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May 29, 2017 | Autor: Thais Faria | Categoria: Gender and Sexuality, Feminism, Cinema, Audiovisual
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CASTRO, Thais Faria. (Des) construindo performances: o feminino como sujeito na pornografia feminista. 189 f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, 2016.

ABSTRACT Pussy, asshole, cock, tits, skin, eyes, mouths, hands ... touching, penetrating, rubbing, warming up... female cumming! This work is motivated by the pleasure ... from a female´s perspective! It aims at analyzing Feminist Pornography as a practice and a political instrument that moves the hierarchical structure of a normative imaginary confronting the female sexuality. The insvetigation will be conducted through the analysis of symbolic structures in social and sexual roles in our contemporary society, which are reflected upon a cinematic aesthetic, production, scenes, angulation, casting, costume, lighting, scenery and script. This work propose to unveil whatever permeates the normative discourses of the mainstream Pornographic industry, created on the pleasure and climax represented in those movies. Thus, we intent to analyze the displacement of moralvalues on sexuality related to the feminine, embedded with the logic of patriarchal society, cisheteronormative, white and skinny social structure, through a production that contemplates, or at least experiments, the diversity of representations and female desires. In this way, we propose that Feminist Pornography Feminist has the potency of demystify well-established cultural patterns, attempting to blur the limits of existence given by our society in order to converte the difference into a discourse of power and empowerment of this female subjects through the movement and intersectionality of categories of gender, ethnicity, sex, sexuality, embodiment, social class, and colonialism. The analyze movies are: the short-film "Authority" from the collective in the compilation "Dirty Diaries", "Cabaret Desire", production by director Erika Lust, and the film produced by the Brazilian actress and porn performer Juliana Dorneles: “Amor com a Cidade”.

Key - words: feminist pornography, feminine, gender, sex, sexuality, embodiment, ethnicity, social class, intersectionality, cum.

CASTRO, Thais Faria. (Des) construindo performances: o feminino como sujeito na pornografia feminista. 189 f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia, 2016.

RESUMO

Buceta, cu, pau, seios, pele, olhos, bocas, mãos... roçar, penetrar, esfregar, esquentar... gozar no feminino! Esta dissertação se motiva pelo prazer... a partir do feminino! A intenção deste trabalho é analisar a Pornografia Feminista como uma prática e um instrumento político que movimenta a estrutura e o imaginário hierárquico e normativo diante da sexualidade feminina. A investigação será realizada através da análise das estruturas simbólicas nos papéis sociais e sexuais na nossa sociedade contemporânea que se refletem nos elementos de estética fílmica, produção, cenas, angulação, elenco, figurino, luz, cenário e roteirização. O trabalho se propõe a desvelar o que permeia os discursos normativos da Pornografia mainstream, criados sobre o prazer e o gozo que são representados em filmes. Dessa forma, movimentar os valores morais sobre a sexualidade relacionada ao feminino, pensando que ainda se mantêm hoje a lógica patriarcal, hetero-cisnormativa, branca e magra de organização social, através de uma produção pornográfica que contemple, ou ao menos experimente, a diversidade de representações e os desejos dos femininos. Assim, a proposta é que a Pornografia Feminista tem a potência de desmitificar os padrões culturalmente sedimentados, tentando borrar os limites de existência colocados na nossa sociedade para que a diferença se converta em discurso de poder e empoderamento das sujeitas através da movimentação e intersecção das categorias sexo, sexualidade, gênero, etnia, corporeidade, classe social e colonialidade. Os filmes analisados são: o curta “Authority” da coletânea “Dirty Diaries”, o longa-metragem “Cabaret Desire” produção da diretora Erika Lust, o filme produzido pela atriz performer pornô brasileira Juliana Dorneles, com “Amor com a Cidade”. Palavras – chave: pornografia feminista, feminino, sexo, gênero, sexualidade, corporeidade, etnia, classe social, interssecionalidade, gozo

AGRADECIMENTOS

Agradeço já de início a minha mãe que foi quem me mostrou como ser forte e determinada. Desde muito cedo, com pais separados, presenciei a luta diária dela no sustento da casa e de deixar o bem mais precioso, que sempre fez questão de salientar: o conhecimento como forma de transformação. Inspirar-me nela e sentir orgulho por tê-la como exemplo de persistência e força me levou para os caminhos do feminismo, mesmo que eu ainda não percebesse. Agradeço a parte da formação política que foi construída no movimento estudantil nas gestões em que participei do Centro Acadêmico de Comunicação e do Diretório Central dos Estudantes (DCE), mas em especial a Marcha Mundial das Mulheres e ao grupo de Diversidade Sexual Primavera nos Dentes onde comecei estudar e militar na perspectiva de gênero e sexualidade e me empoderou como mulher lésbica. Agradeço aos grupos de pesquisa: CUS e de Subalternidades, o segundo coordenado pelo meu (des)orientador Mauricio Matos dos Santos Pereira, que me fortaleceram nas perspectivas queer e subalternas, me proporcionando outros horizontes e que me possibilitaram interseccionar as categorias e enriquecer as análises não só para esta dissertação, como para a vida. Agradeço a todas as companheiras de luta que passaram por minha trajetória e que me ajudaram a (des)construir estereótipos

na minha chegada a Salvador, a

descobrir o Nordeste como um mundo cheio de possibilidades e a encarar e reconhecer meus privilégios como ser branca em uma cidade negra, ser sudestina e universitária. Aos amigxs, as pessoas queridas, aos amores, a potência despertada! E como diria Maria Bethânia, agora é tempo de “abraçar e agradecer”. E que venham outras encruzilhadas e outras desconstruções!

THAIS FARIA CASTRO

(Des) Construindo Performances: o feminino como sujeito na Pornografia Feminista

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia como requisito para a obtenção do grau de Mestra em Cultura e Sociedade, sob a orientação do Professor Doutor Maurício Matos dos Santos Pereira.

Salvador, 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

THAIS FARIA CASTRO

(Des) Construindo Performances: o feminino como sujeito na Pornografia Feminista

Salvador, 2015

SUMÁRIO

Introdução.....................................................................................................................1 1 –Pornografia: o imaginário, o embate e a categoria nos caminhos da história...5 1.1 – Pornografia: saindo da transgressão e tornando categoria....................................5 1.2 – Pornografia: o gênero cinematográfico e suas histórias......................................12 1.3 - Do Pornô Comercial à Pornografia Feminista: as mulheres também podem gozar.............................................................................................................................31 1.4 - Pós-pornografia – resistência manifesta no sexo.................................................43 2 – Corpos, sexualidades, raças e gêneros em (des) construção - (Re) Significando corpos ........................................................................................................................50 3 – Corporeidades que gritam e narrativas que pulsam: Authority, Cabaret Desire e Amor com a Cidade...................................................................................89

Considerações Finais..............................................................................................180

Referências..............................................................................................................183

Introdução Dois anos e meio em Salvador. Esse foi o tempo-espaço que me trouxeram até aqui, até a minha dissertação sobre Pornografia Feminista, esse entre-lugar da escrita e ativismo, da vivência e movimento que me (des)constroem todos os dias. Mas para início de conversa, acho importante me apresentar e me localizar para quem me acompanha nesta leitura. Então, ao invés de já ir de encontro com minha pesquisa, convido as pessoas que me leem a conhecer parte da minha trajetória e como foi esse enrabichar pela Pornografia Feminista que gerou este trabalho. Os estudos que me permeiam e me envolvem no momento enredeiam feminismos, sexualidades, queeridades, colonialidades. Minha trajetória começou a ser construída em casa. Sou uma pessoa branca, de 26 anos, construída no gênero feminino, lésbica, sudestina, paulista, classe média-baixa, jornalista. Estudei em escola pública no ensino fundamental e fiz o ensino médio num colégio particular por conta da bolsa destinada aos filhos de funcionários. Desde muito cedo, com pais separados, presenciei a luta diária da minha mãe no sustento da casa e de deixar o bem mais precioso, que ela sempre fez questão de salientar: o conhecimento. Inspirar-me na minha mãe e sentir orgulho por tê-la como exemplo de persistência e força me levaram para os caminhos do feminismo, mesmo que eu ainda não percebesse. Já com 18 anos, em 2007 inicio a faculdade de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo na Universidade Federal de Viçosa na Zona da Mata mineira. A graduação não trouxe apenas as teorias da comunicação e suas técnicas para depois de quatro anos ser uma boa jornalista. O grupo Primavera nos Dentes foi um divisor de águas na minha trajetória. Foi nesse coletivo de diversidade sexual da UFV, que inclusive ajudei a fundar, que me compreendi melhor, me empoderei, me formei, me assumi e me reconheci meu lesbofeminismo. Após esse momento, passei a militar também na Marcha Mundial das Mulheres, movimento feminista internacional. Realizávamos formações, mobilizações, manifestações. Foram essas lutas e vivências que formaram parte do meu conhecimento humanístico e me encaminharam para o trabalho de conclusão de curso, o documentário intitulado “Invisibilidade Lésbica”. E foi nesse processo de intersecção do feminismo com a minha vivência lésbica que me interessei pela temática da pornografia, pois na grande maioria das produções que encontrava disponíveis para o consumo, a minha forma de me relacionar sexualmente era sempre 1

deslegitimada ou fetichizada, colocadas como objeto e nem um pouco excitantes. Foi a partir da minha busca por prazer e gozo que procurei outras representações e acabei por encontrar a Pornografia Feminista. (Des)Construir uma prática junto ao discurso que fissure e/ou borre as ditas margens da sexualidade, do gênero, dos corpos e da colonialidade se tornaram minhas necessidades com o mestrado. Dois grupos de pesquisa e de afetividades forma imprescindíveis nesta caminhada: o CUS, Cultura e Sexualidade e de Subalternidades, o segundo coordenado pelo meu (des) orientador Mauricio Matos dos Santos Pereira. Assim chegamos ao trabalho que pretendo debater nestas páginas da dissertação. No início, a ideia era abarcar apenas os filmes europeus, que tem uma perspectiva fundante desse gênero de pornô e que se diferenciassem na base de produção, subsidiados por políticas públicas ou financiados dentro do mercado mesmo. Com o avanço dos estudos em subalternidades, entendi que teria que trazer a perspectiva da colonialidade, inclusive para que eu pudesse me visibilizar nesse trabalho. Dessa forma, fechei o corpus de análise com a coletânea “Dirty Diaries”, afunilando para o curta “Authority” a fim de visibilizar vivências lésbicas; o longa-metragem “Cabaret Desire” por ser de autoria da grande expoente e produtora consolidada no mercado com o rótulo Pornografia Feminista: Érika Lust; e finalizando o recorte evoco “Amor com a cidade”, curta paulista que propõe o debate do empoderamento sexual da mulher cis no espaço público através de uma produção de caráter independente e financiada coletivamente. Permeando as questões de movimentação da construção do ser feminino e do ser mulher, a intenção também é demonstrar que as diversas formas de financiamento influíram na minha escolha das produções. O trabalho está dividido em três capítulos, em que traço um caminho para chegar até as produções audiovisuais com a perspectiva da Pornografia Feminista. O primeiro capítulo é um mergulho na categoria pornografia, quais os seus agenciamentos e como ela se articula com as normativas dos corpos, gêneros, racialidades e sexualidades através dos tempos na cultura. Neste sentido, resgatamos a categoria a partir do seu traçado ocidental que se orienta por uma racionalidade histórica, social, colonizada e culturalmente determinada, que sobrevive nas estruturas simbólicas e nas instituições a fim de estabelecer o que é normalidade e possibilidade de expressão e prática sexual e de gênero, além de legitimar quem pode e quem não pode produzir e consumir pornografia. Assim, direcionamos a análise de modo 2

transversal e interseccional a fim de perceber o sexo, a sexualidade, os estímulos e desejos sexuais como pensamentos incorporados e treinados, contudo também com a potência de encruzilhadas onde esses dispositivos históricos que ao mesmo tempo são hierarquizados se tocam e se encontram e, dessa forma, demonstram potência política da pornografia. Outro movimento que realizamos ainda nesse capítulo, é pontuar no registro histórico como os formatos de produção e de consumo da pornografia foram se modificando, nos atendo em especial a linguagem audiovisual. Como nosso recorte é audiovisual, também pensamos como este opera culturalmente as simbologias no fazer e no assistir, percebendo a sua função pedagógica, percebendo que este instrumento pode traçar outras narrativas que contemplem a diversidade que desejamos. Para aproximar ainda mais o olhar sobre as diferentes leituras e apropriações da pornografia traçamos uma linha do tempo e organizamos no capítulo os seguintes subtítulos: Pornografia: saindo da transgressão e tornando categoria; Pornografia: o gênero cinematográfico e suas histórias; Do Pornô Comercial à Pornografia Feminista: as mulheres também podem gozar; Pós-pornografia – resistência manifesta no sexo. Estes subtítulos tem a função de detalhar os caminhos que a pornografia percorre pelas hierarquias e normativas, absorções das sexualidades e gêneros em torno do capitalismo, (des)qualificação de outras performances e possibilidades de subversões. Alguns autorxs evocadxs são Lynn Hunt, Jorge Leite Júnior, Nuno César de Abreu, George Bataille, P. Preciado, Michel Foucault, Susan Sontag, Guacira Lopes Louro, Maria Filomena Gregori, Monique Wittig, mas em especial Linda Willians (1989) com seu livro “Hard core: power, pleasure and the frenezy of visible”. Após essa narrativa (des)construída do uso da pornografia ocidental, vamos nos debruçar sobre alguns conceitos que vão transpassar e costurar toda a estrutura dos filmes que serão analisados. Nesse segundo capítulo “(Re) Significando corpos” a intenção é fazer uma leitura interseccional sobre as produções pornográficas feministas e como elas se articulam numa outra perspectiva de desejo, gozo e prazer. As categorias que vamos enredar e delimitar nos filmes são cisnormatividade, heteronormatividade, monossexismo, negritude, lesbianidade, corporeidade, entre outras que irão sendo descortinadas com a leitura. O processo que iremos percorrer para evidenciar essas categorias nas leituras fílmicas será a análise a partir de quadros 3

da imagem congelada retiradas dos três filmes escolhidos (Authority, Cabaret Desire e Amor com a Cidade), detalhando objetos, situações, vestuário, ambientação, etc que denotam as categorias e se refletem na organização social em que estamos inseridas. Para além de revelar as estruturas, a importância desse percurso é de expor as falhas destas e as possibilidades de mudança a partir da repetição do processo pornográfico de excitação entendo a diferença das vontades, reconhecimentos de corpos e vivências de gênero e sexualidade, transversalizados pelas questões de classe e étnica. Dentre as vozes que ecoam neste capítulo estão Judith Butler, Gayatri Spivak, Maurício Pereira, Gilles Deleuze, Ramón Grosfoguel, Edgar Morin, Edward Said, Guacira Lopes Louro, Jaqueline de Jesus e Alves, Gayle Rubim, Michel Foucault, Preciado, Lélia Gonzalez, Audre Lorde, Monique Wittig em especial Anne MacClintock com seu livro “Couro Imperial”. Depois de estabelecermos todo o aporte teórico, chega o momento de mergulharmos nos filmes, peculiaridades, estruturas e características. Authority, Cabaret Desire e Amor com a Cidade serão detalhados e lidos na sua completude a fim de reconhecermos os dispositivos e categorias que falam através das personagens e sua narrativa. A perspectiva deste terceiro capítulo é esmiuçar o roteiro no sentido de identificar as denúncias das ficções dos gêneros, das práticas sexuais, corporeidades e movimentam as representações e virtualidades, que geram outras identidades e muitos entre-lugares. Neste momento, o trabalho se debruça sobre cenas escolhidas que possam materializar e mobilizar as desconstruções que propomos tanto no primeiro quanto no segundo capítulo. Também é realizada uma leitura do contexto de produção, da verba disponível para a realização e das pessoas protagonistas dos processos fílmicos como direção, roteirização, iluminação, entre outras funções geralmente ocupadas pelo masculino e que nos pornôs feministas são femininos. Essas delimitações são de grande importância para esta análise, no sentido da ocupação dos espaços, da identificação com os produtos culturais e, principalmente, do protagonismo no audiovisual, na sexualidade e na identidade de gênero. Dessa forma, chego ao fim desta introdução. Sem mais delongas, é chegada a hora da dissertação. Delicie-se, relaxe e goze!

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1 – Pornografia: o imaginário, o embate e a categoria nos caminhos da história 1.1 – Pornografia: saindo da transgressão e se tornando categoria Desejos, amassos, beijos, passadas de mão, apertos, tesão, corpos, suor, gostos, gozo. Essas são sensações comuns quando se fala de sexo e suas vontades. Em todo esse imaginário sexual temos a pornografia como um dos principais vetores de estímulo, de fantasia, de controle, mas também de resistência. A pornografia é um tema que evoca inevitavelmente complexidades acerca da velha discussão sobre o que é socialmente construído, o que é natural ou pré-social, por estar diretamente ligada às questões do corpo. Se, por um lado, toda a parafernália pornográfica dos sex-shops, a indústria cinematográfica, as revistas etc. e seus usos possam ser encarados como desviantes do sexo moralmente aceito, por outro, acaba por naturalizar, sobretudo através da produção mainstream, os desejos heterossexuais normativos. O corpo e a sexualidade ainda são lidos pelas lentes da heteronormatividade como algo que possui uma “natureza”, em que se ignora o fato de que a própria maneira de perceber, conhecer e categorizar o que chamamos de “natural” é fruto de uma

racionalidade

histórica,

social,

ocidental,

colonizada

e

culturalmente

determinada, que sobrevive nas estruturas simbólicas e nas instituições. Neste sentido, podemos perceber o sexo, a sexualidade, os estímulos e desejos sexuais como pensamentos incorporados e treinados, ou seja, o que nos estimula sexualmente e a própria forma de lidarmos com a nossa sexualidade estão intimamente ligados às nossas maneiras racionais, morais e cognitivas de perceber e interagir com o mundo a nossa volta. A pornografia não constituía uma categoria de literatura ou de representação visual independente e distinta antes do início do século XIX. A palavra pornographos teve seu primeiro significado como "escritos sobre prostitutas". O termo "pornográfico" apareceu pela primeira vez nos “Diários de uma Cortesã”, uma narrativa de histórias sobre prostitutas e orgias. "Aos poucos, qualificou-se como pornográfico tudo o que descrevia as relações sexuais sem amor" (ALEXANDRIAN, 1991). Entre os séculos XVI e XVIII, eram utilizados panfletos com imagens de atos sexuais a fim de utilizar o sexo para promover críticas e oposição à aristocracia e ao clero. Nesse período, o controle e censura dos trabalhos manuscritos e impressos eram 5

feitos em nome da religião e da política. Em “A invenção da Pornografia”, Lynn Hunt afirma que a pornografia não constituía uma categoria de literatura ou de representação visual independente e distinta e que até o final do século XVIII, a pornografia era sempre algo mais além. Na Europa, entre 1500 a 1800, era mais frequentemente um veículo que usava o sexo para chocar e criticar as autoridades políticas e religiosas. A categoria começou a se esboçar entre o Renascimento e a Revolução Francesa, diante da difusão da própria cultura impressa, mas também pelos avanços e retrocessos da atividade desordenada de escritores, pintores e gravadores, empenhados em por à prova os limites do decente e a censura da autoridade eclesiástica e secular. Embora o desejo, a sensualidade, o erotismo e até mesmo a representação explícita de órgãos sexuais possam ser encontrados em todos os tempos e lugares, a pornografia como categoria específica, literal e artística parece ser um conceito tipicamente ocidental, com cronologia e geografia particulares, em que, uma vez delimitada e nomeada, pode normativizar. Hunt comenta em seu livro as principais fontes da tradição pornográfica podem ser encontradas na Itália do século XVI e na França e Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, além dos antecedentes da Grécia e Roma antigas. Muitas publicações tinham o tom político, com produções de resistência que tinham a intenção de questionar as normas estabelecidas pela Igreja sobre o sexo e os desejos das pessoas. Entre 1790 e 1830, as funções sociopolíticas da pornografia vão mudando e vai perdendo sua característica subversiva e contestatória, sendo cooptada pelos padrões normativos e, mesmo que ditas imorais, torna-se um negócio. A pornografia acaba por instituir-se como categoria comercial e, em grande medida, normativa. Para aprofundarmos esta reflexão, acredito que devemos perceber o que entendemos como pornografia. Jorge Leite Jr conceitua como um produto que apresenta uma representação obscena padronizada (seja em imagens, sons, textos ou mesmo objetos), voltada para o consumo de massas, tendo um mercado estabelecido e possuindo como principal objetivo o prazer sexual de seus consumidores e o lucro de seus produtores. O autor ainda afirma que mesmo quando a crítica política ou religiosa é encontrada nestes produtos, ela está sob a lógica do mercado. A pornografia é, então, indissociável da cultura de massas:

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Tanto que ambas nascem juntas, na segunda metade do século XIX. Em uma época em que as grandes instituições sociais estavam falando sobre sexo (arte, religião, ciência), a cultura de massas também apresenta seu discurso sobre este tema, ressaltando não o quanto de pecado ou divino pode ter esta vivência, não quão refinadas ou grosseiras as práticas sexuais podem se tornar ou mesmo se elas são sadias ou doentes, “pervertidas” ou “corretas”, mas relacionando sexo à diversão, ao entretenimento e à brincadeira. A pornografia é o discurso sobre sexo da cultura do espetáculo. (JR, JORGE LEITE, 12)

O autor ainda pontua que uma das características estruturais da pornografia é a “obscenidade”. Segundo Havelock Ellis, “obsceno” deriva do latim scena, significando o que deveria estar “fora de cena” (Hide, 1973: 8). Já o termo latino obscenus em sua origem significava “mau agouro” (Moraes, 2003: 123). Toda a produção pré-pornográfica (séculos XVI ao XVIII), como argumenta Júnior, que organiza as bases da pornografia, como Aretino e Sade, já trabalhavam com a ideia de causar um incômodo intencional, pronunciar o inominável, apresentar o velado, explicitar o subentendido, exagerar o já visto e, principalmente, testar fronteiras, ou seja, colocar “em cena” o que se espera que esteja “fora de cena”. A pornografia se organiza pelo “excesso”, e o jogo com os limites. Desta forma, o autor coloca que o obsceno é intimamente ligado ao conceito de transgressão. A transgressão é justamente o que vai caracterizar, segundo Georges Bataille, o universo da experiência erótica, vivência que em o poder de violar e ultrapassar os interditos culturais que existem essencialmente para darem sentido e sabor a esta infração, muito mais do que para separar as barreiras do permitido e conter os impulsos ditos anti-civilizatórios. Nuno César de Abreu argumenta que a caracterização da pornografia deve ser levada em conta o fascínio pela aventura transgressiva. É esse sentimento de transgressão que revela o prazer e intimamente ligado ao imaginário. Portanto o autor define a pornografia como um simulacro que pretende “ordenar a desordem, para restaurar a ordem cultural como uma forma de transgressão organizada” (Abreu in Moraes e Lapeiz, 1985, p.55). Assim, Abreu ainda levanta a questão da moralidade em torno do tema, em que a moral não é apenas uma lei dos costumes, mas também formas políticas emanadas de poder. Dessa forma, pensamos a pornografia sob a

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égide de uma sociedade cristocêntrica, de corpos docilizados para o trabalho e seu controle ideológico sobre a sexualidade e suas práticas. A sexualidade moderna não existe, portanto, sem uma topologia política: a aparição de um muro regulador que divide os espaços públicos (vigiados pelo olho moral do Estado) e privados ( vigiados apenas pela consciência individual ou pelo silencioso olho de Deus). (PRECIADO,2010,P.77)

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O autor Walter Kendrick através de seu livro The Secret Museum: Pornography in Modern Culture (1987) em que ele traz a proposta de não debater se existe boa ou má, antiga ou moderna pornografia e sim pensar a partir da inconstância de todas as definições como: o que hoje são representações populares já foi no século passado exclusivo da elite. Kendrick traça o surgimento do século XIX de uma pornografia popular, bem como, coincidentemente, as tentativas de censura. O autor descreve o processo da pornografia como as representações que não devem ser vistas pela população e que são cerceadas e recortadas pela classe dominante (KENDRICK in WILLIAMS, p.11). Quem possui o poder de construir a definição da pornografia tem o poder de censurá-la, determina a moralidade e a normalidade, discursos estabelecidos nos campos jurídicos, médicos, educacionais, familiares, entre tantos outros. E por que a pornografia nos instiga tanto? O proibido e "o buraco da fechadura", conceituado como voyeurismo2, pode explicar esse hábito que sobrevive a todas as tentativas de repressão em nome da moral e dos bons costumes. Nos tornamos voyeurs ao vivenciarmos uma pedagogia do corpo e da sexualidade, através da pornografia, mesmo que debaixo do pano. Michel Foucault, no volume 1 da “História da sexualidade”, escreveu sobre a compulsão moderna para falar incessantemente sobre sexo. Foucault aponta que os prazeres do corpo estão sujeitos a mudança social e a moralidade vigente. Historicamente, as construções têm sido influentes, especialmente na ideia de que os prazeres do corpo não existem em oposição a um controle imutável e ao poder repressivo, mas em vez disso, são produzidos dentro de configurações de poder que os 1

La sexualidad moderna no existe, por tanto, sin una topología politica: la aparición de un muro regulador que divide los

espacios em públicos (es decir, vigilados por el ojo moral del Estado) y privados (vigilados unicamente por la conciencia individual o por el silencioso ojo de Dios). (PRECIADO, 2010, p.77) 2

Prazer que alguns sentem em apenas espiar, observar o outro nu ou no sexo, sem participar ou participando sendo percebido.

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prazeres de uso particular são colocados. O autor oferece, ao menos potencialmente, uma forma de conceituar poder e prazer dentro da história dos discursos da sexualidade. Através da osmose do prazer com o poder, uma "implantação das perversões" enrijece as sexualidades e identidades que são, em seguida, ainda mais institucionalizados pelos discursos da medicina, a psiquiatria, a prostituição e, inclusive, a pornografia (FOUCAULT, 1978, p.12).

As ideias de Foucault proporcionam uma compreensão mais refinada da complexa história da sexualidade e exacerbam as descontinuidades na construção cultural da sexualidade nas diversas eras. Foucault salienta a diferença entre a ars erótica de culturas antigas e não-ocidentais, onde a sexualidade é construída através das práticas e experiências que prescrevem e ensinam prazeres como uma forma de controle e auto-controle acumulados, e nossa scientia sexualis moderna ocidental, visa a obtenção da confissão das verdades científicas do sexo, dos corpos e da sexualidade. Essa ciência por sua vez busca legitimar o que deve permanecer em controle, no caso tanto a prática quanto a vivência do indivíduo, e dessa forma o que é considerado um comportamento sadio e normal a partir do olhar daquela sociedade que está produzindo esse conhecimento. A scientia sexualis constrói as sexualidades modernas de acordo com o conjunto de poder e conhecimento confessáveis, "verdades" de uma sexualidade, que governa corpos e seus prazeres. Desconhecimentos, subterfúgios, esquivas só foram possíveis e só tiveram efeitos baseados nessa estranha empresa: dizer a verdade do sexo. Empreendimento que não data do século XIX, mesmo se o projeto de uma “ciência” lhe emprestou, então, forma singular. Ele é o pedestal de todos os discursos aberrantes, ingênuos e ardilosos em que o saber sexual parece ter-se, durante tanto tempo, extraviado. (FOUCAULT, 1978, p.65)

Então, os discursos médicos, jurídicos e pornográficos funcionam como pontos de transferência de conhecimento, poder e prazer. Esses são lugares onde as sexualidades podem ser especificadas, solidificadas e transgredidas. O autor define o duplo efeito deste processo: por um lado, o poder que assumiu o comando da própria sexualidade tornou-se sensualizado, e por outro, o prazer "o poder alimentado por 9

aquilo que o rodeia" (pp. 44-45). Através desta osmose de uma potência de alimentação, a "implantação das perversões" teve seu lugar constituído gradualmente, porém as “sexualidades tornaram-se presas a uma idade, um lugar, um tipo de prática "(p. 12). Linda Willians (1989) traz em seu livro Hard core: power, pleasure and de frenezy of visible o conceito de “máquinas do visível” do historiador de cinema JeanLouis Comolli (p.35) para colaborar com as conceituações de Foucault. A autora comenta em particular um determinado momento na construção moderna ocidental da scientia sexualis, onde os estudos de movimento fotográficos foram os precursores imediatos com a invenção do cinema. Assim, podemos começar a reconhecer como o desejo de ver e saber mais sobre o corpo humano, neste caso, para responder "perguntas acadêmicas" da mecânica do corpo-movimento, faz parte da própria invenção do cinema. Trazer para o “campo do visível”, como conceitua Comolli (1980, 122) e criar um conhecimento visual, Williams configura, assim, o "frenesi do visível". Esse frenesi é um resultado lógico de uma variedade de discursos da sexualidade que convergem, e ajudam ainda mais a produção das tecnologias do visível. No fim do século XIX, o cinema veio modificar o cenário e popularizar a dita pornografia. Em 1896, cineastas começaram a utilizar a novidade. Os filmes tinham nomes como Wonders of the Unseen World3 ("Maravilhas de um mundo não visto") e mostravam mulheres fazendo stripteases em frente à câmera, um escândalo para a época. Com o sucesso e o lucro desses filmetes, alguns produtores resolveram ir além e exibir cenas de sexo explícito. Chamadas de stags films4 ("filmes para rapazes"), as fitas tinham de 7 a 15 minutos e eram filmadas na França, Estados Unidos e Argentina, primeiros pólos mundiais dessa produção cinematográfica pornográfica. Os diretores já mostravam sexo oral, lesbianidade e ménage à trois. Assim, os limites sobre o que pode ser considerado “pornográfico” ou “obsceno” são constantemente questionados e violados. A transgressão se reinventa e se organiza. Sendo assim, o erotismo é, em seu conjunto, uma atividade organizada e, na medida em que é organizada, acaba por mudar através dos tempos (Bataille, 1988: 94).

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Maravilhas de um mundo não visto, 1927, 14min, EUA. Diretores: Ima Cunt, A. Prick; Elenco: Ima Cunt, R.U. Hard. Filme preto e branco, mudo realizado pela Allcock Productions Inc. 4 Produções amadoras em vídeo, ilegais e exibidas fora dos circuitos cinematográficos convencionais.

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Nesse sentido, podemos pensar a pornografia enquanto um conceito potente para descolonização e (des)construir leituras múltiplas dos corpos, sexualidades, gêneros, desejos e gozos. Percebemos que existem duas perspectivas vigentes que são referenciais e perpassam as propostas de reflexão crítica sobre a Pornografia: a desconstrução de elementos presentes na indústria pornográfica que fomentam o discurso ocidental heteronormativo, e heterossexista, isto é, discurso que identifica a heterossexualidade como norma e outras orientações sexuais como desvios, bem como define o masculino como referente e outros gêneros como sendo social, cultural e politicamente inferiores. Do mesmo modo, esse discurso ocidental veicula uma estética dominante dos corpos, além de ser uma imagem branca, exotificando etnias, e jovem, retirando todo tesão e sensualidade que pode haver em corpos não-jovens. A pornografia, portanto pode assumir esse caráter revolucionário, subversivo e reflexivo, uma potente arma política em favor do livre uso das sexualidades e das buscas por fontes alternativas de prazer e saber que desafiam os cânones hegemônicos heterossexuais. Ainda desejosa e não saciada, para além da reivindicação de um lugar de empoderamento para e pela a pornografia, através da evocação do seu caráter revolucionário que possa a abarcar desde o simples entretenimento comercial, à sofisticação da estética erótica artística e pudica, façamos o esforço de um outro olhar para a pornografia que a entenda, sem pudores e livres das jaulas morais, como forma de tesão e desejo, do despertar dos sentidos, do questionar do próprio sexo e suas práticas. Corpos, cus, caralhos, conas, xanas, dildos, cheiros, suor, mijo, excreções, lubrificação, sadomasoquismos… Que todxs possam gozar! Pornografar a si, as vivências, o cotidiano e as relações fazem parte dessa fissura do padrão e da mudança de paradigmas.

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Figura 1 - Annie Sprinkle

1.2 – Pornografia: o gênero cinematográfico e suas histórias A própria invenção do cinema desenvolve, em parte, o desejo de colocar os corpos medidos e produzidos, patenteados pelas primeiras máquinas do poder em narrativas que “naturalizam” os seus movimentos. Assim, a "implantação de perversões" foi incorporada também nas obras fílmicas e dessa forma nos corpos que são visíveis, inteligíveis, lidos e os que não são reconhecidos e legitimados. O prazer cinematográfico surgiu como um subproduto da busca de movimentos ditos invisíveis, do que diria a respeito do âmbito privado. Na sua invenção, então, o cinema é uma tecnologia que produz o corpo à sua própria imagem, como uma infinita repetição do mecanismo, o espetáculo visual de corpos em movimento ditos realistas. Pensando na relação estabelecida do filme com quem assiste e retomando o conceito de voyeurismo, evoco Linda Williams agora no livro “Screening Sex” em que por meio do pensamento de Miriam Hansen (1987) se faz um debate sobre o conceito de enervação de Walter Benjamin. A enervação seria a “sensação na experiência de receber um fenômeno que nos faz sentir – isto é, uma experiência que se move de nossos sentidos externos, ouvidos e olhos, para todo o corpo com os quais sentimos – levamos pouco em consideração a direção oposta: a transmissão de energia que vem do interior do nosso corpo em direção ao mundo externo.”. Dessa forma, 12

nossos corpos recebem as sensações e depois revertem a energia dessa recepção para se mover no mundo exterior. Então, não somos apenas voyeurs, pois a partir do momento em que somos estimulados respondemos com as reações conscientes ou inconscientes dos nossos corpos, desejos e vontades e assim se configura a troca, a experiência, a vivência. Os filmes mexem conosco, com frequência, e de uma maneira poderosa. O sexo no cinema é especialmente volátil: ele pode excitar, fascinar, desgostar, chatear, instruir e incitar. No entanto, estas produções também nos distanciam da experiência próxima, imediata, de tocar e sentir com nossos próprios corpos, ao mesmo tempo em que nos trazem de volta aos sentimentos desses mesmos corpos. Diferentemente dos romances, que começaram a descrever atos sexuais explícitos nos anos 1920 através de escritores modernistas tão expressivos como James Joyce e D.H. Lawrence (e que continuaram a fazê-lo na ficção, por exemplo, de Henri Miller, John Updike, Philip Roth, Ian McEwan e Toni Morrison), os filmes norte-americanos, como detalha Williams, passaram pelo que ela chama de uma longa adolescência. Durante essa fase prolongada, os fatos carnais da vida foram cuidadosamente – por vezes absurdamente – eclipsados, mas também, como resultado, criaram muita curiosidade. Apenas a partir dos anos 1960, o sexo deixou de ser a energia oficialmente não mencionável, invisível no cinema. Os filmes jogam com o que aparece e com o que se esconde nas imagens e discursos estabelecidos na tela. Se a história do cinema pornográfico tem uma tendência geral em revelar a “verdade” sobre o sexo e seu horizonte de uma imaginação, prestar atenção na imaginação é importante. Não é uma questão de progresso teleológico em direção a uma visão final e nítida sobre isso, como se o sexo fosse pré-existente e fosse apenas preciso expô-lo. Sexo é um ato e a maior ou menor parte disto pode ser revelada, não é uma verdade estável que as câmeras e os microfones apanham ou não apanham. O sexo no cinema então seria algo construído no discurso, mediado pela sociedade e atuado através das pessoas na medida em que essas representações estão alinhadas a um referencial simbólico em que existe um padrão de signos e práticas, assim, cada “revelação” é também uma dissimulação que limita e já povoa a imaginação. Dessa forma, é interessante retomar a expressão de Susan Sontag (1967), “imaginação pornográfica”. A autora entende que a manifestação da imaginação 13

humana que se projeta na arte e que possibilita um “acesso peculiar a alguma verdade”, seja sobre o sexo, sobre a sensibilidade ou sobre o próprio indivíduo, seria algo que acessaria os desejos e vontades incutidas, mas não necessariamente reveladas na sociedade e quando exacerbados possibilitariam despertar outras leituras e outras maneiras de produzir pornograficamente. Ou seja, seria uma maneira de fissurar esse sistema heteronormativo, branco e capitalista ao povoar o imaginário pornográfico com práticas, vivências e fantasias ditas não-normais e não-possíveis. Lugares antes considerados não-vivenciais, impróprios, não-visíveis, ditos abjetos se mostram a partir dessa imaginação que vem exacerbar a norma e seus limites, reinvindicando por meio da existência a resistência e agência. Essa imaginação como potência pode gerar correntes que se propõem a produzirem outros olhares e outras formas de vivenciar a sexualidade, seus corpos e subjetividades. “Aquele que transgride não apenas quebra uma norma. Ele vai a algum lugar onde os outros não vão; e conhece algo que eles não sabem” (SONTAG, 1967, p. 33). As leis modernas de regulamentação e coerção da pornografia, permeadas por uma noção de moral burguesa cristã que legitimava a censura em nome da "decência" só foram formadas no início do século XIX, momento em que a pornografia passou a ser encarada como uma categoria específica (HUNT, 1999)5. A partir dessa época, podemos localizar a regulamentação a partir dessa produção de saber sobre os corpos, sexualidades e práticas, a fim de combatê-las a partir da moral ao mesmo tempo em que as configura na heteronormatividade e na normalidade. Raymond Williams escreveu a respeito da televisão e como ele observava que uma das características únicas da sociedade industrial avançada é que o drama tornou-se uma parte tão intrínseca da vida cotidiana que a quantidade pode ter efetuado uma mudança qualitativa: “É claro que assistir a simulações dramáticas de um amplo espectro de experiência é hoje uma parte essencial de nosso padrão cultural moderno” (Williams, 1975:59). Podemos dizer, então, que muitos de nós gasta mais tempo assistindo sexo do que praticando-o? Os atos sexuais, explícitos, pornográficos, simulados, não apenas impregnaram os dramas que nós assistimos cada vez mais, mas também se tornaram, para adaptar Williams, significativamente qualitativos do modo como aprendemos e vivemos nossa própria sexualidade.

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Lynn Hunt é autora do livro A invenção da pornografia. Obscenidade e as origens da modernidade 1500 -1800.

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Imagens em movimento contribuem para a potência de uma educação sexual mais poderosa e na tentativa de desnaturalizar o manual de instruções criado para a nossa sociedade institucionalizada. Mesmo vivendo sem sexo, aprendemos a apreciar e a gostar de certas maneiras sexuais de ser, certas formas de excitação (leves ou pesadas), observando os contatos sexuais mediados de outros, sejam eles olhares, desejos, beijos, formas mais explícitas de contato, amassos, transas ou cenários complexos de poder, abjeção e necessidade. Qual é o significado preciso de agora termos um lugar para assistir às exibições mais sutis ou mais abertas de paixão, desejo, humilhação, sexualidade e até amor? Evocar os conceitos de diferença6 e repetição7 da reflexão de Deleuze é importante para perceber que na medida em que ocorre essa repetição de valores e práticas que buscam cristalizar os comportamentos, sexualidades, gêneros, ao mesmo tempo em que atingem esse ponto, liberam a diferença que os desloca e os disfarça, para que o ciclo retorne, mas não mais como antes e dessa forma possa mover a estrutura com a transformação das simbologias. Passamos a pensar, então, em um devir pornô que proporciona a movimentação, a fluidez de gêneros, desejo e suas práticas, além de como borrar dos limites impostos na sociedade. A partir do século XX, passa-se à produção da pornografia como a conhecemos hoje, produção em larga escala comercial. A Revolução Sexual a partir dos anos 1960 nos EUA, associou ideias de libertação sexual com a contracultura, anti-guerra, anti-racismo, anticapitalismo e anti-patriarcalismo. É nesse momento que os debates morais, jurídicos, feministas, LGBT em torno dos conceitos de pornografia e obscenidade e as formulações de sexólogos se tornam importante. Outro fator no conjunto de questões difíceis sobre a Revolução Sexual foram as batalhas a respeito da obscenidade8 e da pornografia numa série de julgamentos que ampliavam a

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A différance não é “nem um conceito e nem uma palavra”, funciona como um “foco de cruzamento histórico e sistemático” reunindo em feixe diferentes linhas de significado ou de forças, podendo sempre aliciar outras, constituindo uma rede cuja a tessitura será impossível de interromper ou nela traçar margem, pois o que se põe em questão é a “autoridade de um começo incontestável, de um ponto de partida absoluto, de uma responsabilidade de princípio”. 7

A repetição é aqui concebida como tempo que não corresponde mais nem às manifestações cíclicas da natureza (relativas ao passado) nem à linearidade que constrói, recorrendo à memória, um tempo presente. Repetição como forma pura do tempo refere-se ao futuro, em perspectiva que toma emprestada de Nietzsche a concepção de eterno retorno, não como desejo de repetição do mesmo, mas como exigência de reprodução do ser enquanto mudança, enquanto devir. 8

“Porn Wars” foi como ficaram conhecidos os embates entre feministas anti-pornografia e pro-sexo nos anos 1980.

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proteção da Primeira Emenda9, que garante a liberdade de expressão, à literatura e ao discurso nos anos 50 e, eventualmente, aos filmes, no início dos anos 70. Voltando a Screening Sex, de Linda Williams, ela retoma os sociólogos Kristin Luker (2006) e Anthony Gidens (1992), e os historiadores Hohn D‘Emilio e Estelle Freedman (1988), que já apontavam que a intimidade sexual não era uma questão privada. Existem registros de que na virada do século XX, quando Edison estava aperfeiçoando seu cinetoscópio e filmando o primeiro beijo no cinema, ele alterou a lógica nas relações sexuais e deslocou a reprodução, papel dito central na sexualidade humana, permitindo que o prazer sexual fosse por si só um valor no casamento. Essa foi considerada uma pequena Revolução Sexual. No entanto, essa revolução não pôs em questão o casamento ou as relações de poder entre os sexos. Foi por terem posto em questão a construção das relações sexuais, além de terem sido tiradas do armário para ganharem visibilidade, o que tornou as mudanças começadas no final dos anos 1960 tão revolucionárias. Porém, a Revolução Sexual nunca significou um progresso continuado em direção à liberdade sexual, mas não há como negar a nova e pública preeminência do sexo, fosse ela aplaudida ou condenada em sua proliferação na forma de atos sexuais visíveis. Os anos 1970 reiniciaram debates fervorosos sobre a natureza e a função da pornografia que ocorreram no âmbito do feminismo. Homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, velhos e jovens, alguns falando mais a respeito de poder, outros mais a respeito de prazer, eram todos compelidos a falar de sexo, o que não é o mesmo que falar sobre “aquilo”. Falar sobre o sexo supõe um objeto estável de investigação, falar de sexo implica em que as próprias formas de falar partem das construções discursivas de sexo e discursos sobre a sexualidade proliferaram exponencialmente no âmbito de intensas guerras de sexo e de debates sobre a pornografia. A Revolução Sexual então teve um caráter, como observou Eric Schaefer, uma revolução na mídia. Quando os filmes começaram a mostrar mais sexo do que antes,

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A Primeira Emenda da Constituição dos EUA prevê que “o Congresso não fará nenhuma lei a respeito do estabelecimento de uma religião, ou proibindo o livre exercício dela; ou cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo se reunir pacificamente e dirigir petições ao governo para a reparação de injustiças”.

