Dissertação - O veneno está na mídia? a produção jornalística sobre o Caso do Leite Humano Contaminado por Agrotóxicos

May 25, 2017 | Autor: Raíza Tourinho Lima | Categoria: Jornalismo, Agrotóxicos, Jornalismo Impresso
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FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ – FIOCRUZ INSTITUTO DE COMUNICAÇÃO E INFORMAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA EM SAÚDE – ICICT PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO EM SAÚDE – PPGICS

RAÍZA TOURINHO DOS REIS SILVA LIMA

O VENENO ESTÁ NA MÍDIA? A produção jornalística sobre o Caso do Leite Humano Contaminado por Agrotóxicos

Rio de Janeiro 2016

RAÍZA TOURINHO DOS REIS SILVA LIMA

O VENENO ESTÁ NA MÍDIA? A produção jornalística sobre o Caso do Leite Humano Contaminado por Agrotóxicos

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), como requisito parcial do Programa de PósGraduação em Informação e Comunicação em Saúde (PPGICS) para a obtenção do título de Mestre em Ciências.

Orientadora: Profª. Drª. Rosany Bochner Co-orientadora: Profª. Drª. Janine Miranda Cardoso

Rio de Janeiro 2016

RAÍZA TOURINHO DOS REIS SILVA LIMA

O VENENO ESTÁ NA MÍDIA? A produção jornalística sobre o Caso do Leite Humano Contaminado por agrotóxicos

Aprovado em 29 de abril de 2016.

Banca Examinadora:

______________________________________ Profª. Drª. Rosany Bochner – Icict/Fiocruz (orientadora)

______________________________________ Prof. Drª. Janine Miranda Cardoso - Icict/Fiocruz (co-orientadora)

__________________________________ Prof. Drª. Kátia Lerner - Icict/Fiocruz

______________________________________ Profª. Drª. Josino Moreira Costa – Cesteh/Ensp/Fiocruz

Dedico este trabalho

Para minhas raízes, João Carlos, Rita e a mulher mais forte que eu conheço, Benedita dos Reis, de quem herdei a teimosia; e para o meu fruto, meu grande amor Pedro Raoni

AGRADECIMENTOS Das poucas certezas que me restaram, tenho convicção de que a gratidão é uma dessas forças poderosas que movem o universo, ao lado de sentimentos nobres e arrebatadores como o amor. Tenho muito a agradecer ao final desta jornada de dois anos que valeram por uma década. Agradecer, inicialmente, por chegar ao final, ou melhor, às reticências. Agradecer por ter conseguido provar que o “eu consigo” é um mantra extremamente poderoso, pois consegui sobreviver às horas intermináveis dentro do ônibus, a leituras difíceis, a dúvidas e incertezas de uma mãe de primeira viagem, ao custo de vida de uma das cidades mais caras do Brasil, a jornadas múltiplas, a noites sem dormir, a febres, a doença, ao desespero, a dor, a solidão, à saudade e à insegurança. Sim, bons marinheiros não se fazem em mares tranquilos. Mas tampouco se fazem sozinhos. Sendo assim, minha gratidão mais generosa é dedicada a todos aqueles que me ajudaram a enfrentar essa jornada, cujo fruto foi parido, tal qual meu primogênito, sem anestesia ou episiotomia. Listarei nominalmente aos mais presentes, mesmo que à distância, que foram fundamentais neste par de anos, pela escuta, pelo apoio, pelo colo, pelo amor. Mas, sem dúvida alguma, foram muitas pessoas, que às vezes com uma palavra, com um gesto, um conselho, um abraço, me deram forças para seguir adiante. À minha família, que não só me ensinou a sonhar, como sonhou junto comigo, e me deixou alçar esse voo, apesar da saudade. Benedita, João Carlos, Rita, Amanda, Sura, João Bruno, João Carlos, Yaninna, Clemilda, Ana, Palmiro, João Arthur, Sophia e Eva. Obrigada por estarem sempre ao meu lado e acreditarem em mim, até quando não acredito. Vocês são fundamentais. Aos meus meninos, que mesmo com todas saudades, medos e ressalvas, embarcaram comigo nesta minha loucura, enfrentando anjos e demônios nesta cidade que transborda tudo. Obrigada Rafael. Seu apoio foi imprescindível nesta jornada, sem você não teria conseguido, mesmo que por vezes tenha te pedido mais do que você conseguiu me dar. Pedro Raoni, você foi minha força e seu sorriso minha luz. Obrigada por me estimular a ser a melhor versão de mim todos os dias. Amo vocês com toda minha alma. À família ampliada, Cid, Lia, Rosana, Walter, Marina, Edmundo, Maurício, obrigada por nos ajudarem quando precisamos. Aos meus colegas do PPGICS, a melhor turma de todas. Obrigado pelo estímulo, pelos abraços, pelos bombons, pelos compartilhamentos, pelos apoios, pelas leituras, pelas dicas e pelos aprendizados. Levarei vocês sempre no meu coração. Renata e Agatha, obrigada pelo apoio imenso nos momentos finais. Aos professores do PPGICS, que me ensinaram a desnaturalizar meu mundo, tornando-o mais amplo e complexo. Gratidão pelos ensinamentos, que vão além deste trabalho, me atravessarão pela vida. À equipe da Assessoria de Comunicação do ICICT, em especial Cristiane d´Ávila, por me acolherem tão bem, me mostrarem um novo mundo profissional, acreditarem no meu potencial e me compreenderem nos momentos difíceis. Não consigo imaginar como tudo teria sido mais complicado se não tivesse encontrado vocês. Gratidão eterna.

A Rede Global de Bancos de Leite Humano, pela oportunidade que me deu de conhecer esse trabalho fascinante e fazer um pouco parte desta história. Aos meus amigos de lá, que estiveram comigo nas “férias”, nas redes sociais, no Whatsapp, no pensamento. Ana Pérola, Rodrigo, Fernanda, Carlene e Carolina. Obrigada. Pela escuta, pelo apoio, pelos conselhos, por acreditarem em mim, por não me abandonarem. À Mariana Sebastião e Vinícius Maurício, pelo estímulo, trocas, ideias e por me levarem pela mão e me ajudarem a dar esse passo. À Karina, por se encaixar em tantas categorias que precisou de uma exclusiva. Obrigada pela amizade verdadeira e a presença constante sempre. Aos colegas da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida, pela acolhida, ensinamentos, e mostrar que um mundo melhor é possível. Aos professores Josino Costa e Wanderlei Pignati, pela interlocução e valiosas contribuições. À Janine Cardoso, pela amizade e carinho, e por embarcar com a gente nesta empreitada, compreendendo, orientando e me estimulando, especialmente nos momentos cruciais. À Rosany Bochner, minha orientadora, pelo espaço, pela amizade e carinho, tão importantes neste período. Obrigada por, do seu jeito, me orientar na vida. A Capes, que possibilitou a realização deste trabalho. Aos muitos outros que me deram a régua e o compasso para chegar aqui (minha eterna orientadora Simone Bortoliero; professores e colegas da Universidade Federal da Bahia; colegas do Jornal A Tarde e do Ecodesenvolvimento; mestres e colegas da Escola Brasil de Jornalismo Científico, etc.)

Muito Obrigada!

Das Pedras Ajuntei todas as pedras que vieram sobre mim. Levantei uma escada muito alta e no alto subi. Teci um tapete floreado e no sonho me perdi. Uma estrada, um leito, uma casa, um companheiro. Tudo de pedra. Entre pedras cresceu a minha poesia. Minha vida... Quebrando pedras e plantando flores. Entre pedras que me esmagavam Levantei a pedra rude dos meus versos. Cora Coralina

RESUMO

Esta dissertação se propõe a compreender a produção jornalística nos jornais impressos brasileiros sobre agrotóxicos, diante da divulgação dos resultados de um estudo que encontrou resíduos de organoclorados no leite humano de residentes de Lucas do Rio Verde, em 2011. Para tanto, analisamos os sentidos produzidos, os tipos de discurso evocados e o contexto noticioso sobre os agrotóxicos e o que denominamos de caso do Leite Humano Contaminado em oito jornais de diferentes regiões brasileiras de portes variados, no período de 15 de março a 15 de maio de 2011. São eles: A Gazeta (MT); Diário de Cuiabá (MT); Diário do Nordeste (CE); Diário do Pará (PA); Folha de S.Paulo (SP); Estado de S.Paulo (SP); O Globo (RJ); Zero Hora (RS). Para tanto, nosso olhar foi guiado pelos conceitos da Semiologia dos Discursos Sociais, de Milton José Pinto, e o aporte teórico de Mikhail Bakhtin, Eliseo Verón, Michel Foucault, Norman Fairclough, Eni Orlandi, Inesita Araujo, Janine Cardoso, dentre outros. Observamos na análise a existência de três tipos de discurso sobre agrotóxicos: o negativo (que denominamos do veneno); o positivo (do remédio); e o do uso correto, que se detém ao manejo (uso abusivo) e características externas (se é falsificado, ilegal) destes produtos. Estes tipos de discursos estão vinculados a cinco perspectivas predominantes (econômica, agronômica, político-ideológica, ambiental e a da saúde) e a comunidades discursivas próprias. Os sentidos privilegiados em relação ao caso do Leite Humano Contaminado são a do leite materno como um alimento puro, imaculado, benéfico para a saúde do bebê e da presença de resíduos de agrotóxicos no leite como perigosa, arriscada e danosa à saúde da criança. Observamos que estes sentidos legitimam que o caso seja posteriormente utilizado como exemplo a ser evitado.

PALAVRAS-CHAVE: Jornalismo, Agrotóxico, Leite Humano, Jornais impressos, Discursos

ABSTRACT This research aims to understand the journalistic production in Brazilian newspapers on pesticides due to release the results of a study that found organochlorine residues in human milk in Lucas do Rio Verde, in 2011. Therefore, we analyze the meanings produced the kinds of speech evoked and news context of pesticides and what we call “The Case of Contaminated Human Milk”, in eight newspapers from different Brazilian regions of varying sizes, from 15 March to 15 May 2011. They are: A Gazeta (MT); Diário de Cuiabá (MT); Diário do Nordeste (CE); Diário do Pará (PA); Folha de S.Paulo (SP); Estado de S.Paulo (SP); O Globo (RJ); Zero Hora (RS). Therefore, our gaze was guided by the concepts of Semiotics of Social Discourses, from Milton José Pinto, and the theoretical framework of Mikhail Bakhtin, Eliseo Verón, Michel Foucault, Norman Fairclough, Eni Orlandi, Inesita Araujo, Janine Cardoso, among others. We observed in the analysis the existence of three types of discourse on pesticides: the negative (we call poison); the positive (the remedy); and the correct use, which holds the management (abuse) and external characteristics (if it is fake, illegal) of these products. These types of speeches are linked to five predominant perspectives (economic, agronomic, ideological-political, environmental and health) and their own discursive communities. The preferred meanings in relation to the case of human milk are contaminated breast milk as a pure food, immaculate, beneficial to the health of the baby and the presence of pesticide residues in milk as dangerous, risky and harmful to the baby's health. We note that these senses legitimizes the case is subsequently used as an example to be avoided. KEYWORDS: Journalism, Pesticide, Milk Breast, Newspapers, Discourse

SUMÁRIO INTRODUÇÃO......................................................................................................

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1. AGROTÓXICOS NO BRASIL: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO............... 1.1 Como erva daninha: modelo agrícola e o uso intensivo de agrotóxicos...... 1.1.1 Panorama atual................................................................................................ 1.1.2 Políticas e modelos alternativos....................................................................... 1.2 Agrotóxicos e agravos à saúde.......................................................................... 1.2.1 Subnotificação e problemas no registro de intoxicações................................. 1.2.2 Efeitos adversos dos organoclorados: caso DDT............................................. 1.3 O Caso do Leite Humano Contaminado......................................................... 1.3.1 O caso Lucas do Rio Verde.............................................................................. 1.3.2 Agrotóxico no leite humano?............................................................................

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2. NA ARENA DOS DISCURSOS........................................................................ 2.1 A batalha pela produção social dos sentidos................................................... 2.1.1 A disputa por fazer ver e fazer crer................................................................... 2.2 O embate jornalístico......................................................................................... 2.2.1 Os valores jornalísticos..................................................................................... 2.2.2 A identidade jornalística................................................................................... 2.2.3 A crise no meta sistema-perito?........................................................................

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3. CAMINHOS PERCORRIDOS.......................................................................... 3.1 Da teoria à prática: percurso e métodos.......................................................... 3.1.1 Opções metodológicas....................................................................................... 3.1.2 Delimitação do corpus....................................................................................... 3.1.3 Definição da análise........................................................................................... 3.2 Uma trajetória do Leite humano contaminado na mídia................................

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4. O VENENO ESTÁ NA MÍDIA?....................................................................... 4.1 Caracterização do corpus.................................................................................. 4.2 A cobertura jornalística sobre agrotóxicos...................................................... 4.2.1 Jornais presentes................................................................................................ 4.2.2 Jornais híbridos.................................................................................................. 4.2.3 Jornais ausentes.................................................................................................. 4.3 Sobre presenças e ausências............................................................................... 4.3.1 Os tipos de discurso............................................................................................ 4.3.2 A ausência do caso.............................................................................................

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5. LEITE DERRAMADO: A CONTAMINAÇÃO DA PUREZA...................... 5.1 O acontecimento.................................................................................................. 5.2 A repercussão....................................................................................................... 5.3 Desdobramentos.................................................................................................. 5.4 O exemplo.............................................................................................................

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RETICÊNCIAS......................................................................................................... REFERÊNCIAS........................................................................................................ APÊNDICE................................................................................................................

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INTRODUÇÃO Antes que possamos começar a nossa interlocução neste estudo, sinto-me impelida a justificar ao leitor a motivação da pergunta que intitula este trabalho: “O veneno está na mídia?”. Sim, é verdade, o título é uma analogia – digna dos sem criatividade – do documentário dirigido por Silvio Tendler, O veneno está na mesa. Contudo, tal questionamento, como bem alguns podem imaginar, não surgiu da ideia de uma mídia tóxica que exala veneno. E, portanto, esta é uma resposta que nem chegaremos perto de encontrar. O veneno, objeto de nossa reflexão, possui uma materialidade física própria. É o veneno literal, quimicamente produzido, fruto de uma indústria que produz morte – mas que para sobreviver, promete semear a vida. Então, o sentido da questão inicialmente proposta por esta que vos escreve é a averiguação se o veneno – aí sim não só materialidade, mas também sentido de nomeação – aparecia na mídia. Será que as páginas de jornais, que nos prometem ser mediadoras da realidade que nos escapa, conseguem trazer consigo notícias tão importantes como as sobre a poluição química que estamos cotidianamente expostos, pelo ar, água, alimentos etc.? Será que os agrotóxicos, insumos químicos utilizados para controlar todo aquele ser vivo no qual não se vê “funcionalidade”, denominando-os assim de pragas, aparecem nestas tão importantes páginas no seu sentido mais tóxico, o de veneno? Será que o veneno (o literal e o simbólico) está presente na mídia nossa de cada dia? Foram estas inquietações que me moveram nestes 24 meses. Período insuficiente para responder tais perguntas, constantemente redimensionadas, cortadas, vistas de vários ângulos, na tentativa vã de chegar próximo de um ponto final. Sim, sinto decepcioná-lo, caro interlocutor, na contramão de toda técnica jornalística moderna – e, de uma certa ciência baseada no positivismo – neste estudo não chego a conclusões, não encerro o debate, não dou respostas. Tudo que temos por aqui são pistas. Rastros, exaustivamente traçados, analisados, questionados. Passos para um início de uma nova caminhada. Jornada esta que o convido a embarcar comigo nas próximas páginas. *** Há pouco mais de meio século, impulsionada pela indústria pós-guerra, o Estados Unidos vivenciava o aumento exponencial na produção e utilização de produtos químicos. A produção de pesticidas sintéticos quintuplicou após o fim da Segunda Grande Guerra, saltando de 56 mil toneladas, em 1947, para 290 mil toneladas, em 1960, sem que os

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impactos que o uso dos agrotóxicos sobre a fauna, flora, recursos hídricos, solo, ecossistema e, especialmente, à saúde humana, fossem profundamente conhecidos. Foi nesse cenário que a bióloga Rachel Carson descreveu em uma série de reportagens, publicadas pela revista The New Yorker antes de se transformar em livro, o resultado de quatro anos de pesquisa sobre as possíveis consequências ambientais do uso indiscriminado que os agrotóxicos poderiam trazer ao ambiente. O livro Primavera Silenciosa, publicado em julho de 1962, repercutiu na esfera pública norte-americana, recebeu inúmeros prêmios e foi posteriormente considerado o marco fundador do ambientalismo moderno. O debate público gerado em torno das evidências científicas reunidas por Carson levou à proibição do DDT (dicloro-difenil-tricloroetano), que a autora chamou de “elixir da morte”, em diversos países – Hungria, Noruega e Suécia ainda na década de 1960, nos Estados Unidos nos anos 1970, e, para uso agrícola, no Brasil, em 1985 (o DDT só foi completamente banido do país em 2009). A medida assegurou que ainda hoje a escritora seja vilanizada sob a acusação de ter causado o sofrimento de milhões de pessoas (HECHT, 2012). Além do uso agrícola, o DDT foi largamente utilizado para controle de vetores na saúde pública, reduzindo, e até erradicando, mosquitos transmissores de doenças como tifo, malária, chagas, dengue, febre amarela etc. (MELLO, 1999). Até os dias atuais a comunidade científica discute se os danos à saúde causados pelo DDT se sobrepõem aos benefícios causados pelo controle de vetores. Recentemente, a substância foi reintroduzida, com este fim, em alguns países do continente africano. Entre 2000 e 2010, a reintrodução do DDT na África do Sul reduziu em 89% os casos de malária, e em 85% os óbitos pela doença no país (MOONASAR et al., 2012). Em 2000, a obra de Carson foi considerada uma das melhores reportagens investigativas do século pela Escola de Jornalismo de Nova York. Consideramos a Primavera Silenciosa como o marco fundador da relação que pretendemos analisar neste trabalho, entre os agrotóxicos e o jornalismo, e, ao nosso ver, evidencia o papel essencial que a prática midiática possui em visibilizar questões dentro da esfera pública, possibilitando rupturas de paradigmas rumo a transformação social. ***

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O que denominamos de “caso do Leite Humano Contaminado” veio à tona na mídia no dia 15 de março de 2011, data da defesa do mestrado da bióloga Danielly Palma, no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). O estudo “Agrotóxicos em leite humano de mães residentes em Lucas do Rio Verde – MT” analisou a presença de dez substâncias no leite de 62 nutrizes, que tinham até dois meses após o parto, atendidas pelo Programa Saúde da Família na cidade. Das dez substâncias organocloradas analisadas, nove foram encontradas nas amostras, que continham entre um e seis tipos de agrotóxicos. Em todas elas, foram encontrados resíduos de DDE, um metabólito do DDT, agrotóxico com uso restrito no Brasil desde 1985, mas com alta persistência no corpo humano e no ambiente. Entre os problemas de saúde que essas substâncias têm o potencial de causar estão má formação fetal, indução ao aborto, alterações do sistema endócrino, e até câncer (PALMA, 2011). A pesquisa de Palma, contudo, avaliou somente um indicador (o leite humano), no âmbito de um estudo maior – a pesquisa “Impacto dos Agrotóxicos na Saúde do Ambiente na Região Centro-Oeste”, coordenada pelo médico e doutor em toxicologia Wanderlei Pignati, da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O estudo foi realizado em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, entre 2007 e 2010, e voltou a atenção para a Lucas do Rio Verde devido a um acidente com pulverização área ocorrido em 2006. Além da presença dos agrotóxicos no leite humano, caso recortado, foram encontrados resíduos em pessoas (professores), animais (rãs) e no ambiente (poços de água potável, amostras de chuva e até do ar). Apesar de, para um olhar com pouco conhecimento em toxicologia, o fato de que o leite humano apresente resíduos de agrotóxicos pareça alarmante, o leite materno nada mais é do que uma via de excreção, tal qual suor, urina ou lágrimas. Assim, a substância é considerada pelos toxicologistas como um bom indicador da exposição humana aos chamados POPs (Poluentes Orgânicos Persistentes), categoria que inclui os agrotóxicos organoclorados como os pesquisados por Palma, visto que estes são compostos lipofílicos, ou seja, que se dissolvem na gordura, se acumulando durante anos no organismo humano (por isso a caracterização de persistentes). Como a produção de leite materno requer alto teor de gordura, este acaba “consumindo” os contaminantes junto aos compostos acumulados no tecido adiposo da mulher (MESQUITA, 2001).

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Na literatura científica, tanto no Brasil quanto em diversos países, há inúmeros casos relatados da presença de resíduos de organoclorados no leite materno, com destaque para níveis mais elevados de contaminantes em mulheres residentes em regiões agrícolas com intenso uso de agrotóxicos (LANDRIGAN et al., 2002). Embora ainda não se saiba com precisão quais são os efeitos que a exposição em tão tenra idade possa acarretar no desenvolvimento destes indivíduos (SOLOMON; WEISS, 2002), alguns pesquisadores acreditam que os recém-nascidos são naturalmente mais vulneráveis à exposição a agentes químicos presentes no ambiente e, devido as suas características fisiológicas e pelo aleitamento exclusivo até os seis meses, estão mais sujeitos a agravos a saúde ao ingerir o leite contaminado (CARNEIRO et al., 2015). Contudo, a comunidade científica ressalta que a presença destes contaminantes no leite materno não invalida as vantagens do aleitamento materno (SOLOMON; WEISS, 2002; PALMA, 2011). Como acreditamos que um discurso não pode ser separado das suas condições de produção, do contexto, é pertinente discorrer aqui sobre o nosso lugar de fala. Apesar de ter trabalhado por dois anos em um site de jornalismo ambiental e possuir interesse acadêmico em questões socioambientais desde a faculdade, foi somente após o convite da orientadora deste estudo que conheci mais profundamente a gravidade do cenário brasileiro dos agrotóxicos. Após conhecer o tema, em um assombro contínuo com as evidências científicas sobre os agravos à saúde causados por esses agentes químicos, inclusive com cartas abertas de instituições de respaldo como a própria Fiocruz, alertando para a urgência da situação e a ineficácia do estado brasileiro em lidar com a questão, me deparei com o caso do Leite Humano Contaminado. Ainda hoje amamento meu primogênito, atualmente com quase três anos, e foi com grande preocupação que recebi a informação que o meu leite poderia estar contaminado, e não ser afinal um alimento tão nobre quanto o esforço para disponibilizá-lo aparentava. Todas as matérias que lia a respeito apenas intensificava a angústia que se delineava dentro de mim, informando detalhes sobre o caso, mas sem responder ao meu questionamento sobre se valia a pena a amamentação. Foram os artigos científicos e papers que me apaziguaram internamente, ao me ensinarem que a contaminação do leite humano é resultado de um processo mais intenso de exposição ambiental, quase “inescapável” portanto, mas que a amentação ainda assim se constitui a melhor fonte de nutrientes (carboidratos, proteínas, gordura e vitaminas) e imunizador para os bebês (AZEREDO et al., 2008; MEAD, 2008; PALMA, 2011), sendo

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o aleitamento materno considerada a estratégia mais efetiva com foco na criança de combate à morbimortalidade infantil, além de contribuir para o fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê (O’CONNOR; VAN ESTERIK, 2012 apud KALIL, 2015). *** O recorte no caso do Leite Humano Contaminado se justifica por ser um caso emblemático do que pretendemos investigar: a relação entre agrotóxicos e jornalismo. Diante da relevância do tema para a sociedade brasileira, e a necessidade de o consumo de agrotóxicos ser pautado com mais ênfase na agenda midiática, acreditamos que nossa pesquisa pode contribuir para aprofundar os raros estudos científicos sobre agrotóxicos na mídia, estimulando o debate sobre esta relação. O objetivo geral desta dissertação é analisar os discursos mobilizados na produção jornalística sobre o “caso do Leite Humano Contaminado” em jornais impressos de diferentes regiões brasileiras. Para tanto, buscamos traçar um panorama da produção jornalística sobre agrotóxicos no período; evidenciar os sentidos sociais que circulam no discurso jornalístico sobre os agrotóxicos; e, por fim, analisar os tipos de discurso que se apresentam na cobertura jornalística sobre o caso Leite Humano Contaminado. Deste modo, analisamos a produção jornalísticas sobre agrotóxicos e o caso do Leite Humano Contaminado em oito jornais de diferentes regiões brasileiras e de portes variados, no período de 15 de março (data da defesa da dissertação) e 15 de maio de 2011. São eles: A Gazeta (MT); Diário de Cuiabá (MT); Diário do Nordeste (CE); Diário do Pará (PA); Folha de S.Paulo (SP); Estado de S.Paulo (SP); O Globo (RJ); Zero Hora (RS). Destes, somente metade – A Gazeta (MT); Diário de Cuiabá (MT); Diário do Nordeste (CE); Folha de S.Paulo (SP) – veicularam o caso específico na versão impressa. Verón (2004) afirma que, em última instância, toda análise dos discursos é uma análise das diferenças. Para ele, é a identificação dos desvios que transforma as marcas em traços, tornando visíveis a gramática de produção dos textos. De acordo com o autor, um discurso jamais produz um único efeito, mas “desenha um campo de efeitos possíveis” (p.83). Deste modo, optamos por identificar os tipos de discursos, mapear os sentidos mobilizados, as perspectivas convocadas e as comunidades discursivas para compreendermos como se deu a produção jornalística sobre agrotóxicos diante do Caso do Leite Humano Contaminado.

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Nesta dissertação, utilizamos o referencial teórico circunscrito ao âmbito da Semiologia dos Discursos Sociais (SDS), como é concebida por Milton José Pinto (2002), compreendendo que o nosso papel, enquanto analistas, não é esgotar os sentidos veiculados nos textos jornalísticos, nem nos determos apenas em sua superfície material, mas compreendermos os processos sociais de produção de sentidos a partir das marcas ou pistas deixadas nos textos. Deste modo, a análise do discurso procura descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados aos produtos culturais empíricos da sociedade (PINTO, 2002). Considerando que a comunicação é o processo de produção, circulação e apropriação de bens simbólicos, os veículos de comunicação podem ser considerados um espaço de excelência para a produção e disseminação de sentidos sociais. Deste modo, os meios de comunicação se configuram como a principal instância que propicia a existência pública aos temas e sujeitos sociais (ARAUJO, 2009; PINTO, 2002; ARAUJO; CARDOSO, 2007). Nosso trabalho está dividido em cinco capítulos. O primeiro visa contextualizar o panorama atual de utilização dos agrotóxicos no Brasil, bem como detalhar um pouco mais o estudo sobre o qual se baseia nosso objeto empírico (o caso do Leite Humano Contaminado). O segundo capítulo visa apresentar a Semiologia dos Discursos Sociais e discorrer um pouco sobre as condições sociais de produção do jornalismo brasileiro. O terceiro apresenta os caminhos que trilhamos nesta jornada, contendo um mapeamento da trajetória de circulação do caso do Leite Humano Contaminado no período recortado para o estudo. Os tipos de discurso e sentidos mobilizados sobre os agrotóxicos são apresentados no quarto capítulo, no qual identificamos as semelhanças e diferenças entre os jornais, especialmente entre os que noticiaram e os que não veicularam o caso. É ainda neste capítulo que delimitamos a imagem que os veículos de comunicação que compõem nosso corpus de estudo fazem de si, o sujeito-jornal. No quinto capítulo analisamos, por fim, a produção jornalística sobre o caso do Leite Humano Contaminado, identificada como pertencente a quatro momentos: o acontecimento, a repercussão, os desdobramentos e o exemplo.

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1. OS AGROTÓXICOS NO BRASIL: UMA CONTEXTUALIZAÇÃO 1.1 Como erva daninha: o modelo agrícola e o uso intensivo de agrotóxicos Desde 2008, o Brasil ultrapassou os Estados Unidos e se consagrou como um dos maiores, senão o maior, consumidor de agrotóxicos do planeta1. Cerca de 1 milhão de toneladas de insumos são despejados anualmente nas lavouras, algo em torno de 5,2 litros por habitante, em uma conta simplista2. Nos últimos 40 anos, o consumo de ingrediente ativo aumentou 700%, enquanto a área agrícola aumentou 78% nesse período 3. Já na primeira década do século XXI, o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 93%, menos da metade do mercado brasileiro (190%) e não dá mostras de estagnação (CARNEIRO et al., 2015). Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que, em apenas uma década, o uso de agrotóxicos saltou de 2,7 quilos por hectare (kg/ha) em 2002 para 6,9 quilos por hectare em 2012, uma variação de cerca de 155% (LISBOA, 2015). Segundo o diretor-executivo da Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), Eduardo Daher, no ano passado, o setor teve uma receita bruta de US$ 12,2 bilhões, aumento de 4,3% ante a cifra de US$ 11,7 bilhões de 20134. Em 1995, este valor era de US$ 1,53 milhões (WACKIN, 2000, apud ALVES FILHO, 2002). O mercado bilionário dos agrotóxicos e a alta concentração do setor levam os pesquisadores a acreditarem que o crescimento exponencial da última década indique que o Brasil tenha virado destino final de agrotóxicos banidos, visto que dos 50 mais utilizados nas lavouras de nosso país, 22 são proibidos na União Europeia (CARNEIRO et al., 2015). Os agrotóxicos foram criados para fornecer uma destinação alternativa, um novo mercado, às indústrias de armas químicas herdadas das grandes guerras mundiais (LONDRES, 2012). Ao contrário de países como os Estados Unidos, no qual os agrotóxicos já eram um grande problema na década de 1960, até meados dos anos 1970

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Existem vários métodos para estimar o consumo de agrotóxicos do País: a comercialização, o consumo bruto, o consumo por hectare etc. Todos eles têm fatores limitantes: fidedignidade dos dados; disponibilização destas; métodos de contabilização; valor do dólar; padronização entre países; consumo de produtos ilegais e contrabandeados; etc. 2 Em uma conta mais sofisticada (considerando o preço do litro por agrotóxico e o valor da receita anual da indústria), Alan Tygel pondera que o consumo tenha chegado em 2014 a 7,36 litros de agrotóxico por pessoa. Artigo disponível em . Acesso em 14.10.2015. 3 Ver 4 Ver

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a agricultura brasileira não era químico-dependente. A utilização de agroquímicos (agrotóxicos e fertilizantes) no processo de produção se deu juntamente a automação das lavouras, sob forte estímulo do governo militar. A atuação do estado brasileiro foi essencial para estimular o crescimento do setor, visto que condicionou a obtenção do crédito rural à fixação de um percentual para a compra de agrotóxicos, considerados símbolo da modernidade no campo. O país então se tornou atrativo para as grandes indústrias químicas multinacionais que, no final da década de 1970, começaram a se instalar nas regiões Sul e Sudeste (PORTO, 2013; PERES, 2005). O Banco do Brasil, no início dos anos 1970, tornou obrigatório o direcionamento de 15% do valor dos empréstimos de custeio para a aquisição de agrotóxicos. De acordo com Alves Filho (2002) as políticas de crédito adotadas (recursos, taxas de juros e forma de amortização) foram favoráveis à aquisição desses insumos, especialmente entre 1974 e 1981, “período em que a parcela de Crédito Rural destinada à compra de agrotóxicos aumentou de 5% para 8% em relação ao volume global de custeio utilizado” (ALVES FILHO, 2002, p. 65). O Sistema Nacional de Crédito Rural, criado em 1965, vinculava à concessão de crédito agrícola à obrigatoriedade da compra de insumos agrícolas químicos pelos agricultores. Dez anos depois, em 1975, o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas começou a criação de empresas nacionais e a implementação de subsidiárias de corporações transnacionais de agrotóxicos e fertilizantes. Outro fator essencial foi a legislação vigente, até 1989, cujo marco regulatório pouco rigoroso facilitou o registro de centenas de insumos, inclusive já proibidos nos seus países de origem (LONDRES, 2012). Estas políticas estavam baseadas na segunda Revolução Agrícola, também conhecida como “Revolução Verde”, pacote tecnológico capitaneado pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) e o Banco Mundial, sob o argumento de acabar com a fome mundial (LONDRES, 2012) 5. “Os incentivos governamentais fizeram parte de uma política mundial orientada por interesses de mercado para países em desenvolvimento, já que, dos 38 países em desenvolvimento analisados, 26 subsidiavam o uso de agroquímicos” (PORTO, 2013, p. 143).

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A Revolução Verde foi lançada por Norman Borlaug, um dos cientistas responsáveis pelo desenvolvimento de sementes de arroz, milho e trigo de “alta produtividade” que supostamente aumentariam “vertiginosamente” a sua produção nos anos 1960 (LOPES, 2010).

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O paradigma científico-tecnológico da Revolução Verde expandiu-se pelo mundo articulando seis práticas básicas: as monoculturas, o revolvimento intensivo dos solos, o uso de fertilizantes sintéticos, o controle químico de pragas e doenças, a irrigação e a manipulação dos genomas de plantas e animais domésticos. Apesar de cada exercer uma função específica no funcionamento agrícola, “para que seja efetiva, deve ser adotada de forma combinada com as demais, criando um sistema técnico pouco flexível que induz à forte dependência econômica da agricultura em relação à indústria e ao sistema financeiro” (PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009, p.2). Ainda hoje, entretanto, podemos perceber as políticas herdadas da Revolução Verde no Brasil, a exemplo do estímulo a utilização de agrotóxicos através de isenções fiscais e tributárias. É o caso da redução de 60% na cobrança da alíquota do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), concedida a todos os agrotóxicos através do convênio 100/97, constantemente renovado6. Além disso, algumas dezenas de substâncias são isentas completamente da cobrança de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), e outras são isentas da cobrança de PIS/PASEP (Programa de Integração Social/Programa de Formação do Patrimônio do Servidor) e de COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social). Há ainda as isenções complementares implementadas em alguns estados, a exemplo do Ceará, onde a isenção de ICMS, IPI, COFINS e PIS/PASEP para atividades envolvendo agrotóxicos chega a 100% (LONDRES, 2012). De acordo com Porto (2013), o modelo de agronegócio voltado para os monocultivos e a produção de commodities agrícolas para a exportação, herdado da influência da Revolução Verde no país, é a raiz de numerosos conflitos agrários, impactos socioambientais e de saúde pública nos dias atuais. O autor identifica cinco possíveis impactos do agronegócio brasileiro: (1) concentração de terras, renda e poder político dos grandes produtores agrícolas, em locais habitados por populações tradicionais; (2) violência e impunidade no campo, com exploração de mão-de-obra (incluindo trabalho escravo e infantil), assassinatos de líderes e mortes por exaustão; (3) perda de terra, desemprego no campo e a consequente migração para as cidades, inchando-as e favorecendo o caos urbano; (4) impactos negativos sobre a segurança alimentar, visto que

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O convênio 100/97 expiraria em maio de 1999, conforme a redação original, de 1997. Desde então, fora prorrogado dezesseis vezes, sendo a última até o final de abril de 2017. Disponível em

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o agronegócio está voltado para vender mercadorias a países mais ricos ou para cadeias produtivas não-alimentares, como os biocombustíveis ou as siderúrgicas; (5) por fim, a contaminação química decorrente do uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, “uma das marcas da ‘modernização agrícola’ brasileira” (PORTO, 2013, p.141). Ao encontro deste panorama, está a influência e o poder angariado pelas multinacionais que controlam todo o ciclo produtivo, das sementes aos agrotóxicos (e aos medicamentos para a saúde humana, como a Bayer). Atualmente 130 empresas atuam no setor de agrotóxicos no Brasil, mas 96 são apenas para comercialização e 53% não têm a menor capacidade produtiva, sendo apenas importadoras. Assim, o mercado é controlado por dez multinacionais, que juntas responderam por 75% das vendas na safra de 2012/2013 (CARNEIRO et al., 2015)7. 1.1.1 Panorama atual Atualmente, há 381 ingredientes ativos e 1.786 produtos formulados 8 registrados nos Ministérios da Saúde, Agricultura e Meio Ambiente (responsáveis pela aprovação dos insumos) e são permitidos no Brasil de acordo com os critérios de uso e indicação estabelecidos em suas monografias. Em 2010, em relação ao risco à saúde, predominavam substâncias medianamente tóxicas (33%), seguidas das altamente tóxicas (25%), das pouco tóxicas (24%) e das extremamente tóxicas (18%). Em relação ao ambiente, 38% eram consideradas muito perigosas, enquanto as perigosas somavam 25%, as pouco perigosas, 8%, as altamente

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A Syngeta Seeds, empresa suíça produtora de transgênicos e agrotóxicos, chegou a ser judicialmente responsabilizada pelo assassinato do trabalhador rural Valmir Mota de Oliveira (conhecido como Keno), e pela tentativa de assassinato de Isabel do Nascimento de Souza, ambos integrantes da Via Campesina, em 2007. Eles foram atacados por um grupo de 40 homens armados, da empresa de proteção privada NF Segurança, no acampamento Terra Livre, em um campo de experimento de transgênicos da transnacional em Santa Tereza do Oeste (PR), ocupados pelos ativistas. Os ocupantes denunciavam a realização de experimentos ilegais com milho transgênico em zona de amortecimento do Parque Nacional do Iguaçu, prática vedada pela Lei de Biossegurança. A decisão foi proferida no dia 27 de outubro de 2015, pelo juiz de direito Pedro Ivo Moreiro, da 1ª Vara Cível da Comarca de Cascavel. Em sua decisão, o juiz reconheceu que não houve confronto e que “por mais reprovável e ilegítima que fosse a invasão da propriedade, não seria o caso de agir por conta própria, impondo pena de morte aos ocupantes, mas sim de procurar os meios legais de solução do conflito, afinal, o ordenamento jurídico considera crime o exercício arbitrário das próprias razões”. Disponível em . Acesso em 23.01.2016. 8 Dado obtido no relatório consolidado do sistema Agrofit, gerido pelo Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Disponível em . Acesso em 13.02.2015. Contudo, Carneiro et al. (2015) diz que o número de ingredientes ativos registrados é de mais de 450.

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perigosas, 7% — 22% não têm classificação de periculosidade ambiental porque foram registradas antes de 1990 (DOMINGUEZ, 2010). As maiores concentrações de utilização de agrotóxicos coincidem com regiões de maior intensidade de monoculturas de soja, milho, cana, cítricos, algodão e arroz. Mato Grosso é estado com maior consumo de agrotóxicos no Brasil, representando 18,9% do uso, seguido por São Paulo (14,5%), Paraná (14,3%) e Rio Grande do Sul (10,8%). (CARNEIRO et al., 2015). Em relação aos alimentos, em 2011 e 2012, foram encontrados resíduos de agrotóxicos em níveis irregulares e/ou em culturas proibidas em, respectivamente, 78% e 65% das amostras analisadas no Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA). “Em 2010 o resultado foi de 63% das amostras. Todavia, o mais preocupante é a diminuição do número de culturas analisadas com resultados divulgados, o que revela mudanças de metodologia e falta de dados” (CARNEIRO et al., 2015, p. 422). Em relação à análise da contaminação da água, o quadro é ainda mais desolador: 76% dos municípios não dispõem desses dados e apenas quatro estados (São Paulo, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Paraná) atingiram proporção de municípios monitorados superior a 40%, cumprindo o plano de amostragem estabelecido pela Portaria 2.914/2011 (BRASIL. MS, 2011). Essa portaria, que define o padrão de potabilidade da água e os critérios de seu monitoramento, exige pesquisa de 27 agrotóxicos (o que equivale a 5% dos 450 ingredientes ativos registrados no país); contudo, segundo o Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul, efetivamente foi investigada a contaminação por apenas 15 agrotóxicos em todo o país. Mesmo assim, das 18 unidades da federação que apresentaram dados, em dez (55,6%) foram encontrados agrotóxicos acima dos valores permitidos (CARNEIRO et al., 2015, p. 422).

Este modelo não se sustentaria se não tivesse uma base forte estabelecida. A bancada ruralista é o nome oficioso dado ao grupo de políticos que atuam em defesa dos grandes produtores rurais, independentemente da bandeira partidária. A maioria dos políticos que atuam no Congresso Nacional neste sentido compõe a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), fundada formalmente em 1995 e que atualmente reúne cerca de 200 membros, de diversos partidos, uma das maiores do Congresso. Entre os lobbies bem-sucedidos da FPA está a liberação emergencial do benzoato de emamectina para combater a lagarta Helicorvepa amigera, considerada “praga” em lavouras de soja, milho e algodão. Em 2007, a Anvisa havia negado o registro do benzoato

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pela alta toxicidade da substância ao sistema neurológico – diversos estudos identificaram efeitos neurológicos nas espécies testadas, como tremores, redução da capacidade motora, midríase (dilatação da pupila), alteração nos tecidos e degeneração neuronal (ANVISA, 2007). No entanto, desde abril de 2013, o Ministério da Agricultura desconsiderou as negativas dos dois órgãos responsáveis pela liberação de agrotóxicos (Anvisa e Ibama) e decretou estado de emergência fitossanitária ou zoosanitária no Brasil, permitindo assim a liberação do benzoato. Episódios como o do benzoato não serão mais exceção se um Projeto de Lei da bancada ruralista for sancionado. O PL 3200/2015, de autoria do deputado Covatti Filho (PP/RS), revoga a atual Lei de Agrotóxicos (7802/1989)9 e cria um marco regulatório que facilita o registro, deixando-o a cargo de uma comissão designada pelo Ministério da Agricultura. A Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito), que ainda muda a nomenclatura dos agrotóxicos, seria estabelecida nos mesmos moldes da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), que jamais rejeitou a liberação de um transgênico no país. O PL3200 ainda acrescenta que a proibição do registro de um agrotóxico se dá diante de “risco inaceitável de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica”, para características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor, perigo para o homem em relação aos testes de laboratório etc. Tenta-se assim estabelecer “um grau aceitável” de risco para saúde humana, meio ambiente e agricultura (AMEAÇA, 2015). Petersen, Weid e Fernandes (2009) explicam que a hegemonia da agricultura industrial ao redor do globo vem-se sustentando graças à influência política e a resistência a transformações da aliança entre as elites agrárias, agroindustriais e financeiras em torno do agronegócio. Para eles, as regulamentações e subsídios estatais e de organismos multilaterais criam as condições econômicas e institucionais necessárias para “sustentar a insustentabilidade do agronegócio”. Sem isso, “novos rumos para o desenvolvimento das agriculturas no mundo já teriam sido tomados em resposta aos críticos desafios socioambientais dos tempos atuais” (PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009, p.8).

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A Lei 7.802/1989 foi uma conquista das lutas sociais e do debate ambientalista que ganhara força no final da década de 1980, com o assassinato de Chico Mendes. Com apenas 23 artigos, ela conceitua agrotóxicos e afins; prevê os casos de proibição do registro de agrotóxicos; normatiza as embalagens e rótulos de agrotóxicos; estabelece os parâmetros para a propaganda comercial; delimita as competências da União, Estados, Distrito Federal e Municípios; determina a obrigatoriedade do receituário agronômico para a comercialização dos agrotóxicos; prevê também responsabilidades administrativas, civis e penais quanto aos danos causados à saúde das pessoas e ao meio ambiente, etc. (AMEAÇA, 2015).

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Os exemplos destes subsídios não faltam: em 1996, foram gastos cerca de US$ 70 bilhões nos Estados Unidos e, em 2002, US$ 320 bilhões na União Europeia, e o Brasil não fica para trás. Os autores afirmam que, apesar de se considerar o setor mais rentável da economia brasileira, os subsídios ao agronegócio brasileiro chegam a 100 bilhões de reais – para gerar em troca uma renda de 120 bilhões. Assim, “a poupança pública é mobilizada para sustentar uma economia de baixa rentabilidade que gera enormes custos ambientais e sociais não contabilizados nas estatísticas oficiais e que, além disso, transfere os riscos inerentes à sua atividade à sociedade” (PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009, p.8). 1.1.2 Políticas e modelo alternativos O novo rumo que propõem os autores se baseia no modelo agroecológico, que se contrapõe ao modelo hegemônico do agronegócio. A agroecologia pressupõe muito mais do que a adoção de uma agricultura orgânica (que propõe, de modo geral, o não uso de agroquímicos), buscando, além da utilização de insumos “verdes”, o diálogo com os saberes do homem e da mulher do campo, o empoderamento feminino e a revalorização das formas de trabalho coletivo e participativo (CARNEIRO et al, 2015). Para compensar o não uso de agroquímicos, compatibilizando eficiência produtiva e conservação ambiental, essa estratégia “funda-se no emprego inteligente dos recursos naturais por meio da articulação de conhecimentos de fronteira da ciência da Ecologia com os saberes populares aplicados nos métodos tradicionais de agricultura” (PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009, p.5). Um dos diferenciais é a perspectiva pela qual as “pragas” são percebidas: na agroecologia, os organismos indesejados não devem ser eliminados, mas sim manejados adequadamente, de modo a auxiliar na regeneração da fertilidade e na manutenção da produtividade do agrossistema. A produtividade dos policultivos, em relação a monocultura, é de 20% a 60% superior (PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009). A agroecologia já foi apontada como solução sustentável para a agricultura por diversos estudos. Em 2007, a própria FAO reconheceu a necessidade de substituir a agricultura convencional, cujo modelo agrícola apresenta sérios paradoxos: embora a produção de alimentos seja mais do que suficiente, milhões de pessoas permanecem submetidas à fome e à subnutrição. Além disso, o uso crescente de agroquímicos não está sendo acompanhado pelo aumento na produtividade das lavouras (FAO, 2007; LONDRES, 2012;. PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009; CARNEIRO et al., 2015).

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No mesmo ano, uma equipe de pesquisadores da Universidade de Michigan (Estados Unidos) fez um amplo levantamento de dados documentados em todo o mundo comparando a produtividade de sistemas convencionais, agroecológicos e tradicionais, em países em diferentes graus de desenvolvimento e clima. Com base na análise de 293 casos, o estudo concluiu que a agricultura agroecológica tem capacidade para abastecer toda a população mundial, tanto local como globalmente (LONDRES, 2012; PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009).

Por fim, a iniciativa “Avaliação Internacional sobre Ciência e Tecnologia Agrícola para o Desenvolvimento” (IAASTD, na sigla em inglês), que reuniu por três anos um grupo com 400 cientistas de todo o mundo e vários ramos do saber, apontou para a necessidade de ampliação de pesquisas voltadas para o desenvolvimento de outras funções-chave da agricultura, como às que contribuam para a mitigação dos impactos das mudanças climáticas, além de ser imperativo aproveitar o conhecimento tradicional dos pequenos agricultores dos países do Sul. O documento atesta, explicitamente, que presente geração de lavouras transgênicas não fornece nenhum caminho para atacar a fome que assola milhões de pessoas em todo o mundo. O Brasil é signatário do documento (LONDRES, 2012;. PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009). De acordo com Petersen, Weid e Fernandes (2009), a agroecologia é um caminho de “reconciliação” entre agricultura e natureza, com a desindustrialização da agricultura, oferecendo respostas consistentes à profunda crise socioambiental que estamos imersos: As políticas ambientais permanecem essencialmente voltadas para a preservação dos ecossistemas naturais, demonstrando pouco interesse pelos impactos ambientais dos agroecossistemas. Além disso, por estar mais centrada no conceito de preservação do que no de uso social dos recursos naturais, essa concepção termina por antepor o meio ambiente ao desenvolvimento. Já as políticas agrícolas continuam essencialmente mobilizadas em torno do objetivo de promover o crescimento da produtividade física e da rentabilidade econômica dos agroecossistemas no curto prazo, não incorporando qualquer preocupação com a reprodução das condições ecológicas para a manutenção da agricultura em longo prazo. O desencontro dessas perspectivas talvez explique por que, quando se aborda a problemática ambiental, frequentemente não se estabeleça uma relação imediata com a agricultura (ALMEIDA et al., 2001 apud PETERSEN; WEID; FERNANDES, 2009, p.8).

No Brasil, a agroecologia vem conquistando espaço nas políticas públicas aos poucos. Um dos primeiros frutos da mobilização dos movimentos sociais, pesquisadores e da sensibilização dos gestores sobre o tema foi a Política Nacional de Agroecologia e

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Produção Orgânica (Pnapo), instituída em agosto de 2012 pelo Decreto Presidencial 7.794. A Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo), um espaço consultivo com participação paritária de representantes do governo e da sociedade civil organizada, foi instalada em novembro de 2012. A Cnapo elaborou 1º Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), lançado em outubro de 2014 pela Presidência da República, que se divide em quatro eixos: produção; uso e conservação de recursos naturais; conhecimento; comercialização e consumo. O Plano prevê a ampliação de uma série de iniciativas que já vinham sendo desenvolvidas pelo governo federal e a implantação de outras como a criação do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) (CARNEIRO et al., 2015). O Pronara foi considerado um avanço por ser o primeiro instrumento que obriga legalmente nove ministérios (Desenvolvimento Agrário, Saúde, Agricultura, Meio Ambiente, Desenvolvimento Social, Trabalho e Emprego, Fazenda, Ciência e Tecnologia, Educação, além da Secretária Geral da República) a tomarem medidas concretas para a redução dos agrotóxicos. No entanto, apesar de ter sido elaborado sob a supervisão e aval do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o programa foi adiado indefinidamente após pedido da ministra da pasta, a ruralista Kátia Abreu, visto que este havia sido elaborado na gestão do seu antecessor. O Programa de Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) foi aprovado em agosto de 2014, como parte da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), após meses de elaboração de um grupo de trabalho formado por diversos especialistas, vinculados a instituições de pesquisa e ensino, órgãos do governo e organizações da sociedade civil. A ideia principal é a de que com o atual nível de uso de agrotóxicos no Brasil, uma expansão da produção agroecológica é impossível. O Pronara é constituído por seis eixos: (1) Registro, que busca aprimorar o registro e (re)avaliação

dos

agrotóxicos

no

Brasil;

(2)

Controle,

Monitoramento

e

Responsabilização da Cadeia Produtiva; (3) Medidas Econômicas e Financeiras; (4) Desenvolvimento de Alternativas; (5) Informação, Participação e Controle Social e (6) Formação e Capacitação. No total, são previstas 137 ações que visam frear o uso de agrotóxicos no Brasil. Dentre elas, medidas como o fim da isenção fiscal; implantação de zonas livres de agrotóxicos e transgênicos; adoção do princípio poluidor-pagador; e a reavaliação de produtos banidos em outros países.

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1.2

Agrotóxicos e agravos à saúde

Décadas depois da chamada Revolução Verde, essa política de incentivo aos agrotóxicos apresenta resultados nada animadores, especialmente em relação à saúde pública. Além da contaminação aguda, que atinge especialmente os trabalhadores rurais, os agrotóxicos estão associados com outros agravos à saúde, tais quais as intoxicações crônicas – que, pela possibilidade de ser resultado de fatores combinados e exposição prolongada é de difícil identificação do agente causador –, os conflitos agrários – pela intensa relação com o agronegócio e a agricultura de exportação –, além dos suicídios10. Os efeitos agudos, que aparecem durante ou após o contato da pessoa com o agrotóxico, são os mais visíveis e têm características bem marcantes, como espasmos musculares, convulsões, náuseas, desmaios, vômitos e dificuldades respiratórias. Já os efeitos crônicos, resultado da exposição contínua a um ou mais tipo de insumos, podem ocorrer meses, anos ou até décadas após a exposição, manifestando-se em várias doenças como cânceres, malformação congênita, distúrbios endócrinos, neurológicos e mentais (CARNEIRO et al., 2015). É imprescindível ressaltar que, cada ingrediente ativo, entre as centenas registradas no Brasil, possui um efeito diferente e representa graus variados de toxicidade. Figura 1: Classificação e sintomas de intoxicação dos agrotóxicos

Fonte: OPAS/OMS (1996) apud CARNEIRO et al. (2015)

10

A vinculação com o suicídio se dá de duas formas: tanto como agente causador, visto que há associação entre doenças mentais e depressão com a exposição aos agrotóxicos, quanto como meio de suicídio. De acordo com o Programa Internacional de Segurança Química - IPCS, aproximadamente um milhão de pessoas morreram intencionalmente no ano 2000 e, possivelmente, um quarto dessas mortes foram resultantes da ingestão de produtos químicos. Nos países do Sul, os agrotóxicos são frequentemente usados em suicídios (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002, apud LOPES, 2008).

