Dissertação - O mundo das sombras em Homero e Virgílio.pdf

May 27, 2017 | Autor: Roosevelt Rocha | Categoria: Homero, Virgilio, Descensus, Intertextualidade, Nekuia
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SUMÁRIO Introdução.......................................................................02 O mundo dos mortos antes e depois de Homero até Virgílio........................................................07 Os rituais na nékyia homérica E no descensus virgiliano...............................................25 A composição dos espaços infernais..............................40 Os sentidos das comunicações com o mundo dos mortos...............................................59 Conclusão.......................................................................69 Traduções.......................................................................76 Nota às traduções...............................................77 Odisséia, de Homero - Livro X, 467 até Livro XI, 640 Tradução e Notas..................78 Eneida, de Virgílio - Livro VI Tradução e Notas.............................................105 Fontes e Bibliografia....................................................139

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Introdução É comum, sempre que se lê um estudo sobre a cultura romana, ver o pragmatismo ser colocado como traço definidor do caráter do homem romano. De alguma forma, sem dúvida, um certo tipo de ‘utilitarismo’ pode ser esboçado quando pensamos acerca da cultura que se desenvolveu a partir da Vrbs. E, não de forma diversa, sempre que nos deparamos com um texto que traça alguma comparação entre as culturas romana e grega, vemos enaltecida e destacada a maior sensibilidade dos povos helênicos em relação ao exercício do pensamento e da filosofia. Amiúde se vê lembrada a famosa desvalorização do trabalho manual (tão caro aos romanos, de origem rústica) e o gosto helênico pela discussão, pela dialética, pela ágora. Não teria sido por acaso que entre os gregos surgiram muito mais filósofos do que entre os romanos. E não teria sido por acaso também que estes só alcançaram uma profundidade maior do pensamento quando chegaram ao Golfo de Tarento e, mais tarde, quando cruzaram o Adriático e entraram em contato direto com a cultura da Grécia helenística. Jacqueline de Romilly (1995:75-76), ao tratar rapidamente da nékyia de Ulisses e do descensus de Enéias, de certa forma inverte este quadro. Romilly afirma que a nékyia de Ulisses está destituída de elementos ‘metafísicos’. Tudo se passa como se Odisseu simplesmente não tivesse descido ao Hades e, ao falar com os mortos, ele age como se estivesse conversando com o comum das gentes. Já no descensus de Enéias a autora afirma que há uma predominância de elementos filosóficos e de cunho religioso, o que concede um sentido de separação do cotidiano e da vida comum para o livro VI, da Eneida. Assim, em um texto proveniente de uma cultura na qual víamos a ausência do pensamento profundo e da reflexão, pululam elementos filosóficos e ‘metafísicos’. E, em uma história originária de uma cultura na qual se afirma um certo afastamento da vida comum e um estreitamento em relação à reflexão mais detida, encontramos uma surpreendente imersão no cotidiano. Como se dá isso?

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Em primeiro lugar é necessário notar que tanto a Eneida como a Odisséia foram produzidas em momentos sui generis tanto da evolução da cultura romana quanto do desenvolvimento da cultura helênica. Podem ser detectados no texto virgiliano elementos de inspiração órfico-pitagórica, neo-platônica e estóica, filosofias que tiveram grande penetração em Roma no momento do nascimento do Império e que influenciaram Virgílio e o seu entendimento do além-mundo (Mendes, 1996:5). Já a Odisséia remonta, no mínimo, ao período arcaico da história grega. Neste momento assiste-se ao surgimento das primeiras cidades-estado, ao nascimento do pensamento filosófico e ao advento da escrita, o que possibilitou a compilação dos poemas homéricos. Como se vê, Virgílio e Homero produziram suas obras em momentos bastante específicos da história de seus povos. Com este estudo pretendemos apresentar um contraponto a essa maneira de ver o povo romano sempre como pragmático, incapaz de uma reflexão mais profunda acerca da realidade. Não queremos negar que esse traço seja saliente no âmbito da cultura romana, mas buscaremos mostrar que é preciso lançar um olhar mais atento sobre os diversos níveis dessa cultura. Além disso, com esta pesquisa, esperamos apresentar uma contribuição aos estudos sobre as concepções de além na Antigüidade Clássica e, num contexto mais largo, aos estudos sobre a religião entre gregos e romanos. Tendo tudo isso em vista, este trabalho tem por objetivo principal proceder a uma comparação entre o descensus de Enéias e a nékyia de Ulisses e analisar os elementos que caracterizam as duas comunicações com o mundo dos mortos, sempre tendo em vista a maneira como os poetas criaram seus infernos específicos diferenciando-os ou não do mundo dos vivos. Além disso, estaremos atentos às possíveis intertextualidades presentes nos dois textos: pode-se falar de influências de outros textos/autores sobre os infernos analisados neste projeto? Se sim, de que maneira? Que sinais nos permitem afirmar a existência dessas influências? Ao fazer esta comparação estaremos também confrontando dois quadros de pensamento religioso e duas maneiras de encarar o além-mundo. 3

É importante notar que a épica clássica caracteriza-se como narrativa de feitos heróicos e tais feitos serão sempre determinados pelo caráter do herói e poderão ser compreendidos segundo este caráter. Tanto é assim que, na Ilíada, Homero nos fala sobre a ‘ira’ (ménis) de Aquiles e, na Odisséia, sobre a ‘astúcia’ (métis) de Ulisses, assim como Virgílio escreve sobre a ‘piedade’ (pietas) de Enéias. Além de caracterizar-se como narrativa de feitos heróicos, a épica clássica apresenta certas particularidades que dizem respeito ao estilo e à composição formal do poema. E é através dessas particularidades que se evidenciam as semelhanças e as diferenças entre a narrativa homérica e o texto virgiliano. Sabemos hoje que os poemas homéricos são produto de uma longa tradição oral que existiu no mundo helênico antes da introdução da escrita. Marcas de oralidade podem ser notadas nas constantes repetições dos epítetos (que seguidamente acompanham os nomes de heróis e de deuses), e de certas fórmulas e frases-feitas que cintilam como feixes revigorantes da cansada memória do aedo (Lesky, 1968:35-36). O que diferencia a narrativa homérica do texto virgiliano é justamente isso. A epopéia de Virgílio nasce no âmbito de uma cultura já relativamente letrada e erudita, como era a da corte do Imperador Augusto. O mantuano também invoca a Musa, mas o faz, em certo sentido, de modo artificial. É evidente que em muitos momentos do texto o poeta da Eneida imita Homero e o fato de invocar a Musa deixa isso claro. Além disso, a épica virgiliana tem funções claramente políticas de justificação do poderio do Imperador. Toda uma imagem de Augusto é construída calcada na idéia de que ele seria o novo herói fundador dos novos tempos da latinidade. Augusto aparece disfarçado sob a persona do Enéias piedoso e iniciador de toda uma tradição. Mas, como já foi dito, Virgílio se valeu, em vários momentos da composição da sua epopéia, do modelo homérico. Porém, como também já foi dito, 4

Virgílio ‘peneira’ o modelo homérico através do crivo do seu pensamento de romano erudito e conhecedor da escrita. Uma marca evidente desse letramento é a extensão muito menor da Eneida em relação à Ilíada e à Odisséia. Também está claro que Virgílio se valeu do Hades homérico como modelo ao construir o seu mundo subterrâneo no livro VI de sua epopéia. Assim, devemos analisar as duas geografias infernais e os meios de acesso ao mundo subterrâneo. Estaremos atentos a cada um dos rituais realizados para propiciar as descidas. Primeiramente os rituais de abertura das portas dos infernos. Depois devemos destacar os elementos que diferenciam o além-mundo do mundo. Assim, tentaremos ver como em cada uma das descidas aparecem sinais de um distanciamento da vida cotidiana. Como complemento de importância central para a análise, realizaremos também a tradução, acompanhada de notas, do livro VI da Eneida e do trecho da Odisséia que trata do contato entre Ulisses e as sombras dos mortos, que vai do livro X, 467 até o fim do livro XI. Para proceder à comparação anunciada acima, teremos como ponto de referência a presença e/ou ausência de elementos ‘metafísicos’ nos relatos das comunicações com o mundo dos mortos. Utilizamos aqui o termo ‘metafísico’ não no seu sentido estritamente filosófico. Como elementos ‘metafísicos’ estamos entendendo aqueles aspectos gerais ligados a um pensamento religioso, a doutrinas filosóficas (tais como as que aparecem no livro VI, da Eneida) e a rituais variados (como aqueles que precedem as comunicações dos dois heróis com o mundo das sombras). A respeito das comunicações com o mundo dos mortos tanto de Ulisses como de Enéias existem diversas interpretações, entre as quais podemos destacar a tese de Cardoso (1988) que argumenta que “a viagem de Enéias é uma ‘viagem mental’ produzida por elemento químico”, alucinógeno. Já Fraccaroli (1993), por exemplo, afirma que a viagem de Ulisses seria inútil. Inútil porque Ulisses vai ao Hades para encontrar a sombra de Tirésias, o profeta tebano, para obter informações 5

sobre como retornar para Ítaca e este não lhe diz nada além do que Circe já lhe havia dito anteriormente. Por isso a descida de Ulisses teria o objetivo de colocá-lo numa tradição de visitantes das mansões do Hades junto com Hércules, Teseu e Pirítoo. Ao longo do texto apresentamos outras interpretações e tiramos nossas próprias conclusões sobre a questão de por quê os heróis devem comunicar-se com o mundo dos mortos. Para enriquecimento da análise deveremos fazer um apanhado de outros testemunhos de viagens ao mundo das sombras; analisaremos os rituais realizados pelos heróis para que pudessem ter com os mortos; analisaremos também a maneira como se organizam as geografias infernais nas duas descrições e, por fim, tentaremos responder à pergunta: por que os heróis desceram aos infernos? Assim, perfaremos um percurso que nos auxiliará a entender melhor as concepções de além na Antigüidade Clássica. Estaremos atentos também às possíveis intertextualidades que aparecem nas epopéias homérica e virgiliana visando ao entendimento mais apurado do nível de complexidade das construções infernais nos dois autores. Por fim tentaremos notar de que maneira se manifestam na nékyia de Ulisses e no descensus de Enéias esta ‘emoção filosófica’, esta ‘ansiedade metafísica’ e um certo senso do maravilhoso. Estaremos também tomando uma posição em relação à afirmação que Romilly faz sobre as comunicações colocandoa em perspectiva junto com outras interpretações.

* Ao longo da realização da nossa pesquisa, algumas leituras marcaram significativamente nosso procedimento. Em primeiro lugar, o texto de Romilly (1995), que nos sugeriu o tema deste trabalho, “Pourquoi Ulysse?”, incluido no seu livro Rencontres avec la Grèce Antique, que trata da recorrência na literatura ocidental da história de Ulisses. Outro autor que exerceu grande influência sobre nosso trabalho foi Cors i Meya (1984), que, na sua tese de doutorado, fez um grande estudo sobre a viagem de Odisseu ao mundo dos mortos, tratando com especial 6

atenção das possíveis fontes mesopotâmicas da Odisséia, levantando elementos de comparação entre esta epopéia homérica e o Gilgamesh. A todos que estudam as aventuras de Odisseu, recomendo a leitura desta obra e do clássico de Germain (1954), La Genèse de l’Odyssée, cuja apreciação nos proporcionou muitas reflexões férteis no momento da redação dos capítulos sobre os rituais e sobre a geografia. Sobre o livro VI, da Eneida, há uma extensa bibliografia. Mas em qualquer lista deve contar o monumental comentário de Norden (1916), que nos foi muito útil, apesar do nosso relativo conhecimento da língua alemã. Outro comentário que também aparece em qualquer bibliografia sobre o livro VI é o de Austin (1988), que apresenta dados e interpretações mais atualizados sobre o descensus de Enéias e extensa bibliografia. De grande importância foram, da mesma maneira, os tratados de Cumont (1949), Lux Perpetua, e After life in Roman Paganism (1959), que versam sobre a religião romana em geral, dando especial atenção às relações entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.

Todos os textos de Grimal também

estiveram sempre presentes ao longo da pesquisa. Especialmente seu texto sobre o livro VI (1954), que nos forneceu muitas informações sobre os rituais funerários em Roma. Por fim, resta citar a Enciclopedia Virgiliana, que foi consultada seguidas vezes, em verbetes como “Inferi” (redigido por Setaioli (1985), grande especialista italiano no livro VI, que faz um detalhado panorama sobre as variadas interpretações existentes acerca do descensus de Enéias), “Ramo d’oro” e “Miseno”. Todos esses autores e textos marcaram profundamente minhas interpretações sobre o livro VI, da Eneida, de Virgílio.

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O mundo dos mortos antes e depois de Homero até Virgílio Neste capítulo pretendemos apresentar resumidamente alguns textos provenientes da Antiga Mesopotâmia e da Antigüidade Clássica que, de alguma maneira, tratam da vida no além ou descrevem viagens ao mundo dos mortos. O que nos interessa nesta parte do trabalho é mostrar que, antes da nékyia homérica e entre esta e o descensus virgiliano, outros textos trataram da vida no além e descreveram viagens até lá. Queremos destacar nesses relatos elementos que poderiam ter influenciado de algum modo a visão homérica e/ou a visão de Virgílio, herdeiro privilegiado de todo um passado literário, religioso e filosófico. Além disso, pretendemos evidenciar certos lugares-comuns que se tornaram recorrentes nos diversos relatos e que nos permitem dizer que a viagem ao mundo dos mortos poderia ser entendida como um tópos da literatura antiga. * Antes de Homero e entre este e Virgílio houve narrativas e outras modalidades de testemunhos que trataram da vida após a morte ou descreveram viagens ao além. Homero e Virgílio participam de uma longa tradição que se estende até os nossos tempos1. Por isso, é importante fazer um breve panorama mostrando outros textos que de alguma maneira se ligam aos relatos homérico e virgiliano, destacando elementos de aproximação entre os vários textos. Primeiramente, queremos destacar dois mitos mesopotâmicos que apresentam muitos elementos interessantes para a nossa análise: o que narra a descida de Ishtar aos Infernos e o que descreve a viagem empreendida por Gilgamesh em busca do segredo da imortalidade. Os textos que trazem esses mitos são de origem acadiana (provenientes da biblioteca de Assurpanipal, que foi encontrada em Nínive) e de origem suméria, babilônica e semítica com datações girando em torno do segundo milênio a. C. e foram compilados por James B.

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Joyce, num dos capítulos de seu Ulisses, ‘descreve’ uma viagem ao Hades.

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Pritchard (1958). São poemas épicos compostos em versos bastante lacunosos e é difícil determinar sua autoria. Como veremos mais à frente, esses mitos apresentam alguns pontos em comum com a visão helênica de além e poderiam mesmo ser considerados testemunhos da influência da cultura dos povos da Mesopotâmia sobre a cultura grega. Um exemplo dessa possível influência encontramos em alguns paralelos que há entre o Gilgamesh mesopotâmico e a Odisséia homérica, como veremos mais adiante (p. 12). Ishtar era a deusa acadiana do amor e da fertilidade (a Inana suméria). De acordo com o relato mítico (Pritchard, 1958:80-85), a deusa chega às portas da morada das sombras, lugar de onde não se retorna e desprovido de luz, gritando e exigindo que lhe seja franqueada a entrada. Sua viagem tinha por objetivo libertar e reconduzir à vida seu amante que havia morrido: o deus Tamuz, ao qual corresponde o Adônis fenício. Um dado significativo é que conforme a deusa vai passando pelas sete portas do inferno, ela vai sendo desprovida de seus ornamentos (coroa, brincos, pulseiras) e vestimenta até que, depois de passar pela última porta, ela se vê nua. Talvez tenha sido espoliada para que se tornasse mais vulnerável, menos poderosa. Então ela é assaltada e presa por Namtar, um deus que serve a Ereshkigal, a soberana da terra e rainha do submundo. A partir desse momento, sobre a terra, os homens e os animais passam a ignorar o amor e deixam de procriar. Os deuses se entristecem com essa calamidade e se inquietam com a fome que ameaça os viventes2 Ereshkigal é obrigada a convocar o tribunal de deuses dos infernos (os Annunaki) que decide libertar a deusa cativa. Ishtar verá de novo a luz do dia. Sobre ela é aspergida a água da vida e, a cada porta que ela supera no retorno, lhe são devolvidos os ornamentos e a vestimenta que lhe haviam sido retirados. Nesse mito, que lembra o do rapto de Perséfone, que também era uma divindade ligada à fertilidade, são mencionados elementos recorrentes em outros

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Isso também acontece no episódio no qual a deusa Deméter retirou-se aflita, pois não conseguia encontrar sua filha Perséfone, dentro da gruta de Figália. Cf. Bar, 1946:24-29.

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mitos: o fato de o inferno ser chamando “lugar de onde não se retorna” e a afirmação de que lá não há luz. Além disso, a descida de Ishtar aos infernos poderia ser considerada uma descrição de um ritual de iniciação ou de purificação. Basta observar o processo de desnudamento pelo qual passa a deusa e a sua subseqüente prisão e, depois, os sofrimentos suportados por ela. A aspersão com a água da vida marcaria o fim dessa passagem, dessa transição, e prepararia para o retorno à vida a deusa-iniciada. Esses serão dados que desempenharão um papel importante em concepções posteriores do reino das sombras e, de algum modo, podem ser indícios de que há alguma relação entre essas diversas concepções. É significativo também o motivo que leva Ishtar a descer aos infernos: resgatar um ente querido. Esse motivo reaparecerá depois nos mitos da descida de Dioniso (que vai ao Hades para resgatar sua mãe Sêmele) e da descida de Orfeu (que desce aos infernos para levar Eurídice de volta à vida). Outro texto mesopotâmico de interesse é o que relata as aventuras de Gilgamesh (Pritchard, 1958:40-75). A seqüência de episódios aqui apresentada não é, stricto sensu, um relato de viagem ao mundo dos mortos, porém apresenta uma série de elementos que nos permite traçar paralelos com a viagem de Ulisses, na Odisséia, por exemplo, o que justifica nossas rápidas observações sobre essa epopéia mesopotâmica. Gilgamesh era filho do rei Lugulbanda e da deusa Ninsun, sacerdotisa do deus-sol Shamash. Conseqüentemente, ele, o rei de Uruk, é um semi-deus: “dois terços dele são deus e um terço é humano”. Isso quer dizer que Gilgamesh é poderoso, forte e capaz de grandes feitos. Porém, sendo um terço humano, ele terá, como qualquer homem, o destino de um mortal. Depois da morte de seu companheiro Enkidu, Gilgamesh se desespera e decide ir em busca do segredo da imortalidade, que era conhecido por Utnapshitim, um seu antepassado que vivia apartado dos outros seres humanos e que tinha sido agraciado pelos deuses com o dom da vida eterna. Antes de morrer, Enkidu teve um sonho onde vislumbrou como era a vida no país da escuridão e do pó. Ele chama 11

esse lugar de “mansão das trevas”, “mansão onde se entra sem esperança de sair”, “cujos habitantes não têm luz” (Pritchard, 1958:58-59). Essa visão aterradora fez estremecer Gilgamesh e o impeliu à busca da imortalidade. Com esse objetivo, vai à procura de Utnapshitim, a quem os deuses concederam a vida eterna depois do dilúvio. Depois de uma longa viagem, superando duras fadigas, chega à montanha Mashu. Alí encontra os guardiões do caminho do Sol: os homens-escorpiões. Estes dizem a Gilgamesh que jamais um mortal conseguiu superar as doze léguas de escuridão através da montanha (essas doze léguas de escuridão podem ser consideradas uma metáfora das doze horas de escuridão da noite). Mas o rei de Uruk insiste e os guardiões, finalmente, permitem a sua passagem. Ele vai em direção a leste3 e, depois de cruzar as doze léguas de tênebra, ele encontra um jardim maravilhoso. Em tal lugar, Gilgamesh trava diálogo com o deus-sol Shamash, que tenta demover o filho de Ninsun de seus objetivos. Mas Gilgamesh continua a sua viagem e chega à taverna de Siduri4 e lhe pergunta sobre o caminho que o levará a Utnapshitim. Siduri indica-lhe a perigosa via que ele deve tomar. E então, subindo à barca de Urshanabi (uma espécie de Caronte mesopotâmico), eles atravessam o oceano e as águas da morte. Por causa das agruras do caminho, Gilgamesh chega em estado deplorável à morada de Utnapshitim. Este, depois de saber o motivo de sua viagem, lhe diz que a imortalidade não é uma característica dos humanos e narra-lhe a história do dilúvio, do qual ele e sua esposa foram os únicos sobreviventes humanos tendo sido contemplados pelos deuses com a imortalidade a ser gozada numa morada distante das moradas humanas. Mas, mesmo tendo explicado por que somente ele e sua esposa, dentre todos os mortais, receberam a imortalidade como prêmio, Utnapshitim propõe uma prova a Gilgamesh: ele deveria velar por seis dias e sete noites. Mas o filho de Ninsun estava já muito fatigado e terminou por sucumbir ao 3

E note-se que isso é incomum nas narrativas de viagem ao mundo dos mortos, nas quais o comum seria a direção oeste. 4

Essa personagem desempenha um papel mediador semelhante ao de Circe, na Odisséia. Cf. Cors i Meya, 1992:429-430. 12

sono antes do prazo que Utnapshitim tinha estabelecido para que ele ficasse acordado. Utnapshitmim ordena então que ele retorne para Uruk, mas, graças à intervenção da esposa daquele, Gilgamesh acaba obtendo o segredo da planta da juventude eterna, que deve ser procurada no fundo do mar. Gilgamesh a encontra e começa a viagem de retorno a Uruk. No caminho, enquanto se banhava em uma fonte, uma serpente surge e come a planta. O herói chora e se lamenta, mas não há recurso. Finalmente, Gilgamesh e Urshanabi chegam a Uruk e contemplam as muralhas da cidade. Na tabuleta XII, de origem assíria (posterior aos principais textos do ciclo de Gilgamesh que são de origem babilônica), encontrada em Nínive, resultado de uma adição posterior (Cors,1992:433-436), há o relato de uma verdadeira nékyia, que configura-se como uma narrativa paralela ao texto principal da epopéia e que conta uma história diferente acerca do fim do companheiro de Gilgamesh. Nessa tabuleta Enkidu oferece-se para ir buscar alguns instrumentos de Gilgamesh que haviam caído através de uma fenda na mansão subterrânea dos mortos. Gilgamesh dá instruções ao seu companheiro para que ele consiga voltar em segurança do mundo das sombras. Porém Enkidu não observa essas regras e fica preso lá. Gilgamesh pede aos deuses que libertem seu amigo. Por fim, Nergal, deus dos infernos que corresponde ao Hades grego, permite que o espírito de Enkidu suba à terra por alguns instantes. Gilgamesh troca algumas palavras com seu amigo, eles se abraçam e se beijam e Enkidu lhe revela as leis que regem a vida das almas no mundo subterrâneo que ele conheceu e qual a condição delas de acordo com o tipo de morte que tiveram e com o respeito e o culto que recebem após a morte. Esse relato mostra-se bastante coerente com a visão apresentada no texto do ciclo de Gilgamesh correntemente chamado de sonho de Enkidu, citado na página anterior (Cf. Pritchard, 1958:58-59). E, apesar de serem textos de épocas diferentes, eles revelam a permanência de certas características fundamentais da visão dos povos mesopotâmicos acerca do mundo dos mortos tais como as idéias de que o mundo dos mortos é desprovido de luz e de que de lá ninguém retorna. 13

É importante destacar também alguns elementos que aparecem nas narrativas das aventuras de Gilgamesh e que encontram paralelos na descrição da nékyia homérica. Em primeiro lugar, tanto Gilgamesh como Odisseu precisam realizar uma navegação sobre as águas que separam os vivos do outro mundo. E antes de embarcar sobre suas naves os dois heróis encontram uma figura que desempenha o papel de mediadora entre o mundo dos vivos e o outro mundo: Siduri, para Gilgamesh, e Circe para Odisseu. Em terceiro lugar, os dois heróis fazem invocações fora dos infernos às almas de ex-companheiros de armas que já tinham morrido e que lhes instruem acerca da verdadeira condição dos mortos: Gilgamesh, na tabuleta XII (Cors i Meya, 1992:433-436), invoca a alma de Enkidu e Odisseu a alma de Aquiles no livro XI, da Odisséia, versos 467-540 (Germain, 1954:421-422). Depois de comentar rapidamente o texto que trata da viagem da deusa Ishtar aos infernos e a epopéia de Gilgamesh e tendo notado alguns elementos que poderiam indicar uma possível influência de fontes mesopotâmicas sobre as concepções helênicas acerca da vida no além, passamos agora da Mesopotâmia para a Hélade, e encontramos em Homero a famosa narrativa que conta como Odisseu se comunicou com os mortos (Od., X, 467 – XI, 640). Depois de permanecer um ano na casa de Circe, os companheiros de Odisseu se impacientam e lembram a ele que eles devem voltar para sua terra natal. Odisseu então pede a Circe que o deixe ir embora. Ela diz que ele está livre para ir. Porém, antes de ir para Ítaca, ele deveria cumprir uma tarefa: ir até país dos mortos para consultar a alma do adivinho Tirésias acerca do caminho para sua pátria. Depois de se lamentar e hesitar por alguns momentos, Odisseu aceita a tarefa e então parte. Após cruzar o rio Oceano, os itacenses chegam ao país dos Cimérios, o local onde os mortos deveriam ser invocados. Realizam-se os rituais e as almas sobem do Hades, bebem do sangue da vítima e falam com Odisseu: primeiro Tirésias, depois sua mãe Anticléia, em seguida Agamêmnon e por fim Aquiles. Nos próximos capítulos analisaremos esta narrativa com mais atenção. 14