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uma reorganização fundamental da relação entre o público e o privado passou a ocorrer. Uma das palavras de ordem da segunda onda do feminismo “O pessoal é político!”10 vem exacerbar as muitas práticas íntimas, que eram consideradas privadas, porém mereciam ser discutidas em público. Não se trata de que o que era privado simplesmente tenha se tornado público, mas sim que a linha entre o público e o privado é constantemente renegociada. As representações cinemáticas do sexo que se tornaram públicas no final dos anos 1960 e início dos anos 1970 refletiam revoluções nas atitudes sexuais e elas próprias moldaram nossa experiência das relações sexuais. Mas essa nova publicidade do sexo ocorreu numa época na qual a própria ideia de direito à privacidade sobre as questões sexuais e reprodutivas também estava se ampliando. Essas outras leituras permitiram a mudança nas convenções morais operantes, além de permitirem a produção de filmes como “O último tango em Paris”, “Garganta Profunda”, “Barbarella” e “O império dos sentidos”. Em 1972, pela primeira vez, uma produção pornográfica fez sucesso comercial. Era “Deep Throat”, a Garganta Profunda, história de uma ex-engolidora de espadas que tem o clitóris na traqueia e procura solução para o problema transando com o médico, amigos e namorados. O cinema nacional apontou para esses caminhos quando iniciaram as primeiras pornochanchadas, comédias eróticas realizadas no final dos anos 1960 e início dos 1970 no contexto da ditadura militar. A pornochanchada foi acusada de ir contra os valores morais e da família e classificada como a deflagradora da má fama do cinema nacional, que trabalhou na sua primeira fase apenas com insinuação de sexo, já na segunda com o sexo explícito e títulos ainda mais diretos. Junto da Revolução Sexual, a pornochanchada, tal qual o cinema americano, ocupou uma fresta do mercado consumidor e também trabalhava suas personagens como mais um elemento de erotização, recorrendo sempre a super exploração das figuras femininas. Títulos como “O beijo da mulher piranha”, “Gozo Alucinante”, “O Pecado Mora ao Lado”, “Minha Tara” estão entre os produzidos. Ao invés de uma marcha direta em direção às exposições cada vez maiores de tudo o que fosse sexual, o que se nota, especialmente no período agudo da Revolução

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Segunda onda do feminismo que tinha como principal pauta a luta contra as desigualdades culturais e políticas da vida das mulheres, reivindicando o espaço público para debater aspectos de suas vidas privadas, que são políticos e refletidos nas estruturas de poder sexistas.

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Sexual e em suas reverberações mais adiante, é uma tensão dinâmica entre as duas categorias, que Linda Williams problematiza: por um lado, revelação, e por outro, um novo direito recentemente descoberto sobre o ocultamento. Nesse período, as convenções de representação do sexo nas imagens que se movem tornaram-se estabelecidas para o mundo no qual ainda vivemos. As diversas manifestações de sexualidade, as diferenças nas práticas e vivências sexuais foram visualizadas na esteira da Revolução Sexual, ainda que as feministas tenham se engajado numa crítica importante dos limites dessas opções para as mulheres11. Um efeito importante da Revolução Sexual foi o de que não é mais possível resumir a definição de sexo a penetração heterossexual. A penetração tornou-se um entre muitos atos das variações do sexo, tais como anal, masturbação, oral, e as diversas práticas fetichistas e sadomasoquistas. A crescente visibilidade dos atos sexuais sejam sugeridos, simulados, ou exibidos como reais nas pornografias hard core, complicaram a noção de sexo como uma verdade singular e visível que se reconhece quando se vê. O que se passa a ter é a noção de singularidade, de Guatarri e Rolnik em Cartografias do Desejo, a partir da diferença, em que cada pessoa entende e percebe o que dá prazer, o que satisfaz. Essa percepção dá a deixa para o surgimento de outras maneiras de fazer pornografia no cenário nos anos 1960/1970. Esse período desencadeou o debate entre as posições a favor e contra a pornografia. Uma discussão muito grande em torno da sexualidade das mulheres, das representações do feminino e a pornografia. Destacam-se duas linhas de pensamento dentro do Movimento Feminista: as anti-pornografia e as pró-pornô ou anti-censura. Como afirma Maria Filomena Gregori: Tal “convenção” implica a ideia de que a liberdade sexual da mulher constitui prazer e perigo. Perigo na medida em que é importante ter em mente aspectos como o estupro, abuso e espancamento como fenômenos irrefutáveis envolvidas no exercício da sexualidade. Prazer porque há, no limite, uma promessa no erotismo e na busca de novas alternativas eróticas em transgredir as restrições impostas à sexualidade quando tomada apenas como exercício de reprodução. GREGORI (2003, p. 103).

Feministas como Catharine MacKinnon e Andrea Dworkin são críticas ferrenhas da pornografia. Elas defendem que nas sociedades contemporâneas, o 11

Concepção do feminismo tradicional da categoria “mulheres”, que não atenta para a diferenciação dos contextos sociais.

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gênero é parte de uma indústria de massa que explora sexual e economicamente a desigualdade entre homens e mulheres, visando o lucro e a institucionalização da supremacia masculina. Segundo Janice Raymond, ao romantizar a vitimização como libertadora, ela coloca a opressão das mulheres e a pornografia em um pedestal. Já Gloria Steinem, por sua vez considera, a pornografia como uma “Corrente subterrânea de propaganda antimulher […] e um retrocesso social contra a igualdade feminina.” (STEINEM, 1980, p.286). Temos ainda a emblemática frase: “A pornografia é a teoria, o estupro a prática” (MORGAN, 1989). As feministas antipornografia defendem que a pornografia feminista nada mais é que a falsa liberdade sexual. Para Steinem e as feministas anti-pornografia, o discurso pornográfico é um desencadeamento perigoso e prejudicial do poder sádico em que o valor estético não era exatamente o problema e sim o simbólico. Enquanto isso, a linha liberal defende a produção de uma pornografia em que a mulher seja protagonista do processo e da sua sexualidade, como acontece na pornografia feminista.

Mostrar às mulheres que suas sexualidades existem, tem

autonomia e podem ser exercidas e exercitadas quando e como quiserem. Autonomia, direito ao corpo e à sexualidade são palavras de ordem nessa linha de pensamento. As feministas pornográficas entendem as produções como vivência livre da sexualidade, possível, mais independente de padrões de beleza, de orientação sexual, de etnia ou idade. Como defende Chancer: Para muitas feministas e ativistas sociais, censurar a pornografia significa retirar às mulheres uma eventual fonte de prazer, contribuindo para a redução das suas liberdades fundamentais, acabando também por desviar as atenções sociais de importantes perspectivas multitemáticas que têm vindo a alimentar a vibrante atividade feminista (Chancer, 2000, s/p).

Monique Wittig, em seu famoso artigo “O Pensamento Hétero”, de 1980, afirma que “As imagens pornográficas […] constituem um discurso. Este discurso cobre nosso mundo com seus signos, e esse discurso tem um significado: mulheres são dominadas.” (WITTIG,1992, p.2). A categoria “mulher” é questionada em Beauvoir ao sugerir que não se nasce mulher, mas torna-se; ela propõe que ‘mulher’ seja uma construção social e histórica e não natural. A naturalização das mulheres implica acreditar em características inatas e imutáveis que servem para reforçar

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argumentos em torno da fragilidade, vulnerabilidade, docilidade, passividade dentre outras que as excluem de domínios que exigem força e competitividade. Wittig endossa essa discussão e vai além afirmando: “uma lésbica não é uma mulher” (WITTIG, 2002: 4), pois, ser mulher é estar inserida no domínio heterossexista e heteronormativo. Seus argumentos podem ser pontuados da seguinte forma: 1) a lésbica não é uma mulher, pois não está inserida na relação heterossexual; 2) o discurso opressor é o discurso da heterossexualidade; 3) as lesbianas escapam à programação inicial, não se submetendo à hierarquização heterossexista; a lesbianidade é, para autora, algo que se situa além das categorias homem e mulher; é um conceito revolucionário. O ensaio põe em discussão o “mito da mulher”: a ideia de natureza, segundo a autora, foi estabelecida para definir as mulheres como ‘grupo natural’ já que tanto seus corpos como suas mentes viriam a caracterizar algo já dado, preestabelecido. A opressão contra as mulheres consiste na argumentação de que elas já nascem prontas, sua capacidade de procriar as define. A definição é, portanto, presa à categoria de sexo, sua divisão em homens e em mulheres reporta à explicação biológica. Para Wittig (1992), ao ser feita essa conversão “naturaliza-se a história e se passa a crer que homens e mulheres sempre existiram e sempre existirão do mesmo modo” (WITTIG, 1992: 10-11). Ao fazer essa análise, Wittig e a subcultura lésbica promoveram o debate sobre os corpos, sexualidades e práticas sexuais questionando a função social e essa patente da dita “mulher”. Essa mesma subcultura promove a apropriação do pornô enquanto prática política e sexual para combater a heteronormatividade branca, elitista e machista. A feminista anti-censura Angela Carter (1978) vê Sade como um ponto de partida político que pode oferecer uma importante oportunidade para as mulheres a fim de analisar a inscrição do poder nas relações sexuais. Ao contrário de Sontag e Michelson, Carter defende a pornografia não por razões estéticas, mas sobre o valor da politização da sexualidade, que ocorre em Sade, e como o escritor é insistente em suas obras no direito das mulheres "foder" de forma tão agressiva, tiranicamente, e cruelmente os homens (p. 27).

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Entre as feministas, apenas os grupos anti-censura parecem dispostos a discutir o significado dessas verdades e não tomá-los como auto evidentes. Falar constantemente sobre sexo e entender que existe o poder do desejo não significa necessariamente um avanço na liberdade sexual. Mas, ao mesmo tempo, há de se reconhecer que até então as mulheres, feministas ou não, sequer podiam falar sobre sexo e quase todos os discursos e obras, de Denis Diderot aos filmes de hard-core atual, são de homens falando a outros homens. É notável o consenso entre as duas linhas de debates sobre a pornografia de que há a necessidade de incluir o "poder" em sua formulação. Contudo, as feministas pró-pornografia são aquelas que reivindicam também o saber partindo da apropriação das tecnologias a fim de protagonizarem o seu próprio processo e conhecimento. A leitura feminista anti-pornográfica de Sade, que aponta o autor como quem incita a agressão contra as mulheres vem de encontro com a posição de Ângela Carter sobre a Política sexual de Sade, que entende o desfrutar do prazer como também um direito das mulheres. Algumas teóricas como Susanne Kappeler (1986) afirma que o poder pornográfico na sua forma de representação, voltando a ideia de Kendrick, é criada por aqueles que detém o poder de censurar. Em nenhum lugar, o impacto deste novo conceito de pornografia como poder foi invocado com mais força ou mais extremamente difundido como no Relatório Final de 1986, da Comissão do Procurador-Geral em Pornografia dos EUA. Este documento, supervisionado pelo Procurador-Geral Edwin Meese, traz argumentos morais contra pornografia tomando como base cientistas sociais e as feministas antipornografia. Os dois grupos tem leituras distintas do significado e da importância da sexualidade e da pornografia, porém essa aliança, como Linda Williams trata em Hard Core: Power, Pleasure and the Frenzy of Visible, deslocou o debate sobre a pornografia que vinha a partir de uma discussão sobre estética e moral por críticos literários, acadêmicos e intelectuais junto ao judiciário, para a discussão sobre as formas abusivas de poder e uma ameaça aos direitos civis das mulheres. As reivindicações deste documento e sua problemática relação ao feminismo merecem uma análise cuidadosa. Nesse contexto, devemos recordar e pontuar a existência do Código de Produção para os filmes de Hollywood (Hollywood Production Code) que perdurou 21

entre 1934 a 1966, que era um reflexo dos muitos tabus da sociedade em relação ao sexo e que proibia os filmes de mostrar ou mesmo inferir "formas baixas de relação sexual" identificadas como "beijos excessivos e lascivos", "sedução ou estupro", "perversão sexual", "cenas de nascimento", "doenças venéreas", "nudez completa" e "exposição indecente". Um ponto que Linda Williams destaca é que o Código não permitia a miscigenação, vetando toda e qualquer representação de atos sexuais interraciais. Em substituição ao Código, foi criada em 1968 a Motion Picture Association of America (MPAA). Sua principal decisão foi lançar um sistema de classificação dos filmes, tentando adequá-los às diferentes audiências. A primeira divisão era entre filmes para adultos e filmes para crianças. A MPAA é uma das responsáveis também pelo desenvolvimento da categoria "X", a qual passou a ser utilizada, após o boom das produções pornográficas, para caracterizar esse tipo de produção. Linda Williams se dedica em dois capítulos de seu livro Hard core: Power, Pleasure and de Frenzy of Visible a tratar da questão das feministas anti-pornografia e suas batalhas judiciais. Ela escreve um capítulo sobre a Comissão de Messe, que junto das feministas contra a prática pornográfica produziu um relatório de 1.960 páginas, para alterar os termos do debate público sobre a pornografia. A autora cita feministas anti-pornografia, como Morgan, Andrea Dworkin, Susan Griffin, Catherine MacKinnon e Susanne Kappeler, que põem a violência como papel inerente ao masculino nas relações heterossexuais e esta violência encontra sua expressão mais extrema no uso do pênis como arma para o estupro. Andrea Dworkin (1987) aponta que nas relações heterossexuais a penetração é a invasão do feminino, dito passivo, pelo masculino, dito ativo e essa é a raiz da violência sexual. Mulheres que gostam de fantasias ou práticas sexuais, grupo no qual a autora parece incluir qualquer mulher heterossexual que gosta de transar, são colaboradores com o inimigo fálico (ver Dworkin 1987, 122-142). Ou, como Susanne Kappeler aponta em seu livro “A Pornografia da Representação” (1986, 214), "com amantes como os homens, quem precisa de torturadores?". Essas feministas também entendem que mulheres que buscam encontrar o prazer em fantasias são vítimas da falsa consciência, fazendo referência às mulheres que defendiam a anti-censura. A crítica anti-pornografia da violência masculina, em resumo, como afirma Williams, não faz distinção entre os estupros, pornografia hard22

core consumida por homens dos romances e fantasias sexuais das mulheres. Dessa forma, mulheres que consomem as produções soft-core em romances estão colaborando com seus torturadores também. Como resultado, o valor político de denunciar o estupro na vida real passa a abarcar e condenar também toda e qualquer fantasia sexual e estabelece uma censura de bom conteúdo dos sonhos. O problema é que as relações de poder existentes entre os sexos estão inextricavelmente ligados tanto às nossas fantasias, como às expressões e encenações de prazeres sexuais. Um exemplo seria um homem considerado poderoso na nossa sociedade encontrar prazer em uma fantasia sexual sadomasoquista. Esses cenários sadomasoquistas são ainda mais complicados na avaliação da Comissão Meese em relação à representação da violência sexual, pois aqui a violência é retratada não como coerção real e não como um jogo altamente ritualizado em que os participantes consentem a desempenhar papéis pré-determinados de dominação e submissão. Essa discussão ignora o fato de que, nestes cenários, mulheres podem muito bem ser, e muitas vezes são dominadoras. Williams continua sua análise a partir da indicação, contraditória, da comissão de que a pornografia fosse o dano final, legitimando assim a preocupação com a crescente violência contra as mulheres e incentivando os crimes sexuais. Dessa forma, a comissão estadunidense estabelece o que são uma sexualidade e uma prática “normais”. Esse ataque à violência adiciona a sua retórica, emprestada do feminismo dito radical, um discurso conservador e de oposição à imoralidade, "obscenidade", ou simplesmente à má-arte, permitindo que as normas sexuais e uma moral da maioria se estabeleçam para proteger a sociedade da pornografia e seus malefícios. Enquanto os comissários aceitaram os elementos da crítica feminista radical de prazer fálico como violento e afirmações repreensíveis do poder masculino, em troca, a comissão pode exercer o controle e desaprovação as práticas e sexualidade não ortodoxas como a pornografia gay ou lésbica, pois desafiavam as normas do pensamento hétero como Wittig tão bem nos explicou em na sua obra “O Pensamento Hétero”. Se a sexualidade fálica está contaminada pelo poder, essa tática parece dizer que ela é essencialmente violenta e perversa e, em seguida, a sexualidade feminina deve ser definida como o seu oposto: não-violenta e não-perversa, prazer puro e natural não

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contaminado pelo poder. O infeliz resultado não serve a nenhum feminismo, pois acaba por reforçar a ideia de normas e papeis sexuais. Dworkin faz mais contribuições ao debate em seu livro “Homens Possuindo as Mulheres” (1979) onde atribui à representação das mulheres como vítimas da opressão colonizadora dos homens. As mulheres que tiveram escolha de não viver nesta história, mulheres que aprenderam a encontrar prazer em sua relativa impotência, são tratadas como simpatizantes fálicas por não reconhecer sua vitimização. Tornam-se, como Ellen Willis (1983, 465) apontou, uma nova forma de bad girl, reformulada nos termos desviantes. Williams aponta nesta análise do poder fálico duas falhas graves. O primeiro é o pressuposto de que as mulheres são seres naturais e que sua sexualidade, de alguma forma deixada sozinha em um estado de natureza, fora da história, poderia ser livre de poder. As implicações de Dworkin no argumento e da posição feminista anti-pornografia em geral, é que os homens são carnais, perversos, seres poderosos e violentos (Dworkin em Lederer 1980, 148), enquanto as mulheres são assexuadas ou suavemente seres sexuais. Este argumento sugere que a sexualidade feminina, que seria sempre libertária e sem contaminações patriarcais, não teria relações de poder e não produziria nenhuma fantasia sexual transgressora. Enfatizar o papel da mulher como vítima absoluta do sadismo masculino só perpetua o supostamente essencial na natureza da impotência da mulher. O modelo de representação empregada por Dworkin também é trabalhado por feministas como Susanne Kappeler. A autora afirma que a pornografia não é uma história de amor e o intitula como documentário. Mas nem uma "história de amor" necessariamente impede as relações de poder. A pornografia, afirma Kappeler, há muito tempo gera o mito do prazer sexual contado do ponto de vista dos homens, como o poder para explorar e objetivar a sexualidade das mulheres. De fato, apenas recentemente tornou-se possível para a pornografia, como um gênero, introduzir outra perspectiva de poder e prazer das mulheres. A implicação maior aqui é que se afirma ter uma verdade única, inteira e fechada da sexualidade em que ela está fora da linguagem, das simbologias e dos discursos de poder. Este argumento é a falácia central da posição feminista anti-pornô: existe uma legítima e única sexualidade em oposição aos supostos desvios e anomalias de outras pessoas. Embora a ideia de sexualidade natural possa oferecer a promessa utópica de mudança, de libertação do poder, na verdade, impede a resistência das outras formas existentes, reduzindo o 24

poder à questão de arbítrio pessoal, com indivíduos que controlam outros indivíduos a partir do gênero que lhes é atribuído e do corpo patenteado. A construção social e histórica da diversidade, da diferença e das sexualidades, caracteriza as feministas anti-censura ou pró-pornografia. Este feminismo não organiza a sua posição em torno de pornografia como uma questão central e também não defende a pornografia em todas as suas formas. Estas mulheres estão interessadas, no entanto, em defender a expressão das diferenças sexuais e na oposição à hierarquização de sexualidades como melhor, ou mais normal, que outras (Rubin 1984). Williams aponta que seria melhor fazer referência a essa mulheres como feministas da "construção social", dada a sua ênfase nos fatores sociais e históricos na construção da sexualidade e do seu trabalho para defender a expressão de sexualidades diversas e de se opor a noção de qualquer tipo de "politicamente correto" e sexualidade ideal. Em geral, as feministas pró-pornô concordam que as representações pornográficas são na maioria das vezes machistas, mas elas não necessariamente concordam que representações explícitas de atos sexuais é a chave para a opressão sexista. Elas preferem abrir a caixa de Pandora e soltar todas as questões que dificultam e cristalizam a sexualidade. Certamente há riscos envolvidos em reivindicar estas questões, mas não para abafá-las e sim para abrir a discussão da sexualidade como uma importante força na vida das mulheres. Qual é o conteúdo real do pornô e como esse pornô está relacionado a excitação? O que torna algo atraente, e que faz parte do jogo de poder na sexualização de alguém ou de uma situação? É uma crença feminista que, sem a igualdade de gênero todas as questões de poder ainda serão distantes, ou teremos que lidar no futuro com um modelo de desigualdades de maneira diferente? Há tipos de excitação que conhecemos e experiências que são totalmente ausentes em filme pornô? Como se expressa as múltiplas sexualidades? Como são representadas ? O quanto é convencional e sujeito às suas próprias leis estéticas ? (WILLIAMS, 1989, p.27 IN BURSTYN 1985, 119).

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What is the actual content of porn and how is porn related to the broader questions of arousal? What

makes something sexy, and what part does power play in the sexualization of a person or situation? Is it a feminist belief that without gender inequality all issues of power will other away, or do we have a

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As feministas pró-pornô procuram principalmente fazer perguntas. Carole Vance trabalha os termos Prazer e Perigo para compreender uma longa série de perguntas sobre a construção da sexualidade e seu significado em termos de prazer e perigo sexual para as mulheres. A única coisa que Vance sabe ao certo é que a sexualidade não é apenas a "opressão da violência masculina, brutalidade e coerção", há também a opressão na repressão forçada do desejo das mulheres (Vance 1984, 23). Para Vance, "para falar só de violência sexual e da opressão, ignora-se a experiência das mulheres com a agência sexual e escolhe, involuntariamente, o aumento do terror sexual e desespero em que as mulheres vivem "(p. 1). Desde pelo menos os anos setenta, mulheres foram se apropriando e participando dos tipos de prazer, explorando o mercado sexual com protagonismo e não apenas como objetos de consumo. Barbara Ehrenreich, Elizabeth Hess e Gloria Jacobs, em seu livro He-Making Love (1986), vêem essa movimentação como um sinal de que a Revolução Sexual manteve a "feminilização do sexo" como um importante item da agenda. Williams aponta a dificuldade de contar qualquer coisa sobre os textos que falam sobre a história da pornografia. Historicamente, a grande produção textual vem de encontro à postura feminista anti-pornografia que define a categoria como o caso extremo de poder patriarcal, aplicando a moralidade capitalista, branca e heterocentrada. Recusam a pornografia e a classificam como uma das maiores violências simbólicas impostas e de reafirmação da objetificação da mulher na sociedade. Feministas pró-pornografia, em resposta, argumentam contra esse isolamento da pornografia como um caso especial e, em vez disso, elas se concentram na tradição pornográfica que ocorre na cultura dominante, como se apropriar dos gestos e do simbólico a fim de gozar e protagonizar o discurso. Esta é a estratégia, por exemplo, de Mariana Valverde quando fala sobre pornografia em “Sexo, Poder e Prazer” (1985) e de Annette Kuhn em sua discussão sobre pornografia no filme “Fotos das Mulheres” (1982) e mais tarde em um capítulo do seu livro “O Poder da Imagem” (1985). Ainda no livro Hard Core: Power and Pleasure and the Frenzy of model for the future that will handle inequalities differently?Are there kinds of arousal we know and experience that are entirely absent in porn? How expressive is it of our full sexual range? How representative? How conventional and subject to its own aesthetic laws? (WILLIAMS, 1989, p.27 IN BURSTYN 1985, 119).

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the Visible, Williams comenta essa postura das feministas dizendo que a pornografia pode não ser especial, mas tem uma especificidade distinta de outros gêneros. É nesta especificidade que a autora conceitua alguns pontos sobre o gênero. Um primeiro passo seria definir o que é um filme pornográfico, como o visual é construído, quais as representações feitas, as práticas sexuais que tem a intenção de despertar voyeurs. Pensar que a pornografia de cinema e vídeo se distingue da escrita, da fotografia por meio do elemento do movimento contido nas práticas sexuais. O próprio impulso para a invenção do cinema foi precisamente que parecia capaz de registrar o anteriormente invisível, a "verdade" de corpos e prazeres de maneira mediada e direta. A autora invoca o conto do príncipe Mangagoul de Diderot para mostrar a importância que a imagem em movimento alcançou para as “documentações” sexuais. O gênio de Diderot evoca o anel de prata mágico que o torna um príncipe invisível e leva as mulheres a confessar seus prazeres inconscientes na sua presença. Essa magia nada mais é que a representação cinematográfica oferece aos seus espectadores com uma forma aparentemente perfeita de invisibilidade. Cada espectador é transportado, pela magia da câmera, close-ups, cenários, angulações, sequências e edição, para a posição ideal do testemunho das confissões de prazer. A magia cinematográfica permite aos espectadores ver e ouvir tudo sem ser visto ou ouvido. Mas, ver a “verdade” do sexo comprova um projeto maior do que se poderia pensar, especialmente no caso dos corpos das mulheres, cujas “verdades” estão mais em jogo. Os termos visuais do cinema não permitem que as protagonistas de filmes hard-core possam apresentar o seu prazer. Annette Kuhn (1985, 24) afirma que a pornografia em geral produz significados "em torno da diferença de gênero". Para isso, Williams acrescenta a noção de Beverley Brown (1981) que a pornografia revela regimes atuais de relações sexuais como "uma coincidência de fantasia sexual, gênero e cultura em uma organização erótica e de visibilidade". Em nenhuma construção, nem na arte erótica oriental e nem na construção do conhecimento ocidental sobre o prazer, as mulheres tiveram o protagonismo de suas experiências e vivências sexuais. As artes eróticas orientais e de antigas culturas reconhecia a diferença das mulheres na sua pedagogia de prazer, porém não traçaram um conhecimento detalhado sobre o prazer das mulheres. O cinema em si, como uma forma de narrativa com certos prazeres institucionalizados, está profundamente 27

relacionado com os prazeres sexuais de espectadores do sexo masculino através de vislumbres do anteriormente oculto, as "coisas" das mulheres. Williams argumenta que “é simplesmente notar que, para as mulheres, uma constante da história da sexualidade tem sido um fracasso imaginar seus prazeres fora de uma economia macho dominante.” Isso é para sugerir que as práticas disciplinares de Foucault têm operado com mais força sobre os corpos de mulheres do que nos dos homens. A autora faz a crítica a Foucault acreditando que ele falhou ao reconhecer a situação das mulheres na constituição do significado e poder na cultura ocidental. A tese proposta por Linda Williams é a de que, para pensar as representações sexuais na cultura, no caso dela a norte-americana, desde a invenção do cinema é necessário levar em consideração o grau em que os atos chamados um dia de obscenos (off/scene) foram se tornando on/scene, na mesma lógica aplicada no slogan feminista “o privado é político”. O que a autora tensiona ao propor o termo on/scene é evitar julgamentos apressados e usos levianos do termo obsceno. Seu percurso argumentativo, narrativo e analítico vem reiterar a proposta de que são muitos os modos de se retratar atos sexuais e essa profusão de imagens não pode ser entendida como descolada da história cultural e social do sexo, nem fora da retórica repetidas vezes mencionada por ela de revelação e encobrimento. É nas imagens e discursos construídos nessas novas propostas de virtualização das manifestações do sexo, das subjetividades e das sexualidades que percebemos que o discurso pode até continuar com os mesmo valores e moralidade, contudo a cada ciclo ele se modifica junto com o poder e com a produção dos conhecimentos na história, a diferença faz a estrutura social se mover. E dessa forma, outros discursos aparecem e a tecnologia muitas vezes vem aliada a esses processos. A década de 1990 trouxe as fitas em VHS, e assim, os apreciadores do pornô não precisavam mais ir aos cinemas, podiam se divertir na privacidade de casa. “Com a chegada do vídeo, o pornô passou a ser produzido em larga escala, como uma linha de montagem” (ABREU, 1996). Hoje, a indústria pornográfica gira em torno da internet e torna essa prática ainda mais simples. A arte erótica produzida durante a década de 1990 reivindica o rótulo de "arte erótica hard-core". Este tipo de produção seria extremamente gráfica, como a pornografia hard-core é, mas não utilizaria os mesmos recursos da narrativa pornográfica, como a filmagem em close-up com grande detalhamento da anatomia corporal. No capítulo final de Screening Sex, Linda 28

Williams se propõe a pensar nos desdobramentos mais contemporâneos da exibição do sexo. Para tal, toma como foco a multiplicidade de telas hoje encontradas: não há apenas a grande tela das salas de cinema, mas as telas de televisões (DVDs) e computadores (cyberporn), cada vez mais tecnológicas e interativas. Em relação aos desenvolvimentos mais recentes da exibição de sexo, Williams traz importantes considerações sobre os avanços tecnológicos e o modo como eles proporcionam mudanças na maneira como o sexo é visto e sentido. O desenvolvimento do cyberporn e o crescimento do consumo de filmes em ambiente privado seriam duas das mais visíveis modificações ocorridas a partir dos anos 1990. E elas têm um impacto considerável ao modificar a relação público/privado e as maneiras de recepção dos filmes. Não se trata mais apenas de uma audiência defronte a uma grande tela, partilhando pública e grupalmente da exibição, mas sim de pessoas que podem estar em seus quartos, sozinhas ou acompanhadas, com a tela de seu computador, conectadas à internet e interagindo das mais diferentes formas com o que vê e sente. Ela reconhece ainda o papel da internet na crise da indústria pornográfica mais tradicional. A experiência de interatividade (e exemplos são os sites de sexo via webcam) mais ampla talvez seja o ponto que confere ao on-line uma diferenciação em relação às técnicas anteriores de interação espectador – tela de cinema. Apesar de não acreditar que seja possível falar em uma hegemonia de uma das telas, ela afirma que o entendimento da exibição do sexo hoje deve considerar múltiplas possibilidades que incluem clicar, digitar, escolher e até mesmo ver o público assumindo o papel diretor: filmando, escolhendo os atos, as cenas e as interações. Ao montar o percurso apresentado no livro, Williams possibilita relacionar sexo em sua forma cinematográfica não apenas à pornografia - sua manifestação mais conhecida, debatida e polêmica – ou ao erotismo, mas pensá-lo desde os quase inocentes beijos do cinema mais clássico, passando pelos orgasmos femininos cuja figura símbolo é Jane Fonda, até as relações em tempo real via internet com cybersex13 e cyberporn14.

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Sexo virtual praticado na internet Produções pornográficas que são planejadas para o formato da web e visam seu consumo na internet.

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A autora ainda discute o conceito de “saber carnal”15. Ela o emprega como termo que especifica uma série de trocas mediadas entre os corpos que assistem e aqueles encontrados na tela. O termo evoca um conhecimento corporificado não apenas dos corpos que se tocam na tela, mas também do deleite que pode provocar naqueles que assistem. A referência para essa formulação são as produções de Vivian Sobchack sobre embodiment e cinema. As obras fílmicas podem cristalizar os valores legitimados de comportamento e de existência na sociedade, exacerbar na virtualidade a estrutura, a moralidade e os padrões sociais que povoam os (in)conscientes. Mas essa cultura imagética tem em si também a potência de resistência e pode borrar os limites da história contada como única possibilidade. A cultura visual é uma maneira de problematizar a realidade, questionando o papel que se outorga à cultura, mas, sobretudo, buscando compreender os fenômenos que, nas duas últimas décadas, transformaram as concepções de arte, cultura, imagem, história e educação e operam a “mediação” de representações, valores e identidades (MARTINS, 2005)

Este é um dado essencial para compreendermos os processos contemporâneos de re-comodificação do corpo (GILL, 2003), sobretudo do corpo “feminino”, recolonizado com velhos poderes heteronormativos, brancos e androcêntricos, mas agora mais perversamente velados pelo tom democratizado dos novos discursos de aparente agenticidade sexual. É importante, mais uma vez, situar cientificamente a produção pornográfica na sua dimensão sexopolítica (Preciado, 2004), ou seja, num dinâmico sistema disciplinar de discursos e tecnologias heteronormalizadoras das identidades de gênero, das práticas sexuais e do próprio corpo. Segundo Guacira Lopes Louro, os filmes exerceram e exercem (com grande poder de sedução e autoridade) pedagogias da sexualidade sobre suas plateias. Parece pertinente assinalar a sexualidade como “dispositivo histórico”, sinalizado assim por Foucault (1988). Portanto, a autora entende que antes de vê-la como um “dado da natureza”, a sexualidade pode ser compreendida como um construto cultural, em que se arranjam linguagens, corpos, gestos, rituais. Os significados atribuídos a identidades, jogos e parcerias sexuais são situados e disputados historicamente e, ao longo dos tempos, nos filmes e na pornografia, práticas sexuais e de gênero vêm sendo representadas como legítimas, modernas, patológicas, normais, desviantes, 15

Saber carnal tem como definição clássica intercurso sexual, coito, cópula que visa à procriação .

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sadias, impróprias, perigosas, fatais, etc.”. Ainda que tais marcações sociais sejam transitórias ou, eventualmente, contraditórias, seus resíduos e vestígios persistem, algumas vezes, por muito tempo. Reiteradas e ampliadas por outras instâncias, tais marcações podem assumir significativos efeitos de verdade. O “certo” e “errado” constituem limiar de comportamentos e existências, ditam o que ou quem pode ser visibilizado e considerado. O endereçamento fílmico consiste em “um processo de negociação entre esses produtos culturais e suas/seus espectadoras/es” (LEITE, 2012, p.175) Esse conceito é uma ferramenta útil para analisar o contexto em que as mulheres passam a figurar como consumidoras e consequentemente, demandam filmes diferenciados. Mas que diferenças seriam essas? O conceito também nos permite pensar quais os contextos de emergência dos Pornôs Feministas, que se diferenciam do que poderia ser chamado de “Pornô para mulheres”, filmes produzidos desde os anos 1970. Essa genealogia do contexto de emergência diante da pornografia mainstream busca compreender quais elementos do ativismo político estão conectados e como as diferenças do Pornô Feminista (des)constroem em relação aos outros. Notando que “o fato de ser endereçado a esse sujeito feminino que afirma a sua sexualidade e atua na perspectiva de trazer à tona o “corpo que fala” não pressupõe que as produções pornográficas feministas rompam com todos os formatos de endereçamento tradicionalmente desenvolvidos no mainstream da indústria pornô.”(LEITE, 2012, p.175) 1.3 – Do Pornô Comercial à Pornografia Feminista: as mulheres também podem gozar Se no início da sua produção, a pornografia era uma forma de contestação de valores morais e de subversão da moral cristã e da organização social, no seu desenvolvimento ela foi apropriada pela lógica de mercado e direcionada, em sua grande maioria, apenas para o prazer do público masculino. A pornografia enquanto categoria “nasce” para ser regulamentada, vigiada e não mais como uma transgressão que necessariamente produz conhecimento. Muito dela deixa de ser resistência para ser normativa e limitante dos corpos, sexualidades e práticas. As

relações

sexuais

são

construídas

por

“cenas

excessivamente

estandardizadas” (GIDDENS, 2004), descontextualizadas na maioria dos pornôs hard core e que a motivação sempre é o gozo do homem. Román Gubern ressalta em La 31

imagen pornográfica que o prazer sexual da mulher é simplesmente anulado ou posto em função do prazer masculino. É subjugar o feminino ao poder sexual do masculino e essa representação se reflete na organização social capitalista, cristalizando a hierarquização do masculino e feminino, reafirmando preconceitos e desigualdades. Sem direito à sexualidade, ao corpo e aos desejos, essas identificações dos gêneros nos filmes espelham suas funções no âmbito macrossocial. Os corpos transpassam o virtual e pesam, são cerceados, marcados, violentados. A pornografia mainstream, portanto, dogmatiza e exacerba valores sociais misóginos, racistas, homofóbicos, de higienização dos corpos, habilitando, assim, as performatividades possíveis na sociedade e na valorização da vida desses sujeitos. Como afirma Erika Lust em sua publicação Porno para Mujeres, essas produções oferecerem um “porno monocolor y monogénero” (p.19). Esses conceitos são trabalhados por Butler em Bodies than matter. Contudo, esses mesmos corpos abjetos nos seus contextos, como discorre Butler, encontram as fissuras no próprio sistema e conseguem resistir. Desejo e abjeção dos corpos trazem o embate, a marginalidade, mas também se intercruzam e se tateiam. A pornografia aparece no livro Manifiesto contrasexual de Beatriz Preciado, na descrição como princípio de uma sociedade contrassexual, que haveria a distribuição gratuita de textos e imagens contrassexuais, ou seja, uma cultura contrapornográfica. O prefixo contra vem demarcar a posição política dessa outra cultura que pretende questionar todos os valores ditos naturais, os corpos patenteados pelas categorias masculino e feminino e quais seriam seus padrões de comportamento e de práticas na sociedade. Uma desconstrução do nosso inconsciente social de gênero, de sexualidade e corporeidade. Contudo, Nuno Cesar Abreu (1996) considera a entrada da pornografia no âmbito doméstico um marco, pois alterou o consumo e inclui a mulher no sentido de nicho de mercado no jogo. Abreu afirma que “o pornovídeo permite a dois estereótipos femininos da cultura patriarcal encontrarem-se sob a forma indireta do audiovisual: a “rainha do lar” (ou santa mãe) pode assistir a performance da “mulher da rua” (ou prostituta pecadora).” (ABREU, 1996, p.176). A partir da entrada dos videos-cassetes nas casas, temos o inicio da transformação no consumo de materiais pornográficos que hoje incluirem as mulheres enquanto consumidoras de forma mais ativa. A internet e o acesso a computadores pessoais potencializaram o consumo e também geraram as condições que democratizaram a produção de pornografia. 32

Em bastantes casos, as novas pornografias passaram a desafiar os imperativos estéticos mais comerciais, subvertendo ao mesmo tempo as ideologias centralizadoras do capitalismo. Significativas parcelas da sua produção contemporânea deixaram de atender às expectativas mais tradicionais da heterossexualidade masculina, dando assim espaço à constituição espontânea de nichos alternativos de mercado e ao surgimento de novas audiências. As recentes inovações tecnológicas, muitas das quais popularizadas pela vasta e lucrativa indústria pornô, facilitaram tanto a sua produção como o seu acesso por pessoas de contextos socioculturais muito diversos (Ciclitira, 2004). A Internet, enquanto mecanismo fundamental da nova era pornográfica, também provocou consideráveis transformações nos seus modos de distribuição e recepção, permitindo o total anonimato dos seus consumidores, assim resguardados dos constrangimentos do espaço público. Os peep-shows, os quiosques de revistas, as salas de projeção de filmes hard, os clubes de aluguel de vídeos, enfim, todos os lugares socialmente estigmatizáveis pelo pudor, foram rapidamente preteridos a formas bem mais privadas de acesso a produtos pornográficos, longe de mediadores presenciais e de outras testemunhas. Existem regras implícitas e ordenações no meio pornográfico mainstream que ditam o que é ou não aceitável, a partir de uma moral e padrões comportamentais. Corpos definidos, magros e depilados, higienizados para manter o padrão de beleza já estabelecido na sociedade nas produções, cristalizando estereótipos. Masculino e feminino devem sempre presentes na cena, mesmo que essa trate de uma transa entre pessoas ditas do mesmo sexo, afinal de contas o binarismo deve ser mantido. Práticas que fujam do sexo genitalizado e que envolva outras formas de prazer são exotificadas ou patologizadas, como acontece em grade medida com o sadomasoquismo. O repovoamento desse território industrializado com pornografias não normativas, questionadoras, em formato de protesto, subverte os usos tecnológicos dos recursos que o caracterizam. É importante situar cientificamente a produção pornográfica na sua dimensão biopolítica (Foucault, 1976) e sexopolítica (Preciado, 2004), ou seja, como o sistema dinâmico disciplinar de discursos e tecnologias heteronormalizadoras das identidades de gênero, das práticas sexuais e do próprio corpo funcionam na sociedade e regulam os corpos e subjetividades das pessoas, cerceando as múltiplas possibilidades de performances sociais a duas escolhas: masculino e feminino. 33

Voltamos, então, à expressão de Sontag (1987) “imaginação pornográfica” que tem a potência do movimento para modificar os cenários sociais. É a partir desses posicionamentos que surgem correntes que se propõem a produzirem outros olhares e outras formas de vivenciar a sexualidade, seus corpos e subjetividades. Desse modo, movimentos como a Pornografia Feminista e o Pós-pornô passam a reinvindicar seu espaço, mas não da mesma forma e nem nos mesmos moldes que o pornô mainstream. Talvez se possa dizer que, efetivamente, muitos já admitem que as dicotomias homem/mulher, heterossexual/homossexual não são suficientes diante das inúmeras possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades. Embaralhamentos desafiam classificações. Fronteiras são, constantemente, atravessadas. Novas posições são nomeadas. Alguns não se contentam apenas em mudar de um “lugar” para outro e escolhem viver na fronteira, numa espécie de entre-lugar. Em vez de uma nova posição-de-sujeito, há quem prefira a não-acomodação, a ambiguidade e o trânsito (Louro, 2004). Uma série de condições culturais, sociais, políticas, econômicas vem, desde algumas décadas, possibilitando a multiplicação dos discursos sobre a sexualidade, produzindo a visibilidade das muitas formas de ser, de amar e de viver, embora se mantenham de modo renovado, divisões, hierarquias, diferenciações. O cinema participa, também, deste processo revelando essas novas performances e representações. A Pornografia Feminista surge com o movimento de atrizes que não queriam mais atuar nos moldes da pornografia mainstream, pois achavam que as mulheres eram retratadas de maneira degradante e seu prazer não era considerado. O movimento do pornô feminista defende que a mulher tem sim direito ao prazer e da forma como ela quiser. Propõe-se ao rompimento dos estereótipos de representação da mulher e traz o olhar do feminino para essas produções, procurando revelar outras possibilidades e outras performances, e em alguns casos a descaracterização dos gêneros, acabando por entrar na questão da identidade do ser mulher e da reprodução do ser feminino. Esse trabalho se propõe a desvelar o que permeia os discursos normativos, movimentar os valores morais sobre a sexualidade relacionada ao feminino, já que ainda se mantêm hoje a lógica patriarcal de organização social, através de uma produção pornográfica que não contempla a diversidade de representações e os desejos dos femininos. Os filmes analisados neste trabalho serão 34

Authority um dos curtas de Dirty Diaries, o longa-metragem Cabaret Desire produção da expoente diretora do gênero, Erika Lust, o filme produzido pela atriz performer pornô Juliana Dorneles, com o filme “Amor a cidade”. Estas produções foram escolhidas por representarem alguns pontos que desejo levantar nesse debate. Authority é um curta que retrata uma foda entre duas lésbicas, com pitadas de sadomasoquismo e androgenia, discutindo por meio das simbologias empregadas nos figurinos, acessórios e cenário um questionamento ao próprio título.

Figura 2 – Authority

O outro curta “Amor com a cidade” foi elencado justamente por ser uma produção nacional e trazer como protagonista uma mulher e seu tesão que transborda por meio da narrativa; a transa em espaços públicos com ela mesma e com objetos das cidades de São Paulo e Porto Alegre é uma também tentativa de contextualizar a figura do feminino no contexto da América Latina e Brasil.

Figura 3 – Amor com a Cidade

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Por fim, também busco uma das expoentes do gênero pornô feminista que está se consolidando como nicho de mercado. Trago o filme Cabaret Desire, que é dividido em quatro histórias: The Two Alexes, My mother, In Wonderland, Wet sheets. Estes curtas buscam apimentar a noite de um cabaret onde as pessoas vão para ouvir contos sobre sexo. O desejo invade a todos os clientes e a narração vai guiando a jornada dxs presentes na descoberta de novas sensações e lugares de prazer.

