido o aumento da consciência de que o acesso à segurança pública deveria ser amplo e acessível a todas as pessoas que fazem parte da sociedade. Uma Segurança Pública Cidadã deveria ter o compromisso de contemplar a diversidade e trabalhar em conjunto, não só na busca para resolução para os conflitos, mas também num processo educativo no qual todos deveriam ser responsáveis pelos rumos que a sociedade deveria trilhar. Durante o período que estive a frente do Disque Racismo, muitos foram os atendimentos e resolução de conflitos raciais, que podem ser resumidos na figura abaixo:

572 denuncias apreciadas pela Equipe Técnica

320 atendidas presencialm ente

106 julgadas procedentes para abertura de processo judicial

56 desistências

50 denúncias em trâmite judicial normal

13 processos finalizados judicialmente

Figura 02 – Denúncias que geraram processos judiciais – Disque Racismo

É importante ressaltar que as ligações recebidas pelo serviço nem sempre aludiam aos crimes raciais e a tabela abaixo discrimina os tipos de ligações recebidas no período de 2001-2002:

Tipo da Ligação

Ligações

%

Denúncias

838

66,3

Solicitações (Material de Propaganda)

269

21,3

Informes

94

7,1

Críticas

15

1,4

Ameaças

08

0,6

Sugestões

08

0,6

Trotes

07

0,5

Não identificada

28

2,4

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Total

1267

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Tabela 01 – Tipologia das ligações recebidas – Disque Racismo

Um aspecto relevante foi a promissora aliança entre uma demanda social reprimida com a vontade política de mudança, traduzida no compromisso governamental através da incorporação de bandeiras de movimentos sociais em programas de governo. Como bem diz uma policial parceira das ações do Centro de Referência Nazareth Cerqueira Contra o Racismo e o Antissemitismo, “esta convivência é necessária”. Acrescentaria que além de necessária, a articulação das políticas públicas com a população que se beneficiará de tal política é imprescindível, ainda mais diante da realidade brasileira em relação à discriminação e ao racismo. Os objetivos do Centro de Referência Nazareth Cerqueira Contra o Racismo e o Antissemitismo eram: 1) estabelecer e manter canais permanentes de diálogo com entidades, grupos e pessoas que representam os setores alvos dessas políticas especiais de segurança; 2) Criar condições de ação e trabalho em parceria com entidades da sociedade civil; 3) Estabelecer estratégias para treinamento, sensibilização e capacitação das polícias civil e militar nas temáticas em questão; 4) Criar mecanismos de resolução de conflitos nas áreas em questão que permitam o pronto atendimento de problemas de segurança mobilizados pelas populações alvo dos Centros de Referência; 5) Implantar serviços que estimulem a recuperação ou a criação de laços de confiança entre as populações alvo e os órgãos de segurança; 6) Promover a integração dos diversos organismos do sistema de segurança para permitir ações rápidas e eficazes nas áreas específicas das populações alvo; 7) Desenvolver mecanismos de monitoramento das atividades dos Centros de Referência que permitam a avaliação das estratégias desenvolvidas. 8) Elaborar material didático e de divulgação para formação continuada dos profissionais da segurança pública; 9) Realizar campanhas socioeducativas visando a sensibilização-informação da sociedade acerca do papel desempenhado pela polícia cidadã.

Com esse elenco de atribuições, o processo de estruturação e consolidação dos Centros de Referência foi conduzido através das seguintes linhas de ação: 1) Capacitação de Atores Estratégicos: Elaborar metodologias e instrumentos de capacitação; Ministrar e supervisionar atividades de treinamento e capacitação; 2) Banco de Dados: Subsidiar a estruturação do programa de inserção de dados, Levantar fontes secundárias de dados; Sistematizar indicadores; DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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3) Acervo de Material de Referência: Receber, selecionar e armazenar materiais de referência que possam subsidiar a atuação dos Centros de Referência; 4) Rede de Serviços e Apoio: Elaborar os métodos e instrumentos de funcionamento da rede (ex.: Banco de Horas), Identificar, contatar, sensibilizar e articular potenciais parceiros para compor a Rede de Serviços e Apoio; 5) Comunicação Social: Divulgar as ações de forma contínua e permanente; 6) Palestras, Encontros e Seminários (nacionais e internacionais): Atendimento às solicitações de palestras, participação em encontros e seminários nacionais e internacionais; 7) Rede de Voluntários: Estruturar o Programa de Mobilização de Voluntários; Supervisionar as atividades dos voluntários; 8) Materiais: Elaborar textos, cartilhas, etc. 9) Avaliação do Processo: Agendar, propor pauta e participar de reuniões periódicas de avaliação e planejamento; Elaborar relatórios periódicos. 10) Concursos: Realização de concursos junto à corporação sobre a temática racial.