Nas narrativas apresentadas em resumo acima, já pudemos notar que muitas vezes a afetividade aparece motivando a viagem/comunicação (como no caso de Ishtar, que vai aos infernos em busca de seu amante) ou mesmo servindo de complemento, muitas vezes de grande importância para a história (como no encontro ‘casual’ de Odisseu com a alma de sua mãe Anticléia). Continuaremos destacando o aspecto da afetividade (que reaparecerá nas narrativas das viagens de Dioniso, Orfeu e Enéias) e também o caráter de tarefa a ser cumprida (rito de passagem) contidos nessas viagens. É importante ressaltar que uma de nossas fontes são posteriores a Homero, ao momento clássico da literatura grega e mesmo a Virgílio (Plutarco, nossa principal fonte para a história de Teseu e Pirítoo, viveu nos séculos I e II d. C.). Cabe notar também que Apolodoro, outra fonte importante para nossa investigação, era um compilador e a parte de sua obra que chegou até nós compõe-se de epítomes, resumos de outras obras de outros autores. Para nós o que é importante é o fato de que essas narrativas são testemunhos de que existiam histórias que descreviam viagens seja de deuses seja de heróis ao mundo dos mortos entre os gregos desde épocas recuadas. É difícil determinar a antigüidade exata dessas histórias, mas é certo que a substância dos textos de Apolodoro e de Plutarco, por exemplo, tem suas origens em épocas anteriores a esses autores. Que Homero e Virgílio tenham conhecido todas essas histórias, não está ao nosso alcance afirmar. Sabemos que os mitos que tratam das catábases de Teseu e Pirítoo e de Héracles já eram conhecidos nos tempos de Homero, pois encontramos referências a eles na Odisséia (XI, 631 e XI, 602-625). O que é significativo é que se pode depreender, a partir da comparação dos mitos, que havia um arcabouço comum no que diz respeito às concepções de além entre os antigos gregos. E isso se confirma pela presença de vários elementos em comum que aparecem nos diversos mitos, tais como a localização subterrânea do mundo dos mortos, a caracterização deste mundo como lugar desprovido de luz e a repetida designação dos infernos como lugar de onde não se volta. 15

Em primeiro lugar, mencionamos a descida ao mundo das sombras empreendida pelo deus Dioniso com o objetivo de resgatar sua mãe, Sêmele5 . Dioniso chegou ao Hades atravessando o lago de Lerna, lago sem fundo reputado como acesso mais direto aos infernos (o que nos faz lembrar das “águas da morte” superadas por Gilgamesh e do “oceano” superado por Ulisses.). Entretanto, como não conhecia o caminho, o deus teve de consultar um certo Prosimno, que lhe pediu, depois que ele voltasse, uma recompensa específica. Dioniso não pôde cumprir o prometido, pois Prosimno havia morrido no ínterim de sua viagem. O filho de Zeus e de Sêmele tentou, porém, respeitar a promessa plantando um bastão com um formato apropriado sobre o túmulo de seu informante como sinal de reconhecimento. Em sua estada na morada de Hades, Dioniso pediu a este que libertasse sua mãe. O soberano dos mundos subterrâneos acedeu, sob a condição de que Dioniso desse a ele qualquer coisa de que gostasse muito. O deus entregou o mirto, uma de suas plantas prediletas, e então Sêmele foi libertada dos infernos e ganhou um lugar entre os Olímpios. Nesse mito vemos mais uma vez os laços de afetividade e, no caso, de parentesco, como motivo da catábase. Aparece também a proposição de uma condição ou prova ao viajante provavelmente funcionando como um teste ao seu valor e ao seu desejo de ver concretizada a sua vontade: no caso de Dioniso, o desejo de libertar a sua mãe dos infernos e levá-la para junto dos outros deuses olímpios. Outra personagem que baixa aos infernos é Orfeu6. Célebre é a sua descida ao Hades por amor de sua esposa Eurídice. Esse mito, embora tenha tido, posivelmente, suas origens mais remotas na Grécia clássica (encontramos referências a ele em Eurípides (Alceste, 357ss.) e em Platão (Banquete, 179d).), desenvolveu-se como tema literário somente na época alexandrina e foi Virgílio, no

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Para este mito nossa fonte foi Apollod., Bibl., III, 5, 3 (Cf. nota 2). Ver também Pausan., II, 31, 2; II, 37, 5. 6

Virg., Georg., IV, 453 ss.Apollod., Bibl., I, 3, 2; Ovid., Met., X, 8-85; Pausan., IX, 30, 6.

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quarto livro de suas Geórgicas, 453-527, quem nos legou a versão mais completa e detalhada dele. Eurídice era uma ninfa (uma Dríade) ou uma filha de Apolo. Certo dia, quando passeava à margem de um ribeirão da Trácia, foi perseguida por Aristeu, que pretendia violentá-la. Enquanto fugia, pisou numa serpente, que estava escondida sob a relva, e ela a mordeu levando-a à morte. Orfeu, tendo perdido a razão de seu viver, desceu aos infernos com a intenção de procurar a sua amada. Com sua lira, encanta os monstros e deuses que lá moram. Sob o encantamento de sua música sucedem-se coisas maravilhosas: a roda de Íxion deixa de girar; a pedra de Sísifo equilibra-se imobilizando-se; Tântalo esquece a sede e a fome e as Danaides já não tentam encher de água o tonel perfurado. Os soberanos dos infernos, Hades e Perséfone, aceitam devolver Eurídice ao esposo que deu tamanha prova de amor. Mas impõem uma condição: Orfeu deve seguir à frente, seguido da sombra de sua esposa, porém sem se voltar para trás para a ver antes de ter atingido a luz do dia. O divino cantor aceita a condição e inicia seu retorno ao mundo dos vivos. Quando estava a poucos passos da saída do inferno, vem-lhe uma dúvida funesta ao coração: Perséfone não o teria iludido? Incauto, volta os olhos por cima dos ombros e vê Eurídice desaparecer entre as sombras e a bruma. Novamente tenta ir aos palácios de Hades, mas Caronte, inflexível, nega-lhe a entrada no mundo subterrâneo. Por fim, Orfeu é obrigado a voltar ao mundo dos humanos, inconsolável. Esse relato, que aparece no quarto livro das Geórgicas como um epýllion, será importante como gestação e preparação de elementos e motivos que depois serão retomados por Virgílio no livro VI da Eneida (Setaioli, 1985:955). Também é necessário dizer que tal mito, a catábase de Orfeu ao Hades, enquanto relato escatológico, teve importância central no pensamento órfico (Cf. Guthrie, 1956:40ss.).

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Outro mito que narra as aventuras de heróis no reino dos mortos é o de Teseu e Pirítoo7. Entre estes havia uma tenaz amizade e os dois, visando honrar essa amizade, decidiram ajudar um ao outro na procura de esposas de origem divina. Depois de ajudar Teseu a raptar a ainda ínube Helena, Pirítoo e seu sócio dirigem-se aos infernos visando o rapto da esposa de Plutão, a rainha Perséfone. Eles conseguiram entrar, mas foram vítimas da sua própria imprudência. Hades, aparentemente, os recebeu bem, convidando-os para sentar e cear à mesa. Mas, sem perceber o ardil, puseram-se nas cadeiras e viram-se presos sem poder se levantar, ficando prisioneiros. Mais tarde, quando Héracles desceu aos infernos, quis libertálos, mas apenas Teseu recebeu dos deuses o dom da liberdade. Pirítoo permaneceu para sempre preso à Cadeira do Esquecimento. Havia uma anedota que dizia que, ao fazer esforços para se levantar da cadeira, Teseu aí deixara uma parte de seus glúteos e isso explicava o fato de os atenienses terem sempre sido pouco carnudos de nádegas. Outra catábase nos é descrita no mito de um dos doze trabalhos de Héracles8. O filho de Alcmena tinha por primo Euristeu e a este servia como um escravo. Héracles queria voltar para Argos, mas o seu primo somente consentiria depois que ele executasse uma série de doze trabalhos. Entre estes, Héracles deveria capturar e trazer ao mundo dos vivos o cão Cérbero, guardião monstruoso da morada de Plutão. Héracles, apesar de todo seu valor, nunca poderia realizar tal feito se não contasse com a ajuda dos deuses Hermes e Atena, enviados em seu auxílio por ordens de seu pai Zeus. Antes de partir, ele iniciou-se nos Mistérios de Elêusis, os quais precisamente ensinavam aos fiéis os meios de chegar ao outro mundo com toda segurança, depois da morte. Segundo o resumo que fizemos a partir do texto de Apolodoro (ver nota 10), Héracles tomou o caminho do Tênaro, monte localizado no Peloponeso, para 7

Para esse mito nossa principal fonte foi Plut., Thes., 30 ss. Ver também Apollod., Bibl., Ep., I, 23-24, Pausan., I, 29, 9 e Sen., Phae., 92-98 e 835-853. 8

Para a catábese de Héracles nossa principal fonte foi Apollod., Bibl., II, 5, 12. Ver também Bacch., V, 56-175, Eur., Herc. F., 23 ss. e Sen., Herc. F., 50 ss. 18

descer aos infernos. Quando as sombras dos mortos viram-no chegar ao seu reino, tiveram medo e fugiram. Apenas duas ficaram: a Górgona Medusa e o herói Meleagro. Héracles puxou da espada contra Medusa, mas Hermes, que o estava guiando, avisou-o que tratava-se apenas de um sombra inofensiva. Contra Meleagro ele impunhou o arco, mas aquele se aproximou e contou o seu fim em termos tão tocantes que Héracles se comoveu às lágrimas. Perguntou se ele ainda tinha alguma irmã viva. Meleagro respondeu que Dejanira ainda vivia e Héracles, então, prometeu casar-se com ela. Mais à frente, encontrou Teseu e Pirítoo que haviam sido presos por Hades, porque tinham ido com a intenção de roubar-lhe a esposa Perséfone. Héracles obteve a permissão de Perséfone para libertar Teseu, mas Pirítoo, como castigo pela sua ousadia, teve que permanecer nos infernos. Depois, com o fim de oferecer sangue aos mortos, que poderiam, através de libações sangrentas, recobrar um pouco de vida, Héracles decidiu matar alguns animais do rebanho de Hades. Mas acabou não conseguindo. Em seguida, Héracles viu-se frente a frente com Hades e pediu-lhe o cão Cérbero. O deus consentiu, sob a condição de que o vencesse sem o auxílio de suas armas habituais, usando apenas a sua couraça e sua pele de leão. Concordando, o herói ataca Cérbero e doma-o, depois de longa batalha. Tendo vencido e capturado sua presa, Héracles regressa passando pela Boca do Inferno, em Trezena. Depois de certo tempo, sem saber o que fazer com o cão, Héracles acabou por devolvê-lo a seu dono, o deus Hades. Entrando agora no domínio da lírica grega, encontraremos algumas referências a viagens ao além, que nos auxiliarão na compreensão das concepções de além-túmulo entre os povos helênicos. Em Teógnis (699-718) encontramos uma rápida referência ao retorno de Sísifo do mundo dos mortos. Ainda vivo, o herói instruíra sua esposa para que não celebrasse os ritos funerários devidos. Astuciosamente, ele convenceu Hades a deixá-lo retornar ao mundo dos vivos para tratar do cumprimento dos ritos. Depois de ‘ressuscitar’, Sísifo não retornou ao Hades e viveu até avançada idade. Outro exemplo rico é o contido na segunda 19

Olímpica, de Píndaro, verso 55 e seguintes: ali o poeta beócio nos diz que os bons vivem num lugar onde sempre há luz, sempre há sol; e que eles vivem sem fadiga, pois não precisam sulcar o solo para conseguir alimento nem precisam sulcar o mar por causa de um lucro magro e incerto. Com os deuses venerandos, os bons, aqueles que observaram seus juramentos, levam uma vida sem sofrimentos. Os outros, os que não observaram seus juramentos, suportam provações ingentes. Depois dessa passagem que claramente indica uma transformação nas concepções helênicas de vida no além e nos mostra que havia uma “teoria” sobre a existência de castigos para os fautores e recompensas para os justos no outro mundo no pensamento de pelo menos uma parte dos gregos do período arcaico, Píndaro nos fala de concepções que se assemelham muito a certas idéias do pitagorismo. O poeta diz que quem permaneceu três vezes deste lado e três vezes do outro lado da vida, soube purificar sua alma de todo mal e completou o caminho de Zeus, o caminho da justiça, para chegar à cidade murada de Cronos: nesse lugar brisas oceânicas envolvem a Ilha dos Bem-aventurados e flores de ouro irradiam seu brilho. Para usar um termo moderno, poderíamos dizer que a alma que “reencarnasse” três vezes iria para um lugar paradisíaco reservado para os melhores, os áristoi, para os heróis. Tais concepções, como sabemos, tiveram grande fortuna não só entre os antigos gregos, como também no posterior pensamento ocidental. Avançando um pouco na linha do tempo, encontraremos a cômica narrativa da descida ao Hades realizada pelo deus Dioniso, presente na comédia As Rãs, de Aristófanes. Nessa paródia9 da catábase de Héracles, Dioniso, entediado pela falta de grandes poetas vivos no mundo e desejoso de trazer o tragediógrafo Eurípides de volta à vida (vv. 66ss.), dirige-se à casa de Héracles para pedir indicações acerca do caminho que o levaria ao Hades. Héracles, que, como sabemos, já tinha ido à mansão dos mortos, descreve ao deus quais seriam os possíveis caminhos (vv. 120ss.): esfaquear-se, tomar veneno ou atirar-se de uma torre. Sem dúvida, todos

9

O fato dessa narrativa ser uma paródia de uma catábase pode ser considerado uma evidência de que narrações de viagens ao mundo dos mortos tinham certa fama entre os gregos do período clássico. 20

esses caminhos levam ao Hades, porém sem retorno. Dioniso explica que não é esse tipo de viagem que ele pretende empreender. Héracles então entende o que ele deseja e lhe explica (vv. 139ss.): o deus encontrará um pântano muito grande e sem fundo que será superado numa barca depois de pagar o barqueiro (que depois saberemos que é Caronte) com dois óbolos. Mais à frente o deus verá serpentes e uma grande quantidade de feras horripilantes. Mas, depois de tantas provações, ele encontraria um lugar onde suspiram as flautas e onde há luz belíssima (vv. 153ss.). Nesse lugar estariam os iniciados nos Mistérios (que presumimos serem os de Deméter).Tudo o que Héracles descreveu se cumpre e Dioniso chega ao inferno. E, ao contrário do seu primeiro desejo, ele leva Ésquilo de volta à vida, depois de uma disputa poética entre a alma deste e a de Eurípides. Nesse relato estão presentes elementos que já pudemos detectar em outras narrativas apresentadas acima (tais como a localização subterrânea do mundo dos mortos e a necessidade de se superar um obstáculo aquático, no caso um pântano), e que, certamente, faziam parte de uma mentalidade comum ao pensamento helênico anterior ao pensamento filosófico. Com o surgimento de uma reflexão mais racional sobre a natureza, iniciada pelos ‘físicos’ jônicos, surgem também novas concepções sobre a alma e sobre seu destino após a morte, como veremos a seguir. Em alguns diálogos de Platão encontramos essa maneira mais racional de encarar o além, tendo em vista uma certa ordem, uma certa hierarquia entre os diversos elementos, e tendo em vista também uma maior riqueza de detalhes presente nas concepções. É significativa a descrição que Platão faz no final do Górgias10, do destino das almas após a morte. Primitivamente as Ilhas dos Bemaventurados eram o destino das almas justas e o Tártaro era o destino das injustas (523-b). As pessoas eram julgadas ainda, por assim dizer, no leito de morte por juízes vivos. Estes, muitas vezes, se enganavam iludidos pela beleza, pela vestimenta e pelos testemunhos do morrente e não viam as verdadeiras máculas que este trazia em sua alma (523-d). Depois que Cronos foi deposto e o universo foi 10

Platon, 1955.

21

dividido em reinos entre Zeus, Poséidon e Plutão, tratou o primeiro de transferir para depois da morte o julgamento das almas que deviam apresentar-se aos olhos de Éaco, Radamanto e Minos, despidas e sós, exibindo todas as marcas que as iniqüidades cometidas tinham deixado em suas almas (524-e). Já as almas de pecadores incuráveis passaram a seguir para o Tártaro, onde servem de exemplo às almas recuperáveis, que, depois de expiar as faltas, voltam a encarnar (525-c). Raramente se apresenta aos juízes a alma de alguém –geralmente de um filósofo – que na sua vida terrena se tenha preocupado em viver santamente e dentro da verdade. Quando surge no Hades alguém assim, logo é enviado para a Ilhas dos Bem-aventurados, onde goza de felicidade eterna. Outro passo importante em que encontramos expressa a maneira como Platão entendia o além aparece no Fédon (113) onde o autor descreve a organização dos rios infernais. O Aqueronte (que literalmente quer dizer “rio dos lamentos”) corre em sentido oposto ao rio Oceano, o qual circunda toda a terra,

e corre

também por baixo da terra e por fim deságua na lagoa Aquerúsia. A este lago são enviadas as almas dos mortos que, depois de certo tempo, deverão novamente habitar um corpo humano. Um outro rio que também se lança no Tártaro é o Piriflegetonte (“rio de chamas de fogo”) e dele é que brota toda lava que se encontra sobre a terra. O quarto rio é o Cocito (“rio das queixas”) que desemboca no lago Estige onde suas águas adquirem propriedades terríveis, temidas até mesmo pelos deuses. As almas dos mortos, depois de serem julgadas, são conduzidas por seu gênio tutelar a determinados lugares de acordo com o veredicto dos juízes. Se a alma teve uma existência comum, ela é levada ao Aqueronte e nele se encaminha para a lagoa Aquerúsia. Neste lugar passam a morar e a submeter-se a purificações. Mas se para alguma alma não houver remissão, então é lançada no Tártaro, de onde não mais sairá. Quanto àquelas almas que cometeram erros que têm remédio, elas também vão para o Tártaro, porém decorrido o período de um ano, depois de terem sido precipitadas, uma onda as arremessa ou no Cocito ou no Piriflegetonte e são transportadas para as imediações

da lagoa Aquerúsia. Ali as almas pecadoras 22

pedem perdão às almas as quais elas prejudicaram e lhes suplicam que as deixem passar do rio ao lago. Se são atendidas, saem do rio e não sofrem mais. Se não, são jogadas novamente no Tártaro, e de lá novamente aos rios, numa repetição sem trégua, até que hajam obtido a permissão para sair do rio. E aquelas almas cuja vida foi virtuosa e piedosa são libertadas dos cárceres das regiões subterrâneas da terra e são levadas para regiões puras e mais de acordo com o valor e a excelência da alma libertada. E entre estas, as almas que se dedicaram à filosofia são as mais puras (113-114)11. Na República, X, 614c-621c, Platão não nos fala mais só da organização do submundo, da geografia dos infernos, mas faz a descrição de uma verdadeira viagem ao além realizada por uma personagem que ele chama de Er, filho de Armênios, nascido na Panfília. Nesta viagem “filosófica”, como a qualifica Bar (1937:39), delineia-se mais claramente, talvez, pela primeira vez na história do pensamento ocidental, a idéia de que as almas puras e virtuosas dirigem-se para uma região celestial e as almas pecadoras vão para regiões infernais no interior da terra. Er tinha sido dado por morto em uma batalha. Mas ele retorna à vida e conta como sua alma tomou um caminho que o levou a um lugar extraordinário, onde encontrou quatro aberturas, duas no céu e duas na terra. No meio se achavam os juízes, que enviavam as almas justas para o céu pela abertura da direita, e as almas criminosas, ao interior da terra pela porta da esquerda. Por outra abertura, Er viu subir da terra almas cobertas de pó e, da outra abertura no céu, viu descer sombras puras. Especialmente punidos eram os tiranos. Depois de sete dias, as almas, junto com Er, partiram para uma viagem de quatro dias e chegaram a um lugar onde se via uma coluna de luz de várias cores. Era como o eixo da esfera celeste e via-se aí suspendido o fuso da Necessidade, pelo qual são movidos todos os mundos. Uma harmonia sublime resulta do movimento das esferas. Entretanto, as almas são bem organizadas por um hierofante 11

Platon, 1957.

23

que toma sobre os joelhos de Láquesis os diversos destinos que cada alma poderá escolher. Algumas escolhem bem, mas outras fazem escolhas inconscientes e depois acusam os deuses. Quando os trabalhos se encerram, Láquesis dá a cada alma o gênio que convém ao seu novo destino. As almas vão então para a planície tórrida de Letes e aí bebem a água do rio Ameles (“sem preocupações”), que nenhum vaso pode conter. Os imprudentes acabam bebendo demais e perdem toda lembrança do seu passado. Depois as almas vão em direção à terra para retornar à vida corpórea. Quanto a Er, que havia sido impedido de beber a água do rio Ameles, volta à vida no momento em que o seu corpo estava já sobre a pira fúnebre onde seria cremado12. Deixando agora o universo dos diálogos platônicos e passando para um texto menos conhecido, apresentamos o resumo de um mito que relata a viagem do filósofo Pitágoras aos infernos. Essa narrativa encontrava-se num texto chamado Abaris13, que, infelizmente, nos chegou apenas em fragmentos e através da tradição indireta. Neste texto, Pitágoras, que é visto como um verdadeiro deus, um avatar de Apolo, para convencer algumas pessoas sobre a realidade da metempsicose, atestava o que ele havia visto nas suas viagens aos infernos, pois lá ele podia ir quando quisesse. Talvez, na sua primeira viagem, ele tenha sido conduzido por um ser sobrenatural, chamado Epimênides, considerado como a reencarnação de Éaco, um dos juízes do Hades segundo a tradição mitológica. E depois Pitágoras, como a Sibila, na Eneida, talvez pudesse conduzir ao além outros privilegiados. O Hades era dividido em compartimentos dos quais vários eram reservados aos criminosos, um às almas médias e outro para os bem-aventurados. Antes do Hades, havia uma região liminar onde deviam permanecer por algum tempo os mortos sem sepultura, aqueles cuja vida acabara prematuramente e aqueles que pereceram por morte violenta. Nesse lugar, que era representado como um prado, se 12

La Republique, X, 614 a-621 b.

13 Atribuído

a Heráclides do Ponto. Cf. Bar, 1937:42 e Diôgenes Laêrtios, VIII, 14 e 21.