Figura 4 – My mother - Cabaret Desire

No livro The Feminist Porn Book the politics of producing pleasure organizado por Constance Penley, Celine Parreñas Shimizu, Mireille Miller-Young e Tristan Taormino, as autoras situam a Pornografia Feminista como uma escola de engajamento, desafios e promover uma re-imaginação pornográfica. A publicação é dividida em artigos de diversas pornógrafxs feministas falando sobre seus filmes e as potências de suas obras e vivências. As produções usam as imagens sexuais explícitas para contestar e complicar a representação dominante de gênero, raça, etinicidade, sexualidade, classe, capacidade, idade, padrões de corpo e beleza e tantos outros marcadores de exclusão. Essa pornografia busca explorar os conceitos de desejo, agência, poder, beleza e prazer que geralmente são confundidos e não permitidos pelas hierarquias construídas impostas pela heteronormatividade e algumas vezes passando por uma homonormatividade. Desestabilizar as definições convencionais de sexo e expandir a linguagem sexual como uma ação erótica, expressão de identidade, poder de mudança da cômoda cultura heteronormativa e propor novas políticas são motivações. As autoras apontam a Pornografia Feminista como uma alternativa imagética, uma forma de expandir os discursos e normas estabelecidas sobre sexo. Essa pornografia abarcou os rótulos de algumas produções pornôs como “pornô para mulheres”, “pornô para casais” e pornô 36

lésbico, além das produções artísticas de fotógrafas feministas, performances e filmagens experimentais. A pornografa feminista não assume um olhar único das mulheres e sim assume a multiplicidade da diferença, das preferencias, das singularidades e se coloca como um instrumento de mudança, intervenção e resistência na nossa sociedade. Essas feministas acusam as anti-pornôs e a Porn Wars de uma moralização e higienização dos corpos e sexualidades. Um movimento de decência social. Enquanto isso as pró-pornôs promovem o empoderamento das mulheres, das ditas minorias sexuais e das trabalhadorxs do sexo. Foi dessa forma que a Pornografia Feminista ganhou vida nos anos 1970/1980 nos EUA. Essa época foi conhecida como “golden age of porn” com grandes orçamentos, altas produções comerciais pornôs. Atrizes que faziam parte desse universo como Annie Sprinkle, Candida Royalle, Veronica Hart, Gloria Leonard e Veronica Vera fundaram um grupo chamado Club 90 em Nova York. Em 1984, esse clube foi convidado pelo coletivo feminista de arte “Carnival Knowledge a participar do festival Second Coming e explorar o questionamento “Is there a feminist pornography?” como é contato no The Feminist Porn Book. Essa foi a primeira vez em que a pornografia foi discutida em fóruns feministas dessa forma. Mais tarde, o Candida Royalle fundou a Femme Productions16 que acabou criando o novo gênero: o pornô do ponto de vista das mulheres, com foco nas histórias, grandes produções, prazer feminino e romance. Na mesma época, em São Francisco, a revista On Our Backs17, primeira publicação feita e direcionada para lésbicas realizada por Susie Bright, Nan Kinney, Myrna Elana e Deborah Sundahl, resolveu expandir seu campo de atuação e foi fundada a Fatale Video que tinha a intenção de produzir e distribuir filmes de pornô lésbico. Essas autoras situam que o movimento europeu do pornô feminista emergiu nas décadas de 1980/1990.

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Femme Productions é uma produtora de filmes pornôs destinados a um público de mulheres e casais. A empresa é liderada pelo ex-atriz pornô Candida Royalle, que dirige e produz a maioria dos filmes. Royalle gosta de definir suas obras "sensualmente explícito", ou "para casais". Geralmente seguem uma linha mais romântica e com uma história, música original e personagens reais de todas as idades. 17 On Our Backs foi a primeira revista erótica produzida por mulheres lésbicas para um público de lésbicas nos Estados Unidos.

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Figura 5 – Atrizes pornôs que se rebelaram com a indústria maisntream

Nos anos 1990, Royalle e Hartley provocaram um impacto na indústria pornográfica mainstream. Isso passou a ser notável quando grandes estúdios como Vivid, VCA e Wicked começaram a produzir suas linhas próprias para o seguimento de “pornôs para casais” que refletia a visão romantizada de Royalle com um pornô mais soft18, com uma história que dava o contexto da ação sexual e altos valores de produção. Mas essas produções ainda eram consideradas o lixo da indústria pornográfica dos EUA, já que mostravam o prazer sob a ótica do feminino, porém também acabou por ser reconhecido como gênero, se bem definido e aceitável, produções que foram apropriadas pelo mercado e suas vertentes. A Fatale Video já tinha uma postura mais independente e, apesar de ter realizado filmes até a década de 1990, foi através de suas histórias que finalmente algumas subjetividades e práticas sexuais ganharam seu espaço. Annie Sprinkle. Marry Beatty, Shar Rednour, Jackie Strano participaram dessas produções. Foi nessa mesma leva que filmes com homens trans passaram a ser produzidos, Sprinkle foi uma das primeiras a pensar a temática e Christopher Lee realizou um cast composto apenas por homens trans. Já no início dos anos 2000, a pornografia feminista começou a pipocar pelos EUA com o surgimento de muitxs autorxs que se identificavam como feministas e com produções feministas. Buck Angel, Dana Dane, Shine Louise Houston, Courtney Trouble, Madison Young e Tristan Taormino são alguns desses nomes. Na Europa, Erika Lust na Espanha, Anna Span e Petra Joy no Reino Unido, Emile Jouvet, Virgine 18

Cenas com uma história mais detalhada, contendo nudez, e sexo com mais delicadeza.

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Despentes, Shu Lea Cheang na França e Mia Engberg, organizadora dos curtas “Dirty Diaries” na Suécia. Em 2006 foi criado em Toronto o festival “The Feminist Porn Awards” (FPA) a partir do sex-shop canadense Good For Her. Para inscrever os filmes, as produções deveriam atender a alguns requisitos: (1) As mulheres conduzem a produção, escrevem, dirigem, etc. o trabalho; (2) Descreve o prazer feminino; e/ou (3) Expande os limites da representação sexual nos filmes e desafia os estereótipos encontrados no pornô mainstream.E claro, é excitante! No geral, as vencedoras do Feminist Porn Awards tendem a fazer filmes que tragam o olhar do feminino do início ao fim. Isso significa que é mais provável ver desejo e consentimento, orgasmos reais, e mulheres falando sobre suas fantasias (mesmo que essa fantasia seja não estar no controle) (2012, p.12)

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A proposição do FPA é que as mulheres possam ver o que desejam ver, o que as excita de fato, orgasmos verdadeiros, poder e agência dos corpos e subjetividades. A cerimônia do FPA atrai pornógrafxs de todo o mundo e faz do evento cada ano maior, despertando a consciência sobre o pornô feminista nos diversos públicos e dessa forma gerando demanda de produção. Em 2009, Laura Méritt criou uma campanha “PorYes” para que fosse organizada uma versão europeia do FPA. Isso demonstra que o movimento do pornô feminista se concentra na Europa e na América do Norte e isso traz um aspecto colonizatório em certa medida dessas práticas e pedagogias virtualizadas nessas pornografias. As autoras identificam um movimento de cerca de 40 anos envolvendo mulheres que pensam, assistem, formulam e fazem pornografia. Dentre as pensadoras sobre a temática da pornografia no feminismo anti-censura, elas pontuam Linda Williams com Hard Core: Power, Pleasure, and the Frenzy of Visible e Porn Studies, Laura Kipnis’s com Bound and Gagged: Pornography and the Politics of Fantasy in America, Jane Juffer’s At Home with Pornography: Women, Sex, and Everyday Life, Drucilla Cornell’s Feminism and Pornography, Pamela Church Gibson’s More Dirty

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(1) Women had a hand in the production, writting, direction, etc. of the work; (2) It depicts genuine female pleasure; and/or (3)

It expands the boundaries of sexual representation on film and challenges estereotypes that are often found in mainstream porn. And of course, it has to be hot! Overall, Feminist Porn Awards winners tend to show movies that consider a female viewer form the start to finish. This means that you are more likely to see active desire and consent, real orgasms, and women taking control of their own fantasies (even when that fantasy is to hand over that control). (p.12, 2012)

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Looks: Gender, Pornography and Power que tornaram também possível que feministas pudessem criar pornografia. Gayle Rubin pontua que as novas tecnologias proporcionaram outros movimentos e novas reações. A autora mapeia o sistema normativo e afirma que é um ciclo que busca a cristalização das hierarquias e o sexo faz parte disso. Não há apenas as sexualidades que estão dentro do perímetro de possibilidade de existência, muitas outras transbordam para além da heterossexualidade, da monogamia, do casamento e da reprodução. E, já que o significado de sexo está intimamente ligado às relações sociais, as feministas exploram ideias e atos que possam confundir alguns e liberar e empoderar outras. O pornô feminista cria espaço para realização das fantasias, debate as identidades e as ideias são formadas a partir dessas vivências sexuais e de excitação assistindo pornô, e assim fazendo e escrevendo sobre a prática, produzindo conhecimento. Constance Penley, Celine Parreñas Shimizu, Mireille Miller-Young e Tristan Taormino delimitam também o nicho de atuação dessas produções fílmicas neste livro. Os filmes não fazem parte só de um movimento pró-pornô com um direcionamento alternativo, eles buscam público e sua parcela de lucro no mercado. A Pornografia Feminista se configura, muitas vezes, como uma indústria dentro da indústria. A intenção com isso é mudar as perspectivas partindo de dentro do sistema, utilizando de estratégias para subverter a pornografia dominante e suas normas. Essa é uma das formas de se ganhar visibilidade, que se transforma em movimento e mercado. Mas com tantas práticas e formas não se pode afirma que existe uma unicidade de atuação, estética e padrões nesse gênero e nem acredito que essa seja uma das preocupações do movimento. A Pornografia Feminista tem muitas formas de ser lida e os rótulos são rechaçados. Ela é um gênero e uma visão política não hegemônica sobre sexo, sexualidades e suas práticas. As autoras do livro The Feminist Porn Book the politics of producing pleasure acreditam na potencia radical desse tipo de pornografia a fim de fazer uma revolução nas representações e nas vivências das sexualidades. Na sociedade atual, marcada pelo binarismo rígido e pela hierarquização, esse tipo de pornografia tenta mover as representações das mulheres, revelar as múltiplas performances femininas que povoam a sociedade, procurando materializar as 40

identidades e as sexualidades por meio dos femininos. Leite (2012) oferece uma análise importante sobre a configuração desse outro sujeito feminino que vai construir e demandar representações pornográficas diferenciadas, apresentando narrativas de ruptura com o formato hegêmonico, elaborando um espaço para a “[..]expressão de poder, o poder atraves do prazer, que ao longo da história foi vetado às mulheres”(LEITE, 2012, p. 172). Assim, essas narrativas dos femininos tem sua potência disparada no borrar das fronteiras biopolíticas. Os usos das novas tecnologias são, ainda, objetos de disputa no que tange à arquitetura mundial das redes e à sua regulação. Dependendo do uso dos poderes e contrapoderes, as tecnologias da informação podem, por um fato, colaborar para a manutenção do status quo, produzindo as subjetividades que lhes são adequadas, ou podem ser incorporados de maneira crítica e criativa, abrir espaços para o novo, o extramuros do controle. No livro Good Porn: a Woman's Guide (2008), Erika Lust afirma que homens e mulheres apreciam diferentes estilos de pornografia, e que mulheres são excitadas por elementos específicos, como detalhes, cenários e fantasias. Ela embasa seus argumentos no fato de que os filmes produzidos pela indústria pornográfica são feitos por homens, para homens, e estes fazem pouquíssimo sucesso com o público feminino em geral, independente de orientação sexual. Já seus filmes, por outro lado, fazem enorme sucesso com as mulheres. Essa postura de Lust remonta o objetivo de um pensamento feminista clássico de valorizar e ressignificar os códigos associados às mulheres e ao feminino, historicamente marginalizados, mesmo que distinguindo características próprias da masculinidade e da feminilidade. Dessa forma, ainda se entede que exista uma estrutura dita feminina e uma masculina e que estas configuram polos estabilizados para dar início a esse debate em torno da sexualidade. Essa linha de pensamento reflete que parte da Pornografia Feminista se apega a política identitária e, consequentemente, move-se, algumas mais outras menos, mas tudo dentro e a partir desses limites colocados. Segundo Marie Helene Bourdier em seu artigo “BILDUNGS-POST-PORN: notas sobre a procedência do pós-pornô, um dos futuros do Feminismo da desobediência sexual”, as participantes potenciais de uma cultura fílmica pornográfica tem por objetivo justamente a criação de espaços safe dedicados ao empowerment sexual em que os valores são a confiança, a negociação e a consensualidade. 41

O pornô que lembra Déborah Sundhal de seus desejos é indissociável de uma lógica ao mesmo tempo privativa e criativa, de uma operação de desidentificação que conhecem bem as feministas e as lésbicas. Da mesma maneira que o primeiro ato do feminismo é de se desidentificar com “A mulher” e com suas “qualidades”, foi necessário se desidentificar da mulher straight e se liberar do cenário e dos scripts sexuais e culturais associados

ao

amor

romântico

que

reconduzem

a

passividade

dessexualizada de uma Penélope. (BOURCIER, p.3)

O corpo, o desejo, o erotismo e a obscenidade sempre estiveram no âmbito político e, de acordo com o contexto social e político, se move como transgressão ou como assimilação. É nesse ponto que a Pornografia Feminista e o pós-pornô se diferenciam da pornografia mainstream, porque partem de princípios diferentes. Enquanto a mainstream preza o consumo dos corpos como objetos, a busca do gozo a qualquer custo e hierarquizado, a negação das subjetividades e práticas sexuais ditas abjetas, as outras vertentes revelam as inúmeras possibilidades apagadas pelo sistema branco, colonial, heteronormativo. O corpo visto, pois, com suas práticas de resistência. O conceito de silêncio potente que Walter Mignolo 20 traz em seu texto Histórias locais/ projetos globais traça um caminho para entender quem está autorizado a falar e quem deve assimilar os discursos. Aníbal Quijano21, em Colonialidad del poder y clasificacion social nos mostra como a colonialidade, que se constitui como elemento do padrão mundial de poder capitalista, é onde também se encontra a dimensão simbólica do processo de imposição da subjetivação, material e cultural. Esses processos hierarquizam as experiências e vivências, mostram o que é agressivo, marginal, abjeto, anormal, subalterno. Então, o que é a Pornografia Feminista para a América Latina? Quais são as diferenças da cena europeia da cena latino-americana? A produção experimental da Pornografia Feminista em seus filmes mostra que o corpo todo pode ser fonte de prazer a partir das junções e acordos com xs parceirxs sexuais. Trataremos mais sobre a questão do corpo e suas marcas da colonialidade e dos padrões de existência no segundo capítulo.

20

Walter Mignolo é semiótico e professor argentino da Universidade de Duke. Sua produção acadêmica perpassa

a colonização e a geopolítica do conhecimento. 21

Anibal Quijano é sociólogo peruano e pensador humanista, conhecido por ter desenvolvido o conceito de "colonialidade do poder". Seu trabalho tem sido influente nas áreas de estudos pós-coloniais e teoria crítica.

42

1.4 - Pós-pornografia – resistência manifesta no sexo As produções pós-pornô22 florescem e se entrelaçam, hoje, por entre as redes culturais e acadêmicas dos estudos feministas e queer. O conceito de pós-pornô surge como um movimento sexual/social que tem a proposta de combater, convocar e comover tudo ao mesmo tempo. Essa categoria também foi impulsionada pelo crescimento de uma rede de artistas e ativistas concentrados principalmente na cidade de Barcelona, Espanha. Porém, não se limita apenas a produtos culturais como as pornografias audiovisuais, literatura, fotografia, performances, dentre tantos outros vetores de propagação. Dos anos setenta aos anos oitenta, as mulheres e as lésbicas seguiram nessa lógica buscando re-imaginar seu cinema e suas representações de maneira a escapar das garras do famoso male gaze23 e, por consequência, sem o male porn24 que era a quintessência daquela parte para se separar do mundo (a opção separatista), e também reconduzir o clichê do erotismo feminino não contaminado pela violência e por um sex drive tipicamente “masculino”, como afirma Bourcier retomando o artigo “BILDUNGS-POST-PORN: notas sobre a procedência do pós-pornô, um dos futuros do Feminismo da desobediência sexual”. O regime ontológico da lésbica é o da falta e está ainda por ser descrito. A pornotopia pós-pornô, quanto a ela, joga ao mesmo tempo com esse registro privativo e sobre um registro criativo, sendo que este último tratase da ressignificação performativa, da recomposição das forças sexuais e culturais, do dar-se conta da proliferação das identidades de gêneros e dos des-embodiements para transformar a foda, as práticas e os corpos, sem esquecer a filiação estupidamente edipiana: “Queer unite to off the oedipal residue of culture” [O queer une para afastar o resíduo edípico da cultura], hein! Deleuze & Guat. (BOURCIER, p.3)

A pós-pornografia ou pós-pornô, como é mais conhecida, possui uma trajetória histórica ainda muito recente, além de ser um conceito em constante movimento. As 22

O pós-pornô como conceito foi criado na década de 1980 nos Estados Unidos, mas sua sedimentação no senso político e subcultural encontrou sua definição de início na França durante uma queerização de Baise-moi, o filme censurado de Virgine Despentes em 2001. 23 O olhar masculino é discutido por Laura Mulvey, em seu ensaio, "Prazer Visual e Cinema Narrativo" (1975). Ele é usado para descrever quando o público é colocado na perspectiva de um homem heterossexual. Personagens femininas são sexualizadas, e a câmera pode se concentrar em partes do corpo feminino consideradas sexuais. 24 Pornô heterossexual pensado por homens e para homens consumirem.

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ações pós-pornográficas tem em comum o desejo de desconstruir, movimentar ou ao menos confrontar o imaginário pornográfico e sexual vigente, a partir da representação de corpos, gêneros e práticas sexuais historicamente marginalizadas, juntamente com a recusa dos discursos, estéticas e narrativas tradicionais da pornografia mainstream. O pós-pornô libera espaço nos corpos e nos modos de desejar, tem a intenção de funcionar como um antídoto às políticas dos desejos sexuais instituídas e desregular o programa sexual coorporativo. Preciado trabalha a noção de sexo pontuando através da palavra “sexual” como sinônimo de heterosexualidade patriarcal, e inscrevendo a necessidade de um rompimento dos signos nesse desejo “sexual” da cultura machista. Esse seria, então, um movimento de intervenção e tensionamento nos valores da cultura pornográfica, como afirma a autora. A transformação da sexualidade em uma criação politico-artística faz parte das práticas dos movimentos pornô feminista e pós-pornô, assim como a intensificação das

intersecções,

borrando e questionando

os

limites de corpo/natureza,

tecnologia/cotidiano, privacidade/espaço público. O movimento é essencialmente político e reivindicar o corpo como experiência e não como propriedade e unidade estável se faz necessário. Bourcier em seu artigo “BILDUNGS-POST-PORN: notas sobre a procedência do pós-pornô, um dos futuros do Feminismo da desobediência sexual” afirma que os ateliês são o coração das entranhas da cultura pós-pornô. Seja os

ateliês dedicados aos gêneros (drag king, fem e outros), às práticas sexuais (ejaculação feminina, fisting e outros), à realização de performances on the spot durante festivais ou sex party ou ainda ateliês teóricos (sobre a história do pós-pornô ou o pornô moderno como aqueles de Slavina por exemplo), eles se situam na linha mestra do pensamento dos grupos feministas praticando o raising consciousness25 nos anos noventa. Em plena revolução sexual feminista, o raising consciousness desembocou também nos ateliês de re-exploração muito mais que de descoberta de seu próprio corpo e no aprendizado de novas práticas sexuais que foram tanto de reapropriações quanto de reconfigurações das práticas sexuais de um ponto de vista feminista. Para entender como o pós-pornô chegou até aqui vale pensar um pouco sobre seu ponto de partida. No caminhar dos movimentos sociais dos anos 1960, os discursos sobre identidade foram tomando posições mais flexíveis, entrelaçando os 25

Conscientização sobre a subjetividade, sexualidade e corporeidade das mulheres na década de 1990, considerando suas multiplicidades, singularidades e contextos de origem.

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estudos culturais, os estudos feministas, os estudos sobre raça e etnia e os estudos gays e lésbicos. Ao se debruçar sobre as desigualdades e relações de poder, esses estudos deram lugar ao questionamento das próprias categorias, seus engessamentos, polarizações e limites: o pós-estruturalismo emerge nessa proposta de leitura. Nas décadas seguintes começaram a despontar os “Saberes subalternos”, como a teoria queer e o pós-colonialismo. O conceito de “Terceiro Mundo” foi perdendo lugar com os estudos pós-coloniais, que apontavam que os países que compunham esse território imaginado não formavam um bloco homogêneo e que não podiam, nem queriam, identificar-se enquanto bloco homogêneo (PRYSTHON, 2002). Nos anos 1980, cresce o interesse cultural pelo Outro, mulheres, gays e lésbicas, negros e negras, “deficientes” físicos. Novas correntes do feminismo, os pósfeminismos ou “feminismos dissidentes”, como chama Beatriz Preciado (2007), forçam descentramentos e desterritorializações do discurso feminista hegemônico, que compreendia o sujeito mulher como uma categoria universal e ignorava as realidades de mulheres que sempre estiveram tradicionalmente à margem do gênero, da sexualidade, da classe, da raça e etnia. O mesmo movimento de tensões e críticas internas ocorrem com os estudos gays e lésbicos, que até então propunham uma política identitária de caráter unificador, defendendo a noção de uma comunidade homossexual global que buscava a aceitação/assimilação através da luta pela igualdade de direitos dentro da norma social. Com isso, passaram a ignorar em grande medida conjunturas políticas e sociais que faziam com que sujeitos como negrxs, latinxs, pobres, travestis e transexuais não se reconhecessem nessa concepção de uma identidade LGBT unificada e, assim, a questionando. A partir da segunda metade do século XX, Tereza de Lauretis, Judith Butler, Eve Sedwigck e Michael Warner, ao final dos anos 1980 e inicio dos anos 1990, passaram a formular proposições de estudos queer. Queer, em inglês, quer dizer estranho, ridículo ou excêntrico, e na cultura anglo-americana, foi apropriado como uma das formas pejorativas de nomear LGBTs. Os estudos queer se propõem a refletir sobre as políticas pós-identitárias, questionar e ressignificar os códigos normativos que polarizam masculinidade e feminilidade, heterossexualidade e homossexualidade, e que ignoram todos os sujeitos que estão ou circulam pelas fronteiras dessas normas. Movimentar e tensionar as categorias é um dos efeitos desses estudos. Para esses autorxs acima citadxs, “identificações negativas como ‘sapatas’ ou ‘bichas’ se 45

converteram em lugares de produção de identidades que resistem à normalização, que desconfiam do poder totalitário, das chamadas à ‘universalização’” (PRECIADO, 2011, p. 3). “Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressora e perturbadora” (LOURO, 2004, p. 38-39). O pós-porno surge, então, como uma das formas de materialização artística da crítica queer, pós-colonial e pós-identitária.

O locus da construção da subjetividade politica parece ter-se deslocado das categorias tradicionais de classe, trabalho e da divisão sexual do trabalho, para outras constelações transversais como podem ser o corpo, a sexualidade, a raça, mas também a nacionalidade, a língua, ou inclusive, a imagem (PRECIADO em entrevista a Carillo, 2010, p. 54).

O repovoamento desse território industrializado com pornografias não normativas, subvertendo os usos tecnológicos dos recursos que o caracterizam, não só se afigura desejável, como assume uma cada vez maior materialidade social. A procedência permite também encontrar sob o aspecto único de um traço ou de um conceito, a proliferação de eventos através dos quais, graças aos quais, contra os quais, eles se formaram. A genealogia não pretende voltar no tempo para reestabelecer uma grande continuidade para além da dispersão do esquecido; sua tarefa não é a de mostrar que o passado permanece entre nós, bem vivo no presente, ainda animando este em segredo, depois de ter imposto a todas as encruzilhadas do caminho uma forma pré-determinada desde o início. [...] Seguir o complexo encadeamento da procedência é, ao contrário, manter aquilo que se passou na dispersão que lhe é própria: é identificar os acidentes, os pequenos desvios – ou, ao contrário, as completas inversões –, os erros, as falhas de apreciação, os erros de cálculo que deram nascimento ao que existe e vale para nós. [...] Enfim, a procedência encontra-se no corpo. (BOURCIER, p.1)

Érica Sarmet, em seu artigo “Pós-pornô, dissidência sexual e a situación cuir latino-americana: pontos de partida para o debate” afirma que o pós-pornô vem confrontar, desconstruir e até mesmo redefinir os imaginários sexopolíticos vigentes, a partir da representação de corpos, gêneros e identidades sexuais historicamente marginalizadas, além de promover o desmantelamento de estéticas e linguagens criadas na e pela indústria pornográfica tradicional, branca, capitalista e 46

heterossexualmente orientada. A autora ainda afirma que nas obras e ações póspornográficas, os discursos sobre a ressignificação dos códigos de gênero vão ao encontro de reflexões acerca dos limites entre corpo e máquina, tecnologia e cotidiano, privado e público, indivíduo e sociedade, pertencimento e território. Neste artigo, Sarmet situa a ex-atriz de filmes pornográficos mainstream, diretora e artista estadounidense Annie Sprinkle como uma das precursoras do movimento que inaugurou o termo com sua performance Post-Porn Modernist (1989). Em The Post-pornographic Era, último capítulo do livro The Secret Museum (1986), Walter Kendrick afirma que, ao final da década de 1960, um novo momento na historia da pornografia eclodiu: a “era pós-pornográfica”, em que as discussões que tentavam separar e definir “pornografia” e “arte” não tem mais sentido, já que a pornografia é considerada como lixo imoral, inofensiva aos adultos e, dessa maneira, estimulando o mercado heteronormativo. Na era pós-pornográfica, segundo o autor, estaríamos diante de mais um movimento de alocação desse discurso na esfera política. Kendrick entende que a Porn Wars não terá fim, já que é apenas a mesma repetição de padrões que vemos desde que a pornografia moderna surgiu. O eterno entrave entre liberdade e medo. Com a popularização da internet e dos computadores pessoais, esse medo da representação do sexo e do consequente furor das discussões sobre o acesso ao sexo na rede por parte das crianças e adolescentes continua. Sarmet traz também a contribuição de Diana Juyent Torres (2011), artista/ativista conhecida como Diana Pornoterrorista, que afirma que um dos grandes problemas da pornografia tradicional, mainstream e heterossexualmente orientada é que promove uma pedagojização dos corpos e das práticas sexuais, que são inseridos dentro de normas específicas de regulamentação e controle da sexualidade e perpetuadas por essas produções. Dessa forma, o pós-pornô surge como possibilidade crítica a esse modelo. Mas o que diferencia então o pós-pornô da Pornografia Feminista? Não é a mesma coisa? Erica Sarmet afirma que as produções/intervenções pós-pornô aproximam-se da Pornografia Feminista ou “pornô para mulheres” na crítica à pornografia tradicional, sexista, produzida por e para um olhar exclusivamente heterossexual e masculino. O pós-pornô alinha-se aos pressupostos teóricos dos estudos queer e feministas contemporâneos, rechaçando a ideia defendida por algumas

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diretoras de filmes pornôs para mulheres, como Erika Lust, Candida Royalle e Petra Joy de que ha uma “sensibilidade feminina” inerente ao gênero. (SARMET, 2014, P.9)

Sarmet argumenta também que existem pontos distintos apesar de parecer duas vertentes da Pornografia Feminista contemporânea. É importante ressaltar que essas diferenças são complexas e seus limites nem sempre são fixos. Ela utiliza o exemplo do filme Her Porn Vol. 126, de Petra Joy, em que há um curta intitulado Love on the Beach (2003) dirigido por Maria Lopis, artista e ativista pós-pornô extremamente crítica do pornô para mulheres (Smiraglia, 2012), indicando que essas duas “vertentes” fazem parte de um processo de reflexão mútuo e de um projeto amplo - e por isso mesmo diverso - de questionamento da pornografia tradicional. Toda essa pluralidade de ações e produções pós-pornô mostra que não existe um movimento unificado ou um gênero com códigos estabelecidos, ou uma estética pós-pornográfica e suas textualidades. Artistas e ativistas pós-pornôs estão cada vez mais presentes no audiovisual, na performance, na literatura, nas artes visuais e nas ruas a fim de visibilizarem sua forma de fazer política. Dentre os mais conhecidos, temos a já citada Annie Sprinkle, diretora, atriz e artista visual que realiza projetos em parceria com sua esposa e artista Elizabeth Stephens; o fotógrafo trans Del Lagrace Volcano; a escritora Itziar Ziga; o artista e performer queer Ron Athey; os coletivos Post Op, Quimera Rosa, Ex-Dones, Go Fist Foundation; as perfomers e ativistas Diana Pornoterrorista, Marianissima, Maria Llopis; os realizadores Bruce LaBruce, Virginie Despentes, Emilie Jouvet, Lucia Egana Rojas e Shu Lea Cheang, a filosofa queer Beatriz Preciado, a sociologa e militante queer Marie Helene Bourcier e o pesquisador e artista de performance Tim Sttugen, entre outros. Porém, Rivas San Martin (2012) analisa que o movimento pós-pornô sedimentado em Barcelona, apesar de ter estabelecido uma questão muito potente e coerente, cresceu legitimado pelo cinema e pela teorização de Preciado, Bourcier, entre outros teóricxs, o que fez com que adquirisse um status próximo a um conceito e isso seria um sério risco, pois, uma “pedagogia pós-pornô” acaba por limitar uma

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O que as mulheres querem no sexo e na pornografia? A compilação eclética de curta-metragens de Petra Joy busca responder essa questão. “As mulheres podem ser voyeurs e predadores e não apenas objetos sexuais, o foco é sobre a mulher e seu prazer, e não há uma enorme variedade de jogo sexual, quebrando os moldes rígidos de pornografia mainstream.” Petra Joy. Os curtos vãos dos clássicos primeiros pornôs, feitos nos Estados Unidos para filmes artísticos de fetiche, cenários de ficção científica japonesa e de filmes experimentais europeus, esta compilação celebra o melhor pornô feito por e para mulheres.

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desconstrução de imaginários sexuais que seja compatível com a construção de engessamentos dos modos de fazê-lo. A colonização dos imaginários e das vivências permanece se o objetivo for sempre importar modelos prontos de diferença e não entender o contexto e conjuntura locais. Então, se faz necessário também pensar no que é o pós-pornô para a América Latina e se existe alguma diferença para a cena póspornô europeia. Sarmet nos traz um panorama do movimento e artistas pós-pornôs em seu artigo. Nos últimos anos, houve um crescimento significativo do interesse de artistas, ativistas e acadêmicos latino-americanos na pós-pornografia, principalmente entre os que circulam pelos campos da teoria/militância queer. Nota-se esse movimento a partir dos textos, reportagens, vídeos, performances e festivais sobre o tema. A experiência da pós-pornografia que se identifica enquanto tal, que reivindica para si esta categorização, é bastante recente. A autora salienta que no caso da América Latina não e apenas recente, está acontecendo agora. A primeira mostra audiovisual latino-americana intitulada “pós-pornô” foi realizada em marco de 2012, em Buenos Aires. Cinquenta artistas foram selecionados para exibir suas produções em fotografia, artes plásticas, videoarte, curtas e longasmetragens, performances e intervenções urbanas. A partir de uma convocatória online internacional, foram exibidos mais de trinta filmes e vídeos, com maciça presença de produções argentinas, chilenas, colombianas e mexicanas, além de mesas redondas e debates durante os três dias de mostra. Em texto publicado no site da Muestra de Arte Pospornografica, Lucia Cavalero e Rosario Castelli (2012) defendem que é preciso pensar o pós-pornô como um projeto político descolonizador, localizado geográfica e politicamente - um pós-pornô situado, que como tal não deve se limitar a subverter apenas as normas de gênero e sexualidade, mas também as de classe, raça, etnia e nacionalidade. No próximo capítulo mergulharemos nas interseccionalidades das categorias do discurso que pode rasurar a norma, bem como nos projetos de subjetividades e vivências moldam as pessoas e a partir disso se refletem nas pedagogias pornográficas, tanto para cristalizar quanto para movimentar as representações.

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2 – Corpos, sexualidades, raças e gêneros em (des) construção - (Re) Significando corpos

Depois de entrar no mundo da pornografia, suas nuances e seus diversos caminhos e encruzilhadas, precisamos entender algumas das normatividades que já começamos a desvendar no capítulo 1. Questões de gênero, sexualidade, corporeidade, etnia, classe social permearam a narrativa ocidental que traçamos sobre a pornografia até o momento. Assim, agora é importante nos debruçarmos sobre alguns conceitos que estabelecem padrões de comportamento, de performatividade, de corporeidade, de sexualidade, entre tantos outras formas de docilização das pessoas na sociedade moderna. Neste capítulo, vamos detalhar como essa teia de categorias ordenam as vidas na nossa sociedade e como as hierarquizam a partir das suas características combinadas. É importante perceber todas essas categorias de forma interseccional e que aqui trataremos de referencias que serão refletidas no capítulo 3 a partir das cenas dos filmes que serão analisados. Nossa sociedade capitalista e heteronormativa dogmatiza e exacerba valores sociais misóginos, racistas, homofóbicos e de higienização dos corpos, legitimando possibilidades de existências e valorizando a vida dos sujeitos. Esses conceitos são trabalhados por Butler em “Bodies than matter”. Contudo, os corpos abjetos nos seus contextos, como discorre Butler, encontram as fissuras no próprio sistema e conseguem produzir resistência. O conceito de performatividade, em Butler, procura explicar o modo como sujeitos tornam-se inteligíveis, tomam corpo, se materializam. Em sua definição do conceito, a autora escreve: […] a performatividade não pode ser entendida fora do processo de iterabilidade, uma repetição de normas forçada e regularizada. E esta repetição não é realizada por um sujeito; esta repetição é o que possibilita a existência de um sujeito e constitui a sua condição temporal. Esta iterabilidade implica que “performance” não é um “ato” ou evento singular, mas uma produção ritualizada, um ritual reiterado sob e através da força, sob e através da proibição e do tabu, com a ameaça do ostracismo e mesmo da morte controlando e constrangendo a forma da produção, mas não, insisto, determinando-a antecipadamente. (BUTLER, 1993, p.95)

Essa essencialização das performances de gênero a um determinado biológico retoma a ideia iluminista de seres universais: homem e mulher. A nossa questão 50

inicial é a tentativa de desconstrução disto e dessa forma gostaria de evocar Gaytri Spivak em “Pode o Subalterno Falar?”. Neste livro, a autora destaca o descentramento do sujeito. A pergunta do título tem a intenção de despertar a apreensão do Outro a partir de referenciais culturais distintos daquele a ser analisado. Seu argumento, e, como um todo, o do pós-colonialismo, aponta a incongruência de tentar explicar o mundo a partir de um ponto de vista europeu. Dessa forma, podemos pensar então na constituição dxs sujeitxs subalternizadxs que, segundo Spivak, são aqueles pertencentes “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”(p.12). A autora sustenta que esta situação de marginalidade do subalterno é mais arduamente imposta ao gênero feminino, posto que a “mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir”( p.15). A partir do conceito de subalternidade, Spivak refere-se à violência epistêmica, cuja tática de neutralização do Outro, seja ele subalterno ou colonizado consiste

em

invizibilizá-lo,

expropriando-o

de

qualquer

possibilidade

de

representação, silenciando-o. Este silêncio configura-se como o que “liga o não-dizer à história e à ideologia” (ORLANDI,2002, p. 12), ou seja, significa, que a história ocidental legitimada para chegar a esse status teve que calar outras perspectivas dos acontecimentos e isto está intimamente ligado a organização da ordem política mundial. Contudo, o contexto aqui é de resistência. A opressão gera a subalternidade e junto de si a possibilidade de agência dessas pessoas para mover a estrutura social. O regime de subalternidade precede a performance e é caracterizado pela invisibilidade dxs sujeitxs subalternxs. “Por invisibilidade, está-se querendo enfatizar o não reconhecimento social do sujeito(...). Entre o ver e ser visto, a construção da invisibilidade do outro significa sua atribuição a um vazio de sentido ou impossibilidade de se chegar àquele que, porventura, se encontraria idealmente no exterior das imagens passíveis de lhe serem atribuídas a relações sociais. Neste registro, o invisível não pressupõe o vazio do lugar social de forma absoluta, desprovido das imagens , significados, valores e/ou posições de poder que lhe são atribuídos, como forma de lhe reservar uma posição subalterna. O processo é mais sofisticado, pois ao contrário desta

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metafísica em torno do culto do vazio de sentido articulado com o caráter absoluto do lugar do subalterno, a construção social da alteridade obedece ao conjunto das imagens produzidas socialmente e necessárias à sua qualificação como monstro, anormal, ladrão, criminoso, etc.” (MATOS, 2014, p.202)

É nesta perspectiva de invisibilidade e abjeção que podemos refletir sobre a construção de categorias como identidade de gênero, sexualidade, negritude, corporeidade, classe social. Interseccionar esses pontos vai tornar mais rico o olhar perante a análise dos filmes. Para desenvolver o raciocínio é necessário entender também o que se entende por abjeto. Segundo o dicionário, abjeto significa: “adj. Característica do que é baixo (vil); que contém ou expressa baixeza; que merece desprezo; ignóbil: comportamento abjeto. s.m. Pessoa que possui essa característica; quem expressa baixeza; sujeito desprezível; canalha. (Etm. do latim: abjectus.a.um). Possíveissinônimos:asqueroso, canalha, desprezível, ignóbil, imundo, nauseabundo, nojento, repelente, sórdido, sujo e torpe” (Dicionário Online de Português). Revela-se então a importância do localizar a diferença, estigmatizar e o tornar invisível a fim de manter a estrutura social. A proposta de Butler (1993, p.21) é exatamente a de um “um esforço para reescrever a história do termo e forçá-lo a uma significação em demanda”, politizando a abjeção através da exaltação de seu lugar enquanto potência criativa, ao invés da reduzi-lo à infrutífera posição de mera vítima improdutiva. Neste sentido, a acepção do desejo negativo, entendido enquanto falta, dá lugar a um desejo criador e produtivo, como pensado por filósofos a exemplo de Deleuze e Guatarri (2010). O corpo desempenha o protagonismo desse desejo, pois é sobre ele em que se operam os princípios de criação e recriação de mundos. As trajetórias das pessoas são desenhadas a partir de dados lidos nos corpos e as consequências do simbólico são materializadas também nele. É o espaço físico humano onde são aplicados os códigos sociais, leis e ideais. O corpo é um elemento fundamental para a compreensão do ser humano culturalmente, socialmente e até sexualmente. Essa experiência relacional define os rumos da ação e dessa forma dispara possibilidades criativas frente às oportunidades ou as tensões. Desejo e abjeção dos corpos trazem o embate, a marginalidade, mas também se intercruzam, permeiam, se tateiam. De acordo com Pierre Frank Castel o pensamento não se reduz apenas ao código verbal, na medida em que existem outros 52

códigos discursivos e de significação como os imagéticos, por exemplo, então sistemas de signos e significações diferentes devem ser assimilados de preferência em conjunto, associando, por exemplo, códigos plásticos com verbais. Morin, autor francês, ao tratar do surgimento e expansão da cultura de massa no contexto do século XIX e século XX vai analisar o impacto dessas transformações culturais sobre o ideário coletivo contemporâneo e chama esse processo de colonização que divide em três momentos: o primeiro quando da divisão imperialista da África e da Ásia pelas potências ocidentais, o segundo, após a segunda guerra mundial, com a disseminação planetária de todo um aparato de divulgação de informação como rádio, imprensa escrita, filmes cinematográficos e a terceira colonização que vem a partir dessa expansão dos instrumentos de comunicação, conduzida majoritariamente pelos EUA e denominada de “colonização do espírito”, a partir da divulgação de costumes, modos de vida, universos simbólicos e valores morais. Essa cultura que emerge, sofre influência das culturas clássica (religiosa ou humanística) e estatal, e as influencia, sendo produzida pela indústria cultural. A indústria cultural por sua vez, vai se orientar pela lógica capitalista e se pautar em processos técnicos industriais que visam lucro e atendam a demanda do mercado, nesse sentido a função do autor perde importância e valoriza-se a cooptação de um número maior de consumidores desses produtos culturais. Para tanto, essa indústria cultural vai se utilizar o que Morin chama de “dialética da projeção identificação” que seria um meio de busca pelo homem médio‟ ideal, ou seja, a indústria cultural identifica os desejos da massa e produz bens voltados para o conhecimento intelectual e artístico médio do público, gerando uma identificação entre essa massa e as representações artificiais das suas realidades e aspirações, livrando-as momentaneamente das tensões sociais, ou alienando-as. Assim, podemos dizer que essa indústria cultural de massa é passível de alienação da sociedade na medida em que busca minar a percepção dos indivíduos sobre as tensões sociais existentes, além de ter uma dimensão coercitiva ao criar modelos ideais que reforçam valores e modelos normatizados socialmente, incluindo se aí um modelo de corpo dentro de padrões eurocêntricos, ou como afirma Grosfoguel nos padrões do “sistema-mundo ocidentalizado cristianocêntrico capitalista patriarcal moderno colonial”. Essas normativas estão exacerbadas nos meios de comunicação que naturalizam esse regime de subalternidade na sociedade a partir do registro da encenação. Trazendo essa reflexão para a nossa problemática da 53

Pornografia Feminista, percebemos que essa encenação do Outro dispara um processo de repetição do processo de excitação e erotização, contudo se atentando para a diferença que é gerada com essa repetição que, como Deleuze aponta em seu livro “Diferença e Repetição”, é a maneira que as ficções dos discursos normativos têm suas falhas expostas e exploradas a fim de mover a estrutura e modificar panoramas. Para Gosfoguel, é preciso se reconhecer que no mundo contemporâneo as relações entre culturas se estabelecem de forma vertical, ou seja, entre dominadores e dominados, colonizadores e colonizados e que a comunicação e a interculturalidade são influenciadas pelas vantagens e poder do Norte através da exploração, dominação e colonialidade do Sul. Nesse sentido, para o autor a expansão da colonização eurocêntrica institucionalizou e normatizou a nível mundial a primazia de uma classe, de uma etnia/raça, de um gênero, de uma sexualidade e porque não dizer de um corpo, o corpo colonizado. E essa questão sexual, no período que foi abordado por Morin, quando fala do surgimento da cultura de massa, ou no final do século XIX, era tratada apenas pelas ciências biomédicas e psíquicas e, a partir dessa perspectiva, se criou e se estabeleceu o padrão heterossexual, heteronormativo e cissexista, entendido como aquele natural e normal, já que definido por características biológicas que tinha como objetivo a procriação, então se percebe a invenção de um padrão cultural associado à sexualidade, aos gêneros e aos corpos, que é naturalmente justificado. Essa cultura de massa também vai ser responsável por reproduzir esses valores socioculturais e históricos, e além das estratégias de poder que produzem, mantém e redimensionam a naturalização, universalização e normalização de alguns corpos e também conceitos, práticas, desejos e relações afetivos sexuais em oposição a outras que são reconhecidas como anormais ou abjetas. Neste sentido, Bakhtin também afirma que se nesse corpo não normalizado e normatizado reside o “impuro, o caos, o perigo, também por isso reside à potência que alimenta a excitação curiosa e receosa sobre o desconhecido e o proibido”. (Leite, 2006). Essa é a contradição presente no corpo colonizado, embranquecido, estético, cis, heteronormativo, uma contradição que é relacional, na medida em que a valorização do próprio se dá a partir da desvalorização do outro, na medida em que se visualiza o outro como inferior impondo normas de ordem politica e ainda religiosas. Maurício Mattos dos Santos Pereira, em seu artigo “Os labirintos da invisibilidade” evidencia a partir de Edward Said (1990) esses mecanismos sociais que tornam 54

possíveis a leitura da relação de subalternidade de forma naturalizada: “a saber, o significado/ valor/ lugar da diferença adequa-se a elementos já presentes na estrutura de bode expiratório criada, tornando possível a experiência da alteridade como a legibilidade do não ser”. (SAID, 1990 apud MATOS, 2014). Essa pedagogia que é ensinada e repetida diariamente em todas as estruturas sociais, nas relações familiares, na escola, prisões, são caracterizadas como “máquinas coletivas disciplinadoras”(p. 204). “O outro não é tolerado como singularidade, sua existência está condicionada ao conjunto das imagens previamente elaboradas para ele habitar”(p.204). Assim ao tempo que se interpretava esses corpos colonizados/dominados cientificamente como diferentes onde a marca dessa diferença é a da inferioridade em relação ao colonizador/dominador, também se desejava violar e penetrar esses corpos à sua revelia, ou como afirma Ribeiro “a violação e penetração numa cultura por imposição da outra”, uma cultura branca, eurocentrada, patriarcal e machista, que deixa cicatrizes, marcas de colonização, “feridas visíveis e invisíveis” nesses corpos. Esse regime habitual de invisibilidade da construção da subalternidade ao ser exacerbado e trazido a visualização desses corpos e vivências, da ficção das estruturas normativas e dos regimes disciplinares sociais revela o simulacro. “Enquanto simulacro, a subalternidade se desnaturaliza no conjunto das relações sociais, torna-se um discurso associado a interesses políticos dominantes, ligados, por sua vez, ao incremento do valor comercial do produto de acordo com as diretrizes da indústria cultural, mas ao mesmo tempo passa a funcionar como ponto de vista privilegiado para a desconstrução27 dos conferidos valores” (MATOS, 2014, p.205)

Dessa forma, a expressão dessas pessoas na condição de subalternidade a partir do simulacro revela o devir-subalterno, onde a materialização da Pornografia Feminista, por exemplo, ao protagonizar o prazer do feminino repete o ritual da excitação com a diferença do gozo ser um instrumento de desconstrução política do machismo, da heteronormatividade e da corporeidade. A diferença como cópia mal fundada, o simulacro, dispara o processo do Outro a partir da cópia da cópia, que enfraquece o processo de semelhança que rege a relação dominante entre o modelo e as cópias bem fundadas. O devir-subalterno, portanto, é: 27

Nota do autor: “Por desconstrução, leia-se um duplo mecanismo de mostrar o que comumente não se vê e de tornar oculto o que habitualmente pertence ao registro do manifesto”.