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As intoxicações são tratadas predominantemente, tanto pela indústria do agronegócio quanto pelo Estado, como casos em que os agrotóxicos não foram utilizados de modo adequado, especialmente pelo descumprimento de normas de segurança na aplicação destes produtos. Esta concepção, do estabelecimento de regras para minimizar os efeitos adversos da exposição aos agrotóxicos, é conhecida como o “Paradigma (ou mito) do Uso Seguro” (CARNEIRO et al., 2015; LONDRES, 2012). A própria legislação brasileira para a regulação dos agrotóxicos se constrói sob este paradigma. A Lei N° 7.802/89 e o Decreto No 4.074/2002 atribuem aos Ministérios da Agricultura, Meio Ambiente e Saúde a competência de “estabelecer diretrizes e exigências objetivando minimizar os riscos apresentados por agrotóxicos, seus componentes e afins” (Art. 2º, inciso II). Além disso, os programas de monitoramento de resíduos nos alimentos, têm como parâmetro o Limite Máximo de Resíduos (LMR) e a Ingestão Diária Aceitável (IDA) (ROSA; PESSOA; RIGOTTO, 2011). De acordo com Rosa, Pessoa e Rigotto (2011), é impraticável implementar o paradigma do uso seguro diante de três principais constatações do contexto brasileiro: a magnitude do uso de agrotóxicos no país; a extensão do universo no qual o uso seguro deveria ser garantido (são 5,2 milhões de estabelecimentos agropecuários no Brasil, segundo o último Censo Agropecuário, de 2006); e condições institucionais de implementação e fiscalização deste modelo. Assim, defendem as autoras, a implementação deste paradigma necessitaria de “um vultoso e complexo programa, que incluiria a alfabetização dos trabalhadores, a sua formação para o trabalho com agrotóxicos, a assistência técnica, o financiamento das medidas e equipamentos de proteção, a estrutura necessária para o monitoramento” etc. (ROSA; PESSOA; RIGOTTO, 2011, p.244). Abreu (2014) reforça a inviabilidade de cumprimento “das inúmeras e complexas medidas” de segurança que garantiriam a viabilidade de cumprimento de “uso seguro” de agrotóxicos no contexto socioeconômico dos pequenos produtores rurais. O pesquisador entrevistou 136 trabalhadores rurais, oriundos de 81 unidades de produção familiar em 19 comunidades de Lavras (MG), e identificou que, por mais que se esforcem, os produtores não possuem nem conhecimento nem recursos para seguir as normas preconizadas pela Lei dos Agrotóxicos ou pelos manuais de segurança, elaborados pela

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Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef, que representa as indústrias químicas) e por instituições públicas de saúde, meio ambiente e agricultura11. Ainda que o contexto fosse outro, e as normas de segurança fossem seguidas à risca, a exposição aos agrotóxicos continuariam a oferecer riscos de efeitos nocivos à saúde humana. A pesquisadora Karen Friedrich explica que uma substância – especialmente as pertencentes aos grupos de organofosforados, neonicotinoides, piretróides – pode alterar irreversivelmente moléculas responsáveis funções hepáticas, renais e hormonais, mesmo sendo eliminada rapidamente do organismo. “Hoje em dia usamos muitos agrotóxicos (...) que são eliminados pela urina 24h, 48h, até 72 horas depois que o trabalhador ou morador foi exposto. O fato dele sair rápido também não indica que ele é seguro”12. Ainda há a imprevisibilidade dos efeitos causados pelas combinações química das várias substâncias – a liberação de um agrotóxico é realizada após a avaliação da substância isolada, simulando um ambiente diferente das condições reais, tanto no meio ambiente quanto no organismo humano. Deste modo, as avaliações da nocividade dos agrotóxicos determinam apenas a linearidade aparente. “Na verdade, não se pesquisam as relações não lineares dos fenômenos biológicos e dos contextos sociais que impõem sobrecargas de trabalho e de exposição aos seres humanos e aos ecossistemas e nem os aspectos culturais relacionados à alimentação” (CARNEIRO et al., 2015, p. 80).

11

“Os resultados apontaram que a aquisição de agrotóxicos é feita sem perícia técnica para indicar a real necessidade de utilização destes produtos, que a receita agronômica é predominantemente fornecida por funcionários dos estabelecimentos comerciais, e que os agricultores não recebem informações e instruções adequadas sobre medidas de segurança no momento da compra; que o transporte de agrotóxicos é realizado nos veículos disponíveis (caminhonetes/caminhões não adaptados aos requerimentos de segurança, carros fechados, motos e/ou ônibus) e que os agricultores familiares não recebem documentos de segurança obrigatórios por parte dos estabelecimentos comerciais; que os agricultores familiares utilizam as construções que dispõem para o armazenamento de agrotóxicos, independente das condições estruturais e da proximidade das mesmas com residências e/ou fontes de água; que o tamanho das propriedades impossibilita que o preparo e a aplicação sejam realizados a uma distância que impeça que os agrotóxicos atinjam residências e áreas de circulação de pessoas e que existe carência de informação e de assistência técnica no que diz respeito aos EPIs e às outras medidas de segurança necessárias nestas atividades; que as dificuldades criadas pelos estabelecimentos comerciais assim como os custos envolvidos na atividade são os principais motivos para a não devolução das embalagens vazias; e que, por carência de informação, a lavagem das vestimentas e EPIs contaminados por agrotóxicos é entendida como atividade doméstica comum, sendo, portanto, realizada sem a observação de medidas de segurança. Conclui-se que a tecnologia agroquímica não pode ser utilizada sob os conceitos de controle de riscos na estrutura geral das unidades produtivas de agricultura familiar visitadas em Lavras, não existindo, desta forma, viabilidade de cumprimento das inúmeras e complexas medidas de “uso seguro” de agrotóxicos no contexto socioeconômico destes trabalhadores rurais” (ABREU, 2014, p.14-15, grifos do autor). 12 Ver < https://www.icict.fiocruz.br/content/o-desafio-de-se-comprovar-na-justi%C3%A7aintoxica%C3%A7%C3%A3o-por-agrot%C3%B3xicos>

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1.2.1 Subnotificação e problemas no registro de intoxicações Apesar do consumo intensivo de agrotóxicos e da existência de diferentes sistemas nacionais de informação em saúde, os registros oficiais sobre intoxicações são limitados para os casos agudos e quase inexistentes para as intoxicações crônicas. Deste modo, os agrotóxicos não são o principal agente tóxico em termos de número de casos nos sistemas de notificação, porém é o agente que apresenta a maior letalidade, com os maiores números de óbitos (BOCHNER, 2015). O Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox) registrou, entre 2007 e 2011, 26.385 casos de intoxicações por agrotóxicos de uso agrícola, 13.922 por agrotóxicos de uso doméstico, 5.216 por produtos veterinários e 15.191 por raticidas, sendo o conjunto dos agrotóxicos responsável por 11,8% das intoxicações, atrás dos medicamentos com 28,3% e dos animais peçonhentos com 23,7%. Com relação aos óbitos, os agrotóxicos de uso agrícola responderam por 863 (39,4%), os de uso doméstico por 29 (1,3%), os produtos veterinários por 22 (1,0%) e os raticidas por 138 (6,3%). Desses óbitos, apenas 14 (1,3%) foram registrados como ocupacionais. No mesmo período, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) registrou 16.554 casos de intoxicação por agrotóxicos de uso agrícola, 4.800 por agrotóxicos de uso doméstico, 862 por agrotóxicos de saúde pública, 19.285 por raticidas e 3.367 por produtos veterinários, sendo o conjunto dos agrotóxicos responsável por 15,6% das intoxicações, ficando atrás dos medicamentos (37,6%) – os acidentes por animais peçonhentos são registrados em outro módulo do SINAN. Em relação a letalidade, os agrotóxicos de uso agrícola foram responsáveis por 839 óbitos (24,3%), os de uso doméstico por 76 (2,2%), os de saúde pública por 2 (0,1%), os raticidas por 661 (19,1%) e os produtos veterinários por 75 (2,2%). Desses óbitos, 66 (4%) estavam relacionados com uma exposição no trabalho (BOCHNER, 2015). O gap entre os dois sistemas está longe de dimensionar o tamanho real do problema no Brasil: por ano, a estimativa do Ministério da Saúde é que ocorram no país mais de 400 mil contaminações por agrotóxicos. Essa estatística é o resultado dos casos notificados (aproximadamente 8 mil em 2002 – e em 2011) multiplicados por 50, o fator de correção sugerido pela Organização Mundial de Saúde para tentar suprir a subnotificação e dimensionar todos os casos não relatados (PERES et al., 2005).

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Bochner (2015), no estudo “Óbito ocupacional por exposição a agrotóxicos utilizado como evento sentinela: quando pouco significa muito”, encontra problemas também no registro da letalidade por agrotóxicos no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM). Detendo-se em casos de intoxicação ocupacional, a autora utiliza como evento sentinela (caso cuja ocorrência representa outras) os óbitos decorrentes de intoxicações ocupacionais por agrotóxicos registrados pelo SIM. Foram 33 óbitos registrados entre 2008 e 2012, sendo a maioria do sexo masculino (91%), idades entre 40 a 59 anos (55%), raça/cor branca (58%), baixa escolaridade (45%), estado civil dividido entre solteiros (39%) e casados (33%), concentração de atividades relacionadas à agricultura (64%) e a fazenda como principal local do acidente (33%). Destes, a autora se deteve em dois casos. No primeiro, a relação causal entre exposição a agrotóxicos e o óbito foi comprovada pela Justiça, mas nenhum registro sobre esta exposição foi encontrada no sistema13. Em um segundo momento, um produto que não se trata de agrotóxico foi registrado como tal em um acidente que envolveu quatro vítimas14. 1.2.2 Efeitos adversos dos organoclorados: caso DDT As substâncias encontradas nas amostras de leite humano pertencem a categoria dos agrotóxicos organoclorados. A principal característica destas substâncias é a alta persistência ambiental, sendo classificadas enquanto Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs), permanecendo por anos, e até décadas, nos organismos dos seres vivos e no ambiente. O primeiro destes compostos foi o dicloro-difenil-tricloroetano (DDT), sintetizado por Zeidler em 1874, cujas propriedades inseticidas foram descobertas em 1940 por Paul Mueller, da companhia suíça Geisy, logo se popularizando devido à alta potência (CARNEIRO et al., 2015).

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É o caso de VMS, que faleceu em Fortaleza no dia 30 de novembro de 2008, aos 31 anos. De acordo com o SIM, a causa básica do óbito foi insuficiência hepática aguda, além de insuficiência renal aguda não especificada e hematêmese (causas relacionadas). VMS residia no município de Limoeiro do Norte, localizado na Chapada do Apodi, cerca de 200 km de Fortaleza/CE. Ele trabalhava há três anos na empresa multinacional produtora de frutas Del Monte Fresh Produce Brasil Ltda, onde esteve por mais de dois anos auxiliando no preparo da solução de agrotóxicos utilizada para a lavoura de abacaxi. A relação causal foi comprovada cinco anos depois, quando a justiça do trabalho, após longa investigação do Ministério Público, reconheceu que a morte de VMS foi causada pelo contato com os agrotóxicos (BOCHNER, 2015). 14 Em 31/1/2012, houve um acidente químico no curtume da empresa frigorífica Marfrig, localizada em Botaguassu (335 km de Campo Grande), causando a morte de quatro trabalhadores, além de 16 hospitalizações. O acidente foi causado pelo Coramin, composto por sulfidrato de sódio (NaHS), utilizado como depilador no tratamento de couro. A substância fora registrada na categoria herbicida/fungicida, mas não é considerada um agrotóxico (BOCHNER, 2015).

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O DDT foi amplamente utilizado, além da agricultura, para controle de vetores na saúde pública, controlando mosquitos transmissores de doenças como tifo, malária, chagas, dengue, febre amarela etc., por vezes até erradicando-as (MELLO, 1999). Os primeiros indícios contrários ao uso da substância foram divulgados por Rachel Carson, em 1962. A autora encontrou estudos que associavam a redução da população de falcões peregrinos devido a exposição aos organoclorados. A partir daí uma lista crescente de evidências revelou serem os POPs causadores de uma série de efeitos negativos em espécies predadoras no topo da cadeia alimentar. Dentre esses efeitos, encontram-se: problemas na reprodução e declínio populacional de animais silvestres; funcionamento anormal das tireoides e outras disfunções hormonais; feminilização de machos e masculinização de fêmeas; sistema imunológico comprometido; tumores e canceres; anormalidades comportamentais e maior incidência de má-formação fetal (teratogênese). Com o passar do tempo, evidencias semelhantes foram observadas em humanos, além de distúrbios no aprendizado: alterações no sistema imunológico; problemas na reprodução, como infertilidade; lactação diminuída em mulheres em período de amamentação; doenças como endometriose; aumento na incidência de diabetes etc. (CARNEIRO et al., 2015, p.142).

De acordo com Rosa et al. (2011), diversos estudos indicam possíveis danos à saúde causados pelo DDT: populações mexicanas expostas à substância apresentaram alteração na análise de esperma, tais como diminuição da quantidade, defeitos morfológicos e genéticos; hipóteses quanto à presença de tumores adrenocorticais (TCA), foram relacionadas à exposição a agrotóxicos na Inglaterra e no Brasil; a substância é apontada como fator contribuinte para a alta incidência de TCA em crianças no Paraná; estudos descreveram nessa mesma população a presença da mutação genética não observada em portadores de TCA provenientes de outras regiões do país (ROSA et al., 2011, p. 237). Uma revisão de 494 estudos sobre a substância (ESKENAZI et al., 2009 apud BERG, 2010) concluiu que há evidências crescentes de que a exposição ao DDT e ao DDE, um metabólito deste, estejam associados ao câncer de mama, diabetes, redução da qualidade do esperma, abortos espontâneos, e problemas no neurodesenvolvimento de crianças. Em 1998, o DDT foi banido do Brasil por provocar infertilidade nos homens e abortos espontâneos nas mulheres (LONDRES, 2012). No entanto, a ausência de evidências conclusivas de causalidade entre os danos à saúde e o DDT leva parte da comunidade científica a acreditar que os benefícios do uso desta substância, especialmente para o controle vetorial de Malária, superam os possíveis danos. Tren e Roberts (2009) afirmam que, apesar de ter sido utilizado há sete décadas,

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nenhum estudo comprovou nenhum dano específico causado pela substância. Segundo eles, onde o DDT foi utilizado para controlar a malária por décadas, a população cresceu e a saúde pública foi fortalecida, a despeito dos estudos que associam a substância à infertilidade. Os autores reforçam que, após mais de 70 anos de uso, o DDT continua a ser um dos mais “seguros e efetivos métodos para salvar vidas da malária”15 (p. 14). Os dados apresentados por Moonasar et al. (2012) sobre a reintrodução do DDT no combate à malária na África do Sul corrobora com esta perspectiva. De acordo com o estudo, entre 2000 e 2010, os casos de malária neste país reduziram 89% (de 63.663 para 6.741) e os óbitos diminuíram 85% (de 453 para 66). As causas da queda são atribuídas não apenas a mudança dos inseticidas piretróides para o DDT, mas também ao investimento financeiro, controle de fronteira e a mudança da política de medicamentos de controle da doença. Berg (2010) concorda que não há dúvidas sobre a proteção oferecida pelo DDT em relação a malária. Mas afirma que, apesar de não haver evidências fortes e claras da associação de causa-efeito dos danos à saúde provocados pelo DDT, isto não pode ser interpretado como ausência de risco. Os autores do Dossiê Abrasco afirmam que, em casos como este, as medidas precaucionárias devem ser tomadas mesmo quando não é possível estabelecer plenamente as provas científicas da relação entre causa e efeito. “Quando há dúvida ou insuficiência de estudos, deve-se levar em conta o princípio da precaução, que orienta a ação quando uma atividade, situação ou produto representa ameaças de danos à saúde humana ou ao meio ambiente” (CARNEIRO et al., 2015 p. 79). 1.3 O caso do Leite Humano Contaminado No primeiro dia de março de 2006, uma neblina fina se espalhou pela cidade de Lucas do Rio Verde (MT), “queimando” plantas medicinais, ornamentais, hortas urbanas e flores. Um avião agrícola, a não mais do que 100m do chão, teria vazado um herbicida dessecante de amplo espectro (a suspeita é do paraquate, pelos sinais, visto que a perícia, realizada duas semanas após o acidente, não encontrou mais a substância nas amostras),

After almost 70 years of use, DDT (…) remains one of the safest and most effective methods of saving lives from malaria. 15

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espalhado por toda a cidade devido ao vento16 (PIGNATI et al., 2007; MACHADO; 2008). Os atuais equipamentos de pulverização aérea de agrotóxicos, prática já proibida em locais como a União Europeia, possuem uma “deriva técnica” de 30% a 70% – mesmo com calibração, temperatura e ventos ideais, deixam cerca de 32% dos agrotóxicos pulverizados retidos nas plantas, 49% vão para o solo e 19% vão pelo ar para áreas circunvizinhas da aplicação (CHAIM, 2004 apud CARNEIRO et al., 2015). A “chuva de agrotóxico” (ou de veneno, como são chamados os acidentes com pulverização aérea) afetou a maioria das plantas de 65 chácaras de hortaliças e legumes situadas na periferia da cidade, um horto com 180 canteiros de diferentes espécies de plantas medicinais e milhares de plantas ornamentais das ruas e quintais da periferia e do centro da cidade (PIGNATI et al., 2007; MACHADO; 2008). O episódio não era, segundo os moradores, o primeiro a ocorrer na região, mas foi o que obteve mais repercussão, gerando uma série de reportagens conduzidas pelo jornalista Paulo Machado (da então Radiobrás), que posteriormente originaram o livro “Um avião contorna um pé de Jatobá e a nuvem de agrotóxico pousa na cidade”. Além disso, foi após a perícia realizada sobre essa “chuva de agrotóxico” que a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), sugeriu o levantamento “Avaliação do risco à saúde humana decorrente do uso de agrotóxicos na agricultura e pecuária na região Centro-Oeste do Brasil”17, realizado entre 2007 e 2010. É um dos resultados desta pesquisa, obtidos a partir da coleta de leite humano, que originou o que chamamos de “caso do Leite Humano Contaminado”.

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Dessecantes são agrotóxicos utilizados para agilizar a secagem da soja (geralmente transgênica), para que ela possa ser colhida mais rapidamente: caem as folhas e a planta seca, podendo ser colhida imediatamente. Já amplo espectro significa que este atinge tanto folhas largas quanto estreitas (MACHADO, 2008). 17 Além da coleta de amostras de leite materno, nas quais se baseia nosso estudo, nesta pesquisa foram realizados: treinamento de professores e alunos de quatro escolas (2 urbanas e 2 rurais); coletas de chuva e ar nos pátios e de água de poços artesianos/potável das escolas; coletas de água de outros poços e córregos do município; coletas de sangue e urina dos professores das escolas; coletas de sapos, sangue e sedimentos de lagoas; análises de resíduos de 27 princípios ativos de agrotóxicos (cromatografia gás e massa); entrevistas para percepção de risco e vigilância em saúde; análise epidemiológica de dados: intoxicações, más-formações, cânceres, doenças respiratórias aguda, abortos etc.; elaboração de cartilha em conjunto com os alunos; audiências públicas na Câmara e envio de dados à Prefeitura e Ministério Público Estadual (MOREIRA, et al., 2010 apud PIGNATI, 2012).

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1.3.1 O caso de Lucas do Rio Verde O caso que se configura como nosso objeto de estudo empírico se refere ao resultado da análise do leite humano de 62 lactantes em Lucas do Rio Verde (MT), participantes do Programa Saúde da Família, na qual foram encontrados resíduos de agrotóxicos em todas as amostras coletadas. A análise de dez tipos de substâncias organocloradas18, conduzida pela bióloga Danielly Palma no mestrado do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso, detectou nove agrotóxicos nas amostras coletadas, sendo que um deles, o DDE (um derivado do DDT), estava presente em 100% das mães. A maioria das amostras (85%) possuía uma contaminação multiresidual, ou seja, por mais de um tipo de agrotóxico – somente em uma delas seis substâncias foram encontradas. Além disso, os leites coletados continham o recentemente banido Endossulfan (44%), o Deltametrina, (37%) e o próprio DDT (13%) (PALMA, 2011). Embora tenha apresentado associações positivas entre as mulheres que tinham um histórico de aborto e às expostas a três substâncias já descritas como danosas ao sistema reprodutivo e hormonal (endossulfam, aldrim e deltametrina), a pesquisadora não encontrou diferenças significativas entre as amostras das mulheres da zona rural e da zona urbana, sugerindo que, no município, todas estão expostas à contaminação. A pesquisa que acarretou no caso do Leite Humano Contaminado faz parte do estudo “Impactos dos Agrotóxicos Agrícolas na Saúde e Ambiente na Região Centro-Oeste”,

panorama da região coordenado por Josino Moreira Costa, pesquisador Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH), pertencente a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). Em Mato Grosso, o estudo é liderado por Wanderlei Pignati (UFMT), orientador do mestrado de Palma, e foca o município de Lucas do Rio Verde desde a “chuva de agrotóxico” em 2006. Cidade ícone do agronegócio, por ano, o município é contemplado com 136 litros de insumos por

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Organoclorados são um grupo químico de inseticidas caracterizados pela baixa toxicidade aguda mas alta persistência ambiental. Os agrotóxicos podem ser classificados de acordo com os seguintes grupos químicos: Organofosforados, Carbamatos, Organoclorados, Piretróides sintéticos (inseticidas); Ditiocarbamatos, Fentalamidas (fungicidas); Dinitroferóis, Pentaciclorofenol, Fenoxiacéticos, Dipiridilos (herbicidas) (CARNEIRO et al., 2015).

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habitante, média 37 vezes maior que a nacional (5,2 kg/hab). Foram 5,1 milhões de litros em 2010, para suprir 420 mil hectares de lavouras de soja, milho e algodão. Na última década a cidade assistiu os índices de câncer saltarem de 3 para 40 casos a cada 10 mil habitantes e os problemas de malformação por mil nascidos de 5 para 20 (QUADROS, 2014). Durante os dois anos de pesquisa em quatro escolas do município, o grupo de pesquisa de Pignati detectou a contaminação por agrotóxicos em 88% das amostras de sangue e urinas dos professores, sendo que os da zona rural apresentaram o dobro de resíduos do que os da zona urbana. A presença desses poluentes foi identificada ainda em 83% dos 12 poços de água potável da cidade, em 56% das amostras de chuva (coletadas no pátio das escolas) e em 25% das amostras de ar. Fora isso, eles encontraram resíduos em duas lagoas, e no sangue dos sapos que nelas se encontravam – que possuíam quatro vezes mais ocorrências de malformação congênita do que na lagoa controle, que não apresentava resíduos desses produtos (PIGNATI et al., 2014). 1.3.2 Agrotóxico no leite humano? Apesar de ter sido exaustivamente noticiado com surpresa e alarde na mídia nacional, o caso do Leite Materno Contaminado por agrotóxicos estava longe de ser inédito. Desde 1985 (quando o DDT fora proibido nas lavouras brasileiras) o risco de contaminação do leite humano estava em pauta. Nesta época, em debate na Revista de Saúde Pública, o médico Waldemar de Almeida, professor do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de Campinas, já alertava para a contaminação pela substância: Nos países chamados desenvolvidos, o uso do DDT e de outros praguicidas clorados orgânicos poluidores ambientais tem sido bastante diminuído e mesmo proibido nestes últimos 20 anos. Em consequência, os resíduos no tecido adiposo, no sangue e no leite humano foram diminuindo gradativamente. (...) Ao contrário, nos países em desenvolvimento, o uso abusivo do DDT e de outros poluentes ambientais tem continuado, sem quaisquer medidas eficientes para seu controle. (...) Também no Brasil, o teor de DDT no leite materno é cerca de quatro vezes mais elevado do que o máximo permitido no leite de vaca (ALMEIDA, 1985).

Anos antes, a imprensa brasileira já noticiava pesquisas com resultados semelhantes realizadas em outros países. Na literatura científica há inúmeros casos relatados de resíduos por organoclorados no leite materno, com destaque para níveis mais elevados de contaminantes em mulheres residentes em regiões agrícolas com intenso uso de agrotóxicos (LANDRIGAN et al., 2002). Embora as regiões, os compostos, amostras e

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métodos variassem, todos eles tinham um ponto comum: 100% das amostras continham resíduos de DDT e/ou DDE. Há relatos de contaminação do leite humano por agrotóxicos, especialmente os organoclorados, em diversas partes do mundo. O DDE, por exemplo, esteve presente nas 246 amostras de diferentes regiões da Bielorrússia, em 152 amostras de mulheres residentes em três cidades da província de Kwazulu-Natal, África do Sul, em 50 amostras de leite de mulheres residentes em Anupgarh, Índia, e em dez na Indonésia. Resíduos de diversos agrotóxicos foram encontrados também nas 197 amostras analisadas em duas cidades ucranianas, e em 36 amostras de leite (colostro) de mulheres que tiveram parto prematuro em Harbin, China (PALMA, 2011). No Brasil, a situação não é diferente. Há estudos relatando resquícios de agrotóxicos no leite materno em cidades como Rio de Janeiro e Duque de Caxias (RJ), São Paulo e Ribeirão Preto (SP), Belo Horizonte (MG), Cuiabá (MS) e ao longo do rio Madeira (PALMA, 2011). Tantos estudos, porém, não podem ser comparados, uma vez que não há normas padrões, e a metodologia de análise, as amostras e os poluentes analisados são diferentes, até quando aplicados no mesmo país. A falta da padronização é um dos problemas apontados pelos especialistas na área, que ainda destacam a ausência de monitoramento governamental em larga escala (com exceção de poucos países do mundo, notadamente na Alemanha e Suécia) e a falta de estudos que acompanhem o desenvolvimento dessas crianças e os possíveis efeitos desses contaminantes no organismo (estudos de coorte) (LANDRIGAN, 2002; MEAD, 2008). O leite materno nada mais é do que uma via de excreção, tal qual suor, urina ou lágrimas, sendo considerada como um bom indicador da exposição humana aos chamados POPs (Poluentes Orgânicos Persistentes), categoria que inclui os agrotóxicos organoclorados. Estes são compostos lipofílicos, ou seja, que se dissolvem na gordura, se acumulando durante anos no organismo humano (por isso a caracterização de persistente). Como a produção de leite materno requer alto teor de gordura, este acaba sendo “consumindo” junto aos compostos acumulados no tecido adiposo da mãe (MESQUITA, 2001). Na literatura científica, tanto no Brasil quanto em diversos países, como vimos, há inúmeros casos relatados de resíduos por organoclorados no leite materno, com destaque para níveis mais elevados de contaminantes em mulheres residentes em regiões agrícolas com intenso uso de agrotóxicos (LANDRIGAN et al., 2002, apud PALMA, 2011).

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Embora ainda não se saiba com precisão quais são os efeitos que a exposição em tão tenra idade possa acarretar no desenvolvimento destes indivíduos (SOLOMON; WEISS, 2002), os recém-nascidos são naturalmente mais vulneráveis à exposição a agentes químicos presentes no ambiente e, devido as suas características fisiológicas e pelo aleitamento exclusivo até os seis meses, estão mais sujeitos a agravos a saúde ao ingerir o leite contaminado (CARNEIRO et al., 2015). Contudo, os pesquisadores salientam que a presença destes contaminantes no leite materno não invalida as vantagens do aleitamento (SOLOMON; WEISS, 2002; PALMA, 2011). A ausência de estudos mais aprofundados abre um leque imenso de questionamentos sobre a extensão da contaminação. Desde 2013, a professora de estudos de gênero da universidade Texas A&M Joan B. Wolf vem causando polêmica ao defender que, diante da contaminação química do leite materno, os estudos sobre os benefícios do aleitamento são metodologicamente falhos. No livro “Is breast best?”, Wolf defende que a sociedade possui uma obsessão cultural com a eliminação de risco e chega a afirmar que o monitoramento de poluentes no leite materno não é realizado por medo de que questionamento sobre a segurança da substância provoque uma redução no aleitamento: “Conhecer quais poluentes comprometem a segurança do leite materno é menos importante do que assegurar que as mulheres continuem a amamentar19”. Contudo, há praticamente um consenso na comunidade científica de que a presença destes contaminantes no leite materno não invalida as vantagens do aleitamento, além de que esses contaminantes também são encontrados no leite de vaca, fórmulas (processos como a pasteurização não conseguem eliminar agrotóxicos) e alimentos (SOLOMON; WEISS, 2002; PALMA, 2011). O leite humano é considerado a melhor fonte de nutrição para as crianças de até dois anos, justamente por ser feito sob medida para as necessidades dos seres humanos nessa fase da vida. Assim, é um alimento completo, que contém um equilíbrio de gorduras, carboidratos e proteínas na medida exata para prover o crescimento e a imunidade dos bebês, além de combater as infecções infantis, desenvolver o cérebro e aumentar a resistência a doenças crônicas como asma, alergias e diabetes. Existem evidências de que

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Do inglês Knowing whether pollutants did compromise the safety of breast milk was less important than ensuring that women continued to breastfeed.

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até pode aumentar a inteligência e reduzir as chances do desenvolvimento de cânceres na mãe e no bebê (MEAD, 2008). O leite humano ainda transmite informações do sistema imunológico da mãe, sendo considerado um eficiente imunizador para os bebês (AZEREDO et al., 2008; MEAD, 2008; PALMA, 2011). O aleitamento materno é considerada a estratégia mais efetiva com foco na criança de combate à morbimortalidade infantil, além de contribuir para o fortalecimento do vínculo entre mãe e bebê (O’CONNOR; VAN ESTERIK, 2012 apud KALIL, 2015).

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2. Na Arena dos Discursos A concepção instrumental da comunicação – de modo simplificado, a visão desta como um processo de transmissão de uma mensagem de um polo emissor a outro receptor, que deve evitar ruídos durante sua passagem por um canal, a fim de ser prontamente decodificada pelo receptor – naturalizou-se e tornou-se hegemônica em nossa sociedade. É o chamado modelo informacional, ou Teoria Matemática da Comunicação, proposto por um físico e um matemático estadunidenses, Shannon e Weaver, em 1948, para otimizar as transferências de mensagens entre os equipamentos telegráficos, diante das deficiências encontradas durante a guerra. Embora outras concepções mais complexas sobre o processo comunicativo tenham se desenvolvido desde então, é esta a perspectiva que figura nos livros de ensino básico e subsidia ainda hoje o modo de pensar a comunicação no Brasil (ARAUJO; CARDOSO, 2007). É justamente de encontro a esta perspectiva linear, unidirecional, na qual a cena comunicativa comporta apenas os dois polos da relação, em que a linguagem é vista como instrumento e interferências são ruídos a serem apagados, que compreendemos a comunicação. Nossa visão se alinha a percepção de uma comunicação plural, baseada na interlocução e na negociação de sentidos, que funciona como um mercado simbólico e tem na linguagem uma arena de embates sociais, conforme nos ensinam Araujo e Cardoso (2007). Nesta perspectiva, em detrimento da dicotomia produção-recepção, há um fluxo contínuo de interdiscursos e saberes entre pessoas e comunidades discursivas. Araujo (2009) explica que esses interdiscursos são multidirecionais e percorrem redes materiais e virtuais, sendo determinados por contextos de naturezas diversas. Em harmonia com esta concepção, herdamos também das autoras a perspectiva que orienta nosso olhar, a da Semiologia dos Discursos Sociais (SDS). A SDS se propõe a interrogar os fenômenos sociais como processos de construção de sentidos. Para tanto, essa perspectiva aproxima duas tradições de análise de discursos, a francesa e a angloamericana, anteriormente consideradas antagônicas e excludentes, dialogando criticamente com o estruturalismo que orienta a perspectiva semiológica até a década de 1970 (CARDOSO, 2001). A Semiologia dos Discursos Sociais trabalha preferencialmente com o modelo de Análise de Discurso proposto por Pinto (2002), que está amparado nestes princípios basilares: depende do contexto; é crítica nos dois sentidos (filosofia crítica de origem marxista e na

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avaliação da eficácia do processo comunicativo no contexto situacional imediato); não confia na letra do texto e o relaciona às forças sociais que o moldaram; não procura interpretar conteúdos; usa um conceito de ideologia ao lado do de discurso; trabalha comparativamente; não usa técnicas estatísticas como instrumento de contextualização; trabalha com as marcas textuais na superfície do texto (PINTO, 2002, p. 11-12). Araujo (2000) lista algumas das vantagens de se trabalhar com a SDS. A primeira é que a Semiologia conduz ao necessário apagamento das fronteiras dicotômicas, possibilitando avanços na compreensão dos fenômenos sociais. Outra, a de que, por sua própria história e pelo fato de pôr em cena preocupações comuns a vários campos do saber, favorece amplamente a transdisciplinaridade, produzindo assim um conhecimento mais plural. A terceira, o modo como lida com a questão do ‘sujeito’, ou seja: privilegiando a intersubjetividade (ARAUJO, 2000, p. 37). No nosso estudo, além das vantagens listadas pela autora, as lentes fornecidas pela Semiologia dos Discursos Sociais foram valiosas para exercitarmos a desnaturalização do nosso objeto, despirmos-nos de nossas certezas, especialmente àquelas entranhadas por vício profissional, e para compreendermos, de modo mais sistêmico, a complexidade de fatores que atravessam o sujeito, regendo a produção de sentidos. Sendo assim, apresentaremos brevemente alguns dos conceitos que nos guiaram neste estudo, sem a pretensão de esgotá-los ou classificá-los. 2.1 A batalha pela produção social dos sentidos O sentido não está nas coisas, não existe uma significação pura, já dada, um vínculo imutável entre o signo e seu referente. Do mesmo modo não existe objeto assignificante: todos adquirem significação em processos sociais de construção de sentido(s). “O sentido é múltiplo, está sempre em movimento, no entre, resultado (provisório) do trabalho social, permanentemente renovado. O sentido está sempre sendo produzido, e o discurso é, por excelência, o lugar do trabalho de produção social do sentido” (CARDOSO, 2001, p. 12). Assim o postulado da semiose infinita se refere a uma rede infinita de remissivas de representações presente na mente dos indivíduos: “Cada significante remete para outro(s) significante(s), não se chegando um sentido estável, a não ser muito provisoriamente” (ARAUJO, 2000, p. 130). Essa construção contínua dos sentidos se dá por meio dos

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processos de socialização que entramos em contato, fazendo-nos apropriar das cadeias sociais de significação que relacionam os significantes entre si. Esses processos e agências de socialização são responsáveis por uma certa estabilidade das relações e efeitos de sentido, evidenciando que a semiose é infinita – pois comportará inúmeras combinações de sentido, acionadas por posições, trajetórias, contextos e interesses singulares dos participantes do jogo comunicativo –, mas não é espontânea nem goza de uma liberdade absoluta, já que conhece seus limites na sociedade que a abriga e no tempo histórico a que pertence (CARDOSO, 2001, p. 12). Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakthin (Volochínov)20 destaca o caráter social que forma os sentidos. Segundo ele, os signos (bem como a própria linguagem) só podem aparecer em um terreno interindividual, ou seja, são constituídos socialmente. Os signos alimentam a consciência individual, sendo a matéria de seu desenvolvimento, fazendo refletir sua lógica e suas leis. Sem os sentidos que o signo lhe confere, ele explica, não há consciência, apenas o ato fisiológico puro, não esclarecido. É esta característica, de ser socialmente constituído, que possibilita a mobilidade do signo, sua flexibilidade. E, para compreender como um signo transforma-se no que chamamos de sentido, o autor convoca outro conceito que nos é caro: o contexto. “O sentido da palavra é totalmente determinado por seu contexto. De fato, há tantas significações possíveis quanto contextos possíveis” (BAKTHIN, 2010, p.109). Os contextos são compreendidos por Araujo (2003) como espaços dinâmicos: moldam a fala, e são simultaneamente por ela moldados. Além disso, a autora explica que tais contextos são interdependentes, e que não há linhas rígidas que separem uns dos outros, mas sim fronteiras deslizantes, movediças que “podem ser linhas de tensão, mas são sempre espaços de negociação” (ARAUJO, 2009, p. 45).

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Valentin Volochínov e Mikhail Bakhtin foram amigos e integrantes do que ficou posteriormente conhecido como “O Círculo de Bakhtin”. A edição brasileira publicada pela editora Hucitec atribui a autoria do livro a Mikhail Bakhtin. Apesar da obra ter sido assinada por Volochínov, esta teria sido posteriormente atribuída a Bakhtin, visto que o livro tem muitos pontos em comum com outras obras assinadas pelo autor, como a “Poética de Dostoievski” e “Rabelais e a Cultura Popular”. Contudo, o professor Craig Brandist, autor de The Bakhtin Circle: Philosophy, Culture and Politics (2002), defende que Volochínov é o verdadeiro autor do livro. Ele explica que o que poderia ter causado a confusão sobre a autoria é a ausência de ordem nas publicações literárias e a publicação a posteriori. Para fins de melhor compreensão, iremos adotar neste trabalho a nomenclatura oficial da edição brasileira, que atribui a autoria Mikhail Bakhtin.

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Os contextos podem ser categorizados em: situacional (que trata sobre as influências dos lugares sociais ocupados pelos integrantes do discurso); existencial (as vivências e experiências que os interlocutores dos discursos carregam repercutem no resultado final da comunicação); contexto textual ou intertextual (todo texto traz em seu bojo a influência de textos que o antecederam e que são acionados a partir da memória discursiva presente em seus elementos); e, por fim, o contexto da ação discursiva (todo discurso supõe interlocutores, um conjunto de regras e estratégias e um processo de negociação) (ARAUJO, 2000). O contexto intertextual se apoia em um conceito que está na essência do postulado da semiose infinita, o da intertextualidade. Também conhecido como interdiscursividade, o conceito proposto por Julia Kristeva em 1966, visa a ressaltar a propriedade dos textos de se relacionarem entre si e com acontecimentos de outra ordem. A interdiscursividade é uma das condições fundamentais dos discursos sociais, visto que há outros discursos tanto nas condições de produção quanto nas de reconhecimento de um discurso, configurando esses polos como redes de relações interdiscursivas. Na verdade, pode-se dizer que todo discurso produzido constitui um fenômeno de reconhecimento dos discursos que fazem parte de suas condições de produção. Do mesmo modo, uma gramática de reconhecimento só existe sob a forma de discursos produzidos, a partir dos quais se pode tentar reconstituir tal gramática (VERÓN, 2005, p. 70-71). O caráter plural de todo e qualquer discurso vai além da mobilidade do sentido. Como a própria interdiscursividade nos permite vislumbrar, apesar da aparente unicidade de um enunciado, todo texto é um entrelaçamento de vozes, em constante diálogo. Bakthin foi pioneiro ao trazer a ideia de que toda enunciação é uma fração de um diálogo amplo e ininterrupto. “A enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites, o discurso interior. As dimensões e as formas dessa ilha são determinadas pela situação da enunciação e por seu auditório” (BAKTHIN, 2010, p.129). O teórico russo chama de polifonia esta presença de várias vozes articuladas no interior de um enunciado. Embora integrem um único enunciado, essas vozes podem ser ouvidas em sua singularidade, timbre e força particulares. Sua presença demonstra que o autor empírico não é o único por essa composição, pelo texto. Tal qual o discurso, o sujeito também é polifônico (CARDOSO, 2001).

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A polifonia pode ser distinguida em dois tipos: a mais ou menos consciente, com vozes convocadas pelo interlocutor e que aparecem na superfície textual, e aquelas vozes que entram sem que o interlocutor se aperceba, marcada pelos contextos e o ambiente cultural no qual ele está inserido e do qual nunca tem uma visão integral. O modo como essas vozes se conjugam, se confrontam, se legitimam ou se desqualificam mutuamente é esta rede interativa entre enunciados, entre textos, e contextos que denominamos de dialogismo (ARAUJO; CARDOSO, 2007; CARDOSO, 2001; ARAUJO, 2000). O dialogismo é uma categoria ontológica, que rege que o “Eu só se constitui pela existência com o Outro, em diálogo com o Outro (...). O dialogismo é a rede interativa que articula vozes de um discurso, é o jogo das diferenças e das relações” (ARAUJO, 2000, p. 126). É sobre os conceitos bakthianos de polifonia e dialogismo que se baseia o postulado da heterogeneidade enunciativa. Este termo, proposto por Authier-Revuz como crítica ao estatuto do sujeito nos conceitos bakthianos, divide-se em dois: a heterogeneidade constituinte (ou a mostrada), aludida explicitamente e com manifestação localizável, e a constitutiva (ou interdiscurso), que designaria as vozes implícitas nos discursos, originadas na história e cultura, e identificadas pelo estudo das produções discursivas (ARAUJO, 2000; PINTO, 2002). A heterogeneidade enunciativa implica, naturalmente, na não aceitação do postulado da unicidade do sujeito, na qual o autor empírico é reconhecido socialmente por todas as representações contidas no texto. Assim, nem sempre o emissor (o sujeito de enunciado) é considerado o autor empírico do enunciado. “Para a análise de discursos, todo texto é híbrido ou heterogêneo quanto à sua enunciação, no sentido de que ele é sempre um tecido de ‘vozes’ ou citações, cuja autoria fica marcada ou não, vindos de outros textos preexistentes, contemporâneos ou do passado” (PINTO, 2002, p. 31). Cabe destacar que a enunciação, segundo o autor, é justamente o ato de produção de um texto, enquanto que o enunciado é o produto cultural, o texto materialmente considerado. O emissor de um enunciado põe em cena um ou mais enunciadores, posições discursivas a quem se creditam as representações copresentes no enunciado (PINTO, 2002). Para compreender o que é enunciação, é necessário entender como as diferentes vozes (ou sujeitos da enunciação) se articulam e se constituem pelo dialogismo. Para tanto, explicitarei brevemente a classificação dos sujeitos que constituem o discurso, e, portanto, formam o que Benveniste (1989) chamou de aparelho formal da enunciação. São eles:

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sujeito da enunciação (imagem daquele que se apresenta como emissor, responsável pelo discurso, é o significante “eu” em um texto verbal); sujeito do enunciado (ou sujeito falado, corresponde imagem ou lugar que o receptor ou coemissor assume ao se reconhecer nos enunciadores a ele atribuídos pelo emissor); e enunciadores (todas as demais vozes arregimentadas pelo emissor, para compor e legitimar sua própria imagem, de forma implícita ou explícita. É nesta categoria que entram a maior parte das fontes citadas entre aspas no discurso jornalístico, por exemplo). O enunciado é visto aqui não apenas vinculado às teorias da enunciação, mas como unidade de análise do discurso. Compreendemos discurso na concepção foucaultiana em que este é visto além da produção de sentidos: os discursos também são práticas sociais que conformam a realidade por meio de disputas travadas entre diferentes estruturas de poder. “O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2010, p.10). Para o filósofo francês, a análise de discursos diz respeito à especificação, sócio e historicamente variável, de formações discursivas, “sistemas de regras que tornam possível a ocorrência de certos enunciados, e não outros, em determinados tempos, lugares e localizações institucionais” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 65). Estas regras formam os enunciados, os objetos, as modalidades enunciativas e as posições do sujeito e são constituídas pela combinação de elementos discursivos e não discursivos, cuja articulação faz do discurso uma prática social (ou prática discursiva). O discurso é exatamente o exercício dessas regras, podendo ser visto como uma prática discursiva regrada que sistematicamente molda objetos, posições subjetivas, formas de circulação e intercâmbio com outros discursos (FOUCAULT, 2008). É nesta prática discursiva, regular e regulada, que o discurso se estabelece e passa da dispersão à regularidade. A prática discursiva é, assim, “o lugar e o tipo de trabalho social que forma ou deforma os objetos, nos quais emerge ou desaparece ‘uma pluralidade emaranhada’ de objetos presentes e ausentes” (CARDOSO, 2001, p. 22). Definir discursos como práticas sociais implica que a linguagem verbal e outras semióticas com que se constroem os textos são partes integrantes do contexto sócio histórico e não alguma coisa de caráter puramente instrumental, externas às pressões sociais. Têm assim papel fundamental na reprodução, manutenção ou transformação das representações que as pessoas fazem e das relações e identidades com que se definem numa sociedade, pois é por meio dos textos que se

45 travam batalhas que (...) [levam os interlocutores a querer] ter reconhecido pelos receptores o aspecto hegemônico do seu discurso (PINTO, 2002, p. 28).

2.1.1 A disputa por fazer ver e fazer crer Um dos modos de se constituir hegemonias pelo discurso é por meio de nomeações naturalizadas. Enquanto Saussure, e a linguística tradicional, acreditam na natureza “arbitrária” do signo, sendo um significante atribuído a um significado particular sem base racional, “as abordagens críticas da análise de discurso defendem que os signos são socialmente motivados, isto é, que há razões sociais para combinar significantes particulares” (FAIRCLOUGH, 2001, p.103). As nomeações são típicas de pré-construídos, elas trabalham com o esquecimento dos sentidos que carregam e deste modo, por vezes, passam despercebidas como construtores de sentido (ARAUJO, 2000). De acordo com Araujo e Cardoso (2007), a nomeação define os lugares de interlocução, tanto de quem nomeia quanto de quem é nomeado, configurando-se como uma forma de exercício de poder, cuja naturalização é uma “forma perversa” de construir a hegemonia. “Sem perceber, pelo uso dessas categorias, reproduzimos relações discriminatórias que não refletem nossas convicções” (ARAUJO; CARDOSO, 2007, p. 97). Sendo a linguagem dialógica, na qual as diferentes vozes correspondem a interesses e posições variadas na estrutura social, esta se configura como “uma arena de embates sociais, na qual são propostas, negociadas e ratificadas ou recusadas as relações de poder” (ARAUJO; CARDOSO, 2007, p. 56). Para compreender exatamente como se configura esse embate – presente não apenas na linguagem per si mas em todo o processo comunicativo – nos é caro o conceito de Poder Simbólico de Bourdieu, definido pelo teórico como um poder de construção da realidade, “de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou transformar a visão de mundo e, desse modo, a acção sobre o mundo” (BORDIEU, 1989, p.14). De acordo com ele, o poder simbólico não reside nos sistemas simbólicos, mas sim nas relações entre os sujeitos dentro de um determinado campo. Deste modo, ele é indissociável da linguagem, sendo esta, tal qual os discursos que ela compõe, um espaço de lutas e negociações. Essa arena se dá também durante o processo comunicativo, no qual instituições e indivíduos posicionam-se discursivamente, ao modo de um mercado simbólico, na disputa pela construção do sentido dominante. É este conceito que nos permite

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compreender o terceiro postulado da SDS, o da Economia Política do Significante, que nos ensina que “só através do processo de produção, circulação e consumo que os objetos adquirem a condição de significante” (ARAUJO, 2000, p. 134). A estratégia de concorrência que a enunciação desenvolve no mercado simbólico, ou seja, a forma particular pela qual as várias vozes e sujeitos se organizam e dialogam nos discursos, é o que chamamos de dispositivo de enunciação (ARAUJO, 2000). “O dispositivo da enunciação caracterizará, assim, a identidade com que o discurso se posicionará no mercado simbólico, disputando com discursos concorrentes a primazia sobre a recepção” (CARDOSO, 2001, p. 29). É através do dispositivo de enunciação “que o sujeito emissor constrói sua própria imagem e a do receptor, e propõe um modo de relação entre eles” (ARAUJO, 2000, p. 136). Pinto (2002) nos diz que, para AD, cada texto pertence a um gênero ou espécie de discurso e, para cada categoria destal, cabe determinar o dispositivo de enunciação. Para o teórico este dispositivo se define como a explicitação dos diferentes posicionamentos ideológicos ou posições enunciativas ou ainda lugares de fala de cada gênero/espécie de discurso. “Ou seja, as diferentes maneiras de construir a representação de uma determinada prática social ou área de conhecimento propostas pelos sujeitos que aparecem nos textos e que são assumidas ou não pelos participantes do evento comunicativo em curso” (PINTO, 2002, p. 32-33). No caso da imprensa escrita, Verón (2004) adota a terminologia contrato de leitura, evidenciando assim o vínculo entre suporte e leitor implícito na produção discursiva, o qual o autor denomina de leitor imaginado. Verón traz este conceito para salientar o discurso de um suporte de imprensa como um espaço onde diversos percursos são apresentados ao leitor. “Uma paisagem, de alguma forma, na qual o leitor pode escolher seu caminho com mais ou menos liberdade, onde há zonas nas quais ele corre o risco de se perder ou, ao contrário, são perfeitamente sinalizados” (VERÓN, 2004, p. 236). Estas posições enunciativas de um discurso evidenciadas no dispositivo de enunciação também podem ser chamadas de tipos de discurso, na proposição de autores como Michel Foucault e Norman Fairclough (PINTO, 2002). Cabe aos interlocutores interpretarem os pontos de vista sugeridos pelos tipos de discurso, a partir de suas próprias experiências e preferências. Ao jogar com a abertura da produção de sentidos, esta operação amplia as possibilidades de identificação com o que está sendo proposto (CARDOSO, 2011). Para

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Fairclough (2011), a maneira como cada contexto afeta a interpretação do interlocutor varia de acordo com cada tipo de discurso. Essas diferenças “são socialmente interessantes porque apontam assunções e regras de base implícitas que têm frequentemente caráter ideológico” (FAIRCLOUGH, 2011, p.111). Contudo, isso não significa que esse mercado simbólico de fluxos informacionais se dê em condições de igualdade: o poder de produzir e de fazer circular seus discursos é desigualmente distribuído. Para tanto, Araujo (2009) considera a existência de posições máximas e mínimas de poder na comunicação, ilustrativamente uma escala entre um Centro e uma Periferia discursiva, nas quais os agentes sociais (que formam comunidades discursivas) se situam em algum ponto. Cabe destacar que esta posição discursiva é situacional, e está sujeita a estratégias de aproximação com o Centro (ou, no caso do Centro, de manutenção da posição). Assim, apesar de as comunidades discursivas – e os agentes sociais dentro destas – disputarem constantemente a prerrogativa de fazer valer sua realidade, o discurso que circula a partir destes aparenta unidade. Centro e Periferia aqui são mutuamente constitutivos, não sendo “lugares de exclusão, de poder ou não poder. Há poder em todo lugar, fortalecido ou enfraquecido pelas relações estratégicas, sendo a principal delas a discursiva” (ARAUJO, 2000, p.149). Diante desses pressupostos, Araujo e Cardoso (2007) nos apresentam um modelo de comunicação em rede, descrito como um tecido formado por muitos fios – fios esses que representam as vozes sociais e circulam em várias direções, conduzindo múltiplos discursos, ideias, saberes, opiniões, ou seja, bens simbólicos. Essa rede é operada por interlocutores, que são simultaneamente produtores e consumidores de discursos, uma vez que geram e fazem circular seus discursos, ao mesmo tempo que se apropriam de outros discursos circulantes (ARAUJO; CARDOSO, 2007). Este é o mercado simbólico, espaço eminentemente relacional, em que o poder circula e é exercido por fluxos de interações simbólicas entre os agentes, que ora estão centro, ora na periferia discursiva. O poder (simbólico ou não) está no cerne de todo o processo de produção-circulaçãoconsumo dos sentidos de um texto e configura, juntamente com a dimensão ideológica, o que se denomina de semiose social.