24

encontrava o tribunal. Mais à frente, o visitante do Hades via o lugar dos castigos, rodeado por um rio de fogo. Ali ouviam-se gritos assustadores. Se o visitante fosse virtuoso, ele não poderia entrar, mas podia ver um certo número de suplícios. Ali viam-se também Hesíodo e Homero sendo castigados pelos sacrilégios que haviam cometido contra os deuses. Enfim, sobre os prados do Aqueronte, as almas felizes viviam tranqüilas ao som da música de grandes músicos, como Orfeu. Nesse lugar, o visitante era instruído sobre a transmigração das almas e recebia preceitos morais. Em seguida, o guia de Pitágoras o fazia sair por um caminho diferente do da entrada. Tais são as linhas gerais deste texto, modelo da ‘descida-iniciação de duas personagens’, que de alguma maneira pode ter influenciado a visão de Virgílio apresentada no livro VI da Eneida (Bar, 1937: 42-44). Outro texto importante que trata de uma ‘viagem’ ao além, não mais entre os gregos, mas no contexto da literatura romana, é o chamado ‘Sonho de Cipião’, constante do livro VI da República, de Cícero. Esse texto é importante por ser um documento que atesta a existência de uma longa tradição de inspiração pitagórica que influenciou profundamente as visões de além de boa parte do pensamento clássico. Além disso, é interessante fazer um contraponto entre essa descrição de Cícero e o mito de Er, já comentado anteriormente. Em muitos pontos, Platão é claramente o modelo de Cícero. Mas é principalmente quando retoma o tema da harmonia das esferas que Cícero explicita a sua fonte principal (Cf. Bar, 1937: 40, n. 2). Como narra Cícero, Públio Cornélio Cipião, numa de suas viagens à África, esteve com o rei Masinissa, soberano da Numídia. Depois de muito conversar, entre outras coisas, sobre Cipião, o Africano, Cornélio Cipião dirige-se ao leito, fatigado. E quando estava em sono profundo, a imagem do Africano se lhe apresenta pedindo que gravasse na mente tudo que ele ia lhe dizer. O Africano profetiza a Cipião tudo que acontecerá no seu futuro próximo: sua vitória final sobre Cartago, suas glórias nas províncias e suas desventuras em Roma. No sexto parágrafo encontramos uma passagem importante: o Africano diz que todos que 25

socorrem, salvam ou engrandecem a república têm um lugar reservado no céu. Se para Platão os filósofos tinham um lugar

especial no mundo dos mortos, para

Cícero são os grandes estadistas defensores da república que recebem a palma da felicidade eterna no céu (e note-se que aqui o céu aparece novamente como destino das almas virtuosas). Mais à frente, quando Cipião pergunta ao Africano se este e Paulo Emílio (que era pai de Cornélio) estavam vivos, o Africano responde que só estão vivos aqueles que romperam os vínculos do corpo como as grades de uma prisão e que não passa de morte o que Cipião chama de vida. E nesse momento a imagem de Paulo Emílio vem ao encontro de seu filho para consolá-lo. Depois várias respostas são dadas a perguntas feitas por Cipião: o homem tem por missão cuidar do globo terrestre; foi por isso que a alma dele foi tirada dos fogos eternos que são chamados astros e constelações móveis; os astros são animados por uma inteligência divina. Cipião contempla as belezas do Universo e se dá conta da pequenez da Terra e do Império Romano. Nesse momento, Cícero, pelas palavras do Africano, nos dá uma verdadeira aula de astronomia antiga e nos diz, entre outras coisas, que o Sol é a alma e o princípio regulador do mundo. Mais à frente, no parágrafo XI, Cícero nos apresenta a majestosa descrição da harmonia das esferas. Enquanto isso, Cipião dirigia repetidamente seu olhar para a Terra. O Africano, percebendo isso, diz-lhe que não se preocupe com as glórias terrenas, porque a verdadeira glória é conseguida com virtude e piedade e são estas qualidades que abrem o caminho para a morada celeste. Finalmente, o Africano afirma que Deus é o princípio de todo movimento e de toda vida e que a alma é imortal, pois ela participa da divindade e é também princípio motor do nosso corpo. O que temos aqui não é certamente uma viagem ao além, mas, sim, uma comunicação com o mundo dos mortos. E algumas vezes, como vimos aqui, essa comunicação pode se dar através de um sonho. Esse texto, pela sua riqueza de detalhes e de idéias com origem em diversas escolas filosóficas (pitagórica, estóica 26

e peripatética), certamente também exerceu alguma influência sobre Virgílio. Mas mesmo que não tivesse exercido, a sua leitura é de grande valia para aqueles que se interessam pelos variados aspectos do pensamento religioso nas culturas clássicas. Por fim queremos fazer uma breve observação acerca da possivel influência de Lucrécio sobre o livro VI da Eneida. Por volta de 49 a. C., Virgílio foi para Nápolis, para o círculo do filósofo Siro, que ensinava a doutrina de Epicuro (Grimal, 1985:45). A filosofia do Jardim e a poesia de Lucrécio certamente marcaram o pensamento do poeta mantuano e isso ficou documentado principalmente nas Geórgicas (Grimal, 1985:147-149). Porém, não podemos falar de uma influência lucreciana do ponto de vista filosófico no livro VI, da Eneida, já que os pressupostos básicos acerca das concepções de alma da filosofia epicurista estão em contradição com as concepções apresentadas por Virgílio na sua descrição do descensus de Enéias: para o epicurismo a morte é a dissolução dos átomos no ser vivo, o fim tanto do corpo quanto da alma. Mas no que tange a aspectos estilísticos Virgílio é um declarado tributário da poesia lucreciana. Austin (1988:passim) cita vários momentos em que aparecem no livro VI, da Eneida, claras reminiscências do De rerum natura. * Haveria muitos comentários de cunho antropológico, filosófico, psicológico e teológico a ser feitos. E haveria também outros textos e mitos a ser comentados.

Porém, de algum modo, pensamos já ter conseguido o que

pretendíamos: apresentar um rápido panorama de mitos e concepções sobre o além presentes no pensamento religioso de povos que habitavam a Mesopotâmia e a bacia do Mediterrâneo na Antigüidade. Como pudemos ver, os textos nos mostram que havia uma forte comunicação entre aqueles povos (mesopotâmicos, gregos e, depois, romanos) não só no que se refere a trocas comerciais, mas também no âmbito das concepções mítico-religiosas.

27

Por isso, em Homero, podemos identificar elementos e influências de origem não só cretense e micênica como também, possivelmente, mesopotâmica. Em Virgílio concorrerão diversos afluentes, alguns com origem na cultura dos vários povos já citados, e outros de fundo erudito e filosófico que também alimentarão o grande mar mediterrânico que é a obra virgiliana. Mesmo que a palavra intertextualidade não constasse do vocabulário da Antigüidade, a idéia contida nela permeava e penetrava toda a literatura do período e estava presente em conceitos como os da imitatio e da aemulatio, já utilizados por teóricos da Antigüidade, como bem mostra Vasconcellos (1996:1-27). Mas para retomarmos alguns pontos discutidos, gostaríamos de propor uma lista de lugares comuns que aparecem principalmente nos textos comentados de origem não-filosófica e que nos permitem caracterizar a “viagem ao mundo dos mortos” como um topos literário. Esses lugares comuns seriam: localização ocidental da entrada para o mundo dos mortos; localização dos infernos no interior da terra; inferno: “lugar de onde não se retorna”; inferno: “lugar desprovido de luz”; descida: ritual de iniciação/purificação; proposição de uma condição ou prova ao viajante; castigos para os maus, recompensas para os bons. Entre esses lugares comuns um que nos chamou a atenção foi aquele no qual se afirma que o inferno é o lugar de onde não se retorna. Apesar disso, nos mitos aqui apresentados que descrevem viagens ao mundo dos mortos, os deuses ou heróis aventureiros sempre retornam. Talvez o fato dessas personagens serem as únicas que visitaram a mansão das sombras e retornaram seja uma maneira de afirmar o valor e a coragem do viajante. Tanto que esses destemidos viajantes sempre são seres extraordinários. Os homens comuns que se atreveram a devassar o reino dos mortos acabaram ficando por lá, como foi o caso de Enkidu e de Pirítoo. Como se pode ver, a maior parte desses lugares comuns aparece, principalmente, nos mitos de origem não-filosófica. Quando chegamos aos chamados mitos “filosóficos”, esses tópoi passam a aparecer menos. Isso acontece pois, a partir do século VI, mais ou menos, com o surgimento do pensamento 28

filosófico na Jônia, e, mais especificamente,

com o aparecimento da doutrina

pitagórica, as concepções acerca do além ganham novas tintas e novas nuances. Identificar as razões dessas transformações e a origem do pitagorismo representaria a compreensão de muitas questões centrais do pensamento religioso do Ocidente. Mas aqui ficamos e passamos a tratar mais especificamente dos textos homérico e virgiliano.

Os Rituais na Nékyia Homérica e no Descensus Virgiliano Nesta parte do trabalho, pretendemos fazer uma rápida comparação entre os rituais da nékyia homérica, que precedem a comunicação de Ulisses com as sombras dos mortos, e os rituais e as prescrições dadas pela Sibila de Cumas a Enéias que deveriam ser cumpridos para que o herói anquisíada pudesse baixar aos infernos. Momento de grande importância dentro do processo de comunicação com o mundo dos mortos, o momento da celebração dos rituais e de cumprimento de condições prévias serve como ponto privilegiado de comparação entre o texto homérico e o virgiliano. Ali pode-se perceber os níveis de complexidade de cada relato e os distanciamentos em relação ao cotidiano propostos pelos poetas. Faremos essa comparação, primeiro, apresentando cada texto em separado, depois, analisando o significado de cada elemento que compõe os rituais e, por fim, procuraremos concluir nossa análise com um paralelo das impressões que cada um dos textos provocou.

* Em dois momentos da Odisséia, Homero nos fala dos procedimentos que Ulisses deveria seguir a fim de comunicar-se com a sombra do adivinho Tirésias para que deste soubesse sobre o caminho até Ítaca. Primeiro, quando Circe diz ao filho de Laertes que ele deveria invocar a sombra do profeta tebano e lhe explica 29

como ele levaria a cabo os rituais necessários no canto X, 516-537. Depois, já no canto XI, 23-50, o próprio Ulisses descreve, passo a passo, com praticamente as mesmas palavras que Circe havia empregado na passagem do canto X já citada, tudo o que ele fez na praia para invocar os mortos. Na confluência dos rios infernais, Ulisses cava um buraco (bóthros) de um côvado14 de largura e um côvado de comprimento (X, 515-517). Em torno deste buraco faz libações para todos os defuntos (X, 518; XI, 26). Primeiro, com leite com mel, depois com vinho e em seguida com água; espalha também, em torno do buraco, farinha branca (X, 519-520; XI, 27-28). Depois dessas primeiras oferendas Ulisses e seus companheiros fazem uma oração aos mortos e o herói laercíada promete que, tendo chegado a Ítaca, sacrificaria uma vaca que não deu cria e ofereceria presentes esplêndidos em honra deles e para Tirésias sacrificaria um carneiro negro, o melhor do rebanho (X, 521-525; XI, 29-33). E, depois de fazer esses votos, imola um carneiro e uma ovelha negros (X, 527) virando suas cabeças para baixo, na direção do Érebo (X, 528). Por outro lado, Ulisses olha na direção das águas do rio, isto é, desviando o olhar do buraco (X, 528-529). Para aí vêm, em grande número, as almas dos mortos (X, 529-530; XI, 36-37). Ulisses ordena então aos companheiros que queimem os animais sacrificados e que invoquem os deuses Hades e Perséfone (X, 531-534; XI, 44-47). Em seguida, desembainhando a espada, ele fica ali perto e não permite que nenhuma sombra se aproxime do sangue antes de ter interrogado Tirésias (X, 535-537; XI, 48-50)15. Segundo Cors i Meya (1984:199-200), esse ritual pode ser dividido em duas partes: 1a) Uma parte incruenta, composta pelas oferendas de leite com mel, vinho, água e farinha branca endereçadas a todos os mortos; 14 15

Medida correspondente a 38,6 cm, aproximadamente.

Dois aspectos chamam a atenção nessa passagem: primeiro a idéia de que se pode assustar uma alma com uma espada, como se a sombra estivesse viva. É interessante comparar essa passagem com a da Eneida (VI, 290-294) na qual Enéias empunha a espada com medo das sombras dos monstros e logo a Sibila lhe diz que aquelas não passavam de formas sem corpo que não poderiam lhes causar mal algum. Nessa passagem Virgílio mostra-se mais ‘racional’ do que Homero. Depois, o fato de que, para dizer a verdade (nemertéa), Tirésias precise beber o sangue. É o próprio profeta tebano quem diz: “Se deixares que algum dos mortos se aproxime do sangue, ele te dirá coisas verdadeiras, mas se não o permitires, se afastará novamente (XI, 146-149). 30

2a) Uma parte sangrenta, onde são sacrificadas as bestas negras, e que acaba com a incineração das vítimas, oferenda dirigida aos deuses infernais. Em primeiro lugar é preciso dizer que alimentos são oferecidos aos mortos pois esse ritual vinha de uma época em que, provavelmente, se acreditava que o morto mantinha alguma centelha de vida, mesmo debaixo da terra. Como afirma Cors i Meya (1984:218), esse ritual não parece ser uma invenção do aedo. De alguma maneira, o poeta deve ter sofrido influência de cultos populares e de crenças comuns na sua época. Vários elementos que aparecem na nékyia homérica apresentam semelhanças com elementos presentes nos rituais de culto aos mortos 16 que hoje conhecemos através de achados arqueológicos, de outras passagens homéricas e de trechos de textos do período clássico da literatura grega, que, mesmo sendo posteriores à nékyia, nos fornecem informações que nos auxiliam na compreensão da descrição que está sob nosso foco (dessas passagens damos alguns exemplos abaixo). E Germain (1954:377) chega mesmo a sugerir a possibilidade de uma origem indoeuropéia para esse ritual17. Em outras passagens da literatura grega aparecem rituais semelhantes aos da nékyia homérica. Na Ilíada (XXIII, 170-171), entre os presentes levados para o funeral de Pátroclo são acrescentadas jarras de mel e de óleo; na comumente chamada segunda nékyia18 (Od. XXIV, 67-68), na qual, numa conversa com a alma de Aquiles, a alma de Agamêmnon descreve como foi o funeral do Pelida e diz que o cadáver dele foi cremado junto com essências e mel. Esse tipo de libações (choái) preliminares são um elemento constante no culto aos mortos entre os povos 16

Cf. Dumortier, 1954:33 e Rohde, 1928: 13 (n.1) e 47. Germain (1954:361) cita um ritual funerário cretense, representado na lárnax Haghia Triada (data?), no qual se vertia o sangue de uma vítima numa urna (lárnax) que tinha uma comunicação com o solo. Germain cita também (1954:378) um trecho de Pausânias (IX, 39, 4) que descreve o ritual que precedia a adivinhação, no oráculo de Trofônio, no qual um carneiro era degolado es bothron, isto é, com a cabeça virada para baixo, como na nékyia. 17 18

Cf. Cumont (1949:41) que também aventa a possibilidade de uma origem indoeuropéia.

Penso que designar a passagem onde as almas dos pretendentes baixam ao Hades de ‘segunda nékyia’ seja impróprio e errôneo, pois por nékyia entendo um ritual de evocação às sombras dos mortos com o objetivo de conhecer as coisas futuras. E não é isso que aparece no livro XXIV da Odisséia. 31

helênicos. Ésquilo, nos Persas (607-622), nos apresenta Dario recebendo oferendas de leite, mel, água, vinho e óleo e de guirlandas de flores. No Édipo em Colono (466-509), de Sófocles, aparecem o mel e a água sendo oferecidos às Eumênides. E na Ifigênia em Táurida (156-166), de Eurípides, a protagonista oferece os mesmos vinho, leite e mel à memória do irmão que ela pensava ter perdido 19. É interessante tentar entender o significado de cada um desses elementos da primeira parte do ritual, a parte incruenta: o melícreton (a mistura de leite e mel), o vinho, a água e a farinha. Como explica Cumont (1949:33), o melícreton funcionava como o néctar e a ambrosia, o alimento dos deuses: se os mortos o recebem, eles se tornam semelhantes aos imortais. Por outro lado, o leite é o alimento dos recémnascidos e por isso ele era dado àqueles que renasciam para a vida eterna. O mel tem propriedades antissépticas e assegura a conservação dos corpos que o recebem. Isto nos leva a pensar que ele prolongava a existência das sombras que o absorviam. Pode-se dizer também que o mel, com sua doçura, servia para “adocicar o áspero rigor dos deuses infernais, para apaziguar a animosidade amarga dos espíritos dos mortos” (Cumont, 1949:33-34). Já o vinho seria um sucedâneo do sangue. Há muitas provas de que o fruto da vinha seria um substituto do sangue, mas a sua presença nos rituais de culto e de evocação aos mortos também pode ser explicada pelas suas propriedades alimentares e inebriantes. O vinho era uma bebida comum entre os antigos e não nos soa estranho que ele seja utilizado nos rituais de culto aos mortos como mais um elemento que servirá para revigorar e garantir o prolongamento da vida do morto na tumba. Além disso, sabemos que o costume de oferecer água aos mortos era bastante comum entre os antigos (Rohde, 1928:199, n.1). Como diz Cumont (1949:29), “os mortos têm fome e, sobretudo, eles têm sede”. Os mortos pedem primeiramente água fresca para saciar sua sede inextinguível e as libações de água eram e permaneceram como um ato essencial do ritual funerário entre vários povos 19

Cf. Germain, 1954:377, Cors i Meya, 1984:228 e Seaford, 1989:87-95.

32

(Cumont, 1949:30, n.4). Sobre essa presença indispensável da água e de elementos líquidos em geral entre as libações oferecidas aos mortos, é importante lembrar algumas colocações de Onians (1988). O autor explica que ao longo do processo de envelhecimento e, depois da morte, no ato da cremação o corpo seca, o cadáver perde seus líquidos (p. 254). Depois da cremação os ossos estão secos e quando estes recebem o líquido-vida eles devem viver novamente, assim como uma seca semente que ‘renasce’, digamos assim, quando é colocada num meio úmido. Por isso, na Ilíada, livro XXIII, os ossos de Pátroclo são retirados dos cinzas, depois de estas serem apagadas com vinho, e embebidos na gordura. Na Odisséia, livro XXIV, os ossos de Aquiles são banhados com vinho, banha e medula. Os ossos e a psiché ficavam secos da mesma maneira. É por isso que eles precisam do líquido-vida. Água é vida e vida é água (Onians, 1988:271). Passamos a tratar agora da segunda parte do ritual da nékyia homérica: a parte sangrenta, destinada, em primeiro lugar, aos deuses ctônicos. Já dissemos que os mortos têm sede. Mas acima de tudo eles têm sede de sangue. Sabemos também que na mentalidade dos povos da antigüidade, os mortos mantinham um resto de vida na tumba, vida que se revigorava com os alimentos oferecidos e, sobretudo, com o sangue (Cors i Meya, 1984:232). E era por esse sangue quente que fluía das entranhas das vítimas sacrificadas que as almas tênues estavam ávidas com o objetivo de reencontrar o vigor dos tempos em que seus ossos estavam cobertos por músculos 20: O sangue, com efeito, foi visto por todos os povos da antigüidade como a sede da vida: o vapor, que se elevava do líquido tépido e vermelho fluindo de uma ferida mortal, era a alma que escapava do corpo com ele (Cumont, 1949:33).

20

Cf. Cumont, 1949:30, Burkert, 1990:59-60, Bullones, 1990:78-79 e Yerkes, 1953: 42-43.

33

Por isso podemos dizer que a oferenda de sangue era feita para que, com este princípio vital (pois, como vimos, o sangue é a sede da vida), as almas recobrassem, não mais que por alguns instantes, os sentidos e a fala. Os povos primitivos e da antigüidade consideravam que o sangue tinha força vivificadora, pois ninguém pode viver sem ele (Cors i Meya, 1984:217). Além disso, podemos reafirmar, com Cors i Meya (1984:230), que entre os conceitos religiosos arcaicos, compartilhados sem dúvida pelo povo grego, havia o de outorgar ao sangue vertido uma potência vital, pois é fácil que se intua que ele se torne uma fonte de vida porque a morte chega quando aquele se esvai do corpo. Essa é uma idéia muito bem expressa na passagem do Antigo Testamento que diz: “A vida da carne está no sangue” (Levítico, 17,11), e que também outros povos primitivos e da antigüidade manifestam na sua maneira particular. Há também variadas informações arqueológicas que nos levam a concluir que a prática de oferecer sangue aos mortos era comum entre os povos préhelênicos. Em Creta, por exemplo, sabe-se que num ritual funerário se vertia o sangue de uma vítima numa urna que tinha uma comunicação com o solo (Germain, 1954:361). Cabe ressaltar que esse ritual lembra a parte sangrenta do ritual da nékyia homérica. Mas além dessa função revificadora para as sombras, o sangue podia servir também para infundir de novo a inspiração profética em alguns mortais que já não eram capazes de fazer profecias. Essa idéia se aplica muito bem ao contexto da consulta que Ulisses faz, onde o sangue das vítimas serve tanto para que a sombra de Tirésias recobre suas faculdades e sentidos, como para restaurar sua capacidade de prever o futuro21. Como ilustração apresentamos rapidamente um exemplo recolhido por Pausânias 22: na sua época, na acrópole de Argos, a sacerdotisa de Apolo, uma noite

21

O fato de Tirésias precisar beber do sangue é contraditório, pois ele foi o único mortal a receber de Perséfone o privilégio de manter sua consciência e seus sentidos no Hades (cf. Od., X, 492-495). 22

II, 24, 1.

34

por mês, bebia do sangue de um cordeiro imolado e então se sentia tomada pela inspiração. Por isso podemos dizer que o ato de Tirésias tem precedentes na realidade dos cultos helênicos. Mesmo que os dados sejam posteriores, as características são seguramente antigas e remontam a tempos pré-homéricos (Germain, 1954:379-380). Outros elementos a ser comentados são as características das vítimas (cor) e a direção para a qual é voltada a cabeça do animal no momento do sacrifício. Segundo Rohde (1928:46, n. 1), o carneiro que era imolado aos deuses infernais e às almas que habitavam o Hades era sempre negro. Essa cor talvez estivesse associada à idéia que se tinha acerca do reino dos mortos e das divindades que ali habitavam: o Hades era o lugar onde não havia sol, somente negror; além disso Plutão e Perséfone eram divindades que estavam associadas à noite e aos subterrâneos. Quanto ao ato de direcionar a cabeça da vítima para baixo, podemos dizer que isso era um hábito nos sacrifícios aos deuses ctônicos em oposição ao sacrifício aos deuses olímpicos onde se direcionava a cabeça da vítima para o alto. Interessante também é o fato de Ulisses desviar o olhar da fossa no momento em que ele degola o carneiro. Essa ação encontra um paralelo na Eneida, VI, 23-24 e pode ser entendida como um antigo costume cujo objetivo era evitar o máximo possível o contato com as impurezas e imundícies que estavam relacionadas com o sacrifício aos deuses ctônicos e com tudo que diz respeito à morte23.

* Já na Eneida, depois que a esquadra troiana aporta em Cumas, Enéias se dirige ao Templo de Apolo para encontrar a Sibila. Tendo-a encontrado, o chefe troiano diz à sacerdotisa que quer ir ao Hades para falar com a sombra de seu pai Anquises. A Sibila avisa-lhe que é fácil descer aos infernos, mas antes será preciso satisfazer a algumas condições: primeiro ele deveria colher o ramo de ouro, pois 23

Cf. Robert, 1988:20-24.

35

“não é permitido afrontar os segredos da terra antes que alguém tenha colhido os brotos aurícomos da árvore” (vv. 140-141); além disso, Enéias deveria cuidar dos funerais de Miseno, insigne tocador de trompa e companheiro de viagem que havia morrido afogado, jazia insepulto e contaminava toda a frota com o seu cadáver (vv. 149-152); por fim, o herói anquisíada deveria conduzir negros animais para que fossem as primeiras vítimas sacrificadas aos deuses infernais (v. 153). Inicialmente, tratamos da presença dos animais negros nessa seqüência de rituais propiciatórios que antecedem o descensus. Podemos dizer que eles eram um elemento indispensável num ritual oferecido aos deuses infernais. Eles já aparecem na nékyia homérica e estão presentes também em outros textos que tratam do culto aos deuses ctônicos. Além de uma ovelha negra oferecida à Noite e à Terra, aparecem na descrição do sacrifício quatro juvencos (novilhos), uma vaca estéril oferecida a Prosérpina24 e touros, todos negros, certamente. Numa gruta profunda, perto do lago Averno dá-se o ritual: primeiro a sacerdotisa derrama vinho nas cabeças dos quatro juvencos das quais arranca pêlos, de entre os cornos, para lançar ao fogo sagrado, como primeiro sacrifício à deusa Hécate (vv. 243-247). Então as vítimas são mortas e seu sangue é recolhido em páteras (vv. 248-249); depois Enéias sacrifica uma ovelha negra em honra à Noite e à Terra e uma vaca estéril para a rainha dos infernos (vv. 249-251); em seguida, ele prepara ‘altares noturnos’ para o ‘rei do Estige’ e põe sobre as chamas as vísceras inteiras dos touros25 e derrama óleo sobre as oferendas ardentes. Vemos recorrer nesse sacrifício tanto a presença das vítimas negras como o vinho e o óleo, que também aparecem em outros relatos de rituais. Como já foi dito26, esses elementos (o vinho e o óleo), entre outras possibilidades, tinham a

24

A vaca deveria ser estéril pois Prosérpina não tinha filhos. Uma vaca estéril também aparece nas instruções que Circe dá a Ulisses para os sacrifícios que ele deveria fazer (Od. X, 522). 25

Nos sacrifícios aos deuses infernais toda a carne do animal deveria ser queimada, certamente para evitar o risco de ‘contaminação’ com a morte. Já nos sacrifícios aos deuses olímpicos, a carne do animal era consumida num banquete. 26

Ver páginas 54 e 55 acima.