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“um processo aberto de construção da subjetividade como um fluxo intermitente de máscaras nos meios de comunicação que, na medida em que se sobrepõem em um processo precário de invenção de um sujeito possível, explode o registro da invisibilidade sem instituir uma saída possível ao sujeito de sua condição” (MATOS, 2014, p.206).

A fissura a partir do devir-subalterno e do simulacro do Outro traduz a diferença como um produto simbólico inscrito na lógica do mercado. A Pornografia Feminista mostra o seu valor crítico enquanto forma de comunicação a partir da encenação criada como cópia mal fundada, a disparidade de um ponto de partida que caminha para a diferenciação da cópia bem fundada. “Com efeito desigual o diferente é a verdadeira razão do eterno retorno. Pelo fato de nada ser igual, nem o mesmo, é que “isto” volta. Em outras palavras, o eterno retorno se diz apenas do devenir, do múltiplo. Ele é lei de um mundo sem ser, sem unidade, sem identidade. Longe de supor um Um ou o Mesmo, ele constitui a única unidade do “ser” do devenir. Embora a função do eterno retorno como Ser não seja jamais de identificar, porém autenticar.” (DELEUZE, 1974, p. 27 apud MATOS, 2014, p.209).

Buck Angel – homens trans e ator pornô feminista

Guacira Louro (2009), autora brasileira dos estudos queer, chama a atenção para essas marcas do corpo que na verdade se constituem como marcas de poder, na medida em que a definição dos lugares sociais dos sujeitos nos grupos aos quais 56

pertencem (ou não) estão referenciados aos seus corpos, já que historicamente os indivíduos são classificados e hierarquizados pela aparência dos seus corpos que está submetida a uma normatização social. Esta é ordenadora dos indivíduos e vai reconhecê-los ou não conforme sua cor da pele, seu cabelo, se é crespo ou liso, se é magro ou gordo, por exemplo, se possui pênis ou vagina, se o pênis, a bunda ou os seios são grandes ou pequenos, marcas de raça, gênero e classe presentes nos corpos que são significados culturalmente e que irão valorar os indivíduos socialmente bem como empoderá-los ou não. Neste momento, acredito ser importante então nos debruçarmos sobre esses marcadores que ordenam a vida dos indivíduos, pois estas características estão presentes nos filmes e vão nos ajudar a entender os discursos e as estruturas que organizam essas representações. Começaremos com o conceito de cisgeneridade que pulsa no filme “Authority” e vamos perceber como isso se dá e porque isso se torna subversivo na (des)construção pornográfica feminista. Então, cisgeneridade é o padrão que se estabelece a partir dessa normalização dos corpos. As diferentes identidades de gênero e diversidades corporais e funcionais são apagadas e quando visibilizadas são abjetas. “A cisgeneridade [...] pode ser caracterizada como as posições normativas/coerentes no segmento “sexogênero”: são as identidades de gênero binárias, definidas a partir de ilusões pré-discursivas (como a que pressupõe a existência de dois 'sexos biológicos' objetivamente identificáveis), e tidas como permanentes. É costume, em nosso contexto histórico, referir-se a pessoas cisgêneras como homens/mulheres 'biológicas', 'de verdade', [...] etc.” (V., 2013).

Em outras palavras, “o termo ‘cisgênero’ é um conceito que abarca as pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento, ou seja, as pessoas não-transgênero” (DE JESUS e ALVES, 2013). É necessário problematizar os processos de naturalização e normatização da cisgeneridade, enquanto marcador sociocultural de diferenças, não como expressão de subjetividade ou identidade, mas considerando, entre outros elementos, as violências cis+sexistas, institucionais e não institucionais, contra identidades de gênero e diversidades corporais e funcionais dissidentes podem ser vistas nas proposições da Pornografia Feminista. Buck Angel, ator pornô transexual, é um dos exemplos que podemos 57

evocar. Para trazer mais especificamente para a análise que se propõe esta dissertação já convoco o filme “Authorithy”, por questionar a cisgeneridade na composição das duas personagens, as quais vamos refletir mais no terceiro capítulo. O filme tem início nas ruas de Berlim. Duas trajetórias são localizadas nessas ruas. A de uma pessoa que anda pelas ruas e de uma pessoa reconhecida como policial pela vestimenta. A civil veste roupas mais curtas e coladas ao corpo, com cores e estampa de onça, botas e meias vermelhas altas, uma bolsa também vermelha no ombro. Cabelos bem curtos, apropriados ao estilo militar. Aparentemente, alguém do cisgênero feminino, mas masculinizada, que mescla elementos na construção da sua aparência. Enquanto a outra personagem, policial, veste a farda verde, com quepe na cabeça e munida de um cassetete. Não é possível ler o gênero socialmente determinado desta pessoa. Neste momento, nossas lentes ainda confusas tentam encaixar e categorizar aqueles corpos estampados na tela. O que podemos identificar ao menos é que são pessoas brancas, magras e, pela geografia, corpos sem marcas da colonização. A localização do discurso é importante para entendermos a estrutura que é construída e, dessa forma, a apresentação das personagens já é um ponto de partida potente.

Figura 6 - Authority

A proposta para leitura do filme parte da compreensão de que os conceitos de cisgeneridade, cis+sexismo e cisnormatividade se configuram não somente como ferramentas de análise úteis para pensar este tema, mas também como resistências epistêmicas em meios acadêmicos e ativistas. “O termo 'cis+sexismo' é uma tentativa 58

de caracterizar a complexa interseção entre a normatividade sexista de gênero [...] e a normatividade cissexista de gênero” (ibid.), constituindo violências que partem da premissa da cisgeneridade como a identidade de gênero “correta”, “natural” e “ideal”. Estas violências, permeando as identidades e expressões de gênero de todas as pessoas, se caracterizam como uma cisnormatividade sociocultural que invisibiliza existências não cisgêneras. Assim, a vivências das personagens do curta são a princípio marginais ou invisibilizadas, já que nenhuma delas atende ao padrão dos gêneros, nem do feminino e nem do masculino, lidam com a suposição, com a dúvida e com a ambivalência. O feminino e o masculino causam estranhamento no filme não são mostrados como no pornô mainstream em que a binaridade é reforçada ao extremo na hipersexualização em especial das roupas e de áreas dos corpos, como os seios e bundas enormes, os paus e músculos gigantes a fim de demonstrar a feminilidade e a virilidade, antagonizados e, ao mesmo tempo, complementares. É a partir da caracterização das personagens de “Authority” que podemos borrar a estrutura do gênero e o mover em certa medida o desejo, a fim de gerar uma fissura na tríade macho-homem-hétero/ fêmea-mulher-hétero. As identidades de gênero não estão aqui para serem desvendadas, mas sim complicadoras no processo da excitação ao mexer com os imaginários que são, repetidas vezes, treinados para o desejo dos corpos padronizados e estereotipados. Isso ocorre de maneira diferente nos outros dois filmes que estamos buscando compreender a estrutura. Tanto “Cabaret Desire” quanto “Amor com a cidade” tem esse pano de fundo da binaridade, mesmo que de forma inconsciente. Em ambos, há uma divisão expressiva das vestimentas, dos acessórios e da visualização das corporeidades a fim de uma adequação em alguns dos gêneros masculino ou feminino. Não é questionada a existência de apenas duas identidades de gêneros possíveis, e sim suas atribuições nos papeis sociais e comportamentais destas duas expressões e suas possibilidades de orientações e práticas sexuais.

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Figura 7 – Cabaret Desire

Podemos perceber nessas imagens o corpo bem demarcado de quem usa as roupas mais decotadas, o batom e adereços do cabelo, o espartilho e quais corpos estão com as roupas mais sóbrias e que pouco aparecem desnudo, a barba. Esses são apenas alguns dos detalhes que denotam a divisão entre homens e mulheres em “Cabaret Desire” e está leitura poderá ser aprofundada no capítulo 3.

Figura 8 – Amor com a Cidade

No caso de “Amor com a Cidade”, vemos também estruturas que formam e denunciam o construto feminino na sociedade ocidental. A atriz Juliana Dorneles está usando por todo o curta, mas evidenciado por essas imagens, saias, quando não está nua, geralmente peças na cor rosa, além do salto alto, no caso vermelho. Todos esses signos são encontrados nas leituras do padrão do feminino. A questão não é que essas pessoas construídas como mulheres não possam se utilizar disso, contudo vale o questionamento a partir da intenção do empoderamento do feminino no espaço 60

público, que é uma das intenções desta obra, recorrer tanto a esses signos formadores da norma. Podemos pensar que essa caracterização leva a gerar outras leituras ou significações a partir da prática da atriz, contudo não desafia os limites do gênero instituído. É necessário perceber que é extremamente subversivo a ocupação do espaço público da sexualidade do feminino, no sentido de que esta sempre foi negada e escondida nos quartos e legitimadas pelo matrimônio e a heteronormatividade. Isso pressupõe o estar sempre à espera do homme cis e seu apetite sexual. Juliana ao ser protagonista e ainda no espaço público, sempre construído como masculino, borra essa lógica ao subverte-lo com a própria performance. Contudo, ela não extrapola o conceito de mulher e se resume a cisnormatividade. Talvez por vontade de positivar a buceta e partir também da materialidade do seu corpo, mas acaba por deixar de fora as mulheres trans desse empoderamento da sexualidade e do espaço público. Outro aspecto que devemos recorrer para entender as estruturas das narrativas construídas nos filmes são como essas pessoas visualizadas corroboram ou não com o padrão estético da corporeidade e do desejo. A pornografia mainstream é um dos pilares da ditadura dos corpos, legitimando quem está apto a despertar desejo em outras pessoas, e mais do que isso, quem pode de fato gozar e valorizar o seu corpo. São os corpos magros e jovens que existem e podem se expressar nesta lógica. A princípio, vou me ater ao debate de pessoas gordas a fim de aprofundarmos o debate. Para materializar essa reflexão sobre a corporeidade das mulheres gordas levanto as produções Plumper Pass dentro da Pornografia Feminista que nada mais é a produção pornográfica de e para mulheres gordas, as chamadas BBW (Big Beautiful Woman28). Protagonizar seu desejo, seu corpo e sua sexualidade é um manifesto pela autonomia de um corpo marcado pelas violências sociais, escancaradas pelo machismo e pela ditadura da magreza, a gordofobia. Para exemplo e para iniciar um debate pela ótica feminista queer das virtualidades das mulheres gordas na pornografia, trago à cena a atriz pornográfica americana e modelo plus-size, April Flores.

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BBW, acrônimo para o termo em inglês "Big Beautiful Woman", é uma denominação frequentemente utilizada no contexto ou na afirmação da atração sexual por mulheres obesas, embora seu uso seja controverso. O termo foi criado por Carole Shaw em 1979, quando ela lançou a BBW Magazine, uma revista de moda e estilo direcionada ao público feminino acima do peso corporal médio.

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Figura 9 – April Flores

As mulheres gordas e idosas não estão inclusas nos padrões de beleza hoje instituídos, os seus corpos são mantidos à margem das reproduções do que é desejado e representado. O padrão imposto é perceptível através das peças publicitárias, como as de cervejas, que oferecem o corpo da mulher como objeto de consumo junto ao produto que está sendo vendido. O corpo gordo geralmente não figura no cenário da indústria midiática e, em geral, as imagens de mulheres gordas, nuas então, são formas de opressão disfarçada de piada. A gordura é abjeta na construção do desejo e da excitação. Os corpos que não atendem ao padrão e que acabam por ser visibilizados devem ser lembrados da normativa que os cerca e, dessa forma, acabam por ser representadxs de maneira violenta e inferiorizada. Centralizar a nudez e o gozo na tela é uma rebeldia contra o cerceamento imposto ao seu corpo, fissurando e transgredindo os limites da “normalidade”, driblando a classificação médica em uma representação visual preocupada com o volume do corpo, das densidades de sua forma, na liberdade negada à mulher gorda. Na crônica “Pornografia começou com a Vênus de Willendorf?”, o escritor Rubem Fonseca (2007) discute a assepsia dos pesquisadores em torno da imagem da deusa obesa. Seria esse escultor da Idade da Pedra, que esculpiu a Vênus de Willendorf destacando e deformando os seus caracteres sexuais, "o primeiro artista pornográfico da História", como querem alguns? "Mesmo comparada com as construções repelentes que os antropólogos fazem da mulher de Neanderthal, a Vênus de Willendorf é simplesmente repulsiva", disse dela

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um historiador. Repelente? Por terem sido realçados os seus órgãos sexuais, certamente. O conceito de pornografia tem variado no tempo e no espaço, mas sempre subordinado ao corpo humano, sua nudez e suas secreções e excreções — esperma, fezes, urina — refletindo o preconceito antibiológico presente, em maior ou menor grau, em quase toda a história da civilização (FONSECA, 2007, p.12).

Provocativo, o texto de Fonseca reitera questões como a associação da gordura e obscenidade a repulsão causada pelo corpo da mulher gorda e as dificuldades em lidar com a corporeidade, suas, expansões, formas e contornos. Dessa forma, um conjunto de ações, como percebe o autor, censura e deslegitima as tais representações “repulsivas” do corpo como necessárias para manutenção da ordem do que é aceitável e o que é abjeto, invisibilizando o que está à margem. Na contemporaneidade, a gordura é interpretada como um ônus, principalmente quando associado ao feminino. Dessa maneira, a sexualidade da mulher com sobrepeso, gorda e obesa, é negada e empurrada para zonas fronteiriças. Gayle Rubin (1989) percebe como as sexualidades são beneficiadas ou penalizadas de acordo com critérios muito bem definidos. Para a autora, existe um círculo mágico de respeitabilidade: o casal heterossexual, branco, magros, jovens, com filhos, que faz sexo convencional em quatro paredes é o epicentro. Quanto mais se afasta desse modelo, mais o indivíduo é onerado e circunscrito no território patológico. O corpo gordo é visto como algo que foge à norma, que deve ser combatido e negado como uma possibilidade saudável de se exercer a sexualidade. Estas hierarquias subsidiam a criação de uma fronteira invisível entre o sexo que é tido “normal” e o concebido como “anormal”. A Pornografia Feminista, no âmbito da Pumpler Pass e das mulheres BBW, tem a intenção de desconstruir o mito da beleza (WOLF, 1992) e entender que os padrões rígidos de magreza, veiculados pelas mídias comerciais, publicidades, filmes e pornografia mainstream, não correspondem à realidade e ao cotidiano. Orbach (1979) argumenta que estamos em uma epidemia, causada pela obsessão da magreza, e a liberdade desse sistema opressor está na profanação dessa imagem sagrada desse corpo midiático, reinventando códigos e simbologias, do corpo, dos desejos e prazeres. Políticos e feministas, esses trabalhos artísticos denunciam e rejeitam as classificações pretensamente científicas e bastante normativas, que aprisionam o corpo feminino e pretendem assujeitá-lo aos padrões de beleza estabelecidos. 63

“Mas o corpo está também diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder dele se apoderam imediatamente, elas o investem, o marcam, exigem dele signos (...). Esta tecnologia política do corpo é difusa, raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos; compõem-se frequentemente de peças e pedaços, faz funcionar uma aparelhagem de processos discordantes.” (FOUCAULT, 1977, 30-31.)

Um corpo não dócil, não adestrado para a produção fluida e rápida para o capital, algo que não se adequa ao sistema farmacopornográfico, como aponta Preciado(ano), e não se encaixa ao padrão de beleza contemporâneo. Retomando Butler, o conceito de gênero através de suas limitações e regulações produzem a performatividade dos sujeitos. Então o gênero como prática discursiva e corporal performativa através do qual os sujeitos adquirem integibilidade social e reconhecimento político. A contribuição de Preciado diz que o conceito de gênero é uma produção bio-capitalista farmacopornográfica. A autora traduz o termo “farmacopornográfica” como a gestão dos corpos por meio da representação o que leva ao termo “tecnogenero” que é lido como as manipulações sobre os corpos e os subjetivos para a construção dos gêneros e suas performatividades. O gênero seria uma intersecção da construção dos signos socioculturais das representações discursivas e visuais que vem dos dispositivos de coerção social: família, Igreja, educação, artes, linguagem, cinema, etc. O objetivo das tecnologias farmacopornográficas, como afirma Preciado é se apropriar dos corpos e suas subjetividades produzidas afim de docilizá-lo e utiliza-lo para produção do capital. A partir disso, se estabelece uma programação de gênero, que é a tecnologia psico-política que convence os sujeitos sociais a pensarem e atuarem como individuais, a se entenderem como propriedade privada e com uma identidade de gênero e sexualidade fixas. Assim, se estabelece a linearidade individuo = um sexo = um gênero = uma sexualidade. Essa ecologia política, como afirma Preciado, é um conjunto de regras e práticas de domesticação dos corpos, de técnicas farmacológicas e audiovisuais que determinam nossas potencialidades que funcionam como filtros e produzem percepções sensoriais que tomam formas em ações, desejos, afetos, crenças e identidades. São as margens desses corpos, ironicamente expostas como sobra, que marcam uma identidade não aceita. Empoderar os corpos não higienizados, “não desejados”, 64

“repulsivos” faz um trabalho na subjetividade das sujeitas e na valorização e autonomia dos seus desejos e prazeres. April Flores, e tantas outras mulheres gordas que se colocam nas telas, mostram que é possível e necessário gozar, conhecer e ter orgulho do seu corpo e saber que não existe machismo que mostre o contrário. Este aspecto da estética, estereótipos e corporeidades se fazem presentes em todos os filmes. Podemos observar tanto nos curtas quanto no longa que quase todas as corporeidades representadas são magras, mas todos em certa medida não deixam de fazer o questionamento sobre o padrão estético exigido, em especial, das pessoas ditas socialmente pertencentes ao gênero feminino. Em “Authority”, o padrão de feminilidade e do que é lido como um dito corpo feminino na sociedade ocidental é posto em cheque. As duas pessoas em cena são magras e brancas, contudo com poucas curvas, seios e bundas pequenas, bucetas peludas, cabelos curtos e o cu como fonte de prazer. A apropriação desta feminilidade masculinizada traz outra leitura sobre estes corpos que gozam e exploram outras possibilidades do sentir do corpo. Essa visibilidade desafia o regime cisnormativa e heteronormativa, pois fogem do estereótipo do feminino que é construído em corpos que possuem seios e buceta. Inclusive o empoderamento dessas performances do feminino, sem necessidade de presença do masculino para o gozo, também é uma prática subversiva. Gera, então, a leitura do feminino masculinizado que goza.

Figura 10 - Authority

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Pensando sobre corporeidades em “Cabaret Desire”, alguns estereótipos são questionados. Em sua primeira história “Two Alexes”, a protagonista é uma mulher gorda bissexual, que se relaciona com um homem de traços árabes (um corpo também colonizado) e com outra mulher branca de traços mais padrões de feminilidade. A mulher gorda que se relaciona com duas pessoas ao mesmo tempo, tensiona várias ambiguidades como a orientação, quanto corpórea, quanto sexual. Ela exerce o protagonismo da sua dita feminilidade, da erotização do seu corpo gordo e do seu prazer que vai pra além das convenções por não se ater a gêneros e nas suas práticas com o uso do dildo (que vamos nos debruçar com mais cuidado no capítulo 3). A positivação das dobras e das curvas, de corpos que existem e resistem na sua existência e que podem ser fontes de prazer é um dos debates levantados.

Figura 11 – Two Alexes – Cabaret Desire

Ainda ressalto neste longa o episódio “My Mother” em que podemos pensar sobre a construção do corpo da mulher enquanto categoria mãe. Falar de mãe como sujeita do feminismo implica compreender que esta é uma sujeita sempre em aberto, entre regularidades e diferenças, heranças históricas e agenciamentos individuais. Emily Jaremiah em seu artigo “Motherhood to Mothering and Beyond Maternity in Recent Feminist Thought” sobre maternidade, maternagem e feminismo, em que ela argumenta sobre a performatividade de gênero da mãe que protagoniza os cuidados a 66

partir das necessidades da criança. A própria definição ampliada de mãe não se resume ao ato de parir, mas se expande para o exercício da maternagem, e assim, afirma uma disposição para cuidar desse outro – ainda que seja um cuidado compartilhado, coletivizado. Subverter então a ideia de uma “mulher” sempre a postos para ser mãe não é uma tarefa fácil. Neste ponto, a autora afirma que, nessa interação própria da maternagem, a pessoa tem a oportunidade de performar, por excelência, com seu corpo e suas palavras, possibilitando o deslocamento da figura de mãe para corporeidades não padronizadas, como a de homens trans, por exemplo. Com essa “ética da maternidade” e um esforço feminista de subverter a identidade de gênero, direcionando-se constantemente ao bebê/criança/adolescente, a mãe tem a oportunidade de se recriar enquanto sujeito e ao mesmo tempo de promover a diferença em uma nova pessoa que se desenvolve. A maternagem, como a compreendemos, deve ser apreendida como um conjunto de práticas de fundo cultural e social que pode ser exercida por qualquer indivíduo, independente da orientação sexual ou do gênero. A maternidade real não é valorizada pela sociedade, assim como o maternar e os cuidados com bebês e crianças também não são. E isso acontece porque são atividades socialmente ligadas à mulher cis e como tal, relegadas a um segundo plano, a uma escala inferior da nossa divisão social do trabalho. A imposição da maternidade à mulher cis, a ideia de que a mulher só seria “completa” com a maternidade por exemplo, de preferência daquela que gerou e pariu, é uma construção patriarcal, que visa, unicamente, subjugar a mulher, relegá-la a uma figura estigmatizada, sacralizada e, portanto, irreal. Fruto dessa idealização está a imensa sobrecarga enfrentada pela mulher no cuidado com os filhos, que envolve, diversas vezes, também, o papel de única provedora. Dentro dessa lógica opressora, a mulher deve se responsabilizar, se sacrificar e garantir, por conta própria, a vida digna das crianças. Esse é o modelo de maternidade presente no senso comum que pretendemos discutir e modificar. A desconstrução dessa estrutura passa, necessariamente, pela valorização da maternagem e do cuidado com o menor, incluindo práticas coletivas, de caráter afetivo, despregadas da figura exclusiva da mulher e de convenções sociais reducionistas que desrespeitem a diversidade social, religiosa, étnica, sexual e de gênero. Para essa autora feminista Jaremiah, a arte é uma ferramenta interessante nesse agenciamento da “mãe feminista”. É contando daquilo que se vive, no dia a dia, e repensando a maternagem, que ela pode subverter e reconstruir. Essa é a perspectiva 67

que adotamos na leitura do episódio “My Mother”, de desconstruir a partir de outras narrativas traçadas para além do estereótipo de pureza e cuidado. A figura materna é tirada a sexualidade ou fetichizada, quando é de interesse do capital e da heteronormatividade. Nesse caso, ela é uma mãe solteira, jovem e gostosa que sabe como usar seu corpo no momento que a interessa. Por isso, entendo que ela fica nesse entre-lugar que move o corpo da mãe para uma perspectiva erotizada pela ótica do filho, que é quem faz à narrativa, e que quase chega a fetichização, mas não alcança essa esfera por ela ser a protagonista de seus desejos e objetivos que vamos perceber com mais detalhes no terceiro capítulo. Outro ponto a ressaltar dessa estória é a figura do corpo dito masculino. O homem em cena tem aparência de meia idade, com seus poucos cabelos e pelos grisalhos, um corpo franzino que não corresponde ao ideal de masculinidade e virilidade. Além da situação de rendição e da nudez do dito masculino que em nada corrobora com a perspectiva machista da pornografia mainstream, o curta também levanta a questão geracional no caso da visibilidade daquela masculinidade, em que corpos não-jovens ainda podem ter desejo e podem ser desejados. Visualizamos também o questionamento do padrão de masculinidade, que se mostra passivo, mesmo que não por vontade própria, magricela, que faz alusão à fragilidade, e de meia idade, que não corresponde ao padrão de virilidade nos filmes pornôs mainstream.

Figura 12 – My Mother – Cabaret Desire

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É nesse sentido da questão geracional e do padrão estético dos gêneros, que podemos conectar com a percepção a “Amor com a cidade”. Neste curta, a atriz Juliana Dornelles demarca o protagonismo da sua sexualidade, da sua corporeidade e do seu gozo ao “fazer amor” com a cidade, a partir do que a ela é erótico e excitante. O protagonismo é todo dela e o sexo exposto em ambiente público traz a necessidade da visualização dessas práticas e corpos desejantes. A atriz não tem a estética corporal de modelos de revistas siliconadas, rígidas e malhadas, com curvas milimétricamente planejadas. Ela tem seios pequenos, bunda pequena, quadris largos, pernas ligeiramente grossas, buceta com pelos, nada duro e musculoso se aproximando de uma pessoa que já pode estar já nos 40 anos. Cenas pornográficas e autônomas de sexo explícito por uma mulher de meia idade em vias públicas de duas grandes cidades brasileiras faz no mínimo questionar quem pode ser desejável, onde essa vontade se materializa e com quem. O protagonismo do desejo de um corpo também marginal pela sua estética e pelo aspecto não-jovem que é colocado sempre como sem sexualidade e possibilidades de pornografar-se. E que, por mais que essas pessoas obesas e idosas não estejam inclusas nos padrões de beleza atuais, e que seus corpos sejam mantidos à margem das reproduções do que são desejados. Considerados abjetos e inexistentes, eles resistem, perambulam e adentram o imaginário pornográfico e demonstram que são corpos que habitam as cidades por ai e borram a margem da existência e da visibilidade.

Figura 13 – Amor com a Cidade

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Nessa leitura dos marcadores sociais que evidenciamos a partir das leituras dos filmes que estão contribuindo na análise, é preponderante colocar aqui a perspectiva de uma categoria que quase não se visibiliza na Pornografia Feminista: a negritude e a etnicidade. Acredito ser importante pensarmos sobre essas características neste capítulo, pois além de aprofundarmos nossa análise dos filmes que prosseguirá no próximo capítulo desse trabalho, trataremos das dificuldades e falácias de representação que o discurso do Pornô Feminista enfrenta e dialoga. Vamos nos debruçar sobre a construção dos corpos negros e como os estereótipos se retroalimentam e chegam a questionar se vale a pena a representação nessa prática pornográfica. Desde a colonização, os corpos negros são demarcados pela hipersexualização e pelo exagero nas formas e tamanhos relacionados a genitálias, seios, ancas. Animalizadxs, objetificados, subordinadxs, inferiorizadxs.

"O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas, etc., até a polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado, aos belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos habitacionais, cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos dos dias de hoje. O critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço." (Gonzalez, Lélia. Lugar de Negro, 1982)

Pensar essa divisão racial do espaço no cenário da Pornografia mainstream nos traz que este espaço sempre objetificou e manipulou as pessoas negras, em especial àquelas associadas ao feminino. Estas pessoas sempre tiveram seus corpos aludidos a monstruosidades sexuais: paus, bundas e peitos enormes, de lascívia pulsante hipersexualizando seus corpos, suas subjetividades e suas vivências. Em nenhum momento as pessoas negras tiveram o protagonismo de sua sexualidade e seus corpos para além do fetiche e isso passa também pelos meios de produção: roteiros, direção, atuação. Na Pornografia Feminista, essa objetificação é sim questionada, contudo as invisibilidades em todas as áreas do processo de produção desse outro imaginário 70

pornográfico ainda perduram e o que ocorre é um embranquecimento. Ao pensarmos nos filmes que abordamos nesta dissertação, poucas pessoas negras aparecem no casting. Apenas em “Dirty Diaries” temos um dos curtas que tem representações de mulheres negras “On Your Back Woman!” dirigido por Wolfe Maddam. Tanto em “Authority”, quanto “Cabaret Desire” e em “Amor com a Cidade” temos o feminino protagonizado, mas sempre embranquecido. Quando abordamos o termo “raça”, estamos tentando dar conta de um uma categoria socialmente construída com referências sociais, culturais e históricas, com base em diferenças físicas, ascendência genealógica e a cor da pele, para hierarquizar a cultura, a história e os paradigmas filosóficos não-ocidentais. E isso permite alocar e/ou excluir pessoas de posições na estrutura social. Anne MacClintock, no seu livro Couro Imperial, se debruça sobre a concepção do corpo negro, em especial do que foi convencionado como das mulheres negras. A autora vem evidenciar que, desde a colonização, a terra é feminilizada. Essa perspectiva do limite do desconhecido faz com que esse novo mundo seja perigoso, marcados como fronteiras. Durante séculos, os continentes tidos como incertos, Ásia, África e Américas, foram concebidos pelo saber europeu como libidinosamente eróticos. “As estórias dos viajantes estavam eivadas de visões da monstruosa sexualidade de terras distantes, onde, segundo a lenda, os homens exibiam pênis gigantescos e as mulheres copulavam com macacos; dos seios dos homens tornados femininos fluía o leite, e as mulheres militarizadas cortavam os seus. (...) a África e as Américas já tinham se tornado o que pode ser chamado de pornotrópicos para a imaginação europeia – uma fantástica lanterna mágica da mente na qual a Europa projetava seus temores e desejos sexuais proibidos”. (MACCLINTOCK, 2010, p.55).

A autora chega à conclusão que o conhecimento do mundo desconhecido estava mapeado como uma metafísica da violência de gênero e era validado pela nova lógica iluminista e do individualismo possessivo. Nessas fantasias, o mundo é tornado feminino e espacialmente exposto para a exploração masculina e então remontada e organizada no interesse do poder imperial massivo. “Na mente desses homens, a conquista imperial do globo encontrava sua figura e sua sanção política na prévia subordinação das mulheres como uma categoria da natureza” (MACCLINTOCK, 2010). Para as mulheres, o mito da terra virgem apresenta dilemas específicos com 71

importantes diferenças para as mulheres coloniais e colonizadas. MacClintock afirma que as mulheres são a terra que está para ser descoberta, penetrada, nomeada, inseminada e possuída. A elas, é relegado um domínio simbólico fixo que está para além da história e, assim, mantêm uma relação subalterna com as mudanças políticas e históricas e nada mais são que consideradas mais um dos bens de consumo dos homens. A autora situa a segunda metade o século XIX a analogia entre degeneração de raça e de gênero passou a exercer de forma especificamente moderna uma dominação social com a geração de uma intrincada dialética entre a domesticação das colônias e a racialização das metrópoles. A percepção racializada conduzida por Engels, por mais que inconsciente ou não intencional, seria cúmplice daquilo que Anne McClintock chama de "analogia triangular entre as degenerações racial, de classe e de gênero" (p. 76), e que consistiria numa forma especificamente moderna de dominação social. Nesse momento, a ideia de desvio racial se fazia empregar no policiamento vigilante daquelas que eram consideradas classes perigosas, ou seja, "a classe trabalhadora militante, os irlandeses, os judeus, as feministas, os gays e as lésbicas, as prostitutas, os criminosos, os alcoólatras e os loucos" (p. 77). Dessa forma, os filmes que analisamos aqui quebram em partes com essa dominação social que MacClintok evidencia em seu discurso. O sentido vigilante, exacerbado na Pornografia mainstream ao regular, padronizar e normatizar os gêneros e sexualidades, geram também a reação a partir do tensionamento que é materializado em outras práticas e apropriações da Pornografia que, neste caso, é a Feminista. Nas películas, são visibilizadas as mulheres em perspectiva feminista e protagonistas de sua sexualidade. Lésbicas que regozijam seu gozo masoquista e não atrelado à identidade de gênero feminina em “Authority”; mulheres cis que usufruem da sua heterossexualidade e bissexualidade em “Cabaret Desire” e a autonomia do corpo e do desejo na ocupação do espaço público pela mulher em “Amor com a Cidade”. Essa analogia das degenerações é, então, costurada por McClintock ao tecido do projeto imperial. Para McClintock, "raça, gênero e classe não são reinos distintos da experiência, que existem em esplêndido isolamento entre si; nem podem ser simplesmente encaixados retrospectivamente como peças de um Lego" (p. 19). Raça, gênero, classe e, acrescento, sexualidade e corporeidades existem em relação entre si e através dessa relação, contraditória e conflituosa. Mas McClintock alerta para os entrelaçamentos entre esses domínios não devem implicar em reduções de uns sobre 72

outros, o caminho por meio da interseccionalidade3 torna a leitura mais complexa e evidenciam suas tensões, fronteiras e possibilidades de resistência. O padrão de normalidade funciona como o produto do desvio do estabelecido tipo humano normal e a invenção dos conjuntos de tipos degenerados que destacavam os limites. Podemos pensar que todas as visibilidades produzidas nos filmes que analisamos são visibilidades desviantes dos gêneros, em especial do feminino, pois descontroem várias características destas mulheres representadas como a pureza e santidade da figura da mãe, o sexo apenas no espaço privado, a heterossexualidade compulsória. 3 O feminismo interseccional originou-se da militância das feministas negras estadunidenses, que desde o final da década de 1960 introduziram o conceito, disputando espaço dentro de um feminismo predominantemente branco. A teoria sociológica sobre a interseccionalidade foi apresentada pela primeira vez pela teórica feminista Kimberlé Crenshaw, em 1989. Nas colônias, segundo a autora, xs negrxs eram vistos, entre outras coisas, como desviantes de gênero, corporificações da prosmicuidade e excesso pré-histórico, com “seu atraso evolutivo evidenciado por suas “femininas” faltas de história, de razão e de arranjos domésticos apropriados” (p. 68). As mulheres negras desde a época da escravização são marcadas pela imposição da cor na identificação do status social e, a partir disso, criavam-se estereótipos pecaminosos, lascivos e de prazer, ávidos até hoje. As fronteiras corporais eram sentidas de maneiras perigosas permeáveis e demandavam contínua purificação, na medida em que a sexualidade das mulheres era, em particular, isolada como principal transmissor do contágio racial e, portanto, cultural. Essa periculosidade do acesso ao corpo, sempre regulamentado por outros e não pelas pessoas marcadas pelo feminino, é questionada nos filmes Pornôs Feministas, pois partem do princípio de que as representações do feminino fazem o sentido inverso, elas materializam a sua autonomia da sexualidade a partir do prazer e do gozo reafirmam o protagonismo feminino que a todo momento é negado pelas estruturas machistas e cis-heteronormativas. A ideia de degeneração era a ideia de contagio racial. MacClintock aponta dois caminhos para contar essa história. Se uma narrativa conta o progresso familiar da humanidade, da criança nativa degenerada até o homem branco adulto, a outra conta a possibilidade do declínio racial da paternidade branca para a degeneração negra encarnada na figura da mãe negra. Dessa forma, a mulher negra e sua sexualidade foi sempre inferiorizada e manipulada de acordo com a norma estabelecida. A mulher 73

negra sempre foi objetificada tanto em sua subjetividade como na questão do corpo. Desde cedo, a pessoas negras são simbolizadas sexualmente, em especial, as pessoas que são construídas no feminino. A violência é cotidiana e contínua nas simbologias das representações da estética branca, com traços finos e cabelos lisos, o que se estabelece como padrão do belo. A abjeção pelos corpos negros vem de toda a carga acumulada desde o processo de escravização. A aproximação dessas pessoas com a condição de prosmicuidade só reitera até hoje a condição do senhor de engenho em que negras lascivas servem para o deleite de quem a consome. E esta exploração se resume ao âmbito da invisibilidade. São essas mulheres que tem os maiores índices de exploração sexual, de gravidez na adolescência, de mães solteiras, autoestima baixa, não assumidas em seus relacionamentos e geralmente estão em condições de menos condições financeiras. São elas também que não estão nas capas de revistas, nos comercias e ainda nem com papeis de grande expressão na dramaturgia, e quando aparecem ainda causam estranheza. Na perspectiva da pornografia mainstream as mulheres negras não tem praticamente visibilidade e quando aparecem é no sentido de uma pornografia bizarra e animalesca, com corpos hipersexualizados e sem muitos vestígios de racionalidade. Na Pornografia Feminista, podemos reparar que o regime de invisibilidade que também existe na comercial, continua a existir e quando são materializados são sempre em segundo plano ou sem o cuidado dessa diferenciação que é necessária como evidencia o feminismo interseccional-marginal, que falamos um pouco antes neste texto. Audre Lorde, em seu artigo “Usos do erótico: o erótico como poder”, levanta a questão da apropriação dos corpos destas mulheres e da simbologia do feminino, além de elas mesmas ficaram de fora do protagonismo de suas sexualidades. A autora afirma que existem muitos tipos de poder e que o erótico é um recurso dentro de cada uma de nós, mas que são sentimentos impronunciados ou não reconhecidos. Para se perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer aquelas várias fontes que há na cultura de oprimidxs e podem suprir energia para mudança. Para mulheres, em especial as negras, isso tem significado a supressão do erótico como fonte considerável de poder e informação dentro dessas vidas. “Para

serem utilizados,

nossos sentimentos eróticos

devem ser

identificados. A necessidade de compartilhar sentir profundo é uma necessidade humana. Mas dentro da tradição europeia-americana, essa

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necessidade é satisfeita por certos proscritos eróticos de gozar-junto. Tais ocasiões são quase sempre caracterizadas por um simultâneo desviar o olhar, uma pretensão de chamá-las outra coisa, seja uma religião, um calhar, violência de multidão, ou mesmo brincar de médico. E esse malchamar da necessidade e do ato dá vazão àquela distorção que resulta em pornografia e obscenidade – o abuso do sentir.” (LORDE, 1984, p.55)

Lorde, ao mesmo tempo em que defende o erótico e que este é um direito das pessoas construídas a partir do feminino, ela encara a pornografia como um instrumento de opressão do masculino. A autora não entende que essa ferramenta possa estar a favor ou protagonizada pela população negra, mesmo por que os meios de produção dessas outras representações que dê esse horizonte ainda se concentram nas mãos e a partir dos olhares de pessoas brancas. As pessoas negras, em especial as mulheres, não entendem a pornografa enquanto um caminho de transgressão, em geral por toda a carga simbólica de inferiorização e animalização que receberam desde o início em nossa sociedade ocidental. Nesse sentido, podemos pensar inclusive em como a lógica interseccional aproxima a questão da cisgeneridade e da negritude no momento em que esses processos ainda têm cor e ainda tem classe. Quando vemos pessoas trans na mídia, ainda são pessoas brancas e com condições financeiras mais edificadas. Isso não diminui a luta e resistência destas pessoas, mas deixa o questionamento também de que virtualidades queremos. Dentro da Pornografia Feminista, percebe-se um tímido questionar sobre o racismo e etnicidade, o protagonismo ainda é branco e isso, acredito, só mudará quando a prática pornográfica seja pintada de negra e instrumentalizada pela sexualidade destas pessoas. Esse protagonismo negrx acabará por movimentar todas as estruturas simbólicas e sociais na visibilidade produzida, estas que vão deslocar as hierarquias que enraízam as construções das pessoas na sociedade. Avançando, agora, de forma mais aprofundada para a categoria que permeou todo esse capítulo: a sexualidade. No campo da sexualidade e da identidade de gênero, por exemplo, as características ditas biológicas do corpo, o sexo é uma marca de distinção de feminino e masculino e passa a ser a causa, definição e significado ao que se entende pelo sistema binário, se tem a presunção do que é ser homem e ser mulher, bem como seus papéis de gênero, seus desejos e práticas sexuais, o que consequentemente, sabendo-se os papéis e lugares que homens, mulheres, lésbicas, bichas, travestis e pessoas transexuais têm hierarquicamente na sociedade, irão 75

também definir as relações de poder entre esses lugares. Desde que a sexualidade passou a ser uma preocupação do Estado, na medida em que se buscava controlar e garantir reprodução da população a serviço da produtividade, discursos foram produzidos com autoridade científica, moral e religiosa, objetivando-se, como diz Louro, “conhecer, explicar, identificar e também classificar, dividir, regrar e disciplinar a sexualidade.” Então é correto afirmar, baseando-se em Judith Butler que os discursos habitam os corpos e que gêneros e sexualidades discursivamente inscritas nos corpos se expressam através dele, ou ainda como afirma Louro são “os processos e as práticas discursivas que fazem com que aspectos dos corpos se convertam em definidores de gênero e de sexualidade e como consequência acabe por se converter em definidores de sujeitos”. (LOURO, 2001, p. 546) É nessa perspectiva que se estabelece a matriz de inteligibilidade da sexualidade, onde o sexo biológico define o gênero e consequentemente seus papéis, que irão moldar o desejo e as práticas sexuais correlatas. Essa matriz é binária, cissexista e heteronormativa e, portanto, só reconhece dois gêneros (masculino e feminino) como possíveis e o desejo deve ser referido ao sexo oposto e, embora essa norma possa ser subvertida, ela não legitima sexualidades fora de tais padrões, bem como corpos que queiram subvertê-la. Esta lógica, na medida em que essencializa os corpos, reforça o determinismo da natureza e pressupõe que o sexo existe fora da cultura, funcionando, conforme afirma Louro, “como se os corpos sexuados se constituíssem numa espécie de superfície pré-existente à cultura”, negando que o corpo seja construído através da cultura “descrito, nomeado e reconhecido na linguagem, através dos signos, dos dispositivos, das convenções, das tecnologias”. (LOURO, 2001, p. 549) O

entendimento

do

sexo

como

algo

determinado

naturalmente,

independentemente da cultura, irá reforçar o binarismo de gênero e a heterossexualidade como as únicas expressões possíveis no campo da sexualidade, qualquer transgressão a essa estrutura é compreendido como desviante, anormal, patológico, passíveis de correção, cura, exclusão. Então podemos concluir que, para garantir essa matriz, normas regulatórias são produzidas e reproduzidas social e culturalmente, de forma a impor aos corpos limites de normalidade, sanidade e moralidade; entretanto, como essas normas são invenções sociais também de manutenção de poder de “Brancos diante de negros, homens diante de mulheres, negros diante de negras, homens e mulheres diante de Bichas, lésbicas e trans” como 76

assinala Osmundo Pinho, e como os corpos são passíveis de se alterar continuamente, essas normas também podem ser negadas e os corpos transformados, manipulados, subvertidos. Pessoas clareiam e escurecem a pele, aumentam ou diminuem seios, pinto, nariz, orelhas, mudam as cores dos cabelos, alisam, tomam hormônios, colocam próteses, provando que as marcas de raça, gênero e sexualidade podem ser ressignificadas culturalmente, que não são fixas, mas fluidas e são marcas de afirmação ou subversão de relações de poder, poder esse que produz corpos necessários e estratégicos à manutenção de classes dominantes. Então corpos colonizados, marcados pela branquitude e pela cis-heteronorma, e sitiados podem sim se libertar da dominação e opressão, assumindo-se, recriando-se e à sua história, subvertendo e pluralizando o que é binário e restrito, “desobedecendo à cultura dominante” como propõe Ângela Beatriz de Carvalho Faria, através de mecanismos presentes na própria cultura, que redimensionem a exclusão, mesmo que seja através de um processo de “autofagia de desejos e sociabilidades desenvolvidos a tão duras penas” como sugere Jorge Leite Jr. Desejo e abjeção dos corpos trazem o embate, a marginalidade, mas também se intercruzam e se tateiam. A pornografia aparece também como tema de investigação no livro “Manifiesto contrasexual” de Beatriz Preciado, grande autora dos estudos queer, Preciado descreve os princípios de uma “sociedade contrassexual”, na qual haveria a distribuição gratuita de textos e imagens “contrassexuais”, ou seja, uma cultura contrapornográfica. O objetivo das tecnologias farmacopornográficas, como afirma Preciado é se apropriar dos corpos e suas subjetividades produzidas afim de docilizá-lo e utiliza-lo para produção do capital. A partir disso se estabelece uma programação de gênero, que é a tecnologia psico-política que convence os sujeitos sociais a pensarem e atuarem como individuais, a se entenderem como propriedade privada e com uma identidade de gênero e sexualidade fixas. Assim, se estabelece a linearidade individuo = um sexo = um gênero = uma sexualidade. Essa ecologia política como afirma Preciado é um conjunto de regras e práticas de domesticação dos corpos, de técnicas farmacológicas e audiovisuais que determinam nossas potencialidades que funcionam como filtros e produzem percepções sensoriais que tomam formas em ações, desejos, afetos, crenças e identidades. A multiplicidade de modelos de gênero existentes varia e depende do contexto histórico e político em que estão inseridos e, dessa maneira, as ecologias politicas 77

podem ser desativadas ou sofrer transformação. Sendo assim, o gênero é materializado pela biopolítica e se afirma enquanto categoria pública baseada no conceito de comunidade. Em Multitudes queer, o corpo lido como multidão queer “desterritorialização” da heterossexualidade, expressão retomada do trabalho de Deleuze. “Uma desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal. Esse processo de “desterritorialização” do corpo obriga a resistir aos processos do tornar-se “normal”.” (DELEUZE apud PRECIADO, pag. 14).