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Araujo (2000) diz que, antes de Foucault jogar luz sobre a questão, a tendência era perceber o poder situado no Estado, um local central, associando-o com a dominação de classes e a esfera econômica, resultando na dicotomia infra/superestrutura. De um modo geral, tais abordagens não consideram a dinâmica, as contradições e a pluralidade das mediações sociais; as instituições são vistas como pontos de passagem, correias de transmissão ideológica e não fontes de sentido; a ideologia é trabalhada como categoria invariante temporal, um sujeito abrangente, em cujo interior se movimenta impotente o indivíduo (ARAUJO, 2000 p.148)

Já o poder que configura a segunda parte da semiose social pode ser entendido como uma dimensão analítica e não o poder concreto. Neste caso, Pinto (2002) afirma que é o poder que está em jogo em qualquer interação comunicacional, de modo explícito, como objeto de disputa, ou de modo implícito, como regras que somos obrigados a seguir para a interação “ser bem-sucedida”. “Na análise dos discursos, ‘poder’ é o nome do sistema de relações entre um discurso e suas condições (sociais) de reconhecimento. O conceito de ‘poder’ diz respeito, portanto, à problemática dos efeitos de sentido dos discursos” (VERÓN, 2005, p. 56, grifo do autor). Deste modo, o poder que se estabelece na SDS se refere às restrições que organizam o consumo de um discurso, às condições de seu reconhecimento, durante a recepção, onde pode ser aceito ou recusado. Nesta perspectiva, as dimensões tanto de poder quanto de ideologia “são constitutivas, atravessam e dinamizam o conjunto das práticas e relações discursivas, sendo também por elas dinamizadas” (CARDOSO, 2001, p.33). Verón (2004, p. 56) define o ideológico como “o nome do sistema de relações entre um discurso e suas condições (sociais) de produção”. Para ele, o ideológico se constitui como uma dimensão de análise do funcionamento social e está presente num texto pelas suas marcas que as gramáticas de sua produção (regras formais de geração de sentidos) deixam na superfície textual. “Uma parte do ideológico também transparece num texto sob a forma de preconstruídos, que são inferências e pressuposições que o coemissor deve fazer para suprir as lacunas e dar coerência à interpelação que faz” (PINTO, 2002, p. 45). De acordo com Pinto (2002), o ideológico é uma dimensão essencial em todos os discursos, responsável pela produção de qualquer sentido social. Ideologia seria um mecanismo formal de investimento de sentido em objetos significantes, sendo compreendido como um repertório de conteúdo, opiniões, atitudes ou representações. “Uma das possibilidades abertas pela AD é desmitificar a ideologia, mostrar que não é

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algo abstrato, sem substância. Pelo contrário, as ideologias podem ser encontradas nas marcas formais dos discursos, é algo mapeável e analisável” (ARAUJO, 2000, p.153) 2.2 O embate jornalístico O discurso é o principal produto e a expressão final do funcionamento da mídia. O discurso midiático encadeia enunciados de modo fluido e acabado, produzindo um efeito de completude e escondendo seus processos de gestação. “Uma das principais características do discurso midiático é o fato de se apresentar como um discurso acabado e de funcionar aparentemente sem intermitências nem vazios” (RODRIGUES, 2012, p.227). Fausto Neto (2008) nos ensina há uma incompletude inerente à enunciação. Deste modo, não compactuamos com a noção instrumental da comunicação, na qual a centralidade da enunciação se concentra no “sujeito falante”, em detrimento da linguagem ou os “modos de dizer”, de modo que o manejo do autor já garante que a mensagem seja transmitida com os sentidos sociais intencionalmente propostos por ele. Podemos evocar aos já explicitados conceitos de dialogismo e polifonia, além da concepção do receptor como coemissor de sentidos, para demonstrar que o processo comunicativo vai muito além da intenção – e, aos constrangimentos das condições de produção e das regras específicas das práticas midiáticas –, para afastar a concepção de manipulação intencional de indivíduos cooptados inocentemente pela mídia. Porém, se compreendemos o texto jornalístico como um discurso, devemos lembrar que a linguagem contém os ditos e não ditos, o que se privilegia e aquilo que se silencia. Para Araujo e Cardoso (2007), a mídia é um ativo produtor de sentidos, manejando o embate das vozes sociais, que correspondem a interesses distintos, a partir de seus próprios interesses, lógicas e dispositivos. As vozes periféricas aparecem nos meios de comunicação, mas enquadradas nos critérios midiáticos de produção dos acontecimentos e despidas de carga ideológica que as anima e confere poder de mudança. A manifestação da centralidade do discurso no jornalismo também se dá pelo poder simbólico, por meio da fala autorizada do especialista (ARAUJO; CARDOSO, 2007). Devemos considerar que a produção social de sentidos no jornalismo está relacionada a uma série fatores. Desde regras e procedimentos jornalísticos, marcados por valores, características e percepções historicamente construídas, até contextos situacionais, vinculados tanto a organização e princípios editoriais do veículo de comunicação, o

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momento histórico, quanto a subjetividade do jornalista-sujeito da enunciação, cuja produção é fruto de condições de produção específicas, da formação profissional e ideológica, das fontes às quais tem acesso, além da ideia que faz do destinatário – o que Verón (2004) denomina de leitor imaginado. Essas condições extratextuais são inerentes aos discursos e a relação entre eles é constitutiva dos efeitos de sentido que o discurso pode produzir. São essas condições extratextuais que denominamos de condições de produção (ARAUJO, 2000). Oliveira (2014) lembra que os textos jornalísticos estão continuamente atravessados por suas condições de produção e pelas estruturações do dispositivo jornalístico, que capta, interpreta e codifica os acontecimentos a serem disponibilizados publicamente. “Ao serem captados pelos dispositivos jornalísticos, os acontecimentos ganham novas formas e sentidos, e assim serão reconhecidos pelo público” (OLIVEIRA, 2014 p.42). Tal qual o dispositivo de enunciação, o dispositivo jornalístico é condicionado a um certo padrão estrutural, cultural, social e econômico que determina a sua produção de sentidos, organizando a prática discursiva dos jornais. Para Mouillaud (2012), esses dispositivos se encaixam uns nos outros – o jornal se inscreve no dispositivo da informação e contém outros dispositivos, como o sistema de título – e não são suportes, mas matrizes que impõem suas formas aos textos. As formas de um dispositivo vão além da organização textual, sendo parte dele outras dimensões como a diagramação, imagens, cores, o formato do material, o meio de circulação. É o dispositivo jornalístico que prepara o sentido para o consumidor da notícia. “Neste sentido, o dispositivo (livro, jornal, canção, filme, disco etc.) existe antes do texto, ele o precede, comanda sua duração (...) e extensão. A antecipação do dispositivo não significa, contudo, a passividade do texto” (MOUILLAUD, 2012, p.51). O texto também pode preceder o dispositivo, sendo esta uma relação dinâmica. [...] o relato jornalístico nunca será resultado apenas da vontade ou da idiossincrasia dos jornalistas, mas sim da complexidade que envolve a produção da notícia (newsmaking), em que os dispositivos jornalísticos se organizam para dar conta do tempo e do espaço das ocorrências do mundo. Por isso o jornalismo e seus produtos não podem ser entendidos como simples espelho da realidade e tampouco como narrativa desinteressada, como apregoam certas teorias de manuais de jornalismo, e sim como resultado de um complexo processo de construção social dos sentidos. (OLIVEIRA, 2014, p.42)

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2.2.1 Os valores jornalísticos A mídia tal qual a concebemos na contemporaneidade começou a ser desenhada no final do Século XIX, quando os jornais começaram a deixar de ser um instrumento de veiculação de causas políticas. Para se tornarem negócios que visavam o lucro, estes encontraram uma “nova” mercadoria: as notícias, baseadas nos “fatos” e não nas “opiniões” existentes nas propagandas. Esta guinada foi possibilitada principalmente por quatro fatores: evolução do sistema econômico; avanços tecnológicos; fatores sociais (como o aumento da alfabetização); evolução do sistema democrático, no reconhecimento da liberdade e da importância da opinião pública – à qual o jornalismo logo se vinculou (TRAQUINA, 2012). A busca por lucros crescentes levou o surgimento de jornais baratos e sensacionalistas: é a ascensão da penny press e da impressa marrom (ou jornalismo amarelo, nos Estados Unidos) (TRAQUINA, 2012). Foi para se diferenciar do sensacionalismo, que os jornalistas americanos buscaram critérios para imprimir rigor às técnicas jornalísticas. Assim, eles transportaram do espírito científico positivista o respeito pelos fatos empíricos, não avançando além do que eles demonstram. É assim que surge o ideal da imparcialidade (LAGE, 2002). Ao lado de conceitos como a objetividade e a veracidade, a imparcialidade é um dos valores presentes até hoje na definição do ethos do jornalista21. Estes princípios, adaptados do jornalismo norte-americano, foram desenvolvidos como meio de aumentar a credibilidade do jornalista enquanto intérprete da realidade e, alguns, como a objetividade ou noção de equilíbrio, estão associados ao papel do jornalista na esfera pública (TRAQUINA, 2012). Para Berger (2003), o principal capital simbólico do jornalismo é a credibilidade, pois é da natureza do jornalismo fazer crer. “É ela [a credibilidade] quem está constantemente em disputa entre os jornais e entre estes e os demais campos sociais” (BERGER, 2003, p.21). Mas, como todo o campo, o jornalismo também é constituído de disputas pelo capital simbólico. Assim, diante de rápidas transformações pela qual passa o jornalismo na sociedade contemporânea, até mesmo estes conceitos considerados basilares começam a

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Traquina (2012) nos apresenta diversos valores compartilhados sobre o que é ser jornalista, presentes, em maior ou menor grau, em diversos códigos deontológicos sobre a profissão: credibilidade, liberdade, independência, autonomia, rigor, exatidão, honestidade etc.

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ser questionados dentro da comunidade jornalística. Bueno (2007) nos ensina que o Jornalismo Ambiental, por exemplo, deve propor-se política, social e culturalmente engajado e “não pode comprometer-se com a isenção porque participa de um jogo amplo (e nada limpo) de interesses” (BUENO, 2007, p. 30). Vale aqui ressaltar que não desconhecemos o debate acerca das especificidades da identidade jornalística no Brasil, que, embora baseie seus princípios no modelo norteamericano, os adapta de modo diferenciado, de acordo com o contexto sociocultural no qual estamos inseridos. Assim, na releitura da comunidade interpretativa brasileira, é perfeitamente plausível que a comunidade jornalística apresente em comum valores referenciais como a objetividade, enquanto esteja longe de um consenso quando surge questões pertinentes a exigência profissional, como a necessidade de um diploma universitário como pré-requisito (ALBUQUERQUE, 2004). No entanto, por ora, nos interessa apenas demarcar a existência de valores, não necessariamente formais, partilhados entre os jornalistas, tornando-os uma comunidade digna de reconhecimento cultural enquanto constituidores do real. 2.2.2 A identidade jornalística De modo simplista, podemos definir que a deontologia jornalística supõe o jornalista como um profissional responsável por apresentar leituras da realidade, mais próximas possíveis da verdade de fato, à sociedade por meio da produção de notícias. Mas o que é exatamente essa verdade? Em Microfísica do Poder, Foucault (2009), definiu a verdade não como um conjunto de coisas verdadeiras prontas a serem descobertas, mas como “um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 2009, p. 14). Deste modo, a verdade está intrinsicamente ligada aos sistemas de poder e se constitui enquanto um regime de verdade. Os regimes de verdade não são apenas os tipos de discurso que a sociedade acolhe e faz funcionar como verdadeiros, mas também mecanismos e instâncias que “permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro” (FOUCAULT, 2009, p.12). Para que um regime de verdade se estabeleça é essencial que haja condições históricas e culturais favoráveis.

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Um dos componentes que auxilia no processo de construção da legitimidade do campo jornalístico é justamente a autoridade de que gozam seus principais agentes, os jornalistas. Zelizer (1992) evoca os conceitos de autoridade cultural e comunidade interpretativa para compreender como os jornalistas produzem leituras da realidade similares e consideradas válidas pela sociedade. Para ela, a autoridade jornalística é um tipo específico de autoridade cultural que se traduz como “a capacidade dos jornalistas de se afirmarem como porta-vozes legitimados e confiáveis dos eventos da ‘vida real’” (ZELIZER, 1992, p.8). A autora defende que esta autoridade cultural é possibilitada pelas noções, fatos e tradições compartilhadas dentro da comunidade jornalística, através da narrativa. Deste modo, os repórteres esposam valores e ideias coletivos que os ajudam a manter-se como uma comunidade interpretativa autorizada (ZELIZER, 1992, p.9). Seria assim, não como uma corporação profissional, mas como uma comunidade interpretativa, com discursos e interpretações da realidade partilhadas, que os jornalistas se constituiriam como tal – como os ideais de objetividade, imparcialidade e veracidade, já mencionados. Interessadas em conhecer as perspectivas dos jornalistas brasileiros sobre a produção jornalística dos agrotóxicos, realizamos um estudo sobre as opiniões veiculadas no Observatório da Imprensa22, um importante fórum virtual de crítica midiática. Encontramos poucos artigos que versavam sobre a cobertura jornalística do tema, mesmo com a explosão do consumo de agrotóxicos no Brasil desde 2000 – além disso, o texto mais recente data de 2011 e o mais antigo de 2004.

22

O Observatório da Imprensa foi criado em 1996, um ano após a primeira iniciativa do gênero, em Lisboa, Portugal. Estimulado pela experiência portuguesa, Alberto Dines criou o observatório no Laboratório e Estudos Avançados de Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o transformou na mais antiga experiência contínua de acompanhamento da mídia brasileira. Alberto Dines é considerado pioneiro na crítica da mídia brasileira, pois, em diversos momentos e em vários veículos, lutou para exercitar o media criticism no Brasil (MARCOLINO, 2014). O Observatório da Imprensa define como seu objetivo central “acompanhar, junto com outras organizações da sociedade civil, o desempenho da mídia brasileira”. Para tanto, ele se propõe a funcionar como um espaço no qual “os usuários da mídia (...), organizados em associações desvinculadas do estabelecimento jornalístico, poderão manifestar-se e participar ativamente num processo no qual, até agora, desempenhavam o papel de agentes passivos” (ALBUQUERQUE et al., 2002). O estudo em questão, publicado nos anais do Intercom (LIMA, 2015), buscou virtualmente os artigos com duas principais palavras-chave: agrotóxicos e defensivos agrícolas. O primeiro termo foi o que se demonstrou mais eficaz para o nosso objetivo: foram encontradas 68 matérias, entre 2001 e 2015, sendo que destas, após uma leitura detalhada, apenas nove tratavam especificamente do que pretendemos pesquisar, a relação jornalismo e agrotóxicos. O segundo termo retornou cerca de 15 artigos, nenhum aproveitável dentro deste contexto.

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Os ideais de objetividade e imparcialidade puderam ser encontrados implicitamente em alguns dos artigos. Outras receitas de como fazer jornalismo também estão presentes nas críticas: um bom jornalismo passa longe do sensacionalismo e do alarmismo, é voltado para o interesse público e busca o máximo de profundidade possível em relação a um assunto. E, é claro, pauta os temas que, porventura, podem ir de encontro aos interesses econômicos das grandes multinacionais que dominam o agronegócio brasileiro. O texto “Exemplos de irresponsabilidade”, do jornalista Richard Jakubaszko, editor da revista DBO Agrotecnologia, é o único que trata sobre o caso estudado. Neste, o autor compara as coberturas jornalísticas do Massacre de Realengo e a do caso do Leite Humano Contaminado. Em tom ácido, o jornalista afirma que os “dois episódios demonstraram de forma clara o sensacionalismo da mídia ao tratar de assuntos de alto interesse público de forma leviana, para gerar audiência”. No caso dos resíduos de agrotóxicos no leite materno, ele questiona a pesquisa que pautou a mídia e afirma que a cobertura foi exagerada, visto que “lançou-se a suspeita pelas TVs (Bandeirantes e Globo) de que a população estaria contaminada”, gerando “pânicos visíveis”. Alarmar a população com notícias baseadas em ‘fatos científicos’, não importa em que profundidade, é fato corriqueiro nos tempos contemporâneos. A mídia gosta e dá o devido destaque porque está impune. Por isso, acredito que deveríamos debater uma ‘Ley de Medios’ neste país, estabelecendo responsabilidades, pela qual profissionais e empresas teriam de responder com indenizações ou multas e, principalmente, com a crítica pública, como ocorre com médicos, por exemplo, ou a expulsão, ou cassação de diplomas (que não valem mais nada) de profissionais que se comprovem antiéticos e até mesmo a prisão, quando se provar a má-fé. (...) O que não é possível é compactuar com a leviandade e a inconsequência, com a irresponsabilidade de ‘acusar, julgar e condenar’, como faz a mídia, mesmo quando não tem provas concretas ou, no mínimo, evidências científicas avaliadas por cientistas sérios e respeitados. Preferencialmente de cientistas sem apetite midiático, é claro (JAKUBASZKO, 2011, s.p.).

2.2.3 A crise no meta sistema-perito? Em uma sociedade marcada pela midiatização (FAUSTO NETO, 2007), processo de imbricamento entre a mídia e a sociedade, a mídia se tornou a substituta contemporânea das grandes narrativas míticas que organizam a percepção de mundo. Neste cenário, a mídia toma leituras da realidade, articula com seus dispositivos e lógicas e as transforma em ‘verdades’, tanto mais naturalizadas por esconderem a polifonia e a heterogeneidade

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atrás de uma aparência homogeneizada. O discurso midiático opera com categorias cuja força instituinte é reforçada pelo poder da mídia de constituição do real (ARAUJO; CARDOSO, 2009). A legitimidade que o jornalismo constrói como instância privilegiada de circulação do real pode ser parcialmente compreendida se jogarmos luz no que Giddens chama de sistema perito, sistemas de competência profissional. Miguel (1999) transporta este conceito para o jornalismo, pelo modo como cria relações de confiança com o seu público valendo-se de sua capacidade técnica de selecionar e apresentar notícias. Para ele, o jornalismo se configura não apenas como um sistema-perito, mas tal qual forças reguladoras, como um meta sistema-perito, visto que é “um foro informal e cotidiano de legitimação ou deslegitimação dos diversos sistemas perito” (MIGUEL, 1999, p. 2002). Esta seria uma das distinções entre o jornalismo e outros sistemas peritos. Outra seria a incapacidade inerente de comprovação da efetividade que o constitui, diferentemente de outros sistemas, restando ao jornalismo assegurar a sua credibilidade impondo como indiscutível o fato que se relata. A imprensa impõe à sociedade seus critérios de seleção de informações. Frutos de constrangimentos profissionais específicos (...), estes critérios passam a ser considerados "naturais" e indiscutíveis. Assim, o jornalismo exerce uma violência simbólica originária, que é exatamente o estabelecimento daquilo que há de "importante" no mundo. (MIGUEL, 1999, p. 200-201).

Estas características definiram o jornalismo praticado em boa parte do Século XX e justificam, em parte, a denominação da mídia como “Quarto Poder” 23 – ideia que no jornalismo brasileiro se assemelha mais à de “um poder moderador”, segundo Albuquerque (2000). As transformações vivenciadas na contemporaneidade, entretanto, colocaram em xeque a identidade da mídia, especialmente do jornalismo impresso, que vê ameaçada sua sobrevivência, diante da concorrência em relação à internet. No Brasil, um marco importante para o questionamento do jornalista enquanto agente profissional especializado se deu em 2009, quando o Supremo Tribunal Federal findou a obrigatoriedade do diploma em jornalismo para sua prática. Em 2011, o atual Grupo Globo (ainda denominado Organizações), publicou uma carta aberta com os seus

23

O nome surgiu em 1828, quando um deputado do parlamento inglês, McCaulay, ainda sobre influência da Revolução Francesa e os seus três états (os poderes executivo, legislativo e judicial), apontou para a galeria onde se sentavam os jornalistas e os chamou de “quarto poder” (TRAQUINA, 2012).

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princípios editorais. Na justificativa da publicação da carta, os acionistas afirmam que os princípios “foram praticados por gerações e gerações de maneira intuitiva”, mas agora cabia formalizá-los diante do quadro imposto pela Era Digital: Com a consolidação da Era Digital, em que o indivíduo isolado tem facilmente acesso a uma audiência potencialmente ampla para divulgar o que quer que seja, nota-se certa confusão entre o que é ou não jornalismo, quem é ou não jornalista, como se deve ou não proceder quando se tem em mente produzir informação de qualidade. A Era Digital é absolutamente bem-vinda, e, mais ainda, essa multidão de indivíduos (isolados ou mesmo em grupo) que utiliza a internet para se comunicar e se expressar livremente. Ao mesmo tempo, porém, ela obriga a que todas as empresas que se dedicam a fazer jornalismo expressem de maneira formal os princípios que seguem cotidianamente. O objetivo é não somente diferenciar-se, mas facilitar o julgamento do público sobre o trabalho dos veículos, permitindo, de forma transparente, que qualquer um verifique se a prática é condizente com a crença (PRINCÍPIOS, s/p)24.

Leal, Jácome e Manna (2013) ressaltam que a crise pelo qual o jornalismo passa está ligada a uma série de fatores, tecnológicos, culturais, econômicos e políticos, a começar pela redução do próprio papel mediador entre o cidadão e o mundo reivindicado pelo jornalismo tradicional. Com as novas possibilidades abertas pela internet, o cidadão tem maior facilidade de acessar outras narrativas, que não passam pela mídia convencional, e o saber sobre o mundo está cada vez mais desvinculado do jornalismo. Segundo eles, as novas formas de produção e circulação do saber não somente enfraquecem o jornalismo tradicional como também transformam sua identidade – a definição do que é ou não jornalismo/jornalista tornou-se turva, diante de frentes como a comunicação pública de defesa, jornalismo cidadão ou o conteúdo gerado pelo usuário, por exemplo (LEAL; JÁCOME; MANNA, 2013). Assim, a crise para os autores se dá mais pela transformação do “paradigma clássico” do jornalismo, que promove o jornalismo como agente privilegiado de transposição do real (se não o único), do que pelo declínio do campo em si. Se se acentuar toda a multiplicidade que habita dentro da própria fundação de um modo tradicional de conceber o jornalismo, percebe-se que todo seu conjunto de valores é baseado em crenças (e não em “fatos”). E se alguém imprimir historicidade a essa concepção, descobre-se que a crise diagnosticada ou antecipada é sintoma de outra, que sempre existiu à sombra de compreensões de cunho ordenador e homogeneizante, sejam elas de teorias ou do próprio discurso 24

PRINCÍPIOS editoriais das organizações globo. Rio de Janeiro, O Globo. Disponível em: . Acesso em 15/12/2015.

57 jornalístico. Diante de um movimento constantemente errante e heterogêneo, a própria noção fundacional e estável do jornalismo deve ser problematizada. Ou seja, a tão alardeada “crise do jornalismo” parece ser menos do próprio jornalismo e mais do seus modos de compreensão (LEAL; JÁCOME; MANNA, 2013, p.9).

De acordo com eles, é necessário dimensionar que, nos últimos séculos, o jornalismo se tornou um lugar privilegiado de expressão dos valores modernos, participando da maneira ativa de como as pessoas lidam com a compreensão da realidade. Sendo assim, concluem os autores, a reflexão sobre a crise do jornalismo não se descola da discussão sobre a crise atual da própria contemporaneidade.

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3. CAMINHOS PERCORRIDOS 3.1 Da teoria à prática: percurso e método Múltiplos recortes e reconfigurações ocorreram desde que o tema geral deste trabalho, a relação agrotóxicos e jornalismo, nos foi proposto pela orientadora. Os aportes metodológicos, constituição do corpus e até mesmo o problema de pesquisa foram continuamente revisitados e refinados até a finalização deste estudo. O objeto empírico foi sucessivamente recortado até delimitarmos a cobertura midiática sobre o caso do Leite Humano Contaminado. Essas reconsiderações foram tecidas conforme avançamos no percurso escolhido, que parcialmente explicito a seguir. Após a definição do objeto, a “primeira tarefa” do pesquisador, para Minayo (2014), é a revisão bibliográfica, para que este seja “capaz de projetar luz e permitir melhor ordenação e compreensão da realidade empírica” (MINAYO, 2014, p.183). Deste modo, realizamos uma busca exploratória nas bases on-line, em dois momentos (abril a junho de 2014; e fevereiro a maio de 2015, este com o objeto específico mais recortado) sobre os temas que compõem o projeto de pesquisa utilizando as seguintes estratégias: busca em bases de dados, bancos de dados e buscadores, utilizando os Descritores das Ciências da Saúde (DeCS), bem como os sinônimos de cada termo 25; pesquisa em referências bibliográficas das produções científicas encontradas no primeiro passo, além daquelas indicadas pela orientadora e professores; e, por fim, busca por referências em sites especializados em agrotóxicos e afins26. Em relação às produções científicas que abordem a questão dos agrotóxicos, o leite humano ou a cobertura jornalística, separadamente, foram encontradas centenas de publicações,

entre artigos,

dissertações

e

teses

etc. Entretanto,

tratando-se

prioritariamente da relação agrotóxicos e jornalismo no Brasil, apenas uma publicação

25

Descritores: Agroquímicos (sinônimos listados na BVS: agrotóxico, defensivo agrícola. Sinônimo não listados: veneno); Jornalismo (termos correlatos não listados: imprensa, mídia, jornal); e, exclusivamente no segundo período, Leite Humano (sinônimo listado: leite Materno); Contaminação. 26 Deste modo, no primeiro período, consultamos as seguintes bases de dados: Google Acadêmico; Scientific Eletronic Library Online (SciELO); repositórios institucionais da Fiocruz, Universidade São Paulo (USP), PPG Meio Ambiente da UERJ, Universidade Federal da Bahia; Biblioteca Virtual de Saúde; Anais da Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom). Além destes, ampliamos as buscas no segundo período para: Portal Capes de Periódicos; Banco de Teses do Portal Capes; Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) e os Congressos da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco); Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs).

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foi localizada27: trata-se da tese de doutorado Agrotóxicos na imprensa: análise de algumas revistas e jornais brasileiros (2010), de Maria Elizabete Barretto de Menezes Lopes, que analisou elementos do jornalismo e da publicidade na mídia. Nada foi encontrado dentro do recorte específico do nosso objeto empírico (o caso do Leite Humano Contaminado no Jornalismo), de modo que ressaltamos a relevância do nosso trabalho para esta área. Consideramos a tese de Lopes (2010) como um importante subsídio para nosso estudo, visto o ineditismo do mesmo, especialmente para a consolidação de referências bibliográficas em relação aos agrotóxicos. Entretanto, notamos que a perspectiva da pesquisadora é oposta à nossa, considerando o leitor como um receptor passivo e acrítico do conteúdo que recebe, e a metodologia utilizada no estudo também diverge da que optamos por adotar, impossibilitando uma comparação entre os resultados de ambos os estudos. Visando verificar a representação dos agrotóxicos em nove jornais e revistas da imprensa brasileira, inclusive os especializados na área agropecuária, Lopes (2010) utilizou predominante a metodologia de Análise de Conteúdo, focando-se em dados estatísticos e números de páginas. Ela ainda utilizou elementos da Análise do Discurso, inferindo assim que as publicações dos jornais e revistas analisados foram, predominantemente constituídas de mensagens de incentivo ao consumo de agrotóxicos. A necessidade de recortar o tema foi recorrentemente tratada em encontros com a orientadora, diante do período limitado que tivemos para realizar nossa pesquisa e a amplitude do assunto que nos deparamos. Diversos casos emblemáticos ocorreram desde que o Brasil se tornou o maior consumidor mundial de agrotóxicos, em 2008, como a reavaliação de 14 substâncias banidas em outros países; a liberação, sem aval da Anvisa, de uma substância já banida devido ao decreto de emergência fitossanitária diante do alastramento da lagarta Helicorverpa sp.; a pulverização de uma escola em Rio Verde (GO); os índices bem-sucedidos de reciclagem de embalagens de agrotóxicos (o Brasil é recordista mundial também nisso, com 94% das embalagens recicladas em 2012); o lançamento do Dossiê Abrasco sobre agrotóxicos (em 2012 e, em versão impressa

27

Um outro trabalho trata desta relação de forma secundária: é a dissertação Intoxicações por agrotóxicos no debate público socioambiental - o papel das ONGS e dos movimentos sociais (2002), de José Alberto Gonçalves Pereira, que analisa o papel dos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo. Como não está disponível on-line, e não é o tema central do estudo, optamos por não aprofundar os resultados deste autor aqui.

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ampliada, em 2015, períodos que relembrou grande parte dos outros temas, inclusive o caso do Leite Humano Contaminado), entre outros. Contudo, em uma breve avaliação dos casos, optamos por recortar um deles, o caso do Leite Humano Contaminado28. Essa escolha se deu especialmente por três razões: a intensa relação que o tema estabelece com a saúde humana, objeto de reflexão do nosso programa de mestrado; a visibilidade considerável que acreditamos que o caso obteve, sendo até os dias atuais utilizado como referência, para exemplificar o poder de intoxicação dos agrotóxicos; e a capacidade de sensibilização da esfera pública sobre a nocividade da exposição a essas substâncias para a saúde humana (afinal, o discurso predominante rege que são os seres mais vulneráveis de nossa espécie, os bebês, que estão sendo expostos a perigos através do leite materno, que deveria ser o mais puro dos alimentos). 3.1.1 Opções metodológicas Para formatarmos as opções metodológicas que apresentamos neste projeto testamos sua viabilidade anteriormente, na primeira etapa para a construção de pesquisa: a Fase Exploratória da Pesquisa29 (MINAYO, 2014). Esta etapa, no que se refere aos métodos, se constituiu pela coleta de dados e análises preliminares, a fim de subsidiar recortes, hipóteses e verificar o tamanho provável da amostra. Para compreender a extensão do desafio que nos propusemos, de modo a delimitar os veículos de comunicação e o período em que coletaríamos os materiais para o corpus do estudo, realizamos três movimentos: coleta exploratória dentro de um veículo específico; uma linha do tempo, para visualizarmos a evolução do caso e a diversidade de veículos midiáticos que publicizaram o tema; e, por fim, a busca de textos disponíveis nos websites dos jornais que compõem o ranking dos 50 jornais com maior circulação no Brasil, fornecido pela Associação Nacional de Jornais (ANJ).

Conforme detalhamos nos capítulos anteriores, o que denominamos de “caso do Leite Humano Contaminado” veio à tona no dia 15 de março de 2011, data da defesa do mestrado da bióloga Danielly Palma, no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). O estudo “Agrotóxicos em leite humano de mães residentes em Lucas do Rio Verde – MT” analisou a presença de dez substâncias no leite de 62 nutrizes, com até dois meses após o parto, atendidas pelo Programa Saúde da Família na cidade. 29 Esta etapa abarcaria a “escolha do tópico de investigação, a delimitação do problema, a definição do objeto e dos objetivos, a construção de hipóteses ou pressupostos e do marco teórico conceitual, a elaboração dos instrumentos de coleta de dados e da exploração do campo” (MINAYO, 2014, p.171). Esta fase é crucial para a pesquisa, visto que, para Bonin (2006), a pesquisa exploratória aproxima o pesquisador à concretude do objeto empírico, buscando perceber seus contornos, especificidades e singularidades. 28

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Neste último caso, além da existência de matérias sobre o caso, avaliamos a disponibilidade da edição digital (critério eliminatório) e a diversidade regional dos veículos, visando uma amostra mais significativa possível de como o caso foi retratado considerando diferentes contextos geográficos. 3.1.2 Delimitação do corpus A primeira coleta exploratória mais aprofundada que fizemos sobre o caso foi no jornal Diário do Nordeste (CE). Este veículo nos chamou atenção ainda no período da curiosidade inicial sobre o tema proposto para a nossa pesquisa (agrotóxicos na mídia), visto que, diante de dois dos seus textos30, percebemos como os sentidos produzidos podem ser extremamente contraditórios dentro de um mesmo dispositivo de enunciação. O caso do Leite Humano Contaminado não foi alvo de nenhuma reportagem exclusiva no Diário do Nordeste, sendo apenas citado. Na leitura do material coletado, notamos que o caso era geralmente mencionado como exemplificação do absurdo que representa a utilização massiva de agrotóxicos, o auge do risco: afinal, é o envenenamento de uma substância pura, destinada aos seres mais vulneráveis de nossa espécie31. Além de nos proporcionar um primeiro olhar para uma hipótese de pesquisa (que o caso serve para exemplificar o auge do risco), esta busca exploratória nos serviu para nos instigar a olhar veículos de comunicação de diferentes regiões. Para checar se os outros veículos seguiam o mesmo padrão de matérias sobre o tema como o Diário do Nordeste, e assim definir a seleção do nosso corpus de coleta, realizamos dois movimentos: uma “linha do tempo”32 para identificar como tema foi noticiado e buscas semelhantes nos acervos de jornais com conteúdo disponível na internet.

30

O primeiro texto faz parte de uma série premiada de 13 reportagens denominada Viúvas do Veneno, que buscou denunciar o perigo dos agrotóxicos. Já o segundo foi destaque na seção de notícias do portal da Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), ligada aos fabricantes de agrotóxicos, e declara categoricamente que não há riscos à saúde causados pelos agrotóxicos. Sobre os dois, fiz uma análise preliminar em artigo publicado nos anais do VII Congresso de Estudantes de Pós-Graduação em Comunicação, na categoria pós-graduação (LIMA, 2014). 31 Esta construção pode ser demonstrada por sentenças como “altos níveis de veneno puderam ser detectados, inclusive, no leite materno”; “a exposição a agrotóxicos (...) é tamanha que...” ou “o fato serve de alerta para o rígido controle sanitário do produto, em face do risco imposto aos recém-nascidos”. Nenhuma matéria deteve-se em esclarecer o risco real que tal fato representava, as consequências da contaminação para a mãe e/ou bebê, ou ainda as possíveis causas da detecção de tais compostos. 32 No apêndice deste trabalho listamos as matérias, veículos e datas de publicação que fazem parte desta reconstituição da trajetória. A linha do tempo mais detalhada, com resumos, títulos e links, está disponível virtualmente no endereço http://cdn.knightlab.com/libs/timeline/latest/embed/index.html?source=0Ak4899dA_XDLdGFLVkVfUlI 0S3ZPeng2RGJ1Q2F5R2c#gid&font=Bevan-PotanoSans&maptype=toner&lang=en&height=650

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A reconstituição da trajetória da cobertura midiática sobre o caso do Leite Humano Contaminado, a linha do tempo, foi realizada seguindo os traços que encontramos em buscas on-line. Utilizamos os termos de busca relacionados (agrotóxico, ddt, leite, leite materno, em diferentes combinações) e limitamos o período desejado para o ano de 2011, classificamos por data e, dentre os mais de 130 resultados obtidos, buscamos delimitar, por ordem cronológica, a repercussão do caso a partir da divulgação do estudo, 15 de março, delimitando o dia 15 de maio (dois meses, portanto) como data final de coleta. Devemos ressaltar que a construção dessa linha do tempo, detalhada no apêndice, nos deu subsídio valioso para situarmos nosso objeto empírico em diversos contextos (textual, cronológico, institucional, geográfico etc.), além de nos munir com alguns dos sentidos mobilizados na esfera pública no período (contexto intertextual), expressos em blogs opinativos e outras matérias que não compõem nosso corpus (como a própria repercussão do caso no poder público e na sociedade, registrada em matérias como Mães pararam de dar peito aos filhos em Lucas e MT quer passar a limpo o caso da contaminação33). Detalhamos no próximo tópico os principais resultados encontrados. Para selecionar os jornais que compuseram o corpus desta pesquisa, realizamos, paralelamente, o terceiro movimento. Este consistiu em selecionar os jornais de maior circulação, com base no ranking dos 50 maiores jornais do Brasil em 2011, fornecido pela Associação Nacional de Jornais (ANJ), e verificar a disponibilidade digital destes, bem como a existência ou não de matérias sobre o caso, através de uma busca ativa no site. Como visamos diversidade de perspectivas regionais, e a maioria dos veículos se concentram no estado de São Paulo34, selecionamos os dez primeiros colocados do ranking da ANJ e outros dez veículos de outros estados, privilegiando outras regiões. Realizamos a busca nos seguintes jornais: Super Notícia; Folha de S.Paulo; Extra; O Estado de S.Paulo; O Globo; Zero Hora; Daqui; Diário Gaúcho; Correio do Povo; Meia Hora; Estado de Minas; Correio*; Valor Econômico; Correio Braziliense; O Tempo; A Tarde; Gazeta do Povo; Diário do Nordeste; O Popular; Diário do Pará; O Povo. Destes, encontramos matérias sobre o caso do Leite Humano Contaminado nos sites dos

33

Disponíveis em http://www.turmadoepa.com.br/conteudo/show/secao/1/materia/180 e http://www.turmadoepa.com.br/conteudo/show/secao/1/materia/241, respectivamente. 34 De acordo com dados da ANJ, em 2011, o Brasil possuía 652 jornais diários e 3.562 não-diários (4.214 no total) sendo que somente o estado de São Paulo era responsável por quase um terço desse percentual, com 212 diários e 1.215 não-diários em circulação. No estado do Mato Grosso, local onde se deu o caso sobre qual tratamos, circulavam 17 veículos impressos diários e 64 não-diários neste ano.

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jornais: Super Notícia; Folha de S.Paulo; O Globo; O Tempo; Gazeta do Povo; Diário do Nordeste; O Popular. A inexistência de veículos impressos do Mato Grosso no ranking nos fez realizar outra busca em jornais locais. Somente identificamos matérias em dois veículos impressos, A Gazeta e Diário de Cuiabá35. Utilizamos, por fim, os critérios de disponibilidade da edição digital e representatividade regional para selecionar os veículos que compuseram nosso corpus. O critério de disponibilidade digital é, na verdade, uma tentativa de contornar do melhor modo uma limitação que nos deparamos: a dificuldade de acesso às versões impressas dos jornais sediados em outras regiões36. Deste modo nosso corpus reduzido ficou constituído de 14 textos, encontrados em quatro dos oito veículos analisados, sendo três da região Sudeste, que concentra os jornais ditos nacionais (Folha de S.Paulo; Estado de S.Paulo; O Globo); dois jornais do Mato Grosso (A Gazeta; Diário de Cuiabá), e um de cada região restante do país (Zero Hora/RS, Diário do Nordeste/CE e Diário do Pará/PA). Quadro 1 – veículos que compõe o corpus e a quantidade de matérias sobre o LHC

Veículo

Estado

Matérias

A Gazeta

MT

2

Diário de Cuiabá

MT

5

O Globo

RJ

-

Zero Hora

RS

-

Diário do Nordeste

CE

4

Diário do Pará

PA

-

Folha de S.Paulo

SP

3

O Estado de S.Paulo

SP

-

TOTAL Fonte: elaborado pela autora

14

Optamos por incluir também os jornais que não noticiaram o caso, uma vez que entendemos que o resultado negativo também deve ser investigado, para compreendermos ao máximo o contexto que cerca o objeto empírico analisado. Sendo assim, buscamos analisar as matérias veiculadas sobre agrotóxicos nestes jornais, no

35

Foi feita uma busca nos sites dos próprios veículos e no Google sobre os seguintes jornais: A Gazeta; Diário de Cuiabá; Folha do Estado; Centro-Oeste Popular; Circuito MT. 36 Frequentemente saudada pelo acervo disponível, encontramos diversas dificuldades nos periódicos reunidos na Biblioteca Nacional: acervos incompletos, ausência de jornais no período pretendido, dificuldade de reprodução, além de uma mudança do acervo que o deixou indisponível para pesquisa por tempo indeterminado neste ano de 2015.

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mesmo período que recortamos para identificar os textos sobre o Leite Humano Contaminado (15 de março a 15 de maio). Durante a coleta, nos deparamos com algumas dificuldades, que tentamos contornar do melhor modo possível. Alguns textos que encontramos nos sites do O Globo, Folha de S.Paulo e Diário do Pará não foram publicados integralmente na versão impressa, o que nos fez desconsiderá-los no corpus, à exceção do texto da Folha, que consideramos, visto que a versão impressa continha uma chamada para o texto na íntegra no site (onde estava a menção ao caso estudado). O jornal Diário do Pará não disponibilizou as edições entre os dias 01 e 08 de abril de 2011, enquanto o Diário do Cuiabá disponibiliza somente as capas, e as matérias na íntegra. Entramos em contato com o setor comercial de ambos os veículos, mas não obtivemos resposta. Deste modo, optamos por considerá-los ainda assim nesta pesquisa, esclarecendo essas limitações. 3.1.3 Definição da análise Para definirmos a grade de análise que utilizaríamos no material coletado, além da leitura e aprofundamento dos referenciais de comunicação indicados no programa de pósgraduação, realizamos uma aproximação37 com o Observatório Saúde na Mídia (OSM)38, do Laboratório de Comunicação e Saúde (Laces/Icict/Fiocruz). Este contato visou encontrarmos referências de aplicação das nossas escolhas teóricas, além de refinar as opções metodológicas de coleta. Os colaboradores do Observatório selecionam os textos conforme os critérios descritos pelo protocolo de clipagem do projeto, que define o jornal como uma “unidade empírica de análise” que reúne tanto textos de caráter jornalístico, como àqueles “externo(s) à dinâmica produtiva da redação, mas que, no entanto, provoca efeitos de sentido no produto final, que chega às mãos dos leitores” (OSM, 2012, p.16). Esta percepção englobadora trata o jornal como um dispositivo de enunciação, concepção de Verón

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Esta aproximação ocorreu na forma de estágio e abrangeu 20 horas entre setembro e outubro de 2014. O Observatório Saúde na Mídia visa desenvolver “um conhecimento aprofundado sobre os modos pelos quais os meios de comunicação constituem os sentidos públicos sobre a saúde” (OSM, 2012). Para isso, os membros do OSM identificam textos sobre saúde em uma leitura integral (exceto os classificados) das edições impressas diárias dos seguintes jornais: os fluminenses O Globo e O Dia, os paulistas O Estado de S.Paulo e a Folha de S.Paulo, em sua sede, no Rio de Janeiro, e os veículos Correio Braziliense, na capital federal, e Folha de Pernambuco e Jornal do Commércio, em Recife – sendo estes últimos monitoramentos realizados em parceria com a Fiocruz Brasília (Direb) e a Fiocruz Pernambuco (Centro de Pesquisas Ageu Magalhães). 38

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(2004) que abrange não apenas o texto escrito, mas a organização textual, imagens, diagramação, cores, formato, o meio de comunicação e o modo de circulação. O dispositivo de enunciação pode ser descrito como o sistema de relações que une o texto a suas condições sociais de produção, e é o que pretendemos analisar utilizando o aporte teórico fornecido pela Semiologia dos Discursos Sociais. Como as significações não são imanentes e todo o trabalho de produção de sentido manifesta-se materialmente, o ponto de partida da investigação semiológica são os textos, fragmentos extraídos da semiose infinita, de acordo com os interesses da pesquisa (CARDOSO, 2001; PINTO, 2002). Para compreender as especificidades dos dispositivos, é preciso considerar o universo de concorrência em que se situam e utilizar o método comparativo, visto que o sentido é sempre diferencial. Para tanto, deve-se estabelecer as características do conjunto empreendendo uma análise entre “iguais”, além de compará-lo com outro conjunto, com aquilo que ele “não é” e que foi produzido em condições distintas das suas. “O fundamental para a análise é perceber não apenas o que é dito, mas as modalidades do dizer, as pistas, os mecanismos que fazem funcionar o real construído discursivamente e que devem ser reconhecidos em recepção” (CARDOSO, 2001, p. 32). Deste modo, não apenas os textos que operam dentro da lógica dos gêneros informativos39 são selecionados pelos colaboradores do observatório, mas também outros elementos, como a publicidade e as histórias em quadrinhos, configurando-se o que a Análise dos Discursos Sociais (PINTO, 2002) denomina de co-textos, que não apenas olha os “textos contíguos no espaço dos textos jornalísticos e que produzem sentidos sobre eles”, mas também como o texto é disposto na página do jornal. Co-textos é um dos conceitos operacionais trabalhados na análise do dispositivo de enunciação. Além deste, outros elementos são necessários para análise: conteúdo do texto (o que fala?), as vozes contempladas (quem fala?), modos de dizer (como fala?), contexto textual (onde fala?).

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Existem muitos modos de classificação dos diversos formatos que convivem em um jornal impresso. Aqui optamos por utilizar a classificação adotada pelo OSM que denomina de gêneros informativos as seguintes categorias: Nota; Notícia; Reportagem; Entrevista; Artigo; Editorial; Carta do leitor; Opinião/colunista; Charge/caricatura.

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3.2 Uma trajetória do caso do Leite Humano Contaminado A reconstituição da trajetória da cobertura midiática sobre o caso do Leite Humano Contaminado foi realizada seguindo os traços que encontramos em buscas virtuais, em dois movimentos: busca especializada em buscador on-line (Google) e busca ativa em jornais, conforme explicitamos anteriormente. De acordo com os dados obtidos, o caso do Leite Humano Contaminado foi inicialmente anunciado no site da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) em razão da divulgação da defesa de mestrado da pesquisadora, no dia 15 de março. Na mídia, o caso veio à tona no site 24 Horas News (site de Cuiabá de pequeno porte, atualmente com cinco jornalistas), dois dias depois (17 de março). No dia 18, sexta-feira, a notícia foi republicada na íntegra no blog do jornalista Luís Nassif, na seção Fora de Pauta (local onde leitores comentam notícias e acontecimentos que julgam interessantes, funcionando como um fórum interativo). Nesse mesmo dia (18), o telejornal Jornal de Mato Grosso, da afiliada Band em Mato Grosso (TV Cidade Verde), fez uma matéria sobre o tema. Apenas na terça-feira, dia 22, a Band nacional veicularia o caso no Jornal da Band e no Band News, que ganharia espaço em diversos veículos nacionais nos dois dias seguintes (Folha de S. Paulo, O Globo, IG, Carta Capital, Brasil de Fato, Globo, Record etc). Esta sequência nos faz acreditar que o gap ocorrido para que o assunto fosse alçado a mídia nacional, entre os dias 18 e 22, se deu pela própria lógica de produção dos veículos de comunicação, cuja equipe e rotina de trabalho são significativamente reduzidas aos finais de semana. O caso ter sido noticiado apenas na terça-feira – e não na segunda-feira – sugere que ou o tema era polêmico o suficiente para merecer discussão prévia, ou foi necessária mais apuração antes da matéria ser exibida nacionalmente. Apesar disso, um dia antes, o site Turma do Epa já informava que a matéria da Band local seria veiculada em rede nacional. Acreditamos que o próprio desenrolar da notícia na internet, possa até ter agregado valor à notícia, mas não tenha sido um fator preponderante para exibição, uma vez que, ainda assim, a mídia tradicional só veiculou o caso após esta ir ao ar em rede nacional. Está claro que diversos fatores influenciaram a circulação do caso na mídia do modo como se deu. No entanto, ousamos esboçar uma hipótese para indicar como o fluxo informativo operou no caso estudado. Apenas o jornal Folha de S.Paulo, dos seis veículos

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de comunicação de grande circulação, regional e nacional, analisados neste estudo – O Globo, Estado de S.Paulo, Zero Hora, Diário do Nordeste e Diário do Pará – veiculou o caso na edição impressa. O Globo reproduziu uma notícia veiculada no sítio eletrônico do Jornal Hoje, enquanto o caso somente foi mencionado em editorial no Diário do Nordeste quase um mês depois – 19/04. Deste modo, podemos pressupor que: 1) A política editorial da Folha de S.Paulo, que se pretende um jornal plural e de abrangência nacional fez com que o assunto fosse veiculado com destaque mesmo sem aprofundamento logo um dia depois da exibição no Jornal da Band (dia 23); 2) O poder de pautar outros veículos do jornal Folha de S.Paulo levou com que a notícia tivesse grande veiculação neste dia (23), tendo grande circulação em diversos sites jornalísticos, mas perdesse “o valor noticioso” para ser publicado nos veículos de comunicação impressos, sem um maior aprofundamento, no dia seguinte, já “furados” pela chamada de capa da Folha. 3) A combinação de um assunto polêmico que mexe com interesses importantes e a ocorrência do fato no interior de um estado fora do centro de produção de notícia – o que encarece o envio de equipes e o aprofundamento no caso – pode ter sido o principal fator para a ausência do interesse dos veículos de comunicação da chamada grande mídia em “suitar” o caso, inclusive a própria Folha de S.Paulo; 4) A exceção óbvia fica para os veículos de comunicação locais. Embora o fator acima sugerido também possa ter contribuído para o enfraquecimento da cobertura jornalística in loco do caso, o mesmo não se aplica ao segundo item, visto que a informação é interessante para o público do jornal devido ao critério de proximidade, validando a notícia mesmo já “esfriada” pela ampla divulgação do dia anterior. A dificuldade de aprofundamento é também parcial, pois, embora o caso tenha ocorrido no município a cerca de 350 km da capital do estado, onde se concentram as redações, e o envio de repórteres nem sempre seja viável, existe a facilidade de contato com os principais agentes do estudo (na UFMT também de Cuiabá) e da prefeitura da cidade (por contato telefônico). Abaixo, destrinchamos melhor os resultados obtidos a partir da análise gráfica das 40 matérias identificadas sobre o caso do Leite Humano Contaminado no período.

68 Gráfico 1: Quantidade de matérias publicadas citando o caso por dia

Matérias por dia 10 9 8 7 6 5 4 3 2 1 0

Fonte: Elaborado pela autora

Conforme nos mostra o gráfico 1, a grande maioria das notícias originais sobre o caso está concentrada no dia 23 de março, um dia após a veiculação pela TV Bandeirantes. A distribuição de notícias sobre o caso continua ao longo das duas semanas seguintes, mas as matérias originais em grandes veículos nacionais ocorrem até o dia 31 de março – quando foi publicada a matéria no Bom Dia Brasil, telejornal matinal transmitido nacionalmente pela Rede Globo. A partir de então, a repercussão sobre o caso é restrita a imprensa local e aos blogs na internet. Nem mesmo o debate na Câmera sobre o caso ou a opinião de especialistas, veiculada pela Agência Brasil (2 de abril) despertou novamente o interesse da mídia nacional em suitar (continuar as matérias sobre) o caso, à exceção de alguns veículos com menor porte (como o Diário do Pará). Nos grandes veículos o caso só voltou à tona, como ainda o faz ocasionalmente, por meio de artigos opinativos ou menções pontuais (como na fala do coordenador do Movimento Sem Terra, João Pedro Stédile, veiculada na Folha de S.Paulo, em 17 de abril).

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Gráfico 2: Quantidade de matérias publicadas citando o caso por tipo de veículo

Matérias por tipo de veículo 14 12 10 8 6 4 2 0 Agência de Notícias

Blog

Jornal impresso

Jornal semanal

Revista Semanal

Site Site Institucional Jornalístico

Telejornal

Fonte: Elaborado pela autora

O gráfico 2 nos mostra que os jornais impressos (com 13 matérias), seguidos dos sites jornalísticos (10), foram os veículos que mais publicaram matérias originais sobre o caso. Já as Agências de Notícias, Revistas e Jornais semanais foram as categorias de veículos de comunicação que menos encontramos matérias, com uma cada. Gráfico 3: Quantidade de matérias publicadas citando o caso por tipo de veículo

Matérias por veículos 6 5 4 3 2

UFMT

Viomundo

TV Rio Verde

Turma do Epa

Olhar direto

Super Notícia

O Globo

O Tempo

Jornal Hoje

Jornal da Band

IG

IHU Online

Gazeta do Povo

Gazeta Digital

Folha de S.Paulo

ENSP

Expresso MT

EBC

Diário do Pará

Diário de Cuiabá

Diário do Nordeste

Campanha…

Brasil de Fato

Bom dia Brasil

Band local

Blog do Nassif

24 Horas News

0

Carta Capital

1

Fonte: Elaborado pela autora

Por fim, o gráfico 3, nos mostra que os veículos locais Turma do Epa (5 matérias) e Diário de Cuiabá (4) foram os que mais se detiveram sobre o caso, seguidos pelo blog Viomundo

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e o jornal Diário do Nordeste, com três cada40. É interessante notar que a grande maioria dos veículos se restringiram a noticiar o caso, sem se preocupar em voltar ao tema para registrar sua repercussão. Esta linha do tempo indicou algumas pistas para a reconstituição da trajetória do caso do Leite Humano Contaminado na mídia. Cabe destacar aqui que as nossas limitações para estabelecer com precisão como o caso se deu: utilizamos apenas meios digitais para realizar este levantamento, excluindo deste modo todos os registros não rastreáveis online; não houve qualquer tipo de entrevista ou contato com os produtores destas notícias, e, portanto, as condições de produção e o modo como foi determinado o valor-notícia desta pauta só puderam ser tecidas como hipóteses, a serem refutadas ou comprovadas por estudos posteriores. Uma dessas hipóteses é que a presença da mídia na banca de defesa levou a circulação do caso na imprensa41. Não sabemos se a repórter do 24 Horas News que publicou incialmente o caso, ou a repórter da Band que publicou no dia seguinte, também estiveram na banca, mas podemos inferir que depois que o caso foi veiculado pela rede nacional, diversos grandes veículos se interessaram pelo assunto e o veicularam a seguir, sem, contudo, acompanhar os desdobramentos do caso. Outra observação que nos chamou a atenção foi a ausência, no material encontrado, do levantamento de casos similares. Mesmo que a própria dissertação ainda não estivesse disponível, fato inclusive criticado no site Turma do Epa, outros estudos brasileiros poderiam ser encontrados na internet, desmentindo o ineditismo do caso. Além disso, quase nenhuma reportagem busca compreender o real perigo que a presença desses contaminantes no leite humano representa para os bebês. Isto nos leva questionar a lógica imediatista, instantânea e superficial que rege atualmente a produção de notícia nos grandes veículos de comunicação.

40

Consideramos aqui apenas textos jornalísticos, desconsiderando as cartas do leitor, o que gera uma diferença entre esses números e os do corpus reduzido. 41 A repórter do blog Viomundo, Manuela Azenha, declarou em uma das reportagens que produziu sobre o caso que esteve presente à defesa de dissertação da bióloga Danielly Palma. Esta informação foi confirmada oralmente pelo orientador da pesquisa, Wanderlei Pignati. O pesquisador declarou que jornalistas foram convidados para a banca de defesa da dissertação. Mas este não soube precisar quantos jornalistas compareceram, nem a quais veículos pertenciam. De todo modo, estes convites podem ter sido o diferencial que alçou este caso à esfera pública, diferentemente de outros estudos com teor similar. Cabe também problematizarmos que estes convites integraram uma estratégia de visibilidade do caso, que foi posteriormente repercutido pelos movimentos sociais.

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4. O VENENO ESTÁ NA MÍDIA? Há muitas formas de se estudar um jornal. Neste capítulo, a nossa proposta é lançar as bases para exercer um destes modos de pesquisa, a do jornal enquanto dispositivo de enunciação. Para tanto, caracterizamos cada veículo que compõe o nosso corpus, por meio de dois movimentos: a descrição de cada jornal considerando-o enquanto sujeito; e a identificação dos sentidos privilegiados sobre os agrotóxicos em cada veículo, a partir da análise da cobertura jornalística cotidiana no período recortado. No primeiro momento cabe identificar e compreender quais são os veículos de comunicação integrantes do nosso corpus, entendendo que cada jornal deve ser considerado enquanto um sujeito (BERGER, 2003)42, que a partir da imagem que constrói de si estabelece um contrato de leitura com seu leitor imaginado (VERÓN, 2004). Entendemos que, segundo preconiza o postulado da heterogeneidade enunciativa (PINTO, 2002), o sujeito é constituído por uma pluralidade de vozes, que o atravessam e o interpelam a todo momento. Mais do que isso: cada texto veiculado é um território amplo, onde vozes, olhares e modos de dizer se articulam de forma singular, devido a diferentes fatores internos (subjetivos e existenciais) ou externos. Esses últimos comportam as condições de produção de cada veículo, momento sóciohistórico que os circunscreve, e até a adequação ao sujeito enunciativo em que cada jornal se inscreve. Cada narrativa apresentada é, assim, polifônica e dialógica, de modo que qualquer tentativa de apreensão é parcial. Deste modo, nosso segundo movimento é mapear os tipos de discursos (PINTO, 2002; FAIRCLOUGH, 2001) e os sentidos mobilizados em cada um deles. Os tipos de discursos podem ser definidos como pontos de vista a respeito de uma área social, tema e/ou alguns de seus aspectos, sendo, por isso, denominado por alguns como perspectiva ideológica. Entretanto, essas perspectivas são somente sugeridas, sendo o destinatário o responsável

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Para Bertha (2003) mais do que a razão social, o estatuto e a personalidade jurídica, que asseguram sua individualidade, o jornal constrói uma “imagem de marca” que pode provocar tanto atração quanto a repulsa dos leitores. É, portanto assim, enquanto sujeito, que o jornal estabelece o contrato de leitura com seu público. Ela se vale do conceito de totalidade de significação de Landowski. Ele defende que um jornal, para ser visto tal como é em si mesmo, deve ser estudado de um ângulo mais amplo, ao qual ele chama de totalidade de significação. Tal conceito propõe que o estudo de um veículo seja conduzido por meio de três abordagens: tempo, espaço e de “pessoa” (ou sujeito) (BERTHA, 2003).

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pelo trabalho interpretativo, a partir de seus posicionamentos e memória discursiva (CARDOSO, 2001). Por fim, o terceiro movimento deste capítulo é justamente tentar compreender as regularidades e dispersões da produção jornalística dos veículos analisados sobre os agrotóxicos, lançando luz sobre as marcas que diferenciam os jornais que noticiaram nosso caso específico. 4.1 Caracterização dos veículos de comunicação Jornais locais O caso empírico que nos serve de objeto neste estudo ocorreu em Lucas do Rio Verde, um município no norte de Mato Grosso. Embora seja uma cidade de médio porte e possua veículos de comunicação próprios, não há jornais impressos de circulação diária em Lucas. Assim, para fins deste estudo, consideramos como jornais locais os veículos que circulam na capital Cuiabá. Maior estado da região centro-oeste do Brasil, com mais de 903 mil km2, Mato Grosso tem cerca de 3,03 milhões de habitantes (2,48 mi na área urbana) em seus 141 municípios (IBGE, 2010)43, sendo que 58,5% dos domicílios matogrossenses possuem rádio, 93,5% televisão e 39,4% computadores com acesso à internet (PNAD, 2014). O estado conta com 132 veículos de comunicação, a maioria emissoras de rádio FM. Das 20 redes de televisão presentes no estado, nove possuem geradoras locais e mais de 293 são retransmissoras, responsáveis pela transmissão da programação local e nacional, a maioria pertencentes a Rede Globo e a Rede Record, segundo o sítio eletrônico Donos da Mídia44. Os principais veículos impressos do estado são: A Gazeta, Folha do Estado e Diário de Cuiabá, localizados na capital. O jornal Folha do Estado é o único que não possui nenhum tipo de digitalização do conteúdo do veículo impresso. A Gazeta e o Diário de Cuiabá fazem parte deste estudo, sendo o primeiro o de maior tiragem, e o segundo, o jornal diário mais antigo em atividade no estado. Descreveremos a seguir uma breve contextualização desses dois veículos de comunicação.