36

função de ‘alimentar’ e revificar as almas dos mortos e de fazer com que estas almas e os deuses infernais tivessem um ânimo propício em relação aos oficiantes. É interessante notar também que há uma grande semelhança entre esses rituais realizados por Enéias sob as ordens da Sibila e as cerimônias dos Ludi saeculares, de 17 a. C. Os Jogos seculares eram rituais realizados mais ou menos de 110 em 110 anos para marcar o início dos novos tempos. Três dos principais sacrifícios dos Ludi são realizados à noite, como na Eneida: nove ovelhas e duas cabras foram oferecidas às Moiras e uma porca à Terra Mater. Deve-se salientar que os sacrifícios noturnos eram estranhos aos costumes romanos e denotavam uma influência helênica. Por outro lado, esses sacrifícios noturnos certamente estavam ligados aos cultos sibilinos, como podemos comprovar no ritual que estamos analisando. Além disso, assim como Enéias faz, nos Ludi dever-se-ia oferecer três tipos de sacrifícios: sete touros e sete ovelhas ‘de dois dentes’ (isto é, jovens); depois ovelhas negras; e, enfim, quatro touros negros, um cordeiro negro e uma vaca estéril (Cf. Grimal, 1954:55). Por isso podemos afirmar, com Grimal (1954:58), que “o canto VI da Eneida quer ser a prefiguração e a garantia mítica dos Jogos Seculares nos quais se deve afirmar a mística do regime”27. Passamos agora a comentar os rituais de enterramento de Miseno. Este, como já dissemos, era um companheiro de viagem de Enéias, tocador de trompa, que havia morrido, sem que os outros percebessem, e cujo cadáver contaminava toda a esquadra troiana. Enéias não poderia baixar aos infernos antes que aquele fosse sepultado28 . É interessante notar que também Palinuro havia morrido e permanecia sem sepultura, mas a isto a Sibila não faz referência. Essa é apenas uma das muitas possíveis contradições que podem ser detectadas no livro VI, da Eneida.

27

Cf. também Zetzel, 1989:278ss.

28

Deixar um morto sem sepultura era considerado um ato sacrílego. Cf. Il. XXIII, 71ss. e Od. XI, 72-73.

37

O que é importante analisar aqui é o ritual de sepultamento descrito por Virgílio entre os versos 212 e 235. Primeiro os troianos erguem uma pira com galhos e lenha colocando ciprestes nas laterais e armas esplêndidas por cima. O corpo de Miseno é lavado com água quente e ungido. Todos choram e o cadáver é posto sobre um leito fúnebre, coberto com ‘vestes purpúreas’ e levado para a pira acompanhado por um cortejo. Deposto o corpo, acende-se o fogo da pira ‘de acordo com o costume dos pais volvendo o rosto para trás’ (vv. 223-224). Presentes, vítimas sacrificadas e crateras com óleo são queimadas. Em seguida, depois que o fogo enfraqueceu-se e só restaram cinzas, vinho é lançado sobre os restos do corpo de Miseno e os ossos são recolhidos e colocados em um vaso de bronze. Um companheiro chamado Corineu, que provavelmente tinha alguma ligação com Miseno (Austin, 1988:106) ou mesmo exercia alguma função sacerdotal no grupo, purga aqueles que participaram dos funerais com água pura aspergida em gotas leves com um ramo de oliveira. Depois Enéias ergue um sepulcro e depõe as armas do herói, o remo e a trombeta, sobre o túmulo. É significativa a presença de expedientes odoríferos tais como o cipreste e o incenso que, certamente, eram queimados junto com o corpo para que o mau cheiro do cadáver em combustão não incomodasse os assistentes. Significativa também é a menção à cor purpúrea das vestes com as quais Miseno é envolvido. Austin (1988:104) explica que púrpura era a cor que “representava o sangue de uma vítima sacrificial”. Cabe lembrar que púrpura também é a cor dos lírios que Anquises lança sobre a alma de Marcelo (vv. 883-886), antecipando em mil anos os rituais fúnebres do genro de Augusto. Além disso, aparece um elemento de aproximação com os rituais da nékyia homérica que é o fato de os participantes da celebração do funeral de Miseno virarem o rosto para trás, more parentum (de acordo com o costume dos pais, dos antigos). Na Odisséia, X, 528-529, Ulisses vira seus olhos para trás no momento do sacrifício da vítima consagrada aos deuses ctônicos. Como já dissemos 29, essa 29

Ver páginas 57 e 58.

38

atitude pode ser interpretada como sinal de um desejo de manter-se o mais distante possível de tudo o que diz respeito à morte e da contaminação causada pelo contato com essa. Também é importante destacar a presença do óleo e do vinho que aparecem no sacrifício que Enéias faz antes de descer ao Hades, comentado acima30 . Outra parte que chama a atenção é o ritual de purificação (lustratio) realizado por Corineu segundo o costume romano, depois do fim do funeral. Dá-se a purificação dos participantes da cerimônia antes do retorno deles ao mundo dos vivos e é traçado um círculo de proteção, símbolo mágico que fazia referência à separação do morto e à defesa do vivo, lembrando também a imagem do círculo labiríntico, um símbolo possível, como se sabe, do reino dos mortos (Jackson, 1987:544). O último elemento a comentar é a colocação das armas de Miseno, o remo e a trombeta, sobre o seu túmulo. Já na Odisséia (XII, 13-15) tal motivo aparece quando Ulisses coloca o remo de Elpenor sobre o túmulo desse depois de celebrar os funerais dele, como ele tinha pedido. Esse tipo de gesto piedoso é um elemento comum nos rituais de sepultamento dos povos da Antigüidade Clássica e nos faz lembrar da idéia de que o morto, na sua existência além-túmulo, continuaria exercendo suas atividades costumeiras, como aparece na Eneida, VI, 640 ss. Cabe destacar que o funeral de Miseno encontra paralelos e possíveis fontes nos funerais de Pátroclo (Ilíada, XXIII, 108-261) e de Aquiles (Odisséia, XXIV, 36-97). No funeral do primeiro encontramos a gordura, o óleo, o mel e o vinho, com o qual, como no texto virgiliano, as brasas são apagadas para que se possa retirar os ossos de Pátroclo. Já na descrição que Agamêmnon faz do funeral de Aquiles, o corpo desse é lavado com água tépida e ungido; são sacrificadas ovelhas e o cadáver do herói é queimado com óleo e mel; e, enfim, os ossos dele são depostos em vinho e óleo. Mas, apesar de ser flagrante a presença das fontes helênicas, as fontes romanas para as exéquias de Miseno também são de grande importância. Como 30

Ver páginas 54 e 55.

39

explica Jackson (1987:543), Virgílio, ao ligar Miseno a Enéias, pode ter seguido antigos analistas ou mesmo Névio. O poeta talvez tenha tomado como modelo para o episódio de Miseno a descrição neviana do sepultamento de Proquita, como é possível depreender da comparação com a Origo Gentis Romanae. Por fim, é preciso dizer, concordando com Jackson (1988:543), que a prescrição do sepultamento de Miseno parece aludir ao primitivo sacrifício humano31 (em lugar do animal) – ou mascará-lo – do qual as mortes de Miseno e de Palinuro constituiriam um resquício. Sacrifícios humanos ainda aparecem nos funerais de Pátroclo (doze mancebos troianos são mortos e lançados às chamas onde ardia o cadáver do companheiro de Aquiles), mas Virgílio parece ter desejado extirpar essa marca de crueldade do seu texto. Resta agora comentar a misteriosa presença do ramo de ouro. É preciso lembrar o que o próprio Virgílio diz: o ramo de ouro era um presente que a deusa Prosérpina tinha estabelecido que fosse levado até ela (vv. 142-143). Somente escolhidos pelo destino poderiam colhê-lo (v. 147). O ramo era realmente de ouro (144, 209), verdejando como o visgo no inverno (205ss.). Quando ele era arrancado, um novo ramo crescia em seu lugar (143ss.). Sua localização era revelada somente depois que aparecesse um sinal do céu (190ss.). Somente depois de colocá-lo na porta do palácio da rainha dos infernos Enéias poderia entrar nos Campos Elísios (636). Sua autoridade é logo respeitada por Caronte, que já o tinha visto antes (406ss.). Isso é o que está no poema. Por outro lado cabe dizer que não encontramos nenhum testemunho literário do ramo de ouro anterior a Virgílio (Austin, 1988:83)32 . Já Sérvio (1986:30-31) oferecia duas possibilidades de interpretação principais: a primeira era de que o ramo de ouro seria um elemento presente num ritual de um culto de Deméter e Perséfone (Ceres e Prosérpina, para os romanos),

31 32

Otis (1995:288) também faz alusão ao caráter sacrificial da morte de Miseno.

Horsfall (1991:23) por outro lado diz que já uma referência num epigrama de Meleagro. Ver Antologia Palatina, 4.1. 40

onde um ramo era levado numa procissão sagrada. Tais rituais garantiam um futuro feliz após a morte e poderiam assim ter um significado em relação à passagem segura de Enéias através do Infernos. Além disso, Sérvio diz que a publica opinio ligava o ramo com a tradição da árvore no bosque de Diana, em Arícia. Como nos é contado, não era permitido arrancar ramos dessa árvore, mas se um escravo fugitivo o fizesse, ele tinha o direito de combater em duelo com o sacerdote do bosque, que por sua vez era um escravo fugitivo que tinha conseguido a sua posição da mesma maneira. Sérvio explica que esse ritual era um sacrifício penitencial por Orestes ter matado o rei Toante, de Táurida, e roubado a estátua de Diana, a qual levou depois para Arícia33 . Mas essa lenda (que serviu como ponto de partida para os estudos antropológicos de Frazer no Golden Bough) não tem nenhuma relevância para Virgílio34. É bastante provável que o poeta mantuano tenha-se baseado no folclore ou em cultos de mistério para caracterizar o seu ramo, mas existem ainda outras possibilidades de interpretação: 1) o poeta poderia ter simplesmente inventado todo o episódio “segundo o seu sistema poético” (Macróbio, Saturnália, 5, 19, 2, citando Cornuto); 2) ele poderia ter-se baseado em fontes literárias que tratam das catábases de Orfeu, de Héracles ou de Teseu; 3) o ramo poderia ser identificado com o visgo, que é famoso pelas suas virtudes mágicas nos folclores Céltico, Germânico e Clássico. Seria interessante também relacionar o ramo de ouro com outros objetos feitos do mesmo metal presentes no repertório clássico: Ganschinietz (1919:2399) lembra que Hércules, antes de ir

ao Hades, colheu os pomos de ouro das

Hespérides 35. Como se vê o ramo de ouro ainda é um tema em aberto dentro das discussões acerca da instigante obra de Virgílio e as interpretações podem assumir contornos os mais variados. Mas isso não nos impede de manifestar nossa 33

Cf. também Segal, 1988:395.

34

Cf. Austin, 1988:83, Segal, 1988:395 e Horsfall, 1991:23.

35

Cf. também Setaioli, 1985:960 e Segal, 1988:396

41

preferência pela explicação de Norden (1916:163-175), que liga o ramo de ouro ao culto de Ceres e Prosérpina. Tal explicação permite-nos entender o ramo áureo como uma espécie de salvo-conduto para Enéias na sua passagem pelo Hades e como um tipo de chave que abre as portas dos Campos Elísios, onde o chefe troiano deveria encontrar o amado genitor. Como diz Bacon (1986:332), o ramo de ouro é o talismã que assinala o reconhecimento divino de que Enéias, através da pietas, está qualificado para atravessar a barreira entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. E ao relacionar o ramo ao culto de Ceres e Prosérpina, poder-se-ia pensar também numa ligação com os mistérios de Elêusis. Bellessort (1949: 239ss.) realiza uma exaustiva argumentação para mostrar que há uma relação estreita entre o descensus do livro VI e os mistérios de Elêusis, ressaltando o caráter de iniciado que Enéias assume ao longo da viagem pelos infernos 36. O autor chega a afirmar: “A descida de Enéias aos infernos é uma livre transposição poética da iniciação nos mistérios de Elêusis (...)”. Como lembra Zetzel (1989:276-277, incluindo as notas), esta é uma opinião difundida desde o século XVII até os nossos dias. Mas Zetzel lembra também que nós sabemos muito pouco sobre os rituais praticados naqueles cultos para propor qualquer argumentação segura. Em razão dessa ausência de dados, também penso que seja difícil provar a existência de alguma relação entre o livro VI e o ramo de ouro com os mistérios de Elêusis. Mas não deixa de ser uma hipótese interessante. Para finalizar esta discussão, queremos comentar também o aparecimento do bolo soporífero feito de mel e de grãos que a Sibila joga para Cérbero (v. 420). Rohde (1928:251, n.1) diz que tal bolo (offa) tinha como função apaziguar o cão guardião dos infernos. E é isso realmente que acontece quando Cérbero o engole: ele adormece e permite a passagem de Enéias e da Sibila. Segundo Cardoso (1988:134), a presença deste bolo é uma prova de que Virgílio tinha conhecimentos 36

Horsfall (1991:25-26) também afirma a existência de uma ligação com os mistérios de Elêusis.

42

acerca de substâncias soníferas e entorpecentes: os grãos dos quais era feito eram especiais e tinham o poder de produzir um sono artificial. O aparecimento desse sonífero pode ser considerado mais um indício de que há alguma ligação entre o livro VI e cultos de mistério contemporâneos do poeta. * Pensando os relatos paralelamente surgem novas nuanças e, das entrelinhas, aparecem meandros ainda obscuros para olhos inadvertidos. As diferenças começam pelo nível de complexidade que se manifesta entre os dois textos. Se na nékyia é possível dizer que há um ritual que se divide em duas partes, incruenta e sangrenta, na descrição virgiliana aparecem três rituais que poderiam ter outras tantas subdivisões: primeiro, o do funeral de Miseno, composto de uma série de atos em homenagem à alma do morto; e, enquanto se prepara o funeral, a descoberta do ramo de ouro guiada pelas pombas de Vênus e o colhimento deste segundo os costumes; e, por fim, os sacrifícios em honra aos deuses infernais. Vê-se aí um exemplo da maior abundância e da maior complexidade do texto virgiliano. Além da maior complexidade do texto virgiliano, pode-se notar também um maior distanciamento em relação a práticas e crenças mais primitivas. Há na descrição homérica uma menor sofisticação no que diz respeito ao ritual e aos elementos que o compõem. No ato de oferecer comida e bebida às almas dos mortos há uma grande afinidade com crenças e práticas mágicas mais primitivas. No relato do livro VI, da Eneida, esse tipo de ritual também aparece, porém envolto de uma aura mais solene e mais simbólica. Por exemplo: a morte e o funeral de Miseno podem ser interpretados como um sacrifício propiciatório para a descida de Enéias aos infernos e para a chegada da frota troiana à Itália. É

preciso dizer que Enéias só poderia realizar seu

descensus depois que fosse celebrado o funeral de Miseno, pois o seu cadáver estava contaminando toda a frota. É requerida, aos que baixam aos infernos, uma certa ‘pureza’, a pureza de quem respeita e cumpre os rituais segundo o costume dos mais velhos, a pureza da pietas. A necessidade dessa pureza funciona como um 43

primeiro diferencial de maior significado místico do relato virgiliano em relação à nékyia homérica. Depois, seria importante pensar o episódio de Miseno em sua relação com o ramo de ouro, uma vez que esse é encontrado justamente enquanto se preparava a pira para a cremação. É o Destino que pede que o ramo seja encontrado e colhido e que Enéias realize a sua viagem ao mundo dos mortos. E para que esse Destino se cumprisse, um sacrifício se fez necessário. Por isso, a ligação entre o ramo e Miseno. Além dessas nuanças, o maior peso simbólico do texto virgiliano se manifesta pela própria presença do ramo de ouro. Metáfora da predestinação de Enéias e garantia de entrada e segurança para ele na casa de Plutão, o ramo confere ao relato do livro VI um significado místico mais pungente e mais grave, enquanto no relato da nékyia fica patente uma carência de elementos que confiram algum distanciamento do herói em relação ao imediato e ao cotidiano. Em outras palavras, pode-se dizer que o relato homérico assume um caráter mais humano enquanto o texto

virgiliano apresenta-se mais transcendente, mais carregado de significado

místico.

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A Composição dos Espaços Infernais Nesta parte do trabalho, pretendemos fazer uma análise das informações que os poetas nos fornecem para o reconhecimento dos espaços e das localizações e realizar uma comparação entre essas informações, tendo em vista o nível de complexidade das caracterizações espaciais e a possibilidade de se detectar o diálogo com outras fontes. No caso homérico, muitos comentadores destacam as prováveis influências orientais (principalmente mesopotâmicas, via Ásia Menor) e, no caso virgiliano, fala-se sempre no constante empréstimo de elementos da épica homérica por parte do mantuano. Mas ao longo da discussão, veremos também que a variedade das interpretações é proporcional ao número de intérpretes.

* Que informações o texto da Odisséia nos dá acerca da viagem que Ulisses deve fazer para invocar as almas dos mortos? Que sinais servirão como balizas que identificarão o local onde se realizará a nékyia? E mais: é possível falar de uma geografia, de um ordenamento dos espaços dos infernos em Homero? Em primeiro lugar, ficamos sabendo que para chegar ao Hades é necessária uma nave (Od., X, 502 e 505): é preciso cruzar o Oceano para chegar ao mundo dos mortos. Basta a Odisseu sentar-se sobre a nave e o vento Bóreas o levará aonde ele deve ir. Depois de atravessar o Oceano, o herói encontrará um pequeno promontório e os bosques de Perséfone (509), grandes álamos negros e salgueiros estéreis (510). Dali, Ulisses deveria ir à morada de Hades. Nesse local estava o Aqueronte, para o qual correm o Piriflegetonte e o Cocito, que é um braço de água do Estige (513-514). Ali haveria também uma pedra e o encontro dos dois rios ressoantes (515). No livro XI, Odisseu omite várias informações que já tinham aparecido no fim do livro X e diz que depois de navegar um dia inteiro a nave chegou ao fim do 45

Oceano (Od., XI, 11-13). Nesse local ficava o país dos Cimérios, homens que viviam cobertos de brumas e de nuvens e nunca viam a luz do sol (14-19). Além dessas informações, há duas alusões ao ‘prado de asfódelos’ em dois momentos do livro XI (539 e 573), que também nos auxiliarão na compreensão dos espaços infernais. É difícil interpretar os dados acerca da composição dos espaços apresentados na passagem da nékyia e encontrar alguma relação entre eles e uma geografia real. É difícil também saber quais teriam sido as fontes para a composição dos versos dessa passagem. Alguns comentaristas (Germain, 1954: 363ss. e Aubreton, 1968: 148 e 150) propõem a existência de fontes populares ou mesmo de fontes de caráter místico, de cultos de mistério existentes no período arcaico grego. Chegou-se a pensar até mesmo em fontes órficas, mas a escassez e o caráter fragmentário da documentação impede a comprovação desta hipótese. Aventou-se também a possibilidade da contrubuição de fontes orientais sobre os textos homéricos: influências egípcias via Creta e Micenas e influências mesopotâmicas (Gilgamesh e Enuma Elish, por exemplo) via Asia Menor (cf. Stella, 1955:219 ss.). Todas essas possibilidades só aumentaram a variedade e o desacordo das interpretações. Mas uma proposta interessante e sedutora foi apresentada por Bérard (1903). O autor acreditava na existência de um país dos mortos, isto é, um local onde se faziam invocações às almas dos mortos, e afirmava que ele se localizava na Itália. Pelas informações que Homero nos apresenta deduz-se que o país dos mortos se localizava ao sul da ilha de Circe, a um dia de navegação. Ao sul do atual Monte Circeu (o qual Bérard pensava ser a ilha da feiticeira37 ), na costa do Tirreno, a cem quilômetros em linha reta, havia um país dos mortos, que era famoso na Antigüidade. Este país se localizava na parte norte do Golfo de Nápolis, no fundo da baía de Pozzuoli, junto ao lago Averno, próximo à antiga cidade calcídica de Cumas (Bérard, 1903:314). 37

Cf. também Moulinier, 1958:77, que tem opinião próxima à de Bérard.

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Estrabão (V, 4.4-5-6) relata uma história, contada por Éforo, historiador da primeira metade do século IV a. C., que já localizava o palco da nékyia próximo ao lago Averno. Diz-se que ali havia um oráculo dos mortos. Chamava-se esse lugar de Plutônion. Ali era o país dos Cimérios. Para ali ia-se em barcos e sacerdotes, sob pagamento, ensinavam os rituais para evocar as almas dos mortos. Próxima ao mar havia uma fonte que fazia nascer um rio: era o Estige. E perto dali uma corrente de água quente era chamada de Piriflegetonte e a poucos passos estava o Aquerúsia. Os Cimérios habitavam nas proximidades em casas subterrâneas, se comunicavam uns com os outros através de túneis e levavam os estrangeiros até o oráculo, que também ficava no fundo de uma caverna. Os sacerdotes jamais viam a luz do sol e saiam somente à noite. Segundo o que é relatado por Estrabão, essa era a razão de Homero dizer que o sol brilhante jamais os iluminava. Assim vemos como alguns homens da Antigüidade se apropriaram dos dados apresentados por Homero e como essa interpretação serviu de base para as explicações de Bérard. Estrabão relata ainda que Éforo dizia haver um golfo que é identificado por Bérard com o atual lago Lucrino e que entre este e o mar havia apenas uma estreita praia. Bérard (1903:316) afirma que Ulisses entrou no golfo Lucrino, aí ele deixou o seu barco e foi a pé até o Averno. Essa descrição geográfica corresponde fielmente aos dados apresentados por Homero, segundo Bérard. Ulisses, depois de partir da ilha de Circe, atravessou o mar e depois o Oceano de barco. Depois atravessou uma praia estreita (acté lacheia) e chegou ao país dos mortos. Para que este esquema se confirme é preciso aceitar que o Oceano homérico e o golfo Lucrino se identifiquem. Utilizando uma etimologia semítica, Bérard defende essa identidade. Segundo suas conclusões tanto Sinus Lucrinus como Oceanós significariam golfo das riquezas, o que está ligado à idéia de que Plutão era senhor de enormes riquezas, como a etimologia do seu nome pode confirmar. Dessa maneira, Bérard tenta tornar plausível a hipótese de que Ulisses teria se dirigido até o oráculo do Averno para consultar a alma de Tirésias. Mas, em contraste com o que afirma Bérard (1903:313), não julgamos que as instruções que 47

Circe dá a Ulisses sobre o local e a natureza do país dos mortos sejam ‘precisos’. Nessa questão estamos mais afinados com Vidal-Naquet (1996:38) quando afirma que as viagens de Odisseu não têm nada a ver com geografia, e há mais verdade geográfica nas estórias “irreais” que ele conta a Eumeu [Od., XIV, 191-359] e a Penélope [XIX, 164-202] do que em todas as histórias contadas no palácio de Alcínoo. A viagem de Ulisses parece dividir-se em duas partes: uma real e outra irreal, fantástica. A partir do momento que Ulisses aporta na Ilha Eéa, os domínios de Circe, ele adentra um mundo imaginário, distante das terras conhecidas pelos marinheiros micênicos. Como diz Aubreton (!968:171): “Entramos no mito, nas terras misteriosas”. Por isso, achamos difícil traçar alguma relação segura entre os dados que aparecem no poema e a geografia real. Achamos mais pertinente interpretar as informações acessíveis como dados de uma geografia imaginária, mítica, tanto forjada pelo aedo como herdada de tradições mais antigas. O que o texto nos diz é que para chegar ao mundo dos mortos era necessário cruzar o Oceano. Quando Hermes conduz as almas dos pretendentes para o Hades, eles também devem chegar às correntes do Oceano (Od., XXIV, 11). E, nas informações que Proteu dá a Menelau (em Od., IV, 561-569), vemos que a ilha dos Bem-Aventurados também se localiza nos confins do mundo, nas bordas do Oceano. A Odisséia o apresenta como um rio (XI, 155 e 639; XII, 1) com uma corrente profunda (XI, 13). Ele corre em torno da terra em círculo e reflui sobre si mesmo (XX, 65; ver também Teogonia, 776 e 787-790). A Ilíada também fala do Oceano (VII, 422 e XVIII, 399) e o define no canto XXI, 195-197. E para cruzar o Oceano, Odisseu não precisará de nenhum guia, pois o vento Bóreas o conduzirá ao seu destino, na extremidade ocidental do mundo. Bóreas é o vento do norte que sopra para o sul. Por isso podemos deduzir que a viagem de Odisseu se dá de norte para sul e de leste para oeste, pois a ilha de Circe localiza-se

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a oriente, como aparece em Od., XII, 3-4: “À Ilha Eéa, onde está a casa da Aurora (...), onde é o nascer do sol”. Depois de cruzar o Oceano, Ulisses encontraria um pequeno promontório (acté lacheia38) e os bosques de Perséfone, nos quais crescem álamos negros e salgueiros estéreis (X, 509-510). A palavra acté, segundo Bailly (1950), assume uma variedade de sentidos, todos de alguma maneira relacionados ao tema do mundo dos mortos. Acté poderia ser o trigo, fruto de Deméter, mãe de Perséfone. Poderia ser também uma costa escarpada, ou a região extrema da terra, o extremo ocidente, a região do Hades vesperal, o que se encaixa perfeitamente ao contexto da caracterização geográfica da nékyia. Por fim, acté era um nome comum a diversas regiões marítmas, da Sicília e do Ponto Euxino, por exemplo. Por isso, entendemos que a melhor tradução para acté seja ‘promontório’ lembrando também o aspecto da localização na extremidade ocidental do mundo. Os bosques de Perséfone seriam uma outra maneira de nomear as regiões infernais ou simplesmente uma designação de um lugar sagrado à esposa de Plutão, como deve ser o local onde deve realizar-se a evocação dos mortos. O negror dos álamos faz lembrar a escuridão em que vivem as sombras dos mortos e os próprios Cimérios e a esterilidade dos salgueiros faz pensar na esterilidade da própria Perséfone. Note-se que Odisseu deve prometer que sacrificará uma vaca também estéril depois de chegar a Ítaca (X, 522). Nesse local, segundo a explicação de Circe (X, 513-515), estava o Aqueronte, para o qual correm o Piriflegetonte e o Cocito, que é um braço de água do Estige e ali haveria uma pedra e o encontro dos dois rios ressoantes. Desses rios, o único que aparece em outras passagens da poesia homérica é o Estige (Il., II, 755; VIII, 369; XIV, 271; XV, 37; Od., X, 514; V, 185). Trata-se de uma palavra de origem grega que significa ‘odioso’, ‘horrendo’. O caráter sagrado deste rio infernal estava diretamente ligado à natureza dos juramentos que os deuses faziam e que não podiam ser quebrados. 38

Note-se que Bérard (1903:316) traduzia axté lácheia por ‘praia estreita’.