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O corpo no sistema de farmacopornografia não se configura como um espaço de passividade, é vivo, pulsante e entendido como um sistema territorializado por sistemas políticos. Preciado não pretende propor um novo modelo, nem rupturas e muito menos uma descontinuidade radical, mas sim uma multiplicidade que muda os regimes de produção nos corpos e consequentemente ocorrerá uma mudança de subjetivação e dos marcadores corporais. Como umas das formas de resistência se configuraram e se configuram as identificações estratégicas. Estas, que são socialmente negativas como “sapatas” ou “bichas”, são transformadas em possíveis lugares de produção de identidades resistentes à normalização, atentas ao poder totalizante dos apelos à “universalização”. A heterossexualidade compreendida como regime econômico, designa uma posição efetiva na produção de sentido das relações e estabelece, como argumenta Butler, as convenções culturais. O capitalismo está estritamente ligado a norma heterossexual, ao modelo de produção e reprodução, de trabalho produtivo e reprodutivo, dos binarismos e hierarquias. Os biocódigos produzem as contradições nas produções de subjetividades. Ao polarizar dentro do regime farmacopornografico, as representações, as subjetividades e as corporeidades criam mecanismos para fugir dos binarismos e desconstruir a linearidade do regime heterossexual, criando vácuos de integibilidade. “É preciso admitir que os corpos não são mais dóceis. “Desidentificação” (para retomar a formulação de Di Lauretis), identificações estratégicas, desvios das tecnologias do corpo e desontologização do sujeito da política sexual são algumas das estratégias políticas das multidões queer.” (PRECIADO, 2011, pag.15)

As condições de produção de prazer e corpos estão mudando drasticamente e estão se aproximando a produção desviante. Porém, Preciado afirma que todas as produções de prazer e de corpo são submetidas à lógica do regime farmacopornográfico e que as mesmas técnicas de produção de gênero, sexualidade e sexo estão incutidas nesse sistema. As diversas identidades sexuais, os modos de fazer sexo e produzir prazer, as maneiras plurais de expressão de gênero coexistem com um devir-comum das tecnologias de produção de gênero, sexo e da sexualidade, como conceitua Preciado. Uma desconstrução do nosso inconsciente social, o despertar e o desvelar do desejo e do sexo pelo depreciado, pelo sujo, pelo gordo, por meio dos 79

pelos. Pelas diferenças. É importante, ainda, situar a produção pornográfica na sua dimensão biopolítica (Foucault, 1976) e sexopolítica (Preciado, 2004), ou seja, num dinâmico sistema disciplinar de discursos e tecnologias heteronormalizadoras das identidades de gênero, das práticas sexuais e do próprio corpo. O que ou quem é bonito e desejável? Quem é feix? O que dá tesão? Quem merece o gozo? A quem esse gozo se destina? Para facilitar a compreensão, é necessário refletir sobre os conceitos apresentados. A biopolítica de Michel Foucault (1976) coloca em sua obra “História da Sexualidade I – Vontade do Saber” que a realidade sexual é variável em diversos sentidos, que não existe uma categoria abstrata e universal de erotismo ou de sexualidade aplicável para todas as sociedades. Assim, a construção de um biologismo é perigosa, pois pode legitimar atitudes normativas para a sexualidade, rotulando certas condutas como naturais e outras como desviantes ou antinaturais. Nossos corpos e desejos são disciplinados, fabricados como submissos e exercitados, corpos “dóceis” para a política e extremamente forte para a produção econômica. A biopolítica destina-se ao controle da própria espécie, e a população é o novo conceito que se constrói para dar conta de uma dimensão coletiva que até então não havia sido uma problemática no campo dos saberes. A sexopolítica, elaborado por Preciado (2004), é uma visão da dinâmica biopolítica de discursos e tecnologias heteronormalizadoras das identidades de gênero, das práticas sexuais e do próprio corpo. Regulamentar e cercear os papéis sociais à binaridade, à magreza e à heterossexualidade compulsória, únicas formas de vivencias do corpo, de sua expressão e sexualidade. A sexopolítica é uma das formas dominantes da ação biopolítica no capitalismo contemporâneo. Dessa maneira, chegamos ao conceito de heteronormatividade criado por Michael Warner (1991), que vem organizar uma ordem social em que todxs se adequem ao modelo da heterossexualidade, em que a erotização não-heterossexual se invisibilize. Assim se estabelece as concepções como as de normal/anormal, saúde/doença e se delimita os locais sociais, partindo de uma base cultural em que os padrões homem, masculino, hétero, branco e mulher, feminina, hétero, branca são legitimados e valorizados. Tudo e todxs que exacerbam esses padrões são marginalizados e criam suas fissuras para existir no jogo de poder social.

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Assim, as produções da Pornografia Feminista florescem hoje por entre redes culturais e acadêmicas dos estudos feministas e queer. O conceito de pós-pornografia surge como um movimento sexual/social que tem a proposta de combater, convocar e comover tudo ao mesmo tempo. O pós-porno é um movimento insurgente, uma utopia como diz Preciado ainda no “Manifiesto Contrassexual”. Uma utopia barulhenta, que cresce na medida em que cresce o acesso a produção e difusão de mídias nesses últimos 30 anos. Mesmo que nos anos 60-70 já tivessem produções feministas e engajadas na liberação dos padrões masculinos de atuação nos filmes pornográficos, é com as redes de internet e com acesso a câmeras de vídeo e computadores para edição, que o movimento cresce, por possibilitar a manifestação da diversidade sexual. Dessa forma, não se limita apenas a produtos culturais como as pornografias audiovisuais, literatura, fotografia, dentre tantos outros vetores de propagação. A pós-pornografia libera espaço nos corpos e nos modos de desejar, tem a intenção de funcionar como um antídoto às políticas dos desejos sexuais instituídas e desregular o programa sexual coorporativo (corpo e corporação). Preciado trabalha a noção de sexo pontuando através da palavra “sexual” como sinônimo de heterossexualidade patriarcal, e inscrevendo a necessidade de um rompimento nos signos nesse desejo “sexual” da cultura machista. Esse seria, então, um movimento de intervenção e tensionamento nos valores da cultura pornográfica, como afirma a autora. A transformação da sexualidade em uma criação politico-artística faz parte das práticas do movimento pós-pornô, assim como a intensificação das intersecções, borrando e questionando os limites dos pares corpo/natureza, privacidade e espaço público. Reivindicar o corpo como experiência e não como propriedade e unidade estável. O pós-pornô tem como característica o precário. Não só da pobreza econômica, da dificuldade de acesso aos meios de produção ou dos investimentos financeiros externos, mas também o conteúdo com o qual trabalha é precário, o corpo martirizado, marcado e ao mesmo tempo marginalizado, invisibilizado. Essa é a precariedade que o pós-pornô quer dar visibilidade, trazer luz, não como desejo exótico, mas desejo mesmo. É nessa perspectiva subversiva da cultura dominante eurocentrada e heterossexualizada que analiso os filmes Pornôs Feministas por entender que as produções podem ter um potencial político de empoderamento do corpo e transgressão, reapresentando outros valores, outras atitudes sociais, que ressignifiquem as relações e afirmem as diferenças. 81

O curta “Authorithy” aborda em sua narrativa a lesbianidade a partir de dois corpos que estão em uma lógica de fluidez dos gêneros e, dessa forma, há uma dificuldade na apropriação enquanto fetiche do masculino a partir da estética das duas atrizes. Podemos perceber que a masculinização das lésbicas envolvidas na narrativa sexual retira desse envolvimento a figura do masculino e reitera o protagonismo da sexualidade as pessoas que são construídas enquanto mulheres.

Figura 14 – Authority

Monique Wittig, em seu famoso artigo “O pensamento hétero”, de 1980, afirma que “As imagens pornográficas […] constituem um discurso. Este discurso cobre nosso mundo com seus signos, e esse discurso tem um significado: mulheres são dominadas.” (WITTIG,1992, p.2). A categoria “mulher” é questionada em Beauvoir ao sugerir que não se nasce mulher, mas torna-se; ela propõe que ‘mulher’ seja uma construção social, histórica e não natural. A naturalização das mulheres implica acreditar em características inatas e imutáveis que servem para reforçar argumentos em torno da fragilidade, vulnerabilidade, docilidade, passividade dentre outras, que as excluem de domínios que exigem força e competitividade. Wittig endossa essa discussão e vai além afirmando: “uma lésbica não é uma mulher” (WITTIG, 2002: 4), pois, ser mulher é estar inserida no domínio 82

heterossexista e heteronormativo. Seus argumentos podem ser pontuados da seguinte forma: 1) a lesbiana não é uma mulher, pois não está inserida na relação heterossexual; 2) o discurso opressor é o discurso da heterossexualidade; 3) as lesbianas escapam à programação inicial, não se submetendo à hierarquização heterossexista; o lesbianismo é, para autora, algo que se situa além dos binarismos homem e mulher; é um conceito revolucionário. O ensaio põe em discussão o “mito da mulher”: a ideia de natureza, segundo a autora, foi estabelecida para definir as mulheres como “grupo natural”, já que tanto seus corpos como suas mentes viriam a caracterizar algo já dado, preestabelecido. A opressão contra as mulheres consiste na argumentação de que elas já nascem prontas, sua capacidade de procriar as define. A definição é, portanto, presa à categoria de sexo, sua divisão em homens e em mulheres reporta à explicação biológica. Para Wittig (1992), ao ser feita essa conversão, “naturaliza-se a história e se passa a crer que homens e mulheres sempre existiram e sempre existirão do mesmo modo” (WITTIG, 1992: 10-11). Ao fazer essa análise, Wittig e a subcultura lésbica promoveram o debate sobre os corpos, sexualidades e práticas sexuais, questionando a função social e essa patente da dita “mulher”. Essa mesma subcultura promove a apropriação do pornô enquanto prática política e sexual para combater a heteronormatividade branca, elitista e machista. Retomando, agora, “Cabaret Desire”, a construção da bissexualidade da personagem do curta “Two Alexes”. A narrativa se dá a partir do envolvimento da dona de um bar com dois de seus clientes. As duas pessoas cis tem o nome Alex, só que uma é construída no masculino e outra no feminino.

Figura 15 – Two Alexes – Cabaret Desire

A vivência bissexual possui suas peculiaridades e é uma das categorias a serem visibilizadas na análise que começaremos agora. Descobrir-se bissexual pode 83

ser um processo doloroso por conta de vivermos em uma sociedade monossexista. Ao perceber que sente atração por mulheres, homens e pessoas não-binárias, a pessoa que se entende como bi costuma ter a sua identidade deslegitimada e muitas vezes chamadas de “indecisas”. Sentir-se atraído por mais de um gênero não significa ser indeciso, significa apenas que pessoas bi sentem atração de uma forma nãomonossexual. Acontece que pessoas bissexuais não sentem, necessariamente, atração apenas por homem ou mulheres, muitas pessoas bi sentem atração por pessoas, independente de se identificarem com gênero X, Y ou nenhum gênero. A dúvida da existência da bissexualidade apoia-se em uma cultura bifóbica existente em nossa sociedade ocidental. Esse pensamento monossexista, ou seja, aquela em que existe uma crença que todas as pessoas são automaticamente monossexuais, uma orientação monossexual tende a ser mais legítima ou verdadeira do que uma bissexual. Portanto, as perguntas que atravessam as pessoas bi sempre são para interrogar ou botar em prova a sua bissexualidade. Para mulheres bissexuais, há ainda mais uma problemática: o machismo e a lesbofobia. A mulher bissexual carrega o mito da mulher “insatisfeita”, aquela que nunca será saciada e que apenas um ménage poderá satisfazê-la. O machismo mais uma vez vai aparecer como uma forma de oprimir a mulher bissexual; afinal, para o imaginário machista, uma mulher “de bem” deve sentir atração apenas por homens. Além disso, a mulher bi será vista como alguém que vai trair a pessoa com quem se relaciona. Para muitos, a mulher bissexual nunca conseguirá ter um relacionamento com uma pessoa, pois ela terá sempre que se relacionar com mais de uma pessoa para, talvez, se satisfazer. Essa é uma das maiores falácias sobre a bissexualidade, que é o estereótipo da mulher bi infiel e que nunca conseguirá ter um relacionamento monogâmico. E se ela é uma pessoa não-monogâmica, ela está “confirmando” o estereótipo da mulher bi.

Figura 16 – Two Alexes – Cabaret Desire

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Se a sexualidade lésbica já é invisibilizada, quando uma mulher bissexual se relaciona com outra mulher, todo o relacionamento vai ser questionado do início ao fim. E no momento que você volta a se relacionar com um homem, toda sua vivência em relacionamento com mulheres será esquecida e relativizada. Afinal, quando as discussões sobre sexualidade sempre passam por ser gay e lésbica, esquecendo que existem pessoas bissexuais, faz com que mais uma vez os discursos sobre bifobia continuem sendo conservados. Relacionar-se com pessoas de quaisquer identidades de gênero faz com que mulheres bissexuais continuem sendo bissexuais. A bissexualidade existe e não pode ser ignorada quando o assunto é orientação sexual. As pessoas bissexuais existem e resistem.

Figura 17 – Two Alexes – Cabaret Desire

A invisibilização, a fetichização, a invalidação de demandas e sentimentos, a prisão dos estereótipos, entre outros tipos de preconceito e a discriminação fazem parte da rotina das pessoas bissexuais, que sofrem tanto por atitudes discriminatórias de pessoas homossexuais, quanto heterossexuais. A bissexualidade muitas vezes é vista como inválida, imoral ou irrelevante. Outros grupos oprimidos (pessoas negras, trans*, com necessidades especiais, pobres, etc.) não costumam encontrar espaços em que todas as suas necessidades sejam levadas em conta. Então, sempre acabam sofrendo algum tipo de discriminação dependendo do espaço que frequentem. Especialmente a sexualidade das pessoas trans* é envolta de profunda discriminação e preconceito. As pessoas podem ainda se relacionar com quem não se identifica com a 85

binaridade de gênero e podem ser não-binárias, agêneras, ou transitar entre os genêros (entre outras identidades/denominações) e essas pessoas têm também suas próprias demandas. Até agora falamos tanto do se relacionar com outra pessoa e o que isso simboliza na sociedade. O protagonismo do feminino sempre norteando nosso caminho. Mas nessa encruzilhada ainda temos outra opção: a autonomia da sexualidade, a masturbação, o sexo com si mesmx. É nesse ponto que faço a conexão com “Amor com a cidade”. Juliana Dorneles faz sexo com as estruturas do espaço público, mas acima de tudo ela protagoniza o seu prazer ao se tocar e a gozar perante a tela.

Figura 18 – Amor com a Cidade

Ainda hoje, por mais que falem que a mulher tem liberdade sexual, pode fazer o que quer, ela sofre com o medo de ser julgada por suas decisões. Algumas deixam o medo prevalecer nas suas escolhas, medo de ser liberal e sofrer com o machismo que continua a pregar e a bradar que existem mulheres pra transar e mulheres pra casar. As figuras da “santa” e da “puta” são fixadas pelas religiões cristãocêntricas e sedimentadas pela moral estabelecida isso condicionou através dos tempos a mulher cis a fazer sexo pra satisfazer seu parceiro, ou só gostar de sexo se for o típico sexo romântico, feito “com amor”. Mulheres são educadas a não procurar o prazer pelo puro prazer, seja com outra pessoa, ou seja, sozinha. A masturbação continuou sendo

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vista por muitxs como algo errado, feito por mulheres “fáceis” que gostam de sentir prazer, as famosas Biscates ou Piriguetes. O direito sobre o próprio corpo é também o direito de se tocar, de conhecer seus desejos, o que mais lhe dá prazer. Se masturbar tem que ser uma coisa natural, uma escolha, que não se deve ter vergonha disso, uma questão de saúde, de conhecimento e de poder. Ser feminista também é se masturbar. Mas, muito além de questão de saúde, é questão de independência da mulher, de descobrir o que gosta no sexo. Poder guiar o seu prazer. E também é saber que não precisa de alguém pra sentir prazer, é ser dona de suas próprias vontades e realizá-las sozinha. A agência do próprio prazer, da sexualidade e do corpo por mulheres cis continua a ser uma transgressão.

Figura 19 – Amor com a Cidade

Preciado chama de coalizão das multidões queer, a multidão de “anormais” que se unem por afeto, sendo a tomada de voz de tais sujeitos, segundo a autora, “um advento não tanto pós-moderno como pós-humano: uma transformação na produção, na circulação dos discursos nas instituições modernas (da escola à família, passando pelo cinema ou pela arte) e uma mutação dos corpos. (PRECIADO, 2011, p.17). Assim, contribui para pensarmos não apenas outros modos de vida, como também outras estratégias políticas que nos permitam pensar a diferença em toda sua pluralidade, dando vazão às potências criativas da existência dos que, hoje, são considerados abjetos. Tratar sobre a Pornografia Feminista, na qual nos debruçamos aqui, permite investigar misturas e articulações feitas a partir das diferenciações sociais, operação realizada quase sempre nos moldes da paródia. 87

“O riso aqui se refere a um sentido de humor que questiona a seriedade e a normalidade da vida. No momento em que Preciado e Bourcier colocam o riso no centro das narrativas, parecem sustentar que, quando o insulto se transforma em elogio; quando os corpos anômalos advogam normalidade; quando a estética se confunde; quando os corpos mudam sua lógica e exibem a centralidade de partes e órgãos antes menoscabados; então, o riso queer emerge sustentando que o poder que constrói corpos normais é falho, incongruente. O humor surge como atos de percepção que transcendem a realidade da vida ordinária, mostrando, muitas vezes hiperbolicamente, o abalo das re-configurações. Não se trata, portanto, de fugir da realidade, mas de questioná-la, de reinventar e perceber as reinvenções.” (PEREIRA, 2008, p.507)

Contudo, essa paródia vem dessa estrutura social capitalista, cisheteronormativa, branca, que é dada e na qual tentamos essa movimentação das engrenagens a fim de entrarmos em movimento e modificarmos o cenário. Essa ironia costura nas estruturas leva-nos a pensar em uma mímica do dito original para se atingir a mudança de paradigmas. Na obra Couro Imperial, Anne MacClintock faz ecoar a voz de Hommi Bhabha e seu conceito de mímica. O autor entende que os mímicos são obrigados a habitar uma zona do inabitável de ambivalência29 que não lhes garante nem identidade e nem diferença. A mímica então é quem denuncia e evidencia a ficção das estruturas e suas ditas funções. Bhabha se dedica a pensar sobre colonização e colonialidade. Lucy Irigaray aproxima a esfera da mímica do feminino, em que a autora afirma que as pessoas que são construídas como mulheres encenam seus papeis sociais e a heteronormatividade a fim de converter uma subordinação em uma afirmação, um protagonismo. Esta autora sugere a feminilidade, em seu devido contexto, como um disfarce necessário e elas aprendem essa mímica para exercerem uma máscara social buscando a mudança dos paradigmas de gênero. Acredito que o conceito de mímica é potente para pensarmos a pornografia. O pornô é uma celebração hiperbólica e hiper-realista das normas da heterossexualidade. O realismo pornográfico que é uma ficção realista como as outras, uma organização da representação, e não a "realidade" do sexo parece anunciar uma mudança de caminhos. A pornografia tradicional está em plena desconstrução, já que suas funções principais a renaturalização da diferença sexual, o 29

O excesso e o deslizamento que, não apenas contestam o discurso colonial, mas produzem nele um estado de instabilidade e incerteza, através da dupla articulação da semelhança e da ameaça.

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congelamento das identidades de gênero e das práticas sociais são reconfiguradas. Os filmes a serem analizados mais profundamente no terceiro capítulo se apossam dos códigos de representação pornográfica e os desnaturalizam. Elas se tornam agentes de representação pornô, e não mais seus objetos; quando filmam como homens, embaraçam o essencialismo masculinista segundo o qual a pornografia é a expressão naturalmente masculina. Se as mulheres podem filmar pornôs como os homens, invalida-se a oposição entre homens e mulheres, entre os que amam o pornô e os que amam o erotismo. É sobre essa mímica na Pornografia Feminista que vamos nos debruçar no terceiro capítulo.

3 - Corporeidades que gritam e narrativas que pulsam: Authority, Cabaret Desire e Amor com a Cidade. Neste capítulo vamos enveredar pelas narrativas dos filmes “Authority”, “Cabaret Desire” e “Amor com a Cidade”, perceber as estruturas sociais que eles estabelecem e/ou movimentam a fim de reafirmar e/ou borrar as normas estabelecidas na nossa sociedade ocidental no que se refere às diferentes identidades de gênero, orientações sexuais, corporeidades, etnias, colonialidades, entre tantos outros marcadores, tendo como ponto de partida o protagonismo do feminino, em toda a sua multiplicidade. Revelar a partir dessas estruturas as ficções criadas e como podemos pensar outras maneiras de excitar e gozar, ampliando o leque de existências e de práticas sexuais. Debater por meio das imagens feminismos, heteronormatividade, colonialidade, cisnormatividade, etnias, corpos, sexo e tudo mais que os filmes pulsarem. Elas gritam, correm, se esfregam, penetram, suam, contorcem, castigam, gozam. Os corpos, sexualidades e pornografia como espaços de possibilidades, protagonizados pelos femininos e pela diversidade sexuais, o empoderamento econômico e político vindo de suas produções artísticas despudoradas. Nos filmes da Pornografia Feminista, o protagonismo do feminino é extravasado nas telas e estes que compões essa análise são pequenos pedaços do mundo de experimentações e prazeres que a vivência desse gênero do pornô pode proporcionar.

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3.1 – Authority Para iniciarmos, vamos mais a fundo na história e no contexto do curta “Authority”. Esse filme faz parte de uma coletânea sueca de 12 obras intitulada “Dirty Diaries”, produzida por Mia Engberg, em 2009. A ideia da produção veio após Mia Engberg e algumas amigas participarem do Stockholm International Film Festival com o filme “Come Together” em que cada uma das personagens do curta se masturbava e filmava. Este curta recebeu muitas críticas negativas, em que vários homens reclamaram da “qualidade” das atrizes, por não as considerarem tão bonitas e atraentes, por não contemplarem o perfil estético mainstream das atrizes pornôs, por não serem narrativas que tinha o homem e o pau incluídos na lógica do protagonismo do prazer. Engberg, que já havia realizado outras produções já entendidas como feministas, como o “Selma e Sofie”, demarcou ainda mais a necessidade de mais filmes com esse viés a fim de disputar espaço no ramo e no imaginário sexual. Dessa forma, a cineasta apostou na coletânea e pediu auxilio ao Instituto Sueco de Cinema, que liberou inicialmente 500 mil coroas suecas. Isso gerou muita polêmica no país, pois alguns grupos questionavam se o destino dos impostos pagos ao governo da Suécia deveriam ser direcionados para pornografia.

Figura 20 – Capa Dirty Diaries

O processo de criação da coletânea surgiu a partir do convite da cineasta a diversas artistas europeias para que realizassem curtas pornográficos feministas, com forma, conteúdo e estéticas livres e diversas. Muitos projetos foram realizados a partir do telefone celular, já que a motivação das diretoras era de criar outras formas de 90

consumo e excitação com o pornô que não fosse necessariamente comercial. “Dirty Diaries” foi exibido pela primeira vez em uma sala de cinema no dia 3 de setembro de 2009 em um bairro de Estocolmo. Nesta mesma ocasião, o DVD também foi lançado. As sessões estavam sempre lotadas e o interesse do público era evidente, contudo as exibições pararam de acontecer, pois passaram a ser proibidas em alguns lugares. Essa reação política em torno da produção começou a ocorrer e, a partir disso, as artistas decidiram reinvidicar o potencial político-artístico-cultural de suas obras, o consumo delas como necessárias, e construíram um manifesto que alinhavam com as bases do pornô feminista produzido em outras partes do mundo. Esse manifesto30 contém 10 pontos:

1. Bonita do jeito que somos! Que vá para o inferno os padrões doentios de beleza! As mulheres sofrem com a imposição desses padrões que prejudicam sua energia e criatividade. Energia que poderia ser focada em explorar a nossa própria sexualidade ao invés de ser drenada para dietas e cosméticos. Não deixe que as potências comerciais controlem suas necessidades e desejos. 2. Lute por seu direito de estar com tesão! A sexualidade masculina é vista como uma força da natureza que tem de ser satisfeita a todo o custo, enquanto a sexualidade feminina é aceita somente se adaptada às necessidades dos homens. Incorpore o tesão! 3. Uma boa menina é uma menina má! Estamos fartas com o clichê cultural que as mulheres sexualmente ativas e independentes são loucas ou lésbicas. Queremos ver e fazer filmes onde Betty Blue, Ophelia e Thelma & Louise não tem que morrer no final. 4. Destruir o capitalismo e o patriarcado! A indústria pornô é machista, porque vivemos em uma sociedade patriarcal e capitalista. O lucro faz com que as necessidades sexuais e eróticas sejam direcionadas aos homens e as mulheres são exploradas nesse processo. Para lutar contra a pornografia sexista, temos que destruir o capitalismo e o patriarcado. 5. Queremos ser desagradáveis! Aproveite, assuma o comando. Diga NÃO quando quiser, para ser capaz de dizer SIM quando você quiser. 6. O aborto legal e gratuito é um direito humano! Todo mundo tem o direito de controlar o seu próprio corpo. Milhões de mulheres sofrem com a gravidez indesejada

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Tradução de minha autoria.

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e morrem por realizarem abortos ilegais todo ano. Foda-se o direito moral e a pregação para controle de nascimento e das informações sobre sexo. 7. Lutar contra o inimigo real! A censura não pode deliberar sobre a sexualidade. É impossível mudar a imagem da sexualidade feminina se as imagens sexuais em si são um tabu. Não ataque as mulheres que produzem sobre sexo. O combate deve ser ao sexismo que tenta controlar a nossa sexualidade. 8. Seja Queer! Muito do combate ao erotismo tem um caráter homofóbico, que fica ainda mais violento quando relacionado a pessoas trans. Nós não acreditamos que exista luta entre os sexos, mas contra os sexos. Identifique-se com o gênero que deseja e faça amor com quem quiser. A sexualidade é diversa! 9. Use proteção! "Eu não estou dizendo para que você saia e faça, mas se fizer, se cuide antes de jogar tudo para cima”. ( Missy Elliot ) 10. Faça você mesma! Erotismo é bom e nós precisamos dele. Nós realmente acreditamos que é possível inventar uma alternativa para a indústria pornô convencional, fazendo filmes sensuais que nós gostamos. Esses 10 pontos que são listados neste manifesto vem de encontro com o que debatemos no segundo capítulo. Quando falamos da limitação da representação a corpos magros e brancos, a uma estética que não vemos nas ruas e no cotidiano, da velada gordofobia que se reflete em toda mídia e não podia ser diferente na pornografia mainstream, corroboramos com o que o primeiro ponto vem afirmar: “Bonita do jeito que somos! Que vá para o inferno com os padrões doentios de beleza!”. Os princípios 2, 3, 5, 6, 8 e 9 vêm incorporar o protagonismo do feminino. O segundo vem afirmar que o tesão, a excitação e o prazer também são direitos das mulheres e para isso incorporá-lo é transgressor. O tópico 3 traz a cena a sexualidade dessas pessoas construídas no feminino, em que a diversidade de orientações sexuais existem e resistem e mulheres lésbicas e bissexuais tem seu prazer e suas vivências independentes dos estigmas da heteronormatividade. Quando se fala no ponto 6 “Aborto legal e gratuito é um direito humano!” esse manifesto fala sobre o direito ao próprio corpo, em que essas pessoas que tem útero possam ter filhxs quando e se desejarem. Esse ponto vai de encontro a moral cristã e a não-valorização da vida de quem engravida, carga de inferiorização da existência relacionada em especial ao feminino. Esse ponto se aproxima do nono ao discorrer sobre o uso do preservativo, como um direito a vida “Seja queer” vem reinvindicar o não-gênero e questionar a cisnormatividade, negar a biopolítica que se manisfesta principalmente no poder 92

médico e jurídico que limita a apenas duas possibilidades, masculino e feminino, baseada em leituras de genitálias. Deixei para comentar os pontos 4 e 10 juntos pois eles expõem a contradição dos movimentos sociais e ativismos na atuação no sistema capitalista. Ao mesmo tempo em que estas mulheres querem destruir o capitalismo, pois esta forma de organização social comercializa e estabelece hierarquias de valor das vidas e de suas subjetividades, elas querem adentrar a ele. O capitalismo não cria desigualdades sociais, de gênero, de raça, de sexualidade, etc, ele as apropria. O racismo, sexismo, heteronorma e a cisnormatividade operam de modo a criar disputas dentro da própria classe trabalhadora gerando privilégios na competição no mercado de trabalho.

A divisão sexual do trabalho não tem efeito somente no emprego e na participação diferenciada de homens e mulheres no mercado, mas também afetam a forma como essas relações se difundem na sociedade. A responsabilização da afetividade e do trabalho não remunerado para as mulheres se traduz na perpetuação das desigualdades de tratamento entre os gêneros (HIRATA, 2001).

A prática feminista interseccional gera conhecimento a partir da própria experiência em resposta as opressões de identidade de gênero, raça, classe e sexualidade e estas pautas juntas respeitando as diferenças podem fissurar e dessa forma movimentar as estruturas sociais impactantes. Pensando a partir dessa lógica do mercado, essas mulheres justificam o seu desejo pela destruição desse sistema capitalista que hierarquiza e oprime. Contudo essa meta se desenha pelas lentas da utopia da derrubada do sistema sem condições materiais para tal. É dessa maneira que criar uma “alternativa para a indústria pornô convencional, fazendo filmes sensuais que nós gostamos” se faz como outra estratégia para se combater e movimentar paradigmas em uma sociedade precarizada pelas suas hierarquias. Todos esses princípios pulsam desses filmes, ao mesmo tempo em que são pontos de partidas deles. Essa listagem surgiu após essa reação politico-artística, contudo essas ponderações e posições já estavam presentes nas obras dessas autoras. Não dá para afirmar o que surgiu primeiro. Com os princípios políticos das obras entendidos, vamos agora nos aproximar de cada curta para então mergulharmos em Authority. “Skin” é o primeiro curta da coleção onde duas pessoas com seu corpo todo coberto por um tecido que imita a 93

pele, o que a principio “escondia” as genitálias, tira a identificação do “sexo” dos indivíduos em cena e traz apenas a excitação dos corpos envolvidos. Após muitos beijos e amassos, as duas pessoas passam a cortar a roupa e abrir fendas que denunciavam a pele nua, o suor, o pau duro, as lambidas, uma boceta molhada e os corpos com seus pelos arrepiados, músculos tesos, embriagados de tesão. Não há diálogos, apenas uma música ao fundo e os gemidos e suspiros das pessoas em cena. Essa obra foi dirigida por Elin Magnusson. “Fruitcake” vem logo em seguida trazendo vários planos fechados em frutas, plantas e cus que se confundiam nas imagens enquanto eram lambidos, cuspidos, penetrados por dedos, dildos e flores. As imagens são acompanhadas por uma narração que fala sobre satisfação, em tom de sussurro, com gemidos e barulhos que remetem ao sexo e ao prazer. Este curta foi dirigido por Sara Kaaman e Ester Martin Bergsmark. Logo após, vem “Night Time”. Filmando com celular, uma mulher e um homem trocam carícias e beijos numa sala. O desenrolar da cena leva ao sexo oral em ambos e segue para um amasso entre elxs e termina com a mulher gozando com um vibrador. Dirigido por Nelli Roselli. O quarto filme é a única animação desta coleção. “Dildoman” mostra o ambiente de um clube dito para homens em que a cena é protagonizada por duas mulheres transando em cima de uma mesa de sinuca. Os homens em volta delas assistem se masturbando, até que uma das mulheres se levanta e pega um dos homens com as mãos e ele, vai diminuindo de tamanho até se tornar um vibrador. Assim, ela passa a meter o homem na sua boceta até gozar. Com o gozo dela, o homem fica de pau mole e todo ensopado com os fluídos da vagina. Dirigido por Åsa Sandzén. Já “Body Contact” conta a história de duas mulheres filmando a sua experiência na busca de um homem para transar no site de relacionamento sueco Body Contact. “Lex” é quem estabelece uma conversa. No seu desenrolar, a que está sempre em frente a câmera pede para que “Lex” “mostre o que ele tem” na webcam para depois marcar um encontro. O que “Lex” não sabia que ele seria filmado durante o sexo. No outro dia, ele vai até a casa das mulheres e, mesmo relutante, as duas o convence a transar enquanto a segunda mulher filma a experiência do casal. Dirigido por Pella Kågerman. “Red like Cherry” é o sexto curta e traz uma série de tomadas dos corpos, fragmentados, em que os closes não permitiam que as pessoas fossem identificadas ou até mesmo o ambiente em que estavam. Na praia ou no quarto, que são os dois ambientes sugeridos, o movimento é do sexo acontecendo. Dirigido por Tora Martens. Três quartos e seis mulheres vestindo pouca roupa lutam entre si. 94

Mulheres femininas, masculinas, gordas, negras. Esse é o curta “On Your Back Woman!” dirigido por Wolfe Maddam. Um casal de lésbicas recém-separadas mantém contato pelo telefone. Em uma dessas ligações, a saudade bate e elas começam a listar o que gostam uma na outra e transam durante o telefonema. Em quartos separados e se masturbando, elas conseguem criar essa ligação em “Phone Fuck”. Dirigido por Ingrid Ryberg. “Brown Cock” traz a história de uma mulher branca que se masturba com seu dildo negro. Quando ela começa a se penetrar, outra pessoa, que filma, entra em cena com sua mão que passa a realizar os movimentos com o dildo. Em determinado momento, o brinquedo é deixado de lado e o fisting funcking31 começa a acontecer. As duas pessoas comentam sobre a transa e o prazer passa a pulsar no decorrer da conversa. Dirigido por Universal Pussy. O décimo curta “Flasher Girl on tour” é um manifesto, um semi-documentário da artista sueca Joanna Rytel e seu alter ego Flasher Girl, uma mulher reluzente. No filme, ela viaja para Paris onde se masturba em locais públicos, se expondo as pessoas, em especial aos homens, e seus motivos para fazê-lo. Dirigido por Joanna Rytel. “For the Liberation of Men” é o décimo segundo curta e busca uma mistura abstrata de um homem vestido com roupas ditas de mulher se masturbando, e closes do rosto de uma mulher idosa. Dirigido por Jennifer Rainsford. Antes de chegar ao curta que vamos nos aprofundar nas leituras, acredito que vale a pena reconhecer quais debates podemos levantar com essa coletânea a partir de toda a discussão interseccional que fizemos no capítulo 2. Comentarei os que mais chamaram a atenção. “Skin” com personagens que tem seus corpos sem marcas dos gêneros instituídos a partir da pele única que os cobre permite pensar sobre a cisnormatividade e a ficção dos gêneros dentro das práticas sexuais. A dica do nome do episódio também pode sugerir a pele como um órgão sexual e de excitação, independente da genitália. Quando os corpos passam a descobrir-se, nota-se a grande presença dos pelos em ambos, assim como o suor e os fluídos presentes na relação. Uma cena a se destacar desse curta é a penetração do cu do homem durante o sexo heterossexual, que traz o cu como parte do corpo prazerosa e que em nada influi no exercício da sua masculinidade.

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Prática sexual que envolve a inserção da mão ou antebraço na buceta ou no cu. Os praticantes desta atividade indicam que parte do gozo na sua realização está em aprender a apreciar as sensações que são proporcionadas pela distensão do cu, da buceta, ou de ambos.

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Figura 21 – Skin – Dirty Diaries

Em “Fruitcake” a temática do cu aliado ao prazer permanece. Por os planos serem sempre fechados nos elementos que listamos acima é feito um jogo do simbólico com o penetrar e o lambuzar esse buraco que muitas vezes era humano outras tantas não e que essa sequência gera a excitação. Nesse curta os gêneros são dispensados e o prazer está no imaginário que se cria nesse deslocamento do prazer da genitália e dessa forma do masculino e do feminino.

Figura 22 – Fruitcake – Dirty Diaries

Em “Dildoman” o debate que se propõe é a visibilidade e o protagonismo das relações lésbicas cis. Mesmo com a caracterização de um ambiente tradicionalmente machista, em que lésbicas são assunto de fetiche, as duas personagens femininas ao transarem sob a mesa de sinuca não estão ali para serem 96

observadas e para o prazer dos homens cis que a assistem e sim demonstrar o quão desnecessários são aqueles homens para o gozo delas. Isso fica evidente quando um dos personagens masculinos é diminuído e usado como dildo, deslocado totalmente de qualquer protagonismo na cena. A lesbianidade escancarada, não-fetichizada e protagonista de sua sexualidade é a mensagem que esse filme mostra.

Figura 23 – Dildoman – Dirty Diaries

A perspectiva da lesbianidade e o debate da heteronormatividade também é abordada em mais dois episódios “On Your Back Womem” e “Phone Fuck". Com narrativas bastante diferentes, o primeiro curta faz o debate de corpos das mulheres e que não importa o tamanho, a cor, a idade, cis ou trans, femininas ou masculinas, estas mulheres podem e vão se jogar na cama para fazerem o que quiserem. Uma perspectiva da luta pela autonomia do corpo, da subjetividade e de suas práticas sexuais.

Figura 24 – On Your Back Women – Dirty Diaries

O segundo episódio que listei aqui também é abordada a questão da autonomia e lesbianidade aliada à prática da masturbação. Se as duas estão distantes e 97

apenas conectadas pelo telefonema, o conhecimento do corpo e de como sentem prazer a partir do toque na vulva. A masturbação, assim como a sexualidade em âmbito geral, entre as mulheres cis sempre foi um tabu e isso fez com que muitas não entendessem o próprio corpo e protagonizassem o próprio gozo. Este curta, para além de sua narrativa lésbica, mostra que cada uma pode explorar seus corpos com bucetas e ser feliz com elas independente de outra pessoa ou relação.

Figura 25 – Phone Fuck – Dirty Diaries

O último curta que desejo comentar é “For the Liberation of Men” que desafia também a lógica da construção dos gêneros cisnormatividade e levanta a questão geracional ao por em cena o rosto e as mãos de uma pessoa idosa que em nenhum momento se revela, assim como os outros corpos jovens que estão compondo a narrativa. Aos poucos quando percebemos os movimentos visualizamos uma pessoa se masturbando, os trajes dela denunciam simbologias construídas como feminino, como o salto e a meia arrastão azul. As tomadas nos levam a entender que aquele corpo possui um pau e isso desestabiliza a lógica da biopolítica dos gêneros.

Figura 26 – For the liberation of man – Dirty Diaries

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Terminada essa retomada dos debates suscitados pelos filmes que compõem essa coletânea, chegamos ao curta que vamos buscar entender o que suas estruturas simbólicas nos quer dizer.

Figura 27 – Authority – Dirty Diaries

“Authority” é o décimo primeiro curta de Dirty Diaries, produzido em 2009, em Berlim, dirigido por Marit Östberg com duração de 16 minutos. A autora é uma cineasta e artista visual da Suécia. Seu mundo visual foi descrito como intransigente intransigentemente atual e intransigente sexy. Östberg é escritora, jornalista e ativista feminista queer. Ela vê a pornografia como uma forma criativa de trabalhar com política sexual, querendo expandir as possibilidades de estar no mundo. Ela diz: "Quando as mulheres, trans e queers assumirem sua sexualidade em suas próprias mãos, o patriarcado irá perder". Ela faz parte da cena pornô feminista queer na Europa na última década. Seu trabalho tem sido mostrado em Londres, Paris, Hong Kong, Sidney, Berlim, Cidade do México, Sarajevo, Estocolmo, Amsterdã, Viena e muitos outros lugares, segundo seu site32. A narrativa do curta tem a proposta do sexo como um jogo sujo, um belo conto de fadas, uma ameaça, uma promessa. Tudo ao mesmo tempo. A intenção é estar na contradição. Começamos a refletir sobre “Authority” no segundo capítulo a partir da construção da cisgeneridade. O filme se passa em Berlim, com as trajetórias de uma pessoa policial e uma civil. A cisnormatividade marca os filmes pornôs, por recorrer sempre ao sexo consumado nas genitálias. A composição de contextos, de figurino e de práticas geralmente não são questionadas no pornô mainstream. Dessa forma, a Pornografia Feminista vem mexer com os imaginários que são repetidas vezes 32

http://www.maritostberg.com/

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treinadas para o desejo dos corpos padronizados, estereotipados e hipersexualizados. Decidi trabalhar a cisnormatividade neste filme por que ele mantém uma leitura da questionamento da ficção do gênero em várias camadas, começando pelas roupas, indo pelos acessórios e cabelos, que de alguma forma já desmontam a expectativa das performances e práticas sexuais que pairam nesse imaginário tradicional do feminino nas produções pornôs tradicionais. As duas estão com motivações determinadas nas ruas. Enquanto a policial está patrulhando, vigiando e mantendo a ordem, a civil quer deixar seu recado nos muros, subverter. E são essas diferentes vontades que irão fazer as duas trajetórias se cruzarem. A civil encontra o local onde pretende desenrolar sua ação: uma propriedade vazia em Berlim. As duas posturas são tomadas pela nossa sociedade como masculinizadas, com características como agressividade, atitude, a rua como local de fala, a coragem. Isso também acaba por embaralhar as percepções das personagens.