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Todos os dados apresentados do IBGE podem ser encontrados em 44 Disponível em < http://donosdamidia.com.br/estado/MT>

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A Gazeta

O jornal A Gazeta foi criado em maio de 1990, pelo jornalista e radialista João Dorileo Leal, com investimento da construtora Triunfo45. O veículo originou o Grupo Gazeta de Comunicação, que atualmente possui um canal de televisão (TV Gazeta, afiliado a TV Record), quatro emissoras de rádio FM e uma AM, além de uma empresa de publicidade, gráfica e um instituto de estatística (DONOS DA MÍDIA, s.d. 46; FTPI, 2015). Atualmente, A Gazeta é o jornal com maior fatia da audiência dos veículos impressos do Mato Grosso, com 80% dos leitores (REIS, 2011; FTPI, 2013) e uma tiragem que varia de 33 a 38 mil exemplares, circulando entre outras 120 cidades, além da capital. O público do veículo se concentra em pessoas do sexo masculino (53%), de classe C (51%) ou AB (43%), e acima de 25 anos (74%) (FTPI, s.d) 47. Em 2011, ano que corresponde ao surgimento do caso estudado neste trabalho, o jornal A Gazeta celebrou 21 anos. Um caderno especial em comemoração à data circulou na edição impressa, sob o título “Retrospectiva”, oportunidade que sintetiza e dimensiona a imagem que o veículo quer construir perante ao leitor: um jornal moderno, defensor do cidadão, objeto de investimento alto e constante, que, como retorno, obtém uma audiência sólida, tornando-se alheio às previsões de decadência e crise dos jornais impressos, como podemos perceber nos títulos “Gazeta revoluciona mercado editorial”; “Modernização marca trajetória”; “Inovações são constantes”; “Comunidade está em 1º lugar”; “Comprometimento cria laços”; “Jornal alcança 80% no Ibope”. A ideia de modernização é especialmente construída com o destaque da compra de um equipamento milionário para o parque gráfico da redação, reforçando junto ao leitor uma trajetória de pioneirismo inovador do jornal: “Depois de uma preparação minuciosa (...) o árduo trabalho chegou às ruas prometendo - e cumprindo - uma verdadeira revolução no jornalismo mato-grossense”/ “A Gazeta foi o primeiro veículo impresso a oferecer computador para os repórteres redigirem as matérias. O investimento, que é feito também 45

A Construtora Triunfo é uma empreiteira paranaense, cujo portfólio inclui construções de rodovias, portos, gasodutos, aeroportos e hidrelétricas. No Mato Grosso, a empresa é responsável pela engenharia civil da Usina Hidrelétrica Sinop. Em entrevista ao Circuito MT, o diretor executivo do grupo, João Dorileo Leal, contou como iniciou o projeto do jornal: “Saí do Jornal do Dia para montar o projeto do jornal A Gazeta, a convite dos meus amigos da Construtora Triunfo, que queriam um grande projeto de comunicação para o estado. Eu topei, eles entraram com o investimento e eu tinha o conhecimento”. Disponível em 46 Ver 47 Ver

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nos dias atuais, foi necessário para proporcionar a consolidação do jornal”/ “a modernização acompanhou toda a trajetória do jornal” (REIS, 201148; EDITORIA, 2011). Entre os feitos destacados estão o de ser “a primeira redação completamente informatizada do estado”, a primeira a criar um portal etc. Além dos avanços tecnológicos, A Gazeta trouxe algumas inovações que já eram amplamente adotadas em outros estados brasileiros, como a adoção da assinatura dos repórteres nas matérias, a inclusão da editoria de opinião, a incorporação de um suplemento diário e a circulação às segundas-feiras – esta última iniciativa é reivindicada também pelo Diário de Cuiabá (INOVAÇÕES, 2011)49. As inovações sozinhas, entretanto, não significariam muita coisa se o veículo de comunicação não reafirmasse valores-base do jornalismo, como o comprometimento com o interesse e a defesa do cidadão. A luta pela conquista dos direitos do cidadão sempre foi uma luta incansável do Jornal A Gazeta, desde o início, e isso fez com que se tornasse a mão amiga de muitas pessoas. Os pedidos de socorro chegam todos os dias à redação, seja por e-mail ou por telefone. Vão desde uma reclamação aflita dos problemas de infraestrutura da cidade até o clamor por Justiça. E nestes 21 anos é difícil contabilizar os resultados. Na verdade, às vezes, a dimensão da ajuda é muito maior do que se imagina e os resultados nem sempre ficamos sabendo. (FONTES, 2011, s.p.)

O jornal se propõe a cumprir muito mais do que o papel de defensor do cidadão, ele é o próprio meio deste obter ajuda, é o jornal que socorre o cidadão, se torna sua mão amiga. Neste caso, o veículo não busca divulgar os meios pelos quais o cidadão deve recorrer para solucionar suas questões, nem se posiciona na sua defesa, denunciando os problemas que o atingem, mas se coloca na posição de mediador, ele próprio, entre o poder público e o leitor, assistindo-o em seus problemas, personificando então o papel de quarto poder moderador (ALBUQUERQUE, 2000). A perspectiva assistencialista é ratificada pelas histórias de algumas pessoas que obtiveram algum retorno após a divulgação dos casos em suas edições. Como um caso de uma personagem50 que atribui a prisão de um policial que assassinou seus filhos à pressão 48

REIS, F. Jornal alcança 80% do Ibope. A Gazeta. Cuiabá, 23 mai 2011. Retrospectiva. Disponível em Acesso em: 20 jan 2016 49 INOVAÇÕES são constantes. A Gazeta. Cuiabá, 23 mai 2011. Retrospectiva. Disponível em 50 Jargão jornalístico para fonte não especializada, cuja história ou opinião é utilizada para personificar uma matéria.

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feita pelo jornal: “(...) Cacilda afirma que tudo o que conseguiu até hoje foi graças A Gazeta. ‘Se o jornal não estivesse comigo 5 dias depois do crime (1997), quando Rambo foi prestar depoimento, tenho certeza que ele não teria sido nem preso’” (FONTES, 2011, s.p). Além de estar do lado do interesse público, o jornal destaca ainda que faz “um jornalismo defensor da liberdade democrática, da responsabilidade social, da cultura regional e dos avanços conquistados por Mato Grosso” (JORNAL, 2011, s.p). Deste modo, A Gazeta mostra ao seu leitor que o resultado de tanto investimento e modernização se traduz, naturalmente em liderança: É unanimidade entre os leitores a preferência por A Gazeta. (...) Em 2010, o jornal do Grupo Gazeta de Comunicação pontuou com nada menos que 80% da preferência do público. Este é um percentual jamais registrado na história dos jornais em Mato Grosso e um dos mais expressivos índices que poucos impressos de circulação nacional conseguiram alcançar. (REIS, 2011, s.p)



Diário de Cuiabá

O Diário de Cuiabá (DC) é o jornal diário em circulação mais antigo de Cuiabá (MT). O veículo foi fundado em dezembro de 1968 pelo radialista e jornalista cuiabano Alves de Oliveira. Da sua história de criação, nascem as primeiras características do sujeito Diário de Cuiabá: a ousadia, a independência e o pioneirismo – que, tal qual na Gazeta, também é reivindicado pelo DC. Criado em pleno endurecimento da ditadura militar (dias depois do estabelecimento do Ato Inconstitucional nº 5), a sua intenção era se diferenciar dos semanários da época ao representar vanguarda dos movimentos sociais, da juventude e da política. Contudo, quando distribuía a terceira edição do jornal no começo de 1969, o fundador Alves de Oliveira foi assassinado. Acredita-se que o homicídio ocorreu por ele ter publicado uma matéria de cunho policial, seção inovadora para a época. Aos 25 anos e com três filhos, sua mulher, “que só queria ser uma dona de casa”, Íris Capilé de Oliveira, resolveu assumir a direção do jornal, onde permeneceu por 30 anos, só saindo do comando s para entregá-lo ao filho, o jornalista e atual diretor Gustavo de Oliveira, que à época da morte do pai tinha apenas um ano (SOUZA, 200151).

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SOUZA, A. 1968, o ano em que MT ganhou o Diário. Diário de Cuiabá. 08 de julho de 2001. Disponível em

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E é justamente por sempre ter tido a família à frente do periódico, sem ter se vinculado a nenhum grupo econômico ou político ao longo de sua história, que a independência é uma característica salientada pelo jornal: Logo de cara, o jornal buscou enfatizar a sua independência, evitando compromissos com partidos e/ou facções políticas, partindo do princípio de que nascera independente e de que não entendia uma Imprensa submissa e despojada dessas mínimas condições capaz de poder dar a sua opinião no exato momento em que é chamada a fazêlo. (SOUZA, 2001a, s.p.)

Alves de Oliveira, que era um radialista conhecido quando fundou o jornal, constitui ainda hoje a imagem do periódico, que sempre evoca o criador para ressaltar a ousadia e construir a identificação regional, se dizendo o mais “cuiabense” de todos: A existência do jornal, quando nada, se confunde com a própria história de Mato Grosso, nos últimos 40 anos. Não se mediram esforços para a criação de um veículo de Comunicação que levasse à sociedade a informação com qualidade, que significasse credibilidade e, além disso, fosse visto como partícipe de todas as transformações ocorrida no Estado, desde a sua fundação, pelo idealista Alves de Oliveira, cujo lema – “fruto de um ideal que jamais sucumbirá” – permanece como sinônimo da persistência. (DIÁRIO, 2008, s.p)

O pioneirismo é outra marca adotada por este veículo: “Com efeito, foi o primeiro jornal a ter notícias policiais e a circular às segundas-feiras; foi também o primeiro a utilizar cores e, quando os avanços tecnológicos batiam às portas, teve a primazia de colocar as suas notícias na Internet” (DIÁRIO, 2008). O sujeito DC também busca construir, com menor recorrência, mas com alguma ênfase, uma imagem de defensor do meio ambiente, de fundamental importância para nosso estudo. Embora afirme que “cobre todos os lances desse cenário de otimismo e de permanente expansão” (TERRA, 2001) da agroindústria no estado, ao listar uma série de reportagens em que questionou a degradação ambiental e modelo de desenvolvimento destruidor do ambiente, o jornal enuncia: Cerrado, Pantanal e Floresta Amazônica. Os três ecossistemas de Mato Grosso, assim como a riqueza das populações indígenas do Estado, sempre foram pauta no Diário. A compreensão editorial para esta escolha é simples: não basta ver a economia do Estado crescer desenfreadamente, sem que suas riquezas humanas e naturais sejam preservadas, conservadas e, principalmente, respeitadas. (PIERINE, 2001, s.p)

O jornal, no entanto, possui uma pequena fatia dos leitores mato-grossenses. Em 2010, enquanto a Gazeta obtinha 80% do público, a Folha do Estado registrou 18% e o Diário

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de Cuiabá obteve a terceira colocação, com 9% da audiência (REIS, 2011). Além disso, há anos o veículo passa por dificuldades para pagar os salários dos funcionários. No ano do nosso estudo, 2011, os 30 jornalistas que atuavam na redação decretaram paralisação devido aos atrasos de pagamento, que chegavam a cinco meses (CAVALCANTI, 2011). Já em outubro de 2015, o Sindicato dos Jornalistas do Estado publicou uma matéria intitulada “Repugnante – Diário de Cuiabá se mantém às custas de suor e lágrimas... dos funcionários”, informando que um fotógrafo da empresa estava com 79 salários atrasados e vivia em situação de miséria, à base de “vales” concedidos pelo diretor Gustavo de Oliveira (REPUGNANTE, 2015). Atualmente, a tiragem média do DC é de 30 mil exemplares, segundo o departamento comercial do veículo.

Jornais de outras regiões 

Diário do Nordeste

O Diário do Nordeste (DN) é o maior veículo em circulação do Ceará e o quinto maior da região Nordeste (na 33ª posição no ranking brasileiro, em 2011, segundo Associação Nacional de Jornais – ANJ), sendo preferido por 8 em cada 10 leitores de jornal de Fortaleza, segundo pesquisa Ipsos Marplan divulgada na consultora de planejamento e compra de mídia FTPI52. Em 2014, a circulação média do veículo foi de 28.564 exemplares, quase 8 mil edições à frente do segundo colocado, O Povo (20.748). O Ceará ainda possui um terceiro grande veículo de comunicação impresso, o jornal O Estado, cuja circulação não é disponibilizada na ANJ por não estar entre as 50 maiores do país. O público consumidor do DN é formado por homens (51%), dos quais 36% com mais de 40 anos, sendo 40% situados nas classes econômicas AB e 50% na classe C (FTPI, s.d). Não é à toa que o Diário do Nordeste é o único jornal cearense com distribuição em todos os 184 municípios do estado. O veículo faz parte do Sistema Verdes Mares, o maior grupo de comunicação do Ceará que, além do DN, possui três canais de televisão, quatro rádios, e um portal de notícias, sendo ainda o retransmissor da Rede Globo no estado. O Sistema Verdes Mares é o “braço midiático” do Grupo Edson Queiroz, um conglomerado empresarial que possui diversas indústrias e empresas de grande porte na região, como a líder de distribuição de gás butano da América Latina, a sétima maior distribuidora de

52

Informação disponível em < http://ftpi.com.br/jornal/diario-do-nordeste/>

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água mineral do mundo, a maior universidade privada de Fortaleza, entre outros (CAVALCANTE, 2014; CONHEÇA, s.d53). Um dos investimentos do grupo particularmente interessa ao nosso estudo: o Grupo Edson Queiroz possui seis empresas de agronegócio, sendo duas voltadas a agricultura orgânica – cajucultura, com a Cascaju, certificada desde 1993, e a apicultura, com a Mel Esperança. Segundo o grupo, estes negócios visam aliar “a tecnologia de ponta ao mais absoluto respeito à natureza”.54 O DN pode ser considerado um veículo referência em Jornalismo Ambiental na região, uma das características que nos atraiu para incluí-lo nesse estudo. Há dez anos, o Diário dedica uma página semanal a assuntos relacionados ao meio ambiente (“Gestão Ambiental”), acumulando indicações e premiações de abrangência nacional. Em 2013, O DN veiculou uma série de 13 reportagens sobre agrotóxicos denominada “Viúvas do Veneno”, vencedora nacional do “Prêmio HSBC/Jornalistas & Cia”, nas categorias impresso e Grande Prêmio e finalista de outros três prêmios, incluindo o “Esso”. O autor da série, Melquíades Júnior, é coprodutor do documentário “Sweet Venom” (Doce Veneno), filmado no Brasil e nos Estados Unidos, e lançado em 2016. O Diário do Nordeste foi criado em 1981, sendo o mais jovem dos três principais jornais do Ceará, por iniciativa do industrial cearense Edson Queiroz. De acordo com Cavalcante (2014), esse veículo surgiu quando o Brasil iniciava seu processo de abertura política pósditadura, caracterizando-se pela penetração no interior do Ceará e pelo sucesso do apelo popular realizado pelo suplemento dominical Jornal dos Bairros, que a cada edição contava a história de um bairro diferente. A autora ressalta que “a identidade empresarial, calcada na pessoa de seu fundador, um dos maiores empresários da história do Ceará, se confunde com a própria identidade do jornal como um sujeito social a defender valores liberais” (CAVALCANTE, 2014, p.38). 

Diário do Pará

O jornal Diário do Pará (DP) pertence ao grupo Rede Brasil Amazônia de Comunicação (RBA), e é o único jornal impresso “não popular” da região norte a figurar no ranking

53

Ver As outras quatro culturas são: reflorestamento, piscicultura, seleção de bovinos e ovinos, criação de caprinos, além de frigorífico. Ver < http://www.edsonqueiroz.com.br/empresas_esperanca.html>. 54

79

dos 50 jornais com maior circulação paga, da ANJ55, ocupando a 38ª posição. Além da capital paraense, o DP é distribuído em outros 100 municípios (de 144), com tiragem média de 24.744 exemplares em 2014 (ANJ). Os leitores do Diário do Pará são predominantemente do sexo feminino (54%), têm acima de 30 anos (68%), pertencem às classes econômicas AB (34%) e C (47%) (FTPI)56. A Rede Brasil Amazônia de Comunicação possui ainda oito emissoras de rádio e quatro canais de televisão (sendo afiliada da Band no estado)57. A amálgama entre o Diário do Pará e o projeto de poder político figura desde a criação, em agosto de 1982. O veículo foi fundado pelo jornalista Laércio Barbalho, pai do atual senador Jader Barbalho, como instrumento para a eleição do filho. No projeto da Universidade Federal do Pará “O Pará nas Ondas do Rádio”, ao mencionar a RBA os autores dizem que: “Como acontece com vários outros grupos na maior parte dos Estados do País, a rede sempre serviu como porta-voz das ideias do proprietário e de seus aliados políticos, principalmente durante as campanhas eleitorais”58. A versão não é só confirmada pelo veículo, como exaltada: A história do DIÁRIO, hoje presidido por Jader Barbalho Filho, se confunde com a trajetória de seu fundador. A política e o jornalismo sempre estiveram presentes na vida do saudoso jornalista Laércio Barbalho. (...) Foi numa segunda-feira de 1982 que o primeiro exemplar do DIÁRIO DO PARÁ circulou pelas ruas de Belém. Ninguém podia imaginar que aquele panfleto impresso de maneira quase amadora, que funcionava como instrumento do PMDB contra a ditadura militar e da campanha vitoriosa de Jader Barbalho ao governo do Estado, se tornaria o mais moderno jornal impresso de todo o Norte e Nordeste do país. (DIÁRIO, 2009, s.p)59 Meu pai, Laércio Barbalho, deve estar muito feliz. Ele foi fundamental na criação do Diário que nasceu para cumprir papel político na campanha eleitoral em que fui candidato a governador, entre 1981, 1982. Toda a imprensa paraense, nesse período, estava comprometida com o poder existente e com o partido de sustentação da estrutura político-militar do Brasil. (...) O Diário do Pará foi criado para assegurar à população o que há de mais sagrado numa sociedade democrática: o estabelecimento do espaço para a contradição, o oposto. Sem o Diário 55

O jornal Dez Minutos (AM), uma versão popular e mais barata do jornal Diário do Amazonas (o primeiro custa R$ 0,50, metade do preço do segundo), figura na 15ª posição do ranking, assumindo assim o posto de jornal mais vendido da Região Norte. Por ser de outro perfil, não o consideramos aqui. A ANJ lista apenas os jornais associados no ranking, sendo que nenhum dos outros onze jornais filiados à esta associação na região Norte, aparece entre os 50 maiores. Ver < http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil/> 56 Ver 57 Ver < https://pt.wikipedia.org/wiki/Grupo_RBA_de_Comunica%C3%A7%C3%A3o> 58 Ver 59 Ver < http://diariodopara.diarioonline.com.br/impressao.php?idnot=57404>

80 só existiria o monopólio com as suas drásticas e nefastas consequências. Só haveria a voz de quem sempre representa o poder e isso é um crime social – porque exclui aquele que pensa diferente, que tem visão diferente. (BARBALHO, 2013, s.p)60

O que o senador Jader Barbalho não mencionou no trecho da coluna acima é que a voz de “quem sempre representa o poder” já não é mais a voz concorrente. Desde que o Diário o ajudou a se eleger em 1982, ele esteve duas vezes à frente do governo paraense, exerceu dois mandatos como deputado federal, dois como ministro e está exercendo o segundo mandato enquanto senador desde 2010. Jader Barbalho só ficou um ano “fora” do poder, em 2001, por renunciar ao primeiro mandato de senador (eleito em 1995) após ser acusado de desviar mais de R$ 1 bilhão do Banco do Estado do Pará (Banpará), da Sudam e do Ministério da Reforma Agrária. Na ocasião, ele chegou a ser preso por 16 horas pela Polícia Federal. “Por isso, desde 2004 é réu na Ação Penal 374 por emprego irregular de verbas públicas. Complementam a investigação as ações penais 398, 397, 498 e 653 por peculato e crimes contra o sistema financeiro. Ele ainda é alvo do Inquérito 3597 por crimes eleitorais” (JADER, s.d.)61. Compreender como se dá a relação entre os interesses políticos do senador Jader Barbalho e o Diário do Pará, atualmente dirigido por seu filho, é fundamental para entendermos as condições de produção que regem este veículo. Em relação ao nosso objeto de estudo, é de especial interesse o fato de o senador ser apontado como membro da bancada ruralista, embora ele não o reconheça oficialmente (COSTA, 2012)62. No site oficial de Barbalho, a notícia “Faepa agradece Jader por interceder junto a Dilma”63 informa que o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (Faepa) Carlos Xavier fez questão de agradecer ao senador o apoio no decreto presidencial que reduziu de 80% para 50% a reserva legal em 110 municípios paraenses. “‘Graças a Deus temos um senador com a visão e a força política de Jader Barbalho para desatar esses nós. Ganha o agronegócio que terá mais segurança jurídica para implantar seus projetos, ganha o Estado e ganha a população do Pará’, avalia” (FAEPA, 2013, s.p).

60

Ver Ver 62 De acordo com a declaração de bens do senador, ele possui ao menos três propriedades rurais, constituindo 39% do seu patrimônio. Terezinha Barbosa, sua ex-esposa, assumiu ser ruralista, mesmo sem imóveis rurais declarados. Na trajetória política do senador, consta o Ministério da Agricultura e Reforma Agrária e a presidência do INCRA (ambos em 1987-1988) (COSTA, 2012, p. 92). 63 Ver 61

81

Em relação ao Diário do Pará, em 2015 o veículo lançou a premiação AgroPará, visando “valorizar um dos setores que mais impulsionam a economia paraense e do Brasil, o agronegócio”64. Com a promoção da premiação, o posicionamento dos gestores do veículo em relação ao modelo de desenvolvimento agrícola no Brasil é bem claro: “(...) Nós entendemos que as oportunidades de desenvolvimento, avanços econômicos e sociais do Pará passam pela valorização do Agronegócio”, expõe o gestor. Um dos objetivos esperados é que o setor receba mais incentivos – pelas diversas esferas do poder público – a exemplo do que ocorre em estados como Paraná e Mato Grosso. (...) “Acreditamos que quanto mais o Agronegócio prosperar, mais impulsionará o Estado rumo a uma melhor distribuição de renda e maior qualidade de vida”, afirma Jader Filho. (AGRONEGÓCIO, 2015, s.p)

Na ocasião, o jornal veiculou uma revista homônima à premiação (revista AgroPará), com reportagens sobre os diversos segmentos do agronegócio paraense. “O Pará tem enorme força no agronegócio nacional e mundial. A produção de reportagens sobre o assunto, ponto alto do projeto, levará informações relevantes ao grande público”, afirmou o diretor de redação Klester Cavalcanti (AGRONEGÓCIO, 2015, s.p). O mesmo interesse e empenho não foi observado em relação ao nosso tema: o DP entre os veículos de comunicação impresso que não abordaram o caso do Leite Humano Contaminado. Mas a isso voltaremos na última seção deste capítulo. 

Folha de S. Paulo

O jornal Folha de S.Paulo celebrou 95 anos em fevereiro de 2016, com a liderança na circulação de jornais diários no Brasil, conforme o ranking da ANJ (foram 351.745 exemplares em 2014). Neste período o jornal foi um “mutante”, ou, como o denominou Sevcenko (2011), “um jornal em constante reformulação”. As modificações, segundo ele, abrangeram tanto “as mudanças sucessivas na direção da empresa até a linha editorial, os recursos tecnológicos, os tipográficos, os critérios jornalísticos, a feição de conjunto do jornal” (p.8), o que torna o veículo fiel ao tempo no interior do qual se acha enquadrado. A Folha de S.Paulo nasceu sob o nome de “Folha da Noite” em 19 de fevereiro de 1921, por iniciativa de um grupo de jornalistas liderados por Olival Costa e Pedro Cunha. Em 1925, os jornalistas resolveram lançar uma publicação matutina, a “Folha da Manhã”. O veículo era então voltado para as classes médias urbanas e a classe operária.

64

Ver

82

Esta foi a primeira fase do jornal, cuja história pode ser recortada em quatro períodos, de acordo com os dirigentes do veículo: de 1921 a 1930, quando foi empastelado durante o golpe de 1930; a segunda, de 1931 a 1945, quando esteve sob o comando de Octaviano Lima, Diógenes de Lemos e Guilherme de Almeida, tornando-se um diário defensor dos interesses dos cafeicultores paulistas; a terceira, em 1945 e 1962, quando a diretoria passou para José Nabantino Ramos, Alcides Ribeiro Meirelles e Clóvis Medeiros Queiroga,

que

imprimiram

ao

jornal

uma

identificação

com

o

discurso

desenvolvimentista e fundiram os jornais Folha da Noite, Folha da Tarde e Folha da Manhã, no jornal Folha de S.Paulo; e, por fim, a partir de 1962, quando assumiram a direção do jornal Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho. Durante os primeiros cinco anos desta última fase, eles se preocuparam apenas com a reorganização financeira e tecnológica do diário. A partir de 1974, a Redação começou a ser reestruturada e eles definiriam uma nova linha de atuação, visando pressionar no sentido da ‘distensão’ e da ‘abertura’ do regime militar e lançando-se a seguir em campanha aberta pela Assembleia Nacional Constituinte e pelas eleições diretas em todos os níveis (MANUAL, 2011; SEVCENKO, 2011). Atualmente o veículo de comunicação faz parte do Grupo Folha, considerado um dos maiores conglomerados de mídia do país, que controla “a maior empresa brasileira de conteúdo e serviços de internet (UOL), o site noticioso de jornal com mais audiência (Folha.com) e a maior gráfica comercial do Brasil (Plural)”. Além destes, o grupo empresarial agrega o jornal Valor Econômico, em associação com as Organizações Globo; "Alô Negócios", maior jornal da capital do Estado do Paraná (Curitiba) em número de classificados; as revistas sãopaulo e Serafina; o Guia Folha; o jornal Agora; a Revista da Hora, entre outros negócios65. O sujeito-jornal da Folha reivindica a identidade de praticante de um jornalismo crítico, plural e apartidário, princípios que norteiam sua linha editorial:

O grupo ainda conta com o Datafolha, “um dos institutos de pesquisa mais consolidados do país, uma editora de livros (Publifolha), uma livraria virtual (Livraria da Folha), uma agência de notícias (Folhapress), um dos maiores e mais modernos parques gráficos da América Latina (CTG-F), a Transfolha, dedicada à distribuição de produtos do Grupo Folha, uma gráfica dedicada a jornais e folhetos para empresas, editoras e agências de publicidade (FolhaGráfica) e a SPDL, empresa de distribuição e logística estabelecida em associação com o jornal "O Estado de S. Paulo"”. Disponível em 65

83 Produzir informação e análise jornalísticas com credibilidade, transparência, qualidade e agilidade, baseadas nos princípios editoriais do Grupo Folha (independência, espírito crítico, pluralismo e apartidarismo), por meio de um moderno e rentável conglomerado de empresas de comunicação, que contribua para o aprimoramento da democracia e para a conscientização da cidadania. (MISSÃO, s.d)66

A visão do Grupo Folha é “consolidar-se como o mais influente grupo de mídia do país”, e este objetivo é reafirmado pela constituição de identidade da Folha de S.Paulo que se autoproclama “o jornal mais influente do país”, visto que é o jornal de interesse geral mais vendido no Brasil desde a década de 198067. A inovação também é reivindicada pela Folha, visto que se destaca por ser o primeiro jornal brasileiro a adotar a instituição do ombudsman, figura considerada representante do leitor na estrutura do jornal, e a oferecer conteúdo on-line para os leitores. 

O Estado de S. Paulo

O jornal Estado de S.Paulo é o mais antigo veículo de comunicação impresso paulista ainda em circulação, fundado durante o Império, em janeiro de 1875, sob o nome de “A Província de S.Paulo” – a atual designação foi implantada em 1890, após o estabelecimento de uma nova nomenclatura para as unidades da federação pela República. Atualmente faz parte do Grupo Estado, que, além do próprio jornal, possui os rádios AM e FM Eldorado, TV Eldorado, a Agência Estado, o Rádio Estadão e a OESP Mídia68. Em 2014, o Estado de S.Paulo era o quarto em circulação no ranking da ANJ, com a tiragem média de 237.901 exemplares. O Estado surgiu como um jornal republicano, com o propósito de combater a monarquia e a escravidão, proposto durante a realização da “Convenção Republicana de Itu”. A ideia foi implementada por 16 pessoas reunidas por Manoel Ferraz de Campos Salles e Américo Brasiliense. O Estado de S.Paulo passou a ser propriedade da família Mesquita (que o comanda atualmente) quando Júlio Mesquita, genro de um dos fundadores e redator da empresa, o adquiriu, em 1902. Embora tenha nascido com propósitos políticos em um momento em que, segundo Traquina (2012), a imprensa deixava de ser arma na luta política para se

66

Ver < http://www1.folha.uol.com.br/institucional/missao.shtml> Ver < http://www1.folha.uol.com.br/institucional/conheca_a_folha.shtml> 68 Ver 67

84

tornar um negócio, já em sua primeira edição o Estado reivindica para si o caráter de independente: Não sendo órgão de partido algum nem estando em seus intuitos advogar os interesses de qualquer deles, e por isso mesmo colocandose em posição de escapar às imposições do governo, às paixões partidárias e às seduções inerentes aos que aspiram ao poder e seus proventos, conta ‘A Província de São Paulo’ fazer de sua independência o apanágio de sua força. (A HISTÓRIA, 2015)69

Independência esta reivindicada até os tempos atuais. Na celebração dos 140 anos um texto relembrou os “princípios que permanecem até hoje”: “Continuaremos fiéis aos princípios em que acreditamos. Como sempre, nossa independência, face ao poder político como ao poder econômico, é inegociável” (‘ESTADO’, 2015)70. De fato, pela própria trajetória histórica evocada na cronologia oficial do jornal, fica marcada a ideia que, embora tenha sempre tido uma intensa relação com poder políticopartidário, não se manteve fiel a nenhuma legenda ou ideal em particular, ao longo dos seus 141 anos. Seja na relação de apoio e depois rompimento com Getúlio Vargas, seja em relação a adesão (e depois combate) ao Golpe de 1964, os deslocamentos são explicados por sua posição editorial que “sempre manteve sua linha de apoio à democracia representativa e à economia de livre-mercado” (PONTES, s.d)71 O sujeito construído pelo Estado de S.Paulo ao seu interlocutor ainda pode ser caracterizado pela inovação (design gráfico; cobertura do conflito de Canudos; edição noturna), pelo vínculo cultural e pela importância histórica que dá credibilidade ao veículo (‘ESTADO’, 2015; PONTES, s.d) Por fim, o Grupo Estado afirma que adota como missão o “compromisso com a democracia, a luta pela defesa da liberdade de expressão e de imprensa, a promoção da livre iniciativa, da justiça e a permanente busca da verdade” (CÓDIGO, s.d), sem esquecer, como grupo empresarial, de perseguir a “eficiência, a modernidade, a criatividade e a rentabilidade, pré-requisitos da sua independência informativa e editorial”.

Trecho retirado do documentário “A história do jornal, a história no jornal”, disponível em 70 Ver 71 Ver < http://www.estadao.com.br/historico/index.htm> 69

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O Globo

O jornal O Globo foi fundado por Irineu Marinho em julho de 1925, com o apoio de colegas do jornal “A Noite”. Marinho, que fora fundador do vespertino “A Noite”, tinha vendido o controle do jornal a um dos sócios, sob o compromisso de recompra das ações. Mas o acordo não foi cumprido e ele perdeu o título do jornal. Foi assim que, após voltar de uma viagem à Europa, ele decidiu criar um periódico “identificado com o Rio”, cujo nome fora escolhido por concurso popular. No dia 21 de agosto, 23 dias após a estreia do Globo, Irineu Marinho morreu e Roberto, seu primogênito com então 20 anos, preferiu entregar o comando ao jornalista Eurycles de Matos, amigo de confiança de Irineu, por se considerar muito jovem. Roberto Marinho trabalhou na redação até assumir o controle efetivo do Globo, após a morte de Eurycles, em 1931 (O GLOBO, s.d.72; SILVA, 2012). Atualmente o jornal O Globo faz parte da Infoglobo, responsável ainda pelos jornais Extra e Expresso, pela agência de notícias do grupo e os sítios das publicações na internet, além de possuir parte do jornal Valor Econômico, editado em parceria com o Grupo Folha. Por sua vez, a Infoglobo pertence ao Grupo Globo (antigamente Organizações Globo), maior conglomerado de mídia brasileiro, que conta com: a emissora de televisão TV Globo; a produtora de cinema Globo Filmes; a programadora de canais de TV por assinatura Globosat, que possui mais de 30 canais pagos no portfólio; a Editora Globo, que publica 16 revistas, além de editar livros clássicos e contemporâneos; a produtora musical Som Livre; o Sistema Globo de Rádio, com emissoras próprias e afiliadas, nos segmentos de notícias (CBN) e talk (Rádio Globo); o portal de classificados ZAP, além da Globo.com, que atua no provimento de serviços e plataformas tecnológicas relacionadas à internet para as empresas do grupo (ÁREAS, s.d.)73. Em 2014, de acordo com o ranking da Associação Nacional de Jornais, O Globo era o segundo maior jornal do Brasil, com a circulação média de 333 mil exemplares, contabilizando as edições digitais. O público do jornal era constituído, em sua maior parte, por leitores pertencentes a Classe B (55%), com mais de 60 anos (24%), ensino superior (49%) e sexo masculino (51%) (O GLOBO, 2015)74. A trajetória de 90 anos do jornal, de acordo com o diretor de redação Ascânio Seleme, pode ser considerada “vitoriosa”, diante do “lugar de destaque que ocupa no panorama 72

Ver Ver < http://www.grupoglobo.globo.com/> 74 Ver 73

86

da imprensa brasileira”, consequência “de uma coerência editorial que se assenta em sólidos princípios” (SELEME, 2015, p.18)75. Para ele, mesmo com as profundas transformações pelas quais o jornal passou, O Globo não se afastou dos princípios estabelecidos

pelo

fundador,

Irineu

Marinho:

“Ampla

informação,

absoluta

independência e rigorosa imparcialidade". O GLOBO segue o seu destino, 90 anos depois, reafirmando sua convicção de que jornalismo se faz com mais reportagem, mais análise, mais debate, mais opinião. Com pluralidade de opiniões. Por isso, aliás, O GLOBO é o único jornal do país que duas vezes por semana publica sua opinião, na página de editoriais, acompanhada de outra opinião, sempre contrária. (SELEME, 2015, s.p)76

No caderno comemorativo dos 90 anos, O Globo nos fornece outras pistas das questões que constroem sua identidade: “(...) os pilares que têm sustentado O GLOBO nestes 90 anos: qualidade do jornalismo, conexão com a sociedade e inovação tecnológica”. A inovação no veículo, que mantém o jornal “saudável e sustentável”, pode ser traduzida no investimento de manter as características de um jornal multiplataforma, segundo afirma o veículo (ESSÊNCIA, 2015). 77 Os princípios editoriais do Grupo Globo, divulgados em 2011, também reforçam as características reivindicadas pelo jornal: “O Grupo Globo será sempre independente, apartidário, laico e praticará um jornalismo que busque a isenção, a correção e a agilidade, como estabelecido aqui de forma minuciosa” (PRINCÍPIOS, s.d.)78. 

Zero Hora

O precursor do jornal Zero Hora foi o título “Última Hora”, criado pelo jornalista Samuel Wainer para ser porta-voz do getulismo, em junho de 1951. O “Última Hora” foi considerado um marco na história da mídia impressa brasileira, uma vez que se destacou pelo dinamismo, criatividade, uma política editorial marcada pelo renascimento do folhetim, colunismo em todos os cadernos e utilização de imagens em larga escala (ALMEIDA, PENTEADO, s.d)79.

75

SELEME, A. Apresentação in TARTAGLIA, C; MELLO, P.T. (sel.) 90 anos | Noventa reportagens. Rio de Janeiro: Infoglobo, 2015. 76 Ver 77 Ver 78 Ver 79 Ver

87

Após o golpe militar de 1964, Samuel Wainer se exilou no Chile e a Última Hora foi ocupada e fechada. No entanto, um mês depois, Ary de Carvalho assumiu o jornal, encontrando novos sócios e modificando o nome. “Assim, no dia 4 de maio, circulava a Zero Hora, dizendo em seu editorial: ‘nasce hoje um novo jornal. Autenticamente gaúcho. Democrático. Sem compromissos políticos. Nasce com um único objetivo: servir ao povo, defender seus direitos e reivindicações, dentro do respeito às leis e às autoridades’” (BERGER, 2003, p.52). Atualmente, o Zero Hora é um dos jornais com maior circulação no País. Em 2014, o veículo figurou na quinta posição da lista dos maiores jornais do Brasil, com a circulação média de 210 mil exemplares (ANJ), sendo o primeiro do ranking fora da região Sudeste. Sua redação, a maior entre os impressos do Rio Grande do Sul, conta com aproximadamente 200 jornalistas. Desde 1970, o jornal faz parte do Grupo Rede Brasil Sul de Telecomunicação (RBS), maior conglomerado de mídia da região Sul, que se define como uma das maiores empresas de comunicação multimídia do Brasil e maior afiliada da Rede Globo80. São oito jornais impressos, três canais de televisão (somente da RBS TV há 18 emissoras afiliadas à Rede Globo), sete canais de rádio (com 24 emissoras), além de uma empesa de mídia digital e tecnologia, a e.Bricks Digital. O grupo opera também a Engage Eventos, a editora RBS publicação, uma gráfica, a empresa de logística Vialog, a empresa de análise do consumidor HypermindR, a empresa de big data Appus, seis portais especializados em carros, o portal de notícias da rede ClickRBS, e a Fundação Maurício Sirotsky Sobrinho (GRUPO RBS)81. Na linha editorial do grupo RBS, publicada no “Guia de Ética e Autorregulamentação jornalística”, o conglomerado afirma que é orientado pela defesa da democracia, da liberdade, da livre-iniciativa e do direito de empreender. De acordo com o texto do documento, os veículos da RBS devem promover a interatividade com seus públicos, além de oferecer pluralidade nas opiniões e diferentes versões dos fatos. Ainda consta na linha editorial que os veículos do grupo “têm compromisso com o debate e a difusão das questões e temas que impactam a vida de seus públicos. A RBS valoriza o localismo em suas manifestações culturais, sociais, políticas, econômicas e esportivas como um fator prioritário em seus conteúdos jornalísticos” (GUIA, 2011, p.13).

80 81

Ver Ver

88

O Zero Hora é um jornal de referência dominante no Rio Grande do Sul, de perfil regional, possuindo um efeito representativo e, por vezes, atuando como antessala do poder (BERGER, 2003, p.56). A identidade reivindicada pelo ZH é de um jornal que está constantemente inovando para se adaptar a necessidade dos leitores, em um contexto multiplataforma, sem esquecer princípios como profundidade, pluralidade e transparência (ZERO, 2014)82. Além de destacar que é pensado para o público gaúcho (embora seja um dos maiores do país), o jornal ainda se apresenta como um veículo “completo” e traz em seu discurso a importância da seleção feita pelo ZH, em suas múltiplas plataformas: Fundado em 1964, o jornal líder em circulação no Rio Grande do Sul está cada vez mais atual, inovando e indo muito além do papel. Suas páginas mostram as notícias com um novo olhar a cada dia, destacando o que realmente é importante para os gaúchos e o que pode afetar suas vidas. Zero Hora é um jornal completo, que fala com os gaúchos de todas as classes, sexos e idades, através de seus 12 cadernos e mais de 100 colunistas. Muito além do papel, em zerohora.com o leitor e o internauta podem acompanhar as notícias do Estado, Brasil e do Mundo, 24 horas por dia, 7 dias por semana, com a mesma qualidade e imparcialidade que Zero Hora sustenta a [sic] mais de 50 anos (ZERO HORA, s.d., grifos nossos)83.

A página comercial do Zero Hora destaca o projeto jornalístico promovido pela editoria Campo e Lavoura denominado “Expedições do Campo”. O objetivo do projeto é retratar temas relevantes do agronegócio no Rio Grande do Sul, por meio de uma caravana jornalística, que percorrerá o Estado “com o intuito de trazer ao leitor detalhes das principais culturas agrícolas desenvolvidas em solo gaúcho”. Segundo a página, os protagonistas do projeto serão os cinco principais temas do agronegócio gaúcho – soja, milho, trigo, arroz e pecuária. A proposta, considerada “arrojada e imersiva” pelo jornal, além de entregar o conteúdo ao leitor, deve trazer ao produtor uma “visibilidade relevante”: “O diferencial do projeto é aproximar o jornalista do mundo do agronegócio e, consequentemente, entregar um conteúdo DIFERENCIADO para o leitor” (ZERO HORA, s.d.).

82

Ver 83 Ver

89

4.2 A cobertura jornalística sobre agrotóxicos Para compreendermos melhor o contexto noticioso sobre o tema mais amplo de que trata nosso objeto (a questão dos agrotóxicos) voltamos nosso olhar para a cobertura jornalística cotidiana dos veículos de comunicação que compõem o corpus. Para tanto, utilizando o mesmo período recortado para a busca de materiais do corpus reduzido (60 dias após a defesa da dissertação sobre o caso LHC, no dia 15 de março de 2011), identificaremos os aspectos privilegiados na cobertura jornalística sobre o tema. Dadas as diferenças nos sistemas de busca, em alguns veículos a quantidade de matérias divulgadas no período pode ser maior do que as que encontramos84. Para facilitar a compreensão das diferenças e semelhanças entre os veículos analisados, dividiremos este tópico entre aqueles que noticiaram o Caso do Leite Humano Contaminado (jornais presentes), os que noticiaram parcialmente (jornais híbridos, que veicularam apenas na versão on-line) e os que silenciaram sobre o tema (jornais ausentes). De modo geral, a cobertura sobre agrotóxicos no período foi bem variada. Durante o período recortado, diversos acontecimentos mereceram destaque nos veículos de comunicação e entraram em concorrência discursiva com o caso do Leite Humano Contaminado – alguns chegaram a ocupar sete páginas inteiras, como o caso do Desastre de Fukushima no jornal Zero Hora. Além deste, que pode ser relacionado ao nosso caso por se tratar de uma contaminação ambiental, outros acontecimentos motivaram a aparição do nosso caso, mesmo que de modo secundário: o “Abril Vermelho” e lançamento da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida85. Outros acontecimentos de proeminência no período, que entram em concorrência com o tema diante da limitação de espaço de um veículo impresso, foram o debate sobre o Novo

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Os jornais O Globo, O Estado de S.Paulo e Folha de S.Paulo possuem, além da digitalização, uma ferramenta de busca eficiente do acervo dos jornais, e assim, estão mais precisos – embora não podemos garantir 100% de exatidão, devido a deslocamentos e operações de nomeação desconhecidas. Contudo, os jornais Zero Hora, Diário do Pará, Diário do Nordeste, A Gazeta e Diário de Cuiabá possuem variados graus de confiabilidade da ferramenta de busca e a coleta foi realizada pelo manuseio virtual das páginas digitalizadas e/ou pelo serviço de busca existente. Este último recurso foi utilizado exclusivamente no Diário de Cuiabá, visto que este só digitaliza as capas de suas edições. Os jornais Diário do Pará e A Gazeta, embora sejam digitalizadas, possuem alguns problemas no manuseio, que podem ter influenciado em nossa pesquisa. Além disso, o Diário do Pará não disponibiliza as edições do dia 01 a 08 de abril, época em que foram publicadas duas matérias sobre agrotóxicos (uma sobre o caso do Leite Humano Contaminado) no sítio eletrônico do jornal. 85 “Abril Vermelho” se refere as jornadas realizadas neste mês pelo Movimento Sem Terra (MST), em lembrança ao Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 1996; a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida foi lançada em 7 de abril de 2011.

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Código Florestal; Massacre do Realengo; Guerra na Líbia; aprovação da lei da Ficha Limpa; e ainda a morte do terrorista Osama Bin Laden86. Lembramos que, neste tópico, nossa intenção é buscar os sentidos que emergem dos enunciados de cada texto publicado sobre o tema, a fim de identificar os tipos de discurso de cada jornal. Véron (2004), ao falar sobre o conceito de leitura, afirma que o discurso de um suporte de imprensa é “um espaço imaginário onde percursos múltiplos são propostos ao leitor; uma paisagem, de alguma forma, na qual o leitor pode escolher seu caminho com mais ou menos liberdade, onde há zonas nas quais ele corre o risco de se perder ou, ao contrário, são perfeitamente sinalizados” (p. 236). Aqui vamos então em busca dos traços que primeiro rabiscam este caminho, a fim de, mais adiante, desenhar o quadro dentro do qual estamos inseridos. 4.2.1 Jornais presentes Quadro 2: Descrição dos textos sobre agrotóxicos no corpus ampliado dos que noticiaram o caso do LHC Jornal Texto Data Editoria Tema principal Folha de S.Paulo Restaurante saudável é boa dica em Copenhague 31/03 Turismo Não Tribunal mantém indenização de R$ 1,1 bi 05/04 Cotidiano Sim Citricultura paulista busca tecnologias para elevar 20/04 Mercado Não ganhos Safra recorde gera busca por tecnologia 24/04 Mercado Não Em nome da flora nativa, reservas se rendem a 25/04 Ciência Sim agrotóxico Diário do Nordeste Cultivo controlado assegura ata com maior 21/03 Regional Sim qualidade Movimento lembra a morte de Zé Maria 29/03 Regional Sim Negócios que ajudam a ampliar a produção 26/04 Negócios Não Syngenta faz pesquisa estratégica em Aracati 07/05 Negócios Não Adagri diz como usar agrotóxico (Egídio Serpa) 23/04 Negócios Sim Defensivo natural é utilizado para proteger 28/04 Regional Sim Caatinga De mal a pior/De mal a pior 2 (é...) 30/04 Caderno 3 Sim Saúde do Trabalhador (Edilmar Norões) 07/05 Política Sim Ação e reação 05/05 Opinião Não Matuto diferente (Lustosa da Costa) 11/04 Política Não Agrotóxicos 21/04 Leitores Sim A Gazeta Ferrugem reduz 92% 20/03 Economia Não 4 mil litros de agrotóxicos ilegais 14/04 Cidades Sim 400 litros de agrotóxicos apreendidos pela PF 21/04 Cidades Sim Polícia Federal fecha 2ª fábrica clandestina 06/05 Cidades Sim 86

O Desastre de Fukushima se refere ao tsunami que atingiu a costa do Japão em 11 de março de 2011, causando explosão no reator nuclear Fukushima I e vazamento radioativo; o Novo Código Florestal foi sancionado em maio de 2012, mas as discussões em torno do seu processo construção remetem a 2010; o Massacre do Realengo foi a chacina ocorrida em uma escola municipal do Rio de Janeiro em 7 de abril de 2011, quando um atirador matou 12 crianças e se suicidou; os conflitos da Guerra civil na Líbia ocorreram entre março e julho de 2011, resultando na derrubada do governo de Muammar Gaddafi; A lei da Ficha Limpa foi sancionada em junho de 2010 e, em março de 2011, foi declarada inválida para as eleições de 2010; o líder do grupo terrorista Al-Qaeda Osama Bin Laden foi morto em uma operação militar estadunidense em 1 de maio de 2011.

91 Abril Vermelho retoma discussão com o governo PF prende 3 com agrotóxicos falsos Rompendo fronteiras Fonte: elaborado pela autora Diário de Cuiabá

05/04 14/04 24/04

Brasil Polícia Economia

Não Sim Não

Folha de S.Paulo O jornal Folha de S.Paulo foi o único veículo de comunicação impresso diário, com circulação nacional, que noticiou o caso do Leite Humano Contaminado. No entanto, não encontramos uma produção significativa sobre os agrotóxicos durante o período recortado. Além da matéria sobre o caso e as duas entrevistas que o mencionam, analisados no próximo capítulo, a Folha publicou apenas cinco textos que citam agrotóxicos neste período. O primeiro foi no dia 31 de março. A matéria “Restaurante saudável é boa dica em Copenhague”, publicada no espaço de uma coluna na editoria Turismo, destaca a alimentação orgânica encontrada nos restaurantes da cidade europeia: “Hoje 50% do que se consome na Dinamarca é produzido sem agrotóxico. A meta do governo é de chegar a 90% em 2015”, enuncia. Os três locais elencados na matéria enfatizam sempre a ausência desta categoria de substâncias: comida orgânica saudável; tudo sem uso de agrotóxicos; cervejas orgânicas. Aqui é interessante notar que, apesar de não problematizar a questão, os alimentos livres de agrotóxicos são tomados como sinônimo de saudáveis. No dia 5 de abril, a nota “Tribunal mantém indenização de R$ 1,1 bi”, veiculada na editoria Cotidiano, trata sobre o caso da contaminação dos trabalhadores da fábrica de agrotóxicos da Basf e Shell em Paulínia (SP). Em dois parágrafos, a nota afirma que o Tribunal do Trabalho de Campinas manteve a decisão da ação coletiva movida em 2007 pelo Ministério Público e a associação dos ex-funcionários da fábrica, e que as multinacionais pretendiam recorrer. No fim, a nota diz que “parte da verba (R$ 64,5 mil por trabalhador) irá para o tratamento de funcionários, autônomos e terceirizados”, sem, contudo, explicitar as consequências da contaminação. Assim, a nota deixa implícita a ideia de que a exposição aos agrotóxicos causou danos à saúde dos trabalhadores, reforçando a associação entre agrotóxico e doença, contida de forma inversa no texto anterior (orgânico - saudável). A terceira menção ao tema se deu em um texto publicado no dia 20 de abril pelo articulista Maurício Mendes. Intitulada “Citricultura paulista busca tecnologias para elevar ganhos”, o texto analítico enumera “tecnologias que elevem a produtividade máxima a produção

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de laranjas”. Entre elas está a agricultura de precisão que “preconiza a otimização e a racionalização do uso dos insumos, sejam fertilizantes ou defensivos agrícolas”. A justificativa para adoção da tecnologia está no bolso: “No momento em que a citricultura vê seus custos aumentados para garantir o controle de pragas e doenças, o produtor deve buscar manter-se rentável”. Neste texto, podemos notar a presença da justificativa econômica, para racionalização do uso dos agrotóxicos, bem como a nomenclatura “defensivos agrícolas”, utilizada pela indústria e pelo agronegócio. Deve-se considerar que embora o sujeito da enunciação do texto não componha o quadro de profissionais contratados pelo jornal e a FSP reivindicar para si o status de veículo de comunicação plural, “a responsabilidade jornalística e política [de um artigo] cabe ao jornal” (MANUAL, 2011, p. 109), de acordo com Manual de Redação da Folha (2011), sendo que a publicação de um artigo compete à Direção de Redação da FSP. A reportagem “Safra recorde gera busca por tecnologia” (24/04), publicada na editoria “Mercado”, reforça que, quando vistos por uma perspectiva econômica, os agrotóxicos são apenas um meio para incrementar a produtividade agrícola. Ao abordar a supersafra de soja, o texto foca em tecnologias de aumento da produtividade e diz que “a melhora dos investimentos é nítida” quando se verifica que os produtores mato-grossenses “já haviam comprado 76% dos insumos (sementes, fertilizantes e defensivos) previstos para a próxima safra de soja, que será plantada a partir de setembro”. Os agrotóxicos são citados ainda na coordenada “Máquinas reduzem desperdício e ajudam a planejar produção”, enquanto produtos racionalizados por equipamentos que analisam “a presença de pragas” e comandam “máquinas de pulverização (...) equipadas com piloto automático e GPS”. Por fim, no dia seguinte (25/04) é publicada a última menção aos agrotóxicos na FSP, no período do nosso recorte. Publicado na editoria “Ciência”, a reportagem “Em nome da flora nativa, reservas se rendem a agrotóxico” traz como reservas ecológicas “ameaçadas por pragas” estão utilizando herbicidas, a exemplo do Glifosato: Ameaçadas por pragas, reservas ecológicas no país estão fazendo testes com agrotóxicos com o objetivo de garantir a sobrevivência de espécies nativas. A ideia é combater plantas exóticas e invasoras, como a braquiária, um tipo de capim usado em áreas de criação de gado que ameaça o crescimento de outros vegetais. (...) “É uma situação grave, já que as espécies exóticas ameaçam a diversidade”, afirma o diretor do parque goiano [Parque Nacional das Emas], Marcos Cunha. (CANCIAN, 2011, p.C11)

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No trecho acima, vemos que a matéria – assinada por Natália Cancian, mesma repórter que escreve em coautoria a reportagem sobre o caso do leite humano contaminado, analisado no próximo capítulo – constrói a ideia de que a utilização dessas substâncias, notadamente biocidas, é necessária para garantir a sobrevivência das espécies e combater à ameaça contra a biodiversidade. Figura 1 – Matéria da Folha de S.Paulo sobre agrotóxico em reservas

O reforço a esta construção vem logo após o intertítulo “Autorização”, que afirma que a iniciativa já é aplicada em outros países: “A Monsanto, uma das maiores fabricantes mundiais de herbicida, doa glifosato desde 2005 à reserva ecológica de Galápagos, arquipélago equatoriano onde Charles Darwin (1809-1882) fez parte de seus estudos”. Assim, o enunciado evoca o sentido de que as iniciativas realizadas em território nacional devem ser comparadas, para serem legitimadas ou não, com alguma realidade estrangeira. A matéria principal segue construindo a ideia da necessidade desta ação, porque “só cortar não resolve”, “pelo risco de incêndio agravado pelo capim”, por ser também uma “alternativa mais barata, eficiente e com menor impacto ambiental do que deixar espécies como a braquiária se propagarem”. O texto ainda critica que “em muitas unidades nacionais (...) o plano de manejo sequer considera o uso desses herbicidas”. O “outro lado” – que ocupa um espaço secundário, ao pé da página “espremido” por um anúncio ao lado e um infográfico acima – está reservado para a matéria coordenada “Aplicação pode afetar espécies ‘inocentes’”, onde diz que a ideia “ainda provoca

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desconfiança entre os ambientalistas e pesquisadores”. O texto, bem mais curto, traz um estudo que demonstrou que “um agrotóxico” contaminou aves ameaçadas de extinção. Ainda assim, um dos pesquisadores desconfiados afirma que “uma alternativa pode ser a aplicação tópica, em que o produto é usado apenas no local onde há a ameaça”, reforçando o argumento de que algumas espécies são ameaças que só podem ser combatidas com o uso de agrotóxicos, mas que só pode ser considerado, de fato, uma alternativa caso seja aplicado do modo correto (tópico). Podemos inferir que mesmo que privilegie o sentido de que o agrotóxico deve ser utilizado em nome de um “bem maior” (a biodiversidade ameaçada por “pragas”), o texto possui sentidos que vazam (ORLANDI, 2010) como a ideia de que estas substâncias podem atingir essa mesma biodiversidade que promete proteger (contaminando aves ameaçadas de extinção). Diário do Nordeste A tensão entre a lógica jornalística e a comercial (que devem ser separadas como “a Igreja e o Estado”, segundo prega a deontologia jornalística) pode ser observada no Diário do Nordeste, uma vez que o grupo econômico ao qual pertence também detém negócios ligados ao setor de orgânicos. Como todo sujeito, o jornal não é uno, nem homogêneo, mas constituído por uma diversidade de vozes. Porém, em comparação com os outros veículos de comunicação que compõem nosso corpus, encontramos neste veículo um espaço significativamente maior aos sentidos negativos vinculados aos agrotóxicos. Foram 11 textos encontrados no corpus ampliado, além dos quatro que serão analisados no corpus reduzido, totalizando 15 matérias no período, a maior produção sobre o tema encontrada em todos os jornais que compõem o corpus. O primeiro texto veiculado no nosso recorte, “Cultivo controlado assegura ata com maior qualidade” (21/03), exemplifica bem o tom que rege a produção noticiosa sobre a questão dos agrotóxicos no Diário do Nordeste. O texto traz experiências bem-sucedidas de produções agrícolas que alcançaram uma maior produtividade com a redução do uso de agrotóxicos, conforme o próprio lide87 já enuncia: O equilíbrio entre o menor uso de meios químicos e a maior presença de ferramentas biológicas, aliado a pesquisas, tem proporcionado o 87

Lide ou lead é a abertura do texto jornalístico, na qual se apresenta o assunto ou se destaca o fato essencial. O lide é um recurso da pirâmide invertida, padrão de notícia jornalística mais adotado no Brasil, e se propõe a responder o quê, quem, quando, como, onde, e por quê (RABAÇA, BARBOSA, 2002).