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Os outros rios são citados por Homero somente na passagem comentada (Od., X, 513-514). O Aqueronte é o mais importante, pois os outros rios desembocam nele. Segundo Cors i Meya (1991:49), o nome não parece ser de origem grega e já foi relacionado com a palavra de origem semítica aharôn, que significa ‘ocidente’. Porém, na região de Tesprótia, no Epiro, havia um rio chamado Aqueronte e Pausânias (I, 17, 5) diz que havia um nekyomantéion, um oráculo dos mortos num local próximo39. A palavra cócytos significa ‘lamento’, ‘gemido’, ‘grito’. Por isso, podemos considerar o Cocito como o rio das lamentações. Talvez fosse uma alusão aos suplícios sofridos por algumas almas no Hades. Já Piriflegetonte quer dizer ‘que queima como o fogo’ ou ‘de chamas ardentes’. É um rio ou realmente de fogo (poderíamos dizer também ‘de lava’) ou de água bastante quente. Tanto um significado como o outro pode estar relacionado a alguma corrente que flua numa região onde houvesse atividade vulcânica. Os gregos certamente pensaram existir entradas para o Hades em regiões onde havia vulcões 40. A região de Cumas e o Plutônion de Hierápolis, na Ásia Menor, são exemplos. E depois de navegar um dia inteiro, Odisseu e seus companheiros chegaram ao país dos Cimérios. Circe, nas suas instruções, não cita o nome deste povo. E muitas interpretções surgiram desde a Antigüidade para explicar a presença desses homens que vivem cobertos de bruma e de nuvens e nunca vêem a luz do sol (XI, 14-19). Alguns intérpretes emendavam a grafia do nome e preferiam Cerberíon (nome que está relacionado ao cão Cérbero, guardião dos infernos); outros ainda preferiam Cemmeríon ou Chemeríon. Estas variações podem ter surgido da própria fluidez da tradição oral que teria passado para as primeiras versões escritas (Huxley, 1958:246).

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Ver também Herôdoto, V, 92 ss.

Cf. Cumont, 1928: 56. Hardie (1988:284) tem opinião diferente: ele diz que os gregos não associavam entradas para o mundo dos mortos com fenômenos vulcânicos, mas com lagos e cavernas. 50

Chegou-se a relacionar esse povo que vivia na entrada dos infernos com um povo que invadiu a Ásia Menor no século VII a. C., espalhou terror pelas cidades jônicas e depois teria se estabelacido na atual Criméia. Mas é difícil traçar alguma relação entre estes invasores e o texto homérico além da homonímia (Cf. Heubeck, 1992:78 e Cors i Meya, 1991:56-57). Por outro lado, Tucídides (I, xxx, 3 e I, xlvi, 4), nos dá uma sugestão interessante: ele diz que, na região da Tesprótia (citada acima), o rio Aqueronte desembocava no mar perto do promontório Cheimeríon. Estrabão (6.1.5 e 7.7.5-6) também faz referência a esse local. Se aceitarmos essas sugestões, Odisseu poderia ter navegado até a boca do Aqueronte, ali teria deixado seu barco e teria ido à pé, depois de passar pelo Cheimeríon, até o oráculo dos mortos que existia na região. Mas essa é apenas mais uma hipótese. A presença dos Cimérios às portas do Hades, a nosso ver, tem a função de reforçar a caracterização dos infernos como lugares escuros, cobertos de bruma e úmidos onde o sol nunca penetra. Devemos comentar também as referências ao ‘prado asfodéleo’ que surgem duas vezes no livro XI (versos 539 e 573), quando Odisseu conversa com Aquiles e vê a alma do gigante Órion. Depois, no livro XXIV, 13, mais uma vez aparece o prado de asfódelos, quando Hermes conduz as almas dos pretendentes para o Hades. Esse prado localiza-se dentro dos infernos e parece ser o lugar onde as almas que não são castigadas ficam e levam no além uma vida semelhante à vida que tinham sobre a terra. A palavra asphódelos como nome de uma flor não aparece nenhuma vez em Homero, mas a forma asphodelós (adjetivo) ocorre nas passagens citadas sempre qualificando lêimon. Segundo Graves (1971:328), se dissecarmos o adjetivo podemos fazer a seguinte interpretação: a, alfa privativo; sphod, cinza; elos, vale. Assim, o asphodelós lêimon seria o ‘prado no vale daquele que escapa de ser queimado’, isto é, a alma do morto que sobrevive à pira funeral. E lêimon (formada à partir de lêibo, ‘purificar’, ‘fazer libações’) poderia significar ‘lugar de fazer libações’. 51

Além de todas as questões já comentadas uma deve ser discutida com atenção quando se trata do Hades homérico. Ao longo da leitura de toda a passagem sobre a nékyia esse problema se nos apresenta: Ulisses desce ou não ao Hades? Muitos comentaristas usam a palavra catábasis para designar o que acontece no livro XI da Odisséia. Outros preferem a palavra nékyia (assim como nós) por entender que o herói, na realidade, não desce à morada dos mortos. Mas o fato é que essa questão não fica completamente resolvida e o que parece acontecer é uma mescla de catábasis e de nékyia. Em primeiro lugar, é preciso dizer que o mundo dos mortos, em Homero, localiza-se em regiões subterrâneas, como várias passagens podem comprová-lo (Il., VIII, 13-14; XIX, 259 ss.; XX, 61-65; XXII, 482 ss.; Od., XII, 383; XX, 80-81; XXIV, 106 ss. e 203-204). Contudo, em certos momentos da nékyia, o mundo dos mortos parece estar sobre a superfície. Dumortier (1954:31) chega a dizer que o reino dos mortos, em Homero, não é subterrâneo, lembrando que ele está situado depois do Oceano e que só se pode chegar até lá num barco (Cf. também Finley Jr., 1978:111). Moulinier (1958:90) propõe a possibilidade da existência de duas localizações diferentes do reino de Hades. Por um lado, ele se encontraria sob a terra, como mostram as passagens citadas acima. Por outro lado, a morada dos mortos, segundo a nékyia, parece estar sobre as bordas do Oceano. Moulinier afirma ainda que estas duas concepções não seriam absolutamente contraditórias. O espetáculo de uma vela surgindo no horizonte pode desde muito cedo ter feito pensar que a travessia do Oceano era um meio de descer para debaixo da terra, sobretudo para ir tão logo e, sobretudo, ao extremo ocidente, onde se abisma o sol (Moulinier, 1958: 90). Nos versos 567ss. do livro XI, por exemplo, poderíamos entender que Ulisses está passeando pelo inferno e enquanto caminha vai reconhecendo os grandes supliciados da mitologia: Tício, Tântalo e Sísifo. Além destes, Ulisses vê 52

também Minos, o juiz dos infernos, o gigante Órion e a sombra de Héracles, pois o filho de Alcmena encontrava-se no Olimpo regozijando-se com os deuses. Porém, apesar desta aparente mescla de catábasis e nékyia, pensamos que os sinais de que o que Homero descreve é uma evocação são mais numerosos. No verso 37, do livro XI, Odisseu diz que as almas vieram do Érebo, de baixo (hypex). E depois de contar as glórias de Neoptólemo a Aquiles, ele diz que o Pelida ‘desceu’ (cataphóita) para o prado de asfódelos (XI, 539). Além disso, no fim do livro XI, 627-629, fica claro que Ulisses não estava ‘dentro’ da morada de Hades. Por isso, achamos melhor empregar o termo nékyia, evocação às almas dos mortos, ao invés de catábasis, que quer dizer ‘descida’. Dessa maneira, pensamos difícil defender a existência de uma geografia, um ordenamento dos espaços em Homero. As informações são escassas e mesmo confusas. Muitas vezes não fica claro se Ulisses entra ou não entra na morada dos mortos e parece não haver uma diferenciação dos espaços dentro dos infernos: todas as almas estão no mesmo lugar, não há diferença entre elas; e os grandes supliciados parecem estar próximos ou mesmo junto com as outras almas. Enfim, aos nossos olhos de homens modernos, a caracterização aparece confusa e, por vezes, contraditória.

* Acerca do texto virgiliano sobre o descensus de Enéias devemos nos colocar as mesmas questões colocadas a respeito da nékyia: que informações o texto da Eneida nos dá acerca do local ao qual Enéias se dirige com o fim de descer ao inferno? É possível falar de uma geografia, de um ordenamento dos espaços dos infernos em Virgílio? Ao contrário do que acontece na Odisséia, na Eneida o poeta nos apresenta dados seguros sobre a geografia real do local onde se dá a descida de Enéias. É interessante notar que o livro VI é o trecho da epopéia onde encontramos o maior índice de coincidências entre os dados topográficos e as descrições poéticas (Della 53

Corte, 1985:105 e 265). E essa coerência entre a poesia e a topografia pode ser justificada pelo fato de Virgílio ter morado na região da baía de Nápoles quando freqüentou os círculos epicuristas do local (Grimal, 1985:45ss.). Logo no segundo verso do livro VI o narrador diz: E finalmente aporta nas praias eubóicas de Cumas. Cumas era uma cidade fundada por colonos da Calcídica e da Eritréia por volta do século VIII a. C. localizada no litoral flégrio da Campanha, na Itália, em frente à atual ilha de Ísquia. O profeta Heleno, em En., III, 441ss., já fala da necessidade de dirigir-se a esse local. Depois de ancorar as naves, os jovens troianos saltam para a praia e uma parte deles invade a floresta que havia ali perto. Mas o pio Enéias se ocupa de assuntos mais sacros: dirige-se logo às colinas onde estão o templo de Apolo e o antro da Sibila. Sobre esta muito já se escreveu. Norden (1916:118 e 154) chegou a pensar que essa Sibila fosse sacerdotisa tanto de Apolo (em Cumas) como de Hécate (junto ao lago Averno), mas depois percebeu que o segundo sacerdócio tinha sido atribuído a ela para que pudesse guiar Enéias pelo Inferno. Nos versos 35-36 ela é qualificada como sacerdotisa de Febo e de Trívia, isto é, de Apolo e de Diana. No tempo de Virgílio havia realmente um templo de Apolo em Cumas e um oráculo da Sibila. Em seguida Enéias se aproxima dos bosques do templo de Trívia. Cabe aqui fazer uma digressão a respeito da relação que cada uma destas divindades tem com a viagem de Enéias ao mundo dos mortos. A presença de Apolo explica-se pela necessidade de haver uma profecia, um oráculo, uma orientação vinda de um nume para que Enéias saiba o que deve fazer para chegar à morada de Dite. Já Hécate era uma divindade que tinha uma relação íntima com a magia e os encantamentos e com o mundo dos mortos, tanto que foi ela quem mostrou o Tártaro e confiou os bosques do Averno à Sibila (Cf. v. 118, 247, 564-565). Ela era muitas vezes confundida com Diana e com Prosérpina, ou ainda com Diana e com a Lua, e também era chamada de Trívia. Esta qualificação pode ser explicada pela

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natureza tríplice que aparece representada em muitas estátuas dedicadas a Hécate que têm três corpos (o que mostra a identificação entre ela e as deusas citadas). Sérvio (1986:25) já tratava disto no comentário ao verso 118, do livro VI. Mas também pode-se explicar a qualificação de Trívia pelo fato de Hécate ser a deusa das encruzilhadas, lugar onde se encontram três vias como alternativas para seguir o caminho (Sarian, 1992:986 e 987). Por fim, pressupõe-se a partir das informações contidas no texto que o local do oráculo ficava isolado e envolto por bosques e florestas. Entre os romanos a divindade que preside esses recessos que servem de morada para as feras é Diana, a caçadora. Devemos lembrar também que havia uma lenda, reportada por Frazer (1948:1-2), na qual Diana aparece relacionada com o bosque onde Enéias encontra o ramo de ouro (Cf. tb. Cardoso, 1988:131). Além disso, ela era a irmã gêmea de Apolo e aparece freqüentemente associada ao irmão. Por outro lado, muitas vezes ela era confundida com Hécate. Cabe lembrar também que Apolo muitas vezes recebe o epíteto de hékatos (‘que acerta de longe’), adjetivo formado a partir da mesma raiz do nome de Hekáte. Mais um sinal de que havia uma forte ligação entre Febo, Ártemis/Diana e Hécate. Assim podemos explicar a presença dessas três divindades. Depois de admirar os relevos que teriam sido esculpidos por Dédalo nas portas do templo de Apolo, os troianos dirigem-se junto com a Sibila para os ‘altos templos’ (v.41), que era o local onde os consultantes deveriam receber os oráculos. Segue uma descrição do local por onde passam (42-43): um lado da rocha é atravessado por um antro enorme, ao qual levam cem entradas, nas palavras de Virgílio. Uma hipérbole certamente. Nesse local Enéias recebe os oráculos de Apolo. Mais à frente (106-107), Enéias diz que ali estão “a porta do rei do inferno e o tenebroso pântano com o Aqueronte estagnado” e foi por isso que ele veio até esse lugar com o fim de descer ao inferno para encontrar a alma do pai. É marcante o fato de a Sibila dizer que “é fácil a descida ao Averno”, facilis descensus Averno (126), e depois dizer que difícil é “retornar ao ar aberto”, evadere ad superas auras, 55

hoc opus, hic labor est (128-129), pois o que vemos na descrição da descida é justamente o contrário: descer é que é difícil, pois Enéias deve cumprir uma série de rituais antes de baixar e, no inferno, deve superar uma série de obstáculos; e para subir de volta basta passar pela porta dos sonhos falsos. Na seqüência a profetisa diz que há selvas no caminho para o inferno e que o Cocito corre em volta delas (131-132). Ela cita também a necessidade de atravessar duas vezes o lago Estige e de duas vezes ver o Tártaro (134-135). Mais à frente faremos um comentário à topografia dos infernais. Enéias, então, depois de receber os oráculos da Sibila, deixa o antro (157) e quando chega à praia vê o cadáver do companheiro Miseno que deveria ser enterrado (163). Os troianos se dirigem a uma ‘floresta antiga’, antiquam silvam (179), certamente a mesma citada no verso 8, e arrancam troncos para compor a pira fúnebre. Nesse bosque, Enéias encontra o ramo de ouro, presente que deveria levar a Prosérpina para que pudesse adentrar os infernos (187-211). Significativo é o local onde pousam as pombas, certamente enviadas por Vênus, mãe de Enéias: na ‘boca do fétido Averno’ (201). Depois de realizar os ritos fúnebres para Miseno, Enéias levanta um sepulcro e depõe as armas do herói (o remo e a trombeta) sob o monte que desde então passou a ter o nome do companheiro dos troianos. E ainda hoje o local é chamado de Cabo Miseno (232-235; Cf. Jackson, 1987). Depois de cumprir as ordens da Sibila, eles levam as bestas para que sejam sacrificadas numa gruta profunda de grande abertura, protegida por um lago escuro e por um bosque (236-238), o Averno e o bosque que já apareceu antes, é de se supor. E no verso 260 começa então a descida de Enéias guiado pela Sibila. Nesse momento a profetisa incita o Anquisíada a ter coragem e a desembainhar a espada (Mais à frente ela dirá que a espada é inútil e que não é preciso temer as imagens que eles vêem, pois elas não passam de sombras vãs.). Eles entram no antro aberto e enfrentam a escuridão dos reinos inanes de Dite, o correspondente romano do Hades grego (262). Logo em frente ao vestíbulo e nas primeiras entradas do Orco o poeta diz que estão as moradas de todos os males que afligem o homem aqui 56

personificados: o Luto, os Cuidados, as Doenças, a Velhice, o Medo, a Fome, a Pobreza, a Morte, o Trabalho, o Sono, as más Alegrias da alma, a Guerra, as Eumênides e a Discórdia (273-281). No caminho havia também um olmo opaco que era a morada dos sonhos vãos (282-284). Mais à frente, aparece um grupo de simulacros de monstros que também habitam nas portas do inferno: os Centauros, as Cilas, Briareu, a Hidra de Lerna, a Quimera, as Górgonas, as Harpias e Gerião (285-289). Ali Enéias, tomado de temor, empunha a espada e ameaça as sombras destes monstros, mas a Sibila o adverte que elas são apenas formas sem corpo que não oferecem perigo algum (290-294). Então tomam o caminho que leva ao Aqueronte que desemboca no Cocito (295-297), ao contrário do que acontecia em Homero (Cf. Od., X, 513-514). Na margem do rio encontram Caronte, o barqueiro que transporta as almas para o outro lado. Nas praias se espalha uma multidão de almas que almeja atravessar o rio sobre a barca41 . Caronte só aceita os mortos que foram sepultados. Os insepultos não têm permissão para embarcar. Nesse lugar eles vêm as águas estagnadas do Cocito e o pântano Estígio, “nume pelo qual os deuses temem jurar e enganar” (323-324). Nessas praias, Enéias vê companheiros seus que ficaram insepultos: entre eles, Palinuro (337ss.). Esta passagem tem um sentido etiológico cuja função é explicar a origem do nome do Cabo Palinuro, que ficava na antiga Lucânia, e ainda hoje conserva este nome (Cf. Austin, 1988:136). Em seguida, aproximam-se da praia e convencem Caronte a levá-los ao outro lado mostrando o ramo de ouro (384-416). Tendo atravessado as águas que separam os vivos dos mortos (não fica claro se essas águas são do Aqueronte, do Cocito, do Estige ou de todos eles), eles encontram Cérbero, o cão de três cabeças, 41

Os versos 306-308 são iguais aos versos 475-477, do livro IV, das Geórgicas. E nos versos 309-312 Virgílio extende o símile que já havia sido apresentado nos versos 472-474, do mesmo livro das Geórgicas. O poeta aproveitou alguns elementos que já tinha utilizado na descrição da catábasis de Orfeu (Geo., IV, 467-484) para compor a viagem de Enéias ao mundo dos mortos (Cf. Setaioli, 1985:955). 57

guardando a entrada do reino de Dite (417ss.). Mas a Sibila já havia preparado um bolo soporífero para adormecê-lo e assim eles passam pelo cão. Na primeira entrada, eles encontram almas de crianças (426-429). Depois os condenados à morte por falsa acusação (430) e Minos, o juiz dos infernos (431-433). Ali perto eles vêem também os suicidas (434-436)42. Próximos àquele local estavam os campos chorosos, os lugentes campi (440-441). Ali se escondem e são protegidos por uma floresta de mirto os que foram consumidos pelo duro amor. O poeta enumera então as seguintes heroínas: Fedra, Prócris, Erifíle, Evadne, Pasífae, Laodamia, Ceneu e finalmente Dido, que errava pela grande floresta (445-451). Depois do encontro com a alma da rainha de Cartago, Enéias e a Sibila retomam o caminho e encontram os valorosos heróis que tombaram em batalha (447ss.). Logicamente, os nomes citados são de guerreiros troianos que lutaram em Ílion. Os Dânaos e os soldados de Agamêmnon tremem ao ver Enéias (490-491). Encontram então Deífobo (494ss.) e em seguida chegam ao ponto onde a estrada se bifurca: à direita, o caminho que leva ao palácio de Dite e ao Elísio e à esquerda a via que conduz ao Tártaro (540-543). Virgílio parece ter utilizado nesse passo fontes pitagóricas (Cf. Cumont, 1923:278-279). Enéias vê então à esquerda um penhasco e um tríplice muro cercado pelo rio Flegetonte de chamas ardentes (548-551). Vê também uma porta enorme e colunas de ferro. Tisífone, uma das três Erínias, as Fúrias romanas, ali guarda os vestíbulos do Tártaro noite e dia (554-556). A Sibila explica a Enéias que é Radamanto quem governa estes reinos (566ss.). Lá dentro o Tártaro se estende num imenso precipício (577-579). É nesse local que cumprem suas penas os grandes criminosos tais como os Titãs, os Lapitas, Ixião e Pirítoo (580ss.). No Tártaro estão também os que cometeram crimes contra sua família ou contra os clientes, os egoístas, os adúlteros, os que trairam ou os amigos ou a pátria e os incestuosos (608ss.).