As ações acima mencionadas foram todas cumpridas: produzíamos relatório mensal que era publicado em Diário oficial; as aulas tiveram continuidade; realizamos uma campanha estadual no dia da Consciência Negra, em 2001, com inúmeros outdoors por todo estado do Rio de Janeiro, em alusão ao fim do racismo; participamos da III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas – África do Sul - 2001, Encontro de Entidades Lusófonas – Angola – 2000, Conferência das Américas – Chile – 2000 e no ano de 2001 participamos de uma seleção mundial, realizada pelos Estados Unidos da América, e conhecemos as ações afirmativas para mulheres e negros realizadas naquele país, através do Programa Visitante Internacional – 2001. Foram inúmeras participações nos meios de comunicação nacional com apresentação e divulgação do serviço, além da realização de concurso de redação no interior da corporação sobre a experiência dos policiais com a temática racial. 5) “Positivo e operante!”: considerações finais Apresentamos na introdução desse trabalho a letra da música dos Titãs, que nos faz refletir sobre o papel dos agentes policiais. Considero que o papel da Segurança Pública, para garantia de segurança para todos e todas, deve priorizar um trabalho integrado com a população de forma a modificar os amálgamas que estruturaram sua trajetória, historicamente alicerçada em atitudes de opressão e discriminação de alguns segmentos considerados à margem de direitos em nossa sociedade, o que acarretou sentimentos de constante vigilância e desconfiança por parte dos negros e pobres do estado do Rio de Janeiro. DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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Durante período de intensa atividade do Centro de Referência Nazareth Cerqueira contra o Racismo e o Antissemitismo – 1999-2002 –, foi possível consolidar a crença de que, as políticas de segurança pública devem sempre se afastar do senso comum que consolidou o aspecto repressivo em detrimento da integração, participação, negociação e tolerância nas relações cotidianas entre agentes – policiais civis e militares – e a população na sua totalidade. Infelizmente, por ser uma área muito sensível às mudanças de programas de governo, presenciamos retrocessos e avanços intermitentemente.

A atual prioridade da segurança

pública em nosso estado, que tem disseminado as UPP – Unidades de Polícia Pacificadoras em diversas favelas - mesmo constatando que, aparentemente, não conflitam com a anterior cultura de segurança pública -, venha a reforçar os estereótipos em relação à população negra e parda nesses “territórios”, uma vez que algumas denúncias de violações de Direitos Humanos têm sido realizadas por seus moradores. Eles tem classificando a ação policial nessas áreas de violenta, de constante postura de vigilância comunitária, de assumir a ingerência sobre os eventos que podem acontecer, de definir horários de festas, de terem uma postura de eterna negação das culturas Funk e Rap. Diante desse quadro percebo, que esse programa estabelece uma cidadania vigiada, muito aquém do desejo da possibilidade do exercício da cidadania plena. Meu relato é apenas um exemplo que a cidadania ainda é inconclusa, pois necessitamos de ações políticas e sociais nas quais a diferença não possa ser usada para oprimir, agredir ou constranger iguais, temos que exercitar o viver a diferença, mas na perspectiva e prática da igualdade de direitos. Assim, se entendermos que o acesso à segurança pública deva ser compatível ao que é feito nos bairros do Leblon ou Ipanema poderíamos diminuir conflitos, assassinatos, constrangimentos e insatisfações. A complexificação do tecido social brasileiro, com a emergência de inúmeras organizações e movimentos populares de base, permite a introdução de novos temas na agenda pública, vocaliza as demandas sociais emergentes e constitui-se em recurso organizacional que produz o adensamento da sociedade civil e o aumento do capital social (FLEURY, 2003, p.12). Quando realizamos a sobreposição da questão racial à estrutura social brasileira, os negros se contextualizam dentro de um esquema de posicionamento, que é reconhecido enquanto uma “verdade social” traduzido no mito da democracia racial. Passam a ter seu lugar próprio, bem como habilidades e características próprias, diferentes da equiparação universal DISQUE RACISMO E O PAPELDE REFERÊNCIA CONTRA O RACISMO E O ANTISSEMITISMO: UMA EXPERIÊNCIA NA SEGURANÇA PÚBLICA DO RIO DE JANEIRO – LEMOS, Rosalia de Oliveira