95 sucesso na produção qualificada de ata [uma fruta] na Chapada do Apodi, neste Município. Técnicas que vão da polinização artificial, desfolha controlada e menor uso de agrotóxicos tem (sic) feito a diferença para a conquista de frutos maiores e até mais protegidos contra pragas. A pesquisa científica está provando que é possível aliar quantidade e qualidade e dando exemplo, na Chapada do Apodi, que produção sustentável e equilibrada com o meio ambiente se dá com menos agrotóxicos. (MELQUÍADES JÚNIOR, 2011a, p.1, grifos nossos)

O enunciado acima associa a redução do uso de agrotóxicos a uma produção sustentável e equilibrada com o meio ambiente. Está presente também a perspectiva da eficiência agrícola, no qual o sucesso na produção qualificada, com frutos maiores e até mais protegidos contra pragas, é alcançado com o menor uso dessas substâncias. Essa ideia é reforçada ao longo do texto, através das experiências apresentadas: “‘Não usamos mais herbicida. E o controle que fazemos na cultura nos permitiu uma redução de 50% a 70% no uso de agrotóxicos’, comemora Daniel Vidal, acrescentando que, mesmo assim, as plantas estão mais protegidas”. Com o chapéu88 “Contra os agrotóxicos”, a matéria “Movimento lembra a morte de Zé Maria” (29/03) menciona a questão atrelada às homenagens feitas ao líder comunitário da Chapada do Apodi, região cearense caracterizada pelo agronegócio da fruticultura e o uso intensivo dos agrotóxicos. No texto, José Maria Filho é lembrado como um agricultor e comerciante “que passou os últimos anos de vida lutando contra problemas como expropriação fundiária, moradias precárias e abuso de agrotóxicos”. Segundo o texto, a programação do aniversário de um ano do homicídio inclui “debate com pesquisadores, profissionais de saúde, trabalhadores rurais e lideranças comunitárias em áreas de conflito com o uso de agrotóxico no Ceará”. O texto ainda diz que: "Será uma ocasião privilegiada tanto para cobrarmos a apuração do crime e a punição dos culpados quanto, sobretudo, para denunciarmos os problemas provocados pelo modelo de desenvolvimento implantado na Chapada do Apodi e para apoiarmos e fortalecermos as resistências e as lutas por melhores condições de vida", diz o documento da Comissão [Diocesana da Caridade, da Justiça e da Paz]. (MOVIMENTO, 2011, p.1, grifos nossos)

Pelos enunciados acima podemos ver que são acionados os sentidos do agrotóxico como gerador de conflitos agrários, fruto de um modelo de desenvolvimento, que resulta até em 88

Palavra ou expressão curta, colocada acima de um título, para indicar o assunto de que trata o texto abaixo dela.

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homicídio, e que, portanto, deve ser combatido; além de que há um abuso de agrotóxicos na região, ou seja, de que o conflito é gerado pelo uso intensivo e não propriamente pela exposição ao insumo.

Figura 2: Matéria do Diário do Nordeste sobre cultivos orgânicos

A matéria “Negócios que ajudam a ampliar a produção” (26/04) menciona cultivos que não utilizam agrotóxicos como fator de sucesso, como exemplifica a fala de um produtor em uma rodada de negócios promovido pelo Sebrae: “Antes, eu trabalhava com plantação convencional (onde é usado agrotóxico), mas depois de um curso, passei a produzir só hidropônico e incrementei em 20% meu lucro”. O texto cita um outro caso, de um produtor de verduras orgânicas, que comercializa os produtos para um grande supermercado, tem loja própria e viu a produção aumentar de 150 para 500 caixas. O sentido predominante no texto é de agrotóxico como produto utilizado no cultivo convencional, que não apresenta as mesmas oportunidades do que as encontradas em cultivos orgânicos ou hidropônicos. No lado oposto se encontra a matéria “Syngenta faz pesquisa estratégica em Aracati” (07/05). Focado na fábrica mantida pela multinacional suíça no Ceará, o texto apresenta a consolidação do Brasil como “o principal negócio Syngenta ao redor do mundo”, empresa “especializada em proteção de cultivos e sementes”.

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Aqui os sentidos evocados são de agrotóxico como setor de negócio lucrativo, que traz riquezas para o Estado e o País, além do de agrotóxico como defensivo agrícola, insumo que protege o cultivo de doenças e pragas, sendo imprescindível, portanto, à produtividade nas lavouras. Figura 3: Matéria do Diário do Nordeste sobre “bioprotetores”

O posicionamento discursivo da defesa contra as pragas e o de proteção da planta é levemente deslocado na reportagem “Defensivo natural é utilizado para proteger Caatinga” (28/04). O texto afirma que os produtores “não conheciam outra opção para defenderem suas lavouras, além dos agrotóxicos”, remetendo ao tipo de discurso do agrotóxico como produto de defesa vegetal. Contudo, a matéria enfatiza a periculosidade destas substâncias químicas para o meio ambiente e foca em “defensivos naturais”, produtos obtidos na natureza que são eficazes no controle das espécies indesejadas: Segundo o técnico regional do programa Pró-Jovem Campo, professor Ednaldo Calixto, além do desmatamento, os agrotóxicos industriais também são responsáveis pela devastação da mata nativa sertaneja. Muitas espécies estão desaparecendo por conta da utilização desses produtos químicos. Os agricultores da comunidade de Canafístula, onde funciona a unidade técnica demonstrativa do Pró Jovem Campo, usavam até pouco tempo atrás esses tipos de inseticidas. Hoje, a realidade é outra, garante. Aprenderam a utilizar defensivos e fertilizantes naturais. Calixto se refere aos bioprotetores, como são conhecidos os inseticidas naturais. No campo, os agricultores podem encontrar alternativas para proteger suas lavouras das pragas e, ao mesmo tempo, preservar o meio ambiente, a mata peculiar da região. (PIMENTEL, 2011, p.4, grifos nossos)

Temos aqui uma clara dicotomia: a proteção ambiental, promovida pelos defensivos naturais, chamados até de bioprotetores, em contrapartida à devastação da mata nativa e

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ao desaparecimento de espécies causadas pelos agrotóxicos industriais. Estes defensivos se apresentam no enunciado como responsáveis por conciliar o inconciliável, e apresentar o melhor dos mundos: uma alternativa para proteger suas lavouras das pragas e, ao mesmo tempo, preservar o meio ambiente. O perigo ao meio ambiente é substituído pela ameaça à saúde e à vida na coluna “é...”, do dia 30 de abril, que traz dois pequenos textos sobre os agrotóxicos. A coluna é um dos espaços delimitados do jornal para comentário, onde as posições são mais definidas, podendo conter estratégias mais agressivas de estabilização de sentidos, uma vez que não há pretensões de imparcialidade como na produção noticiosa. Apesar da tentativa de separação entre a notícia, lugar da informação, e do espaço opinativo, Chaparro (2007) nos diz que não há como definir uma fronteira entre opinião e informação. “Pela simples razão de que não existe essa fronteira. Existe, sim, uma relação interativa, dialética, estratégica, criativa, permanente, entre informação e opinião. E nessa relação se constrói o jornalismo” (CHAPARRO, 2007, p. 13). Uma das características singulares do Diário do Nordeste no nosso estudo é a presença frequente do tema nos espaços opinativos. Intitulado “De mal a pior”, o primeiro texto enuncia que “vale lembrar também a contaminação das frutas por veneno, com a prática criminosa e não coibida da pulverização por via aérea”, enquanto o segundo diz que os agrotóxicos são usados “de forma indiscriminada (...), mata no atacado, e os que o combatem, por questão de consciência e respeito à vida, morrem fuzilados (...) [ou] vivem sob tensão permanente”. Figura 4: coluna do DN sobre o veneno que “mata no atacado”

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Estes enunciados evocam diversos sentidos. A começar pela utilização do termo veneno, que mobiliza sentidos negativos, de produto tóxico, mortal, àquele envenena. Este sentido é reforçado em todo o texto, em enunciados como mata no atacado, pulverização dos produtos como prática criminosa e não coibida, mesmo que relativizado no enunciado se usado de forma indiscriminada [que aciona o pressuposto contrário de “uso seguro” destas substâncias]. Mas a morte evocada nos textos está além daquela decorrente da contaminação das frutas causada por estes produtos. Esta também se relaciona como o da eliminação de agrotóxicos como objeto de luta e disputa de um conflito que causa tensão permanente e morte por fuzilamento. A existência de um uso seguro dos agrotóxicos vem sendo questionada por um grupo de pesquisadores, sendo considerada um mito (CARNEIRO et al., 2015). Essa análise é reforçada por Abreu (2014), que identificou a ineficácia do paradigma de segurança preconizado pela indústria ao entrevistar 136 agricultores familiares do município de Lavras (MG). Segundo ele, não existe viabilidade para o cumprimento das inúmeras e complexas medidas de “uso seguro” de agrotóxicos no contexto socioeconômico destes trabalhadores rurais. Por outro lado, Friedrich, ao discursar no Parlamento Alemão sobre os efeitos do Glifosato, biocida mais utilizado no Brasil, afirmou que “a exposição a pequenas quantidades, podem induzir danos genotóxicos e alterações endócrinas” (2015)89. Ou seja, o efeito tóxico não obedece a uma lógica linear causa-efeito, dependendo de fatores vários para causar danos à saúde humana. Outros colunistas também citam agrotóxicos neste período. Egídio Serpa, jornalista conhecido por suas manifestações a favor do uso dos agrotóxicos, no texto “Adagri diz como usar agrotóxico” (23/04) classifica como “boa notícia” a intensificação da “educação ambiental” promovida pela Agência de Defesa Agropecuária do Ceará (Adagri) “quanto ao uso de agrotóxicos, (...) desde o momento da compra do produto até o destino final da embalagem vazias” (p.2). Está implicado no enunciado que o uso de agrotóxicos requer um trabalho de educação ambiental, mobilizando um sentido outro, de que os insumos são produtos perigosos, que necessitam de manejo adequado. Uma nota do colunista Edilmar Norões (07/05) classifica como “louvável” a iniciativa da Assembleia Legislativa Estadual de “promover um seminário com o objetivo de debater a saúde do trabalhador, quando denunciou o uso abusivo de agrotóxico” (p.3). Assim, o

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Ver

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enunciado remete à ideia de que há um uso abusivo a ser denunciado e debatido, evocando o pressuposto do uso seguro, apresentando o agrotóxico como produto perigoso, quando utilizado de modo indiscriminado. No texto “Ação e reação” (05/05) o articulista Pedro Roberto Sampaio utiliza os agrotóxicos para ilustrar um texto sobre o “efeito bumerangue”, ou que “toda ação gera uma reação”. Exemplificando: o produtor de bananas, que aplica agrotóxico em sua plantação, dessas frutas não come; o criador de frangos, que supostamente os engorda na base dos hormônios, deles não se alimenta. Entretanto, o produtor de bananas se alimenta desses frangos e o criador de frangos come dessas bananas. O designer criativo, que vibra com o sucesso de sua propaganda televisionada, incentivando o uso de bebida alcoólica, cedo ou tarde, ele próprio ou um de seus familiares, estará padecendo com os efeitos destrutivos e implacáveis do vício por ele estimulado (SAMPAIO, 2011, p.2).

No enunciado, podemos inferir os agrotóxicos como algo tóxico, que nem quem o aplica opta por se alimentar dos produtos produzidos com ele, e ao fazê-lo é “castigado” por consumir algo tão ruim quanto, os hormônios. Por fim, o colunista Lustosa da Costa cita a questão em uma crônica (11/04), quase como um preciosismo, um recurso para ambientar o leitor: “(...) Um dia desses o descobri fazendo agricultura sem agrotóxico em Campina Grande, perto de onde estudamos”. Outra citação ocorre na seção “e-mail e cartas”, no dia 21 de abril, um leitor comenta a matéria “Agrotóxico está com maior poder de contaminação” (analisada no próximo capítulo, uma vez que menciona nosso caso específico). O comentário enuncia que “O Estado do Ceará oferece isenção de ICMS na venda de agrotóxicos há décadas. Decreto Lei de 1997 isenta deste imposto agrotóxicos, herbicidas, desfolhantes, etc. O Decreto é abrangente a muitos produtos, como que para camuflar a inclusão dos pesticidas nesse tipo de benesse”. Aqui o sentido evocado é do agrotóxico enquanto produto econômico que é beneficiado pela isenção de impostos, sem o merecer, visto que é preciso camuflar a inclusão dos pesticidas nesse tipo de benesse. Vale notar também a utilização do termo “pesticida”, que ainda que seja mais naturalizado do que o termo agrotóxico, remete a ação dessas substâncias no extermínio (-cida) de pragas (pest). Diário de Cuiabá O jornal Diário de Cuiabá foi o veículo de comunicação que, no corpus reduzido, apresentou maior quantidade de textos. Contraditoriamente, no corpus ampliado, foram

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encontradas apenas duas matérias que mencionavam o tema agrotóxico. Vale ressaltar que o DC foi o único veículo que não conseguimos analisar a versão digitalizada das matérias, muito embora o conteúdo do jornal seja transcrito na íntegra no sítio eletrônico. Contudo, tal qual o fazem o Diário do Pará e o Zero Hora (abaixo), pode ser que o veículo utilize uma outra nomenclatura, dotada de algum deslocamento de sentido, para se referir a estas substâncias. Ou apenas silencie sobre a questão. O primeiro texto que trata do assunto está na editoria policial. “PF prende 3 com agrotóxicos falsos” (14/04) é justamente uma nota sobre uma apreensão da carga de produtos falsificados: “A Polícia Federal prendeu anteontem, em Rondonópolis, três pessoas acusadas de transportar 4 mil litros de agrotóxicos falsificados e, possivelmente, contrabandeados. O produto foi apreendido”. No texto, que segue informando dados sobre a operação policial, o sentido mais latente é o de agrotóxicos com alto valor comercial (mais de R$ 350 mil, se fossem originais), produtos dignos de operação da policial federal. Apesar da abordagem factual, acreditamos que o sentido evocado pelo uso seguro está presente, visto que um produto ilegal, falsificado, traz implícito a ideia de que possui menor qualidade, sendo mais perigoso do que o original. A reportagem “Rompendo fronteiras” (24/04), publicada na editoria de Economia, também traz a perspectiva financeira ao abordar a redução do uso destas substâncias. O texto enumera as vantagens de uma semente “resistente à ferrugem asiática da soja”. Embora o sujeito da enunciação se distancie da declaração ao atribuir a informação a um enunciador: Quem usou, garante que elas dão segurança para o controle da ferrugem, tem alto potencial produtivo, reduz custo de produção, aumenta a capacidade de pulverização, possibilita a menor pressão de utilização de tratores, colheitadeiras e plantadeiras e inibe o número de aplicações de fungicidas, aumentando a rentabilidade do produtor. (MACIEL, 2011, s.p, grifo nosso)

O argumento da eficácia da semente para reduzir em “até três aplicações na lavoura” possui “como conseqüência (sic), uma diminuição no custo de produção” e maior “lucratividade”. A questão ambiental é mencionada, mas como vantagem adicional: Segundo ele [diretor técnico da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Mato Grosso, Luiz Nery Ribas], a soja Inox – além da sua forte resistência à ferrugem – “significa mais produtividade, redução de custos e ainda contribui com o meio ambiente, pois ela diminui o uso de agroquímicos no processo produtivo”. (MACIEL, 2011, s.p, grifo nosso)

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O termo agroquímico utilizado neste enunciado, pode ser uma tentativa de “neutralizar” a nomeação negativa predominantemente na palavra agrotóxico. Mas não temos elementos para afirmar que este termo é aqui utilizado para substituir agrotóxicos, visto que, predominantemente, o termo agroquímico é empregado para se referir aos insumos agrícolas industriais, contemplando também fertilizantes e adubos nesta categoria. Podemos inferir então que, neste texto, o assunto agrotóxico aciona predominante o argumento econômico, sob a perspectiva do leitor-produtor, uma vez que a diminuição do uso de fungicidas (mais um termo que utiliza o sufixo –cida, que remete ao extermínio) representa o aumento da rentabilidade do produtor. Mas podemos identificar pelo menos mais um sentido, mesmo que secundarizado: o de agrotóxico como insumo ambientalmente danoso. A Gazeta O mesmo padrão noticioso do DC é encontrado em A Gazeta. Embora com um número maior de textos do que o Diário de Cuiabá (cinco), à exceção de uma matéria, os agrotóxicos são abordados também pelo viés policial/econômico. Apesar da semelhança entre os temas publicizados pelos dois veículos no período analisado, os textos contêm abordagens divergentes que valem a pena destacar. A matéria “Ferrugem reduz 92%” (20/03), utiliza a mesma pauta que a do Diário de Cuiabá, a redução da ferrugem asiática nas lavouras do Mato Grosso, mas explicita motivos diferentes para tal diminuição: aqui foram as alterações climáticas, “o atraso nas chuvas e no plantio”, que salvou a safra da sua “grande vilã”. A reportagem, publicada mais de um mês antes da do DC, busca respaldar sua legitimidade já na assinatura, que anuncia que a repórter foi “Enviada Especial a Chapada dos Guimarães”. No texto, podemos perceber que a aplicação de fungicidas também é considerada pelo viés econômico. Embora a matéria afirme, por meio de uma citação indireta, que “a principal recomendação para deter a proliferação do fungo nas plantações matogrossenses é o monitoramento diário”, os fungicidas são considerados estritamente necessários para a prevenção da “doença”: [...] Com uma média de 2 a 3 aplicações por safra, o produtor tem que fazer um investimento de aproximadamente R$ 90 por hectare plantado para prevenir a ferrugem asiática. O agrônomo e professor da Universidade de Rio Verde, em Goiás, Luis Henrique Carregal, explica que, em média, o custo para aplicação do fungicida é menor do que uma saca de soja por hectare e que o

103 prejuízo causado pela ferrugem é de 1,32 saca/ha. [...] O presidente do Sindicato Rural de Sinop, Antônio Galvan, relembra que a ferrugem já causou grande prejuízo e que hoje o sucesso depende do trabalho de monitoramento e da aplicação preventiva do fungicida. "A doença não está sanada, é preciso manter o trabalho de controle para impedir sua proliferação". O professor Carregal reforça a importância da prevenção, em alguns casos até na fase vegetativa da soja, antes da primeira floração. [...] Ainda de acordo com o pesquisador, com a utilização errada dos defensivos, como a subdosagem e utilização curativa do produto, o fungo tende a criar resistência. (MARQUES, 2011, p.2C, grifos nossos)

O enunciado acima indica que o agrotóxico é visualizado como um investimento para prevenção da doença e sucesso da colheita, cujo custo compensa mais do que o prejuízo causado pela ferrugem. O texto enuncia que a utilização errada é problemática porque leva o fungo a criar resistência. O viés acionado é o econômico, do agrotóxico como produto que viabiliza a produção agrícola de soja, sendo indispensável para uma safra lucrativa. Observamos ainda a utilização de uma diversidade de enunciadores nomeados para legitimar os posicionamentos encontrados no texto. A perspectiva policial/econômica está presente em três matérias: “4 mil litros de agrotóxicos ilegais” (14/04), “400 litros de agrotóxicos apreendidos pela PF” (21/04) e “Polícia Federal fecha 2ª fábrica clandestina” (06/05), todas veiculadas na editoria Cidades. O primeiro texto detalha como se deu a operação policial de apreensão de quatro mil litros de agrotóxicos ilegais – “Parte do material foi encontrada dentro de uma caminhonete no núcleo urbano e o restante estava escondido na mata (...) A Polícia Federal aguarda a perícia para saber se o defensivo agrícola é contrabandeado ou falsificado ”. No entanto, podemos observar um diferencial neste texto em relação às matérias veiculadas no Diário de Cuiabá. Após o detalhamento factual, há um intertítulo denominado “Saúde” que enuncia: O uso indiscriminado de agrotóxicos contrabandeados e falsificados tem causado problemas sérios para a Saúde Pública em Mato Grosso. Os produtos são elaborados sem o controle técnico e acabam usando princípios ativos acima da quantidade considerada segura pelo Ministério da Agricultura. Em Mato Grosso, são aplicados anualmente 46,2 quilos de agrotóxicos por habitante. O cálculo per capita, feito a partir do total de produtos defensivos comprados por proprietários de terras do Estado, é o maior do país e supera em mais de 1000% o índice nacional, que é de 3,9 quilos por brasileiro (RODRIGUES, 2011, p.6B)

104

Aqui podemos ver que, embora evoque a perspectiva da saúde pública, o problema listado não é propriamente a exposição aos agrotóxicos, mas o uso indiscriminado de produtos contrabandeados ou falsificados, que utilizam princípios ativos acima da quantidade considerada segura. Apesar desta construção de sentido, o parágrafo seguinte apresenta um deslocamento ao afirmar que a quantidade de agrotóxicos aplicados nas lavouras, comprados por proprietários de terra (ou seja, de produtos legais) é o maior do país e supera em mais de 1000% o índice nacional. Assim, mesmo que o objeto empírico do enunciado seja os problemas de saúde (não discriminados) causados pelos produtos ilegais, é o quantitativo apresentado do uso de produtos legais que dão a dimensão do uso intensivo dessas substâncias. Novamente, a notícia da apreensão de um produto ilegal traz embutido a perspectiva de qualidade questionável. Devemos ressaltar que essa abordagem contém uma lógica distinta, com outros atores, divergindo da maioria dos tipos de discurso encontrados até então. No entanto esta perspectiva também contribui para a construção social do tema na esfera pública. Os outros dois textos aparentam se limitar à ocorrência policial, mas também deixam margem para outros sentidos, para além daquele que vislumbra o agrotóxico enquanto produto de alto valor comercial, digno de falsificação, contrabandeio e operação policial para combater estes crimes. O final da matéria “400 litros de agrotóxicos apreendidos pela PF” (21/04), afirma que “O dono da casa [onde foi encontrado uma suposta fábrica clandestina] vai responder por falsificação de agrotóxico e crimes ambientais”. Aqui, a ideia de que o crime não é somente a falsificação do produto de alto valor comercial, mas que o delito se estende ainda ao impacto destes insumos no meio ambiente, escapando o sentido de agrotóxico enquanto agente prejudicial ao ambiente. Já no texto “Polícia Federal fecha 2ª fábrica clandestina” (06/05) o enunciado aciona também o sentido do risco à saúde: A perícia vai avaliar o material e o resultado vai dizer se o defensivo irregular contém produtos, cuja a venda é proibida em território nacional. A análise vai dizer ainda se a concentração está acima do que é permitido pelas normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), trazendo riscos à saúde. (POLÍCIA, 2011, p.4B grifo nosso)

105

O enunciado mobiliza o sentido de que o agrotóxico pode trazer riscos à saúde (1); e ainda o de que este risco está condicionado a concentração dos princípios ativos, ou seja de que há um uso seguro a ser considerado (2). Por fim, a questão dos agrotóxicos é mencionada em uma matéria assinada por um repórter da Agência Brasil90, publicada pelo veículo. O texto “Abril Vermelho retoma discussão com o governo” (05/04) cita a questão dos agrotóxicos como uma pauta dos movimentos do campo: De acordo com Ulisses Monaças, da coordenação nacional do movimento no Pará, "a intenção é reconduzir a pauta e colocar a reforma agrária na agenda do governo". Segundo ele, o MST fará campanha contra o uso de agrotóxicos na lavoura. "O Brasil é o maior consumidor de veneno no mundo." O agrotóxico costuma ser insumo fundamental em grandes plantações. Ao abraçar a causa ambiental, o MST critica o modelo de latifúndio que combate há cerca de 28 anos. "Se pensarmos um outro tipo de utilização do solo, dos recursos naturais, da água, numa perspectiva de preservação para o futuro, evidentemente a reforma agrária passa a ser uma coisa moderna. Também queremos discutir sobre alimentação. Se a sociedade brasileira quer continuar consumindo alimentos altamente contaminados", antecipou Gilmar Mauro, da coordenação nacional do movimento, em uma entrevista à Agência Brasil em fevereiro. (COSTA, 2011, p. 6B, grifos nossos)

O enunciado acima mobiliza alguns sentidos, como a do agrotóxico enquanto objeto de disputa político-ideológico (campanha feita pelo MST; ao abraçar a causa ambiental, o MST critica o modelo de latifúndio que combate), a da eliminação do uso dos agrotóxicos como causa ambiental; a do agrotóxico como veneno que contamina os alimentos consumidos pela sociedade brasileira; a do agrotóxico como insumo fundamental em grandes plantações, ou seja, como um mal necessário; e a do produto como fruto de um modelo de desenvolvimento. 4.2.2 Jornais híbridos Quadro 3: Textos dos “jornais híbridos” que compõem o corpus ampliado Jornal Texto O Globo

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Data

Editoria

Tema principal

Sete passos para ajudar a floresta

22/03

Terra (sup)

Não

Fraternidade e natureza

28/03

Opinião

Não

Alerta contra os corantes

31/03

Ciência

Não

Ambientalistas também vão contra mudança no Código Florestal

08/04

O País

Não

A Agência Brasil é uma agência de notícias vinculada ao governo federal, cujo conteúdo é copyleft, ou seja, pode ser reproduzido livremente, desde que citada a fonte.

106

Diário do Pará

No DF, ato contra mudanças no Código Florestal MST ataca loteamento do Incra

07/04

O País

Não

08/04

O País

Não

Frutos com preços ao sabor da estação

09/04

Economia

Não

Assentamentos ameaçam plano para barrar desmatamento na Amazônia Código Florestal: PT reclama por ter ficado fora de reunião com Temer Entreouvido por aí

12/04

O País

Não

15/04

O País

Não

17/04

Sim

Os campeões (Miriam Leitão)

17/04

Revista O Globo Economia

Atividades de baixo impacto ambiental

21/03

Não

Morre mais um intoxicado por uso de inseticida DDT Mosquito pode não ser a única vítima do fumacê Informação para combater a malária

30/03

Ciência em ação Pará

02/04

Pará

Sim

09/04

Pará

Não

Não

Sim

Fonte: elaborado pela autora

O Globo Em seu sítio eletrônico, o jornal O Globo publicou uma matéria sobre o caso do Leite Humano Contaminado, no dia 23 de março91. No entanto, optamos por classificá-lo como um “jornal híbrido”, pois o texto não foi reproduzido na versão impressa, suporte que analisamos neste trabalho, nem foi produção exclusiva da redação do jornal – o texto é assinado por “Jornal Hoje, O Globo”. O Diário do Pará também realiza o mesmo feito, uma vez que publicou uma matéria da Agência Brasil sobre um desdobramento do caso, mas só na versão eletrônica do jornal. Uma questão que aponta para a singularidade do O Globo é a publicação de um texto com um “anúncio” do caso, no período fora do recorte feito para a nossa análise. A matéria “Mês da mulher marcado por ocupações do MST”, veiculada em 5 de março, indica que, antes da defesa, os resultados preliminares já circulavam nos movimentos sociais, conforme podemos inferir pelo enunciado abaixo: O objetivo é cobrar o assentamento de famílias acampadas e políticas públicas de produção agrícola sem agrotóxicos. Segundo os sem-terra, o Brasil ocupa o primeiro lugar na lista dos países consumidores de agrotóxicos desde 2009. – Os agrotóxicos são um desastre para o meio ambiente e para saúde. Em Mato Grosso, a universidade federal fez uma pesquisa na região de Sinop e descobriu que 99% das mulheres tinham resíduo de

91

Ver em

107 agrotóxicos no leite materno – disse Edite Prates, representante da coordenação nacional do MST. (RIBEIRO, 2011, p.4, grifos nossos)

Apesar das afirmações estarem inexatas – foram 100% das mulheres e Sinop se situa a 145 km de Lucas do Rio Verde, onde foi realizado o estudo –, a proximidade temporal e espacial nos indica de que, de fato, o caso citado pela representante sem-terra se trata do caso empírico que estudamos. Contudo, não podemos inferir com certeza, uma vez que a defesa pública da pesquisa só foi realizada dez dias depois e o caso só circularia na esfera midiática no dia 18 de março. Deste modo, desconsideraremos estes textos como resultados específicos do nosso estudo e não os analisaremos no capítulo dedicado ao corpus reduzido. Aqui, vamos analisar os 11 textos que apareceram no corpus ampliado. Figura 5: matéria do O Globo sobre proteção a floresta

No jornal impresso, a primeira menção a agrotóxicos no período do nosso recorte ocorre no dia 22 de março, no Suplemento Terra, voltado para assuntos ambientais. A matéria “Sete Passos para ajudar a floresta” lista ações que os leitores-cidadãos podem realizar no cotidiano para auxiliar na preservação florestal. O sétimo passo enuncia, sob o intertítulo “Alimentos Sazonais”: “Consuma alimentos da estação e dê preferência aos orgânicos, que não utilizam agrotóxicos. Assim, você cuida da sua saúde e do meio ambiente” (p.3). Neste trecho estão presentes dois sentidos, o que associa alimentos livres de agrotóxico à manutenção da saúde humana e outro que os associam à preservação ambiental. O cuidado da natureza feito pelo controle do uso de agrotóxicos também é trazido à tona no artigo publicado na editoria de Opinião, “Fraternidade e natureza” (28/03). O autor, o filósofo Denis Lerrer Rosenfield, critica o documento “Fraternidade e a Vida no planeta”,

108

criado para orientar a Campanha da Fraternidade 2011, acusando-o de “ivadido de ranços contra o capitalismo, a propriedade privada, o lucro e o agronegócio”: Em manifestações, aliás muito sensatas, de alguns altos dignitários da Igreja, aparece uma preocupação muito genuína com a preservação ambiental, sem ranços ideológicos. Cuidados relativos à coleta seletiva de lixo, contra os desperdícios de água, contra poluição de rios e do ar, contra o uso abusivo de agrotóxicos, por exemplo, entram nessa linha de conduta. (ROSENFELD, 2011, p.6, grifos nossos)

Pelo enunciado acima, podemos perceber que, para o autor, sensatez e a “preocupação genuína com a preservação ambiental” ocorrem quando não há o que ele denomina de “ranços ideológicos”. Estes estariam ligados à crítica ao “capitalismo, a propriedade privada, o lucro e o agronegócio”, uma vez que “agricultura e natureza marcham de mãos juntas” e o agronegócio é o que possibilita a produção de alimentos a preços baixos. Deste modo, o autor constrói a ideia de que o limite entre a sensatez e o ranço ideológico é ir de encontro ao “uso abusivo” de agrotóxicos, mas não o modelo que o estrutura, o agronegócio. A perspectiva acionada aqui é a de agrotóxico enquanto “mal necessário”, alinhado à perspectiva da indústria de que o impacto ambiental é causado quando há um abuso do uso dessas substâncias e não pela utilização em si mesma. Figura 6: matéria sobre corantes alimentícios

No dia 31 de março, em uma matéria sobre os perigos dos corantes alimentícios (“Alerta contra os corantes”), publicada em “Ciência”, a questão dos agrotóxicos é mencionada em um box, após o pediatra Wellington Gonçalves Borges, do Departamento de Alergia e Imunologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, afirmar que não há estudo conclusivo relacionando o consumo de corantes à hiperatividade e a alergias na infância: “Mais

109

perigoso na infância, diz o médico, são os agrotóxicos e o consumo de açúcar” (p.34). Deste modo, o médico aciona o sentido dos agrotóxicos enquanto um perigo à saúde da criança “comprovado” pela ciência, em detrimento das substâncias que tematizam a matéria. Figura 7: coordenada do O Globo menciona produção dos assentamentos

No dia 7 de abril, o texto “No DF, ato contra mudanças no Código Florestal” afirma que uma manifestação que irá acontecer naquele dia conjuga diversas entidades ambientalistas e movimentos sociais como uma “marcha em defesa do atual código, contra os agrotóxicos e pela reforma agrária”. A repercussão foi pulicada na matéria “Ambientalistas também vão às ruas contra mudança no Código Florestal” (08/04) como uma marcha promovida pelo Movimento Sem-Terra e a Fetraf (Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar). O texto afirma que a manifestação é para demostrar que “não só ambientalistas, mas os agricultores também estão preocupados com o suposto afrouxamento das regras de proteção ambiental”. Uma das menções aos agrotóxicos ocorre na voz de um dos manifestantes: – Para fazer mudança no Código Florestal, é preciso dialogar com a sociedade. Não pode ser feita pressão de um único grupo. Essa é uma questão que diz respeito a toda a sociedade porque não envolve só a agricultura. Estamos falando de vida, do planeta, de alimentos de qualidade e sem agrotóxicos – disse Elisângela Araújo, coordenadorageral da Fetraf. (NO DF, 2011, p.10, grifos nossos)

110

A coordenadora da Fetraf traz assim o interdiscurso que associa alimentos sem agrotóxicos à preservação ambiental e que, implicitamente, seria fornecido pelo grupo, em diálogo com a sociedade. Outro aspecto interessante que devemos evidenciar é que, no intertítulo “Stédile e Aldo Rebelo trocam críticas e acusações”, há uma citação de João Pedro Stédile, coordenador nacional do MST, criticando o relator da alteração do código, Aldo Rebelo, mas não na marcha. Segundo diz a matéria, a fala ocorreu no “lançamento nacional da campanha ‘Agrotóxico mata’ (sic)”. A crítica de Stédile foi rebatida por Aldo com a acusação de que este “sempre foi conhecido por seu fervor anticomunista, ampliado depois que passou a receber amplo financiamento de ONGs internacionais”. O lançamento da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (cujo a logomarca é Agrotóxico Mata), em Recife (PE), também é citado em outra matéria (“MST ataca loteamento do Incra”, p.3), igualmente para delimitar o local de fala do Stédile, caracterizado na reportagem como “um dos mais radicais” coordenadores do MST, que reclamaria que o Bolsa Família é um entrave “para o recrutamento de militantes para ocupar propriedades rurais”. Vale notar que embora houvesse um repórter presente no evento, não há nenhuma nota, nem explicação nas matérias do que seria esta campanha, ou desdobramento dos dados apresentados, para além das falas políticas do “radical” Stédile, àquele que recebe financiamento de ONGs internacionais sem propósito manifesto. É possível supor, assim, que o tema não esteja entre os interesses do jornal. O jornal O Globo menciona os agrotóxicos por diversas vezes, no período analisado. Na matéria “Frutos com preços ao sabor da estação” (09/04), veiculada na editoria Economia, há um boxe com dicas para os leitores evitarem consumir os alimentos com preços inflacionados, entre elas aparece a associação entre produção “artificializada” (fora da época adequada) e maior uso de agroquímicos: “Frutas fora de época têm menos sabor, cheiro e nutrientes, como vitaminas. Além disso, para serem produzidas fora da época correta, exigem maior dose de fertilizantes químicos e agrotóxicos”. O sentido privilegiado é do agrotóxico enquanto recurso para “artificializar” o cultivo, produzido na época errada, e, por isso, perdendo nutrientes, cheiro e sabor. Já no dia 12 de abril, a menção ocorre no que aparenta ser um texto coordenado da matéria “Assentamentos ameaçam plano para barrar desmatamento da Amazônia”. Intitulado de

111

“Invasores e invadidos em comunhão”, o texto discorre sobre uma ocupação, parte do “Abril Vermelho”, nas dependências externa da Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária da Bahia, onde o governo estadual forneceu carne para os acampados, enquanto estes aguardavam a volta do governador de uma viagem: “Eles saíram do acampamento Alexandra Kollontoari, em Serrana (...). Durante o trajeto, seriam distribuídos alimentos produzidos em assentamentos, sem uso de agrotóxicos” (p.4, grifo nosso). Este enunciado exemplifica como os sentidos escapam, se o compararmos com o texto do dia 31 de março. O que tinha sido apresentado como apenas um elemento retórico na fala de Stédile, neste trecho vira práxis: o Movimento Sem-Terra não promove uma campanha contra os agrotóxicos (nem discorre sobre o novo código florestal) apenas baseado no financiamento internacional e no fervor anticomunista do coordenador nacional, mas também há uma prática a ser legitimada nos assentamentos já constituídos. É interessante notar como aqui também o movimento é desqualificado: eles não são cidadãos em busca de direitos, são os invasores, que acabou entrando em comunhão com os invadidos, ao serem alimentados por eles. A questão dos agrotóxicos é novamente citada no dia 15 de abril, na matéria “Código Florestal: PT reclama por ter ficado de fora de reunião com Temer”: “A bancada do PT está otimista quanto à vitória na votação em plenário dos pontos divergentes do novo código florestal. A explicação é a derrota dos ruralistas, anteontem, na proposta de reduzir impostos de insumos do glifosato, agrotóxico largamente utilizado no campo”. Esta votação, devemos ressaltar, não é tema de nenhuma matéria, nem no O Globo, nem nos outros veículos de comunicação que compõem a nosso corpus, demonstrando a pouca importância dada ao assunto pela mídia – mesmo que o embate entre ruralistas e ambientalistas estivesse em pauta, devido às discussões em torno do Novo Código Florestal. Aqui o tema aparece dentro da lógica política, sendo simplificado como um objeto dentro do jogo político, onde o que se contabiliza são as vitórias e derrotas entre os seus atores. Por fim, aparecem duas citações no domingo, 17 de abril. Uma na Revista O Globo, na coluna “Entreouvido por aí”, destinada a “frases curiosas”: “‘Tem ovo de galinha sem hormônio? Tem sem agrotóxico, serve?’ – conversa entre cliente e funcionário de um hortifrutti em Niterói”. Esta anedota, ao evocar como engraçado um diálogo pertinente (afinal, resíduos de agrotóxicos podem estar presentes em ovos de galinha devido à exposição destes animais a estas substâncias) aciona o discurso de que agrotóxicos são

112

substâncias que só deixam resíduos quando diretamente aplicadas em produtos agricultáveis. A outra menção ocorre na coluna da jornalista Miriam Leitão (“Os Campeões”), na qual ela critica o fato de o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ter destinado R$ 7 bilhões em três anos à empresa JBS-Friboi, escolhendo-a para liderar o setor de carne. Um dos argumentos foram as condições degradantes (“de envergonhar o país”) encontradas nos trabalhadores de uma fazenda fornecedora de bovino para a empresa: “Eles eram submetidos à moradia indigna, alimentação inadequada, água suja, anotações em cadernos de compras, descontos em seus salários do material de segurança, trabalho com agrotóxicos sem proteção” (p.36, grifo nosso). Deste modo podemos acionar a perspectiva de uso seguro de agrotóxicos, no qual a exposição à intoxicação (e, portanto, “as condições degradantes”) ocorre pela ausência de equipamentos adequados e não exatamente pela periculosidade do produto em si. Diário do Pará No período recortado, nossa coleta de dados obteve quatro matérias no jornal Diário do Pará que mencionavam o assunto agrotóxicos. Na busca do site, encontramos uma sobre nosso caso de estudo específico. No entanto, a matéria “Especialistas alertam para o perigo de agrotóxicos” foi veiculada em uma data em que não há edição digitalizada (02/04) e é assinada pela Agência Brasil, motivos pelos quais desconsideramos este texto em nossa análise. Figura 8: matéria do Diário do Pará menciona os defensivos químicos

A matéria “Atividades de baixo impacto ambiental” (21/03) menciona os agrotóxicos em associação ao alto impacto ambiental gerado pelo produto. O texto trata sobre um projeto para o fortalecimento dos arranjos produtivos de apicultura (criação de abelhas) e

113

meliponicultura (criação de abelhas sem ferrão) em um assentamento. Após o intertítulo “Sustentabilidade”, um pequeno histórico do assentamento é apresentado: “A proposta se baseava na troca da monocultura bovina pela diversificação da produção sem o uso de adubos ou defensivos químicos. Desde esse período, surgiram experiências que até hoje servem de modelo de preservação ambiental e sustentabilidade” (A6). Deste modo, podemos inferir que o discurso evocado é que a eliminação do uso de agrotóxicos é uma iniciativa sustentável, que aumenta a preservação ambiental de um local. Agrotóxicos aqui está identificado com o alto impacto ambiental gerado pelas substâncias. No dia 30 de março, o texto “Morre mais um intoxicado por uso de inseticida DDT” nos traz um exemplo de como a substância DDT, ao contrário da grande maioria dos agrotóxicos – à exceção, talvez, do glifosato/roundup e do chumbinho – possui uma existência à parte da significação do termo. A reportagem, de página inteira, não menciona o termo agrotóxico, nem seus sinônimos, uma vez sequer. No máximo, substitui o nome da substância pela categoria “inseticida”. O silêncio aqui também nos diz muito: o agrotóxico é utilizado geralmente para se referir à aplicação no campo, sendo inconcebível no imaginário geral que um produto “tóxico” possa ser aplicado em nome da saúde pública. É interessante notar que, embora a vítima manuseasse também outro agrotóxico, o malathion, é o DDT que é citado no título e mais mencionado ao longo do texto. O sentido predominante aqui é do risco à saúde humana e morte, causado pela intoxicação com as substâncias. Vejamos alguns trechos: Morreu na última terça-feira (22), mais um servidor da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) intoxicado pelos inseticidas usados no controle de epidemias na Amazônia na década de 80. Milton Araújo dos Santos, 75 anos, possuía tutela judicial para tratamento por intoxicação e morreu em Conceição do Araguaia. O caso é mais um na macabra lista de intoxicados, que já soma 37 óbitos. Houve mortes registradas por câncer de pulmão e de garganta, problemas cardíacos e respiratórios. Familiares de Milton Araújo dos Santos vão buscar na Justiça os direitos em relação aos anos de “negligência” por parte da Funasa. A filha do servidor, Berenice dos Santos, contou ao DIÁRIO que há mais de dez anos Milton descobriu a infecção por Dicloro-difenil tricloroetano, o DDT - substância proibida no Brasil desde 2009 -, e pelo Malathion, usado no combate à malária. (...) Aproximadamente 600 trabalhadores foram intoxicados com inseticidas. Sem receber assistência governamental desde setembro de 2009, eles amargam gradativamente a debilitação física e psicológica. “Estamos desprovidos do direito de saúde, esquecidos aqui no interior”, critica o ex-agente de saúde Genival Rodrigues, contaminado com DDT e malathion há quase duas décadas. Em situação semelhante a

114 dele, cerca de 60 pessoas já teriam falecido em decorrência da intoxicação. (MORRE, 2011, A10, grifos nossos)

No enunciado acima está evidente a associação entre o trabalho com as substâncias, a intoxicação, a doença e a morte. Um outro enunciado evoca a questão do uso seguro dessas substâncias, indicando o “manuseio inadequado” como uma possível causa deste “ciclo mortal”: (...) a primeira denúncia de problemas de saúde foi feita em 1996. A contaminação ocorria principalmente no manuseio inadequado dos produtos tóxicos. “Os agentes não usavam luvas, máscaras e alguns até chegavam a dividir os mesmos macacões. Sem contar o transporte do material em veículos inadequados, incluindo animais cargueiros”, conta o presidente do sindicato, Cedício Vasconcelos, que afirma que na época havia a crença que a substância só fazia mal aos mosquitos. (MORRE, 2011, A10, grifos nossos)

No dia 02 de abril, o texto “Mosquito pode não ser a única vítima do fumacê”, às ameaças de utilização de controle químico nas campanhas de saúde pública passa de problema passado à atual. Embora utilize outras substâncias, o uso de agrotóxicos no combate à dengue também traz riscos, informa o texto: São duas as formas de ‘fumacê’ para a dengue: com a substância cipermetrina, em bombas pequenas (costais) que são utilizadas pelos agentes de saúde para exterminar o mosquito infectado em locais onde foram notificados casos – quebrando a cadeia viral-, e com o larvicida em bombas grandes acopladas em veículo, quando se detecta focos da dengue. Mas de acordo com o químico farmacêutico e professor da Universidade Federal do Pará, Rosivaldo Borges, essas substâncias devem ser usadas de forma bem pontual, pois apresentam riscos à saúde e ao meio ambiente. “A cipermetrina é biodegradável, mas mesmo assim, por ser da mesma classe que a deltametrina - que extermina piolhos-, é perigosa e demanda cuidado no uso. Ela possui organoclorato, um derivado do cloro que é reativo e cuja molécula fica no ambiente”, informou. Na análise do químico farmacêutico, a inalação do inseticida pode provocar problemas, pois os elementos piretoides como a cipermetrina não possuem metabolismo conhecido. (..) “A cipermetrina pode desencadear reação alérgica, náuseas, mal-estar e os agentes podem desenvolver problemas respiratórios caso não estejam com a proteção adequada”, enfatizou Rosivaldo. (MOSQUITO, 2011, s.p, grifos nossos)

O perigo e o risco são evocados pelo enunciado acima. O texto também traz a noção do “manuseio adequado” dos agrotóxicos como forma de prevenir uma possível intoxicação: O motorista Luiz Garcia, que trabalha no transporte do fumacê, confirma que os agentes usam equipamento de segurança, mas não se sente totalmente seguro. “A gente usa luva, máscara, macacão,

115 bota, mas não dá pra se sentir 100% seguro”. Ele afirma que, como trabalha no carro, não tem um contato tão próximo com o produto. “As pessoas que trabalham com as bombas costais têm mais contato com o produto porque ele fica nas costas deles, né? A proximidade deles é muito maior”. Apesar dos equipamentos de segurança, para o coordenador do Sindicato dos Trabalhadores em Saúde do Estado do Pará (Sindsaúde), Carlos Costa, os agentes que trabalham com esse tipo de serviço correm riscos. “Os agentes do bem-estar social (que fazem a borrifação do fumacê) estão com um sério problema, porque estão sem equipamentos de proteção individual adequados”, afirma. “Eles correm risco porque respiram direto aquela fumaça” (MOSQUITO, 2011, s.p, grifos nossos) Figura 9: matéria do Diário do Pará traz a distribuição de cortinados com inseticidas

Apesar da veiculação destas duas reportagens, dias depois (09/04) o Diário do Pará trouxe a utilização de inseticida em mosquiteiros como modo de prevenir a malária no estado e reduzir morbidade e mortalidade pela doença na região. A iniciativa de distribuição de 1,1 milhão de mosquiteiros com a substância, do Projeto Malária com Fundo Global, não é sequer problematizada no texto, que só cita a questão: “Nas oficinas regionais, os participantes poderão também tirar dúvidas sobre o material colocado à disposição e os assessores receberão

116 treinamento para a utilização do teste de diagnóstico rápido que será utilizado em áreas remotas de cada município e a instalação dos mosquiteiros/cortinados impregnados com inseticida. (...)”, comenta Ana Carolina Silva Santelli, coordenadora executiva do Projeto Malária com o Fundo Global e coordenadora geral do Programa Nacional de Controle de Malária. (..) A intenção é promover a aceitação e uso adequado do mosquiteiro como forma de prevenção, divulgar os sintomas da malária para busca precoce por diagnóstico e incentivar o tratamento completo. Com tudo isso, esperase reduzir em 50% o número de casos de malária nos próximos cinco anos” (INFORMAÇÃO, 2011, A7, grifos nossos)

Aqui, o sentido predominante evocado, em uma perspectiva contrária aos textos anteriores, é o de agrotóxico (inseticida) vinculado à prevenção de doença, saúde humana e à vida. Nas quatros matérias encontradas no Diário do Pará nenhuma utilizou o termo agrotóxico. A primeira apresentou o termo “defensivo químico” em substituição e as outras três, ligadas à saúde pública, utilizaram apenas a categoria da substância, “inseticida”. A frequência deste segundo tipo de matéria, nos indica que o jornal possui uma forte associação com a realidade local, na qual as campanhas de saúde pública e epidemias estão muito mais presentes do que a agricultura intensiva. O único texto que encontramos com o termo no veículo no período, foi produzido pela Agência Brasil. 4.2.3 Jornais ausentes Quadro 4: Matérias dos “jornais ausentes” que fazem parte do corpus ampliado Jornal Zero Hora

Texto Autor do assalto do século é raptado MST marcha pelo norte do Estado Novidades no forno Quatro décadas de luta pró-natureza na Agapan Orgânicos no centro do debate

As receitas para um assentamento próspero O Estado de Tipo de ácaro infesta pé de Lichia S.Paulo Agroecologia preserva mananciais SP ganha guia de cozinha verde. Mas tem até carne Desejo por comida saudável alimenta negócios Pauta vai focar área ambiental e já assentados ''A realidade do País mudou'' Aberto inquérito para apurar mortes de animais Ração com chumbinho envenenou animais R$ 1 por metro de rio preservado Fonte: elaborado pela autora

Data 22/03 01/04 01/04 18/04

Editoria Há 30 anos Geral Campo&Lavoura Geral

Tema principal Não Não Não Não

02/05

Sim

15/05

Meu Mundo Sustentável (sup) Geral

16/03 23/03 22/03

Agrícola (sup) Agrícola (sup) Cidades/Metrópole

Sim Sim Não

18/04

Não

28/03

Oportunidade (sup) Nacional

28/03 11/05

Nacional Cidades/Metrópole

Não Sim

12/05

Cidades/Metrópole

Sim

23/04

Espaço aberto

Não

Não

Sim

117

Zero Hora Dos veículos analisados, o único que dedica uma página diária92 a temática rural é o Zero Hora. O jornal possui uma subseção da editoria de Economia denominada Campo&Lavoura. Além da página diária [durante o período coletado, a página sofreu modificações, às vezes ocupando duas páginas, outras reduzida a uma nota] o ZH publica às sextas-feiras um suplemento homônimo. Como se pode deduzir, pela geografia jornalística, C&L é dedicado à economia rural, focada no mercado do agronegócio, produtividade e negociação das safras, inovações tecnológicas. Embora a questão dos agrotóxicos não esteja completamente ligada a editorias voltadas ao ambiente rural, nos interessou voltar o olhar sobre esta página, pois esta nos apresenta de um modo significativo o leitor imaginado do Zero Hora e como o veículo cobre as questões relativas ao campo. Durante o período pesquisado, não houve nenhuma matéria voltada para o pequeno/médio produtor, demarcando bem para qual homem do campo o C&L se destina: o empresário, grande produtor, letrado e interessado em novas tecnologias, mercado de exportação e aumento de produtividade93. Na reportagem de capa “Ministra promete para o campo incentivos ao adotar o Código Florestal” (20/04) podemos corroborar com esta dicotomia, quando os interesses dos produtores mencionados são àqueles dos proprietários de grandes extensões de terra – “(...) A posição do governo atende a pedidos dos produtores que temiam ter extensões menores para produzir em suas terras por limitações ambientais”. Geralmente, a cobertura do Novo Código figura nas páginas de C&L, a não ser quando o desdobramento é “grandioso” demais a ponto de virar manchete (12/05)94.