Figura 28 – Authority – Dirty Diaries

*Tradução placa: Propriedade privada. Não entre. Os pais são responsáveis pelos seus filhos.

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Ela começa então a pichar o muro desse grande prédio com palavras que não nos são reveladas nesse primeiro momento. A pichação continua até o instante em que é flagrada pela polícia.

Figura 29 – Authority – Dirty Diaries

E, assim, se inicia uma perseguição que segue para dentro do edifício vazio. A farda impecável, toda ajustada ao corpo, ereta, impecável, a disciplina revelada na roupa. Contrastando com as estampas, cores e roupas justas da outra personagem. Pensando a partir desses símbolos, percebemos o embate das ditas ordem e desordem, do proibido e a potência do ato da transgressão. Neste ponto, gostaria de refletir a partir da lógica da disciplina que entra em conflito com a transgressão a partir da analítica do poder de Foucault. O autor não tem uma teoria geral do poder, a histórica, que pode ser aplicada em qualquer contexto, e sim trabalhar uma analise para dar conta do seu funcionamento local, em campos e discursos específicos e em épocas determinadas. A perspectiva é descritiva, procurando identificar e explicitar os diferentes mecanismos, táticas e estratégias empregadas, bem como a forma de funcionamento, das relações de domínio específico formado pelas relações de poder e determinação dos instrumentos que realizam as ações. A pesquisa de Foucault sobre o poder identifica a existência de uma série de relações de poder na sociedade ocidental que se colocam fora do Estado e que não podem de maneira alguma ser analisadas em termos de soberania, de proibição ou de imposição de uma lei. “(...) entre cada ponto do corpo social, entre homem e mulher, entre membros de uma família, (...) entre cada um que sabe e cada um que não sabe, existem relações de poder” (Foucault, 1980a, p. 187). Dar conta destas relações é uma das preocupações desta analítica, pois sem entendê- las dificilmente se poderá alterar efetivamente o jogo do poder na sociedade. Mas não se negligencia o papel do Estado, 101

apenas este papel é deslocado em relação às análises tradicionais para uma perspectiva relacional. Através desta outra forma, abre-se a possibilidade de compreender melhor a dinâmica fragmentada, móvel e, às vezes contraditória, do poder em funcionamento na sociedade. Assim, dentro desta perspectiva o poder só pode ser concebido como algo que existe em relação, envolvendo forças que se chocam e se contrapõe. Afinal, “o poder é uma relação de forças, ou antes, toda relação de força é uma ‘relação de poder’” (Deleuze, 1986, p. 77). A partir desta ideia temos um dos princípios da analítica do poder: deve se ter sempre em mente o reconhecimento de uma pluralidade de correlações de forças - constitutivas das relações de poder - que atravessam todo o corpo social. “o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como a força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso” (Foucault, 1979a, p. 8)

Figura 30 – Authority – Dirty Diaries

A produção desse discurso de poder é materializado na tentativa da manutenção da ordem pelx policial em detrimento da pichação do prédio abandonado. 102

A polícia representa um dos braços do Estado de manutenção desta noção de poder tradicional e nada relacional. A corrida pelo prédio leva a um salão no piso superior em que a civil consegue segurar x policial. Nesse momento a lógica de quem cerceia e quem é cerceado se desloca e agora a instituição policial passa a estar nas mãos da sociedade civil. A pessoa que está ali com o objetivo de parar a desordem, agora está dominada e submetida às vontades da pichadora, que a pega pelo braço e a amarra em uma cadeira. A imobiliza, a prende. A tensão e o tesão estão soltos no ar e se embaralhando entre as duas. Neste momento, conseguimos ler as marcas do corpo que marcam a personagem policial como pertencente ao gênero que é lido como feminino, de acordo com nossa sociedade. Podemos perceber os seios por debaixo da camisa, que mesmo com o uniforme todo dito masculino, se envidencia através da amarração das cordas. Podemos pensar aqui que a policial e sua performance de gênero poderia levantar a construção da corporeidade de um homem trans, mas acredito que não seja essa a proposta do curta.

Figura 31 – Authority – Dirty Diaries

Talvez a policial saiba o seu próprio destino quando sai em perseguição. Talvez obedeça a vontade da pichadora. Afinal, o jogo sexual entre personagens se estabelece ai com a lei e a ordem furtadas do entorno de seus corpos e elas unidas pelo desejo de punir e ser punida. Talvez tudo o que possa haver entre a policial e a pichadora é um entendimento violento de luxúria. Ou será que tudo o que há é apenas 103

o desejo de ser devidamente fodida? A sexualidade, o tesão e o sexo como instrumentos dessa analítica do poder que se constitui em que a civil irá punir a policial com a transgressão através do gozo na farda, desmantelar o signo da manutenção do sistema disciplinar e da ordem pelo prazer. Após ter amarrado a policial, a civil passa a encará-la, a fim de demonstrar a relação de poder estabelecida naquele salão escuro e vazio, quem agora determina as ações e quando estas serão feitas. A alusão ao cárcere, a policial detida pelas cordas vermelhas em Berlim, a reversão das funções sociais entre as duas. Toda a imponência da farda policial cai por terra com tapas, puxões de cabelo e cusparadas. A violência que é marca da instituição militarizada e que em momentos de guerra, faz das mulheres vítimas bem longe dos campos de batalha com o estupro. Durante guerras e conflitos armados o estupro é frequentemente utilizado como um meio da guerra psicológica, a fim de humilhar o inimigo e minar sua moral. Violações sexuais de guerra são muitas vezes sistemáticas e exaustivas. Esses cenários de guerra e esses índices de violência sexual estão impregnados no cotidiano, em que a cada 4 minutos uma mulher é estuprada no Brasil. A sexualidade e o sexo utilizados como instrumentos e estratégias do poder opressivo as populações constituídas no feminino. Por isso, essa reversão de valores no curta é tão simbólica, pois ela borra com as premissas que a farda traz consigo da violência opressora e da possibilidade do prazer, da trasngressão. A luxúria violenta não machuca como a violência na luxúria, mas excita e neste caso não há estupro ou violações por que se estabelece o jogo a partir do momento em que a policial entra no prédio em sua perseguição a civil. Com grandes semelhanças físicas, as duas estabelecem com o olhar, pois não há diálogo entre elas, o contrato comum a praticantes do BDSM, em que elas entendem estar num local seguro para sentirem prazer para além das genitálias. A amarração se coloca agora, então, como bondage. Os tapas, puxões de cabelo e cusparadas não são mais vistas como agressão e sim são fontes de prazer negociadas entre a dominadora e a dominada, uma relação negociada em bases diferenciadas da opressão em seu sentido tradicional. Quem dá as cartas nesse momento é a civil e agora ela é a ordem que determina o que pode e o que não pode fazer e quem ali quer transgredir esse cenário é a policial, o desejo de descumprir o que a lhe é imposto, invertendo suas posições sociais ainda que sob as vestes da roupa do Estado.

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Figura 31 – Authority – Dirty Diaries

Percebemos, assim, que estamos aqui tratando de sexo lésbico com algumas práticas do BDSM acontecendo. Seguindo o curta, a pichadora empurra a cadeira onde a policial está amarrada para que ela caia no chão. Desempenhando o seu papel de dominadora, no instante em que a policial está no chão, ela pisa no rosto e faz com que a dominada lamba a sua bota em sinal de admiração e de aceite do pacto firmado. Nessas ações do cuspe, da lambida da bota, dos puxões de cabelo, a dominadora escancara a lógica da ordem e dominação que a policial faz parte como submissa no momento em que aceita o discurso do poder que dá prazer.

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Figura 32 – Authority – Dirty Diaries

Ao levantar a cadeira, a dominadora traz à cena um canivete em que ela desce pela policial o passando pela roupa até cortar a calça da na região onde fica a genitália. Ela rasga o tecido e passa a tocar a buceta da policial que já passa a ofegar.

Figura 33 – Authority – Dirty Diaries

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Neste momento, a pichadora se afasta da cadeira e olha para a policial. Começa a trilha no filme neste ponto. As cordas dos peitos são partidas, seguidas das que envolvem as pernas e terminando pelas que prendem as mãos da dominada. A dominadora fuma um cigarro, enquanto a dominada toca as partes que estavam amarradas. Elas passam a se olhar e novamente, agora sem as cordas e a cadeira, a policial se deixa dominar, deita para que a dominadora fique em cima dela e engole as cinzas do seu cigarro.

Figura 34 – Authority – Dirty Diaries

Após isso, as duas passam a se beijar intensamente, com a dominadora sentada sobre o peito da policial. Em determinado instante, ela aproxima a buceta da boca da policial, ainda com calcinha para que ela passe a lamber, chupar e realizar o sexo oral.

Figura 35 – Authority – Dirty Diaries

A partir dessa imagem, quero trazer a discussão sobre a questão dos corpos e suas higienizações. Notamos nesse fragmento que a buceta em cena não está depilada 107

como se encontrar nos filmes pornôs tradicionais do mercado maisntream. Os pelos pubianos aparecem e tem seu lugar na cena partindo dos princípios feministas do “meu corpo, minhas regras” que é uma palavra de ordem que tem como inspiração a segunda onda do feminismo da década de 1960/70, que tinha como principal bandeira “O privado é político, nosso corpo nos pertence”, em que o debate sobre identidades, corporeidades e as práticas sexuais intensificam-se e começam a se quebrar as tríades homem, macho, heterossexual e mulher, fêmea, heterossexual, especialmente após a Revolução Sexual, luta compartilhada com o movimento LGBT e negro. Essa contestação dos padrões estéticos, comportamentais e morais sobre os corpos construídos como femininos fissuram a norma que reitera todos os dias que o direito ao próprio corpo é exclusividade dos homens brancos, cisgêneros e heterossexuais. Os corpos de mulheres cis devem ser magros, depilados ao extremo, que não suam, que não soltam pum, que não ficam com bucetas molhadas quando estão excitadas. Essa resistência à dita limpeza no sexo convocam os corpos do cotidiano e suas não perfeições. A questão aqui também é gerar a identificação e rechaçar a ideia de padrão. Com as chupadas, os gemidos e as movimentações corporais passam a compor a cena efetivamente. Também começam a aparecer os fluidos vaginais que saem a partir da excitação. O sexo oral é interrompido e a policial abre sua camisa. Ela ainda continua por baixo da pichadora, mas agora com os seios a mostra.

Figura 36 – Authority – Dirty Diaries

Nesse instante a trilha do filme para. As duas voltam a se beijar e a dominadora termina de rasgar a calça da policial e as duas passam a se olhar. Enquanto isso, a policial pega seu cassetete e sugere utilizá-lo como um componente 108

para o sexo. Acredito que vale pensarmos sobre a entrada do cassetete: objeto de formato fálico que vem para completar o prazer por meio da penetração.

Figura 37 – Authority – Dirty Diaries

Existem algumas leituras que podemos fazer sobre essa construção. A princípio, podemos pensar que é uma simples alusão ao pênis e por se tratar de uma relação lésbica isso seria introduzir o elemento do masculino, pois a relação destas não finaliza o sexo já que não há penetração no sentido tradicional da palavra. Uma postura machista e lesbofóbica. No entanto, apropriando-se de Beatriz Preciado, segundo a própria, e das contribuições para os estudos queer de teóricos e teóricas como Michel Foucault, Monique Wittig, Teresa De Lauretis, Antonio Negri, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Donna Haraway, J. Halberstam e Judith Butler, assim como da desconstrução Derridiana, propõe em seu Manifiesto contra-sexual, um vulcânico romper do hímen epistemológico, borrar as fronteiras do biologizismo e das ficções de gênero e orientações sexuais, que tem marcado as reflexões sobre a política da sexualidade e do gênero, não só no feminismo como nas teorias do corpo e da performatividade e, consequentemente, na visão da pornografia.

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Com um “humor corrosivo” (como diz Bourcier no prefácio da obra), Preciado denuncia, no Manifiesto contra-sexual, as tecnologias sexuais e sociais que criam a diferenciação sexual e a naturalizam, bem como apresenta práticas contra-sexuais (descritas e ilustradas) que permitem uma nova cultura do sexo/uma resignificação das experiências sexuais33. A proclamação da equivalência de todos os corpos-sujeitos que se comprometem a seguir o contrato contra-sexual, bem como a procura de desconstrução da pretensa “Natureza”, que é usada para legitimar a sujeição de uns corpos a outros, constituem as grandes propostas da nova sociedade contra-sexual, em que o dildo assume um papel de destaque que vamos entender o porquê. A contrasexualidade não é a criação de uma nova natureza, mas o fim da Natureza e, consequentemente, com a ordem que legitima um sistema de opressão, de sujeição de uns corpos a outros corpos. Essa Natureza estabeleceria uma verdade única sobre o sexo, ou em outras palavras, existe uma equação construída e normativa em que Natureza é igual à heterossexualidade e cisnormatividade e, portanto, trata-se de um dispositivo de poder heterocentrado e ciscentrado de normatização e proibição. Além disso, essa Natureza implica no que Butler chamou de a ordem compulsória do sexo/gênero/desejo

em “Problemas

de gênero:

feminismo

e subversão

da

identidade” (2008); três categorias heteronômicas, isto é, já estão definidas e devem ser impostas aos corpos, trata-se de uma obrigação, de verdades estabelecidas sobre materialidade dos órgãos sexuais, gênero e desejo e interligadas nessa ordem. Mas, ao perceber essa heteronomia é que Butler vai abalar esse sistema, a começar por gênero que, segundo ela, “não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, […] seu efeito substantivo é performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero” (2008, p. 48). Logo, por que não falar de performance de gênero ao invés de gênero simplesmente?! Butler mostra que essas identidades de gênero masculino e gênero feminino são tão coercitivas quanto possíveis, são unidades performativas, que são inscritas e mantidas nos corpos e sempre serão vistas como estarem numa ordem das coisas, numa ordem biológica, natural, numa Natureza, quando na verdade existem práticas reguladoras tanto do gênero quanto dos órgãos sexuais e do desejo. E aí é que a contra-sexualidade, em primeiro lugar, mostra esse contrato social heterocentrado, 33

Seguindo a proposta de Teresa de Lauretis (apud Preciado: 2008) de o feminismo ter como possível campo de trabalho a análise das diferentes “tecnologias de género” que operam socialmente produzindo sujeitos de enunciação e ação.

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em que essas performatividades normativas são escritas nos corpos como verdades biológicas, o que vem diretamente das análises de Butler, e analisa criticamente a diferença de gênero e sexo como produto desse contrato social. Em segundo lugar, sugere a troca deste contrato que denominamos Natureza por um contrato contrasexual e por contrato contra-sexual, devemos entender que nele os corpos não se reconhecem mais como homens ou mulheres, mas como “corpos parlantes”, corpos que podem aceitar tantas sexualidades quanto possíveis, onde não há precisão de categorização e enumeração, práticas significantes, que também possibilitam a todas as posições que a história tem determinado como masculinas, femininas ou perversas. Dessa forma, os corpos se reconhecem como esses descritos “corpos parlantes” e reconhecem aos outros corpos também assim. O nome contra-sexualidade, nos alerta x autorx, vem indiretamente de Michel Foucault, que tanto analisou os processos de disciplinar os corpos, os sistemas de investigações das sexualidades possíveis, a criação das categorias de identidade sexual, como há uma normatização de uma e como tornarmos patológicas as outras. Consoante a isso, a autora nos diz que para Foucault que resistir a esse processo de disciplinamento estaria muito mais ligado a formas de poder-saber alternativas a sexualidade moderna do que lutar contra a proibição. “As práticas contra-sexuais […] devem ser compreendidas como tecnologias de resistência, ou em outras palavras, como forma de contra-disciplina sexual” (2002, p. 19). Voltando ao campo que conhecemos como Natureza, condição natural humana etc., campo instituído e mantido, em que a heterossexualidade é normatizada e as outras sexualidades são sempre colocadas no campo da “perversidade”, por tanto se trata de um dispositivo heterocentrado e que por pretender sujeitar corpos a outros corpos, estabelece relações oposicionais como homem/mulher, masculino/feminino, masculinidade/feminilidade, normal/perverso, heterossexualidade/homossexualidade, a contra-sexualidade também seria uma teoria do corpo que se situa fora dessas oposições. A sexualidade é definida, segundo Preciado, na contra-sexualidade, como tecnologia e “os diferentes elementos do sistema sexo/gênero denominados ‘homem’, ‘mulher’, ‘homossexual’, ‘heterossexual’, ‘transexual’, assim como suas práticas e identidades sexuais não são senão máquinas, produtos, instrumentos, aparatos, 111

truques, próteses, redes, aplicações, programas, conexões, fluxos de energia e de informação, interrupção e interruptores, chaves, leis de circulação, fronteiras, constrangimentos, marcas, lógicas, equipamentos, formatos, acidentes, detritos, mecanismos, usos, desvios…” (2002, p. 19, tradução minha), ou seja, são tecnologias outra vez da Natureza, formas de sujeição de corpos a outros corpos e de construção coercitiva de campos, a base de um sistema heterocentrado. O dildo é não uma mera reposição de uma parte ausente, nem uma simples reprodução mimética do pênis, mas sim um mote para a modificação e o desenvolvimento de um órgão vivo – tal como o telefone que, como prótese do ouvido, apura a possibilidade de comunicação com corpos distantes. Para Preciado, o dildo não é apenas um objeto, mas uma operação de deslocalização/desterritorialização do suposto centro orgânico de produção sexual (de desejo, prazer) para um lugar externo ao corpo. Ele frente ao pênis troca as posições imitação/imitado, fazendo com que o pênis pareça ser de fato quem imita o dildo e não contrário. A dildotectônica (dildotectónica) surge nesse contexto e a partir dele como campo de estudo da subversão e plasticidade do sexo, dos órgãos sexuais, do orgasmo. Essa técnica, segundo x autorx, é uma contra-ciência que tem por objetivos estudar a aparição, a formulação e o uso do dildo, localizando as deformações que o este inflige no sistema sexo/gênero. Também, fazer da dildotectonia um ramo prioritário da contra-sexualidade é perceber o corpo como superfície, terreno de deslocamento e ao mesmo tempo de local do dildo. Dessa forma, Preciado propõe uma “citação” ou deslocamento da prótese para as demais partes do corpo, como o braço, as pernas, a cabeça etc.; onde surge a ideia, já mencionada em outros textos, de usar essas partes nas práticas contra-sexuais, por exemplo, parodiando a masturbação no braço, nos dedos. “A dildotectônica se propõe a localizar as tecnologias de resistência (que por extensão chamaremos de ‘dildos’) e os momentos de ruptura da cadeia de produção corpo-prazer-benefício-corpo nas culturas sexuais hetero e queer” (2002, p. 41, tradução minha). Esta reconfiguração dos limites erógenos que o dildo vem introduzir coloca em questão a ideia de que os limites da carne coincidem com os limites do corpo (idem: 71). Uma vez que a prótese não pode ser estabilizada, definida como orgânica ou mecânica ou como corpo ou máquina, vai pertencer por um tempo ao 112

corpo vivo, mas resiste à incorporação definitiva. Como objeto móvel que é possível “deslocar”, desprender e separar do corpo, ou como algo cujo uso é reversível, o dildo ameaça

constantemente

as

oposições

órgão

natural/máquina,

dentro/fora,

passivo/ativo, penetrar/cagar, oferecer/tomar (Preciado, 2002: 70). Confrontada com este pequeno objeto, a totalidade do sistema heterossexual de papéis de “gênero” perde sentido, já que o dildo não é apenas uma reprodução do pênis que, utilizado, entra na ordem heterossexual, mas uma conversão de qualquer espaço como centro; tudo é dildo e, como tal, tudo se torna orifício (idem: 69). Assim, a tecnologia (hetero) sexual que destaca determinadas partes do corpo (sexuaisreprodutoras) para naturalizar e apresentar como exclusivos significantes sexuais e como centros erógenos, em detrimento de qualquer outra parte do corpo, é ameaçada. O corpo já não mais respeita a biopolítica heterossexual sendo reconfigurado, como fala o artigo 11 dos princípios da sexualidade contra-sexual: “a sociedade contrasexual estabelecerá os princípios de uma arquitetura contra-sexual”, em que novos espaços contra-sexuais são criados e a fronteira entre o público e o privado é desconstruída (Preciado, idem: 35). No curta, nos deparamos com a penetração do cu da policial, que inclusive é sugerida por ela mesma com o uso do cassetete. Essa metáfora é potente ao pensarmos o que representa a polícia na sociedade: uma força conservadora, moralista, da ordem, da repressão das transgressões “tomar no cu” e gerar prazer. O ato de foder a policial é foder a simbólica relação de poder estabelecida na sociedade. A polícia como mantenedora da ordem e das estruturas, sempre violadora das populações com a imposição de sua força tem seu simbolismo desmantelado com a comida do cu da policial que demonstra a fragilidade e a entrega ao “inimigo” por meio do prazer que dar o cu pode proporcionar. É positivar também o prazer a partir do cu, uma ressignificação da biopolítica do prazer. E, então, partindo do pensamento de Preciado, publicizando o prazer anal na relação lésbica. A buceta, tão exposta e simbólica nos filmes mainstream como o buraco da penetração e o gozo impossível de ser filmado, é empoderada ao ter o clitóris também aparecendo como fonte de prazer e de excitação. Os grandes e pequenos lábios avantajando-se, o prazer do esfregar no clitóris, os bicos dos seios duros, os gemidos, o revirar dos olhos e a

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buceta molhada. Os dois Cs, clitóris e cu, são evidenciados na forma como a policial sente o seu prazer, que vem inclusive da própria subversão simbólica da farda. Volto aqui também a questão dos pelos corporais. Nota-se que a policial também não se adequa ao padrão da depilação imposto pelo cistema farmacopornográfico34. Não há formato, desenho ou a ausência, os pelos estão ali, evidentes e espalhados pela vagina. A ação acontece em cima de algo que entendemos como um sofá, que não inspira limpeza, afinal se trata de um edifício abandonado.

Figura 38 – Authority – Dirty Diaries

A policial goza. A satisfação da pichadora é notória pela sua feição. As duas voltam a se beijar e sorriem uma para a outra. A policial então se levanta e é ela agora que toma os direcionamentos da transa. A repetição da lógica do prazer, agora sendo direcionada pela policial, que já não é a mesma relação estabelecida na perseguição e na repreensão pela qual deu início a obra. Evocar os conceitos de 34

A farmapornografia constitui, segundo a autora, um novo regime pós-industrial, global e mediátrico, no qual, durante sua materialização, no século XX, a psicologia, a sexologia e endocrinologia estabelecem sua autoridade material, transformando conceitos como o de psiquismo, de libido, de consciência, de feminilidade e masculinidade, heterossexualidade e homossexualidade em realidades tangíveis, em substâncias químicas, moléculas comercializáveis, corpos, biótipos humanos, em bens de troca de gestão por multinacionais farmacêuticas .

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diferença e repetição da reflexão de Deleuze (1968) é importante neste momento para perceber que na medida em que ocorre essa repetição de valores e práticas que buscam cristalizar os comportamentos, sexualidades, gêneros e ao mesmo tempo em que atingem esse ponto liberam a diferença que os desloca e os disfarça, para que o ciclo retorne, mas não mais como antes e dessa forma possa mover a estrutura com a transformação das simbologias. A repetição da ação na pornografia como diferença é uma forma de borrar as fronteiras do binário e da heteronormatividade. A intenção é mover a estrutura que vem já formada pelo pornô tradicional para visibilizar outras vivências sexuais a partir da Pornografia Feminista, em que a diferença escapa ao mesmo tempo da análise estrutural de narrativa fílmica e de sua restituição em outra estrutura definida, para que nesse caso, a diferença não seja “convertida” pelo discurso de poder. Encontrar o objeto X, como conceitua Deleuze, aquele que move a estrutura e a transforma. Neste caso, o objeto X são as práticas sexuais das duas pessoas envolvidas que mobilizam outro imaginário pornográfico e constitui outras imagens de prazer e de gozo. O cinema aqui é o meio pelo qual queremos mover os paradigmas e normas que operam no simbólico e que reflete em como se organiza o imaginário e me todo o capital cultural. Pensar no que não podemos ver nas estruturas é considerar, como aponta Deleuze, que “todo pensamento é um devir, em vez de ser o atributo de um sujeito é a re-apresentação do todo” (DELEUZE,1997:46). O cinema, para o autor, cria conceitos, livra-se das amarras da narração e se torna um pensamento em imagem. Podemos trazer a reapresentação da realidade, buscando existências e resistências geralmente usurpadas pelas estruturas normativas, as potencias dos sujeitos que surgem de personagens ditos não reais, mas que se aproximam da atual realidade social.

Pensar, então, nxs personagens como forças motrizes de

desconstrução do universo simbólico, povoando os imaginários com outras vivências e subjetividades, materializar existências sempre negadas e invisibilizadas pela hetero-branca-cisnormatividade. Para continuar com a visibilidade retornemos ao filme. Beijos quentes e a dominada agora passa a tirar peças de roupas e vira de costas a pichadora. Os beijos e mordidas passeiam pelas costas enquanto a policial algema o pulso da pichadora ao seu.

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Figura 39 – Authority – Dirty Diaries

Ainda vestida na parte de baixo, a pichadora agora está de quatro para a policial, que agora está nua, e passa a mão pela vagina e começa a penetrar com os dedos. As duas interagem, pois enquanto a policial fode a pichadora se masturba. Os sons que predominam na cena são os gemidos e o entrar e sair das mãos da policial que já faz quase um fist fucking35. Consegue-se ver o líquido que sai da vagina, fica entre os dedos e também pinga. O rosto da policial evidencia o prazer de estar fodendo a pichadora. Fazendo uma aproximação com a simbologia que isso tem para a realidade cotidiana, podemos pensar de quantas formas a instituição policial fode com a população que viola as regras do Estado com sua indignação perante as violências sofridas cistemicamente na educação, na saúde, no machismo, na homofobia, dentre tantas outras origens de levantes. A transgressão nesse caso é que a experiência é positivada e o que se leva em conta é o prazer gerado pela relação, são marcas de gozo e não de dor.

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Fist fuck ou fisting ou fist fucking é uma prática sexual que envolve a inserção da mão ou antebraço na vagina ou no ânus. Os praticantes desta atividade indicam que parte do gozo na sua realização está em aprender a apreciar as sensações que são proporcionadas pela distensão do ânus, da vagina ou de ambos.

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Figura 40 – Authority – Dirty Diaries

Elas transam em meio a cuspidas, suor, tapas, bondage, algemas, sujeira, cu e bucetas lubrificadas, sem depilação, gozos. O curta avança na construção de mulheres empoderadas de suas atitudes, a pichação e o policiamento, que se refletem em suas sexualidades e nas práticas sexuais desenvolvidas. Mesmo com a rigidez das posturas corporais, os movimentos mais duros, estes corpos deslizam na medida em que o prazer aflora. Elas não se encaixam na perspectiva de gênero atrelada ao feminino, mas o sexo e o gozo estão alinhados à penetração e as genitálias, mesmo com a tentativa de incorporar elementos do BDSM como o bondage e a dominação, materializada nos tapas, nas cusparadas, nos puxões de cabelo, no engolir das cinzas do cigarro, no lamber das botas, no ameaçar com o canivete que pressupõe prazer ao exercer essas atividades de ambas as partes e dessa maneira caracteriza essa tentativa de fuga da genitalização do gozo. O suor, a lubrificação, os pelos na vagina e o abandono do local onde estão em cena deslocam a necessidade de asseio do sexo e a higienização dos corpos e práticas, além de deslocar o sexo para um ambiente não convencional e que permeia a fantasia. Contudo, levando em conta inclusive o contexto geográfico, são dois corpos magros e brancos, cabelos curtos, disciplinados e loiros. Corpos que fluem na perspectiva de gênero, mas que se ancoram em padrões estéticos legitimados pela branquitude e pela magreza. 117

A mensagem final que “Authority” vem trazer é da transgressão. “Foda-se a polícia” é a frase que a civil escreve no muro no início do curta e que dá o ponto de partida para a trama que apenas nos é revelada no final. As personagens dessa obra geram uma reflexão a partir das estruturas sociais que representam simbolicamente. A policial ter seu cassetete usado como dildo e penetrado no seu cu, desmoraliza a farda e a instituição a fim de desautoriza-la a repressão. E a ressignificação da foda da sociedade civil em que essa relação no curta foi prazerosa e com muito gozo, mas que no cotidiano é bem diferente. Por isso, o filme é rico nas mensagens que traz que para além de uma forma de desconstrução do padrão de feminilidade, de desmistificar as funções sociais ditas do masculino (rua, agressividade, sexo, força), ela traz o empoderamento da vagina, do clitóris e do cu como lugares erógenos de fato e não apenas locais que estão a serviço do gozo dos homens cisgêneros.

Figura 41 – Authority – Dirty Diaries

3.2 Cabaret Desire

Inebriar-se pela boemia e a luxúria que pulsam das pessoas e dos contos eróticos narrados ao anoitecer em um clube onde o desejo e o prazer governam dançarinxs, músicxs, poetas e seu público. Com toda essa atmosfera sensual, Cabaret Desire, filme da diretora Erika Lust, faz uma viagem através de quatro contos de 118

intimidade, amor, paixão e sexo. O conjunto de quatro filmes vem desafiar a heteronormatividade nas relações sexuais que são visualizadas e protagonizadas por mulheres tendo como ponto de partida as práticas sexuais. Dentro das temáticas que vamos debater e refletir estão à bissexualidade, o prazer de pessoas gordas, o protagonismo de uma mãe solteira em sua trajetória, inclusive a sexual e a construção histórico-social do romance e da relação amorosa a partir do sexo casual. Essas estórias tentam se aproximar dxs telespectadorxs e trazer outras vivências que não as idealizadas enquanto normais e padrões. Isso faz dos filmes potentes instrumentos para analisar dispositivos regulatórios que organizam a vida, os gêneros, os corpos e sexualidades. Para começarmos a entender de onde vem esse universo criado pela diretora, vamos conhecer a trajetória dela que vai dar ainda mais sentido para análise de sua produção. Erika Lust é cineasta e pornógrafa independente, nascida em Estocolmo, formada em licenciatura em Ciência Política pela Universidade de Lund, com foco no feminismo. A pretensão de Lust sempre foi forjar um novo conceito de expressão sexual dentro da indústria mainstream de filmes pornôs: a inclusão de vozes femininas, outras estéticas e uma abordagem humanística ao sexo. Com seus estudos, ela percebeu que vozes femininas eram poucas e muito fragilizadas na indústria pornô, pois o gênero se configura como negócio feito por homens e para homens, e ela se propôs, junto de muitas outras que a precederam, fazer essa mudança de perspectiva necessária. No período em que estava na universidade, ela se deparou com o livro “Hard Core: Power, Pleasure and the Frenzy of Visible” de Linda Williams. Este livro faz uma ampla discussão sobre o desenvolvimento da pornografia mainstream desde a conceitualização do termo e esta obra foi muito influente na impressão pessoal de Erika Lust em relação ao gênero também. Afinal, a pornografia faz parte da cultura em que estamos vivendo e as mulheres não podem simplesmente ignorar o pornô, participar e discutir este gênero tão influente realiza deslocamentos inclusive no que é ser mulher, questiona enquanto categoria, como arte e instrumento político. Essa é uma das perspectivas de mudança do pornô feminista de Lust. Em 2000, muda-se para Barcelona. A oportunidade de fazer um curta surgiu em 2004 e Erika transformou suas ideias em algo real. A preocupação com detalhes, situações, fantasias, sugestões, e cenários. O casting, a decoração, as roupas, o estilo, a música, o roteiro, a fotografia: todos seriam elementos-chave para o trabalho. Em 119

“Cabaret Desire”, nota-se a preocupação em criar esse clima de sensualidade e tesão no ar, com a música instrumental, a luz mas baixa e, desde o início da película, as pessoas que vão recepcionar a clientela da casa está se arrumando com seus corpetes, batons vermelhos, camisas entreabertas, o arrumar dos cabelos, o pentear da barba, entre tantos outros rituais que preparam a chegada do público para vivenciar as estórias, sensação que acaba por abarcar x telespectadxr. O espaço cheio de sofás, poltronas, o balcão do bar apresentam possibilidades de estórias e conquistas. As pessoas espalhadas pelo salão trocam olhares, as cenas são capazes de pulsar a tensão sexual que se estabelece entre as personagens. A fotografia e o roteiro do filme dão a pitada especial na produção e criam o clima de bordel que é a proposição deste longa. O primeiro filme da cineasta, “The Good Girl”, foi distribuído gratuitamente na Internet e baixado 2.000.000 vezes nos primeiros meses após o seu lançamento. Com uma resposta satisfatória para sua primeira tentativa, a cineasta se inspirou para criar a sua produtora, Erika Lust Films, em 2005. Desde então, Erika desafia a indústria pornô mainstream a repensar a forma como apresentar a sexualidade e o erotismo, onde ela parte do principio que a pornografia é uma ferramenta de autoconhecimento, educação e lazer. Propõe-se ao rompimento dos estereótipos de representação da mulher e traz o olhar do feminino para essas produções, procurando revelar outras possibilidades e outras performances, e em alguns casos a descaracterização dos gêneros, acabando por entrar na questão da identidade do ser mulher e da reprodução do ser feminino. O pornô feminista cria espaço para realização das fantasias, debate as identidades, os contornos dos corpos e as ideias são formadas a partir dessas vivências sexuais e de excitação assistindo pornô - fazendo e escrevendo sobre a prática, produzindo conhecimento. Potencial arma política em favor do livre uso das sexualidades e das buscas por outras fontes de prazer e saber que desafiam os cânones hegemônicos heterossexuais. Conhecer o próprio corpo e como usa-lo e degusta-lo, entender como divertir-se com seus parceirxs sexuais e que práticas possíveis isso tudo é proposto pela Pornografia Feminista partindo sempre da vivência. Desde então, ela já dirigiu filmes pornôs feministas premiados: Five Hot Stories for Her, Barcelona Sex Project, Life Love Lust, Cabaret Desire e XCONFESSIONS. Sua intenção é sempre unir arte e sexo em uma colaboração com o público. A cineasta também produz textos e já lançou livros como: Good Porn: a Woman’s Guide, The Erotic Bible to Europe, Love Me Like You Hate Me, La Canción de Nora. 120

Figura 42 – Capa DVD Cabaret Desire

Bom, após termos navegado nesse contexto, é hora do longa metragem Cabaret Desire entrar em cena. A narrativa constrói um lugar que a magia da sedução opera a fim de envolver xs presentes. O clima criado pela luz baixa, as roupas dxs contadorxs de estórias, leituras regadas a vinho, uísque entre outras possibilidades fazem pulsar o sentimento de luxúria, próprio de um cabaret, aproximam e relaxam as pessoas presente a fim de que se dispam de (pre)conceitos e possam mergulhar e liberar fantasias sem medo da punição da norma. A Madame recebe e apresenta cada pessoa que chega ao cabaré a alguém que possa te contar uma estórias. Em trocas de fichas, como acontece em cassinos, as pessoas que contam as estórias e contos que evocam as fantasias, o tesão, as vontades e as imaginações. Palavras fluem suavemente como o desejo que, suavemente, invade cada centímetro e cada fenda e pretende levar as pessoas que assistem a também descobrir novas sensações e lugares cheios de prazer. A motivação para esse longa veio da poesia de bordel praticada em alguns espaços em Barcelona. Os ambientes são inspirados nos salões de Paris e New Orleans do final do século 19, onde cortesãs devidamente caracterizadas realizam sessões de leituras de poesia, em público ou em particular. A Poesia de bordel é uma forma de fazer poesias de um jeito inebriante que leva essa arte para além das salas de aula. É mais uma maneira que se encontrou para dar vazões às fantasias e aos desejos 121

ditos proibidos em nossa sociedade a partir da literatura. A poesia de bordel tem a figura da "Madame" que apresenta o elenco rotativo de poetas, figurando como "prostitutas". É central nesta experiência a criação da personagem, que para o poeta é o disfarce e funciona como dispositivo liberando e permitindo que essa forma de arte possa ser um lugar de expressão criativa desinibida em que xs poetas e o público podem se expressar e revelar as suas mais degradantes vontades e expurgar a mais deliciosa imaginação pornográfica. Cada persona opera dentro de um caráter cuidadosamente construído e, tendo isso como princípio, desenvolve as leituras públicas, erupções espontâneas de poesia, e especialmente, como facilitadorxs deste prazer em narrações privadas. Por uma pequena taxa, todas as "prostitutas de poesia" estão disponíveis para materializar as fantasias por meio dos contos e poesias a qualquer momento durante o evento, sua função é liberar o imaginário sensualerótico-pornográfico. A poesia de bordel nada mais é que um cabaret envolvente, que propõe um bar, música, dançarinxs burlescxs, pintorxs e adivinhxs, performances e instalações. Esse tipo de poesia proporciona uma imersão na expressão criativa, desinibida, além de se colocar em processo artístico o que antes era restrito a práticas de relacionamentos íntimos das pessoas. A poesia puta vinda dos bordeis participou nesta peça cinematográfica e os contadores atuaram como as poetas transgressoras agora no Cabaret Desire. Então, percebemos que o filme é composto por quatro curtas que compõe as estórias que povoam uma noite do cabaré. A partir de agora vamos nos debruçar sobre como esses contos iniciam suas fantasias e qual é o enredo de cada curta-metragem. A Madame dá as boas vindas aos presentes e fica feliz em poder proporcionar a cada pessoa uma noite especial cheia de paixão, música ao vivo e leituras eróticas. Ela revela que xs contadorxs de estórias estão ali para que o espectador possa se deleitar e inebriar-se. Que as fantasias mais secretas se tornem realidade.

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Figura 43 – Cabaret Desire

Enquanto a Madame começa o acolhimento do público, se mesclam as imagens de uma performance de um dançarino no polidance. Já existe uma quebra no começo do filme, onde o papel de dançarinx é ocupado por uma pessoa que demonstra a perspectiva masculina e não feminina. O que ocorre geralmente em filmes mainstream é sempre a lógica da exibição do feminino enquanto atrativo para o pulsar do desejo e despertar a excitação e ter a masculinidade ocupando esse lugar de fala logo no início do filme já traz o questionamento dessa ficção dos paéis de gênro que nos é contada desde a gestação. A atração da entrada na casa já mostra que as práticas podem ser outras, mesmo que ainda dentro da perspectiva do binarismo de gênero. A atividade exercida no centro do salão e chamando a atenção de todxs xs presentes é o polidance. A barra faz alusão ao formato fálico, percorrido pelas mãos e pelo corpo do dançarino. Misturando a força, o suor e o gozo, um processo de seduzir e despertar o público e o transar entre a barra e o dançarino. Acredito ser importante nos debruçarmos sobre a construção da masculinidade nesse ponto e o quanto essa abertura pode representar de quebra para nossa narrativa.

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Figura 44 – Cabaret Desire

É preciso uma série de investimentos pedagógicos para fazer desse corpo em cena um exemplo de masculinidade. Assim como refletimos sobre a feminilidade, a trajetória da masculinidade também é traçada desde o nascimento com uma série de contratos firmados a fim de produzir e manter esse conceito de masculinidade. A declaração “é um menino”, mesmo antes do nascimento, marca os caminhos esperados para este corpo que é apenas uma promessa em desenvolvimento. Ao nascer, esse bebê será vestido e investido com tudo que seja associado à masculinidade, como cores, modelos de roupas e comportamentos. Já criança, é esperado que escolha brincadeiras associadas à atividade física, força e agressividade. Na juventude deve buscar realizar seus desejos sexuais com o maior número de mulheres possíveis, para assim ascender a um grau invejável da masculinidade heterossexual. Além de escolher determinadas profissões que possam propiciar a manutenção da expectativa de se tornar um chefe de família. Uma vez produzida, a masculinidade e virilidade se faz parecer natural, associada ao sexo. Assim, de todo homem espera-se que ele seja macho. Mas o comportamento viril é produzido por todo esse roteiro pedagógico. Apesar de não ser natural, a masculinidade, assim como a feminilidade, são automáticas e isso é estabelecido no inconsciente cotidianamente e isso nos revela que os gêneros são encenações treinadas e disciplinadas pela norma, são performances aprendidas. Essa pedagogia da masculinidade permite que Butler diga que uma mulher masculina não 124

está imitando o homem heterossexual, uma vez que a masculinidade do homem não é natural nem original, mas que ambos são cópias, sem original. Jack Halberstam em seu livro “Masculinidad feminina” argumenta em seu primeiro capítulo a possibilidade de a masculinidade existir, ou como afirma Butler, ser performada, para além do corpo do homem cis. O autor traz o conceito de masculinidade feminina que rompe com as expectativas e retira a feminilidade e a masculinidade de “seus lugares”, indicando a possibilidade de um leque muito grande de maneiras de experienciar os gêneros. Halberstam nomeia a masculinidade do homem branco, burguês e heterossexual não como “hegemônica”, mas sim como “dominante”, e as masculinidades possíveis como “alternativas”. Isso quer dizer que estas outras masculinidades não tem a vontade de tomar a masculinidade dominante para si, não querem reivindicá-la enquanto poder e privilégio, mas sim para proporem, com a força da performance, possibilidades outras, não cobiçando os privilégios de dominação próprios do patriarca. Essa masculinidade, a dominante, nada mais é do que exatamente um modelo dominante, cuja genealogia pode ser apontada na história, portanto, não tendo nada de natural ou legítimo. O que Halberstan propõe é a masculinidade masculina torna-se inteligível a partir do padrão do corpo do homem branco de classe média. Os desvios são caracterizados por todas as outras performatividades que fogem desse perfil, como as masculinidades excessivas que são localizadas sobre os corpos de homens e mulheres negras, latinas e latinos e/ou os corpos das classes trabalhadoras. Outra caracterização, mas agora de masculinidade insuficiente é muitas vezes associados aos corpos dos asiáticos ou de pessoas de classe mais abastada. Esses estereótipos de masculinidade são construções que marcam o diferente e mostra o processo pelo qual a masculinidade torna-se dominante no campo da masculinidade da classe média branca. É esse questionamento da masculinidade dominante que se inicia “Cabaret Desire” e a performance de polidance com o dançarino. Provocar possibilidades de performances, as masculinidades alternativas, outras leituras de desejos e formas de prazer a partir do corpo do homem cis também é uma problemática levantada por essa abertura. Terminada a apresentação, a Madame pede que as pessoas aproveitem a noite e escolham suas estórias e suas vivências da noite. Nos encaminhamos, assim, para a primeira narrativa. Uma das contadoras, com roupas e andar tidos como mais masculinos, direciona seu olhar desejoso a uma das mulheres presentes. Ela se senta e 125

pergunta se é a primeira vez da cliente ali e se ela deseja ouvir uma estória. Um possível flerte, várias insinuações. A ficha é paga e ela começa a leitura de “Two Alexes”.

Figura 45 – Cabaret Desire

Neste conto, a loira que está sentada no sofá e que requisita a leitura é quem protagoniza o enredo. O ambiente se organiza a partir da lógica da poesia de bordel e a cliente paga com suas fichas pela estória a ser contada. Uma partitura é aberta e a poesia é encontrada em meio às notas musicais. Duas mulheres, femininas, que flertam e introduzem a narrativa bissexual com o protagonismo do feminino. O curta tem início com o questionamento em torno das escolhas: “Estou cansada de ter que me definir. Doce ou salgado, preto ou branco, amigo ou amante, homem ou mulher, dominantes ou submissos, santa ou prostituta... Foda-se tudo que deve ser rotulado e classificado.”.