42 Aqui

aparecem dois versos (438-439) quase iguais aos versos 479-480, do livro IV, das Geórgicas. 58

Seguindo o caminho da direita eles encontram os muros construídos pelos Ciclopes e as portas abobadadas do palácio de Dite onde devem depositar o ramo de ouro e ali Enéias lava-se com água fresca, realizando um ritual de purificação antes de entrar nos Campos Elísios (630-636). Então eles chegam aos “lugares alegres e aos amenos vergéis dos bosques dos afortunados e às sedes beatas” (638-639). Nesse local há mais ar, os campos são envolvidos por uma luz purpúrea (que é a cor característica dos mortos: é a cor do manto que é lançado sobre o corpo de Miseno (221) e é a cor dos lírios que Anquises lança sobre Marcelo (883-886)) e um há um sol e estrelas próprios do lugar, diferentes do sol e das estrelas que brilham na superfície (640-641). Ali Enéias vê que a vida segue como se nada tivesse mudado: uns se exercitam em academias, outros dançam e cantam, outros ainda cuidam de seus cavalos ou de seus carros (642ss.) eadem sequitur tellure repostos (655). Através de uma floresta corre o rio Erídano (659). Este rio não aparece em Homero, mas Hesíodo o cita no seu catálogo de rios na Teogonia, 338ss. Ele era um rio lendário que ficava no extremo ocidente. Por isso pensava-se que ele corria pelos Campos Elísios. Virgílio cita-o nas Geórgicas, IV, 372 e identifica-o com o rio Pó, que corre pelo norte da Itália. Sem dúvida o rio que fluía pela sua terra natal continuava tendo um significado especial mesmo depois de tanto tempo afastado (Cf. Austin, 1988:208). Nesses campos estão os heróis que morreram pela pátria, os sacerdotes castos, os pios profetas, os inventores e todos aqueles que mereceram ficar na memória dos homens (660-664). Então a Sibila pergunta à alma do profeta Museu onde eles poderiam encontrar Anquises e aquele responde que ninguém mora num lugar certo: todos ocupam os bosques, as praias e os prados (666ss.). Em seguida Museu os guia até que superam um morro e encontram os campos reluzentes (675-678). Anquises estava no fundo de um verde vale observando as almas prestes a reencarnar e as que deveriam ainda esperar mais algum tempo no Elísio para retornar à vida terrestre (679-683). Depois de encontrar-se com seu pai e de tentar 59

abraçá-lo em vão (684-703), Enéias vê num vale distante um bosque separado, uma floresta e o rio Leteu que banha as ‘plácidas moradas’, um local particular dos Campos Elísios (703-705). O adjetivo ‘plácidas’ parece ter uma relação com a função do rio Leteu, que era a de provocar o esquecimento nas almas que bebessem de sua água (Cf. versos 714-715 e 749-750 e Austin, 1988:217). Depois de explicar ao filho porque as almas se aglomeram às margens do rio Leteu, Anquises conduz Enéias e a Sibila através da multidão e chegam a uma colina de onde poderiam observar todas as almas (752-755). O pai de Enéias então enumera toda a sua descendência de heróis que terão glória no Lácio (756-886). Em seguida à longa exposição do pai, Enéias e a Sibila se encontram em frente às duas portas do Sono: uma é córnea e por ela passam as sombras verdadeiras, e a outra é de marfim e por ela os Manes enviam os falsos sonhos à superfície (893-896): Enéias e a Sibila saem pela porta de marfim, a porta dos sonhos falsos. Setaioli (1985:962) nota que a imagem das portas foi tomada da Odisséia, XIX, 562-567 e que em Od., XXIV, 12 o povo dos sonhos é posto em relação com o mundo dos mortos. Inúmeras interpretações surgiram para tentar explicar a presença

destas portas nesse passo. Norden (1916:47-48 e 348-349)

argumenta que o fato de Enéias sair pela porta de marfim indica que o descensus teria sido uma visão. Mas depois ele prefere aceitar a sugestão de que eles teriam deixado os infernos antes da meia-noite, pois os sonhos verdadeiros surgiam somente após esta hora. Outros comentadores preferem a explicação dada por Sérvio (1986:49) no comentário ao verso 282 que fala do olmo opaco, morada dos sonhos vãos: intellegimus hanc esse eburneam portam per quam exiturus Aeneas est. Porém, como adverte Austin (1988:276), é topograficamente absurdo pensar que Anquises conduz Enéias e a Sibila de volta, além do Estige, até o vestíbulo. Como se vê, esse é mais um enigma que Virgílio nos legou, tal como o do ramo de ouro e o do olmo dos sonhos vãos. Cabe ainda fazer um comentário sobre a topografia dos rios infernais proposta pelo mantuano. Essa organização dos rios aparece imprecisa e não se 60

baseia nem em Homero nem em Platão. Muitas vezes parece que os nomes dos rios são empregados como alusões genéricas às águas infernais. Não fica claro onde está Caronte e a imagem das nove voltas que Estige dá em volta do inferno não parece coerente com o desenvolvimento da descida (Cf. Setaioli, 1985:960). A topografia do Tártaro também aparece imprecisa. Da Ilíada, VIII, 14-16 deriva a imagem da porta com colunas de aço e da Teogonia, 717-728 derivam as fortificações de ferro e o tríplice muro dos versos 549-554. Virgílio parece não ter se preocupado muito com uma coerência na caracterização da estrutura do Tártaro: talvez mais importante fosse provocar o medo e o assombro com o exagero da profundidade dobrada do abismo (Cf. 576-578) e com as descrições dos suplícios dos criminosos (580-627). Mas apesar dessas imprecisões, vemos que Virgílio constrói o seu inferno segundo uma estrutura (Setaioli, 1985:956). O mundo dos mortos é dividido em setores de acordo com a natureza das almas que ocupam os espaços a elas destinados (Bar, 1946:49 e Cardoso, 1988:133). Primeiro, como em qualquer casa romana, aparece um vestíbulo onde moram os males que afligem o homem e os monstros. Passando então pela entrada dos infernos eles tomam o caminho que leva ao Aqueronte e à praia onde deveriam encontrar Caronte. Nesse lugar os mortos aguardam a oportunidade de passar para o outro lado. Somente os que foram sepultados podem atravessar. Por isso Palinuro não pode subir à barca de Caronte. Então, depois de atravessar as águas que separam os vivos dos mortos, eles chegam à entrada do reino de Dite. Ali encontram Cérbero e passam por ele. Em seguida eles parecem entrar numa espécie de limbo onde estão as almas daqueles que morreram antes de cumprir o seu destino: crianças, condenados à morte por falsa acusação e os suicidas. Logo depois eles encontram os campos chorosos onde estão os que foram consumidos pelo amor. É nesse lugar que Enéias encontra Dido. Continuando o caminho, eles encontram os heróis que tombaram em batalha. Depois de passar por este limbo, eles chegam ao ponto em que a estrada se bifurca. E aí vemos a hierarquização das direções promovida por Virgílio: pela 61

direita vai-se ao Elísio e pela esquerda chega-se ao Tártaro. Esse lugar de suplícios eternos era circundado pelo rio Flegetonte de chamas ardentes e muito bem guardado por muros e por Tisífone. Apesar da imprecisão apontada por Setaioli (1985:961), achamos que parece haver uma divisão de espaços para cada tipo de crime. Os grandes infratores da mitologia, como os Titãs e Ixião, sofrem suplícios fantásticos. E os outros criminosos, como os adúlteros e os traidores, parecem sofrer penas em lugares separados. De qualquer maneira não podemos afirmar nada com segurança. Mas todas as imagens que Enéias recebe do Tártaro ele vê apenas de longe ou segundo a descrição da Sibila. Eles seguem então pela direita e chegam aos muros do palácio de Dite. Ali Enéias deve depositar o ramo de ouro e purificar-se antes de entrar nos Campos Elísios. Nesse local, nos bosques dos afortunados, os campos são envolvidos por uma luz purpúrea e há um sol e estrelas específicos do local. E ali estão os heróis que morreram pela pátria, os sacerdotes castos, os pios profetas, os inventores e todos os dignos de glória. A Sibila e Enéias, então são guiados pelo profeta Museu até o local onde estava Anquises, o lugar onde ficavam as almas que estavam prestes a reencarnar. Um pouco distante dali estava um bosque separado, uma floresta e o rio Leteu, que banhava as ‘plácidas moradas’. E depois de maravilharse e de aprender muitas coisas, Enéias volta à superfície pela porta dos sonhos falsos, junto com a Sibila. Virgílio nos apresenta os infernos de maneira tão ordenada que poderíamos mesmo pensar num mapa do mundo dos mortos, como alguns comentadores já fizeram (Cf. os esquemas propostos por Otis, 1963:289 e por De Jorio, 1831). Primeiro o vestíbulo antes do encontro com Caronte; depois o limbo, dentro do qual estão os campos chorosos e onde cada alma segundo a sua condição parece ter o seu lugar específico; em seguida, à esquerda o Tártaro e à direita o Elísio; e dentro do Elísio encontramos o bosque dos afortunados, onde estão todas as almas valorosas e que parecem estar fora do ciclo das reencarnações, e as plácidas moradas, onde estão as almas que aguardam o momento da reencarnação. Poderíamos dizer 62

também que, numa primeira parte dos infernos (antes da bifurcação dos caminhos, incluindo a visão do Tártaro), predominam concepções mais antigas, provindas da mitologia e cultos populares; e na segunda parte, depois da bifurcação, prevalecem as concepções de origem filosófica, como o orfismo-pitagorismo, o platonismo e o estoicismo. Dessa maneira, vemos que o poeta construiu o seu inferno como um verdadeiro engenheiro do verso e organizou concepções de diferentes origens para formar uma estrutura coesa e coerente no seu conjunto.

* Assim, pensando os dois textos paralelamente do ponto de vista da organização dos espaços, em primeiro lugar devemos reconhecer que a viagem que Ulisses faz é horizontal, enquanto que a viagem de Enéias é vertical (Finley,

:

110-111 e Finley Jr., 1978:111) e isso expressa concepções completamente diferentes de como se chega aos infernos. Temos de reconhecer também que as informações que Homero apresenta são escassas e nebulosas, pelo menos do nosso ponto de vista de homens modernos. Uma conclusão a que podemos chegar é de que não era intenção do aedo fornecer dados seguros sobre a localização do local onde se dá a evocação, mas apenas mostrar que esta ocorre num lugar bastante isolado, fantástico mesmo, localizado além do mundo conhecido pelo homem comum de sua época. O procedimento de Virgílio já é bem diferente. Ele localiza a entrada dos infernos num local onde tinha existido um antigo oráculo dos mortos, um local considerado sagrado para os deuses ctônicos. Sabemos que há uma série de anacronismos e de incongruências com dados da realidade no texto virgiliano. Porém, acreditamos que essas inconsistências resultaram das necessidades poéticas da construção do livro VI e elas não comprometem em nada a estruturação flagrante dos espaços. 63

E essa estruturação é o que faz a difereça fundamental em relação ao Hades homérico. Na Odisséia, as almas aparecem todas reunidas no Érebo, não há separação entre elas: não há categorias nem classes. O inferno descrito por Virgílio se mostra completamente diferente: ele está dividido em setores (Cf. Cardoso, 1988:132-133 e Bacon, 1986:317). Por isso concordamos com Camps (1967-68:24) quando afirma que a caracterização de Virgílio difere da de Homero pois seu inferno tem uma geografia, uma clara organização dos espaços infernais. E mais uma vez maior complexidade do texto virgiliano se expressa através dessa organização em diferenciados compartimentos e através da utilização de variadas fontes para cada momento descrição dos espaços.

64

Os Sentidos das Comunicações com o Mundo dos Mortos Neste capítulo abordaremos o problema dos sentidos das comunicações que os heróis realizam

com o mundo dos mortos: por que eles enfrentam perigos

enormes e entram em contato com as sombras? A princípio, veremos que há motivos aparentes dos quais os textos nos falam claramente. Mas logo observaremos que esses motivos aparentes não são suficientes para explicar satisfatoriamente a nékyia homérica e o descensus virgiliano. Para que possamos compreender os textos mais proveitosamente precisamos notar que há também ‘motivos ocultos’ que se encontram nas entrelinhas dos textos ou em outras passagens das epopéias além das que tratam das comunicações com o mundo dos mortos. Assim, faremos uma análise dos textos procurando detectar as passagens onde são explicitados os motivos aparentes ou imediatos de os heróis realizarem as comunicações e, em seguida, apresentaremos interpretações de vários comentaristas sobre quais poderiam ser os ‘motivos ocultos’. E por fim concluiremos comparando os resultados das análises e destacando o peso simbólico e a complexidade dos motivos das comunicações.

* Por que Odisseu deve realizar a nékyia e invocar as almas dos mortos? Depois de permanecer um ano na casa de Circe, os companheiros de Ulisses lembram a ele que já é hora de voltar para a pátria. O Laercíada então pede a Circe que cumpra a promessa que havia feito de enviá-los à terra natal (Od., X, 483-484)43. Circe diz-lhe então que antes de voltar a Ítaca era necessário fazer outra viagem até a casa de Hades e de Perséfone com o fim de consultar a alma do tebano Tirésias que era o único que mantinha os sentidos intactos enquanto as outras almas

43

Em nenhuma outra passagem essa promessa é mencionada.

65

esvoaçavam como sombras (X, 490-495). Do adivinho cego Odisseu saberia sobre o percurso e a extensão da viagem que ele deveria realizar para chegar à sua pátria (X, 538-540)44. Essa é a razão aparente de o Laercíada realizar a nékyia. Mas vejamos o que Tirésias diz ao divino Odisseu depois beber do sangue (Od., XI, 100ss.). Um deus atrapalhará o retorno deles, Posêidon, que está irritado, pois Ulisses cegou o seu filho Polifemo. Porém, mesmo sofrendo revezes, Odisseu há de rever a pátria, se conseguir refrear a sua ambição e a dos companheiros na ilha Trinácia onde estavam os rebanhos de Hélio, o deus sol. Se as vacas e as ovelhas não sofressem nenhum mal todos retornariam para Ítaca. Mas se eles causassem algum dano aos rebanhos, a ruína cairia sobre os companheiros e sobre a nave e Odisseu só retornaria à pátria depois de muito tempo e em uma nave estrangeira. E no seu retorno encontraria em casa grandes trabalhos: homens arrogantes consumindo suas riquezas e cortejando sua esposa. Porém, sem dúvida, Ulisses teria sua vingança. Depois de dizer tais coisas, Tirésias passa então a falar do que o herói deveria fazer depois que tivesse matado os pretendentes (XI, 119ss.): ele teria que fazer outra viagem, levando um remo bem-feito, até que encontrasse um povo que não conhecia a arte da navegação. Logo que cruzasse no caminho com um homem que dissesse que ele carregava uma pá de espalhar grãos de trigo, nesse lugar ele deveria cravar o remo e realizar sacrifícios para Posêidon. Depois Odisseu voltaria para Ítaca, ofereceria hecatombes a todos os deuses e, estando ele distante do mar, uma doce morte poria fim aos seus dias. Isso foi o que Tirésias disse. Como vemos, as informações sobre o retorno são escassas e as palavras do adivinho tratam mais de outras questões sobre as quais não havia interesse imediato. Então toda a viagem e a invocação teriam sido inúteis? Como veremos, Ulisses receberá mais informações sobre o retorno de outras fontes. No encontro com a alma de sua mãe Anticléia o herói obtém informações sobre sua esposa Penélope, que o aguardava pacientemente em sua casa; sobre seu filho Telêmaco, que administrava todos os bens e tinha autoridade entre os homens; 44

Cf. também XI, 164-165 e 479-480.

66

e sobre seu pai Laertes, que estava no campo e não ia à cidade (XI, 181-196). De sua mãe Odisseu também recebe ensinamento sobre a natureza da alma após a morte, depois de inutilmente tentar abraçá-la: depois que o corpo é consumido pelas chamas a alma esvoaça como a sombra de um sonho (XI, 216-222). A alma de Agamêmnon também lhe diz sobre as virtudes de Penélope e ele há de reencontrar o filho Telêmaco, que é feliz e freqüenta a assembléia (XI, 444-451). Mesmo assim a alma do Atrida recomenda a Odisseu que ele chegue às escondidas com sua nave à pátria, pois não se pode confiar nas mulheres (XI, 455-456). Odisseu parece ter guardado estas palavras, pois, como sabemos, ele ocultará sua identidade nos primeiros momentos após a chegada. Mesmo depois de conversar com essas almas, as informações que ele recebe ainda parecem escassas. E essa impressão se confirma quando nos deparamos com as palavras que Circe diz a Odisseu depois que ele e os companheiros retornam do Hades. É a feiticeira Circe quem antecipa todos os trabalhos que o Laercíada deverá superar para chegar à terra natal (Od., XII, 38-141): primeiro ela diz o que eles devem fazer para passar incólumes pelas Sereias. Depois diz também o que precauções devem tomar ao passar pela morada de Anfritite, pela gruta da Cila e pelo rochedo de Caribde; tendo passado por esses perigos, eles chegariam à ilha Trinácia, já citada na profecia de Tirésias, onde se encontravam os rebanhos de Hélio que não deveriam sofrer nenhum dano pelas mãos nem de Ulisses nem dos companheiros para que todos retornassem em segurança e logo para Ítaca. Além disso, sabemos que o destino de Ulisses já estava previsto no livro IX, 528-535, quando Polifemo pede a seu pai Posêidon que impeça o herói de retornar para Ítaca ou, se ele estivesse destinado a chegar à pátria, que voltasse miserável, depois de muito tempo, tendo perdido os companheiros, em um navio estrangeiro e, tendo chegado, que encontrasse aflições em casa. Como sabemos, Posêidon cumpriu fielmente o pedido do filho. Dessa maneira, vemos que a viagem e a invocação às almas dos mortos realizadas por Ulisses parecem ter sido inúteis, pois as instruções sobre o retorno 67

não são dadas por Tirésias mas por Circe, a mesma que disse ao Laercíada que ele deveria ir ao Hades para receber informações sobre o caminho de volta para casa. Haveria então outro motivo para a nékyia? Para esta pergunta podemos encontrar diversas respostas. Alguns autores relacionam a nékyia com uma necessidade de encontrar a verdade. Grammatico (1995:63-65) diz que a viagem de Odisseu teria uma função didática, gnoseológica, de aquisição de sabedoria, proporcionada pelo encontro com a verdade que emana do oráculo de Tirésias. Para Cerri (1995:447), Odisseu comunica-se com as almas dos mortos porque somente dessa maneira ele poderia conhecer a verdade sobre o seu destino e sobre o que deveria fazer para que conseguisse retornar para Ítaca. A essa interpretação gnoseológica podemos relacionar ainda a visão de Germain (1954:344-345) que afirma que a nékyia é uma investigação sobre o destino humano que encontra suas respostas nas palavras de Anticléia e de Aquiles. Segundo o autor, a alma da mãe de Odisseu e a alma do Pelida teriam passado para ele um saber transcendental, uma cripto-metafísica quando lhe contaram sobre a natureza da alma e sobre a vida no além (Cf. Od., XI, 218-222 e 488-491)45 . Pensamos também que a nékyia tem uma função didática e gnoseológica. Ulisses certamente aprende e recebe muitas informações das almas com as quais dialoga. Porém, achamos precária a relação entre a nékyia e uma busca pela verdade, já que o herói não recebe de Tirésias as informações que realmente o ajudariam no seu retorno. Mas vejamos outros caminhos abertos pela crítica. Rohde (1928:41-42) já destacava a aparente inutilidade da viagem ao mundo dos mortos empreendida por Ulisses (Cf. também Stella, 1955:227-228 e Fraccaroli, 1903:362-363): Tirésias fala sobre o retorno, mas de maneira superficial e incompleta. É Circe quem dá indicações mais precisas e mais claras sobre os perigos que o esperam. Rohde (1928:43) já argumentava que a consulta à alma do adivinho tebano era um pretexto para que Ulisses pudesse encontrar-se com as almas de sua mãe e de seus antigos companheiros. 45

Para uma outra interpretação, cf. Aubreton, 1968:176-177.

68

Heubeck (1992:76) também afirma que a intenção do poeta era confrontar Odisseu com as sombras daqueles que no passado estiveram próximos a ele. Heubeck, porém, destaca que esses encontros não ocasionaram nenhuma transformação no herói: mesmo depois das conversas que mantém com as almas, Odisseu continua sendo o rei de Ítaca, o herói da guerra de Tróia. Aubreton (1968:176-177) desenvolve seu raciocínio na mesma direção. Se considerarmos a hipótese de que o objetivo do poeta era possibilitar o diálogo entre as almas e Odisseu, podemos dizer que talvez esse meio tenha sido sugerido pela lembrança da narrativa apresentada por Menelau a Telêmaco no livro IV, 351ss., da Odisséia. Nesse passo o Atrida narra como aprisionou Proteu com a ajuda de Idotéia. As questões aí colocadas pelo rei da Lacedemônia ao velho do mar, conhecedor das coisas futuras, sobre como retornar à pátria têm por objetivo introduzir as narrativas das desventuras de Ájax, de Agamêmnon e de Odisseu (Rohde, 1928:43). De maneira semelhante, o tema da nékyia pode ter sido usado pelo poeta para introduzir as narrativas sobre os encontros entre Odisseu e as almas de seus companheiros na guerra de Tróia. Dessa maneira, vemos que a narrativa sobre a comunicação de Odisseu com os mortos oferece maiores possibilidades de estimular a imaginação do ouvinte/ leitor ao apresentar uma variedade maior de eventos e de sentimentos eminentemente humanos, levando o poeta a alcançar um grau mais elevado de expressão estética onde se exalta o valor do herói (Cors i Meya, 1991:202). Cabe destacar também que, na unidade do poema, Odisseu é levado a encarar a maior, mais distante e mais arriscada de todas as suas aventuras. Não é por acaso que a nékyia se situa justamente no centro do conjunto de aventuras (Germain, 1954:330-333), pois com esta comunicação Ulisses realiza seu feito mais memorável, mais heróico (Cors i Meya, 1991:35).

* 69

Quanto a Enéias, o que o leva a descer à morada dos mortos? Nos versos 108-109, do livro VI, ele pede à Sibila que lhe permita encontrar seu pai e conversar com ele, que lhe ensine o caminho e lhe abra as portas sagradas dos infernos. O motivo se apresenta de maneira bastante clara e inequívoca e nele se manifesta mais uma vez a piedade do Anquisíada (Cf. também versos 403-404). No livro III, 452-460, o profeta Heleno já diz a Enéias que ele deve consultar a Sibila de Cumas, pois esta lhe falará, através dos oráculos, sobre os povos

da Itália, sobre as guerras que o esperam e sobre a maneira como ele

superará todas essas provas. No conjunto, é isso que a Sibila dirá ao chefe troiano no início do livro VI. Mais à frente, no livro V, 731-737, Anquises aparece em sonhos para Enéias. O pai diz-lhe que ele deve ir ao Lácio e vencer na guerra um povo rude. Mas antes Enéias deve descer às moradas de Dite para encontrar-se com a alma de seu pai. Anquises diz que está no Elísio e que a Sibila o guiará. E lá Enéias conheceria a raça que se originaria dele e os destinos que o esperavam. Nessa passagem já vemos que a função do descensus não é simplesmente apresentar o encontro de Enéias com a alma de seu pai. A descida tem um caráter de revelação, de desvelamento do futuro. E essa revelação tem início com as próprias profecias que a Sibila lhe faz no começo do livro VI, 83-97. O oráculo anuncia que ali os troianos encontrarão grandes guerras e dissabores. Novamente núpcias com uma mulher estrangeira, Lavínia, a filha do rei Latino, seria causadora de males para os dardâneos, como já tinha acontecido antes quando Páris se uniu a Helena. Mas Enéias não deve esmorecer, pois a ajuda viria de uma cidade grega, governada pelo rei Evandro. Além desse tom de revelação, na descrição da descida encontramos também uma função pedagógica acerca do destino das almas após a morte e sobre a organização do mundo dos mortos. É sobre isso que a Sibila lhe fala entre os versos 322 e 330. 70

Podemos juntar ainda às funções revelatória e pedagógica a apresentação dos encontros de Enéias com as almas dele conhecidas como mais um elemento que enriquece a narrativa. As almas são as do piloto Palinuro, da rainha Dido e do Priamida

Deífobo. Nos diálogos de Enéias com seus ex-companheiros, que

certamente têm como modelos os diálogos que aparecem no livro XI, da Odisséia, podemos encontrar também a função pedagógica, pois quando o chefe troiano dialoga com seus ex-companheiros ele aprende um pouco mais sobre o destino das almas. Além desses diálogos, o poeta descreve também, entre os versos 479-488, os encontros de Enéias com os heróis, que tombaram em Tróia e também foram seus companheiros quando viviam: Tideu, Partenopeu e outros. Quando a Sibila e Enéias chegam ao local onde o caminho se divide em dois, ele aprende mais algumas coisas, agora sobre o Tártaro, ensinadas a ele pela sacerdotisa. Ela lhe diz que nenhuma alma pura poderia entrar naqueles domínios. Quem governa o Tártaro é Radamanto e lá sofrem suplícios os grandes criminosos como os Titãs e Salmoneu. Mas é quando chega ao Elísio que Enéias recebe os ensinamentos mais importantes e através de seu pai fica sabendo do destino da raça da qual ele será o fundador na Itália. Primeiro (vv. 713-718) Anquises fala ao filho sobre a teoria da metempsicose, de origem órfico-pitagórica e que dizia que a alma que não fosse pura deveria passar por uma seqüência de reencarnações até que alcançasse a perfeição (Cf. Dodds, 1951:149ss.). Mais à frente (724-751), Anquises apresenta ao filho uma doutrina sobre a origem do mundo e sobre o desenvolvimento da alma. Nas palavras do pai de Enéias aparecem mescladas idéias estóicas (o espírito que tudo anima e movimenta e os semina, do verso 731, que lembram os spermaticói lógoi do estoicismo, por exemplo), platônicas e órfico-pitagóricas (a teoria da reencarnação) (Cf. Austin, 1988:202 e 220-221, Norden, 1916:16-20 e Braund, 1997:217). E depois desses ensinamentos de caráter filosófico, que poderiam ser entendidos como componentes de um processo de iniciação, vem o que talvez possa 71

ser considerada a parte mais importante de todo o descensus: a revelação sobre o destino de Roma. Como aparece nos versos 731-737, do livro V, da Eneida, Enéias vai aos infernos para encontrar o seu pai e para receber dele essa revelação. Então são apresentados os heróis que trarão a glória para o Lácio: Rômulo, Catão, os Cipiões e muitos outros. E no centro das atenções está o herói que faria retornar os séculos de ouro à Urbe: Augusto César, que percorrerá mais terras do que Héracles e Dioníso (801-805). Mais à frente Virgílio parece assumir o papel de poetaeducador do pavo romano e, pelas palavras de Anquises, o aconselha (851-854. Cf. Braund, 1997:210): Tu, romano, lembra-te de governar os povos com o império (estas serão as tuas artes), e de impor o costume da paz, de perdoar quem está submetido e de debelar os soberbos. Outros povos desenvolverão as artes da escultura e outros ainda conhecerão todos os segredos da astronomia. Mas ao romano caberá levar a paz e governar com justiça os outros povos, pois este é o seu destino. Outros povos terão fama pelas suas realizações no campo das artes em geral, tal como os gregos, e outros ainda serão conhecidos pelos desenvolvimentos que promoveram no campo das ciências, tal como os caldeus (babilônicos). O romano, por outro lado, terá glória nos domínios da política, do direito e de tudo que está ligado a esses domínios tal como a retórica e a guerra. Esse era o destino do povo do Lácio. Por fim, Anquises faz um longo elogio à família dos Marcelos, à qual pertencia o sobrinho e genro de Augusto que morreu muito jovem causando grande frustração e tristeza a alguns membros da família imperial (855-886). Dessa maneira, vemos que a viagem de Enéias ao mundo dos mortos é motivada pela necessidade e pelo desejo dele de encontrar seu pai. E nesse encontro ele recebe a revelação sobre o futuro da raça cuja semente será plantada por ele. Sem dúvida, o canto sexto tem sua razão de ser fundada sobre o hábito literário de apresentar uma viagem ao mundo dos mortos, que se tornou comum

72

depois de Homero. Mas o descensus tem também uma razão de ser maior que sustenta a estrutura da narrativa. Enéias chegou à terra predestinada: em momentos cruciais como este, nos quais era necessário tomar decisões importantes acerca do destino, os antigos tanto gregos quanto romanos costumavam, antes de agir, fazer uma pausa e dirigiam o pensamento para as divindades para interrogá-las (KivuilaKiaku, 1997:51). Depois de passar por um primeiro ciclo de peregrinações, outro ciclo está por iniciar-se, mais áspero, à partir da chegada dos troianos ao Lácio. Em outros momentos menos solenes, Enéias sempre exercitou sua piedade observando os desígnios dos numes através dos oráculos, sonhos, profecias e prodígios. Agora, prestes a enfrentar mais uma prova, o chefe troiano passa por uma verdadeira mística que o preparará para sua missão (Thomas, 1993: 57-58 e Kivuila-Kiaku, 1997:56). Nos infernos, seu pai lhe revelará a série gloriosa das gerações nascidas do seu sangue e que levarão a justiça aos povos. Com o descensus, Enéias recebe a consagração dos heróis: com a experiência suprahumana sua obstinação alcançará uma nova motivação para a superação das dificuldades vindouras. Com a viagem ao mundo dos mortos, Enéias, como diz Funaioli (1924:19), “se temperará definitivamente no áspero e augusto dever que os súperos lhe confiaram”. Nesse contexto Anquises assume um papel contral, pois ele o reanimará para a vida e para seu grandioso destino. E essa renovação, essa fortificação do seu espírito, ficará clara nos próximos cantos da epopéia. Aí reside um dos significados ‘ocultos’ do descensus (Funaioli, 1924:119). Por outro lado, em contraste com o que acontece nos poemas homéricos, onde se vê a todo instante a afirmação dos limites humanos e da mortalidade46 , na Eneida vê-se a conquista da imortalidade e da espiritualidade extraterrena e mística. Por isso, concordando com Bacon (1986:311), podemos dizer que a epopéia virgiliana é um ‘drama de eleição’, onde aparece uma série de labores que 46

Compare-se as idéias de Bacon (1986:311) com a proposta de Pucci (1987:151-152): a Ilíada nega qualquer possibilidade imortalidade aos heróis, mas a Odisséia nos mostra Menelau como destinado a habitar as Ilhas dos Bem-Aventurados (Od., IV, 563) e a alma de Héracles banqueteando-se junto com os deuses no Olimpo (Od., XI, 602). E não esqueçamos que a imortalidade é ofertada o Odisseu por Calipso, mas ele a recusa (Od., V, 209). Cf. Nagy, 1979:151-210. 73

engrandecem a humanidade e no qual é descrita a transição do mortal para o imortal, do humano para o divino. Nesse contexto, a Eneida pode mesmo ser vista como uma grande alegoria da apoteose do imperador Augusto. Assim, a experiência de Enéias no mundo dos mortos produziu no seu espírito uma regeneração que o liberta do passado e fixa o seu olhar no futuro. Com essa regeneração, dá-se também uma purgação da fraqueza e da hesitação que apareciam em alguns momentos da primeira parte do poema. Depois do descensus, Enéias é um homem transformado, decidido e isento de dúvidas (Camps, 1967-68: 26-27). E essa transformação se manifestará nas atitudes violentas e mesmo impiedosas que Enéias tomará na parte iliádica do épico virgiliano.