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enquanto utopia no ideário democrático-igualitarista. Eis então o problema em sua forma mais desnudada. O preconceito, engendrado e verbalizado de forma clara, ou mascarado pelo cinismo de piadas sutis, conclama essa readequação de pessoas aos seus “devidos lugares”. É o clássico “cada macaco no seu galho”, que demonstra o ritual de posicionamento dos lugares sociais e de reafirmação de hierarquias, que ao longo destes quinhentos e quatorze anos de Brasil teima em não desaparecer e os coloca no lugar de cidadãos de segunda classe. Vale citar Bauman (2005), para ilustrar nossa reflexão, quando faz a definição de subclasse: São as pessoas recentemente denominadas de “subclasse”: exiladas nas profundezas além dos limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior do qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade) podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas. Se você foi destinado à subclasse (porque abandonou a escola, é mãe solteira vivendo da previdência social, viciado ou ex-viciados em drogas. Sem-teto, mendigo ou membro de outras categorias arbitrariamente excluídas da lista oficial dos que são considerados adequados e admissíveis), qualquer outra identidade que você possa ambicionar ou lutar para obter lhe é negada a priori. (BAUMAN, 2005, p. 46).

A humanidade deve caminhar para eliminar discriminações e violações de Direitos Humanos em todas as teias das relações sociais e reafirmar as diferenças, com vistas à busca de igualdade de direitos e exercício pleno da cidadania, uma vez que os mecanismos racistas tentam funcionar como um engenhoso artefato de ordenamento, capaz de colocar as coisas em seus “devidos lugares”. E como bem discorre Bauman (2003) -, estamos líquidos, penetrando em todas as esferas e tentando mudar o status quo nas diferentes formas que assumimos ou nos que nos adequamos.

6. Referências Bibliográficas ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO RIO DE JANEIRO. Indicação Legislativa Nº 679/2004. Rio de Janeiro, 2004. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro0307.nsf/e00a7c3c8652b69a83256cca00646ee5/b36d54317 68d799b83256f7100589e77, 28 de agosto de 2013. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de JANEIRO. Bertrand Brasil. 2012. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil – o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2003.

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FLEURY, S. Políticas sociais e democratização do poder local. In : VERGARA, S. C. & CORRÊA, V. L. A. (org.). Propostas para uma gestão pública municipal efetiva. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003. IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Nota Técnica Vidas Perdidas e Racismo no Brasil. Daniel R. C. Cerqueira (DIEST/IPEA) e Rodrigo Leandro de Moura (IBRE/FGV). IPEA. Brasília, 2013, Nº 10. IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Políticas sociais: acompanhamento e análise. Brasília, Periódicos. I. Ipea, 2000 , v. 21 - (jun. 2013). Disponível em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/politicas_sociais/bps_19_completo.pdf, 23 de agosto de 2013. MONTEIRO, Fabiano Dias. Retratos em Branco e Preto, Retratos sem Nenhuma Cor: A Experiência do Disque-Racismo da Secretaria de Segurança pública do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGSA-IFCS, 1988. xi, 186p. Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGSA/IFCS. SOARES, Luiz Eduardo. Violência e Criminalidade no Rio de Janeiro: Diagnóstico e propostas para uma política democrática de segurança pública. Rio de Janeiro, Hama, 1998, 2ª Ed.

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