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Figura 45 – Two Alexes - Cabaret Desire

Uma mulher, cisgênera, loira, branca e gorda (dada à ditadura da magreza, contudo o padrão corporal da atriz não está tão à margem) é a nossa personagem. Ela possui um bar aconchegante em algum lugar de Barcelona e que vive cheio de pessoas interessantes. Das suas experiências, ela recorta duas noites distintas em especial em que conheceu duas pessoas diferentes, mas com nomes iguais. Alex era o nome de um homem moreno, com traços árabes, musculoso e bem vestido. Mas era Alex também o nome de uma mulher também morena, de olhos claros, magra e muito charmosa. Foi na última primavera que as duas Alex apareceram. Nossa protagonista afirma que não tem o costume de se envolver com clientes do seu bar, mas essas duas pessoas a excitaram e então ela foi em frente. Ela se apresentou e serviu a sua especialidade nos drinks. Muita conversa e risada, o bar vai se esvaziando, até que ele se fecha apenas como nossa protagonista e Alex, isso nas duas ocasiões. A atitude da loira demonstra o empoderamento de sua sexualidade, da autonomia do seu corpo e sua subjetividade no sentido de escolher se relacionar sexualmente e/ou afetivamente com as pessoas, e no caso ela se relaciona com os dois gêneros estruturalmente disponíveis na nossa sociedade. Além de visibilizar a vontade e o desejo em sua narrativa, traz sua bissexualidade como mais uma das possibilidades de vivência e de prazer. Então elxs trocam telefones, e-mails, redes sociais na garantia que esses encontros iriam durar mais que aquele momento em seu bar. A noite acaba e eles se despedem. Essa parte da narrativa pode dar a entender uma valorização da protagonista por não ter transado na primeira noite independente de ser a ou o Alex. Um pensamento machista e moralista que entremeia uma trama que está sendo contada de um cabaré soa no mínimo incoerente e vem por em cheque um dos questionamentos do início do filme: santa ou puta? Essa binareidade vem dividir e 127

enrijecer simbolicamente as possibilidades de manifestação do feminino entre as mulheres para casar e as que são para se divertir. A moralidade em torno da figura da santa, que é aquela que corresponde à moralidade cristã de mulher cis pura e casta, que é quem respeita os valores da família conservadora heteronormativa e corresponde ao estereótipo de mãe, dona de casa e cuidadosa com os filhos. A puta representa tudo que o feminino não pode ser e não pode representar. São mulheres que possuem desejo, que são autônomas na sua subjetividade e do seu corpo, que protagonizam suas narrativas no trabalho, em casa, no sexo e nas possibilidades de exercício da sua sexualidade. A vida sexual das mulheres é o elemento mais passível de julgamentos e o principal fator que a faz ser categorizada entre “pra casar” ou “só pra pegar”. Mulheres cis que já tiveram muitxs parceirxs sexuais é vista com maus olhos, enquanto o mesmo não é tão comum quando se trata da masculinidade. A regra é clara, dar no primeiro encontro? Não é pra casar. Vamos explorar mais essa dualidade construída quando estivermos debatendo o curta “Amor com a cidade”. Dessa forma, se faz incoerente uma representação moralizante da nossa protagonista que entende ser melhor deixar o sexo para um segundo encontro, com a intenção de se valorizar. O discurso feminista constrói as mulheres no sentido de que todas devem ser respeitadas independente de qualquer norma e isso diz respeito as roupas, a sexualidade, a corporeidade, o comportamento e suas vivências. O combate ao machismo e ao patriarcado se faz cotidianamente através de práticas autônomas e empoderadoras do feminino.

Figura 46 – Two Alexes - Cabaret Desire

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O segundo encontro então acontece agora à luz do dia e ela sem a preocupação do trabalho. As duas narrativas dos dois encontros continuam a se mesclar a fim de evidenciar que não existe preferência para a nossa protagonista que nos coloca sua bissexualidade. A materialidade dos corpos não é primordial para a decisão da loira. Ela mantém os mesmos rituais de sedução, os olhares trocados, o oferecer do drink, a conversa deliberadamente sensual. Mesmas ou parecidas roupas, situações e cenários. Ela dá a entender que tem vontade de investir nas duas relações e curtir tudo que cada uma pode ter de bom. O seu prazer e suas vontades são compartilhados com as pessoas por quem ela sente o tesão e isso independe do gênero em que esta foi construído.

Figura 47 – Two Alexes - Cabaret Desire

Neste ponto, a narrativa é cortada para a escadaria do prédio em que nossa protagonista sobe ora com o Alex e ora com a Alex. É o terceiro encontro e uma intimidade já é demonstrada pela forma que os casais se tocam e se pegam. O clima construído é de romance, paixão e de envolvimento entre elxs, mas também de desejo e tesão. Essa associação de proximidade, sexo e envolvimento é reafirmada desde os folhetins e novelas do século XIX, onde as publicações detalhavam o conflito de mocinhas e suas paixões, seus desejos proibidos e seus romances quase impossíveis. A luta pelo relacionamento sempre como motivação das narrativas, o amor romântico é associado às histórias e as vivências relacionadas ao feminino e o envolvimento 129

afetivo dá o respaldo ao sexo. Essa formatação de relacionamento é inicialmente formada nesta estória e, mesmo que a protagonista desenvolva com duas pessoas diferentes e isso desafie a lógica heteronormativa, ela cede ao modelo de amor legitimado socialmente. O amor romântico vendido em toda sociedade ocidental é um mito. Um produto da imaginação coletiva, sem desenvolvimento científico ou racional e que para nós é profundamente real. Sentimos esse amor e todas as suas consequências, como o ciúme e a posse. Note que o amor romântico é extremamente dependente e exclusivo, colocando cercas em nossos sentimentos e emoções. E apontando uma série de regras que estruturam relacionamentos tradicionais e conservadores, muitas vezes machistas. O amor romântico é aperfeiçoado, recontado e redimensionado com o passar dos anos, fortalecendo cada vez mais seu significado coletivo. Pensando em figuras do feminino e sua relação com o amor encontramos Afrodite, que dentre as Deusas Gregas era a que mais valorizava o amor. A própria tem como filho Eros, o Deus do Amor. Porém, é fácil perceber que Afrodite não aprecia o amor romântico idealizado, ela deseja é ser amada. Temos essa Afrodite luxuriosa num passado feminino. Contudo, pensando no formato grego, em que o homem não podia permitir a criação do vínculo afetivo com as mulheres até os moldes do amor romântico tradicional que idealiza x outrx ao nível divino cristaliza as possibilidades de manifestações do amor. E na atualidade, temos uma série de mulheres reprimidas em relação a seus instintos. O amor romântico parece ser uma prisão para todas as pessoas. É como ficção que o amor se faz possível. Ou ainda, amar é um tipo de auto-engano em que nos fazemos amáveis, fingindo ter e dar o que não temos e procurando seduzir o outro para que não repare no que nos falta mas, ainda assim, se ofereça a nos completar. Este outro que amamos, nós o revestimos de todas as qualidades necessárias a nós, toda a perfeição que supomos. Ficamos a esperar que alguém nos ame e, nesse amor, recuperar um estado de completude que nunca existiu, mas que permanece, imagem ideal, em nós. Obviamente o impossível é algo que não pode ser realizado por muito tempo, mesmo como ficção. Sabemos que o amor é algo construído socialmente, que as formas de se relacionar afetivo/sexualmente foram muito diferentes em várias organizações sociais. Assim, tendo a noção de que é algo passível de transformação, entende-se que as práticas afetivas se estabelecem de acordo com a organização social não hierárquica, horizontal e livre de opressão. Ao negar o modelo monogâmico e heteronormativo, 130

que é base do capitalismo e do patriarcado, abrimos novas possibilidades que muitas vezes se traduzem em relações abertas, não-monogâmicas ou poliamoristas, nas quais não existe um contrato de exclusividade das práticas sexuais e afetivas fechado entre xs parceirxs. Nossa própria forma de organização social é fundada no modelo do casal heterossexual burguês que ocupa uma propriedade privada fixa e garante as próximas gerações através da herança. Esse conceito de família como núcleo central de toda a sociedade já é um desafio e tanto a ser enfrentado, pois somos diariamente pressionadxs com o fantasma da marginalização caso não aceitemos o modelo vigente, convencidxs de que há uma idade limite para constituir tal núcleo sólido e que, se não o fizermos a tempo, temos um amargo destino de solidão e abandono pela frente. Acabamos psicologicamente frágeis diante de tamanha estrutura que nos esmaga, que é metodicamente pensada para nos empurrar na direção das relações monogâmicas. A jornada de trabalho diária exaustiva, a fragilidade das relações humanas em geral em um contexto de extrema competitividade, a tendência liberal da individualização, tudo colabora para que a maioria das pessoas ainda se encerre no refúgio particular do casal e idealize o amor romântico como um porto seguro emocional em uma realidade caótica. Ao tentar romper com a instituição do casamento, nos deparamos com uma sociedade que não está pronta para acolher novas maneiras de se relacionar, que torna nosso tempo e espaço para desenvolver mais relações com mais qualidade muito escasso, que nos incentiva a oferecer nossa dedicação a uma única pessoa e a projetar nossas necessidades nela – ou, no outro extremo, a nos relacionar com várias pessoas de forma extremamente superficial. Para a classe trabalhadora, a pressão para a relação de casamento é ainda maior por uma questão de sobrevivência econômica. E, considerando o fenômeno das famílias monoparentais na periferia, onde os homens abandonam o núcleo em busca de liberdade e deixam toda a responsabilidade familiar para as mulheres, chegamos ao outro fator que freia nossos anseios por relações mais verdadeiras: o sexismo. O amor não é um discurso sobre seu fim, mas sobre reinvenção. A brecha possível é o espaço da criação. É na narrativa que dispomos a construir sobre ele, não mais no campo da perfeição, mas no entrecruzamento entre corpo e linguagem, que ele opera. É permitir-se ser narrador e personagem, sujeito e objeto do amor. É importante não cair na armadilha de substituir uma idealização do amor romântico por uma idealização do amor livre enquanto a incrível solução para os problemas de 131

relacionamentos. Não vale a pena pintar o amor livre com toda a sua poesia e não reconhecê-lo como parte da estrutura opressora, como se fosse possível ignorar todas as normas, regulações e disciplinas desde que nascemos, diariamente. Acredito que é preciso pautar e construir o amor livre urgentemente, mas sem essa pretensão revolucionária que parece brotar de egos gigantescos que se julgam libertxs de todas as amarras – aquelas mesmas que lhes garantem, muitas vezes, uma posição privilegiada – e ainda criam novos formatos dominantes. Qualquer proposta de relação, no nosso contexto atual, é incerta e vulnerável a uma série de problemas, ainda que estejamos lutando contra um modelo que concentra toda a opressão e o aprisionamento.

Figura 48 – Two Alexes - Cabaret Desire

Ao adentrar o apartamento, o tesão e o desejo vão junto para a cena. Os corpos se apertam pelas nas paredes, as roupas passam a cair ao chão, não esperam chegar até a cama. “Dois amores, dois sabores, dois cheiros.”. Os amassos já espalham as pessoas inundadas de tesão pelo sofá, as mãos já deslizam pelos corpos, os apertos, beijos mais apimentados.

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Figura 49 – Two Alexes - Cabaret Desire

Os sutiãs são desabotoados e as calças arrancadas. Nossa protagonista se enrosca, chupa, lambe, agarra, deseja, esfrega, sente. Em ambos os casos, elxs acabam chegando até a cama. Enquanto no Alex ela chupa o pau até ficar duro, com a Alex ela chega com uma cinta-pau rosa para que as duas possam usar. Nesse momento denota-se a construção fílmica da simbologia do rosa no dildo na tentativa de reafirmar as ditas características femininas mesmo numa transa lésbica. As duas reproduzem a lógica heteronormativa onde existe uma pessoa ativa e outra passiva, em que isso é significado pela presença do dildo e da penetração. O sexo genitalizado, porém transgressor pensando que mulheres cis estão transando e gozando, protagonizando suas práticas sexuais e possibilidades corporais, sem a tão “necessária” presença da figura do masculino requisitada pela heteronorma. Contudo, como já debatemos sobre isso em “Authority”, ao mesmo tempo que o prazer ainda fica relacionado a penetração, o dildo é uma ressignificação da prática sexual que desloca a significância da autenticidade do prazer, o processo de destruição da ordem heterocêntrica do pênis. Apesar da operação de deslocalização/des-territorialização do suposto centro orgânico de produção sexual (de desejo, prazer), o sexo continua mantendo a noção de prazer e gozo na penetração vaginal, mesmo sabendo que existem outras partes tão ou mais erógenas.

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Figura 50 – Two Alexes - Cabaret Desire

Outro ponto a demandar atenção é a higienização dos corpos. Quase sem pelos, suor não aparece, os fluidos da buceta ou do pau são invisibilizados, as unhas das duas ditas mulheres estão feitas e pintadas. Os corpos dxs Alexes estão normatizados nos padrões de magreza e a branquitude domina o filme em todo o seu elenco. Os corpos representados não são marginalizados e ainda são corpos que importam, parafraseando Butler, pois estes, apesar de levantar o questionamento da sexualidade a partir da bissexualidade e a não-monogamia da protagonista, estas pessoas ainda tem seus representações dentro do imaginário comum, mainstream de quem pode sentir desejo e de quem pode ser desejado. São pessoas que é legitimado a possibilidade do poliamor, pois são pessoas com condições de classe e que não são negras e isso demonstra que não existe uma relação de racismo em relação a estas pessoas. Mesmo com o corpo fora dos padrões da protagonista, a lógica da limpeza continua presente e isso a torna legítima. As duas relações, mesmo que vislumbrada a partir do sexo, são romantizadas nos seus pequenos detalhes. Isso ainda sem falar na herança do pornô mainstream das relações lésbicas que não transmitem o prazer mais próximo do cotidiano de tantas mulheres lésbicas e bissexuais e que as caretas de prazer ficam evidentes. Já transa heterossexual se resume a penetração e a forma como o Alex penetra a nossa protagonista. Sem dúvida, o roteiro, direção de arte e trilha passam por uma apuração muito maior de qualidade e tornam o filme bonito, contudo acredito que temos que pensar na potência da desconstrução sobre as funções 134

de gêneros. Por um lado, entendo que essa possibilidade é um tanto frustrada e continua colonizando os corpos e marcando suas normas, por exemplo, quando prestamos atenção nas cenas que aproximam as práticas sexuais a lógica heteronormativa nas duas relações que a protagonista estabelece.

Nas duas, o

esquema do sexo que desagua o prazer na penetração e a não exploração do corpo no sentido da ampliação das zonas erógenas, os corpos higienizados, mantem ainda o pé no imaginário pornográfico capilarizado pelo pornô mainstream. Porém em ambas as situações a nossa protagonista se envolve e transa com xs Alex com o mesmo desejo, gozando e bancando suas vontades independente da heterossexualidade compulsória, visibilizando a sua bissexualidade e questionando a ordem de que a sexualidade do feminino não pode ser autônoma e dona de si. Outro ponto que se faz transgressor é a presença de um corpo que não segue a risca o padrão estético da magreza, onde, mesmo que de maneira suave, é visualizado um corpo com mais curvas e volume corporal. É de extrema importância que o prazer de corpos não normativos estejam presentes e vivenciando o sexo como uma possibilidade sempre possível.

Figura 51 – Two Alexes - Cabaret Desire

O conto “Two Alexes” termina com os questionamentos dos amantes ao encontrarem vestígios de outra pessoa. Enquanto o Alex pergunta sobre a cinta, a Alex nota a diferença no jeito dela. Podemos pensar que o homem cis está mais preocupado se a nossa loira está transando com mais alguém, onde sua masculinidade é posta em cheque ao pensar que ele não esteja satisfazendo sexualmente aquela 135

mulher e que por isso ela esteja procurando outro homem para se sentir plena nos seus desejos e vontades. Enquanto isso, a mulher cis com quem a protagonista se relaciona está mais preocupada com a questão emocional da relação, se a loira tem algum envolvimento além do que está se desenrolando com ela. Isso demonstra mais uma reafirmação dos estereótipos de gênero cristalizados no imaginário social em que o masculino é associado à virilidade e ao sexo e o feminino ao sentimental e emotivo. Os questionamentos passam a ficar insuportáveis e nossa protagonista coloca xs Alexes frente a frente e dessa forma acaba-se todas as relações. Nenhum dxs envolvidxs entende como possível a manutenção da relação não-monogâmica e o questionamento sobre a forma desses amores tem seu final sem o apresentar dessa possibilidade de outra maneira de se relacionar. Nem santa e nem puta, mas ficou raso o debate sobre monogamia que o curta no final tenta propor. Ela, então, escolhe se relacionar com outro Alex: seu cachorro.

Figura 52 – Two Alexes - Cabaret Desire

Então voltamos ao salão do cabaré. Muitas pessoas estão ouvindo suas estórias e a imaginação pornográfica pulsa no ambiente. Os olhos atentos e fixos de quem ouve, pelo salão se escuta as vozes dxs contadorxs enquanto algumas pessoas ainda circulam e trocam olhares.

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Figura 53 – Cabaret Desire

Entra em cena então um casal que se dirige a um contador de estórias. Sentado em uma espécie de bangalô ele encara o homem e a mulher que o interpelam ao mesmo tempo que o casal pede para que lhes conte uma estória. A negociação das fichas é concretizada, eles se apresentam e o homem começa a narração.

. Figura 54 – Cabaret Desire

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“Ninguém, homem ou mulher, já fodeu com a minha mãe. Ela era a mulher mais progressiva, refinada, libertina e sensual que alguém pode já ter visto. Ela era uma verdadeira revolucionária, tudo sobre ela, da forma como se vestia, as suas pinturas, e a sua decisão de se tornar mãe solteira ia contra a cultura comum, e ela sabia disso.”. Esse é o início do curta “My Mother”, que vai discutir a ambiguidade e o entre-lugar do discurso da filiação e da subversão da figura da mãe. A narração que abre o filme seria a descrição do filho da mãe que ele admira e despe com seus comentários sobre a vida e a subjetividade da mulher em questão. As imagens vão materializando e contextualizando a protagonista. Uma mulher jovem, magra, branca, loira, de classe social abastada, que tem a pintura como profissão e é mãe solteira. A estória começa em seu ateliê, onde sua nudez é em certa medida velada pelo hobby preto sob a pele branca, as unhas vermelhas evidenciadas ao degustar o chá e ao passar o batom da mesma cor na boca em frente ao espelho. Nota-se que em nenhum momento de fato sua identidade é revelada, apenas objetos e detalhes que criam uma potência de imaginação, fantasia e sensualidade daquela mulher. Tirando do altar e da divindade a figura da mãe e a trazendo para habitar, mesmo que por instantes, a figura da puta. Esse fluxo das identidades e das representações, o entre-lugar de filiação e subversão, evidencia a ficção que é criada em torno da identidade da mãe e mostra que estas são instáveis e que limitar a apenas um estereótipo é falacioso. Maneira interessante de borrar o paradigma cristãocêntrico de santa e puta. A divindade da figura da mãe é quebrada pela sexualidade da puta, que denuncia uma outra possibilidade de maternidade.

Figura 55 – Cabaret Desire

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A narração segue e os elogios de mulher forte e decidida dão lugar agora aos segredos que essa mulher possui. O filho agora afirma: “minha vida nunca foi como a de meus amigos. Nunca conheci o meu pai e minha mãe sempre foi muito discreta e de poucas palavras. Ela é uma pessoa que tinha porque ficar calada. De fato, a vida dela dependia dessa habilidade de ser manter com a boca fechada.”. Nesse momento, a mãe aparece em cena toda vestida com uma roupa preta de corpo inteiro, calçando suas botas pretas e um capuz que deixa apenas a boca e os olhos à mostra. Ela caminha saindo do seu prédio e logo aparece entrando em um quintal, com cuidado e não querendo ser vista. Uma abordagem que não deseja ser percebida e nem sentida. A narração a delata, ela sobrevive sendo ladra. Mas não ladra de bancos ou de objetos valiosos, ela é ladra de artes e vive da venda desses objetos que rouba. Ela chega até a porta da casa, observa se alguém está em casa e resolve adentrar. Ela demonstra ter técnica e arromba a fechadura sem estardalhaço. “Não há nada que ela não possa encontrar e sua inteligência e seu olhar treinado pela história da arte a faz a melhor.” (trecho narração). A fala do filho retrata a mãe como uma pessoa sedutora e que consegue persuadir e conseguir o que quer e não ser pega pelas autoridades, mesmo todxs sabendo que ela atua dessa maneira. A mulher anda pela casa, avalia, porém não pega objetos que se mostram interessantes. “Mas existe uma das suas aventuras que ela considera uma das melhores. Ela chama de o melhor trabalho dela. E é engraçado por que nunca ficou exato o que ela roubou aquele dia”. Parecia que ela procurava outra coisa neste dia.

Figura 56 – My Mother - Cabaret Desire

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Ainda passando de um cômodo para outro da casa, ela chega à sala e se depara com um homem dormindo no sofá. Parece que finalmente ela encontrou o que procurava. Ela se aproxima aos poucos até chegar perto do homem e, antes que ele acordasse de fato, ela o entorpece com seu lenço preto a fim de domina-lo facilmente. Sua motivação ao invadir a casa vai se desnudando quando nos deparamos com a cena do escritório em que o homem está amarrado e amordaçado apenas de cueca em uma de suas poltronas. Ele acorda, vê a mulher, percebe que está imobilizado e passar a gritar. Depois de resistir por alguns momentos, o homem acaba por tentar entender a intenção da mulher misteriosa.

Figura 57 – My Mother - Cabaret Desire

O jogo de sedução e excitação se explicita e toma conta do ambiente. O homem retratado no curta não segue exatamente os padrões de beleza ditados pela sociedade. Demonstra ser um homem de meia idade, já com cabelos grisalhos e entradas, branco e bastante magro. Não corresponde ao modelo de virilidade e força que é requisitado dos atores pornôs ao mesmo tempo em que ainda se mostra apto ao desejo da mulher misteriosa. A ladra então passa a percorre o corpo da dita vitima com seus lábios vermelhos, o beijando. Então ela retira de sua bota uma espécie de lâmina redonda e vai deslizando pelo corpo do homem. Ela deixa a lâmina sobre a escrivaninha e volta para perto dele agora com uma tesoura em mãos. Ela o encara manuseando a tesoura e a tensão chega ao limite quando ela começa a cortar a cueca.

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Ele é despido e ela inicia um boquete. A música instrumental passa a fazer parte do filme se juntando aos suspiros e leves gemidos que já começam a aparecer.

Figura 58 – My Mother - Cabaret Desire

Ela senta sobre ele e começa a se esfregar, subir e descer pelo corpo ainda imobilizado pelas cordas que o prendem. O tesão já os conecta e ela retira a mordaça. O beijo não acontece e ela desce novamente para continuar o boquete. Eis que então a ladra misteriosa abre um dos zíperes da sua roupa, que não por mero acaso é justamente na região da sua vagina. Ela se posiciona logo acima da cabeça do dono da casa que a chupa com fervor. Como uma boa dominatrix, nesse momento ela começa a soltar as amarras dos braços e pernas a fim de que ele possa toca-la. A partir desse instante começa a penetração, mas ela continua sobre ele, na posição de demandante.

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Figura 59 – My Mother - Cabaret Desire

O sexo é basicamente genital. Não há beijos ou demais carícias ou experimentos de outras partes do corpo. A penetração parece bastar e fazem pulsar os gemidos até chegar ao gozo estampado na cara. Apesar de ser resumido a penetração a prática sexual das personagens, o protagonismo do desejo é do feminino. A “posição” sexual é denominada por ela, em que sempre fica por cima dele e determina quando mudar e como é mais confortável e prazeroso. Imageticamente, ela muda o paradigma da dominação do feminino pelo masculino e o protagonismo do gozo faz povoar outras práticas empoderadoras das sexualidades femininas. O masculino se encontra entregue ao prazer da ladra misteriosa. Ela tem percepção tanto do corpo dela quanto da excitação que causa no homem com que está se relacionando. É importante denotar a autonomia da sexualidade, do desejo e do gozo desta mulher que se põe a margem a partir do momento em que é protagonista de suas ações, sem efetivamente depender do masculino e sim compartilhar o prazer com o mesmo sem qualquer vinculo afetivo. Assim que a transa se acaba e o corpo desnudo do homem cis está estirado pelo sofá, ela o desacorda mais uma vez para que possa sair sem ser reconhecida ou questionada e dessa forma realizar seu crime perfeito. Recolhe seus pertences e deixa a casa. “Eu sempre suspeitei que dessa vez tinha sido mais que um roubo qualquer. No final eu descobri, que o seu melhor trabalho e que a melhor coisa que ela roubou fui eu”, diz a narração ao encerrar o conto. O vínculo amoroso que esta mulher estabelece é com o filho e não com quem ela se relacionou que acabou 142

por gerar a criança, isto também quebra a expectativa do amor romântico, característica sempre imputada ao feminino.

Figura 60 – My Mother - Cabaret Desire

Acredito que antes de voltarmos ao cabaré vale a pena pensarmos sobre a condição da protagonista como mulher, sua profissão e como sua atitude no curta define o local social e o seu “valor”. Vemos todos os dias na mídia, na escola, na igreja entre tantas outras instituições o reforçar da ideia de que existem vários tipos de mulher. Mas duas categorias podem resumir: santa e puta. E essas duas estão atrelada a lógica heteronormativa, machista, moralista e cissexista, portanto, nesse sentido lésbicas e mulheres trans não são mulheres, como já diria Wittig. A santa é aquela para casar, focada, responsável, dócil, pronta para ser mãe, estável em todos os sentidos e que reclama pouco e não gosta tanto de sexo, só se for com amor. As mulheres que já tiveram muitos parceiros sexuais são vistas com maus olhos, enquanto o mesmo não acontece da mesma forma com os homens cisgêneros. A puta é associada ao que é sujo, ao errado e repugnante socialmente, algo que não deve

ser

aceito.

Geralmente

são

mulheres

autônomas

sentimentalmente,

autosuficientes economicamente, sexualmente ativas, que protagonizam a sua vida apesar dos preconceitos. No filme percebemos a protagonista com vários discursos entrecortando sua vivência. Apesar de branca, magra e vir de uma classe abastada da sociedade, ela é mãe solteira, se mantém como ladra de peças de arte e não tem 143

parceiro fixo. Para fechar essa relação com a categorização e puta, ela protagoniza o seu desejo pelo homem dono da casa que dá origem a história, já que a narração é feita pelo filho que foi gerado a partir do sexo casual entre os dois. Uma mulher que é protagonista da sua vida, mas que esta vivência já não é tão legitimada e essas condições a afastam do padrão ideal de feminilidade. A protagonista dessa estória é complexa e vive no entre-lugar da figura da mãe, que é lida de maneira divinizada e assexuada, ao mesmo tempo que flui para uma mulher que tem autonomia da sua heterossexualidade, que gosta de sexo e se mantém economicamente roubando. A perversidade da heteronorma e do machismo se materializam e são questionadas a partir do curta, que em certa medida, positivisa a posição de puta e quebra esse binarismo a associando a condição de mãe e independente. A puta não é legitimada pela sua condição sexual que não segue a disciplina da monogamia e que ao gostar de transar ela desmantela com a perspectiva de castidade, pureza e dependência sexual que toda a moral cristã e a ficção dos gêneros atribuem às funções femininas. Outro ponto que é questionado a partir do estereotipo do feminino é a fragilidade que em nenhum momento é demonstrada pela personagem, que além de se manter com uma prática perigosa e, dessa forma, exige coragem, força e agilidade, características próprias do que é construído enquanto masculino na sociedade ocidental. Também podemos pensar no fato de ela ser mãe solteira, o que sempre foi considerado desmerecedor para a mulher, no sentido de que não ter um homem ao lado, a família não é completa, um arremedo de organização parental e, portanto, marginal por não se aproximar dos ideais da família tradicional cristã. Todas essas características depõem contra a ladra misteriosa, contudo ela é mãe e isso a legitima socialmente e isso é que quebra a lógica do binarismo, pois a intersecção das características é que demonstram a fluidez e complexidade da personagem, que, por sua vez, fazem as estruturas do machismo e da heteronorma se moverem. Voltamos novamente ao cabaré. Agora se escuta uma música pelo salão. A Madame agora se apresenta no palco, enquanto o clima de descontração está fluindo pelo espaço. Alguns riem, outros bebem, outros apreciam o número. A tatuagem da virgem santa, da Nossa Senhora, mãe de Jesus que toma o braço dela faz a ligação com a ultima estória e, chega até, humanizar xs pobres pecadorxs.

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Figura 61 – Cabaret Desire

Os aplausos soam pelo salão. A Madame vem apresentar a um grupo uma de suas poetas prediletas para que possam se deleitar. Essa mulher conduz a noite e as atividades da casa, instrui os momentos e coordena como e quando as ações acontecem. É mais uma das representações de protagonismo feminino no longa e que se faz importante em uma produção feminista. Em todos os momentos podemos percebê-las, inclusive nos detalhes e nas costuras da narrativa. As fichas são entregues e mais uma vez o filme vai imergir em outra estória. Agora, entramos no universo de mais uma mulher, cis, branca, classe média, magra e seu grupo de amigos. A narração desse curta é feita por quem protagoniza. “Eu sempre pensei que quando eu fizesse 30, eu seria adulta, vivendo a vida que eu sempre fantasiei quando menina. Um lindo apartamento, dois filhos, um cachorro, um trabalho completamente gratificante e um marido bonito e amoroso... Esses pensamentos não poderiam estar mais longe minha vida hoje.”. O curta tem como ponto de partida uma porta de aço toda grafitada de verde e nossa protagonista saindo toda amassada e meio sem rumo. Mas como ela chegou até ai é o que vamos descobrir ao nos debruçarmos por este enredo. O certo é que o sorriso está estampado em seu rosto. “É engraçado como a vida é, como nossas fantasias vão mudando com o tempo e a partir do momento que vamos nos conhecendo cada vez melhor. Com o passar dos anos, eu e meus amigos passamos por muitas coisas juntos. Todo aniversário era uma espécie de apresentação de

acessórios sexuais”. Chegamos até o almoço de

aniversário de 30 anos da protagonista, com uma mesa cheia de amigos e todos brindando e comemorando o novo ciclo da amiga e este ano o presente seria especial. 145

Figura 62 – The Birthday - Cabaret Desire

Neste ano, o presente seria diferente e misterioso. Reunidos em um almoço descontraído de comemoração do aniversário, xs amigxs dão a nossa protagonista um envelope preto com um cartão vermelho que contém um número de telefone, a única pista era que ligasse na sexta-feira às 18h para enfim descubra seu presente, foi tudo o que os amigos disseram. A curiosidade tomava conta dela, até que chegou sexta e ela ligou. Uma voz sexy, que ela identifica como masculina, respondeu do outro lado dizendo que a buscava em uma hora. Pega, experimenta, puxa, volta, mexe, remexe e finalmente escolhe sua roupa sexy e que possa explorar sua feminilidade. Ela aguarda na janela quem chegará. Até que uma moto para em frente a sua casa e um motoqueiro misterioso corrobora com o clima de tensão e tesão instalado.

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Figura 63 – The Birthday - Cabaret Desire

Vendada, ela segue na garupa imaginando para onde está sendo levada. Essa situação só aumentava a excitação que ela sentia ao estar ali. “Eu estava tão excitada que iria molhar o assento. A vibração da moto também ajudava. Eu acho que o motoqueiro sentiu minhas pernas tremendo enquanto eu estava encaixada em seus quadris”. Depois de um tempo de viagem, o motoqueiro deixa a protagonista em frente a um galpão. Tira a venda dela e a instrui a entrar que lá ela encontrará o seu presente. Sem mais, ele vai embora e ela entra no prédio. Local que a princípio bem escuro e vazio. Ela pega o elevador e vai tentando desvendar a charada imposta pelxs amigxs.

Figura 64 – The Birthday - Cabaret Desire

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Então, ao sair do elevador ela chega a um salão, que mais parece um labirinto com seus tecidos brancos que encobrem os caminhos e quem a espera. A mulher caminha pelo ambiente, tentar chamar por alguém que possa estar ouvindo-a, mas tudo em vão. Entre sombras e silhuetas, ela finalmente encontra “uma cama nas nuvens”. É óbvia a associação do local com um paraíso do divino. Aciona-se a metafísica do plano metafísico para supervalorizar a experiência, para insinuar transcendência. “Ok, onde estão os anjos?”, ela pergunta. Depois de muito mistério, um homem branco, alto, loiro e malhado vem em sua direção e a beija no cangote e ela só deseja que isso não seja apenas um sonho. “O único homem sexy o bastante para me paralisar”. Temos ai materializado no padrão hegemônico do masculino a figura do anjo que a levará as alturas, contudo não será de uma forma exatamente casta e divinal como se percebe nos escritos cristãos. Os dois passam a se beijar e a se tocar, bebem espumante, comem uvas e enquanto isso ela se questiona se xs amigxs pagaram o rapaz que ali está, mas no fim não importa, “sorte minha”. No livro “Sexo e religião — dos bailes de virgens ao sexo sagrado homossexual” do pesquisador norueguês Dag Oistein Endsjo, traça o paralelo entre religião e sexo nas nuances da história. Endsjo acredita que a compreensão de que sexo e religião estão intimamente ligados desde os primórdios é o primeiro passo para o reconhecimento de uma cultura de respeito às diferenças de credo, gênero e de orientação sexual. O cristianismo organiza a moral e os costumes ocidentais. Tatiana Lionço, pesquisadora e membro-fundadora da Cia. Revolucionária Triângulo Rosa, escreveu em seu artigo “Demoníacas: injúrias de fundamentalistas cristãos contra a luta das mulheres e contra o avanço na garantia de direitos humanos, sexuais e reprodutivos” que já na época da inquisição, muitas mulheres foram queimadas em fogueiras por não corresponderem à compulsoriedade do matrimônio, por praticarem curas baseadas em conhecimentos das ervas da natureza, ou por desafiarem a moralidade patriarcal. A moralidade patriarcal sempre esteve a serviço da dominação masculina, tal como sugerida pelo sociólogo Pierre Bourdieu. O patriarcado tem origens na moralidade judaico-cristã, embora tenha sido incorporado pela máquina do capital.

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“O patriarcado está no centro do discurso fundamentalista de base cristã, que assistimos cotidianamente veicular injúrias contra mulheres e contra aqueles que não reiteram a sociabilidade de base sexista, misógina e heteronormativa. Este discurso fundamentalista glorifica o poder do pai e da propriedade privada, além de continuamente desmentir aos fiéis as infrações cometidas por suas lideranças religiosas e políticas. Qualificam como pecadoras e demoníacas as mulheres que lutam pelo direito ao aborto medicamente assistido, que expressam desejo e amor por outras mulheres. Difamam as putas, as travestis, os e as homossexuais e transexuais e mesmo aquelas pessoas que simplesmente se ocupam da reflexão sobre as incoerências dos fundamentalistas ao infringirem reiteradamente os próprios mandamentos divinos, aos quais dizem estar subordinados. “Não usarás teu santo nome em vão”, “não levantarás falso testemunho ao teu próximo”.” (LIONÇO, 2012)

Associar, então, o divino ao sexual se faz transgressor justamente porque é a junção de dois discursos políticos que se opõem na organização social da moral cristã. E deixar o feminino como protagonista da ação, ou ao menos dar a perspectiva dessa mulher de forma que não a degrade apenas por ela gostar de sexo e praticá-lo com quem bem entender e da forma que achar melhor. As roupas vão caindo pelo chão e eles se jogam na cama entre as nuvens de seu pequeno paraíso. A fantasia criada e ambientada, sem nomes, expectativas e a não conversa tentam tirar o romantismo como fator dessa equação e mostrar a real intenção do encontro: a transa. Isso não descarta o cuidado e a sinestesia do momento, o toque, o esfregar, o apertar, o chupar, o penetrar, o gemer e o gozar sempre consentidos e sentidos de maneira fluida e generosa entre os dois. Mas vale pensar se todo esse ambiente que foi planejado para este encontro com a perspectiva angelical do lugar e que os retira de suas realidades distintas e torna aquele momento único não faz alusão ao ideal romântico do príncipe encantado, que nesse caso é apimentado pelo tom sexual. Então, por mais que a perspectiva criada tenha a intenção de quebrar com a lógica do amor romântico, o idealismo ainda se faz presente mesmo que o objetivo não seja o de construir uma relação afetiva e sim momentânea e casual. Percebe-se a energia em combustão no ambiente e o tesão entre os dois é pulsante. Contudo, o protagonismo dela acaba aqui.

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Figura 65 – The Birthday - Cabaret Desire

Os corpos são brancos e magros e o sexo acontece de maneira previsível e dita como normal. Apesar dos dois serem desconhecidos, ele supostamente alguém contratado para tal serviço e uma mulher dando vazão a sua fantasia sexual, a transa está toda dentro dos padrões da heteronormatividade. Apenas o corpo dito da mulher é explorado no toque, nos beijos, nas lambidas e na penetração. A chupada que ele dá é encarada como preliminar, enquanto a penetração como sexo em si. É ele quem comanda as ações, mas com o sentido de satisfazê-la e não só para gozar sozinho. Nesse sentido, as duas possibilidades de gênero estabelecidas na tela, do masculino e do feminino ainda estão adequadas e legitimadas pela heteronorma, contudo o homem cis representado tem a perspectiva do cuidado e do perceber o corpo da parceira e isso destoa da maneira mainstream de caracterizar o masculino no pornô. A virilidade, agressividade e a dominação não são características evocadas nessa estória pela personagem masculina. No caso do feminino, percebemos a postura do se deixar conduzir, mas em nenhum momento ela deixa a sua vontade e seu desejo de lado ou sobreposto ao do parceiro. O prazer dela é estampado e este é motivo pelo qual ela está ali, por isso, a autonomia da sua sexualidade, no caso heterossexual, é visibilizada e empoderada. Elementos como a buceta mais peluda dela, os gemidos dos dois, a camisinha em cena, as tatuagens, o suor e o contorcer dos corpos trazem as pitadas de humanidade e a proximidade das vivências com xs telespectadorxs.

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É importante situar cientificamente a produção pornográfica na sua dimensão biopolítica (Foucault, 1976) e sexopolítica (Preciado, 2004), ou seja, como o sistema dinâmico disciplinar de discursos e tecnologias heteronormalizadoras das identidades de gênero, das práticas sexuais e do próprio corpo funcionam na sociedade e regulam os corpos e subjetividades das pessoas, cerceando as múltiplas possibilidades de performances sociais a duas escolhas: masculino e feminino. Nesta estória, a biopolítica dos corpos está presente quando olhamos para suas estéticas padronizadas e disciplinadas dos corpos brancos e magros, mas a sexopolítica algumas vezes acaba por ser questionada e borrada em seus detalhes, como a autonomia do desejo feminino ao ir encontrar com um desconhecido e transar com ele.

Figura 66 – The Birthday - Cabaret Desire

A transar termina com o gozo de ambos, porém com dele sobre o corpo dela, reproduzindo a mesma lógica dos pornôs mainstream tão criticada pelo Pornô Feminista. É óbvio que essa prática tenha sua parcela de excitação perante quem assiste, porém também é um gesto que perpetua a submissão do feminino ao masculino nessa situação do sexo. O conto acaba beijos e carinhos entre a mortal e o anjo da foda. Como já debatemos no capítulo I, a pornografia feminista tem a intenção tenta mover as representações das mulheres, revelar as múltiplas performances femininas que povoam a sociedade, procurando materializar as identidades e as sexualidades por meio dos femininos. As autoras do livro “The Feminist Porn Book 151

the politics of producing pleasure” acreditam na potencia radical desse tipo de pornografia a fim de fazer uma revolução nas representações e nas vivências das sexualidades. Leite (2012) oferece uma análise importante sobre a configuração desse outro sujeito feminino que vai construir e demandar representações pornográficas diferenciadas, apresentando narrativas de ruptura com o formato hegêmonico, elaborando um espaço para a “[..]expressão de poder, o poder através do prazer, que ao longo da história foi vetado às mulheres”(LEITE, 2012, p. 172). No livro “Good Porn: a Woman's Guide” (2008), Erika Lust afirma que homens e mulheres apreciam diferentes estilos de pornografia, e que mulheres são excitadas por elementos específicos, como detalhes, cenários e fantasias. A questão aqui não é deslegitimar o prazer dado pela pornografia mainstream que é um produto cultural reafirmado pela indústria cultural e edificado no imaginário pornográfico. Ressignificar as práticas e abrir as possibilidades são a perspectiva que se faz necessária. O gozo, materializado pelo esperma, sobre o corpo da mulher reafirma a figura de dominante e dominada. E logo após, o clima de romance instalado reflete a lógica heteronormativa de idealização do sexo, uma pornografia romantizada.

Figura 67 – The Birthday - Cabaret Desire

Com o corte dado para as pernas vestidas de meia calça vermelha, voltamos para o salão do cabaré. Dois contadores das estórias percebem o olhar desejoso de um dos homens do ambiente e se dirigem até ele. Encostados no balcão, xs contadorxs envolvem o homem, pegam as fichas e a estória começa. O clima de sedução entre os três é evidente e enquanto a mulher fala, o outro homem toca e encara o ouvinte, estabelecendo tesão entre eles. “Depois de 25 minutos andando pelas ruas em seus saltos altos, seus pés a estavam matando. O vestido é muito curto. Não me sinto bem. Para que tentar tanto impressionar? Eu não posso ser mais eu?”. Esses são os primeiros pensamentos trazidos pela protagonista do conto, que anda pelas ruas de Barcelona. Logo após nos é apresentado o outro personagem que vai movimentar o 152

enredo, ele vem de terno, pedalando também pelas ruas de Barcelona. “Um adolescente! Droga, estou nervoso!”.

Figura 68 – The Date - Cabaret Desire

Os pensamentos iniciam o conto de maneira a deixar em dúvida se os dois se conhecem ou não. Esse ponto logo se resolve quando o enredo direciona para uma cena já dos dois pelados, se beijando e se apertando em um apartamento. O toque, o carinho e a condução da ação dão a entender que já existe uma intimidade entre elxs. É interessante que ao mesmo tempo em que eles reafirmam o amor romântico, a necessidade de ter alguém, em especial um homem, que te complete, uma companhia, a monogamia como felicidade e que isso remeta ao padrão de heteronormatividade que é construído como subjetividade relacionada ao feminino, o primeiro contato e a forma como foi estabelecida o afeto entre os dois fere a moral cristã, por se iniciar pela transa e pelo desejo carnal.