Utilizamos o termo “diário” do mesmo modo que a ANJ utiliza para classificar os jornais diários: são aqueles com uma periodicidade equivalente ou maior do que quatro dias. No nosso caso, a página em questão não é publicada aos domingos, embora a edição dominical possua mais de 200 páginas em média, o dobro das de um dia útil. 93 A diretora do caderno Campo&Lavoura na época, Adriana Langon, afirmou, em um chat com os leitores em 2007, que não existe uma divisão pré-determinada para pequeno ou grande produtor. De acordo com ela, o espaço é determinado pela relevância do assunto naquele momento. Langon disse ainda que a equipe possui correspondentes no interior e o apoio do Canal Rural. Disponível em . Acesso em 15.10.2015. 94 O próprio ZH nos mostra o porquê o agronegócio ocupa tanta importância no cotidiano do jornal, na comemoração do primeiro ano da coluna “Olhar no Campo”, situada na página Campo&Lavoura. Ao discorrer que o setor agrícola representa 40% do PIB gaúcho, o colunista Irineu Guarnier Filho diz que: “Não por acaso, nas últimas décadas a produção de alimentos, biocombustíveis, e, principalmente, a 92

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A primeira vez que a temática dos agrotóxicos aparece no período pesquisado é na seção “Há 30 anos”, no dia 22 de março: “Será aberta nesta semana a Comissão Parlamentar de Inquérito, que investigará o uso irregular de defensivos agrícolas nas lavouras gaúchas. A CPI foi proposta pelo deputado estadual Celso Testa”. Foram apenas seis menções específicas aos agrotóxicos na ZH, a maioria secundária ao assunto principal. Nesta mesma edição, que circulou no mesmo dia em que o Caso do Leite Humano Contaminado foi veiculado pelo Jornal da Band, há uma matéria sobre a contaminação de alimentos pela radioatividade em Fukushima95. Já na edição do dia 1º de abril, sexta-feira, há as duas primeiras menções a agrotóxicos em matérias do Zero Hora. A primeira é de uma notícia sobre o “Abril Vermelho” (“MST marcha pelo norte do Estado”). Nela, um acampado [José Guaraci Serpa] tem voz ao se afinar com o discurso economicista da produção agrícola, utilizando as leis de mercado parra justificar a necessidade dos assentamentos: “Quem mora na cidade está procurando alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, o que queremos produzir”. A outra citação está no suplemento Campo&Lavoura, na matéria “Novidades no forno”, que trata sobre lançamentos de biotecnologia para as lavouras de soja. Com o chapéu “Foco na Biotecnologia”, este texto ilustra o ângulo pelo qual os insumos agrícolas são abordados pelo ZH: Prestes a colher e vender uma produção recorde de grãos, os produtores gaúchos de soja conseguem manter a pujança e o vigor mesmo diante da constante ameaça de plantas invasoras e efeitos imanentes da preocupação com o ambiente saltaram das páginas ditas ‘rurais’ para outras seções – e até para a capa do jornal”, afirma, listando o interesse crescente pelo setor, inclusive pelos alimentos orgânicos. Quando os pequenos produtores aparecem, estão em um espaço reduzido, como na nota, de três parágrafos, “Pequenos agricultores marcham por mudança” (08/04). O texto, que trata sobre o Novo Código Florestal, pouco informa sobre as reivindicações desta categoria, enunciando genericamente que estes “defenderam mudanças do projeto de reforma do código, ajustados à agricultura familiar”. No entanto, a maior parte da cobertura sobre as negociações do Código Florestal, no período analisado, é dedicada aos interesses do grande produtor, que prefere o afrouxamento das leis ambientais, como a redução dos limites de preservação da mata nativa. 95 A comparação com a cobertura sobre o Desastre de Fukushima, exaustivamente coberto pelo ZH (até o dia 21 de março, o assunto ocupa manchete/chamada de capa do jornal, e de três a sete páginas inteiras), nos dá pistas de como o jornal se relaciona com as notícias sobre poluição química. É interessante notar aqui como interessa ao Zero Hora realizar uma cobertura intensiva do desastre japonês, mas nada é dito sobre a contaminação química em território brasileiro. Instalando-se aí um paradoxo: a cobertura do desastre nos indica que o jornal julga que o seu leitor irá se interessar pelos desdobramentos de um tsunami seguida de um vazamento nuclear no outro lado do mundo, incluindo a contaminação da fauna, flora e alimentos; mas, por outro lado, não o interessa divulgar que a exposição à poluição química também é encontrada no Brasil, como no caso que aconteceu em um município rural do Mato Grosso. Daí podemos deduzir que os critérios de noticiabilidade do ZH passam não somente pela proximidade do acontecimento (grande parte das manchetes analisadas são internacionais) mas também pelos interesses comerciais de parte do público leitor e dos anunciantes.

119 estiagem. Os resultados são frutos de uma dupla considerada imbatível: investimento em genética e uso de insumos de ponta. A utilização de sementes adaptadas às condições de solo e clima do Estado tem sido responsável pela alta produtividade do cereal nos últimos anos. Com a massificação da transgenia no Estado, os riscos apresentados por ervas daninhas são combatidos de maneira efetiva. Enquanto isso, os custos de produção são reduzidos com o uso de variedades de ciclo curto. (COLUSSI, 2011, p.2)

No lide da matéria podemos perceber que o único perigo à lavoura apresentado é a erva daninha, que consegue ser eliminada graças ao “milagre” das plantas transgênicas, declaradas como efetivas. Na matéria, a semente Intacta RR2 Pro, desenvolvida pela Monsanto, é classificada como “tecnologia de ponta, desenvolvida exclusivamente para o Brasil”. O texto traz a voz de um agrônomo da multinacional (Talles Pezzini) afirmando que a semente transgênica “viabiliza práticas agrícolas sustentáveis ao reduzir o uso de inseticidas para o controle das primeiras lagartas que atacam a soja”. Assim, podemos detectar que o tom que rege a matéria sobre as tendências do agronegócio é o tecnicista, em que o desenvolvimento tecnológico é visto como progresso natural e as consequências negativas são apagadas. Figura 10: matéria do ZH traz a tecnologia como aliada do produtor

Podemos notar também no texto a presença da ideia de que as espécies indesejadas são ervas daninhas e invasoras, que representam risco e ameaça, e devem ser combatidas

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com a tecnologia – da transgenia e dos agrotóxicos, vistos como aliados do produtor. Outro interdiscurso evocado pelo texto é o da sustentabilidade, paradoxalmente gerada por uma tecnologia cujos danos ambientais ainda são incertos (a transgenia). O fetiche pela tecnologia no campo é reforçado na coluna Olhar do Campo intitulada “O nome do jogo”: O investimento em sementes certificadas, variedades de ciclo mais curto ou mais resistentes a pragas e doenças, correção de solos, e o uso intensivo de fertilizantes e de máquinas mais modernas têm contribuído para o aumento da produtividade nas lavouras. Tecnologia é o nome do jogo (GUARNIER FILHO, 2011, p.24)

A quarta citação aos agrotóxicos ocorre no dia 18 de abril, quando uma matéria coordenada da página Campo&Lavoura traz a informação de que há um grupo chinês, “que atua na área de produção de sementes e defensivos agrícolas há 35 anos”, interessado em vender uma tecnologia da semente de arroz híbrido para o Brasil. Assim, temos mais uma notícia em que o tema está associado ao mercado do agronegócio. No dia 24 de abril, uma reportagem de meia página foi publicada na editoria Geral sobre o aniversário de 40 anos da organização não-governamental Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). Sob o chapéu “Pelo Planeta”, a matéria “Quatro décadas de luta pró-natureza na Agapan” menciona o papel da luta contra os agrotóxicos na trajetória da entidade: O atual presidente da entidade, o advogado Eduardo Finardi, resume para os mais jovens, de forma didática, como era o Rio Grande (e, por extensão, o Brasil), nos tempos pré-ambientalismo: – Não existia legislação anti-agrotóxicos. Colocava-se nas lavouras veneno com capacidade deformante. Desmatava-se até a beira dos rios, fazendo com que, a cada chuva, milhões de toneladas de solo fértil escorressem para a água. Hoje tudo mudou, não só por causa da Agapan, mas muito em função dela. (TREZI, 2011, p.28)

De fato, a Agapan influenciou no pioneirismo gaúcho na limitação legal ao uso de agrotóxicos (Lei nº7746/1982). No entanto, a fala do ambientalista, especialmente o enunciado “hoje tudo mudou”, deixa implícita a ideia de que a questão está superada, como se ainda não fossem despejados nas lavouras “venenos com capacidade deformante”96.

96

Há estudos que sugerem que o Glifosato, por exemplo, herbicida amplamente utilizado nas lavouras brasileiras, produz deformações neuroniais, intestinais e cardíacas, mesmo em doses muito inferiores àquelas utilizadas na agricultura. Ver .

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O meio ambiente parece ser uma preocupação do ZH, mas que é entregue para o leitor do jornal dentro de uma perspectiva utilitária e empresarial, no qual apenas uma gestão de recursos superficial é suficiente para dar conta de problemas complexos. O ângulo apresentado em muitos textos nos remete a ideia de greenwashing97, a exemplo do trecho “Na Casa do Meio Ambiente [na feira de negócios agropecuários Expodireto, realizada no município de Não-Me-Toque], o destaque é os 10 anos do Projeto Escola no Campo – promoção da Syngenta” (17/03). Ao citar um programa socioambiental de uma das maiores corporações de fabricação de agrotóxicos e insumos agrícolas do Planeta [A Syngenta ocupa 19% do mercado de agrotóxicos, com previsão de chegar a 24% caso se concretize a fusão com a chinesa ChemChina, prevista para o final de 2016]98, o ZH silencia sobre suas práticas de poluição ambiental e promove a marca como socioambientalmente responsável, sem de fato o ser. Ou seja, pratica o greenwashing. Outro exemplo é que o próprio suplemento dedicado ao Meio Ambiente do veículo ter sido patrocinado pela fabricante de cigarros Souza Cruz em algumas edições. De modo geral, podemos observar que as questões ambientais, como escassez hídrica ou mudanças climáticas, são abordadas pelo ZH pelo viés do produtor rural. No suplemento Campo&Lavoura (18/03) esses temas estão vinculados a produtividade agrícola e são pautados pelas discussões da feira de agronegócio Expodireto. A sustentabilidade também é abordada no suplemento pelo viés da inovação do maquinário agrícola. No dia 02 de maio, o caderno “Meu Mundo Sustentável”, que trata sobre questões ambientais, aparece pela primeira vez durante nosso recorte sem a logomarca da Souza Cruz, empresa que obtém grande parte do fumo de lavouras com uso intensivo de agrotóxicos99. Coincidentemente, esta primeira edição é dedicada aos alimentos orgânicos. A reportagem de capa “Orgânicos no centro do debate” traz um deslocamento interessante do termo “agroquímico”. Aqui, este é utilizado como sinônimo de agrotóxico, e não como um agrupamento dos insumos agrícolas, tal como é utilizado usualmente. A metonímia, que entendemos aqui como um deslocamento de sentido do

97

O greenwashing é uma expressão que visa definir quando uma organização (empresa, organização nãogovernamental, ou até mesmo o governo), propaga práticas ambientais positivas e, na verdade, possui atuação contrária ou neutra aos interesses e bens ambientais (RIBEIRO; EPAMINONDAS. Das estratégias do greenmarketing à falácia do greenwashing: a utilização do discurso ambiental no design de embalagens e na publicidade de produtos. V Encontro Nacional da Anppas. Florianópolis, 2010). 98 Ver 99 Sobre isso, mais informação pode ser encontrada em

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termo, nos faz questionar se este é uma tentativa de apagar o alarme contido no sufixo tóxico. O lide nos dá algumas pistas de como a reportagem constrói a ideia de alimentos orgânicos como um ideal utópico: Ninguém quer comprar uma goiaba com bicho ou, pior ainda, encontrar a metade dele em uma mordida. Esse exemplo pode parecer estranho, mas é para evitar pragas como o famoso bicho da goiaba que a agricultura convencional usa agroquímicos. (ZH, 02/05/2011)

Neste lide fica claro que, embora o foco da reportagem seja os orgânicos, o sujeito do enunciado acredita que os agrotóxicos são necessários, tendo seu uso justificado logo de início, pois é necessário que o leitor-consumidor entenda que “a agricultura orgânica é uma agricultura de paciência”. Figura 11: suplemento sobre sustentabilidade traz o cultivo orgânico na capa

As vantagens de um cultivo livre de agrotóxicos aparecem timidamente no texto. Em um dos depoimentos uma consumidora evoca os benefícios à saúde dos alimentos orgânicos: “Depois de perceber vantagens na saúde – ela enumera anos sem nenhuma gripe – não largou mais”. A saúde é evocada também no trecho “os agroquímicos são considerados potencializadores [e não causadores] de problemas de saúde como asma, alergias e, até mesmo, câncer”. Já no boxe “o impacto do alimento sem agroquímico” a repórter afirma que estes podem permanecer de 8 a 10 anos no solo, “assim danificam a terra e podem contaminar o lençol freático”.

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A ideia de que os produtores orgânicos podem sim ser competitivos e produzir tão quanto o agricultor tradicional aparece no último dia no nosso período de análise, domingo, 15 de maio, na reportagem “As receitas para um assentamento próspero”. A matéria, que ocupa duas páginas inteiras, já anuncia no chapéu “Bons exemplos”, em tamanho quase similar ao do título, que trará histórias de sucesso de “produtores-modelo”. São quatro casos e o único que cita uma produção agroecológica é o descrito no texto “Arroz ‘verde’ e competitivo”: “Em quatro anos a produção do Apolônio chegou uma média que varia de 90 a cem sacas por hectare, números que fazem frente a propriedades vizinhos que cultivam o arroz de maneira tradicional, com adubagem não-orgânica e agrotóxicos”. O próprio verde do qual fala o título remete ao ideal da sustentabilidade, associado aos alimentos orgânicos e agroecológicos. O Estado de S.Paulo100 Até o final de novembro de 2011, o jornal O Estado de S.Paulo mantinha um suplemento específico para temáticas rurais. Era o caderno Agrícola, que começou a circular em janeiro de 1955, embora “a preocupação com as notícias sobre agricultura e a prestação de serviço ao homem do campo, já estava presente no Estado desde 1918, quando foi criada a coluna semanal ‘Assumptos Agrícolas’”101. É neste suplemento que circulou a primeira menção (de nove) a agrotóxicos no período, no dia 16 de março. Diferentemente do Campo&Lavoura, do Zero Hora, o Agrícola aparenta ser mais voltado para o pequeno/médio produtor rural e suas questões cotidianas. O caderno semanal possuía uma seção de perguntas e respostas, que servia como uma espécie de “tira-dúvidas” destinado aos produtores-leitores. Na primeira dúvida, um produtor de lichias questiona se deve utilizar agrotóxico para combater “pragas nos brotos novos”. O especialista convidado para respondê-lo “não recomenda o uso de agrotóxicos” por não haver substâncias registradas para a cultura, além de que, “por enquanto, práticas simples, como a poda, são suficientes para permitir um cultivo viável”.

O jornal O Estado de S.Paulo menciona o “caso do Leite Humano Contaminado” em uma coluna (“O terreno difícil dos agrotóxicos”, de 27/05/2011) e em uma notícia secundária (“Poluentes orgânicos causam problemas neurológicos em fetos”, 19/07/2011). Devido ao recorte temporal nenhuma das duas serão analisadas neste trabalho. 101 Ver em 100

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Na edição da semana seguinte, foi a vez do Agrícola tematizar a agroecologia na reportagem de capa. Na reportagem “Agroecologia preserva mananciais” (23/03) a agricultura livre de agrotóxicos está associada à pauta ambiental: Uma revolução silenciosa começa a tomar corpo na região de mananciais do município de São Paulo, no extremo da zona sul. Essa revolução passa necessariamente pela agricultura e pode se tornar uma alternativa efetiva para preservar o meio ambiente e a água consumida pelos 19 milhões de habitantes da Grande São Paulo. (...) O “nome” da revolução é agroecologia. E o sobrenome é “Protocolo de Boas Práticas Agroambientais” (...). A assinatura significa que esses agricultores se comprometem a adotar práticas agrícolas sustentáveis, entre elas abolir o uso de agrotóxicos e adubos químicos e preservar mata nativa, nascentes, prevenir erosão e manter o solo permeável, desistindo, por exemplo, do uso da plasticultura (estufas). (RABELLO, 2011, p.6)

Podemos perceber que a agroecologia é abordada no texto como prática transformadora, do mesmo modo em que se identifica o movimento agroecológico, e que a abolição do uso de agrotóxicos figura como prática sustentável ao lado de ações como preservação de vegetação nativa e nascentes. A atividade ainda é citada como “uma forma ambiental e economicamente sustentável de vida”. Uma fala de uma agricultora reforça a ideia da dificuldade de se adotar tal prática “revolucionária”: “Fiz uma aposta com o Daniel [seu sócio], de que conseguiríamos produzir sem adubo químico e veneno”. Figura 12: caderno agrícola cultivo agroecológico na capa

Deste modo constrói-se o sentido de que a produção agroecológica necessariamente transforma os praticantes em agentes ambientais e que o uso de agrotóxicos é prejudicial ao meio ambiente. Vale notar que agricultura orgânica é utilizada como sinônimo de

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produção agrícola sem agrotóxico e, além do termo agrotóxico, usado pelo sujeito da enunciação, apenas o termo veneno, na citação literal da agricultora, é utilizado. O texto “SP ganha guia de cozinha verde. Mas tem até carne” (22/03) também evoca associação entre alimento livre de agrotóxico e sustentabilidade, ao utilizar o termo “cozinha verde”. A nomenclatura é da rede de “restaurantes saudáveis” Clube da Cozinha Verde, que além da comida orgânica, oferece alimentação natural, vegetariana e vegana – ressaltando também a associação com a saúde, inexistente na reportagem sobre agroecologia e, aparentemente, evocada quando o contrato de leitura prevê um leitorconsumidor. Vale ressaltar que a comida orgânica definida em um boxe denominado “Glossário” possui um conceito mais amplo do que habitual: “Comida feita sem produtos químicos. Assim não tem agrotóxicos, hormônios, corantes e afins”. O tom é bem similar no texto “Desejo por comida saudável alimenta negócios” (18/04). A diferença é que, veiculado no suplemento “Oportunidade” o destinatário previsto aqui é outro: é um possível empreendedor. Assim, a alimentação orgânica, e “saudável” como um todo, é visto como um nicho de mercado interessante, com capacidade de crescimento. A tendência ocorre pela “valorização da qualidade de vida na nossa sociedade”, a existência de uma “culpa moderna”, uma vez que “comemos mal, trabalhamos muito e nos exercitamos pouco”, levando a buscar “opções saudáveis” e, por fim, porque é nicho com potencial de negócios “grande e pouco explorado”. O texto consolida, pelo ponto de vista empresarial, a associação alimentos livre agrotóxicos e saúde como um bom investimento. No dia 28 de março, a reportagem “MST vive crise e vê cair número de acampados” aproveita o agendamento do “Abril Vermelho” para trazer à tona o enfraquecimento do movimento diante das políticas sociais de geração de emprego na construção civil, que não demanda alta capacitação. Na matéria coordenada “Pauta vai focar área ambiental e já assentados”, o jornal veicula o que seria a estratégia diante da “realidade atual do movimento”: Em sua mais recente jornada de lutas, no início do mês, o MST invadiu edifícios públicos para chamar a atenção da sociedade sobre o uso intensivo de agrotóxicos na agricultura. Essa estratégia tem se tornado comum. Em vez de se dedicar apenas a invadir fazendas e pedir desapropriação para a reforma, o movimento se engaja na campanha ambientalista, de maior apelo social. O objetivo é mostrar que o modelo baseado na grande propriedade, com extensas áreas de monocultura, como a cana

126 e a soja, é prejudicial para o meio ambiente. O modelo alternativo, com a redistribuição da terra e voltado sobretudo para a produção de alimentos, seria melhor do ponto de vista ambiental. (ARRUDA;TOMAZELA, 2011, p.A7, grifos nossos)

O enunciado acima nos traz alguns sentidos e algumas representações, algumas mais usuais como o termo invadiu – mais associado à violência e à ilegalidade – em vez de ocupou. O texto apresenta o Movimento Sem Terra como um movimento puramente político, que vê a bandeira ambientalista – representada pela denúncia do uso intensivo de agrotóxicos no agronegócio, aqui chamado pela generalização “agricultura” e, depois, especificado como o “modelo” hegemônico – como estratégia “de maior apelo social”. É interessante notar como a proposta é reduzida a um modo de readaptação do movimento ao esvaziamento provocado pelas políticas públicas do governo que ajudou a eleger, “um sinal da mudança de paradigmas que ocorreu ao longo dos anos”, e não há qualquer menção que práticas em direção a este “modelo alternativo” já são adotadas na maioria dos assentamentos do movimento. No final da matéria coordenada, um boxe intitulado “Para lembrar” afirma que: “No final dos anos 90, a força do MST podia ser medida pela inserção do movimento entre os chamados ‘formadores de opinião’ da sociedade e também em manifestações culturais”. O texto traz como exemplo desta “inserção” a personagem Luana, interpretado pela atriz Patrícia Pillar, que vivia em um acampamento sem-terra na novela global “O Rei do Gado”. O boxe pode ser interpretado como um alerta à sociedade de como o “apelo social” do movimento já foi forte anteriormente e que, com “bandeiras ambientalistas”, pode voltar. Uma entrevista reduzida [mais trechos podem ser acessados no sítio eletrônico do jornal], com um membro da coordenação nacional do MST, Gilmar Mauro, completa a produção de sentidos da reportagem sobre os agrotóxicos. Nela, após explicar a atual conjuntura do movimento e ser questionado se “isso significa o esvaziamento da bandeira da reforma”, o entrevistado diz que: A reforma agrária precisa ser ressignificada, com um debate político. Se continuarmos essa lógica de exportação de commodities, com uso intensivo de agrotóxicos, em menos de 50 anos teremos contaminado rios, lagos, terra. É o que desejamos? Queremos consumir alimentos contaminados? Se a sociedade responder sim, então não há espaço para reforma. Se disser não, precisamos rever o modelo agrícola atual. (ARRUDA;TOMAZELA, 2011, p.A7, grifos nossos)

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Embora o texto interpele diretamente o leitor sobre as bandeiras do movimento, notamos que toda uma tentativa de estabilizar o sentido evocado pela entrevista já foi realizada pelo sujeito da enunciação nas matérias anteriores. Assim, ainda que os sentidos mobilizados pela enunciação do representante do MST busquem gerar uma reflexão do leitor, este já foi interpelado pelo enunciado pré-construído na matéria e é possível que acione o discurso de que a fala é “apenas” uma estratégia de forte “apelo social”. De todo modo, a fala aciona o sentido do agrotóxico enquanto agente de contaminação ambiental, fruto de um determinado modelo agrícola. O Estado de S.Paulo ainda menciona os agrotóxicos em outras ocasiões. O termo aparece em duas notas sobre o envenenamento de animais em Ribeirão Preto (SP): uma (12/05) mencionando que as mortes foram causadas pelo chumbinho, “um agrotóxico utilizado como veneno de ratos”; e, no dia anterior (11/05), outra nota explica que um inquérito foi aberto e o crime está previsto pela Lei Ambiental, que prevê “11 anos de prisão pelo uso de agrotóxico”. Em ambos os casos, acreditamos que o sentido evocado é o de perigo, pela associação entre o agrotóxico e o envenenamento seguido de morte. A outra menção é veiculada em um artigo sobre a conservação dos rios (“R$ 1 por metro de rio preservado”) no dia 23 de abril, assinada pelo diretor-presidente de então da Agência Nacional de Águas (ANA), Vicente Andreu. No texto, que basicamente propõe soluções para conservação hídrica no bojo das discussões sobre o Novo Código Florestal, Andreu faz um panorama dos problemas atuais que atingem as águas fluviais: As pesquisas científicas disponíveis, ainda que poucas, apontam para a necessidade mínima de 30 metros, para reduzir o assoreamento nos rios e reservatórios causado pela maior velocidade das águas das chuvas sobre o solo, para aumentar sua infiltração, reduzir ao mínimo o impacto de fertilizantes e agrotóxicos e melhorar a quantidade e qualidade das águas. (ANDREU, 2011, A2, grifos nossos)

No enunciado percebemos que a questão dos agrotóxicos é citada como um argumento para defender o ponto de vista do autor sobre a necessidade de não “retroceder” na legislação e conservar os 30 metros de áreas de preservação permanente (APPs) na margem dos rios – a legislação aprovada acabou delimitando essa margem mínima apenas para rios naturais, estabelecendo o mínimo 15 metros de matas ciliares para os cursos d’água que sofreram intervenção humana. A utilização do termo agrotóxico como algo que necessita ter o seu impacto reduzido, implica que essas substâncias impactam negativamente o ambiente, em especial os corpos

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hídricos. Nesse caso, o sentido evocado é o de agrotóxico como agente de contaminação ambiental, sendo paralelo à associação entre essas substâncias com a sustentabilidade, vistas em outros textos que circularam no veículo neste período. 5.3 Sobre ausências e presenças Verón (2004) nos ensina que a análise, após identificar e descrever as operações enunciativas, deve compreender as relações entre elas. Segundo o autor, “uma propriedade discursiva isolada nunca determina um contrato, este último é resultado de uma configuração de elementos. Ou seja, a análise deve abranger a lógica de conjunto de cada suporte com suas eventuais incoerências e contradições” (p. 234). Neste tópico nossa proposta é categorizar os sentidos identificados na seção anterior em tipos de discurso e sentidos mobilizados, a fim de compararmos os veículos e identificarmos as semelhanças e diferenças entre eles, especialmente entre os veículos que noticiaram e os que silenciaram sobre o caso do Leite Humano Contaminado. Além disso, buscamos identificar se estas características estão alinhadas com a imagem que cada jornal faz de si mesmo enquanto sujeito. Os tipos de discurso podem ser definidos como pontos de vista, a respeito de um tema, área social e/ou alguns de seus aspectos, sendo denominado por alguns como perspectiva ideológica. Entretanto, essas características são somente sugeridas, evocadas no discurso, ficando a cargo do destinatário interpretá-las, conforme suas preferências e experiências. É essa abertura do trabalho de produção de sentidos que amplia as possibilidades de identificação com que está sendo proposto (CARDOSO, 2001). Utilizamos também a noção de comunidade discursiva para identificar indivíduos ou grupos envolvidos na produção e que se reconhecem nos discursos gerados. Assim, utilizando essa tipologia, acreditamos que evidenciamos a arena de embates existentes entre vozes e os discursos, tanto presentes quanto ausentes, bem como as posições subjetivas privilegiadas e as apropriações de outros discursos. “Aproximando-se dessas estratégias, das alianças e tensões criadas no e pelo texto, aproxima-se, também, dos mecanismos de funcionamento do mundo social” (CARDOSO, 2011, p.111).

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4.3.1 Os tipos de discurso No título do livro “É veneno ou é remédio?”, Peres, Moreira e Dubois (2003) brincam com as diversas nomenclaturas atribuídas aos agrotóxicos e os sentidos que estas evidenciam. Ao tentar delimitar o contexto noticioso que o nosso objeto empírico emerge, observamos que na produção jornalística sobre os agrotóxicos a nomeação mantém uma relação estreita com os posicionamentos ideológicos evocados. Sendo assim, tomamos a “licença poética” de denominar como “veneno” e “remédio” os dois principais tipos de discurso identificados durante a análise. O primeiro evidenciaria um viés negativo dos agrotóxicos e o segundo se alinharia a uma perspectiva positiva. Identificamos ainda um terceiro tipo de discurso, o do “uso correto”, que serviria como uma ponte entre os dois tipos anteriores, conciliando-os. É nessa última categoria que classifiquei também a perspectiva legal, do agrotóxico não permitido, contrabandeado e, portanto, fora do uso “correto”. Em cada tipo de discurso, diversos sentidos são mobilizados, por vezes até contraditórios. Assim, identificamos cinco perspectivas, ou argumentos, que atravessam todos eles, sendo convocadas para legitimar o posicionamento do enunciador e estabilizar a produção de sentidos. São elas: econômica, agronômica, política-ideológica, ambiental e a da saúde. É por meio da combinação entre a perspectiva e o tipo de discurso que os sentidos se movem nos discursos analisados. Vejamos as características identificadas em cada tipo de discurso, com suas comunidades discursivas e as perspectivas privilegiadas: Remédio As perspectivas econômica e agronômica são as principais deste tipo de discurso. Consideramos que o agrotóxico é visto aqui como produto que viabiliza a produção agrícola, necessário para evitar pragas e proteger o cultivo, sendo indispensável para o incremento da produtividade agrícola e assim a obtenção de uma safra lucrativa. Ainda sob a égide da visão econômica, o setor que o abriga é apresentado como um negócio lucrativo, gerador de riquezas. Outros sentidos que se alinham a estes são a do agrotóxico enquanto investimento, cuja redução aumenta a rentabilidade; e a tecnologia que reveste novos insumos como aliada do produtor rural. Também categorizamos neste tipo de discurso alguns sentidos variantes, pertencentes a outras perspectivas: agrotóxico vinculado à prevenção de doença e à vida, agrotóxico

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como arma para combater ameaças à biodiversidade, e a fabricante de agrotóxicos como empresa com responsabilidade socioambiental. A nomeação que é privilegiada neste tipo de discurso é o do agrotóxico como defensivo agrícola. Identificamos ainda que os agentes sociais que formam a comunidade discursiva vinculada a este tipo de discurso são membros da: indústria; [grandes] produtores rurais; sindicatos patronais; associações de grandes produtores; parlamentares; instituições e setores governamentais ligados ao agronegócio (Ministério da Agricultura; Embrapa etc.); parte da comunidade científica; agentes de projetos de saúde pública (Programa Nacional de Controle da Malária); agrônomos; especialistas, etc. Veneno As perspectivas ambiental e da saúde são valorizadas quando a ênfase está sobre os sentidos negativos em relação aos agrotóxicos. No entanto, outras perspectivas são mais recorrentes neste tipo de discurso, em comparação ao do remédio. Identificamos ainda uma maior variabilidade entre os sentidos convocados sobre os agrotóxicos neste tipo de discurso. Assim, o argumento de que este insumo causa danos à saúde é evocado tanto na ideia de que o uso intensivo gera problemas de saúde pública, como na produção de sentidos que o apresenta como veneno que contamina os alimentos consumidos pela sociedade e ainda no argumento de que este ameaça a saúde humana e a vida, associando ao envenenamento. Há estratégias discursivas nesta perspectiva que apresentam deslocamentos um pouco mais sutis, como a ideia de que o agrotóxico era um veneno que causava danos à saúde, sendo esta uma questão superada; a do agrotóxico ilegal como danoso à saúde; ou a de que os agroquímicos são potencializadores dos danos à saúde (e não causas). Uma variante ao sentido de ameaça à vida é a própria identificação do agrotóxico como gerador de conflitos agrários, fruto de um modelo de desenvolvimento, que resulta até em homicídio. Mas acreditamos que este sentido se alinha mais a uma perspectiva política do que a relativa à saúde. De modo semelhante identificamos os sentidos associados aos danos ambientais: o agrotóxico aparece como substância com impacto ambiental negativo e ameaça ambiental; o controle do uso de agrotóxicos como cuidado à natureza; alimento livre de agrotóxico como sustentável; redução de agrotóxico como mais equilíbrio ambiental. Aqui também temos alguns deslocamentos como o sentido de que “defensivos naturais”

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(também chamados de bioprotetores, ou seja, agrotóxicos não-químicos) são opção eficaz no controle de espécies indesejadas e protegem o meio ambiente; além da apresentação da produção agroecológica como verde, que transforma os produtores em agentes ambientais. Compreendemos que é aqui que aparece um deslocamento: a do uso maior de agrotóxicos como requisito para produtos fora de época. Este enunciado convoca um argumento de artificialização do alimento, que ao estar fora da época, deixa de ser natural/ambientalmente correto. Outra perspectiva evocada é a agronômica, especialmente em relação a produção orgânica/agroecológica. Nesta, o sentido predominante é a do não uso de agrotóxicos como fator de sucesso na produção agrícola e a redução do uso associada à eficiência agrícola. O argumento agronômico se faz presente nas ideias de que a agricultura orgânica requer paciência, sendo a produção sem agrotóxicos difícil, embora possível; a do uso do agrotóxico como prática complexa e opção secundária; e, por fim, no ângulo oposto, a da produção agroecológica como competitiva. Aqui cabe a observação que, mesmo sem ser o nosso objetivo classificar os tipos de discurso que ocorrem na produção jornalística sobre cultivo de alimentos orgânicos/agroecológicos, estes se apresentaram em nossa análise por mencionarem o não uso de agrotóxicos enquanto característica deste tipo de produção – por vezes atrelando os

sentidos

negativos

aos

agrotóxicos

de

forma

inversa,

tratando

estas

produções/alimentos como sustentáveis e/ou saudáveis. Uma estratégia curiosa foi a convocação do argumento econômico, especialmente para o mercado de orgânico, apresentado como demanda de mercado, nicho e oportunidade de sucesso. Enquanto a agroecologia foi primordialmente associada a produção agrícola, junto a orgânica. A perspectiva econômica também apareceu neste tipo de discurso para justificar a redução do uso de agrotóxicos como racionalização, que aumenta a rentabilidade do produtor. Por fim, a produção social de sentidos sobre agrotóxicos como veneno também marcou presença na perspectiva política, o combate aos agrotóxicos como bandeira ambientalista e estratégia de apelo social, sendo apresentados os alimentos livre de agrotóxicos produzidos nos assentamentos (de um movimento social, o Sem Terra). A principal nomenclatura utilizada neste tipo de discurso é a do agrotóxico, sendo a denominação veneno utilizada principalmente nos discursos midiáticos mais alinhados a perspectiva negativa dos agrotóxicos. A comunidade discursiva que encontramos é

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composta pelos seguintes agentes sociais: movimentos sociais, ambientalistas, parte da comunidade científica, parte do governo (Agência Nacional das Águas etc.), pequenos agricultores, produtores e comerciantes ligados ao mercado de orgânico/agroecológicos, assentados, professores, sindicatos de profissionais; agentes de saúde pública; setores da Igreja Católica; agrônomos; especialistas, etc. Uso correto Identificamos o uso correto como outro tipo de discurso, uma vez que concilia e atravessa alguns dos sentidos privilegiados nos tipos de discursos anteriores, sendo, portanto, usualmente secundário aos outros dois. Este só não foi convocado nos jornais O Estado de S.Paulo e o Zero Hora, talvez por estes veículos possuírem posicionamentos mais contundentes (um mobilizou mais os sentidos em torno do veneno e o outro em torno do remédio, como mostra o quadro abaixo), “dispensando” mecanismos conciliadores de discursos. O uso correto aparece como uma tentativa de ressalva, um modo de mobilizar o sentido em direção a um discurso mais “palatável”, especialmente quando o sentido predominante é o negativo. É quase como se o enunciador introduzisse um “mas”, acionando-o toda vez que precisasse estabilizar o sentido da necessidade [do agrotóxico], o do “mal necessário”. Compreendemos que este interdiscurso trabalha a memória discursiva historicamente construída de que os agrotóxicos são imprescindíveis para alimentar a população mundial. O mesmo se dá quando o sentido mobilizado é de que o agrotóxico só é perigoso para determinados tipos de produto, especialmente os alimentos in natura, agricultáveis que brotam da terra. Acreditamos também que os sentidos mobilizados em relação ao combate ao agrotóxico ilegal, contrabandeado ou falsificado, também se alinham ao tipo de discurso do uso correto. Embora estes textos convoquem uma lógica própria, a da lei, onde outros agentes sociais circulam (a polícia que reprime, o poder público que fiscaliza, o criminoso que o falsifica/contrabandeia), de certo modo a produção social dos sentidos aqui se dá em torno do manejo – o problema não é o produto em si, mas o uso que se faz dele. Deste modo, a nomenclatura privilegiada é o agrotóxico e a comunidade discursiva deste tipo de discurso comporta todos os agentes sociais integrantes das duas comunidades discursivas anteriores, bem como acrescenta os agentes e os infratores da lei.

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No quadro abaixo identificamos os tipos de discursos e sentidos privilegiados, além do sujeito-jornal de cada veículo. Cabe aqui ressaltar que identificamos uma grande ambiguidade, na maior parte dos veículos. Sendo assim, este quadro pretende não categorizar cada veículo, mas é um exercício de identificação dos tipos de discursos e sentidos predominantes em cada cobertura jornalística.

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Quadro 5 – Os tipos de discurso mais frequentes e os sentidos privilegiados sobre agrotóxicos em cada jornal Veículo

Sujeito-jornal

Noticia caso LHC

Tipo de discurso privilegiado

A Gazeta

Jornal moderno; defensor do cidadão; objeto de investimento alto e constante; líder no estado

Sim

Veneno

Diário de Cuiabá

Mais antigo; ousado; independente; pioneiro; local; defensor do ambiente

Sim

Uso correto

Diário do Nordeste

Mais do jovem Jornal com identidade empresarial; pioneiro na manutenção de uma página voltada a assuntos ambientais; o impresso mais jovem do Ceará

Sim

Veneno

Folha de S.Paulo

Jornal em constante transformação; jornalismo crítico, plural e apartidário; jornal inovador

Sim

Remédio

Diário do Pará

Jornal moderno; ligado a senador identificado com a Bancada Ruralista; valorização do agronegócio Jornal mais antigo; independência; eficiência; modernidade; criatividade e a rentabilidade

Não

Veneno

Não

Veneno

O Estado de S.Paulo

Sentidos mobilizados sobre agrotóxicos    

Insumo fundamental para produção agrícola Causador de danos à saúde e ao meio ambiente Uso seguro de agrotóxicos Agrotóxico enquanto objeto de disputa políticoideológico  Produto digno de falsificação  Causador de danos ao meio ambiente  Redução melhora eficiência agrícola  Setor de negócio lucrativo, gerador de riquezas nacionais  Gerador de conflitos agrários  Causador de danos à saúde e ao meio ambiente  Defensivo agrícola  Uso seguro  Causador de danos à saúde e ao meio ambiente  Orgânico como saudável  Incrementa produtividade agrícola  Auxilia no combate a ameaças à biodiversidade  “Mal necessário”/ Uso seguro  Causador de danos à saúde e ao meio ambiente  Uso seguro  Prevenção de doença, saúde humana e à vida  Não uso do termo agrotóxico (inseticida/defensivo)  Causador de danos à saúde e ao meio ambiente  Sem agrotóxico - Prática complexa e difícil/protege o ambiente  Fruto de um determinado modelo agrícola.  Orgânico - oportunidade

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 Contra agrotóxico – bandeira ambientalista/ estratégia de apelo social

O Globo

Zero Hora

Local; independência; imparcialidade; qualidade; comprometido com a ética, com a verdade e com o contraditório Jornal de referência local; interativo; plural; defende democracia, liberdade, livreiniciativa e direito a empreender.

Não

Veneno

   

“Mal necessário”/uso seguro dos agrotóxicos Agrotóxico “artificializa” alimento Discurso contrário – movimento sociais Secundário

Não

Remédio

   

Insumo fundamental para produção agrícola Setor de negócio lucrativo Incrementa produtividade agrícola Orgânicos - demanda do mercado/saudável/protege o ambiente/produção paciente/competitiva Potencializadores de danos à saúde Causadores de danos ao meio ambiente Tecnologia como aliada (tanto a redução quanto ao incremento do uso de agrotóxicos) Fabricante como empresa socioambiental Utilização do termo agroquímicos

     Fonte: elaborado pela autora

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O quadro apresentado nas páginas anteriores nos permite algumas reflexões. A primeira é a quase unanimidade na convocação dos sentidos negativos em relação aos agrotóxicos, tornando o tipo de discurso do agrotóxico como veneno privilegiado na maioria dos veículos – a exceção fica por conta do Diário de Cuiabá, que apresentou dois textos, a Folha de S.Paulo e o Zero Hora. Como não poderia deixar de ser, tal como ocorre no interior do enunciado (que não é uno nem puro), a unicidade é apenas aparente. Nenhum dos veículos apresentou sentidos privilegiados em uma única direção. Inclusive uns, como o Diário do Pará, transparecem de modo contundente suas contradições, ao evocar sentidos diametralmente opostos (o inseticida como àquele que envenena e mata, e como aquele que protege à saúde humana e à vida). O Diário do Nordeste, veículo que apresentou mais textos sobre agrotóxicos no período (11 no corpus ampliado e quatro no reduzido), visibiliza mais a produção de sentidos dos agrotóxicos enquanto veneno. No entanto, no mesmo texto em que trata o insumo como veneno que mata no atacado, encontramos também a ressalva se usado de forma indiscriminada. O DN possui ainda, predominantemente, o tipo de discurso que apresenta o agrotóxico como um remédio, cujo setor é um negócio lucrativo que gera riquezas para o país. Os jornais O Globo e A Gazeta, embora também evoquem predominantemente o ponto de vista negativo sobre a questão, se utilizam de estratégias sutis para mobilizar outros sentidos, como o uso recorrente do termo defensivo agrícola em A Gazeta, textos que o apresentam como investimento e cujo risco à saúde está condicionado à concentração, e a também convocação do sentido do uso seguro, além ausência de aprofundamento sobre o tema, tratado como questão secundária em O Globo. O jornal Folha de S.Paulo, que se autodenomina pluralista, realmente apresenta uma diversidade de tipos de discurso em relação aos agrotóxicos. Enquanto um texto evoca a saúde trazida pelos orgânicos e um outro lembra as intoxicações de trabalhadores da indústria que ainda buscam indenização, três outros textos convocam argumentos de que o insumo incrementa a produtividade agrícola, auxilia no combate a ameaças à biodiversidade e, pode causar danos ambientais, mas, se usado de modo correto, isto pode ser minimizado. Deste modo, optamos por inferir que o tipo de discurso privilegiado fosse o do remédio.

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Um aspecto que é interessante mencionar foi a nomeação encontrada em cada veículo. Fairclough (2001), ao rebater a natureza ‘arbitrária’ do signo implicada na análise sausseriana, afirma que as “abordagens críticas da análise de discurso defendem que os signos são socialmente motivados, isto é, que há razões sociais para combinar significantes particulares” (FAIRCLOUGH, 2001, p.103). Em relação aos agrotóxicos, essas motivações são mais transparentes do que a opacidade da língua geralmente nos revela. A adoção do termo agrotóxico na Constituição de 1988 foi uma conquista considerada importante pelos movimentos ambientalistas, uma vez que sufixo -tóxico privilegia o sentido de perigo imbuído nestas substâncias. Foi esta nomenclatura a mais recorrente nos textos analisados. Com raras exceções, podemos notar que, no nosso caso, estas motivações estão mais evidentes, uma vez que as nomenclaturas reforçam outros traços já encontrados nos textos. A opção por utilizar o termo “veneno”, observada em algumas poucas matérias, esteve associada a textos que privilegiaram sentidos negativos em relação a estas substâncias. Já o termo “defensivo agrícola”, adotado até os dias atuais pela indústria do agronegócio, remete a noção de substância benéfica para a lavoura, que serviria para proteger a plantação das tão temíveis pragas. Esse termo foi encontrado fortemente associado a matérias sobre o agronegócio e em textos que buscavam enfatizar o valor comercial desses insumos, a exemplo dos textos policiais do Diário de Cuiabá. Por fim, notamos alguns deslocamentos em relação a nomenclatura. Se no Diário do Nordeste o defensivo agrícola é substituído pelo defensivo natural para enfatizar a existência de um produto que, de fato, protege o cultivo e a natureza; no Zero Hora encontramos o termo agroquímico como substituto a um dos seus componentes, os agrotóxicos. Acreditamos que a utilização deste termo se deve a uma tentativa maior de “neutralizar” os sentidos vinculados a estes produtos, tão carregados nas nomenclaturas. A opção do Diário do Pará em utilizar defensivos químicos, ao tratar de insumos agrícolas, e inseticidas para as substâncias utilizadas em campanhas de saúde pública, também caracteriza, ao nosso ver, uma tentativa de neutralizar a carga semântica dos termos. No segundo caso, ainda há o “bônus” de se desvincular a associação agrotóxico – mais ligado a insumos agrícolas – e produtos utilizados na saúde pública – destinados a defesa da saúde do indivíduo, incompatível, portanto, com um produto tóxico.

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Apesar das contradições constituírem os dispositivos analisados, os dispositivos apresentaram regularidades suficientes para que possamos inferir o conjunto que constitui o contrato de leitura e daí compreender as singularidades que compõem os veículos que silenciaram sobre o caso do Leite Humano Contaminado. 4.3.2 A ausência do Caso São incontáveis os motivos que podem levar um veículo de comunicação a interditar um discurso, o excluindo do seu repertório noticioso. Herdeiros que somos do pensamento sistêmico, não temos a pretensão de apontar causalidades neste tópico. Simplesmente a realidade é mais complexa do que é apreensível, especialmente por um estudo que se detêm a analisar as pistas materialmente indicadas na superfície do texto. No entanto, insistir na tarefa hercúlea de analisar tantos veículos nos trouxe algumas observações valiosas para esta etapa da análise. Os subsídios fornecidos pelos movimentos anteriores nos possibilitaram refletir sobre algumas possibilidades que levaram ao silenciamento sobre o caso do Leite Humano Contaminado em alguns veículos de comunicação. Entendemos silenciamento como proposto por Orlandi (2007), uma política do silêncio, composto pelo silêncio constitutivo e o local. O silêncio constitutivo é entendido pela autora como próprio da produção de sentidos e necessário ao significar, um efeito do sentido que para se dizer algo se deixa de dizer outro, o não-dito necessariamente excluído. Já o silêncio local, a manifestação mais visível do silenciamento, é da ordem da interdição do dizer, a exemplo da censura, é a produção do interdito. Na censura, “proíbese certas palavras para se proibirem certos sentidos” (ORLANDI, 2007, p.76). Chaparro (2007) lembra que a censura não se dá apenas em relação ao Estado, nem precisa ser institucionalizada. O autor explica como Cemilda Medina (1982) identifica o exercício do ‘poder de censura’ em graus variáveis para os diferentes sistemas políticos, como as ações dessas forças autoritárias sobre o trabalho de coleta e divulgação de informações. “Existem mecanismos mais sutis (e mais eficientes) nas relações de imprensa com o poder, que dificultam ou impedem o livre trânsito de informações da órbita social para a sociedade” (CHAPARRO, 2007, p.97). São esses embates, de relações de forças opostas, que atuam nas sociedades democráticas e é, a partir deles, que a informação é liberada para o público. No entanto, cabe ressalvar

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que a censura aqui é compreendida a nível do discurso, portanto nem sempre ligada a estas condições de produção e ao nível consciente do enunciador. O jornal O Globo circula diversas menções sobre os agrotóxicos no período analisado – onze, em uma primeira posição no corpus ampliado compartilhada com o Diário do Nordeste –, porém somente uma (a anedota) trata exclusivamente do assunto. As menções recorrentes nos indicam que o tema tem relevância dentro dos assuntos investidos pelo jornal, mas ainda é um ângulo desprivilegiado pelo veículo. O fato de a presença de um repórter no lançamento da “Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida” não ter rendido nem uma nota em O Globo reforça a possibilidade do assunto estar sendo conscientemente censurado pelo veículo. Orlandi (2011) nos diz que a censura funciona de diferentes modos. Pelo lado da opressão, quando se proíbe certas palavras (ou assuntos) para se proibirem certos sentidos, ou pelo lado discursivo, quando se proíbe que o sujeito assuma certas posições. “A censura não é um fato circunscrito à consciência daquele que fala, mas um fato discursivo que se produz no limite das diferentes formações discursivas que estão em relação” (ORLANDI, 2011, p.76). Podemos ousar a afirmar que no Globo encontramos esses diferentes mecanismos de censura. Discursivamente, a ausência de centralidade sobre esse discurso, bem como a tentativa de estabilização de sentido pelo texto que circunscreve a menção aos agrotóxicos, nos indica que há uma tentativa de delimitar a ordem do dizível. Já a ausência parcial do caso do Leite Humano Contaminado como notícia, discurso significante legitimado pelo jornalismo, e não só ele – a da Campanha também –, pode ser resultante de uma opção pelo silenciamento consciente. O Diário do Pará se utiliza do silenciamento de modo muito mais sutil, e assim, mais difícil de ser atestado pela materialidade textual: optou por nomenclaturas outras e talvez tenha preferido não abordar o assunto. O veículo quase não abordou temas relacionados ao agronegócio durante o período pesquisado – inclusive o Código Florestal, que impacta de modo contundente os habitantes da região em que este se encontra. E, ao fazê-lo, cita bem superficialmente a questão dos agrotóxicos. No entanto, além de ser gerido por uma família com identificação com os ruralistas, a empresa jornalística é responsável por um prêmio destinado aos empresários do agronegócio da região, demonstrando que identifica este público como sendo o seu leitor imaginado.

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Como em O Globo, optei por classificá-lo como híbrido, pela existência de uma nota sobre uma audiência pública em relação ao caso do Leite Humano Contaminado produzido pela Agência Brasil. Até nisso, porém, o DP é sutil: é recorrente a existência de materiais noticiosos da agência governamental, possivelmente devido a uma redação composta por poucos profissionais. Por fim, a opção por silenciar a própria nomenclatura agrotóxicos ao discorrer sobre DDT e Malathion que, além de aplicações em campanhas de saúde pública, também foram/são utilizados para fins agrícolas, nos remete ao silêncio constitutivo, no qual o não-dito (agrotóxico) é necessariamente excluído. “Se diz ‘x’ para não (deixar) dizer ‘y’, este sendo o sentido a se descartar do dito” (ORLANDI, 2007, p. 73). O contrato de leitura é a principal possibilidade identificada para o silenciamento do Zero Hora. Se, em relação aos agrotóxicos, o jornal se distancia do sujeito-jornal enquanto veículo que oferece pluralidade e diferentes versões dos fatos, a valorização do localismo e a identificação enquanto regional nos leva a acreditar que mais do que o interesse comercial em anúncios ou em outros negócios do conglomerado comercial a que pertence (caso do Diário do Nordeste), o ZH possui um leitor imaginado usuário dos agrotóxicos. Esta impressão pode ser confirmada por ser este um dos dois veículos de comunicação do nosso corpus cujo tipo de discurso predominante foi o do Remédio, ligado a um ângulo positivo sobre os agrotóxicos. Assim o que encontramos neste período de análise do Zero Hora não é muito diferente dos resultados que Gertz, Girardi e Moraes (2013) obtiveram ao analisar discursivamente a cobertura do Código Florestal neste jornal. De acordo com as autoras, o discurso jornalístico do veículo foi permeado pela estabilização do referencial de ator do campo como “produtor rural”, sendo constitutivo desta representação uma formação discursiva bem específica: No Brasil e, em especial, no Rio Grande do Sul grupos ligados ao campo possuem formações imaginárias fortemente estabelecidas. Elas são relacionadas à história da colonização do estado, ao imaginário acerca da imigração europeia, e até mesmo à memória relativa à Guerra de Farrapos, momentos marcantes na história da região e constitutivas da identidade gaúcha. Esta memória discursiva traz consigo um imaginário de luta, sacrifício, produtividade, família e, principalmente, trabalho. (GERTZ; GIRARDI; MORAES, 2013, p.6)

Embora o foco deste estudo seja diferente do nosso, os resultados obtidos por elas indicam um mesmo apagamento. O estudo aponta a predominância da formação discursiva

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produzir sobre a formação discursiva preservar, “em um processo significativo naturalizado dentro do texto e apagado pela aparência de objetividade inerente à prática jornalística” (p.14). Enquanto que nossa observação indica que os agrotóxicos são apresentados no Zero Hora como uma tecnologia imprescindível para se alcançar a produtividade, sendo mostrado no máximo como um “mal necessário”, quando os sentidos da nocividade destas substâncias vazam – o modo pelo qual as palavras silenciadas estão destinadas a significar, segundo nos ensina Orlandi (2011). Diante disso, a opção pelo silenciamento do caso do Leite Humano Contaminado realizado pelo Zero Hora nos parece ser fundamentada no contrato de leitura existente entre o veículo de comunicação e seu leitor. Do mesmo modo que Gertz, Girardi e Moraes (2013) concluem que “ao imaginar o seu leitor como um povo ligado – economicamente e culturalmente – às práticas produtivas do campo, o jornal antecipa a aceitação/rejeição ao seu discurso e, neste processo o adapta a este público imaginado” (GERTZ; GIRARDI; MORAES, 2013, p.14). Acreditamos que este contrato estabelecido entre o jornal e seus leitores tornam desinteressante a publicação de um caso em que os sentidos negativos em relação a matéria-prima utilizada para aumentar a produtividade dos produtores rurais estão proeminentes. Por fim, como não poderia deixar de acontecer em um estudo científico que deve mais propor questões do que fornecer respostas, não conseguimos identificar na análise realizada traços significativos que caracterizassem a ausência de notícias sobre o caso do LHC no O Estado de S.Paulo. Se a existência de um suplemento voltado aos assuntos rurais na época, nos demonstre um contrato de leitura alinhado com os interesses deste setor, o foco no cotidiano dos pequenos e médios produtores rurais nos indica um perfil bem diferente do construído pelo Zero Hora. Os textos encontrados neste suplemento, bem como na maioria das matérias analisadas deste veículo, imprimiam uma produção de sentidos negativa em relação aos agrotóxicos, sendo o seu oposto (alimentação orgânica/produção agroecológica) evocada como prática complexa, mas oportunidade e transformação ambiental. Sendo assim, podemos supor (indo além da nossa posição de observador enquanto analistas) que o silenciamento do jornal sobre o caso seja fruto de um contexto dado, ou pelas próprias condições de produção. Afinal, o Jornal da Band ter exibido o caso na noite anterior ao seu principal concorrente, Folha de S.Paulo, veicular com destaque (chamada de capa) a notícia, pode ter sido um fator preponderante. Nos questionamos se

142

a ideia de sair atrasado, ou ter tomado um furo102, aliado a questões logísticas e à distância da ocorrência do acontecimento para o público mais imediato (os paulistanos), podem também ter influenciado esta opção. Por fim, nos resta questionar a possibilidade de a questão ter “escapado” aos produtores de notícia do veículo, uma vez que não há indicações na superfície textual de que o caso fosse de conhecimento do jornal.

102

Notícia importante publicada em primeira mão por um jornal ou por qualquer outro meio de comunicação de massa.