* Comparando os motivos que levaram os dois heróis a realizar suas comunicações com o mundo dos mortos, podemos dizer que os motivos apresentados na nékyia parecem mais prosaicos e pragmáticos, pois dizem respeito a um indivíduo apenas. Na Eneida a solenidade e o peso simbólico do descensus se manifesta de maneira mais clara pois Enéias não vai ao inferno simplesmente para obter notícias sobre o seu futuro na Itália ou para encontrar seu pai. O chefe troiano desce ao inferno para conhecer o destino de todo um povo do qual ele será o fundador. É esse caráter nacional que diferencia a epopéia virgiliana dos poemas homéricos. O poeta de Quios narra a história de um inivíduo, de um herói. Virgílio fala sobre o passado heróico e sobre o destino glorioso de um império. Quando Odisseu realiza a invocação aos mortos, ele está em busca de informações sobre o seu retorno para casa. E nos diálogos que mantém com as sombras, os temas estão sempre voltados para o passado: Odisseu pede à alma de sua mãe informações sobre a situação em Ítaca; a alma de Agamêmnon também lhe dá notícias sobre Ítaca; e no diálogo que mantém com a alma de Aquiles mais uma vez o tema é o passado, no caso as notícias que o Pelida pede a Ulisses sobre o seu filho Neoptólemo. 74

Nos diálogos que Enéias mantém com as almas de Palinuro, Dido e Deífobo, os temas também remetem ao passado do herói troiano. Porém, o sentido é completamente outro, pois o objetivo desses diálogos não é reaproximar Enéias desse passado, mas afastá-lo dele, numa espécie de libertação ou mesmo purgação. O objetivo desses primeiros diálogos é mostrar que não há como retornar, o caminho é de mão única e o destino está traçado. O passado foi importante, mas o futuro deve estar no centro das atenções do chefe troiano (Otis, 1991:303). E aí mais uma diferença: Odisseu quer voltar, sua viagem é um nostos47; Enéias deve prosseguir, pois há um destino a ser cumprido, um futuro determinado pela vontade dos numes.

47

A viagem de Enéias, num sentido amplo, também poderia ser considerada um nóstos, pois Dárdano, um dos antepassados do povo troiano, era originário da Itália. Mas, na sua imediatez, a viagem dos troianos rumo à Itália é uma fuga para a terra prometida. 75

Conclusão Ao longo das leituras e da redação do nosso trabalho, algumas perguntas delinearam-se e achamos que era necessário discuti-las neste espaço. Que legitimidade há em se fazer uma comparação entre dois poemas épicos separados por cerca de oito séculos e com características tão marcadas? Um é o resultado de uma longa gestação dentro do ventre de uma cultura de base oral, como mostraram as pesquisas de Milman Parry, enquanto o outro é o produto de um trabalho individual de elaboração escrita, com todas as conseqüências que isso tem. Um teria sido cantado por um aedo inspirado por uma Musa, ressaltando-se aí o caráter religioso da composição. O outro foi escrito e reescrito por um poeta que, como sabemos, trabalhava a serviço do estado romano com o objetivo de fazer a louvação da Urbe e de seu governante máximo 48. Pensando nos diferentes contextos de produção da poesia homérica e da epopéia virgiliana parece difícil propor uma comparação. Porém, desde a Antigüidade, comparações sempre foram feitas (Knauer, 1981:871ss.). Propércio (2, 34. 65-66) já dizia: Cedei o passo escritores romanos, cedei gregos! Não sei o que nasce maior do que a Ilíada. dando seu voto de confiança sobre a superioridade do poema que estava sendo escrito pelo seu amigo mantuano em relação à epopéia homérica. E por que sempre os poemas homéricos sempre foram comparados com a Eneida? Em primeiro lugar, porque Homero e Virgílio são os dois maiores autores da poesia épica greco-latina. Além disso, comparações sempre foram feitas pois Virgílio emulou em vários momentos da Eneida passagens da Ilíada e da Odisséia: Homero seria uma das fontes, um dos modelos mais importantes dos quais Virgílio se teria valido no momento da construção de sua epopéia. Um exemplo disso é o livro VI, da Eneida: 48

Claro que essa é uma visão reducionista e preconceituosa da obra de Virgílio, mas nela é ressaltado um aspecto de grande importância para qualquer análise da poesia virgiliana. 76

Virgílio teria se inspirado na passagem da nékyia homérica para a redação da descrição da viagem de Enéias ao mundo dos mortos. Fazendo uma breve digressão, queremos aqui expressar nossa opinião acerca dessa propalada filiação homérica do texto virgiliano. Primeiramente, é preciso perceber que entre os poemas homéricos e a Eneida há mais ou menos oito séculos de distância. E isso tem conseqüências enormes: os diferentes modos de composição das narrativas, umas com raízes na cultura oral da Grécia pré-arcaica e arcaica, e a outra resultante do trabalho de um poeta doctus experimentado e consciente dos métodos da poesia escrita com forte influência helenística. Para nós é difícil falar sobre essa tradição, pois a quantidade de dados é relativamente escassa imaginando o número de poemas épicos que certamente foram produzidos depois de Homero e antes de Virgílio e dos quais temos informações insuficientes. Possuímos algumas notícias sobre os poetas cíclicos da Grécia arcaica; possuimos um poema épico de grande importância para a Eneida, a Argonáutica, de Apolônio de Rodes; e sabemos pouco sobre os primeiros poetas épicos latinos, que certamente tiveram forte ascendência sobre Virgílio, Névio e Ênio. Além disso, não há muito mais. Por outro lado, devemos levar em conta o fato de Virgílio ter utilizado outras fontes que não somente as épicas, tais como Eurípides (Cf. La Penna, 1993:lxxx e lxxxii), Platão, Lucrécio e Cícero. Tendo em vista todos esses elementos, é preciso considerar a possibilidade de essa filiação homérica da épica virgiliana não ser tão marcante assim. É certo que na Eneida encontramos pontos de contato, citações e imitações dos poemas homéricos. Porém, Virgílio não é um mero repetidor de mitos e aventuras. Ele é o receptor e reformulador de toda uma tradição literária. E isso pode ser notado pela maneira particular como ele reconta as histórias adaptando-as ao contexto da cultura romana de sua época. Exemplo disso, ainda, são as diferenças que há entre a nékyia e o descensus. As diferentes maneiras de caracterizar os rituais que precedem os contatos com as sombras, em Virgílio destacando-se o maior peso simbólico e o tom mais solene; as variadas estratégias de composição e apresentação dos espaços 77

infernais, evidenciando-se no livro VI, da Eneida, a existência de uma estrutura espacial, de uma organização ‘racional’ e hierarquizada da morada dos mortos (resultante do encontro de uma tradição mito-escatológica com uma tradição filosófica reelaboradas pelo poeta na composição de seu inferno); e as diferentes motivações dos heróis para realizar suas comunicações com o mundo dos mortos, (destacando-se que ao descer aos infernos Enéias faz uma viagem iniciática que o prepara para as futuras batalhas que deverá enfrentar no Lácio e para plantar a semente do que mais viria a ser

um império, enquanto Odisseu tem seu olhar

voltado para o passado e para seus interesses individuais) mostram que a distância entre os poemas homéricos e a Eneida é considerável. Não queremos aqui nos arriscar a sugirir um juízo de valor a favor de uma ou outra obra. A nosso ver, tanto a Ilíada e a Odisséia quanto a Eneida merecem ser lidas, relidas e estudadas nas suas infinitas facetas com o mínimo de preconceito possível49. Mas além das questões já citadas, queremos apresentar também uma breve exposição sobre como

o sentimento do humano, contraposto ao sentimento do

divino, aparece na nékyia homérica e no descensus virgiliano. Para entender a importância desse sentimento do humano nas duas passagens focalizaremos nossa atenção sobre os diálogos que os heróis realizam no Hades com algumas sombras deles conhecidas. Há nas descrições que Virgílio faz dos encontros entre Enéias e ass almas de Palinuro, Dido e Deífobo uma clara reminiscência dos encontros descritos no canto XI, da Odisséia, entre Odisseu e as almas de Ájax, Elpenor e Agamêmnon. Mas nesses encontros, mais do que similaridades, evidencia-se a fundamental diferença entre Homero e Virgílio (Otis, 1995:293). Antes de cruzar o Estige, Enéias e a Sibila encontram-se com a alma do insepulto Palinuro. Este pede ao chefe troiano que o leve para o outro lado do rio, pois sabe que a presença de Enéias ali está diretamente ligada à vontade dos deuses. Mas Palinuro permanecia sem sepultura e a sua morte estava de acordo com a vontade dos deuses (Otis, 1995:292). A Sibila então o adverte dizendo que os deuses 49

Para um juízo a favor de Homero, por exemplo, cf. Reinhardt, 1996:121.

78

agem de acordo com o destino e isso não pode ser mudado. Como sinal da clemência divina, o local onde ele será sepultado receberá o seu nome e ele terá fama eterna. Está claro que Palinuro corresponde ao Elpenor homérico. Porém, como diz Otis (1995:293), o significado religioso da sua condição de insepulto, o sentido especial da sua morte e a motivação divina do seu enterro acima do seu desejo humano estão ausentes em Homero. No que se refere ao encontro de Odisseu com Ájax, cabe ressaltar que o último não era uma peça importante no passado do Laercíada: ele é apenas um dos fantasmas que Odisseu encontra. No encontro entre Enéias e a alma de Dido, por outro lado, aparecem as idéias essenciais de hostilidade da rainha em relação ao chefe troiano e o silêncio, a ausência de comunicação, de diálogo, de troca e de reconhecimento, que é a expressão mais efetiva da referida hostilidade. E a partir disso, Virgílio criou o drama intenso do conflito entre o passado e o presente do herói e do que acontece quando um homem enfrenta o seu passado (Otis, 1995:294). E para destacar o maior peso simbólico desse encontro cabe lembrar que essa hostilidade de Dido em relação a Enéias depois seria considerada a causa mais remota das guerras entre romanos e cartagineses, enquanto o silêncio de Ájax não tem nenhuma conseqüência para o futuro de Ulisses. Além disso, no encontro entre Enéias e Dido os sentimentos são mais intensos e o efeito é muito mais desconcertante (Solmsen, 1972:35). Na descrição do outro encontro, entre Enéias e Deífobo, mais uma vez vemos que Virgílio se valeu do modelo homérico, no caso o encontro entre Odisseu e a alma de Agamêmnon no canto XI, da Odisséia. Porém, mais uma vez evidenciase o contraste: Agamêmnon e Odisseu dialogam sobre a diferença entre os seus destinos e sobre a maneira como um foi recebido com a traição de Clitemnestra e como o outro encontrará a felicidade em sua casa (depois de eliminar os pretendentes à mão de Penélope, é claro). O que está em questão é o mau nóstos de um e o bom nóstos do outro. Já no encontro entre Enéias e Deífobo, aparece novamente a traição de uma mulher, no caso Helena, que se tornara esposa deste 79

depois da morte de Páris 50, como o motivo da ruína. E ao contrário do que acontece com Odisseu, ao encontrar-se com a alma de seu antigo companheiro, Enéias recebe uma descrição que deve levá-lo a esquecer definitivamente sua terra natal. Deífobo pode ser considerado o símbolo da violência e da traição que ocorreram com a invasão e a destruição de Tróia. Ele é a prova de que Enéias nunca poderá voltar para casa e por isso ele deve esquecer o passado (Otis, 1995:296). Vemos, então, que nesses encontros Odisseu aproxima-se mais uma vez do seu passado e da sua terra natal (como já havia acontecido no seu encontro com a alma de sua mãe Anticléia), isto é, uma reaproximação com o mundo dos homens. Para Enéias, de modo inverso, os encontros com as almas de Dido e Deífobo representam a necessidade do seu rompimento definitivo com o passado e tudo que o pudesse afastar do destino que lhe foi reservado pelos deuses. Por todas essas razões o sentimento do humano apresenta-se muito mais forte em Homero, pois ali o olhar direciona-se para o mundo dos homens, enquanto que em Virgílio vemos afirmar-se a simbologia dos diálogos de Enéias com as almas, cujo significado é a necessidade do abandono do passado visando o cumprimento a vontade dos deuses que se consumará num futuro valoroso. É importante ressaltar também que Odisseu é um herói mortal que prefere manter-se nessa condição, um herói que prefere continuar humano a tornar-se deus, recusando a proposta de Calipso (Od., V, 209ss.). Essa preferência pelo humano também se evidencia nas famosas palavras de Aquiles no Hades (Od., XI, 488-491): Não louve a minha morte, glorioso Odisseu. Preferiria ser lavrador, servir a outro, A um homem pobre, que não tem muitos recursos,

Do que sobre todos os defuntos mortos reinar.

50

Cf. Od., IV, 276.

80

Enéias, por outro lado, tem seu olhar voltado para o futuro glorioso que o aguarda. Ele é o herói que se prepara para a imortalidade e para a divinização, que mais tarde seriam atributos dos imperadores romanos. Por todas essas razões, vemos confirmadas as palavras de Jacqueline de Romilly quando ela diz que “a ansiedade metafísica é bastante limitada” na nékyia homérica (1995:76). Concordamos com a autora quando afirma que Odisseu conversa com os mortos de maneira prática, como se estivesse tratando com vivos (p. 75). Além disso, como vimos no capítulo sobre os sentidos das descidas, as revelações são poucas e insuficientes. Estamos distantes da simbologia e da solenidade das revelações e das teorias filosóficas do livro VI, da Eneida. Finalizando, queremos fazer um comentário sobre o problema da intertextualidade na nékyia e no descensus. Está claro que, a nossos olhos, o texto virgiliano mostra-se muito mais tributário de outras obras de outros autores. Isto acontece pois para nós é mais fácil encontrar fontes que demonstrem a dívida de Virgílio em relação à tradição anterior a ele do que encontrar fontes que nos mostrem quais teriam sido as referências de Homero. Para Virgílio temos Homero (com sua clara influência sobre a Eneida), Hesíodo (influência mais marcante sobre as Geórgicas, mas também presente nas caracterizações do Tártaro e do Elísio do livro VI, da Eneida), Platão (presente nas referências à teoria da reencarnação, por exemplo), Eurípides (na maneira como o mantuano caracteriza o drama humano e na limitação do elemento maravilhoso. Cf. La Penna, 1993:lxxx), Apolônio de Rodes (veja-se como a maneira como Virgílio descreve a ira de Dido é devedora da maneira como a ira de Medéia é descrita no livro III, da Argonáutica), Lucrécio (no estilo), Cícero (podemos encontrar vários paralelos entre o encontro de Paulo Emílio e Cipião Africano descrito no livro VI, da República, de Cícero, e o encontro de Enéias e Anquises, no livro VI, da Eneida) e até o próprio Virgílio, pois nos versos 305-308 do livro VI, da Eneida, há claras referências aos versos 471-477 do livro IV, das Geórgicas. Acerca dos poemas homéricos não podemos dizer muito em relação à existência de intertextualidade nessas obras. Pode-se falar numa influência 81

indireta, via Ásia menor, da literatura mesopotâmica, mais especificamente do Gilgamesh, sobre Homero51. E podemos pensar, também, numa influência da Ilíada sobre a Odisséia, admitindo que os poemas tenham sido concebidos por um mesmo autor ou não52. Mas outro fator faz com que o texto virgiliano apresente um nível maior de intertextualidade. Virgílio foi herdeiro de uma tradição que se inicia com Homero, passa pela Grécia clássica, e se cristaliza no perído helenístico. Nesse período surge uma série de regras que visavam normalizar a produção dos poetas. Torna-se hábito então citar, fazer referências, imitar, enfim, demonstrar conhecimento de obras de autores importantes: era a poética da alusão ou arte alusiva53, através da qual o leitor é chamado a confrontar o texto com o modelo para que sinta como esse foi utilizado e reelaborado. Por isso também, em Virgílio a intertextualidade se manifesta mais claramente do que em Homero.

51

Sobre este problema da possível influência do Gilgamesh sobre Homero ver West, !997:passim e Cors i Meya, 1984:407ss. 52

Cf. Pucci, 1987:214ss.

53

La Penna, 1993:xiii.

82

TRADUÇÕES

83

Nota às Traduções Não tínhamos grandes ambições ao realizar nossas traduções. Nosso principal objetivo era alcançar uma compreensão mais profunda dos textos com fim de enriquecer as nossas análises e a nossa comparação. Por isso, decidimos não adotar uma métrica para as traduções e, na medida do possível, acompanhamos a numeração dos versos do original. Porém, muitas vezes, mesmo o nosso texto em português ganhou uma certa força seja pela presença de aliterações e assonâncias (que, algumas vezes, reproduzem, imitam ou mesmo reinstalam as sonoridades dos originais); seja pelo respeito à ordem sintática dos originais; seja pelo emprego em português de termos etimológica e morfologicamente ligados aos vocábulos latinos, no caso da tradução do livro VI, da Eneida. Na maioria das vezes, a possível qualidade das traduções deve-se mais à força sugestiva dos originais mais do que à capacidade do tradutor. Os textos utilizados para a tradução foram os editados pela sociedade Les Belles Lettres: no caso da Odisséia, o editado por Victor Bérard e, no caso da Eneida, o editado por Jacques Perret (consultar bibliografia).

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Odisséia, de Homero - Livro X, 467 até Livro XI, 640 Tradução e Notas

85

Ali54, todos os dias até o ano completo, Permanecemos banqueteando-nos com infindável carne e doce vinho. Mas quando o ano passou e as estações retornaram, Quando as luas declinavam e os longos dias findavam,

470

Neste momento os fiéis companheiros chamando-me disseram: “Infeliz, lembra agora mesmo da terra natal, Se é verdade que é vontade dos deuses salvar-se e ir Para a casa bem feita e para sua terra natal.” Assim falaram: em seguida persuadiu-se meu coração viril.

475

Assim, então, o dia inteiro até o sol se pôr, Permanecemos banqueteando-nos com infindável carne e doce vinho: E quando o sol se pôs e veio o crepúsculo, Eles adormeceram na sala sombreada. Em seguida, dirigindo-me ao leito belíssimo de Circe,

480

Supliquei-lhe segurando seus joelhos: a deusa ouviu a minha voz E, proferindo palavras aladas, dirigi-me a ela: “Ó Circe, cumpre a promessa que me fizeste, Envia-me para casa: minha alma já está impaciente E também a dos outros companheiros, os quais afligem meu querido coração Lamentando-se em torno a mim, quando estás ausente e longe.” 54

Na casa de Circe.

86

Assim falei e logo respondeu a divina deusa: “Divino filho de Laertes, Odisseu multiengenhoso, não mais contra vossa vontade permaneceis em minha casa. Mas é preciso primeiro fazer uma outra viagem e chegar

490

À morada de Hades e da terrível Perséfone Para consultar a alma do tebano Tirésias, O adivinho cego, cujo espírito permanece firme: A ele apenas, mesmo morto, Perséfone deu consciência, Único que mantém os sentidos: enquanto as sombras se agitam.”

495

Assim falou: logo meu coração se partiu: E chorei sentado sobre o leito: e então minha alma Não quis mais viver nem ver a luz do sol. Mas quando saciei-me de chorar e rolar pelo chão, Proferindo palavras aladas, dirigi-me a ela:

500

“Ó Circe, quem será o guia nesta viagem? Ao Hades ninguém jamais chegou em nave negra.” Assim falei e logo respondeu a divina deusa: “Divino filho de Laertes, Odisseu multiengenhoso, Não te preocupes com a falta de um guia para ti sobre a nave:

505

Tendo erguido o mastro e aberto as brancas velas, Senta-te: o sopro de Bóreas certamente o levará. Mas quando sobre a nave atravessares o Oceano, Lá o pequeno promontório55 e os bosques de Perséfone E grandes álamos negros e salgueiros estéreis,

510

A nave ali mesmo amarra junto ao Oceano de profundos remoinhos 55

A palavra Acté é polissêmica: como se pode ver no dicionário de grego clássico de Bailly. Poderia significar o fruto de Deméter, isto é, o trigo; poderia ser também uma costa escarpada e, por extensão, a região extrema da terra ou a região do Hades vesperal (no extremo ocidente); além disso, Acté era empregado pelos antigos gregos como um nome de diversas regiões costeiras tais como um promontório na entreda do Pireu, uma costa da Sicília ou do Ponto Euxino. Nesse passo da Odisséia, o nome refere-se certamente a uma região costeira a extremo ocidente, pois era nessa direção que o homem homérico acreditava estar localizada a morada dos mortos. 87

E tu próprio vai à morada húmida de Hades. Lá, para o Aqueronte, correm o Piriflegetonte E o Cocito, que é um braço da água do Estige, E uma pedra e o encontro de dois rios ressoantes:

515

Lá, depois, herói, tendo chegado perto, como te ordeno, Cava um buraco de um côvado de cada lado E em torno dele verte a libação para todos os mortos, Primeiro com uma mistura de leite com mel, depois com doce vinho, Em terceiro lugar água pura. Por cima, espalha farinha branca,

520

E suplica de joelhos com veemência às cabeças inanes dos mortos, Que, após chegar a Ítaca, uma vaca estéril, a melhor, Sacrificarás em seu palácio e erguerás uma pira repleta de bens, E somente para Tirésias, à parte, sacrifica um carneiro Todo negro, que se distinga dentre os vossos rebanhos.

525

Em seguida quando, com preces, suplicares à estirpe ilustre dos mortos, Lá um carneiro e uma ovelha negros sacrifica Virando suas cabeças para o Érebo, e tu próprio para o outro lado vira-te Indo para o curso do rio: para lá muitas Almas de cadáveres mortos virão.