Figura 68 – The Date - Cabaret Desire

As cenas regressam para as ruas da cidade e o flashback se interrompe por enquanto. Ela entra e sai de lojas e continua a pensar e a racionalizar a situação enquanto ainda anda pela cidade com dores nos pés. “Foram alguns dias de sexo maravilhoso há um ano. E ele nem é o meu tipo... mais velho que eu, divorciado e com filho, parece uma ideia ruim. Por que diabos eu disse sim?!”. Agora seguimos o homem que vem com 153

sua bicicleta. “O que estou fazendo?! Faz mais de um ano e ainda não consigo esquecer a boca, o sabor de seus beijos, a intensidade das carícias. Por que complicar a minha vida desse jeito”. Ela pensa em comprar alguns cupcakes, comê-los sozinha e dar o bolo nele. Ele ainda relembra os 3 dias que ficaram trancados no seu apartamento fazendo sexo e que mesmo assim não sabia nada direito sobre ela. E ela não quer um relacionamento agora, porém continua indo ao encontro dele no local marcado. O enredo se desenvolve muito no âmbito do psicológico das personagens, seus questionamentos sobre relacionamentos e reflete bastante a estrutura socialmente criada a partir do amor romântico e de como este ordena a sentimentalidade das pessoas. Essa reflexão também localiza para quem assiste os traços psicológicos que caracterizam no campo político que essa produção ocupa, já que a personagem feminina reafirma a todo o momento que não está disposta a entrar em um relacionamento, além de se livrar do sentimento de culpa por ter se envolvido causalmente e sexualmente com outra pessoa, deliberadamente defendendo a autonomia da subjetividade, do corpo e da sexualidade das pessoas construídas no feminino. A culpa é um conceito central quando pensamos nessa mulher cis legitimada pelo patriarcado. Ela tem culpa por ter nascido mulher, ela tem culpa pelo desvio do comportamento masculino, ela tem culpa sobre o seu corpo, ela tem culpa até pela violência que ela sofre. Ela é naturalmente inacabada e imperfeita. E, essa imagem de imperfeição dá o toque para a forma como se encaminha sua vida. Ela tem a mente inferior, ela precisa de um homem para tomar conta dela. Teólogas feministas, como Riane Eisler e Françoise Gange, fizeram estudo a respeito de Eva e do pecado original. A interpretação levada a efeito na Bíblia seria responsável por difundir o preconceito contra a mulher, a tal construção cultural de que falei antes. O episódio, como até hoje relatado, serviria a reforçar a superioridade masculina e a identificar a mulher como o ser frágil, viciado, indigno de confiança e responsável pela condenação de todo ser humano. Há uma leitura mais radical, apresentada por duas teólogas feministas, entre outras, Riane Eisler (Sacred Pleasure, Sex Myth and the Politics of the Body,1995) e Françoise Gange (Les Dieux Menteurs, 1997). Estas autoras partem do dado histórico de que houve uma era matriarcal anterior à patriarcal. Segundo elas, o relato do pecado original seria introduzido no interesse do patriarcado como uma peça de culpabilização das mulheres para arrebatar-lhes o poder e consolidar o domínio do homem. Os ritos e os símbolos 154

sagrados do matriarcado teriam sido diabolizados e retroprojetados às origens na forma de um relato primordial, com a intenção de apagar totalmente os traços do relato feminino anterior. Uma cultura diferente da que conhecemos hoje, matriarcal, que reconhecia a sexualidade como algo sagrado foi substituída por essa que hoje conhecemos, patriarcal e machista.

Cecília Sardenberg (2005) reconhece que existe uma divisão funcional entre os corpos de homens e de mulheres que está a serviço da sociedade. Neste ínterim, enquanto o corpo masculino é visto com maior liberdade, o corpo das mulheres é mais vigiado, com gradações de valor. Essas construções também trazem implicações diretas no “aprisionamento” das mulheres na esfera doméstica, no cuidado do lar e dos(as) filhos(as) e, consequentemente, na visível desigualdade em relação aos homens, já que é a ocupação do espaço público que ainda é positivamente mais valorada. Trata-se de construções sociais que incidem sobre o corpo, regulando e vigiando modos de ser e de agir e que são produzidas e reproduzidas, para Iara Beleli (2007), pelas várias instâncias sociais, em diferentes épocas, com discursos construídos de acordo com os valores, as exigências e os interesses de projetos da classe dominante. Para Foucault (1987), essas instituições dominam os corpos “não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina” (1987, p. 119). Desse modo, o corpo é tomado como objeto e alvo de poder.

Assim, percebemos que sobre o corpo feminino irá incidir uma vigília que possibilitará não só o controle do corpo individual, mas de outros corpos que a mulher venha a reproduzir. Dito de outro modo, controlar o corpo, o comportamento e a sexualidade das mulheres sempre foi uma questão de estratégia política, o que Foucault ao analisar as sociedades disciplinares, identificaria como uma estratégia do biopoder. Considerando que a partir de discursos sobre o corpo e a sexualidade instauram-se saberes e verdades de forma normatizada e regulada, é interessante refletir sobre a serviço de quem e por quais motivos são reiteradas construções, inclusive de forma institucionalizada, sobre a mulher-mãe e a criminalização do aborto. Como as mulheres se reconhecem como sujeitos de uma sexualidade que se articula em um sistema de regras e coerções? Quantas mulheres têm acesso à pílula? 155

Quantas podem efetivamente decidir qual o momento de engravidar ou não? Quem está autorizado a falar sobre aborto? Em quais locais? Quantas escolhem de modo autônomo o número de filhas e filhos e que destino dar às gestações indesejadas?

Em nossa sociedade, fala-se publicamente do sexo “como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se” (FOUCAULT, 1997, p. 27). Por conseguinte, o sexo é, de um lado, objeto de tecnologias de governo afeitas ao campo político e, de outro, objeto de escolhas afeitas ao campo ético. Portanto, constitui-se como um dispositivo complexo de técnicas de governo de si e dos outros. Daí a importância de colocar em discussão o tema de uma educação sexual à luz dos conceitos de ética, liberdade e autonomia.

Para pensarmos essa questão do sexo enquanto dispositivo político para autonomia voltemos aos corpos e subjetividades das duas personagens da estória. Em meio aos pensamentos dela, existem as lembranças dos momentos que passou junto dele no apartamento. Nessas cenas, ambos aparecem, à maioria do tempo, nus e trocando carícias que beiram o romantismo e a intimidade sempre, não é colocada a hipótese do sexo com carinho, mas sem a pretensão de uma relação. Estabelece-se nessas cenas o vinculo a partir da própria autonomia. Ao mesmo tempo, que esta liberdade e autonomia trazem as possibilidades de poder vivenciar, por exemplo, os 3 dias em que o casal passou dentro de um apartamento transando e se divertindo, que a principio, não tinha nenhuma finalidade. Contudo, essa mesma autonomia do corpo e da sexualidade neste curta baseia a tese do amor romântico, mesmo que essa trajetória seja a partir da quebra da castidade e da divindade deste amor, em especial da figura feminina, dando vazão a luxúria e o prazer sexual, que desde sempre foi construída como pecado pelo cristianismo patriarcal como situa Lionço um pouca acima, vai construindo a narrativa do encontro e do amor a primeira vista, ou nesse caso a primeira transa.

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Figura 98 – The Date - Cabaret Desire

Alexandra Kolontai em seu livro “A Nova Mulher e a Moral Sexual“ faz o debate do amor, da moral e do sexo a partir do marxismo e do feminismo. Kolontai foi uma socialista que queria mudar o mundo e mudar a vida das mulheres a partir do evidenciar da construção social, e fala sobre algumas formas que este tomou ao longo da história. E ela não reduz o amor àquela forma em que necessariamente as relações sexuais estão envolvidas. Fala de amor-amizade, amor-romântico, etc. Questiona o amor baseado na propriedade, do mesmo jeito que questiona a propriedade privada no capitalismo. Identifica a falta de autonomia econômica das mulheres como um fator que leva a maioria a ficar em relações que não tem nada a ver com o amor. Sem usar a palavra machismo, que acredito não ser um conceito que nem existia como hoje, ela vai mostrando como o amor numa sociedade burguesa é parte da ideologia que sustenta e defende os interesses da classe dominante; que não está só no plano das ideias, mas que serve materialmente para a manutenção do sistema, através do que é o modelo de família. Ela também mostra como essa ideologia do amor burguês se organiza em uma sociedade em que existe desigualdade entre homens e mulheres, que aparece também nas relações em forma de dominação e submissão. Fala que a educação não ajuda que as mulheres sejam livres nas suas relações. Na segunda parte do livro ela fala sobre o amor e o sexo na sociedade comunista. Daí ela mostra uma visão ampliada do amor, não só baseada em relações sexuais, nem na monogamia, mas, baseada na solidariedade, camaradagem, igualdade e liberdade. O Kolontai 157

escreveu faz sentido até hoje e ajuda a pensar a necessidade de se falar sobre o amor, de uma perspectiva política e verdadeiramente emancipatória.

Figura 70 – The Date - Cabaret Desire

Figura 71 – The Date - Cabaret Desire

O curta termina quase como um conto de fadas. A emancipação a partir do amor fica de maneira ambígua no final do curta. A noção de príncipe encantado que desafia os obstáculos para encontrar a princesa e a fazer feliz tem sua alusão na narrativa. Ela chega ao bar combinado e o fica esperando. Ele montado em sua bicicleta, quase alada, corre pelas ruas de Barcelona, até que sua fiel companheira tem um problema mecânico. A moça depois de algumas taças de uma bebida fina decide deixar o recinto, porém antes vai ao banheiro. Neste momento, o príncipe do asfalto 158

vê o bar vazio e seu olhar vaga decepcionado por não ter conseguido chegar a tempo, desperdiçou sua chance. Ele chateado caminha em direção a sua bicicleta, até que é surpreendido pelo toque de sua amada que o vem salvar da tristeza com um beijo doce. Depois de tantos desencontros e dúvidas, o casal é feliz para sempre.

Figura 72 – The Date - Cabaret Desire

A magia flui para além das palavras escritas e faladas pelxs contadorxs quando percebemos que estes se beijam com o término da estória. Já se ouve uma música ao vivo no ambiente que em sua letra vem lembrar o quanto é importante para a pele e para a cabeça relaxar, imaginar e gozar. O quanto é necessário desejar e amar, que seja por uma noite ou por várias, o que vale mesmo é vivenciar. Com essa sensação de satisfação, Cabaret Desire finaliza seu enredo. A sua poesia de bordel nos levou, mesmo com as contradições e os “pecados” da heteronormatividade, a uma viagem que não cessa de despertar e excitar a imaginação, para um lugar onde às fantasias mais secretas de muitos se tornar realidade. As estórias foram marcadas pelos questionamentos levantados pela bissexualidade e corporeidade em “Two Alexes”, a autonomia de gênero, da maternidade e da questão geracional em “My Mother”, o divino e o profano se misturando e gerando a ambivalência do angelical com o sexo que fissurado na estória “Aniversário”, e, enfim, a autonomia da sexualidade do feminino e o questionamento do amor romântico também visibilizado no quase conto de fadas do “O apartamento”.

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O final do filme vem celebrar essa diversidade e as possibilidades das identidades de gênero, práticas e orientações sexuais. A canção já diz “o que acontece aqui pode ser bom para sua pele”, reinvindicando o “girl power”, a autonomia levantada pelos versos “próxima vez não se lembre de mim, na próxima vez você nem vai me achar”, pois o bom “dessas coisas bobas, é que eu não preciso me lembrar de você”. Os versos e a melodia se findam, chegam os aplausos, os olhares ainda circulam, mas o que mais paira no ar, neste momento, é a satisfação das pessoas que estão presentes do prazer compartilhado por estórias e pelas vivências do cabaret que fez despertar possibilidades gêneros e práticas e de imaginários de gozo e prazer. 3.3 – Amor com a cidade Pornografia para fora de quatro paredes. Cinema, espaço público e ação urbana, todos esses elementos se juntam para dar vida ao filme “Amor com a cidade”, uma produção independente, coletiva e colaborativa realizada no Brasil. Diferente dos outros ele não se reivindica feminista, chega até rechaçar o título, mas vamos refletir o porquê, então, dele estar aqui nesta dissertação.

Figura 73 – Amor com a Cidade

Amor com a cidade é um filme em si, mas que é, também, parte do registro de uma experimentação sexual com as cidades de São Paulo e Porto Alegre. É uma experimentação sobre tesão, espaço urbano, pornografia, mulher, público, e câmera. Em meados de abril de 2011, o grupo pornô clown (Juliana Dorneles, Violácera, Fabi Mitsue, Fabi Borges, Antônio Brasiliano, Gabriel Bitar, Vanessa Espíndola, Luciana Costa e George Sander), que já debatia por adorarmos as discussões sobre pósporno e feminismo pró-sexo, passou a fazer pesquisas mais intensas nesses sentidos a fim de 160

dar vazão à vontade de pensar e produzir conteúdos próprios pornográficos. Dessas pesquisas surgiu a ideia bem simples e fácil de executar: uma mulher “fazendo amor” com a arquitetura de São Paulo. Nessa primeira concepção, xs autorxs chamavam o projeto de “Amor à cidade”. O curta foi rodado em uma noite de quinta-feira. Uma madrugada de sexo com o Viaduto Costa e Silva, mais conhecido como Minhocão, Viaduto Santa Ifigênia e Praça da Sé, todos localizados na região central de São Paulo. A experiência cresceu quando a atriz Juliana Dorneles, em uma de suas passagens por Porto Alegre, convocou um grupo de amigos para realizar essa viagem sexual pelas ruas, escadarias e esquinas cheias de memórias, já que essa é a cidade natal da artista. Amor com uma escadaria da Rua Duque de Caxias, com o Viaduto da Av. Borges de Medeiros, no bar Tutti Giorni, no Gazômetro, no Mercado Público. Mais uma vez, imagens cruas e documentais. De volta a São Paulo, o curta passou para as fazes de edição, composição e trilha e trabalho na cor. Ele estreou na capital paulista em junho de 2012 no festival PopPorn, projeto que tem a curadoria da produtora pornô Xplastic Alt-porn. Realizado sem patrocínio e no regime de colaboração, xs produtorxs afirmaram que queria realizar o curta para demonstrar o viver às últimas eróticas consequências. Contudo xs idealizadorxs não assumem a perspectiva de uma análise a partir de aspectos políticos como o feminismo, ocupação do espaço urbano e o questionamento da heteronormatividade e afirmam que fizeram o filme por que era gostoso. A escolha deste filme para compor o material de análise da dissertação se deu entender que havia a necessidade de uma produção brasileira e que trouxesse o debate do protagonismo de corpo, sexualidade e de práticas sexuais na sua narrativa. É extremamente caro para mim que além da voz do feminino ecoasse que a voz colonizada e no caso, brasileira, também se fizesse presente. O filme Amor com a cidade, um dos pioneiros do pornô terrorista no Brasil, foi indicado para o Feminist Porn Awards, no Canadá.

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Figura 74 – Amor com a Cidade

Percebendo o processo de realização da obra e a perspectiva de quem a produziu, nosso papel aqui é justamente mergulhar nas estruturas e no universo simbólico que o filme carrega, que o torna político, transgressor. No início tudo era meio tímido, a poluição, a fuligem e a sujeira do centro refletiam no nojo e num certo pudor que a atriz ainda sentia nas primeiras interações com o urbano, mas na medida em que o filme avança, o espaço urbano vai convidando e revelando seu exibicionismo

e

o

devir

do

desejo.

A

cidade,

podendo

ser

vista

eroticamente, pornograficamente, o que vai além do utilitarismo e pode ser namorada, adorada, e receber todas as nossas emoções. Mas antes de adentrarmos a narrativa fílmica, é importante salientar a o local de fala do curta. Falamos aqui de uma mulher branca e cisgênera, PhD em psicologia, atriz, sulista e que vive na capital paulistana. Todas essas delimitações revelam o lugar que esta pessoa ocupa e fala na nossa sociedade machista, elitista, branca, meritocrata, capacitista e heteronormativa. O curta começa no Viaduto Costa e Silva, o Minhocão. Viaduto que corta o centro da cidade até a Zona Leste da paulicéia. A própria simbologia da palavra Minhocão já atrai para o sentido fálico e sexual. O filme possui uma narrativa fragmentada e nada linear, as locações se confundem e se entremeiam muitas vezes. Durante a madrugada, sem o fluxo de veículos que tomam o espaço, Juliana anda pela larga avenida suspensa, imponente marco da arquitetura paulistana. O texto inicia e ela se deita sobre o asfalto do Minhocão. Logo após, a cena é cortada para parte debaixo do viaduto onde ela interage com afeto e passadas de mão nas estátuas que ali 162

povoam. Pornografando o espaço público, tirando o sexo das quatro paredes, do privado. Mas por que essa atitude é tão importante? O ambiente público das cidades é inimigo da mulher, sendo à noite o momento mais inóspito. A mulher olha para os locais abandonados com medo da violência física. As cidades abandonadas são ameaçadoras em razão de ruínas, lugares descampados, ruas desertas e deficiência de iluminação pública. Uma violência devastadora física e psicologicamente temida pelas pessoas construídas no gênero feminino é o estupro. Entretanto, há inúmeras outras violações cotidianas sofridas no espaço público que causam medo, intimidação e constrangimento na mulher. A mulher sozinha na rua é considerada uma pessoa sem dono, a ela pode ser desferido qualquer abordagem, expressões, chegando a palavrão e xingamento, pois lhe é merecido pelo fato de estar sozinha. Ela não deve perambular desacompanhada de um homem e não deve responder às ofensas. Os corpos das mulheres não são delas, é de qualquer homem, pois assim o machismo, o racismo e a LGBTfobia operam. Quando as mulheres abrem mão do princípio que impõe qual é o seu lugar, ela autoriza o homem assoviá-la, gritá-la, tocá-la e dizer qualquer coisa, seja em voz alta, em grupo, ou ao pé do ouvido. Essas manifestações são mais frequentes nas ruas da cidade e nos transportes públicos. A mulher é chamada de “gostosa”, “piriguete”, “delícia”, entre tantas outras coisas por homens que elas jamais viram e ou deram a menor intimidade, mas também são tratadas assim por familiares, vizinhos e amigos tanto no ambiente privado quanto no público. Refletindo sobre o lugar das mulheres negras, de mulheres lésbicas e mulheres trans na cidade, elas enfrentam as “barreiras invisíveis” próprias do racismo, da lesbofobia e da transfobia. A circulação dela em alguns espaços públicos, ainda que seja em seu ambiente, em ambiente próximo ou no horário de trabalho pode despertar constrangimento, desconfiança e ódio em outras pessoas. Essas pessoas não são impedidas por nenhuma lei de transitar pela cidade ou em qualquer lugar público, mas a segregação espacial simbólica é implacável. No caso das mulheres negras, por exemplo, sua circulação numa loja desperta, muitas vezes, a atenção do lojista em vigiá-la, porque sua cor não é confiável. Soma-se a opressão machista à violência racista, ambas responsáveis pela marginalização da mulher negra da cidade.

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Do ponto de vista espacial é sabido que trabalhadoras domésticas, quando não vivem na casa dos(as) patrões(as), em quartinhos de empregada (cada vez mais minúsculo), moram com suas famílias em bairros populares e/ou favelas com grandes carências de serviços públicos, onde fazem deslocamentos diários usando serviços precários de transporte coletivo para os bairros médios e ricos que lhes custam recursos e tempo de trabalho não pago. Os problemas decorrentes da estrutura familiar patriarcal, que lhes exige realização das tarefas domésticas no lar também gratuito, antes de ir ao trabalho, significam uma jornada de trabalho bastante extensa. Sob o mesmo sistema patriarcal, as mulheres de outras classes sociais, que trabalham fora ou não, colocam para as empregadas domésticas este trabalho essencial para a reprodução social que garante o ciclo vicioso da exploração e dominação masculina. Assim, a tripla discriminação de gênero, raça e classe a que estão submetidas as mulheres negras no sistema patriarcal, sistema sexual do poder comum a todas as mulheres, tece os dramas e paradoxos cotidianos em processos complexos e contraditórios (GARCIA, 2012, p.150).

Os espaços públicos são organizados em função de códigos de comportamento não-verbalizados e implícitos que refletem a hetero-cisnormatividade na sociedade. No caso de mulheres lésbicas e bissexuais, as próprias performances de gênero, femininas ou masculinizadas já as classificam aptas à visibilidade, como por exemplo, no mercado de trabalho em que lésbicas masculinizadas são alocadas em funções de telemarketing em que a sua aparência masculina não precisa ser levada em conta. As demonstrações públicas de afeto ainda são limitadas, ou mesmo ausentes, pois a fetichização é uma prática vigente no imaginário machista. De todas as formas de apagar a identidade lésbica, o “estupro corretivo” se mostra mais odioso, porque consiste em uma prática criminosa na qual o agressor acredita que poderá mudar a orientação sexual da lésbica através da violência sexual. Isto porque, para eles, ao praticarem tal ato, elas vão “aprender a gostar de homem”. O que não poderia ser mais desprezível e desumano. O “estupro corretivo” é um discurso do ódio, é a exteriorização da cultura do estupro voltada para as mulheres lésbicas e bissexuais. Quando falamos de pessoas trans, em especial nesse momento de mulheres trans, precisamos perceber quais os espaços públicos que estas pessoas estão autorizadas a vivenciar. Pessoas trans* já sofrem uma enorme exclusão física e simbólica de praticamente todos os espaços sociais. Berenice Bento afirma que as 164

pessoas trans* somem dos espaços de convívio social para serem encontradas nos espaços das clínicas – lá bem catalogadas e avaliadas. Uma medida como essa contribui para tal exclusão, negando direitos básicos, como o transporte, emprego, saúde, educação a todxs que ousamos nos identificar de forma diferente daquela designada em nosso nascer. Quantas pessoas trans* conhecemos, e quantas que não conhecemos, mas já vimos por nos bancos, parques, shoppings, restaurantes, universidades, praias, até nas ruas. Só poderiam ser perceptíveis, as pessoas que não “passam”, pois as que “passam” ganham um temporário privilégio social, a de se “parecer” com uma pessoa cis e logo “passar despercebidx” e “passar como cis” não deveria ser pré-requisito para adquirir respeito, não deveria ser premissa para humanidade. O direito ao corpo e o direito à cidade estão interligados. Nas Marchas das Vadias, uma das palavras de ordem que apareceu foi a frase “O corpo é meu/ A cidade é nossa”. As marchas nasceram como uma resposta à culpabilização das vítimas em casos de estupro. Mas além do direito de não ser estuprada, as mulheres colocaram em pauta o direito à cidade.

“Viaduto Costa e Silva, porque te deram um nome tão ordinário depois de torturar tanto te ergues imponente… a cidade não te perdoa, deposita sobre ti toda a massa pastosa dos carburadores. Teu cheiro de vaselina, tua boca fria, mais imunda ainda que o viaduto, nem os ratos te tocam. Quero te agradar.”

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Figura 74 – Amor com a Cidade

Logo após, entramos debaixo da saia da atriz, um plano plongé que valoriza a imponência do piquete em que ela, ainda usando roupas, esfrega sua buceta na ponta arredondada. Nitidamente fazendo a alusão a um pênis e a excitação dela a brincar com esse “pau”. As roupas dessa cena já não são as mesmas das tomadas anteriores. “Te pensas indiferente, mas teu ferro derrete para dentro das minhas coxas. Essa ereção. Me excitas”

Figura 75 – Amor com a Cidade

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E voltamos para as ruas. Agora estamos no Viaduto Santa Ifigênia com suas grades cheias de detalhes, seus ladrilhos desenhados e a iluminação que nos retoma a tempos antigos de São Paulo. A atriz está ao fundo e vem caminhando de encontro a câmera levantando sua saia rodada rosa. Outro corte, e voltamos para o Minhocão em que ela penetra com seu braço as grades do viaduto. A erotização do espaço urbano sempre ligado a formas e figuras ligadas a penetração. “Quero continuar. Poluição erótica, minhoca afogada na cinza, não és cobra, és obra.”

Figura 76 – Amor com a Cidade

No Minhocão, Juliana mija e traz para cena outra esfera de excitação. Mais conhecida como golden shower ou chuva dourada, o ato de urinar em outra pessoa ou 167

objeto, normalmente por gratificação pessoal, assim como uma maneira de humilhação. Em jogos sexuais de dominação e submissão, a golden shower é dada como forma de punição para humilhar o parceiro submisso e isso excita a pessoa que está urinando. Aqueles que estão sendo urinados podem ficar excitados com a humilhação. A chuva também é uma atividade sadomasoquista, onde uma pessoa segura a sua urina de maneira que ela precise desesperadamente urinar e alguns parceiros apreciam ver a pessoa choramingar e se contorcer enquanto seguram a urina. Algumas pessoas ficam excitadas por observar secretamente estranhos urinando, talvez usando câmeras escondidas ou buracos nas paredes. Novamente nos deparamos com práticas do BDSM como no curta “Authority”, mas no caso de “Amor com a Cidade” é o viaduto que causa a excitação em Juliana que mija “para torturar tua carne ainda viva de concreto. E tu gosta.”

Figura 77 – Amor com a Cidade

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Voltamos para o Santa Ifigênia e agora Juliana está próxima à câmera. Com uma das mãos dentro da calcinha, ela se masturba enquanto vai se aproximando ainda mais. Ela agacha e continua se tocar. Com cortes bruscos, temos as cenas em que se tem um corpo sem cabeça com uma das mãos na vagina, esfregando e penetrando os dedos, mas ainda coberto pelas roupas, por isso, apenas nota-se o movimento da ação, e a cena do olhar penetrante para a câmera de Juliana Dorneles, como se estivesse encarando e convidando quem a assiste “fazendo amor com a cidade”. Em certo momento percebemos que pessoas passam por trás das tomadas, afinal as locações são as ruas da cidade.

Figura 78 – Amor com a Cidade

“Teu vazio, teu silencio noturno, teu chão de ladrilhos apertados. Roubas a minha blusa e o meu caráter. Chega mais perto que eu te entrego a tua memória. Quero o rio que passa entre as tuas pernas quero o rio que passa entre as tuas pernas. Quero o rio.” A partir desse momento Dornelles já não está mais sozinha em cena. Vários homens se aproximam da atriz e passam a tocá-la. São homens que passam mais arrumados, outros com seus moletons e bonés, o gari, os moradores de rua. Alguns tocam, dançam, apertam, agarram. Casados ou solteiros, essa questão não interessa ou sequer importa. Existe um corpo exposto e esse corpo é o socialmente lido como feminino. Acredito que agora é importante pensar a respeito da disponibilidade dos 169

corpos ditos femininos na nossa sociedade. Os corpos das mulheres foram utilizados como forma de barganha através dos tempos. Se no início da propriedade privada, as mulheres cis foram cercadas junto das terras pelos homens cis para que estes tivessem certeza que sua herança seria repassada para seus herdeiros legítimos. Na idade média o casamento vem aumentar estas cercas, com a divinização das mulheres e a moralização dos corpos e comportamentos relacionados ao feminino, agora “abençoados por Deus” através da legitimidade do poder da instituição Igreja Católica Apostólica Romana, que é até hoje a religião cristãocêntrica que ainda institui nossas moralidades, nosso calendário, costumes e datas comemorativas entre tantos dispositivos de concentração simbólica na sociedade ocidental. Desde então sofremos um processo cerceador de liberdades, de padrões de comportamento de gênero e de funções sociais bem delimitadas desde o nascimento, trajetórias marcadas pelo rosa, pela fragilidade, pela passividade, pelo cuidado, pela delicadeza, pela maternidade, pelos trabalhos domésticos, pela magreza, pela busca insaciável pela dita beleza, pelas “cantadas”, pelas instituições (Estado, Igreja, Família, etc.), pelas violências de gênero. O nosso corpo e vivências demarcados e fragmentados através dos tempos em que as únicas donas por direito, nós mesmas, não somos sequer consultadas. A expressão “nosso corpo nos pertence” tem sido uma das bandeiras centrais do movimento feminista desde os anos 1970. Ela expressa a vontade de autonomia das mulheres, de ter desejos e exercê-los sem o controle dos homens de sua família, do Estado ou das instituições religiosas. Ela recobre o questionamento à imposição de padrões de beleza, de normas na sexualidade e na reprodução. Aparentemente a mudança de costumes, a maior presença das mulheres na vida pública e avanços tecnológicos como a pílula anti-concepcional, teriam feito desta bandeira uma realidade. Mas, para quantas? E, por quanto tempo? Qual a atualidade do debate em relação ao direito das mulheres de decidirem sobre seu corpo? O que temos visto nos últimos anos é que as pressões dos homens cis brancos, das instituições religiosas e do Estado se somam às ofertas e exigências do mercado. O mercado se apropria de elementos tradicionais da construção do gênero feminino, como no caso da violência obstetrícia da cesariana a qualquer custo, em que as mulheres cis têm o seu direito de escolha de como vão parir (normal ou procedimento cirúrgico) negado, pois a cesariana é mais rentável ao mercado da saúde 170

em que os médicos escancaram a relação de clientela; e das próteses e hormonizações de mulheres trans, que tem seus direitos a vivência com o gênero que se autoidentificam negociados no mínimo por dois anos com o “acompanhamento” psicológico e após isso, constantes humilhações no tratamento de hormonização com progesterona e as “facadas” para a adequação do corpo com plásticas e próteses. O fundamentalismo religioso e sua influência sobre as políticas públicas que usa argumentos reacionários e conservadores para reiterar a lógica androcêntrica e heteronormativa, a fim de coibir a autonomia sexual e auto-determinação reprodutiva das mulheres, limitando as possibilidades de prazer e estigmatizando as identidades sexuais que diferem da norma dominante. Ao refletirmos sobre essa lógica do acesso das normas e repressões aos corpos ditos femininos, voltemos para o curta “Amor com a cidade”. A atriz então passa a interagir com os homens na rua. Como se trata da madrugada em uma grande metrópole, se a mulher está na rua neste horário e teoricamente sozinha corresponde ao arquétipo da puta, discussões que já travamos no capítulo 2. Os homens se sentem a vontade para tocá-la e pegá-la sem o menor constrangimento com a câmera. O machismo nosso de cada dia grita nessas imagens e revela a lógica a que estamos inseridos nas dinâmicas de gênero. A princípio, e neste caso, Juliana Dornelles permite a interação, mas isso revela muito do que vivenciamos em sociedade todos os dias.

Figura 79 – Amor com a Cidade

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Neste ponto, o filme dá uma virada de clima e cenário. Estamos em Porto Alegre agora e nesta cena estão um policial, Juliana Dornelles e mais duas pessoas da produção, todos devidamente vestidos e com a seguinte fala da autoridade: “Eu sou sociólogo, estudei ciências sociais, por isso eu até compreendi a senhora. Mas pela lei fria, é algema prá trás e vai nua mesmo pra delegacia na viatura.” A farda toda simbólica, a garantia da ordem no estado do Rio Grande do Sul caminha ao lado da mulher famigerada que anda nua pelas ruas da cidade e conversam. Há, ao menos, a tentativa de um entendimento. “Procuramos as gangues, mas até elas te deixaram. Eu garanto que tudo vai ser totalmente igual a sempre.”

Figura 80 – Amor com a Cidade

O curta neste momento passa a erotizar o espaço público da capital gaúcha. A atriz desce andando nua pela rampa do Viaduto da Av. Borges de Medeiros. Se esfrega nas estruturas de um edifício e no chão da praça. Formas de amor, de afeto e de tesão pelos frio concreto, pela sujeira, pelos grandes calçadões, pelo asfalto. “Reprimiremos teus episódios de loucura, mas aplaudiremos o teu sucesso.”

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Figura 81 – Amor com a Cidade

A escadaria da Rua Duque de Caxias é a parceira da vez. As grandes estruturas, os prédios, corrimãos, as grades de metal, os degraus dialogam, encostam e excitam, presenciam siriricas e penetrações, os orgasmos de Juliana. Os cachorrxs e os gemidos denunciam sua presença e sua ocupação das ruas no silêncio da madrugada. Uma imagem interessante é o rosto de Sarney pintado em um dos lados da escadaria em que a atriz o lambe. Os seguinte dizeres acompanhar o stencil: “Fora Sarney”.

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Figura 82 – Amor com a Cidade

“Estou sempre fugindo de ti. Eu fujo dos teus bons modos. Me dominas, me arrasto pelo teu corpo. Me arrasto pelo teu corpo.” Juliana sorri. As cenas dos espaços públicos da cidade se fundem com as tomadas dentro do bar Tutti Giorni, no Gazômetro, no Mercado Público. Ela se lambuza com cerveja, a esfrega em seu corpo, deslizando sua mão de cima embaixo. Aparece na orla a luz do luar beijando as grades frias que avisam que o mar é logo ali. Se arrasta pelas ruas da cidade, rasteja. Canta com as estátuas da praça. Interage com xs clientes do bar. Quase sempre nua.

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Figura 83 – Amor com a Cidade

“Eu comi um bolinho, um bolinho. Me seguras tal como um gambá machucado agarrado na cerca. Estás tão ferida que te derretes pelo chão. Gosto da tua melodia.” O mijo e o amor com as estátuas voltam a cena antes de deixar a capital gaúcha. Como se fosse despedida, a satisfação sentida por Dornelles materializada no mijo sobre o banco da praça, o gozo vivenciado de outra maneira. E o abraço e afeto dedicado a estátua para selar a volta a São Paulo.

Figura 84 – Amor com a Cidade

De volta a paulicéia, o local é o bar Santa Cecília. Depois de tanto concreto e estátuas, ela volta a tentar criar um contato com outras pessoas. Juliana está sentada no balcão enquanto toma sua cerveja e observa as pessoas que estão também dentro do bar, em sua maioria homens. Em determinado momento ela começa a levantar a 175

blusa a fim de perceber os olhares a ela destinados. Os funcionários do bar ficam nitidamente constrangidos e procuram não dirigir o olhar para ela, enquanto um homem cambaleia no banco ao lado dormindo, talvez de cansaço, talvez por bebedeira. Então, ela se dirige até o fundo do bar e lá tira a blusa por completo. O homem sentado no banco não acorda e cada vez mais pessoas passam rápido pela imagem. Essas cenas do bar passam a se misturar com a fachada da catedral da Sé.

Figura 85 – Amor com a Cidade

“Ninguém me serve mais um copo. Não me servem mais nada. Estou invisível. Mais uma! Mais!” O curta volta para o centro de São Paulo. A catedral, a praça, os garis, os moradores de rua, a solidão, os vazios e o silêncio de uma grande cidade e suas grandes estruturas. Juliana Dornelles circula pela escadaria e senta em frente à porta central da igreja. Com Jesus crucificado ao fundo cravado no mármore ela, sentada de pernas abertas na escadaria, se masturba. Ao fundo uma trilha que diz “Seja a noiva”.

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Figura 86 – Amor com a Cidade

Essa tomada traz toda a carga que a religião traz sobre a vida das mulheres, como as normatiza e dogmatiza. Seja santa, não puta. Seja mãe, não aborte. Seja esposa, não solteirona. Seja hétero, não sapatona. Se dê ao respeito, não goste de sexo. Se comporte, feche suas pernas, seja descente. Por isso tudo, a postura de Juliana traz uma potência de transgressão muito forte. “Seja noiva” é a expressão normativa no curta que simboliza todas as repressões e opressões que o gênero e o sexo feminino construídos na nossa sociedade ocidental sofre a partir da instituição Igreja. A performance traz à tona a submissão a dogmas da religião cristã em um Estado Laico, empoderando um terrorismo de Estado. A instituição Igreja Católica apoia e legitima a quebra, violação e mutilação ao longo da história mundial. Reforçar os preconceitos e as normatividades, que regulam os gêneros, os corpos e as práticas sexuais das pessoas, continua a ser legitimados e incorporados no social como “normais” e ordinários. Por isso, a performance de Juliana Dornelles balança a ordem social, mostra os borrões, suas fissuras. Ela vem desconstruir o padrão comportamental de ser mulher, gozando na cara da instituição católica.

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Figura 87 – Amor com a Cidade

“Onde tá a tua porta? Onde tá a tua porta? Você tem que gozar. Esse mapa… Esse mapa gozado me agrada ainda mais do que a espera.” As estruturas do curta “Amor com a cidade” gritam. Primeiro por ser uma obra documental e ficcional ao mesmo tempo, revelando e erotizando o espaço urbano. O sexo ocupando as ruas frias e tomadas pelo concreto e seus enormes edifícios, pontes, escadas, passarelas. E uma mulher empoderando a sua sexualidade e o seu prazer no espaço público e, mais do que isso, gozando na cara da sociedade, deixando o seu “molhado” pelas ruas que passou. A nudez escancarada de Juliana traz algumas vezes o constrangimento para quem lida com ela, no caso dos bares e da abordagem policial, ao mesmo tempo em que vem mostrar como em nossa sociedade machista os corpos que remetem ao feminino são convites e podem ser acessado a qualquer momento, independente da vontade da dona do corpo e da subjetividade em questão, no caso das cenas com homens tocando a atriz e penetrando no curta. Machismo e sexismo expondo suas estruturas nuas e cruas. Contudo, da mesma forma que em “Authority” e “Cabaret Desire”, os corpos continuam a serem brancos, magros e depilados em grande medida. Em todos os filmes analisados podemos visualizar o padrão corporal estabelecido como desejável, pois mesmo na estória “Two Alexes” em que a protagonista é gorda, não é uma pessoa tão gorda que não possa ser desejada, existe um limiar e higienização da 178

gordura também. Em todos os filmes que analisamos a presença de pessoas negras não foi detectada, contudo como refletimos no capítulo 2 temos que entender a relação que se constrói com esse protagonismo de estórias e de produção da população negra, em especial das mulheres negras. Em relação aos pelos, por mais que seja um grande passo no sentido de que eles estejam na tela e tem seu espaço, o que aproxima as pessoas que assistem da vivência virtualizada. A buceta empoderada de Juliana Dornelles joga seus pelos na cara dx telespectadxr que a assiste e para quem ela performa, característica que ocorre também nos outros dois filmes. Mesmo com a potência despertada pela nudez e a ocupação dos espaços públicos, a siririca que faz gozar sem a necessidade de outrem, o prazer ainda fica muito vinculado às genitálias, a perspectiva de sexo e gênero feminino, mesmo com poucas penetrações, a alusão ao falo nas formas da cidade é recorrente e evidente, dando um tom um tanto quanto heteronormativo ao curta. As roupas que a atriz usa no filme também trazem traços da dita feminilidade padrão: unhas pintadas, salto alto, saias rodadas e rosas, peças mais justas. Ela questiona sua condição de mulher no machismo enraizado ao sair pelas ruas dona de si, ao mesmo tempo que reitera símbolos de feminilidade e de sexualidade. Quando se pensam “todas” as mulheres, é fundamental perceber que nossas complexidades (nossos corpos, nossas experiências de vida, nossas dificuldades) excedem enormemente qualquer simplificação feita que atravessam tantos cotidianos. Outra questão importante de tocarmos é o fato das marcas da colonialidade estarem um tanto borradas ou não tão nítidas, já que estamos falando de um curta produzido abaixo do Equador, contudo localizadas em regiões beficiadas no contexto brasileiro. A produção foi realizada em São Paulo e Porto Alegre, duas cidades e que reproduzem mais fortemente o padrão eurocêntrico e colonizador de civilidade, disciplinar, comportamento, corporeidade, entre tantos outros. Contudo, não podemos negar que falamos de uma terra colonizada, de pessoas que são sistematicamente excluídas de processos decisórios sobre seus próprios destinos, às exclusões, controles e violências impostos a pessoas cujas vivências de gênero sejam tidas como inconformes, indesejáveis, abjetas, imorais – exclusões, controles e violências que entendo como colonizatórias. Pensamos a respeito no segundo capítulo dessa dissertação sobre o discurso pós-colonial que amplia o escopo dos estudos e passa a entender o gênero e a sexualidade como projetos de dominação colonial. Por isso, a representação de Juliana Dornelles traz uma pitada de pornô ainda impregnado da 179

branquitude e dos padrões europeus na estética da feminilidade, na magreza, da abordagem impulsiva do homem negro pelo sexo. Também traz o sabor dos trópicos evidenciando a sujeira, a transgressão dos corpos nus e o gozo perambulando pelas vielas e avenidas das cidades. Pensar os mecanismos artísticos e culturais que levam, e levaram, à exotificação de subjetividades coloniais permite tanto que se tornem mais complexas as avaliações históricas do colonialismo, quanto que se fundamentem em bases históricas as diversas expressões opressivas contemporâneas (ver LOOMBA, 1998, p. 151-172). E dessa forma podemos (des) colonizá-las, o que não ocorre no curta.

Considerações finais Chego ao fim desta dissertação com vários sentimentos e sensações pelo corpo todo. Foi uma experiência em que fui do prazer de dar voz a minha sexualidade e a política que proponho não só nos trabalhos da academia, mas como vivência, a dor de parir um texto tão extenso, modificador da minha existência e de mudanças de paradigmas na minha zona de conforto enquanto mulher cis, branca de classe média. Mexer em nossos benefícios e se posicionar sempre exige coragem, maturidade e energia. Quando cheguei ao Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade imaginava meu trabalho em uma perspectiva mais identitária e com uma visão de mulheres ainda arraigada com o feminismo tradicional e que flertava com a perspectiva biológica. Essas formas de encarar as questões de gênero e sexualidade vem da minha formação na Marcha Mundial das Mulheres e no coletivo Primavera nos Dentes, que foi um divisor de águas em minha trajetória, em que me compreendi melhor, me empoderei, me formei, me assumi e me reconheci meu lesbofeminismo. Contudo, como escrevi acima, ainda insipiente nos estudos queer, com transfeminismo e o feminismo interseccional. Foi durante as disciplinas do mestrado, as reuniões dos grupos de pesquisa CUS e Cultura e Subalternidades e as vivências nordestinas que passei a movimentar a minha perspectiva não apenas teórica como na forma de me relacionar com o mundo. Em relação a minha pesquisa sobre Pornografia Feminista, as mudanças foram drásticas. Passei a perceber os três filmes escolhidos (Authority, Cabaret Desire e 180

Amor com a Cidade) para além da construção das personagens e das técnicas fílmicas, que também foram levadas em conta, e que passamos a analisar toda a estrutura que constrói não só as representatividades de gênero e de sexualidade, mas como elas são transversais a várias categorias como classe, tecnicidade, cisnormatividade, monogamia e corporeidade. Todas elas se articulam a fim de manter o regime farmacopornográfico que nos disciplina, vigia e pune. Todas essas reflexões vieram à luz dos estudos queer, subalternos e interseccionais. Os três capítulos, por mais que acabem seguindo o formato tradicional de uma dissertação, tem a intenção de formar um quebra cabeça que aos poucos vão se juntando as peças em suas encruzilhadas de paradigmas e de desvelar de fronteiras. A partir dessas percepções, o que pudemos desconstruir foi exatamente o discurso pornográfico mainstream a partir das produções feministas, que denunciam a ficção a partir da diferença da repetição do erotismo e da pornografia que liberam a potência de outros protagonismos de gozo, corpos e prazer. Acredito que as possibilidades de produções realizadas a partir das mulheres e direcionadas para as pessoas que representam o feminino na sociedade são potentes na sua modificação do estereótipo dos gêneros de várias maneiras. Em todos os filmes, a sexualidade das pessoas femininas são protagonizadas por elas, a heteronormatividade é posta em cheque com a lesbianidade e a não-cisnormatividade em “Authority”, a bissexualidade, a independência financeira, o sexo sem apego e a não-monogamia de “Cabaret Desire”, além do protagonismo por si só da seu prazer e gozo a partir da buceta que ocupa o espaço público e a questão geracional em “Amor com a Cidade”. É interessante que todos eles jogam com as estruturas opressoras desafiando seus limites, borrando algumas normas, porém também reproduzem algumas normas. Em “Authority”, “Cabaret Desire” e “Amor com a cidade” vemos em sua grande maioria corpos brancos e magros que se adequam a perspectiva da ditadura da magreza e da estética da beleza que desmerecem e desvalorizam corpos gordos, com outras formas de existência como as pessoas com deficiência física, e de pessoas negras ou de outras etnias, que geralmente são representadas nas produções pornográficas de maneira bizarra e exotificante. No filme brasileiro, ainda podemos fazer a crítica em relação à cisnormatividade que é exaltada ao mesmo tempo em que faz pulsar o gozo a partir da buceta. Percebemos que as encruzilhadas das categorias

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que desconstroem as opressões enfrentam o paradigma de por vezes fazer ecoar as normativas que disciplinam e controlam as existências e corporeidades. A perspectiva que tentamos traçar a partir de nossa análise na dissertação é de não repetir o movimento de padronizar o modelo de pornografia, prazer e corporeidade. A intenção é desmistificar as estruturas e categorias que hierarquizam as pessoas, suas formas e vivências corporais, de identidade de gênero, de orientações e de práticas sexuais. Entender que o desejo e o gozo continuam a existir dentro da estrutura normativa, mas que também existem as possibilidades de borrar as marginalidades e propor outras formas de vivenciar suas vontades e suas formas corporais. O feminino como protagonista desse trabalho é uma proposta revolucionária e pretende também demonstrar a diversidade a partir da diferença que une as perspectivas de luta e desmistificação da pornografia através do feminismo. A dissidência de corporeidades, sexualidades, transidentidades, etcnicidades, entre tantas outras possibilidades despertam a Pornografia Feminista como instrumento político-artístico que desconstrói e que fissura o cistema e a heteronorma.

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