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5 Leite derramado: a contaminação da pureza O caso do Leite Humano Contaminado (doravante LHC) veio à tona no dia 15 de março de 2011, fruto de uma dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Os resultados obtidos foram divulgados e, a partir do dia 18 de março, se tornaram objeto de matérias jornalísticas. O acontecimento científico virou então um fato jornalístico inserido no enquadramento midiático. Para analisar esta produção jornalística, selecionamos os jornais do nosso corpus que circularam textos sobre o caso em seus suportes impressos: Folha de S.Paulo, Diário do Nordeste, A Gazeta e o Diário de Cuiabá. Neste capítulo, analisaremos os respectivos dispositivos de enunciação a partir de quatro momentos que caracterizam esta cobertura jornalística, nomeados como: o acontecimento, sobre os textos publicados quando o caso foi inicialmente divulgado; a repercussão, destinados a textos que comentam o caso; o desdobramento, destinado a suítes e outras matérias que desdobram o caso; e, por fim, o exemplo, onde se enquadram os textos que denomino aqui de secundários, que apenas mencionam o caso do Leite Humano Contaminado em matérias sobre assuntos relacionados. No total, o corpus reduzido deste estudo é composto por 14 textos, sendo dez primários, que abordam diretamente o caso estudado, e quatro secundários. Quadro 6: Listagem dos textos primários Jornal O acontecimento

A repercussão

O desdobramento

Título

Editoria

Formato

A Gazeta

Pesquisa confirma contaminação

Quinta

Notícia

Folha de S.Paulo

Estudo aponta agrotóxico em leite materno

Cotidiano

Notícia

Diário de Cuiabá

Agrotóxico presente no leite materno, traz tese

Cidades

Notícia

Diário do Nordeste

Agrotóxico no leite

Opinião

Editorial

Diário do Nordeste

Editorial

Opinião

Carta do leitor

Diário de Cuiabá

A radioatividade e o leite contaminado

DC Ilustrado

Crônica*

Diário de Cuiabá

Agrotóxico presente no leite materno

Artigos

Carta do leitor

Diário de Cuiabá

Estudiosos cobram fiscalização do uso

Cidades

Notícia

Diário de Cuiabá

MP tenta frear danos de agrotóxicos

Cidades

Notícia

A Gazeta

Fiscalização Ineficiente

Quinta

Notícia

Fonte: elaborado pela autora

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5.1 O acontecimento A matéria-prima para a notícia de um jornal é o acontecimento. Este pode ser compreendido segundo a ótica de Mouillaud e Porto (2012), na qual o acontecimento é, mais do que a substância que alimenta o ecossistema da mídia, “um fragmento extraído de uma totalidade que por si só não pode ser compreendida” (p.72). Os jornalistas trabalham em um campo com um modelo de acontecimento compatível com a linha editorial do veículo de comunicação, com os interesses comerciais dos anunciantes e com o contrato de leitura estabelecido com o leitor imaginado (BERGER, 2003). Mouillaud e Porto (2012) explicam que o modelo ao qual todo acontecimento se deve conformar é aquele do paradigma atual, o esquema linear do “fato”. Segundo eles, o acontecimento nada mais é do que um fragmento, extraído de uma totalidade que não pode ser compreendida. “Em última análise, a definição do acontecimento torna-se uma definição vazia: é acontecimento aquilo que é definido como acontecimento” (MOUILLAUD; PORTO, 2012, p.84). Oliveira (2014) lembra que os textos jornalísticos estão continuamente atravessados por suas condições de produção e pelas estruturações do dispositivo jornalístico. “Ao serem captados pelos dispositivos jornalísticos, os acontecimentos ganham novas formas e sentidos, e assim serão reconhecidos pelo público” (OLIVEIRA, 2014, p.42). O acontecimento específico que estamos lidando neste estudo, o caso do LHC, não é da ordem do previsto, mas também não o é do inesperado, que irrompe em uma superfície. Nosso objeto empírico é, na verdade, um acontecimento científico, que se torna acontecimento da mídia por etapas. Segundo Mouillaud e Porto (2012), a descoberta científica não pode se tornar um acontecimento, mas sim sua tradução, que pode ser em forma de um artigo, de uma coletiva, de um comunicado etc. “A mídia nunca está ligada diretamente a acontecimentos físicos, mas a uma tradução social que lhe foi dada anteriormente” (MOUILLAUD; PORTO, 2012, p.93-94). No caso do nosso estudo, o acontecimento foi previamente inserido dentro do enquadramento científico de uma dissertação, mas emergiu na tessitura midiática a partir da defesa de mestrado da pesquisadora e da divulgação dos resultados da pesquisa, antes que o rito acadêmico fosse completamente finalizado e a dissertação se tornasse pública. Portanto, o que temos neste primeiro momento é um acontecimento construído a partir da “tradução” dos resultados pelos pesquisadores, mediado pelos jornalistas.

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A Folha de S.Paulo noticiou a presença de resíduos de agrotóxicos no leite materno por 20 vezes, entre de 1970 e 2010. No entanto, em 2011, quando o caso do “Leite Humano Contaminado” veio à tona, foi tratado como um acontecimento inédito pelo veículo de comunicação, com destaque na chamada de capa e sem qualquer menção à existência de estudos ou acontecimentos anteriores a este. Poderíamos inferir que o ineditismo implícito no jornal seria um modo de demarcar que foi o primeiro a noticiar o caso em um veículo impresso103, mas, de fato, todos os jornais que noticiaram o acontecimento apresentam este traço. Acreditamos assim que esta forma de noticiar está presente no fazer jornalístico em si, uma vez que o modo pelo qual se constitui a rede de acontecimentos noticiados resulta em uma Atualidade constante, que parece sem memória “porque é feita de presentes que se apagam uns aos outros. O jornal não faz memória, e a coleção de um jornal não tem existência para o seu leitor. É a seu presente que ela é ligada e é nele que ela encontra sua evidência” (MOUILLAUD; PORTO, 2012, p.93).104 Seguindo a tradição da busca pela “objetividade possível” preconizada por este jornal (MANUAL, 2011), a matéria105 “Estudo aponta agrotóxico em leite materno” apresenta duas linhas finas106: a primeira, logo abaixo do título, anuncia: “Pesquisa em cidade do MT de 45 mil habitantes detecta presença da substância em amostra coletadas em 62 mulheres”. Já a segunda, em negrito e acima da assinatura, complementa: “Em algumas, havia até seis tipos do produto; toxicologista diz que contaminação põe em risco saúde de crianças” (grifo nosso). A matéria mereceu chamada de capa do jornal e foi a única na No jornal O Globo há uma menção ao que parece ser o caso no dia 05 de março (“Mês da mulher marcado por ocupações do MST”, O País, p.4), dez dias, portanto, antes da defesa da dissertação, data que consideramos como ponto de partida para a pesquisa emergir na esfera pública. Acreditamos que a citação se refere ao caso, mas, como não há referências precisas e o caso aparece em uma menção pontual antes da defesa pública da pesquisa, optamos por considerar como a primeira notícia veiculada em jornal impresso a que aparece na Folha de S.Paulo duas semanas depois. Descrevemos melhor a menção na análise do corpus ampliado no capítulo 4. 104 Embora a Atualidade Constante seja o padrão jornalístico para grande parte dos leitores, os autores declaram podemos ler o jornal em vários níveis. “O primeiro é um processo sem começo nem fim que, a cada dia, extingue um passado (aquele do número precedente) e abre um novo presente. O segundo permite ler, a cada dia, o mapa do mundo em suas linhas divisórias, algumas móveis (históricas), outras permanentes (temáticas). Por último, o terceiro liga os presentes da informação aos anéis da história que os encadeia” (MOUILLAUD; PORTO, 2012, p.132). 105 Compactuamos com a definição de Rabaça e Barbosa, em “Dicionário da Comunicação” (2002), que preconiza que a matéria é o termo genérico dado para tudo o que é publicado, ou feito para ser publicado, por um jornal, revista, radiojornal ou telejornal, incluindo textos (notícias, artigos, crônicas, notas etc) e ilustrações (visuais ou sonoras). 106 Linha fina é o jargão jornalístico para o subtítulo. É a frase que aparece abaixo do título, com letras maiores do que o texto e menores do que o título. Serve para completar o sentido, fornecer mais informação e/ou destacar aspectos considerados relevantes do texto. 103

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página, embora o texto ocupe somente a metade do espaço da dobra superior, sendo a maior parte da página dedicada a um anúncio de uma rede de atacados. Figura 13: capa sobre o caso LHC na Folha

A ideia, exposta logo na linha fina, de que o que está em jogo com o acontecimento apresentado ser o risco que as crianças correm pela exposição ao agrotóxico, nos indica que o risco é o principal argumento evocado nesta matéria. O texto inicia com a revelação de que o leite materno das mulheres de Lucas do Rio Verde está contaminado: “O leite materno de mulheres de Lucas do Rio Verde, cidade de 45 mil habitantes na região central de Mato Grosso, está contaminado por agrotóxicos, revela uma pesquisa da UFMT (...) a presença de agrotóxicos foi detectada em todas”. Após informar os dados básicos do estudo (amostragem, período da coleta e resultados – sem especificar as substâncias), o texto traz a voz de um toxicologista para ressaltar o risco contido na revelação. Essas substâncias podem pôr em risco a saúde das crianças, diz o toxicologista Félix Reyes, da Unicamp. "Bebês em período de lactação são mais suscetíveis, pois sua defesa não está completamente desenvolvida." Ele ressalta, porém, que os efeitos dependem dos níveis

147 ingeridos. A ingestão diária de leite não foi avaliada, então não é possível saber se a quantidade encontrada está acima do permitido por lei. "A avaliação deve ser feita caso a caso, mas crianças não podem ser expostas a substâncias estranhas ao organismo", diz Reyes. (CANCIAN, 2011, p. C3)

A ideia de que a probabilidade de pôr em risco a saúde é maior por se tratar bebês, sem defesa completamente desenvolvida e, portanto, suscetíveis, é ressaltada pela contaminação estar presente no leite humano – notemos que a exposição por outros meios, entre eles a placenta ou o próprio leite artificial, sem mencionar o ambiente, não é sequer citada. A exposição aos agrotóxicos aqui aparece como algo perigoso, que não deveria acontecer a crianças, pondo em risco a saúde delas, evocando o sentido de absurdo no acontecimento mencionado. A matéria também endossa a ideia do risco a saúde, ao evocar a periculosidade de uma das substâncias, citando que o DDE é derivado de um insumo já proibido (DDT) por causar infertilidade masculina e abortos espontâneos. Embora a ideia de (se) arriscar comporte também um sentido positivo (associado às características de ousadia, coragem etc.), o conceito de risco107, especialmente em relação à saúde, refere-se principalmente a eventos negativos e “de um que-fazer para evitá-los, crescentemente orientado para viabilizar que os indivíduos autogerenciem suas respectivas cotas de riscos, mediante o uso racional das informações que lhes são disponibilizadas” (CARDOSO, 2012, p.18). Na Sociedade de Riscos108, o conceito de fator de risco generalizou um estado de quase-doença, onde a morte virou um evento a ser adiado a todo custo, por meio de um “cuidado crônico de si”: “Além de fazer com que a morte não faça parte da rotina e de definir esta como o esforço de evitá-la, o conceito 107

A noção de risco é objeto de estudo de quatro grandes campos/disciplinas: as ciências econômicas, a epidemiologia, a engenharia e as ciências sociais (CASTIEL et al, 2010); e pode ser abordada por diferentes perspectivas: epistemológica, histórica, sociocultural (CZERESNIA et al, 2013). Diferentes campos do conhecimento conceituam o termo desde século XIX, atribuindo ao risco significados diversos. Assim, o risco deve ser percebido como um produto histórico-social. Definir o conceito de risco torna-se particularmente difícil em face do caráter polissêmico e dúbio do mesmo: de um lado, como expressão científica e econômica do controle da natureza e do futuro, tendo por base a evolução dos vários campos científicos e do cálculo probabilístico; de outro, como consequência dos problemas à saúde e ao meio ambiente decorrentes do desenvolvimento científico e tecnológico (PORTO, 2012). Outro fator que tem um peso elevado na construção sóciohistórica da noção de risco é o próprio individualismo crescente na sociedade contemporânea (CZERESNIA et al, 2013). Com a percepção das pessoas como indivíduos autônomos, tanto moralmente quanto socialmente, e assim responsáveis pelos seus próprios corpos, nada mais natural do que a tentativa de controle sobre qualquer fator externo indesejável. 108 O sociólogo Ulrich Beck cunhou em 1986 o termo Sociedade de Risco, para designar a lógica sob o qual se rege a sociedade moderno-tardia, fundada em ameaças originadas do progresso científico-tecnológico, no qual o risco é um ser etiológico praticamente onipresente. Lupton (1999) traz à tona os tempos medievais (onde a morte estava a cada esquina, a ponto de ser banal) para lembrar que nunca vivemos tanto, nem em uma época com tantas garantias. Paradoxalmente, nunca nos sentimos tão inseguros. A autora argumenta que a noção de risco ocorre na modernidade para substituir as incertezas, transformando um universo indeterminado por um que pode ser manejado, através do mito estatístico.

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cria uma separação existencial nova, entre o tempo em que se pode cuidar de si e o terminal, quando as esperanças são perdidas de uma vez e para sempre” (VAZ et al., 2007, p. 153). Essa abordagem do risco a ser evitado custe o que custar, além de desconsiderar que a vida se afirma em alternativas nem sempre controláveis, sendo o risco um aspecto intrínseco ao padrão evolutivo da vida, reduz a complexidade dos processos a fatores técnicos, criando a falsa impressão de controle. O jornalismo exerce um papel essencial na construção social da percepção do risco à saúde, tomando para si o papel de vigilante público que alerta a sociedade sobre os fatores de riscos e suas consequências. Ao lado de questões de promoção de saúde, os fatores de riscos se configuram como uma questão basilar na cobertura midiática contemporânea sobre saúde (OLIVEIRA, 2014). O termo risco se apresenta na matéria da Folha de S.Paulo na fala de um toxicologista, o que legitima ainda mais este argumento, visto que o discurso do médico/especialista tem papel preponderante na construção do verdadeiro na narrativa midiática. Por não serem considerados autoridades em saúde pública, os meios de comunicação negociam com a fala com os especialistas para dar credibilidade à sua versão. “Seu poder consiste em selecionar, de tudo o que os peritos dizem, aquilo que irá aparecer em suas páginas” (VAZ; CARDOSO, 2011, p.2). Na sugestão de uma suposta insuficiência da pesquisa, o enunciado traz embutido a condicionalidade do risco, informando que os efeitos dependem dos níveis ingeridos. No entanto, inexiste uma quantidade mínima de resíduos químicos no leite humano regulamentada por lei. Esta noção está amalgamada com o interdiscurso do “uso seguro” de agrotóxicos, que aqui aparece deslocado, para uma exposição segura, cujos efeitos vão depender dos níveis ingeridos que, por sua vez, terá a segurança garantida pela lei. Após o intertítulo “MÁ-FORMAÇÃO”, o texto segue a construção do risco à saúde existente na exposição ao leite humano contaminado, enfatizando que 19% das participantes da pesquisa relataram já terem sofrido aborto espontâneo, além de casos de má-formação fetal e câncer. Novamente, porém, o sujeito da enunciação tenta relativizar o sentido produzido anteriormente: “(...) não é possível afirmar se os casos são consequência da ingestão de agrotóxicos”. O texto principal termina com a informação retirada do estudo de que mais de 5 milhões de litros de agrotóxicos foram utilizados no município em 2009, sem contextualizar o que este dado representa, reforçando, ao nosso

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ver, o sentido anteriormente construído, e logo relativizado, de danos à saúde causados pela exposição. Figura 14: matéria sobre o caso LHC na Folha de S.Paulo

Ainda abaixo do título, como se fizesse parte da mesma matéria, o assunto continua a ser abordado em uma notícia coordenada. O chapéu “Outro lado” anuncia que até então somente um lado fora mostrado (o da ciência e saúde? Já que a autora do estudo e um toxicologista são convidados a se pronunciar). O título complementa a informação sobre qual lado é este e qual teor da contestação que será apresentada: “Associação afirma que danos à saúde não são provados”. A partir de então, a coordenada segue construindo a argumentação de desqualificação do estudo, mesmo com a instituição admitindo “desconhecer detalhes da pesquisa”. Na coordenada, os sujeitos do enunciado são a Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andev), representante dos produtores de agrotóxicos, e a Secretária de Saúde de Mato Grosso, que, em graus diferentes, buscam relativizar os resultados encontrados no estudo. É interessante observar que, mesmo na Folha de S.Paulo, que possui uma página diária dedicada aos estudos científicos (editoria Ciência), o tema foi abordado na editoria Cotidiano. Novamente, padrão que se repete nos outros textos – à exceção dos textos

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sobre a repercussão, veiculados em páginas de Opinião, nas quais o caso é usado como exemplo, todo o corpus reduzido está situado em editorias mais gerais (Cidades, Cotidiano, Quinta) – e nos faz questionar se o assunto fora tratado de fato como um acontecimento científico ou, por acarretar em consequências pragmáticas na vida cotidiana e ser apresentado desprovido da “legitimidade” científica assegurada pela dissertação/artigo científico, fora inscrito como um acontecimento inesperado ou entrópico (OLIVEIRA, 2014), aquele que irrompe no cotidiano com a força do imprevisível, ganhando assim notoriedade (BERGER, 2003). Essa questão se fortalece ainda mais com a presença do questionamento da validade científica evocada nos discursos sobre o outro lado. Por um lado, apesar de desconhecer o estudo, a Andev diz que “a avaliação de estudos toxicológicos é complexa” e que “faltam estudos que comprovem prejuízos à saúde provocados por produtos usados adequadamente”. Uma citação literal e não nomeada (não há informação se é dita por um representante ou por uma nota emitida pela entidade) ratifica a improbabilidade de o estudo indicar que a exposição aos agrotóxicos implica em danos à saúde: “Não há evidências científicas de que, quando usados apropriadamente, os defensivos agrícolas causem efeitos à saúde”. Vale notar que o desconhecimento do estudo não é impeditivo para que o sujeito do enunciado destaque que não há evidências científicas que demonstrem os efeitos à saúde causados pelos agrotóxicos, nos indicando deslegitimação do estudo em questão. O tipo de discurso do uso correto (usados adequadamente/apropriadamente) também está presente neste enunciado, evocando a ideia de que se causar danos é porque o agrotóxico não foi usado de maneira correta. Pelo outro lado, a secretaria de saúde do Mato Grosso, mesmo prometendo “avaliar a situação atual”, compara o estudo em questão a uma pesquisa feita anteriormente que detectou problema semelhante, quando foram aplicadas multas: “O caso ‘não se tornou um problema de saúde’ na época”. O enunciado ambíguo deixa o destinatário em dúvida: além de não explicitar qual foi o problema detectado, não há clareza se o estudo não comprovou prejuízos à saúde ou se, do modo pelo qual foi tratado, este não se tornou um problema para a secretaria de saúde na época. Os sentidos privilegiados nesta coordenada são a do agrotóxico enquanto produto incapaz de causar problemas à saúde, se usado adequadamente (estratégia do uso seguro utilizado

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como condicionalidade para negar o perigo das substâncias); do discurso científico enquanto agente legitimador dos efeitos à saúde causados por estas substâncias e, por fim, de que os agrotóxicos são um problema, que deve ser avaliado e, se for caso, punido, mesmo que com multas. Outro aspecto que nos chama a atenção é que em todo o texto é utilizado o termo agrotóxicos, restando para a citação literal a única referência a terminologia “defensivos agrícolas”. Lembrando que toda denominação apaga outros sentidos possíveis (ORLANDI, 2007), a restrição do segundo termo a uma citação presente na coordenada do “outro lado” já nos diz muito. Sendo as nomeações típicas dos pré-construídos (ARAUJO, 2000; ORLANDI, 2010), quando o sujeito da enunciação aciona em sua memória discursiva as imagens construídas dos sujeitos, ao optar por utilizar exclusivamente a terminologia agrotóxico, o texto privilegia o sentido de substância tóxica a produto de defesa vegetal. Esta matéria é a única que a Folha de S.Paulo dedicou integralmente o assunto. O tema, entretanto, foi citado em outros dois textos no período pesquisado e serão descritos no tópico “o exemplo”. Figura 15: capa sobre o caso LHC em A Gazeta

Os veículos de comunicação impressos de Cuiabá noticiaram o caso um dia após o assunto ser chamada de capa da Folha de S.Paulo. Os dois jornais diários que integram o nosso estudo responderam do mesmo modo à emergência do caso: foi notícia principal e

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gerou chamada de capa. No entanto, em um deles, A Gazeta, o assunto rendeu mais uma reportagem (com coordenada) durante o período analisado, enquanto o Diário de Cuiabá dedicou outros dois textos a repercussão e dois ao desdobramento do caso. A primeira matéria que o jornal A Gazeta apresentou sobre o caso do Leite Humano Contaminado, “Pesquisa confirma contaminação”, foi veiculada no dia 24 de março de 2011. Portanto, um dia depois da “explosão” nacional do caso, que teve chamada de capa no jornal Folha de S.Paulo e foi intensamente noticiado em websites e telejornais. A data indica que os jornais impressos locais (o Diário de Cuiabá também noticiou o caso pela primeira vez neste dia) foram surpreendidos pela repercussão nacional da notícia, nos sugerindo duas possibilidades: ou ignoraram o fato quando foi veiculado inicialmente pelos sites e telejornais locais109, adquirindo noticiabilidade após a veiculação nacional; ou realmente o acontecimento só foi capturado quando a notícia teve alta exposição em mídias nacionais. De todo modo, a presença das vozes da autora do estudo, do seu orientador, além do “outro lado” personificado pelo secretário municipal, indicam que os repórteres buscaram um aprofundamento maior do que o dado no dia anterior pela mídia impressa nacional. Apesar de não se configurar como um “furo de reportagem”, nem mesmo ser uma notícia exatamente “quente”110, a importância e a proximidade com o público do jornal foi o suficiente para esta notícia ser digna de uma chamada de capa – e não uma qualquer: a matéria é apresentada em duas colunas na capa, no lado esquerdo inferior, com elementos de destaque que indicam ser esta a terceira em ordem de importância, abaixo da manchete (sobre uma possível auditoria na secretária de educação) e de outra chamada. Na capa, o nome da cidade está indicado em um chapéu em letras de forma e em vermelho, seguida pelo título “Agrotóxicos contaminam leite materno, diz estudo”. Abaixo está uma foto ilustrativa (uma cabeça de um bebê defronte a um seio, sugerindo a amamentação e evocando a sacralidade do ato, com a legenda “100% das mães que participaram da pesquisa tinham no leite a presença de defensivos agrícolas”), a chamada é composta pelo lide da matéria sem modificações e a indicação da página em negrito. 109

Nossa pesquisa, relatada no capítulo 3, indica que ao menos três veículos locais circularam informações sobre o caso anteriormente: os sites 24HorasNews e Turma do Epa; e o telejornal Jornal de Mato Grosso, exibido pela afiliada da Band no estado, além de um blog de abrangência nacional, o Blog do Nassif. 110 Notícia quente é o jargão jornalístico utilizado para se referir a matérias sobre acontecimentos atuais, que precisam ser publicadas imediatamente para mante o compromisso do veículo com a Atualidade a qual se propõe. É o contrário de notícia “fria”.

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Principal notícia da página, o texto se divide em um principal e um coordenado, embora apresente uma diagramação confusa – a coordenada está embaixo da matéria principal à direita, enquanto uma nota sobre um outro assunto (a negativação de crédito dos devedores de pensão alimentícia) está na mesma posição, mas do lado esquerdo, sem nenhum indicador diferencial que informe ao leitor que se trata de outro tema, levando o mesmo a ler esta nota antes da continuação da matéria – ou nem chegar a ela. Tanto a matéria principal quanto a coordenada apresentam fotos ilustrativas de arquivo (a primeira de um bebê, desta vez de lado, mamando em um seio; e a segunda de pessoas em uma aglomeração). Além disso a matéria contém um olho no centro da matéria principal (Compra de defensivos pelo Estado ultrapassou US$ 1,2 milhão em 2009) e é assinada por uma repórter (Renata Neves) sob a rubrica de “Especial para a Gazeta”, sugerindo que a jornalista não faz parte do quadro de profissionais fixos do jornal – embora as outras duas matérias veiculadas pela Gazeta sejam assinadas pela jornalista. Figura 16: matéria sobre o caso LHC em A Gazeta

O título do texto apresenta a contaminação como algo dado, mas mais do que isso: um fato que foi constatado, estando implícito, portanto, uma suspeita preexistente, visível pela utilização do verbo confirma [uma suspeita ou um resultado anterior, que não aparecem no texto]. Esta estratégia enunciativa também ocorre no lide da matéria:

154 O leite materno de mulheres do município de Lucas do Rio Verde (354 km ao norte de Cuiabá) está contaminado por agrotóxicos. A situação foi detectada por uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Foram analisadas amostras de leite materno de 62 mulheres - 59 da zona urbana e 3 da zona rural – e 100% delas apresentaram contaminação por pelo menos 1 tipo de defensivo agrícola. Em 85% das amostras foram encontradas mais de 1 tipo e outras chegaram a apresentar 6. (NEVES, 2011, p. 4B, grifo nosso)

A utilização do termo contaminação para se referir a presença de resíduos de agrotóxicos no leite humano nos indica uma escolha em mobilizar sentidos negativos associados à exposição a estes insumos. No entanto, a utilização da nomenclatura defensivo agrícola aponta para um atravessamento de outro tipo de discurso, a do remédio, que entende o agrotóxico enquanto “protetor do cultivo”. Ainda assim, o texto segue privilegiando o tipo de discurso do veneno, apresentando a contaminação como resultado de um determinado modelo agrícola, evocado pelos pesquisadores. O município, de acordo com a pesquisa é um dos maiores produtores de grãos de Mato Grosso, cultivou 410 mil hectares de soja e utilizou cerca de 5 milhões de litros de agrotóxicos em 2009. A bióloga Danielly Palma, autora da pesquisa, observa que os índices de contaminação são resultados de anos de exposição a agrotóxicos, uma vez que muitos não são utilizados há décadas no país, como derivados do diclorofeniltricloroetano, o DDT. Em 1998 foi proibido o uso desta substância em campanhas de saúde pública e, em 2009, foi vetada a fabricação, importação, exportação e comercialização. Encontrado em 76% das amostras, o agrotóxico Endosulfan é considerado altamente tóxico e por isso foi proibido em 45 países (NEVES, 2011a, p. 4B, grifos nossos)

Os elementos destacados acima nos orientam como este enunciado produz o sentido de que a contaminação é consequência de uma exposição prolongada, agravada pela utilização de produtos altamente tóxicos (e por isso proibidos). Além disso, a tentativa de direcionar a produção de sentidos sobre a causalidade é pré-estabelecida com a convocação de dados atualizados sobre a utilização massiva desta categoria de substâncias no estado. A única citação literal do texto principal é atribuída ao orientador do estudo, Wanderlei Pignati, e ajuda no esforço de compreensão da causalidade do problema empreendido na matéria: “As plantações ficam muito próximas das comunidades rurais. Por isso, os agrotóxicos afetam não apenas o trabalhador responsável pela pulverização das plantações, mas também toda sua família”. Apesar desta construção, a associação uso intensivo de agrotóxicos resulta na contaminação permanece nas fronteiras geográficas

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do Mato Grosso, ficando a cargo do leitor, de posse desses discursos, mobilizar os sentidos e extrapolar a possibilidade de ocorrência para outros territórios. Por fim, diferentemente da Folha de S.Paulo, aqui o sentido convocado para explicitar a periculosidade apresentada pelos produtos é o da associação com um caso de máformação, devidamente relativizada (“só estudos mais aprofundados poderão afirmar se possui relação com a exposição aos produtos”). Neste caso, a contaminação do leite materno seria uma outra consequência do alto consumo de agrotóxicos. Os possíveis perigos para o bebê que se expõe a estes resíduos não são apresentados, deixando implícito a periculosidade decorrente desta exposição. O sentido de possíveis danos à saúde é reforçado pela ressalva que a amamentação deva ser continuada ainda que o leite esteja contaminado, apresentada no final do texto: Apesar da contaminação encontrada no leite, a bióloga ressalta que o aleitamento materno não deve ser interrompido. “Os benefícios do aleitamento são importantíssimos, tanto para o bebê, quanto para a mãe. Em caso de dúvidas, as mães devem procurar orientação médica” (NEVES, 2011a, p. 4B, grifos nossos).

Similarmente ao apresentado na Folha de S.Paulo, a coordenada “Pesquisa será avaliada” traz o outro lado sobre a questão, a “resposta” dada pela prefeitura em uma nota assinada pelo secretário municipal de agricultura e meio ambiente Edu Pascoski. O argumento da deslegitimação do estudo científico aqui aparece de modo mais sutil: mesmo sem ter acesso a pesquisa, o sujeito do enunciado afirma que esta levou em consideração um episódio já superado. A contradição do texto se apresenta em outro momento, onde o secretário assegura que está disposto a “buscar as soluções necessárias”, para depois justificar a necessidade do consumo intensivo de agrotóxicos no município, reiterando a relação de causalidade entre o acontecimento e o modelo agrícola mais amplo, construída no texto principal. A Prefeitura de Lucas do Rio Verde informou que ainda não recebeu cópia da dissertação de mestrado da bióloga Danielly Palma. O secretário municipal de Agricultura e Meio Ambiente, Edu Pascoski, garante que a Prefeitura do município tem interesse nos resultados do trabalho e está disposta a buscar as soluções necessárias. (...) Pascoski diz que o estudo leva em conta a revoada de agrotóxicos que ocorreu em 2007 e atingiu o perímetro urbano. No entanto, segundo ele, o poder público tem tomado as providências necessárias para conter os avanços da agricultura nas áreas urbanas. (...) O secretário também questiona o volume de agrotóxicos divulgado pela pesquisa [embora a coordenada não informe nenhum outro dado] e ressalta que particularidades do município devem ser levadas em consideração. “Diferente de outras regiões, Lucas do Rio Verde

156 possui 2 e até 3 safras anuais, o que aumenta o uso de defensivos” (NEVES, 2011a, p.4B, grifos nossos) Figura 17: capa sobre o caso LHC no Diário de Cuiabá

O Diário de Cuiabá também estampa na capa o destaque dado ao caso em Mato Grosso, no dia 24 de março. A chamada “Pesquisa aponta agrotóxico em leite” é a segunda do lado direito da página, abaixo de uma sobre a auditoria da Seduc e da manchete “Ficha Limpa não vale para 2010 e Leitão ameaça vagas na Ságuas”. A chamada está sob o chapéu “Lucas” e o texto é idêntico ao lide da matéria. A matéria “Agrotóxico presente em leite materno, traz tese” aparece sob um chapéu que indica a cidade onde ocorreu o caso (dessa vez sob o nome completo) e a linha fina “Pesquisa de mestrado da UFM (sic) aponta níveis de contaminação com pesticidas”. Está situada na editoria Cidades, que, pelo índice fornecido no site111, apresenta outros textos com apelo ambiental nesta edição. Os títulos dos co-textos são: nova estratégia de

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O Diário de Cuiabá não fornece a versão digitalizada da edição impressa pela internet, apenas a foto da capa e as matérias transcritas. No índice, podemos visualizar quais outras matérias foram publicadas na mesma editoria.

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combate ao tráfico de drogas; Mato Grosso perde o posto de maior desmatador da Amazônia Legal; chuvas acima da média fazem o rio Cuiabá subir um metro; juiz nega prisão preventiva contra sete dos 29 militares denunciados pela morte do sargento. Esta última notícia compartilha com a analisada a assinatura de Renê Dióz, demonstrando a apuração de duas ou mais pautas em um mesmo dia, procedimento cada vez mais comum com a “crise” do jornalismo e a subsequente precarização das redações jornalísticas. A expressão Da Reportagem abaixo da assinatura nos indica também que este repórter é um profissional fixo do jornal. A matéria é ilustrada por um avião de pequeno porte realizando pulverização aérea em uma lavoura, o que tanto pode indicar a associação entre o modelo agrícola hegemônico (monoculturas extensas que necessitam de um avião para pulverizar agrotóxico) com os resultados informados pela pesquisa, quanto pode servir para acionar a memória discursiva dos habitantes da região sobre a existência de um outro caso de contaminação envolvendo a cidade, a “chuva de veneno” ocorrida em 2006 (ver sobre no capítulo 1). A legenda ajuda a construir identificação entre os leitores mato-grossenses, mobilizando o sentido de que poderia ter acontecido em qualquer local no estado: “Professor explica que a situação não é exclusiva do município, mas acontece em outros da região”. Essa associação se torna explícita ao longo do texto: Relatórios foram enviados a órgãos como secretarias de Saúde e de Agricultura e ao Ministério Público, segundo o pesquisador Vanderlei Pignatti (sic), da UFMT, que considera a situação encontrada em Lucas do Rio Verde como representativa de um contexto maior. Segundo ele, há pelo menos outros 40 municípios em Mato Grosso que utilizam mais de 1 milhão de litros de agrotóxicos por ano nas lavouras do entorno – em Lucas, foram 5 milhões em 2009. (DIÓZ, 2011a, s.p., grifos nossos)

Neste enunciado podemos identificar a presença do sentido proposto pela imagem: o da associação entre a situação encontrada e o consumo intensivo de agrotóxicos, reforçando a ideia de causalidade decorrente do modelo agrícola adotado. Se aqui aparece de modo sutil a tentativa de estabelecer esta associação, a estratégia enunciativa que abre o texto é muito mais incisiva: “Os milhões de litros de agrotóxicos despejados nas lavouras do Estado estão contaminando até o leite materno das mato-grossenses. É o que constatou uma recente pesquisa realizada em Lucas do Rio Verde”. Neste enunciado podemos perceber a presença de outro argumento, a do “absurdo” da situação. O até desta sentença nos remete diretamente a ideia do alimento puro, enfim

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maculado pelos milhões de litros de agrotóxicos despejados nas lavouras. Este sentido também é reforçado posteriormente: “Diferente do leite de vaca (que se alimenta em pastos sujeitos a pulverização), a quantidade de veneno presente no leite materno – o alimento mais importante para o recém-nascido – não é regulada por legislação porque não deveria existir” (grifos nossos). Os enunciados textuais que evocam o leite materno como “puro”, “imaculado” e “intocável”, sendo “absurdo” conter substâncias poluentes, recorrente nos textos que compõem o nosso corpus, podem ser descritos como frutos da presença de três intertextos ou formações discursivas encontradas com frequência no discurso sobre aleitamento materno: o da religião, o biológico e o da saúde. Em sua tese de doutorado, Irene Kalil (2015) destaca que o sagrado (da religião) é uma das vozes mais claramente presentes no discurso sobre aleitamento materno, construindo o discurso da amamentação como uma prática divina. Este discurso remeteria “à abnegação, generosidade e sacralidade da Virgem Maria no cuidado e amamentação de Jesus, imagem bastante arraigada na memória de todas as sociedades que compartilham uma relação mais estreita com a religião judaico-cristão” (KALIL, 2015, p.186). De acordo com a autora, a ideia da amamentação como pilar de uma maternidade sagrada vem sendo reiterada há séculos, por discursos como os da pintura e escultura. Kalil (2015) também enfatiza a importância do higienismo para o reforço deste discurso, visto que imputavam à mulher a responsabilidade pelos filhos – desde a sobrevivência deste ao seu êxito na sociedade. Ao nosso ver, é por meio da memória discursiva que alia o discurso da religião ao da natureza, que considera a amamentação como um comportamento “natural” e, portanto, “dever biológico”, que é construída a concepção de um leite materno natural e sagrado e, portanto, imaculável112. Por fim, o terceiro elemento na referência da construção do “leite puro” é o da saúde, representado pelo enaltecimento dos benefícios do leite humano nos discursos sobre o aleitamento materno, especialmente em campanhas e propagandas oficiais. Esta tônica é transversal na contemporaneidade, “sobretudo por se tornar elemento constitutivo do

Compactuamos com a definição de Almeida (1999) de que a “amamentação, além de ser biologicamente determinada, é socioculturalmente condicionada, tratando-se, portanto, de um ato impregnado de ideologias e determinantes que resultam das condições concretas de vida” 112

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discurso médico-científico, que prioriza a nutrição infantil e centra seu foco no leite materno como produto indispensável à saúde do bebê/criança” (KALIL, 2015, p.191). É justamente a presença deste discurso, do leite puro, natural, saudável e, portanto, sagrado, mesmo implicitamente, que abre espaço para o desenvolvimento do discurso da contaminação do leite humano como o auge do absurdo. A lógica que se segue é: afinal, se o leite materno é veículo de tantos benefícios para o recém-nascido, é “naturalmente” produzido pela mãe ao dar à luz e, assim, é considerado como um ato de amor sagrado em nossa sociedade, como podemos admitir que este alimento tão rico contenha substâncias prejudiciais à saúde? A ideia de que a quantidade de veneno presente no leite materno não é regulada por legislação porque não deveria existir, também presente no enunciado, sugere uma resposta à matéria da Folha de S.Paulo, na qual a toxicologista declarou necessitar da ingestão diária do recém-nascido, comparada a um parâmetro legal, para definir os riscos à saúde destes bebês. Assim, este trecho nos remete ao conceito de memória discursiva, e a do enunciado enquanto elo em uma cadeia de comunicação verbal (BAKTHIN, 2003), que contém em si uma resposta ao enunciado anterior e uma previsão do que será dito no enunciado seguinte. O outro sentido que pode ser convocado com a imagem, o da associação com o caso da “Chuva de Veneno”, é mencionado no último parágrafo do texto, dedicado ao outro lado: Em nota, a prefeitura de Lucas questionou a pesquisa, dizendo que um grupo de trabalho irá avaliar os critérios utilizados, e alegou que o estudo se atém apenas a um episódio isolado ocorrido em 2007, quando um avião pulverizador atingiu o perímetro urbano. Pignatti corrige que o episódio ocorreu em 2006, mas que a pesquisa foi além disso e questiona o comprometimento da produção agrícola local e das autoridades com os limites para pulverização, já que há lavouras “até nos quintais”. (DIÓZ, 2011a, s.p, grifos nossos)

É interessante notar como, possivelmente, a mesma nota foi apropriada de modo diferente pelos dois veículos (A Gazeta e o Diário de Cuiabá). Enquanto o primeiro transforma a nota em um texto coordenado, em que o discurso emitido pelo órgão é destacado, aqui a nota é sintetizada em meio parágrafo, não há a presença da ressalva existente no outro texto (sobre as particularidades que devem ser levadas em conta de Lucas do Rio Verde) e o principal sentido que remete é a da deslegitimação do estudo. O pesquisador tem aqui a chance da réplica, descredibiliza a nota ao corrigi-la, e rebate a crítica com outra, questionando o comprometimento das autoridades com os limites da pulverização. Neste

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trecho podemos notar a ideia do agrotóxico enquanto objeto de luta político-ideológica, já implícita na discussão sobre a culpabilidade do modelo agrícola em relação ao acontecimento em questão. Por fim, os sentidos dos danos à saúde provocados pelos agrotóxicos, permeado pelo do risco, também aparece neste texto: (...) tal como em Lucas do Rio Verde, a presença de agrotóxicos no leite materno, na urina, no sangue e até na gordura da população também é perfeitamente possível, assim como se pode encontrar traços de veneno em poços artesianos, na água da chuva e até no ar – como demonstrou monitoramento de dois anos realizado em pátios de colégios. Um dos agrotóxicos encontrados, o inseticida endosulfan, é um dos mais perigosos à saúde humana e já foi abolido da União Européia (sic) há mais de vinte anos. No Brasil, só será vetado em 2013. (...) Os graves efeitos do agrotóxico no organismo vão de câncer a distúrbios neurológicos e endócrinos. A exposição do corpo da mãe a agrotóxicos – por inalação, ingestão ou contato também representa risco de má-formação para o feto, especialmente nos três primeiros meses de gestação, como fissuras labiopalatinas, cujo impacto físico e psicológico na vida da criança é inestimável. O Hospital Geral Universitário, que há cinco anos tem o único serviço referenciado de reabilitação de más-formações no Estado, atende, em sua maioria, crianças de áreas de lavoura. Mato Grosso é o maior consumidor de agrotóxicos do país – utiliza 20% do total. (DIÓZ, 2011a, s.p., grifos nossos)

O discurso de danos à saúde humana provocado pelos agrotóxicos é construído aqui de modo geral e onipresente (já que, além do leite materno, foi identificado no sangue, urina, até na gordura, poços artesianos, água da chuva e ar, cuja exposição pode ser por inalação, ingestão ou contato), sendo um dos agrotóxicos tão perigoso que foi abolido há duas décadas na União Europeia e será vetado no Brasil só em 2013. Os efeitos à saúde também estão presentes, sem ressalvas, com impactos inestimáveis na vida da criança. O argumento de que os agrotóxicos causam danos, como má-formação fetal, é reforçado pela origem da maioria dos atendimentos deste tipo em um hospital serem de crianças de áreas de lavoura. Deste modo percebemos todo o esforço empreendido pelo enunciado em estabilizar o sentido negativo do agrotóxico, inclusive pelo emprego do termo veneno em diversos trechos, cujo efeito de sentido remete a um produto tóxico à saúde humana que não deve ser utilizado, a não ser que se vise causar danos e morte. 5.2 A repercussão A primeira consequência que percebemos sobre a publicização do caso do Leite Humano Contaminação foi a repercussão. Blogs, fóruns, conversas (virtuais ou reais) demonstram

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que o tema circulou na esfera pública pautado pelos meios de comunicação. Isto pode ser inferido pela constituição da linha do tempo do caso (ver capítulo 3), mas também podemos encontrar no corpus alguns traços desta repercussão. Antes que voltasse a tematizar a cobertura jornalística, o caso foi assunto de crônicas, comentários e editoriais. O Diário do Nordeste abordou o caso do LHC pela primeira vez em um editorial, um mês depois que este veio à tona na mídia (19.04). O editorial113, por sua vez, originou algumas reportagens, publicadas nos dois dias posteriores, que utilizam o caso como gancho para abordar o uso excessivo de agrotóxicos no Ceará. Observamos assim, que mesmo com certo “atraso”, o Diário do Nordeste soube utilizar o caso para ampliar o olhar sobre sua própria região de abrangência. Como todos editoriais publicados no Diário do Nordeste, o “Agrotóxico no Leite” possuiu uma chamada de capa. Enquanto a manchete do dia alardeia que “Faltam leitos em Fortaleza”, sobre as emergências superlotadas devido à epidemia de dengue, a chamada para o editorial anuncia que “a presença de agrotóxicos no leite materno, em Mato Grosso, serve de alerta para o uso destes produtos”. Tradicionalmente, a chamada na capa para o editorial se situa no canto inferior direito da página, em uma linha em verde mais claro do que a logomarca, onde se localizam os elementos institucionais. A diagramação da capa reforça o vínculo institucional embutido no editorial, já considerado como um espaço que expressa a opinião do veículo. No texto, o caso do Leite Humano Contaminado é contado nos três parágrafos iniciais. Logo na abertura é possível compreender a opinião do veículo sobre o assunto: A presença das substâncias tóxicas foi comprovada num grupo de 62 voluntárias. No leite de todas elas foi constatada a contaminação em níveis preocupantes. O fato serve como alerta para o rígido controle sanitário do produto, em face do risco imposto aos recém-nascidos (AGROTÓXICO, 2011, p.2, grifos nossos).

A presença de resíduos de agrotóxicos no leite humano é aqui descrita como uma contaminação em níveis preocupantes e que serve de alerta para se controlar o uso de agrotóxicos. Este enunciado evoca assim, implicitamente, a associação dos agrotóxicos com os danos à saúde, uma vez que os níveis da contaminação são preocupantes. O argumento do uso seguro é também convocado, pois se o alerta é para o rígido controle

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Texto jornalístico opinativo, escrito de maneira impessoal e publicado sem assinatura, referente a assuntos ou acontecimentos locais, nacionais ou internacionais de maior relevância. Define e expressa o ponto de vista do veículo ou da empresa responsável pela publicação (RABAÇA; BARBOSA, 2002).

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sanitário, é porque tal medida asseguraria que não houvesse a contaminação, ao menos não em níveis preocupantes. Por fim, o trecho acima nos traz também a ideia de risco [à saúde dos recém-nascidos], aparecendo aqui como justificativa para o alerta. Figura 18: editorial sobre o caso LHC no Diário do Nordeste

O sentido vinculado aos danos à saúde provocados por estas substâncias perigosas é evocado em outros trechos: Nos elementos identificados no leite materno foram encontradas substâncias proibidas há 20 anos, as quais podem ficar armazenadas no corpo por tempo indeterminado. Dentre eles, o mais recorrente foi o DDE, derivado de um agrotóxico proibido em 1998, porque causaria infertilidade masculina e abortos espontâneos. (...) Das mães participantes dessa pesquisa científica, 19% já sofreram abortos espontâneos. Há também, entre elas, casos de má-formação fetal e câncer. As pesquisas irão investigar as origens dessas enfermidades, pois, a cada ano, são utilizados mais de cinco milhões de litros de agrotóxicos na produção agrícola daquele município. (AGROTÓXICO, 2011, p.2, grifos nossos)

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Além da associação entre a proibição de um agrotóxico e seu perigo, sendo responsável por gerar danos à saúde [e também pelos casos de abortos, más-formações fetais e câncer ocorridos com a “mães contaminadas”], encontramos neste trecho a causalidade inferida: a grande quantidade de agrotóxicos na produção agrícola daquele município. Mais adiante o texto chega a ser mais específico e tenta estabilizar esses sentidos, na utilização dos termos “veneno”, “substâncias cancerígenas contidas nos produtos usados para o combate às pragas nos alimentos” e “produtos letais” para se referir aos agrotóxicos, apontado ainda como “um grave problema de saúde pública”. Delimitado os sentidos privilegiados no texto, o editorial do Diário do Nordeste traça um paralelo com a realidade local, identificando locais passíveis de contaminação no estado. É nesta segunda parte, após a descrição dos “focos de preocupação” cearense, que uma solução é apresentada, a agricultura orgânica: A esperança de modificações no formato produtor dessa região [Planalto de Ibiapaba] reside nas primeiras experiências bemsucedidas de plantio sem qualquer uso de veneno. A agricultura orgânica começa a deslanchar com resultados econômicos satisfatórios e o entusiasmo de quem substituiu o veneno por métodos naturais de cultivo e de combate às pragas. Os primeiros ganhos financeiros vêm estimulando adesões. (AGROTÓXICO, 2011, p.2, grifos nossos)

Após a mobilização de sentidos negativos em relação aos agrotóxicos, é apresentada ao leitor a ideia de que a agricultura orgânica é a esperança. O enunciado convoca o argumento do retorno econômico para assegurar que o plantio sem qualquer uso de veneno vem obtendo sucesso, deslanchando com resultados econômicos satisfatórios e ganhos financeiros que estimulam adesões. Cabe aqui lembrar que o estímulo à agricultura orgânica e o combate ao uso exacerbado de agrotóxicos vêm sendo temas recorrentes do Diário do Nordeste, cujo grupo econômico detém duas empresas de produção agrícola orgânica, como dito anteriormente. O editorial, porta-voz do sujeito-jornal, nos diz, deste modo, que a orientação editorial do periódico é enaltecer o cultivo orgânico em detrimento do químico-dependente. A ênfase na solução proposta é reafirmada ainda no final do editorial: “A pesquisa agronômica avança na viabilização de insumos naturais para o controle fitossanitário. Falta, contudo, a disseminação do seu uso em substituição aos produtos letais”. Além do editorial, o DN apresentou, durante o período pesquisado, outro texto exclusivamente dedicado ao caso. Trata-se de uma carta do leitor, publicada no dia

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seguinte ao editorial. Dividindo espaço com outras cinco cartas na seção “Leitores”, a mensagem publicada é curta e direta: Enquanto o leite materno se encontra contaminado no MT, em Limoeiro do Norte e outras regiões do Ceará, continua o uso indiscriminado de agrotóxicos. Nenhuma providência séria é tomada pelo Executivo ou pelo Judiciário, que se mostram complacentes. (COSTA, 2011, p.2)

O texto sintetiza bem a mensagem valorizada pelo editorial do dia anterior: enquanto a situação lá está deste modo, aqui caminhamos para condição similar. O leitor vai além do “controle sanitário flexível”, sugerido vagamente pelo jornal, e indica diretamente os responsáveis por tal situação: os poderes Executivo e Judiciário, que, ao não tomar medidas enérgicas de controle ao uso indiscriminado desses insumos, se mostra complacente. Devemos destacar que, neste dia, fora manchete o uso indiscriminado de agrotóxicos no município mencionado. Analisamos este texto no tópico “o exemplo”. Uma carta do leitor sobre a questão também foi publicada no Diário de Cuiabá no dia 3 de abril, segundo domingo após a publicação do caso. Figura 19: comentário sobre o caso LHC no Diário de Cuiabá

Na carta, o leitor ressalta a importância do assunto ao afirmar que o caso é sério e deve ser apurado com muito cuidado. O texto ainda traz, erroneamente, a ideia de ineditismo do caso (“primeiro caso no mundo de contaminação”), sem que o veículo de comunicação, responsável pelos textos que circula, corrigisse esta informação. Assim, se a ausência de outros casos ao longo dos textos analisados convoca implicitamente o sentido de ineditismo, o Diário de Cuiabá permite aqui o reforço explícito a este direcionamento ao circular esse texto sem ressalvas. Neste mesmo dia, o Diário de Cuiabá publicou uma crônica sobre o tema, cuja assinatura “da editoria” contém um asterisco que informa que o texto foi retirado de um blog,

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alimentado pelo editor do caderno que o circulou (DC Ilustrado), Lorenzo Falcão114, nos indicando, de certo modo, uma promoção do blog pessoal pelo mesmo. O caderno “DC Ilustrado” é o espaço dedicado aos assuntos culturais e literários, e a crônica “A radioatividade e o leite contaminado” inicia com referência a um seriado japonês da década de 1960, National Kid, no qual um personagem dizia “Celacanto provoca maremoto”. Mesmo admitindo que a frase é estranha, misteriosa e sem sentido, o texto afirma que “de lá para cá, me parece, a população de Celacantos vem crescendo”, sem deixar explícito o que pretende afirmar com este enunciado. Em nosso estudo, podemos perceber que o texto aciona a intertextualidade, uma vez que uma crônica publicada dias antes no jornal O Estado de S.Paulo, trazia essa mesma referência115. A população de celacantos da crônica se refere a dois acontecimentos: o Desastre de Fukushima e o Caso do Leite Humano Contaminado. É curioso que a ponte estabelecida pelos dois casos não é exatamente a contaminação ao qual as duas populações estão expostas, mas justamente por serem acontecimentos-celacantos, estranhos e sem sentido. A menção ao caso do LHC, veiculado após o de Fukushima, inicia assim: Não muito longe de Cuiabá, a 350 quilômetros, uma pequena cidade, conhecida por sua prosperidade neste paraíso do agronegócio que é Mato Grosso, para o deleite das multinacionais do setor, está nas manchetes da mídia. Falamos de Lucas do Rio Verde, onde uma pesquisa apoiada pela Fundação Osvaldo Cruz, detectou a utilização destabelada de defensivos agrícolas numa escala tão impressionante, que até o leite materno (putz, o leite materno!) das mães de Lucas apresenta índices de contaminação. Seria esse o preço do progresso, do desenvolvimento? Francamente... Nenhum modelo de desenvolvimento é justificável quando redunda em conseqüências (sic) como a contaminação no alimento mais puro que existe. Ou que era pra (sic) existir. (A RADIOTIVIDADE, 2011, s.p., grifos nossos)

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Até então o blog, disponível no endereço , era alimentado apenas por Lorenzo Falcão. Posteriormente, em 2012, o blog virou site e agregou outros colaboradores na redação. 115 A mesma referência é encontrada em um texto de Arnaldo Jabor “Celacanto provoca maremoto”, publicada no dia 22 de março de 2011, sobre o maremoto que provocou um vazamento nuclear no Japão. Celacanto é um peixe pré-histórico, que habita águas profundas e que pode revelar como se deu a transição dos seres vivos do ambiente aquático para o terrestre. No entanto, o texto de Jabor nos explica que “a frase não queria dizer nada e justamente por isso ficou famosa”. É sobre esta “falta de profundidade”, de significado, que pode ser atribuído ao Desastre de Fukushima, já que não houve “erro algum”. Disponível em < http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,celacanto-provoca-maremoto-imp-,695286 >. Acesso em 17.02.2016.

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Neste enunciado podemos perceber a presença de diversos discursos que aparecem na cobertura jornalística do caso do Leite Humano Contaminado: o problema identificado como decorrente do uso excessivo de agrotóxicos; a associação entre esta utilização destabelada dos agrotóxicos e o modelo do agronegócio (aqui convocado como modelo de desenvolvimento ligado ao progresso, mobilizando, portanto, sentidos positivos, o do “mal necessário”, reforçado pela utilização da nomenclatura “defensivos agrícolas”); a contaminação da pureza, evocada pelo sentido que o leite materno é o alimento mais puro que existe e, portanto, não deveria ser maculado com a presença de agrotóxicos. Este sentido perpassa todo o texto, reforçado por expressões como até o leite materno e (putz, o leite materno!), que evocam a surpresa com o acontecimento e o “absurdo” da situação. O texto ainda informa ao leitor que a pesquisa “não está em condições” de se tornar pública, segundo “o médico e ex-vereador de Cuiabá”, Wanderlei Pignati, “apesar de seus dados preliminares já apresentarem números alarmantes”. Ao informar que os dados apresentados são preliminares, sem considerar o prazo para a disponibilização de uma dissertação de mestrado após a defesa, o texto reforça a ideia de que a pesquisa não está concluída, já implícita quando o responsável pela pesquisa afirma que esta “não está em condições de se tornar pública”, sem justificar o porquê. É interessante perceber como sujeito da enunciação aqui se coloca em diferentes posições enunciativas, demonstrando como as formações discursivas nos atravessam, como o sujeito é composto pelo contraditório e como os sentidos conseguem passear pelos textos aparentemente homogêneos. Se no início do texto, o sujeito da enunciação trata com algum sarcasmo o modelo agrícola hegemônico, a prosperidade do paraíso do agronegócio e deleite das multinacionais em figurarem nas manchetes da mídia, no final deste trecho ele já pondera se seria esse o preço do desenvolvimento, assumindo, portanto, que este modelo gera progresso e desenvolvimento para a região. Contudo, no último parágrafo do texto, o sujeito da enunciação esclarece sua posição, desnaturalizando o discurso que acabara de reproduzir: “Esse modelo de desenvolvimento adotado em Mato Grosso que, segundo informações (eu diria questionáveis, já que pagamos um passivo ambiental altíssimo), resulta na alcunha de Mato Grosso como um tigre asiático – tem a ver com o Japão” (grifo nosso).

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5.3 Desdobramentos A repercussão do caso do Leite Humano Contaminado não se deu apenas nas páginas de opinião dos jornais. Além dos desdobramentos na esfera pública116, houve mobilização do poder público após a divulgação da pesquisa. Com o resultado do estudo, o Ministério Público Estadual (MPE) – que havia iniciado um inquérito civil público em 2006, mas o suspendeu por falta de provas – propôs um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) a órgãos públicos e entidades privadas de Lucas do Rio Verde. É sobre isso que o Diário de Cuiabá trata na matéria “MP tenta frear danos de agrotóxicos”, publicada no dia 24 de abril. A notícia, assinada pelo mesmo repórter que assume autoria de todas as matérias sobre o caso LHC encontradas no veículo, afirma que o MPE “busca um acordo (...) para minimizar os danos causados pela aplicação de agrotóxicos nas lavouras do município”. A ideia, segue o texto, é evitar “um agravamento do problema”, como explicado na citação literal da promotora do município Patrícia Campos: “O que se pretende é compelir os órgãos públicos responsáveis pela fiscalização da aplicação dos agrotóxicos a adotar todas as medidas legais existentes e passíveis de execução a fim de minimizar os efeitos nocivos da aplicação lícita de agrotóxicos e impedir a aplicação ilícita – seja de produtos proibidos, seja em relação à forma de aplicação” (DIÓZ, 2011b, s.p., grifos nossos).

Na fala da promotora podemos sintetizar os sentidos privilegiados neste texto. Aqui se convoca a noção de que os responsáveis pela fiscalização da aplicação de agrotóxicos necessitam ser compelidos [neste caso, por um TAC] para realizar o seu trabalho. Por sua vez, a adoção de todas medidas legais existentes e passíveis de execução [devem existir leis incompríveis] servem apenas para minimizar os efeitos nocivos da aplicação lícita, uma vez que estas ainda não asseguram que os efeitos nocivos decorrentes do uso dos agrotóxicos não ocorram. A menção ao caso do Leite Humano Contaminado ocorre no final do texto, após o intertítulo “Pesquisa”. Neste trecho, é explicado o estudo desenvolvido pela Universidade Federal do Mato Grosso, apoiado pela Fiocruz, que já era esperado pelo Ministério

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De acordo com comunicação oral com os pesquisadores Wanderlei Pignati e Josino Costa Moreira, a pesquisadora do estudo Danielly Palma sofreu ameaças após a divulgação da pesquisa. Além disso, há relatos de mulheres que pararam de amamentar na cidade, para citar dois exemplos de desdobramentos do caso ocorridos na esfera pública.

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Público (“contando com a informação de que em breve a Universidade Federal do Mato Grosso produziria uma pesquisa a respeito [...] o MPE suspendeu o andamento do inquérito civil sobre o tema. A idéia [sic], agora é juntar os resultados da pesquisa aos autos”). A menção ao caso ocorre no penúltimo parágrafo do texto: Uma das etapas deste estudo que mais geraram (sic) repercussão foi realizada em Lucas do Rio Verde, com 62 mulheres. Segundo o pesquisador Vanderlei (sic) Pignati, que coordenou o trabalho, foram recolhidas amostras de leite materno e todas continham traços de dez tipos de agrotóxicos usados em lavouras. Os graves efeitos do agrotóxico no organismo vão de câncer a distúrbios neurológicos e endócrinos. (DIÓZ, 2011b, s.p.)

O trecho mobiliza os sentidos dos danos à saúde causados pelos agrotóxicos como modo de ressaltar a importância do estudo. Assim, reforça o argumento utilizado pelo Ministério Público de que é necessário acionar os órgãos responsáveis para minimizar os efeitos nocivos dos agrotóxicos. A notícia sobre o TAC também foi veiculada pelo jornal A Gazeta. No entanto, como matéria coordenada (“MP propõe ações com envolvidos”), quatro dias depois do Diário de Cuiabá (28/04/2011). A estrutura do texto é bem similar ao que foi veiculado no jornal concorrente, no entanto, há deslocamentos que devemos frisar, já explícitos no lide: O Ministério Público Estadual (MPE) encaminhou uma minuta de Termo de Ajustamento e Conduta (TAC) a vários órgãos públicos de Lucas do Rio Verde e a algumas entidades privadas para obrigar os responsáveis pela fiscalização da aplicação dos agrotóxicos a adotar medidas legais para impedir a aplicação ilícita dos produtos e minimizar os efeitos nocivos. (NEVES, 2011b, p.3B, grifos nossos)

Um deslocamento ocorre na ambiguidade do sujeito responsável pela fiscalização – a minuta que foi encaminhada a órgãos e entidades é para obrigar os responsáveis pela fiscalização a adotar medidas legais. Do jeito que foi construída, não há certeza se são os órgãos e entidades que fiscalizam ou se são elas que ficaram encarregadas de obrigar os responsáveis a adotar as medidas cabíveis. No entanto, posteriormente o texto reforça a segunda possibilidade ao afirmar que a “secretaria do Estado de Meio Ambiente” disse que a fiscalização era atribuição do Ministério da Agricultura (que não fora encontrado pela reportagem) – informação que diverge do texto publicado no Diário de Cuiabá no mesmo dia, que atribui ao Ministério a informação de que a fiscalização é feita pelo Instituto de Defesa Agropecuária (Indea) do estado.

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O outro deslocamento é mais claro: as medidas legais que deverão ser adotadas são para impedir a aplicação ilícita dos produtos e minimizar os efeitos nocivos. Aqui, somente a aplicação ilegal que é problemática, muito embora o texto não nos esclareça como deverá ser minimizado os efeitos nocivos destes produtos. A coordenada menciona o caso do LHC no final, sob o intertítulo “dados”. O texto apenas traz a informação de que entre os agrotóxicos está o endossulfan “considerado um dos mais tóxicos” e que fora encontrado em “76% das amostras analisadas”. O trecho finaliza informando que esta substância já fora proibida em 45 países, “mas no Brasil só em 2013”. Aqui temos a convocação de um exemplo para reforçar a importância do caso e o perigo ao qual as pessoas expostas estão submetidas. Embora afirme que seja “considerado um dos mais tóxicos”, o texto não explicita quais são os possíveis danos, se à saúde humana ou ao ambiente, mobilizando apenas o sentido negativo em relação a substância, que já é proibida. O texto utiliza também o termo “defensivo” para se referir ao agrotóxico, acionando a ideia de que a substância é necessária para a proteção vegetal. Figura 20: notícia sobre os desdobramentos do caso LHC em A Gazeta

O texto principal, situado ao lado esquerdo da coordenada, anuncia no título: “Fiscalização ineficiente”. Se a notícia sobre o TAC só sugere que as medidas legais não são cumpridas, todo o texto principal (incluindo o título) é utilizado para produzir e reforçar sentidos sobre a culpabilidade do poder público (que não fiscaliza adequadamente a questão dos agrotóxicos) no caso do Leite Humano Contaminado. O texto trata de uma coletiva concedida pelos responsáveis pela pesquisa, que também foi

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objeto de matéria no Diário de Cuiabá (“Estudiosos cobram fiscalização do uso”) veiculada no mesmo dia, 28 de abril. Logo na diagramação nos chama a atenção que ambas as matérias estampam fotos dos pesquisadores falando. Enquanto Josino Costa está com microfone em posição de fala em Diário de Cuiabá, Wanderlei Pignati detém o equipamento de fala na foto de A Gazeta. Uma terceira pessoa, no meio dos pesquisadores, aparece sem fala. É uma mulher, e o leitor não é informado em nenhuma das duas matérias sobre de quem se trata, embora esteja presente nas fotos. Paralelo a isso, cabe destacar uma ausência sentida em todo o corpus reduzido: não há nenhuma voz feminina, para além das fontes oficiais ou especialistas (a pesquisadora Danielly Palma e a promotora Patrícia Campos). Não há nenhuma mãe, independentemente de ter participado ou não da pesquisa, que tenha sido escutada117. A aflição e angústia materna somente aparecem, quase clandestinamente, na voz dos pesquisadores, especialmente nestas duas últimas matérias, que afirmam que “é fundamental que as mães não deixem de amamentar. ‘O malefício de parar seria muito maior do que o dessa concentração encontrada no leite’” (DIÓZ, 2011c, s.p.), pois “segundo eles, os prejuízos causados pela falta do aleitamento materno são infinitamente maiores que os que podem ser causados pelo contato com o leite contaminado” (NEVES, 2011b, p.3B). Aqui verificamos, em ambos os textos, a tentativa de dimensionar os danos

causados pela presença de agrotóxicos no leite humano. Embora uma resposta definitiva não seja dada, a produção de sentidos é direcionada na tentativa de minimizar a carga negativa mobilizada pela ideia de contaminação.

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Não é objetivo desse estudo discutir mais profundamente as questões de gênero entranhadas na sociedade que são reproduzidas também no jornalismo – mesmo àquele produzido por mulheres. No entanto, cabe registrar nosso estranhamento em relação a este fato, visto que as mães, as principais interessadas em compreender os perigos à saúde do bebê evocados por este acontecimento, não são contempladas pela cobertura jornalística dos veículos analisados.

171 Figura 21: texto sobre os desdobramentos do caso LHC no Diário de Cuiabá

A ideia de que a falta de fiscalização do poder público sobre a aplicação de agrotóxicos foi o que ocasionou a contaminação do leite humano é construída ao longo de ambos os textos, que nos indicam que este foi o sentido privilegiado sobre o caso durante a coletiva. As aberturas das duas matérias trazem esta associação, de forma mais ou menos transparente: A falta de fiscalização do uso e manejo de agrotóxicos em Mato Grosso pode ter contribuído para a contaminação do leite materno de mulheres do município de Lucas do Rio Verde (354 km ao norte de Cuiabá). A situação foi levantada por estudiosos que participam de uma pesquisa nacional coordenada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que analisa os impactos dos agrotóxicos agrícolas na saúde e ambiente nas regiões Centro Oeste e Nordeste. (NEVES, 2011b, p.3B) Os pesquisadores que constataram presença inaceitável de agrotóxicos no leite materno em Lucas do Rio Verde (a 354 km de Cuiabá) questionaram ontem o trabalho de fiscalização e monitoramento do governo sobre a aplicação do veneno nas lavouras do Estado. Segundo os pesquisadores, dispositivos legais impõem limites à pulverização terrestre e aérea das substâncias, de forma a evitar exposição da saúde humana, mas cabe ao governo fiscalizar. (DIÓZ, 2011c, s.p.)

A luz jogada na ineficiência da fiscalização dos agrotóxicos e a responsabilidade do poder público com a situação é evocada por diversas vezes, principalmente na voz dos pesquisadores (“o governo não tem cumprido o dever de fiscalização”/ “levantamos o problema, mas o Estado deve fiscalizar” – A Gazeta/ “Pignati apontou a responsabilidade

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do Estado em monitorar a presença de resíduos, como no caso das nutrizes em Lucas/ “o Estado é o que mais concentra técnicos para a função” – DC). Se a relação entre a ineficácia do poder público, grande exposição aos agrotóxicos e contaminação do leite humano está implícito nos enunciados acima, o texto da Gazeta aciona esta associação no enunciado: “Os pesquisadores acreditam que a contaminação encontrada pode ser resultado da exposição ocupacional, ambiental e alimentar do processo produtivo da agricultura que expôs a população a 114,37 litros de agrotóxico por habitante”. Novamente o sujeito da enunciação se distancia da autoria da afirmação, atribuindo-a aos pesquisadores. Se há muitas semelhanças nas abordagens dos dois veículos, há também divergências. Em A Gazeta encontramos a ressalva do pesquisador Josino Costa Moreira de que “o estudo não tem o objetivo de se contrapor ao agronegócio”: Moreira diz que não é possível afirmar que Mato Grosso é o Estado mais contaminado do Centro Oeste, mas observa que a produtividade possui uma relação direta com o uso de agrotóxicos e Mato Grosso é hoje um dos maiores produtores de grãos do país, o que, naturalmente, o coloca na posição dos que mais utilizam defensivos agrícolas. (NEVES, 2011b, p.3B)

O que ocorre neste enunciado é uma tentativa de conciliação entre a relação de causalidade modelo agrícola químico-dependente e contaminação do leite humano. Ao utilizar o termo naturalmente para se referir a relação produtividade e uso de agrotóxicos, o enunciador aciona o sentido do agrotóxico enquanto produto imprescindível para a produtividade da produção agrícola, uma vez que Lucas não seria um dos maiores produtores de grãos se não fosse também um dos que mais utilizam defensivos agrícolas – terminologia associada ao tipo de discurso do agrotóxico enquanto remédio utilizada recorrentemente em A Gazeta. No Diário de Cuiabá, temos o sentido oposto mobilizado. Além da utilização frequente do termo “veneno”, o texto também traz a ideia de que o acontecimento não se restringe a Mato Grosso, podendo se aplicável em outras regiões brasileiras: “Segundo Moreira, a solução passa por ‘conscientização e fiscalização’, daí a necessidade de chamar atenção para normas que o próprio governo já determinou sobre a aplicação dos venenos nas lavouras. ‘O alerta de Lucas do Rio Verde serve para todo o Brasil’”.

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É interessante notar que ambos os trechos aparentam estar relacionados, sendo retirados em momentos próximos. No entanto, quando A Gazeta opta por publicar que não é possível afirmar que Mato Grosso é o Estado mais contaminado do Centro Oeste e o Diário de Cuiabá afirma que o alerta serve para todo o Brasil, os discursos acionados são bem parecidos (Mato Grosso não é o único estado passível de contaminação), mas os sentidos privilegiados são opostos. Enquanto na Gazeta o não é possível afirmar traz a ideia de dúvida e, portanto, ameniza a preocupação (além da associação naturalizada entre uso de agrotóxico e produtividade), o alerta do Diário de Cuiabá nos diz que a situação é tão alarmante, que pode ser ampliada para outros locais. É neste jogo comparativo que podemos perceber como cada sujeito da enunciação se posiciona. Araujo (2000) nos lembra que os discursos excluídos, a forma mais radical de negação, também integram o dispositivo e participam da imagem do sujeito da enunciação. “O lugar que um discurso ocupa e os efeitos de sentido que produz são determinados também pelos ‘fantasmas’ dos discursos que foram excluídos em seu favor” (ARAUJO, 2000, p.137).

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5.4 O exemplo Quadro 7: trechos de matérias que apenas mencionam o caso do LHC Jornal Título Formato Diário do Nordeste Agrotóxico está com maior Reportagem poder de contaminação

Diário do Nordeste

Manchete sobe agrotóxicos repercute entre deputados

Reportagem

Folha de S.Paulo

Turma do agronegócio só pensa na conta bancária

Entrevista

Folha de S.Paulo

À espera do Cade, BRF investe no Oriente Médio

Entrevista

Trecho de abordagem do caso Conforme enunciado ontem no editorial do Diário do Nordeste, foi constatado agrotóxico no leite materno das mulheres do Município de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, Estado com a maior atividade agrícola e maior consumidor de agrotóxicos. De um grupo de 62 mulheres voluntárias, "no leite de todas elas foi (sic) constatada a contaminação em níveis preocupantes", afirmou editorial. Os dados são da pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). A comparação com o histórico epidemiológico de Limoeiro do Norte é inevitável visto que, de forma tardia, persistem neste Município cearense três combinações que coincidem com a cidade de Lucas do Rio Verde: expansão agrícola com grande uso de agrotóxicos (inclusive pulverização aérea), fiscalização frouxa das leis e uma situação de incredulidade das evidências, seja por parte de produtores agrícolas seja por parcela do poder público. Na tribuna, o deputado Lula Morais convidou os deputados a lerem a denúncia do Diário do Nordeste e apontou que o agrotóxico "é um elemento extremamente nocivo para a saúde humana". Ele também destacou o editorial do jornal do dia 19 de abril, que alertou sobre o perigo do uso indiscriminado de agrotóxicos. O texto divulgava pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) que encontrou resíduos de agrotóxicos no leite materno, dada a intoxicação nas mães. Por que o sr. tem condenado o uso de agrotóxicos? Os assentados do MST não usam esses produtos? Os assentados usam muito poucos (sic) venenos. Talvez algumas regiões do Sul que usam na soja. Os agrotóxicos são venenos de origem química, não degradáveis, que matam a fertilidade do solo, contaminam a água e permanecem nos alimentos que vão virar doenças nos estômagos. É um problema de saúde publica (sic). Em Lucas do Rio Verde de Mato Grosso (sic), o veneno está presente até no leite materno das mulheres, de acordo com estudo médico. A Anvisa informou que há 20 produtos alimentícios não recomendáveis para consumo. Mas os consumidores não sabem disso, porque não consta nada no rótulo ou na embalagem na compra de batata, tomate, pimentão, uva, arroz, óleo de soja etc. Por isso, participamos com mais de 50 entidades nacionais, de movimentos sociais, universidades e pessoas de órgãos do governo, como Anvisa e Fiocruz, na realização uma grande campanha de conscientização para combater o uso de agrotóxico. Não há exagero no uso de agrotóxico? Ele aparece em leite materno, como em Lucas do Rio Verde [onde está a BRF]. A tendência é reduzir, pois agrotóxico é caro e perigoso.

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De todos os oito jornais analisados, somente os veículos de expressão regional que noticiaram o tema (mesmo que em editorial) voltaram a abordar o caso do Leite Humano Contaminado como exemplo em matérias relacionadas, durante o período em análise. Na Folha de S.Paulo, o caso motivou perguntas em duas entrevistas de personagens completamente distintos, ambos vinculados ao setor agrícola (o coordenador do Movimento Sem Terra, João Pedro Stédile e o copresidente da BRF, Luiz Fernando Furlan). Já o Diário do Nordeste utilizou o caso como gancho para a elaboração de reportagens (e suítes), visando diagnosticar o estágio da situação em seu próprio estado, o Ceará, importante exportador de fruticultura. Estes são os textos que denominamos de secundários e representam a quarta fase da cobertura jornalística sobre o nosso caso: quando o estudo sobre o Leite Humano Contaminado deixa de ser acontecimento e passa a ser memória, exemplo citado em outros textos e discursos relacionados. Figura 22: Entrevista do copresidente da BRF a FSP

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A entrevista “À espera do Cade, BRF investe no Oriente Médio” foi publicada na Folha de S.Paulo uma semana após a veiculação do caso do Leite Humano Contaminado (28 de março). O texto é focado nas perspectivas de negócio de Luiz Fernando Furlan, copresidente da Brasil Foods (BRF), exportadora de carnes oriunda da fusão SadiaPerdigão, à época sob análise do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). A sede da BRF é em Lucas do Rio Verde. A menção ao caso do LHC ocorre no final da entrevista, entre uma pergunta sobre a importância do consumo sem agrotóxicos e hormônios e outra sobre o movimento contra o consumo de carnes, nos indicando que esta parte da entrevista é dedicada aos entraves enfrentados pela indústria. A importância do consumo sem agrotóxicos não foi respondida pelo entrevistado, que afirmou que devia ser “hormonado” há muito tempo porque consome frango frequentemente. A ausência da resposta pode ter levado o jornalista a questionar novamente o entrevistado, dessa vez citando o caso do Leite Humano Contaminado. A resposta publicada é lacônica: “A tendência é reduzir, pois agrotóxico é caro e perigoso”. Apesar de curta, a menção e a resposta evocam alguns sentidos: a do agrotóxico enquanto produto perigoso; a do alto valor econômico do agrotóxico; e a do uso tão excessivo do produto (exagero) que (até) “aparece em leite materno”. A segunda entrevista que menciona o caso, é parcialmente veiculada na Folha de S.Paulo. Mesmo com as duas páginas dedicadas à entrevista (comprimida por um grande anúncio da indústria automotiva), o texto não é publicado na íntegra, solicitando que o leitor acesse o site para ler a entrevista completa. Diante desse recurso, geralmente utilizado pela entrada de um anúncio após a edição da matéria, consideramos este texto no corpus deste estudo. Contudo, a entrevista na íntegra nos mostra que a versão impressa foi editada e que outras perguntas, posteriores a menção ao Caso do Leite Humano Contaminado, foram incluídas. Esta exclusão já nos diz que, dentro da hierarquia estabelecida pelo veículo, o assunto não é prioritário na entrevista, quase inteiramente dedicada aos aspectos políticos envolvendo o Movimento Sem Terra (MST). O texto “Turma do agronegócio só pensa na conta bancária”, entrevista com João Pedro Stédile, foi publicado no dia 17 de abril, dez dias depois do lançamento da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, capitaneada também pelo MST. O texto

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apresenta traços de intertextualidade, uma vez que o Stédile rebate as matérias publicadas em O Estado de S.Paulo e O Globo, especialmente em relação ao Bolsa Família (textos analisados no capítulo 4). A entrevista é quase um “beabá” do movimento, com o entrevistado explicando diferenças entre invadir e ocupar, os princípios dos assentamentos, o ideal de reforma agrária e até criticando a mídia: “A imprensa, sim, mudou. Antigamente, tinha uma postura mais informativa, mas nos últimos anos assumiu uma postura ideológica de defesa a qualquer custo da propriedade da terra e dos interesses mais conservadores. Até porque a maioria dos donos de jornais e televisão também são grandes proprietários de terra ou têm no agronegócio seus principais anunciantes” (LUCENA, 2011a, A12)

Ao contrário da primeira entrevista, o caso do LHC é citado pelo próprio entrevistado. Ao ser questionado se “tem condenado o uso de agrotóxicos” e se os assentados “não usam esses produtos”, Stédile rebate afirmando que “os assentados usam muito poucos (sic) venenos”, para em seguida listar os motivos que tornam os agrotóxicos “um problema de saúde pública”. O caso do Leite Humano Contaminado é utilizado para reforçar a ideia de que os agrotóxicos são venenos que permanecem nos alimentos e vão virar doenças nos estômagos: “Em Lucas do Rio Verde de Mato Grosso (sic), o veneno está presente até no leite materno das mulheres, de acordo com estudo médico”. O até antecedendo o local onde os resíduos estão presentes (no leite materno) mobiliza sentidos que vinculam o caso com a ideia de “absurdo”. O leite materno aqui é convocado como último reduto da pureza, local sagrado, onde a contaminação já chegou. A utilização do termo veneno reforça ainda mais o sentido privilegiado: uma substância que envenena, que causa danos à saúde, presente em um alimento puro, tem que ser um absurdo.

178 Figura 23: capa sobre o caso LHC no Diário do Nordeste

Um dia após a publicação do editorial do Diário do Nordeste, o veículo trouxe a questão dos agrotóxicos na manchete do jornal – foi a única encontrada no corpus analisado. A manchete “Agrotóxicos: Ceará lidera consumo” traz uma sobreposição de imagens de um agricultor pulverizando agrotóxicos e um prato de legumes e verduras, gerando um efeito de “alimento pulverizado”. As imagens jogam com o sentido do alimento contaminado, em especial o agricultável in natura. O texto da manchete reforça ainda mais este sentido. Em letras maiores, como um subtítulo, diz que “O Estado é o maior consumidor de veneno agrícola do Nordeste. A venda dobrou em cinco anos”; e ao lado, em letras menores, o jornal enuncia: Em Limoeiro do Norte, levantamento científico constatou contaminação em 33% dos trabalhadores rurais. Este é um dos maiores reflexos do abuso na utilização de venenos agrícolas nas plantações. O Ceará vem se destacando, negativamente, no consumo de agrotóxico que leva vários riscos à saúde. (DN, 20/04/2011, grifos nossos).

A associação entre agrotóxicos e riscos à saúde é convocada logo na capa do jornal, reforçada pela nomenclatura veneno agrícola. O discurso do uso indiscriminado também

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aparece aqui, quando o texto diz que a contaminação dos trabalhadores é reflexo do abuso na utilização de venenos agrícolas. Figura 24: reportagem sobre o caso LHC no Diário do Nordeste

Essa produção de sentidos negativos em relação aos agrotóxicos também perpassa em todo o texto da matéria “Agrotóxico está com maior poder de contaminação”. Diferentemente do que o título pode sugerir, a matéria não traz um caso de uma substância mais potente, mas constrói a ideia de que o maior poder de contaminação se deve ao aumento substancial do consumo e das vendas destes produtos no estado, o que pode dar espaço para novos produtos cada vez “mais potente[s] (leia-se: tóxico) que o anterior”.

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Os possíveis danos à saúde estão presentes em diversos trechos, que trazem sintomas (“Irritação, dores, tonturas, depressão, sangramento, fraqueza óssea, redução de memória, câncer e até morte”); dados de pesquisas (“embora Raquel Rigotto e os demais pesquisadores não afirmem categoricamente que os agrotóxicos estejam provocando câncer em Limoeiro, deixam os dados falarem por si”) e casos de morte. Para completar, a outra matéria presente na página traz as homenagens e protestos a Zé Maria, “o ato de um ano da morte do homem que lutava contra o abuso de agrotóxicos na agricultura da região do Baixo Jaguaribe”. O trecho que menciona o caso do Leite Humano Contaminado reproduz a frase do editorial que “no leite de todas elas foi constatada a contaminação em níveis preocupantes”, e busca fazer comparações entre Lucas do Rio Verde e Limoeiro do Norte, onde se deu a pesquisa que constatou intoxicação aguda nos trabalhadores: A comparação com o histórico epidemiológico de Limoeiro do Norte é inevitável visto que, de forma tardia, persistem neste Município cearense três combinações que coincidem com a cidade de Lucas do Rio Verde: expansão agrícola com grande uso de agrotóxicos (inclusive pulverização aérea), fiscalização frouxa das leis e uma situação de incredulidade das evidências, seja por parte de produtores agrícolas seja por parcela do poder público. (MELQUÍADES, 2011c, p.1)

Este enunciado nos remete aos sentidos encontrados nas matérias sobre os desdobramentos do caso do Leite Humano Contaminado: responsabilização do poder público, associação com uso exacerbado de agrotóxicos e o alerta de que a contaminação em níveis preocupantes pode não se restringir aos limites geográficos luverdense. A isso, o trecho ainda soma o sentido de que as evidências são incontestáveis, e questioná-las pode gerar situações que levem a contaminação do leite materno, do modo como aconteceu em Lucas do Rio Verde. Aqui o caso do LHC é utilizado como exemplo a não ser repetido. No dia 21 de abril, o Diário do Nordeste publicou uma nova matéria, desdobrando a manchete do dia anterior. O texto “manchete sobre os agrotóxicos repercute entre deputados” rendeu “apenas” uma chamada na capa (“Deputados condenam agrotóxicos”, que enfatiza a repercussão causada pela manchete com vários parlamentares condenando o uso) e apresenta alguns deslocamentos em relação a matéria da qual referencia. O texto, construído de acordo com o que os parlamentares comentaram em plenário, destaca a perplexidade do poder legislativo diante das denúncias veiculadas no jornal, fortalecendo

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a ideia da mídia enquanto vigilante público (OLIVEIRA, 2014), com a tarefa de pautar políticas públicas e alertar a população para a intoxicação silenciosa, que mata lentamente: Alerta, preocupação e incômodo podem resumir os sentimentos gerados com a constatação da manchete do Diário do Nordeste de ontem, baseada em reportagem do Caderno Regional. O tema foi um dos principais assuntos do dia na roda de discussões: dobrou no Ceará a venda de agrotóxicos para a agricultura, ao passo que aumentaram os casos de intoxicação. Autoridades, movimentos sociais, pesquisadores destacaram a matéria, apontando para a necessidade emergencial da fiscalização ou até proibição de veneno. Na Assembleia Legislativa do Estado, deputados compararam, diferenciando as proporções, com a situação do Japão, sobre o que seria uma "intoxicação silenciosa, que mata lentamente". Produtores agrícolas em Limoeiro do Norte questionam alguns números e reclamam que, por utilizarem defensivos agrícolas, eles serem tratados como "vilões". MELQUÍADES, 2011b, p.1)

O lide sintetiza os assuntos tratados na matéria. O texto visibiliza os comentários feitos sobre a matéria do dia anterior, em um rompante de autoreferencialidade, mas também, dá voz ao outro lado em uma matéria coordenada, aquele lado que se refere ao agrotóxico enquanto defensivo agrícola, ausente na manchete do dia anterior.

182 Figura 25: reportagem sobre o caso LHC no Diário do Nordeste

No texto analisado, todos os parlamentares citados (dos “pelo menos quatro [que] subiram ao palanque”) são contra a utilização de agrotóxicos. Não temos como averiguar se houve críticas ao texto na sessão, mas ao menos na matéria elas não aparecem. Deste modo, nosso texto vai ao encontro do que afirma Cavalcante (2014), que as audiências nas quais os políticos comentam as reportagens do Diário são estratégias de visibilidade realizadas por estes para ocupar espaço no jornal. Sendo assim, não há porque criticar o veículo que vai promover a visibilidade (e a indignação) na esfera pública. Cabe lembrar que o campo político se retroalimenta da legitimidade conferida pelo jornalismo: [...] o campo político está para um mercado – o mercado da opinião pública – e, por isso, a luta dos agentes (individuais ou coletivos) gira em torno do capital simbólico acumulado no transcorrer das lutas e no acúmulo de trabalho e de estratégias investidas, que se consubstanciam no reconhecimento e na consagração. O reconhecimento e a consagração dos agentes políticos passam, no entanto, pela legitimação dos jornalistas (BERGER, 2003, p.27).

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A menção ao caso do Leite Humano Contaminado é realizada também na plenária, e também em referência a um texto publicado no Diário do Nordeste, o editorial do dia 19. Na tribuna, o deputado Lula Morais convidou os deputados a lerem a denúncia do Diário do Nordeste e apontou que o agrotóxico "é um elemento extremamente nocivo para a saúde humana". Ele também destacou o editorial do jornal do dia 19 de abril, que alertou sobre o perigo do uso indiscriminado de agrotóxicos. O texto divulgava pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) que encontrou resíduos de agrotóxicos no leite materno, dada a intoxicação nas mães. (MELQUÍADES, 2011b, p.1)

O enunciado acima nos permite algumas análises. O caso do LHC é utilizado no texto como exemplo de como o agrotóxico é um elemento extremamente nocivo para a saúde humana, apresentado como consequência do uso indiscriminado de agrotóxicos. Pela primeira – e última – vez no corpus, o texto analisado privilegia o sentido de que os resíduos encontrados no leite humano são indicadores, dada a intoxicação das mães. Por fim, é interessante notar como os termos são utilizados nesta matéria. Tal qual no texto do dia anterior, o autor continua a referir os agrotóxicos preferencialmente enquanto veneno. No entanto, há um deslocamento quando o sujeito do enunciado são os produtores rurais. Principalmente na matéria coordenada, destinada aos produtores, o termo defensivo agrícola é constantemente utilizado. No entanto, como que para não deixar o sentido do perigo passar com este “desvio”, no final do texto o enunciador busca estabilizar o sentido privilegiado em seus textos: “Embora seja literalmente um ‘veneno’, esse tipo de produto é permitido, com legislação específica. Porém há casos de desobediência à legislação em vigor”.

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Quadro 8 – Os tipos de discurso mais frequentes, os sentidos privilegiados sobre agrotóxicos e sobre o Leite Humano Contaminado em cada jornal Veículo A Gazeta

Sujeito-jornal

Tipo de discurso privilegiado

Sentidos mobilizados sobre agrotóxicos

Jornal moderno; defensor do cidadão; objeto de investimento alto e constante; líder no estado

Veneno

 Insumo fundamental para produção agrícola  Causador de danos à saúde e ao meio ambiente  Uso seguro de agrotóxicos  Agrotóxico enquanto objeto de disputa político-ideológico

Sentidos mobilizados sobre o caso LHC       

Diário de Cuiabá

Jornal mais antigo; ousadia, a independência e o pioneirismo; identificação local (mais cuiabense de todos); defensor do meio ambiente

Uso correto/Veneno

 Produto digno de falsificação  Causador de danos ao meio ambiente

       

Diário do Nordeste

Jornal com identidade empresarial; pioneiro na manutenção de uma página voltada a assuntos ambientais;

Veneno

 Redução melhora eficiência agrícola  Setor de negócio lucrativo, gerador de riquezas nacionais  Gerador de conflitos agrários

     

Insumo fundamental para produção agrícola Agrotóxico ilegal causador de danos à saúde Agrotóxico causador de danos à saúde Aleitamento materno como benéfico à saúde Responsabilização sobre caso do LHC: poder público/modelo agrícola Desqualificação da pesquisa do caso do LHC/Objeto de disputa científica Termos principais: defensivo agrícola e agrotóxico Leite materno enquanto alimento puro Caso do LHC como absurdo/risco à saúde da criança Desqualificação da pesquisa do caso do LHC/Objeto de disputa científica Causador de danos à saúde Responsabilização sobre caso do LHC: poder público/modelo agrícola Modelo do agronegócio como progresso Aleitamento materno como benéfico à saúde da criança Agrotóxico - objeto de luta políticoideológica Uso seguro/Uso excessivo de agrotóxicos Acontecimento sem fronteira Termos principais: agrotóxico e veneno Caso do LHC como absurdo/risco à saúde da criança Agrotóxico como causador de danos à saúde Responsabilização sobre caso do LHC: poder público/modelo agrícola

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 Causador de danos à saúde e ao meio ambiente  Defensivo agrícola  Uso seguro

o impresso mais jovem do Ceará

     

Folha de S.Paulo

Jornal em constante transformação; jornalismo crítico, plural e apartidário; inovador

Remédio/Veneno

 Causador de danos à saúde e ao meio ambiente  Orgânico como saudável  Incrementa produtividade agrícola  Combate à ameaça contra a biodiversidade  “Mal necessário”/ Uso seguro

  

   

Orgânico - retorno econômico Uso seguro/Abuso na utilização Acontecimento sem fronteira Caso do LHC como exemplo a não ser repetido LHC como indicador de intoxicação Termos principais: agrotóxico e veneno/defensivo agrícola, modo secundário Risco à saúde do bebê Leite materno imaculado Discurso científico como legitimador dos efeitos à saúde causados pelos agrotóxicos/Desqualificação da pesquisa do caso do LHC/Agrotóxico enquanto objeto de disputa científica Uso seguro Agrotóxico causador de danos à saúde Alto valor econômico dos agrotóxicos Termo principal: agrotóxicos

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Observamos que o caso do Leite Humano Contaminado mobiliza predominantemente sentidos negativos em relação aos agrotóxicos em todos os textos analisados. Isso se dá, além da convocação do tipo de discurso agrotóxico enquanto veneno, devido à combinação dos sentidos de leite materno como sagrado e saudável, e da presença de resíduos de agrotóxicos no leite humano como perigosa, arriscada e danosa à saúde do bebê. A ideia de que o leite materno é um alimento puro, imaculado, benéfico para a saúde do bebê aparece enquanto sentidos mobilizados na maioria dos veículos analisados, com uma variação no Diário do Nordeste, onde o discurso jornalístico apresenta o caso como o auge do absurdo – sentido também presente no Diário de Cuiabá. Observamos que são os argumentos evocados nesta produção de sentidos que legitimam que o caso seja posteriormente utilizado como exemplo a ser evitado em produções jornalísticas sobre os agrotóxicos. É interessante notar que, enquanto na análise do corpus ampliado os jornais Diário de Cuiabá e Folha de S.Paulo apresentaram o tipo de discurso do uso correto e o do remédio como predominante, respectivamente, aqui a produção de sentidos sob um ângulo negativo faz com que o tipo de discurso valorizado seja a do agrotóxico enquanto veneno – até em notícias econômicas na Folha, em que o agrotóxico é apresentado como caro e perigoso pelo copresidente de uma multinacional alimentícia após uma pergunta que menciona o caso. A análise comparativa nos permitiu identificar ainda como os tipos de discurso são construídos nos dispositivos de enunciação – neste caso com maior ou menor identificação com o do veneno. Os jornais locais A Gazeta e o Diário de Cuiabá apresentaram uma produção jornalística semelhante (embora o DC tenha tido uma matéria a mais, o desdobramento que esta anunciava foi veiculado posteriormente em uma coordenada de A Gazeta). No entanto, o Diário de Cuiabá busca reforçar os sentidos negativos em relação aos agrotóxicos, responsabilizando o modelo agrícola e o poder público pela contaminação do leite materno, utilizando preferencialmente a nomenclatura veneno enquanto alternativa a agrotóxico. O espaço dedicado ao “outro lado”, o poder público, na divulgação inicial do caso é bem reduzido em comparação ao da Gazeta (três linhas em detrimento de uma coordenada). A Gazeta, por sua vez, apresentou informações semelhantes às veiculadas no Diário de Cuiabá, mas optou por dar maior espaço a vozes divergentes, atenuar os sentidos negativos evocados pela divulgação do estudo – a exemplo de quando diz que as medidas legais a serem adotadas são para impedir a aplicação ilícita dos produtos, evocando o sentido de que somente a aplicação ilegal é problemática – e privilegiou a terminologia defensivos agrícolas. Mais uma

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vez, como na análise do corpus ampliado, percebemos a “filiação” entre as nomenclaturas, os tipos de discurso e as comunidades discursivas. O Diário do Nordeste optou pela denominação veneno – à exceção de uma coordenada dedicada aos produtores rurais, em que aparece predominantemente o termo defensivo, até o último parágrafo, quando o repórter faz questão de enfatizar que: “Embora seja literalmente um "veneno", esse tipo de produto é permitido, com legislação específica”. Já o sujeito da enunciação da Folha de S.Paulo segue a linha da neutralidade em todos os textos, utilizando as nomenclaturas veneno e defensivo somente em citações delimitadas enquanto tais.

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RETICÊNCIAS No prefácio do livro Primavera Silenciosa, Linda Lear sentenciou: “Apesar de décadas de protestos e consciência ambientalistas, e apesar do clamor apocalíptico de Rachel Carson [....], a redução no uso de pesticidas tem sido um dos maiores fracassos das políticas da era ambientalista. A contaminação global é um fato da vida moderna” (CARSON, 2010, p. 18). Esta frase, do primeiro livro que li sobre o tema, pairou como uma sombra ao meu lado no período em que estive nesta jornada. O caminho que percorrermos para chegar aqui foi árduo. Desconhecia as nuances que cercavam a problemática dos agrotóxicos no Brasil e, por vezes, foi difícil encarar as lentes de analista, em uma questão tão delicada quanto a exposição generalizada a substâncias químicas, muitas delas nocivas. Quando optamos pelo recorte do Caso do Leite Humano Contaminado, parte de mim compactuava com a ideia de absurdo desta situação. A primeira hipótese formulada, ainda na mente imatura de uma lactante-jornalista-jovem pesquisadora, versava sobre a superficialidade com a qual a mídia abordava a questão, não dando ao caso o devido peso que este merecia. Ao longo do percurso, compreendi que a presença de agrotóxicos no leite humano era somente um indicador da exposição generalizada a que estamos submetidos, e que a produção social de sentidos ia muito além do que a educação linear e dicotômica em que fomos criados nos permitia supor. E assim chego a este capítulo com mais indagações do que certezas e mais desconstruções do que afirmativas. O objetivo geral desta dissertação foi analisar os discursos mobilizados na produção jornalística sobre agrotóxicos diante do “caso do Leite Humano Contaminado” em jornais impressos de diferentes regiões brasileiras, a fim de compará-los e identificar possíveis semelhanças e diferenças. Para tanto, reconstituímos a trajetória do caso na mídia, com intuito de selecionar os veículos de comunicação para compor o nosso corpus e entender a dinâmica da produção noticiosa sobre o caso; identificamos as imagens evocadas de si pelos jornais, na tentativa de compreender melhor as condições de produção de cada veículo; mapeamos os tipos de discurso e os sentidos mobilizados sobre agrotóxicos em todos os veículos, a fim de identificar diferenças e semelhanças entre as coberturas, especialmente entre os dispositivos jornalísticos que circularam o caso e os que silenciaram sobre o assunto; e, por fim, analisamos todas as matérias identificadas no corpus reduzido.

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Este percurso nos possibilitou identificar três tipos de discurso predominantes em relação aos agrotóxicos: o do veneno, que evidenciaria um viés negativo em relação aos agrotóxicos, especialmente dos sentidos movidos do agrotóxico enquanto danoso à saúde e ao ambiente; o do remédio, que se alinharia a uma perspectiva positiva, em que o agrotóxico é um defensivo, feito para proteger a produção agrícola das pragas e aumentar a produtividade; e o do uso correto, que se ligaria mais às condições de manuseio e características externas do produto, do que ao agrotóxico em si. Acreditamos que esta última perspectiva serve como uma ponte entre os dois tipos anteriores, conciliando-os. Na análise do corpus ampliado, notamos que o tipo de discurso predominante foi o do veneno, mas que o do uso correto perpassa por quase todos os veículos, por diversas vezes, funcionando mesmo como uma estratégia de atenuar o contraditório. Como a característica básica do discurso é a mobilidade dos sentidos (ORLANDI, 2011), identificamos em cada tipo de discurso diversos sentidos mobilizados. Categorizamos estes em cinco perspectivas, ou argumentos, que são utilizados para legitimar o posicionamento do enunciador e estabilizar a produção de sentidos. São os seguintes: econômica, agronômica, político-ideológica, ambiental e a da saúde. Nossa hipótese inicial, de que os veículos que noticiaram o caso do Leite Humano Contaminado e os que silenciaram sobre o tema apresentariam diferenças significativas, não se comprovou. Embora tenhamos observado grande ambuiguidade em todos os veículos, em nossa tentativa de classificar o tipo de discurso predominante, a Folha de S.Paulo, que foi o único jornal impresso de expressão nacional a veicular o caso, se alinhou mais a um viés positivo dos agrotóxicos no período analisado, o que nos fez classificá-lo como remédio na análise do corpus ampliado. O outro veículo que apresentou textos jornalísticos predominantemente neste ângulo foi o Zero Hora. No entanto, as produções desses dois jornais pouco têm em comum, além de privilegiar a perspectiva econômica (que valoriza o viés positivo). Na análise do corpus reduzido, observamos que o caso do Leite Humano Contaminado mobiliza predominantemente sentidos negativos em relação aos agrotóxicos em todos os textos analisados – o que nos fez categorizar todos os jornais com o tipo de discurso veneno, modificando as categorias dos jornais Diário de Cuiabá e Folha de S.Paulo, que na análise do corpus ampliado apresentaram o tipo de discurso do uso correto e o do remédio como predominantes, respectivamente.

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Os sentidos privilegiados em relação ao caso são a do leite materno como um alimento puro, imaculado, benéfico para a saúde do bebê e da presença de resíduos de agrotóxicos no leite humano como perigosa, arriscada e danosa à saúde da criança. Observamos que estes sentidos legitimam que o caso seja posteriormente utilizado como exemplo a ser evitado. A análise comparativa nos permitiu identificar ainda como os tipos de discurso são construídos nos dispositivos de enunciação – neste caso com maior ou menor identificação com o do veneno. Os jornais locais A Gazeta e o Diário de Cuiabá apresentaram uma produção jornalística semelhante (embora o DC tenha tido uma matéria a mais, o desdobramento que esta anunciava foi veiculado posteriormente em uma coordenada de A Gazeta). No entanto, o Diário de Cuiabá busca reforçar os sentidos negativos em relação aos agrotóxicos, enquanto A Gazeta busca atenuar os sentidos negativos evocados pela divulgação do estudo nos textos analisados. Em ambas as análises percebemos a “filiação” entre as nomeclaturas, os tipos de discurso e as comunidades discursivas – remédio-defensivo; veneno-agrotóxico/veneno; uso corretoagrotóxico/defensivo. Diferentemente dos jornais nacionais ou de outras regiões, os veículos locais acompanharam alguns dos desdobramentos do caso. *** Tantos movimentos118, em um período limitado, demonstraram-se interessantes e apuraram nosso olhar para o momento da análise, mas carregam um potencial analítico maior do que pudemos processar nesta dissertação. Assim não podemos deixar mencionar alguns resultados que julgamos interessantes e que nossas condições de produção não permitiram o aprofundamento. A diversidade encontrada na análise nos surpreendeu. Cada veículo de comunicação não só apresentou características específicas, como, em diversos casos, as notícias publicadas em determinadas editorias mostraram-se regidas por contratos de leitura próprios e tipos de discursos semelhantes, mesmo quando veiculadas em jornais distintos. É possível supor que o endereçamento a um leitor imaginado como um grande produtor rural fez com que, por exemplo, os textos encontrados nas editorias de Economia estivessem mais alinhados ao tipo de discurso do agrotóxico como remédio, convocando a perspectiva econômica com sentidos sobre rentabilidade, produtividade e de tecnologia enquanto aliada

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Ainda realizamos uma reconstituição histórica das notícias sobre associação agrotóxicos e leite humano no jornal Folha de S.Paulo que julgamos, posteriormente, não ser pertinente para compor este trabalho.

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para atingir ambos os objetivos. Nesta mesma editoria, porém, foi possível encontrar textos convocando argumentos ambientais ou relativos à saúde quando a matéria era voltada para o consumidor – a exemplo das novas opções de alimentação orgânica saudável. Essas perspectivas de saúde e ambiente estiveram associadas, como mencionamos no capítulo 4, ao tipo de discurso veneno. As estratégias que reforçavam os sentidos em relação ao impacto ambiental ou aos danos à saúde causados por essas substâncias foram convocadas predominantemente em editorias direcionadas ao cidadão “comum”, mais generalistas e ligadas ao cotidiano. As editorias de negócios, por exemplo, buscaram apresentar a questão dos alimentos sem agrotóxicos como oportunidade e nicho de mercado. Acreditamos, contudo, que um estudo mais detalhado nos permitiria entender os deslocamentos e as dispersões discursivas encontradas nestas relações. Uma outra observação que julgamos pertinente é dimensionar a parcela de contribuição das lógicas comerciais que regem o grupo ou conglomerado econômico aos quais os jornais pertencem na produção jornalística. Acreditamos, por vivência profissional e afiliação acadêmica, que estas relações sempre são permeadas por um certo grau do tensionamento. Contudo, pudemos identificar no Diário do Nordeste, cujo grupo econômico possui empreendimentos agrícolas de alimentos orgânicos, que os sentidos negativos em relação aos agrotóxicos – e os positivos em relação à produção orgânica/agroecológica – eram acionados com mais frequência e, de modo mais contundente, do que nos outros veículos de comunicação analisados. O modo como as vozes se articulam e são demarcadas nestes textos também foi outro aspecto que nos chamou atenção. Encontramos uma estabilidade na produção de sentidos nos espaços opinativos e nas citações literais. Enquanto os colunistas ficam mais à vontade para utilizar terminologias como defensivos ou veneno nos seus espaços, as citações nos textos noticiosos cumprem esta função – na produção da Folha de S.Paulo, por exemplo, são somente nestes espaços limitados que outras terminologias, que não agrotóxicos, aparecem. As comunidades discursivas de cada tipo de discurso são bem demarcadas e possuem agentes sociais distintos entre si, sendo estes, por vezes, convocados para investir de legitimidade o posicionamento construído pelo tipo de discurso. Assim, mesmo que os movimentos sociais sejam “escutados” nos textos, a exemplo do que fez o jornal O Globo nos textos analisados, suas falas surgem circunscritas por estratégias de desqualificação (como a luta contra os agrotóxicos ser reduzida a uma estratégia de apelo social para o movimento angariar a empatia da sociedade). O modo

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como os agrotóxicos aparecem como objeto de disputa, seja científica, seja político-ideológica, foi outro aspecto marcante identificado em nossa análise que mereceria mais atenção. Por fim, embora nossa hipótese (e percepção) inicial do caso do Leite Humano Contaminado como o auge do absurdo, a contaminação de um alimento puro, tenha sido confirmada na análise, nos causou certo estranhamento a ausência de vozes femininas nos textos analisados. Aqui cabe ressaltar que a tarefa de criação de um filho tem sido cada vez mais compartilhada entre os pais, embora ainda persista a ideia da mãe enquanto cuidadora da família e do lar. No entanto, sendo a amamentação uma tarefa exclusiva de pessoas do sexo feminino, acreditamos que este público comporia uma parcela significativa do leitor imaginado em relação a este acontecimento midiático, diante dos danos à saúde evocados nos textos. Por que então nenhuma voz de uma mãe (ou até mesmo de um pai) é contemplada nos discursos jornalísticos analisados? Acreditamos que este questionamento deveria ser analisado perante as discussões de gênero na produção jornalística. *** No estudo Óbito ocupacional por exposição a agrotóxicos utilizado como evento sentinela: quando pouco significa muito, já explicitado no capítulo 1, a coordenadora do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas (Sinitox), Rosany Bochner, opta por olhar o caso individual, em detrimento do quadro geral, fornecido pelas notificações registradas nos sistemas de informação em saúde. A pesquisadora traz um caso no qual o nexo causal do óbito ocupacional (intoxicação por agrotóxico) fora comprovado por investigação judicial, salientando que, o posto deste trabalhador deve estar sendo ocupado por trabalhadores nas mesmas condições que o levaram a óbito em menos de três anos. É o que a autora denomina de evento sentinela, uma ocorrência que representa outras, o pouco que significa muito (BOCHNER, 2015). Ao analisar uma quantidade significativa de jornais impressos em um período curto e sobre qual não se teve uma produção noticiosa intensa (nosso corpus reduzido foi composto por 14 textos), percorremos um caminho semelhante. Ampliamos o olhar sobre um caso individual (o do Leite Humano Contaminado por agrotóxicos), buscando a produção noticiosa sobre agrotóxicos veiculada durante dois meses, em oito veículos de comunicação diferentes. Mas o pouco representado pelo nosso caso, nos deu muito: acreditamos que os resultados encontrados neste estudo contribuem para a compreensão do quadro maior, o da relação

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agrotóxicos e jornalismo, mesmo que a análise não possa ser extrapolada para além do contexto específico em que foi produzida – nem é esta nossa pretensão. Não se trata de colocar nosso ponto de vista como um único possível em relação ao nosso objeto específico, nem de pretender esgotar o potencial analítico deste. Na verdade, é apenas um, dentro das possibilidades incontáveis contidas no corpus analisado. E, como sujeitos atravessados por diversos discursos e contextos que somos, aqui também há privilegiamentos e silenciamentos. Ainda assim o que encontramos ao longo do universo que nos cabe, àquele encontrado no “pontinho” pesquisado, é uma semente, muito mais complexa e diversa do que nossa hipótese – e formação linear – pôde prever. E como toda semente, esta é feita para um dia virar árvore e florescer. Esperamos que este trabalho inspire muitos outros sobre o tema. O nosso final não é, assim, um ponto. Mas reticências...

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201

APÊNDICE

Linha do tempo – Trajetória do caso do Leite Humano Contaminado – 15/03/11 a 15/05/11

Data 15-mar 17-mar 18-mar

Veículo UFMT 24 Horas News Band local Blog do Nassif

21-mar

Turma do Epa

22-mar

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Título O Caso do Leite Humano Contaminado vem à tona Soja usa 5 milhões de litros de agrotóxico e chega ao leite materno em MT Agrotóxicos contaminam leite materno em Lucas Os agrotóxicos em Lucas do Rio Verde Agrotóxicos contaminam leite materno em Lucas MP investiga contaminação de leite materno por agrotóxicos Estudo aponta agrotóxico em leite materno Contaminação por agrotóxicos repercute nacionalmente Pesquisa realizada em Mato Grosso revela contaminação de leite materno Em Mato Grosso, pesquisa encontra agrotóxico em leite materno Prefeitura de Lucas do Rio Verde questiona pesquisa da UFMT sobre a presença de agrotóxicos no leite materno Pesquisa da UFMT identifica agrotóxico em amostras de leite materno no Mato Grosso Agrotóxico usado na agricultura contamina leite materno no MT Pesquisa realizada em cidade do Mato Grosso revela contaminação de leite materno Leite materno impuro Agrotóxico presente em leite materno, traz tese Pesquisa sobre agrotóxicos causa preocupação Pesquisa identifica agrotóxico em amostras de leite materno no Mato Grosso Wanderlei Pignati: Até 13 metais pesados, 13 solventes, 22 agrotóxicos e 6 desinfetantes na água que você bebe Exclusivo: A pesquisadora que descobriu veneno no leite materno A nota da Prefeitura de Lucas do Rio Verde Mães pararam de dar o peito aos filhos em Lucas Agrotóxicos entram na pauta da Câmara Presença de agrotóxicos em leite materno assusta mulheres de MT

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Especialistas alertam para o perigo dos agrotóxicos para a saúde humana e o meio ambiente Especialistas alertam para o perigo dos agrotóxicos para a saúde humana e o meio ambiente A radioatividade e o leite contaminado Atingidos por barragens, trabalhadores rurais e ambientalistas marcham na Esplanada Começou a campanha contra o uso de agrotóxico e pela vida no Espírito Santo Turma do agronegócio só pensa na conta bancária, diz Stedile Câmara Federal vai debater a intoxicação de leite materno Agrotóxico no leite UFMT e Lucas discutem resultados de pesquisa sobre agrotóxicos em leite humano Agrotóxico está com maior poder de contaminação MT quer passar a limpo o caso da contaminação Manchete sobre agrotóxicos repercute entre deputados MT: Ministério Público tenta frear danos de agrotóxicos Estudiosos cobram fiscalização do uso

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