530

Em seguida encoraja os companheiros e ordena que queimem As ovelhas que foram degoladas e esfoladas Com o bronze cruel, e que dirijam preces aos deuses, Ao forte Hades e à terrível Perséfone: E tu próprio, tirando a espada aguda de junto da coxa,

535

Fica, e não deixes que as cabeças inanes dos mortos Cheguem perto do sangue antes de ter inquirido Tirésias. Então, imediatamente, o adivinho virá, chefe de soldados, E a ti ele falará sobre a viagem, sobre a medida do caminho E sobre o retorno, como sobre o mar piscoso regressarás.”

540 88

Assim falou: e logo a Aurora de trono dourado veio. Com vestes, manto e túnica vestiu-me E a Ninfa56 ela própria vestiu um grande manto brilhante, Fino e gracioso, e em torno à cintura lançou uma bela faixa Dourada e sobre a cabeça colocou um véu.

545

E eu indo pela casa despertei os companheiros Com doces palavras, aproximando-me de cada homem: “Não mais continueis dormindo um doce sono. Mas vamos: pois Circe informou-me os oráculos.” Assim falei e deles o coração viril foi persuadido:

550

Mas dali não conduzi os companheiros ilesos. Havia um Elpenor, o mais jovem, nem muito Corajoso na batalha, nem sábio de espírito, Que afastado dos meus companheiros, nos aposentos sagrados de Circe, Desejando refrescar-se, deitou-se bêbado.

555

Tendo ouvido o tumulto e o barulho dos companheiros que se agitavam, De repente levantou-se e esqueceu em sua mente De descer de volta pela grande escada. Caiu direto do telhado, o seu pescoço Partiu-se das vértebras e a alma desceu para o Hades.

560

E, àqueles que partiam, eu dirigi este discurso: “Pensais estar indo para casa, para a querida Terra natal: mas, para nós, outra viagem Circe decretou Até a morada de Hades e da gloriosa Perséfone, Para consultar a alma do tebano Tirésias.”

565

Assim falei e deles o querido coração se partiu: E sentados ali mesmo, lamentando, arrancavam os cabelos.

56 A “ninfa”

a que Ulisses se refere aqui é a própria Circe, que em outros momentos também é chamada de “deusa”.

89

Mas nenhum recurso havia para os que se lamentavam. Enquanto para a nave veloz e para a areia do mar Íamos acabrunhados, derramando lágrimas abundantes,

570

Então Circe, vindo para junto da negra nave, E amarrou um carneiro macho e uma ovelha negra, Com facilidade passando desapercebida: quem poderia ver Com os olhos um deus que não quer ser visto indo para cá e para lá? Mas depois que para a nave e para o mar nos dirigimos,

01(Livro XI)

A nave antes de tudo lançamos ao divino mar. Colocamos o mastro e as velas na nave negra. E conduzindo as bestas as embarcamos, e nós também Íamos acabrunhados, derramando lágrimas abundantes.

05

E, para nós, novamente atrás da nave de proa escura, Um vento favorável, nobre companheiro, envia inflando as velas Circe de belas comas, terrível deusa de fala humana. E nós, tendo cuidado de cada equipagem, pela nave Sentamo-nos: e dirigiu-a tanto o vento, como o piloto.

10

E navegamos o dia inteiro as velas cheias. O sol se escondeu e todos os caminhos escureceram: E ela chegou aos limites do Oceano profundo. E ali era o país e a cidade dos homens Cimérios, Cobertos de bruma e de nuvem: jamais o sol brilhante

15

Os contempla com seus raios, Nunca avança pelo céu estrelado Nem quando volta-se para a terra vindo do céu; Mas uma noite funesta estende-se sobre os temerosos mortais. Tendo chegado ali, trouxemos a nave para terra e as bestas

20

Desembarcamos. Nós próprios, novamente, em direção à corrente do Oceano Fomos, até que chegamos ao lugar que Circe mencionou. 90

Ali, Perimedes e Euríloco seguraram As vítimas. E eu, tirando a espada aguda de junto da coxa, Cavei uma fossa com um côvado de cada lado:

25

Em torno dela fizemos a libação para todos os mortos. Primeiro com uma mistura de leite com mel e depois com doce vinho, Em terceiro lugar água pura: por cima espalhei branca farinha, E com veemência prometi às cabeças inanes dos mortos, Tendo chegado a Ítaca, uma vaca estéril, a melhor,

30

Sacrificar e uma pira cobrir de presentes, E somente para Tirésias, à parte, sacrificar um carneiro Todo negro, que se distingue entre os nossos rebanhos. E depois com preces e súplicas a eles, à estirpe dos mortos, Pedi; e, tendo trazido as bestas

35

Até a fossa, cortei-lhes os pescoços: correu o sangue negro e se aglomeraram As almas dos defuntos mortos vindas do fundo do Érebo. Moças, moços, infelizes anciões, Jovens virgens que trazem na alma as marcas da recente aflição; E muitos feridos com lanças de bronze,

40

Heróis mortos em combate tendo as armas ensangüentadas Muitos dos quais em torno do buraco agitavam-se de um lado para o outro Com uma grita terrível: e um verde temor tomou-me. Nesse momento então, tendo exortado os companheiros, instiguei-os A queimar as ovelhas que estavam degoladas com o bronze cruel,

45

Após esfolá-las, e a suplicar aos deuses, Ao forte Hades e à gloriosa Perséfone, E tendo tirado a espada aguda de junto da coxa, sentei-me, Eu próprio não permitindo que as cabeças inanes dos mortos Chegassem mais perto do sangue antes de ter inquirido Tirésias.

50

Mas primeiro veio a alma do companheiro Elpenor 91

Que ainda não tinha sido enterrado sob a vasta terra: O corpo nós deixamos no palácio de Circe Sem exéquias e insepulto, já que outro trabalho urgia. Eu chorei quando o vi e apiedei-me no coração

55

E a ele dirigi palavras aladas dizendo: “Elpenor, como chegaste sob treva sombria? À pé chegaste antes de mim que vim com a nave negra.” Assim falei: e ele, lamentando-se, respondeu com esse discurso: “Divino Laercíada, multiengenhoso Odisseu,

60

Enganou-me a má fortuna de um deus e o inefável vinho: E no palácio de Circe deitado não pensei em Retornar para baixo pela grande escada, Mas caí direto do teto, o meu pescoço Partiu-se das vértebras, e a alma desceu para o Hades.

65

Agora suplico-te em nome daqueles que, deixados para trás, não estão presentes, Em nome de tua esposa e de teu pai, que te alimentou quando eras criança, E em nome de Telêmaco, que sozinho deixaste no palácio: Pois sei que, saindo daqui da morada de Hades, À ilha Eéa chegarás sobre a nave bem-feita.

70

Lá depois, senhor, peço que te lembres de mim: Não me deixes para trás, sem exéquias e insepulto quando partires, Para que não me torne, para ti, causa de ira dos deuses, Mas me queime com as armas, que são minhas, E erga-me um túmulo na borda do mar grisalho,

75

Do homem infeliz, para que os que ainda virão tenham. E estas coisas para mim realiza e fixa o remo sobre o túmulo, Aquele com o qual, vivo, eu remava, junto com os meus companheiros.” Assim falou: e eu respondendo dirigi-lhe a palavra: “Estas coisas certamente, ó infeliz, farei e cumprirei.”

80 92

Nós dois assim trocando tristes palavras Sentamo-nos, eu, de um lado, empunhando a espada sobre o sangue, E, de outro lado, o espectro do companheiro muito discurava. E veio até mim a alma de minha mãe já falecida, Anticléa, filha do magnânimo Autólico,

85

Que deixei viva quando fui para a sagrada Ílion. E tendo-a visto, chorei e me apiedei no coração; Mas não permiti que ela primeiro, mesmo estando muito aflito, Se aproximasse do sangue antes que Tirésias bebesse. Então veio a alma do tebano Tirésias,

90

Segurando o cetro dourado, reconheceu-me e disse: “Divino Laercíada, multiengenhoso Odisseu, Por que dessa maneira, infeliz, tendo deixado a luz do sol, Vieste para ver os mortos e o infeliz país? Afasta-te da fossa e abaixa a espada aguda,

95

Para que eu beba do sangue e fale coisas verdadeiras.” Assim falou: e eu, afastando a espada cravejada de prata, Na bainha guardei-a. E ele então bebeu o sangue negro, E depois o adivinho irreprochável respondeu-me com estas palavras” “Buscas o retorno doce como o mel, glorioso Odisseu,

100

Mas um deus certamente decidiu que esse fosse difícil, pois não penso Que escaparás ao deus que faz tremer a terra, que certamente ressentimento tem No coração, irritado porque tu cegaste seu filho querido 57. Mas ainda assim também podereis chegar, embora sofrendo males, Se quiseres refrear teu coração e o dos companheiros,

105

57

O deus referido é Posêidon, cujo filho, o ciclope Polifemo, foi cegado por Odisseu, como é contado no livro IX, da Odisséia.

93

Quando primeiro aproximares a nave bem-feita Da ilha Trináquia, fugindo do mar violeta, E encontrares as vacas pastando e os carneiros vigorosos De Hélio, que tudo vê e tudo ouve. Se as deixares intactas e te preocupares com o retorno

110

E a Ítaca podereis chegar, embora sofrendo males. Mas se as ferires, então a ti anuncio a perda Da nave e dos companheiros. Tu próprio, se escapares, Tarde e de modo ruim chegarás, após perder todos os companheiros, Numa nave de outrem. E encontrarás infortúnios na tua casa,

115

Homens arrogantes, que distribuíram os teus recursos Cortejando tua esposa e dando presentes. Mas certamente vingarás a violência de cada um depois de chegar; Quando no teu palácio os pretendentes Matares seja com astúcia seja abertamente com o bronze agudo.

120

Então vá, tendo tomado o remo bem-feito, Até que chegues a eles, aos homens que não conhecem O mar nem comem comida misturada com sal Nem, certamente, conhecem naves de flancos purpúreos Nem remos bem-feitos que servem de asas às naves.

125

E a ti proferirei um sinal muito clara; e nem a ti escapará: Quando outro viajante se aproximando-se Disser que tu tens um ventilabro sobre o magnífico ombro, Então, tendo enterrado o remo bem-feito na terra, E após oferecer belos sacrifícios para o senhor Posêidon,

130

Um carneiro, um touro e de entre todos os porcos um javali que salta, Para casa retorna e faze sagradas hecatombes Para os deuses imortais, que detêm o vasto céu, Para todos em ordem. E a morte, longe do mar para ti, 94

Dulcíssima virá, que te matará,

135

Fatigado sob uma velhice abundante, e em torno a ti o povo

Bem-aventurado estará. Verdadeiras são as palavras que eu disse.” Assim falou: e eu, a ele respondendo, disse: “Tirésias, estas coisas, em algum momento, teceram os próprios deuses. Mas vamos, isto a mim dize e com sinceridade fala:

140

Vejo a alma de minha mãe morta, E ela, silenciosa, permanece próxima ao sangue e seu filho Não suporta ver face a face, nem dirige-lhe a palavra. Dize, senhor, como ela reconhecerá quem sou eu?” Assim falei: e ele respondendo-me novamente falou:

145

“Facilmente direi uma palavra e a colocarei na tua mente Qualquer um dos mortos defuntos Que se aproximar do sangue, falará a verdade. Mas àquele que impedires, novamente recuará.” Assim tendo falado, a alma do senhor Tirésias

150

Foi para dentro da morada de Hades, após proferir os oráculos. Eu, por outro lado, permaneci parado ali. Até que minha mãe Veio e bebeu o sangue negro. Imediatamente reconheceu-me E, lamentando-se, dirigiu-me palavras aladas: “Filho meu, como vieste sob a treva sombria

155

Ainda estando vivo? É difícil para os vivos ver estas coisas. No meio estão os grandes rios e suas terríveis correntes, Primeiro, o Oceano, que não há como atravessar A pé, se não tens uma nave bem-feita. Agora, de Tróia, errando por muito tempo, aqui chegas

160

Com a nave e com companheiros? 95

Não foste para Ítaca e não viste a esposa no palácio?” Assim falou: e eu, a ela respondendo, disse: “Minha mãe, a necessidade enviou-me ao Hades Para consultar a alma do tebano Tirésias.

165

Ainda não me aproximei da Acáia, nem ainda Sobre a nossa terra pisei, mas sempre errei miseravelmente, Desde quando primeiramente segui o divino Agamêmnon Até Ílion, rica em potros, para lutar contra os troianos. Mas vamos, conta-me isto e com sinceridade fala:

170

Quem submeteu teu coração à morte dolorosa? Uma longa doença, ou a arqueira Ártemis Com suas doces flechas aproximando-se matou-te? E conta-me de meu pai e de meu filho, que lá deixei: Se ainda com eles está minha honra, ou se algum

175

Outro dos homens já a tem, e dizem que eu não retorno mais. E conta-me da minha esposa a sua vontade e o seu pensamento; Permanece com o filho e guarda tudo com segurança, Ou o melhor dos Aqueus já casou-se com ela?” Assim falei: e a mãe soberana novamente respondeu:

180

“Firme, há muito, permanece com o coração fiel No teu palácio: tristes sempre Passam as noites e os dias para ela que derrama lágrimas. Tua bela honra ninguém ainda tem: mas em paz Telêmaco administra as terras e freqüenta banquetes

185

Equânimes, os quais convém a um distribuidor de justiça partilhar, Pois todos o convidam. Mas o teu pai lá no campo permanece E não vai à cidade nem leitos Nem lençóis, mantas ou cobertas brilhantes possui, Mas, no frio, deita-se onde ficam os escravos na casa,

190 96

Na poeira perto do fogo, e roupas ruins sobre a pele coloca. Mas quando chegam o verão e o outono florescente, Quando por toda parte é a época da semeadura do campo de vinhas, Um leito de folhas caídas lança sobre a terra; Ali ele deita-se lamentando-se e uma grande dor cresce na sua alma

195

Desejando o teu retorno: com dificuldade chega à velhice. Assim eu também pereci e completei o meu destino. Nem no palácio a arqueira que vê de longe, Com suas doces flechas, aproximando-se, matou-me Nem uma doença acometeu-me, que terrivelmente

200

Com um horrível enfraquecimento dos membros destrói a vida, Mas a saudade de ti e a preocupação, glorioso Odisseu, E o amor por ti arrancaram-me a vida doce como mel.” Assim falou: e eu, tendo me inquietado na alma, quis Abraçar a alma de minha mãe defunta.

205

Três vezes me lancei e o coração ordenou-me abraçá-la. Mas três vezes, das minhas mãos, semelhante a uma sombra ou mesmo a um sonho, Voou: e uma dor muito aguda surgiu no meu coração. E a ela disse proferindo palavras aladas: “Minha mãe, por que não esperas abraçar a mim que tanto desejo 210 Para que, mesmo no Hades, lançando os braços em torno ao pescoço Nós dois nos saciemos de frio lamento? Ou este é um fantasma que a ilustre Perséfone Envia, para que eu sofra e me lamente mais ainda?” Assim falei; e a mãe soberana logo respondeu:

215

“Ai de mim, meu filho, o mais infeliz entre todos os mortais, Em nada Perséfone, filha de Zeus, te engana, Mas esta é regra para os mortais quando se morre: Não mais carnes e ossos os músculos sustentam, 97

Mas esses a força vigorosa do fogo brilhante

220

Submete, depois que primeiro a vida deixou os ossos brancos, E a alma, adejando, como um sonho voa. Mas busca rápido a luz; e todas estas coisas Guarda, para que depois contes também à tua esposa.” Assim trocávamos palavras; e mulheres

225

Vieram, pois as enviava a ilustre Perséfone, Todas quantas foram esposas e filhas dos mais nobres. E elas em torno ao sangue negro em multidão se reuniram. Mas eu meditava como interrogar a cada uma. E esta, segundo meu coração, pareceu a melhor decisão:

230

Tendo tirado a espada de ponta aguda de junto da forte coxa, Não permitia que todas bebessem ao mesmo tempo o sangue negro. E elas vindo uma após a outra falavam, e cada uma Revelava a sua estirpe; e eu interrogava todas elas. Então, vi primeiro Tiró de pai ilustre,

235

Que dizia ser filha do glorioso Salmoneu, E disse ser esposa de Creteu Eólida. Ela se apaixonou por um rio, o divino Enipeu, Que é o mais belo dos rios que correm sobre a terra, E às correntes do Enipeu ela vinha muitas vezes.

240

Mas, assemelhando-se a esse, o deus que domina e faz tremer a terra Deitou-se com ela na foz do rio abundante em redemoinhos. E uma onda escura ergueu-se, semelhante a uma montanha, Em arco, e escondeu o deus e a mulher mortal. Ele soltou o cinto virginal e derramou sono sobre ela.

245

Depois que o deus terminou os trabalhos do amor, Ele tomou-lhe a mão, dirigiu-lhe a palavra e chamou-a: “Alegra-te, mulher, com o nosso amor: quando o ano se completar 98

Terás filhos magníficos, pois não são estéreis os leitos Dos imortais: e tu cuida deles e os alimenta.

250

Agora vá para tua casa, sê forte e não digas meu nome, Somente para ti eu sou Posêidon que faz a terra tremer.” Assim tendo falado, mergulhou no mar agitado. E ela engravidou e deu à luz Pelías e Neleu, E servidores robustos do grande Zeus tornaram-se

255

Ambos: Pelías, rico em cordeiros, no Iolco de vasto coro Morava e o outro na arenosa Pilos. E com Creteu a rainha das mulheres gerou outros, Éson, Feres e Amitáon ao qual cavalos agradam. E vi depois Antiópe, filha de Asopós,

260

Que se vangloriava de ter dormido nos braços de Zeus. E então teve dois filhos, Anfião e Zétos, Que primeiro lançaram os fundamentos de Tebas de sete portas, E a fortificaram, pois não podiam habitar Tebas sem fortificações, embora os dois fossem fortes.

265

E vi depois Alcmena, esposa de Anfitrião, Que gerou o intrépido Héracles coração de leão Nos braços do grande Zeus, após ter se unido a ele, E Mégara, filha do magnânimo Creonte, A qual a força sempre invencível do filho de Anfitrião desposou.

270

E vi a mãe de Édipo, a bela Epicasta, Que cometeu uma grande falta com a ignorância da razão, Tendo se casado com seu filho. E ele, depois de matar seu pai, Casou-se com ela: e logo os deuses este fato tornaram famoso entre os homens. Mas ele na Tebas muito amada sofrendo dores

275

Sobre os cadmeus governou de acordo com a vontade funesta dos deuses. E ela foi para a casa do forte Hades, guardião das portas, 99

Tendo amarrado a corda em cima da alta trave, Vencida pela sua dor: e a ele dores deixou Muitas, quantas as Eríneas de uma mãe dão.

280

E vi a belíssima Clóris, com a qual, certa vez, Neleu Se casou por causa de sua beleza, depois que deu inumeráveis presentes. A filha mais jovem do Iasíada Anfião, Que certa vez, no Orcómenos dos Mínios, com força governou. Ela reinou em Pilos e teve filhos ilustres:

285

Nestor, Crônio e o glorioso Periclimeno. Depois gerou a valente Peró, maravilha para os mortais, A qual todos os vizinhos cortejavam: mas Neleu não a daria Senão àquele que roubasse os bois de larga fronte e chifres retorcidos De Filiquéia, os terríveis animais do forte Ificlés.

290

E somente o adivinho irreprochável58 Prometeu encurralá-los: mas a dura vontade de um deus o prendeu, Correntes terríveis e pastores selvagens. Mas quando os meses e os dias se completeram Quando recomeçou o ano e voltaram as estações,

295

Nesse momento o forte Ificlés libertou-o Pois ele pronunciara todos os oráculos: e foi realizada o plano de Zeus. E vi Leda, a esposa de Tíndaro, Que de Tíndaro gerou filhos corajosos, Cástor domador de cavalos e Pólux de fortes punhos,

300

A ambos a terra fecunda mantém vivos. E mesmo sob a terra eles têm a honra junto a Zeus. Certo tempo vivem, em dias alternados, e depois novamente Estão mortos. E honra têm igual à dos deuses.

58

O “adivinho irreprochável” é o profeta Melampo, filho de Amitáon, que queria que Peró se casasse com seu irmão Bias. Cf. Od., XV, 226ss. 100

E depois Ifimedéia, esposa de Aloeu,

305

Vi, a que disse ter se unido a Posêidon. E então teve dois filhos, nascidos para viver pouco, Óton semelhante a um deus e o célebre Efiáltes, Os maiores que foram alimentados pela terra doadora de grão, E de longe os mais belos, depois do glorioso Órion.

310

Aos nove anos estavam com nove côvados 59 De largura, e em comprimento eram de nove varas60. Eles também ameaçaram os imortais no Olimpo Levantar o grito de guerra impetuosa. O Ossa61 sobre o Olimpo desejaram colocar e, sobre o Ossa,

315

O Pélion de folhagem agitada, para que o céu pudesse ser alcançado. E então isso fariam, se tivessem chegado à idade da juventude. Mas os destruiu o filho de Zeus, o qual gerou Letó de belas comas62, Os dois, antes que nas suas faces as barbas Florescessem e o queixo se adensasse com a penugem florescente.

320

E vi Fedra, Prócris e a bela Ariadne, Filha do terrível Minos que, certa vez, Teseu De Creta para a colina da sagrada Atenas Levou, mas não a desfrutou: Ártemis antes a matou Em Dia coroada pelo mar, por causa das acusações de Dioniso.

325

E vi Máira, Climene e a odiosa Erifile, Que recebeu o estimado ouro pelo amado marido. E sobre todas eu não poderia falar, nem nomear 59

Côvado é uma antiga medida que correspondia aproximadamente a 50 com. Nove côvados correspondem, então, a 4 metros e meio. 60

Vara é uma antiga medida que correspondia aproximadamente a 1,18 m. Portanto, nove varas correspondem a 10,62 m. 61

O Ossa e o Pélion eram montanhas da Tessália.

62

I. e.: Apolo.

101

Quantas esposas e filhas de heróis eu vi: Antes a noite divina terminaria. Mas também é hora

330

De dormir, ou na nave veloz, indo encontrar os meus companheiros, Ou aqui; aos deuses e a vós caberá cuidar da escolta.” Assim falou63: e todos eles ficaram calados em silêncio, E tomados pelo encanto na sala sombreada. E entre eles Arete de braços brancos começou os discursos:

335

“Feácios, como vos parece este homem Na forma, no tamanho e no interior do coração equilibrado? Ele é meu hóspede, mas cada um tem parte da honra; Não apressai-vos a enviá-lo, nem os presentes Para o necessitado poupai: muitos tesouros

340

Nos vossos palácios, pela vontade dos deuses, se encontram.” E a eles também falou o velho herói Equéneo, Que entre os homens feácios era o mais velho: “Ó amigos, a nossa sábia rainha não fala Antes de observar e de julgar: pois obedecei.

345

Mas deste, de Alcínoo, depende a ação e a palavra.” E então Alcínoo tomou a palavra e disse: “Esta será a palavra então, se é que eu, Vivo, governo os feácios, bons remadores: Que o estrangeiro aceite, embora desejando muito o retorno,

350

Permanecer até amanhã, até que eu reúna Todos os presentes. E o retorno a todos os homens Preocupará, e mais ainda a mim: pois meu é o poder entre o povo.” E isto respondendo disse o astucioso Odisseu: “Nobre Alcínoo, glória de todo o povo,

63

355

Até agora quem estava falando era Odisseu, que estava narrando suas aventuras aos feácios. Agora o aedo retoma a palavra. 102

Se me ordenasses permanecer aqui mais um ano, E apressasses o retorno e désseis esplêndidos presentes, Isto aceitaria e me seria muito mais vantajoso Voltar para a amada pátria com as mãos cheias, E mais honrado e amado serei por todos os homens

360

Que em Ítaca me verão retornar.” E Alcínoo respondeu e disse isto: “Ó Odisseu, não julgamos, vendo-te, Que sejas um enganador ou um astuto, como muitos Numerosos homens que a terra negra alimenta

365

Que preparam mentiras, das quais ninguém jamais saberá nada. Mas tu tens a beleza dos discursos e, dentro, sábios pensamentos, E a tua narração, como um aedo, com habilidade recitaste De todos os Argivos e os teus tristes sofrimentos. Mas vamos, conta-me isto e fala com sinceridade,

370

Se viste algum divino companheiro, que contigo Foram até Ílion e lá encontraram a morte. A noite ainda é muito longa, infinita: nem ainda é hora De dormir no quarto. Narra-me as tuas prodigiosas aventuras: Até a Aurora divina ficarei acordado, quando tu

375

Consentisses narrar-me no palácio os teus sofrimentos.” E isso respondendo disse o astuto Odisseu: “Nobre Alcínoo, glória de todo o povo, Há a hora de muitas histórias, e há também a hora do sono: Mas se ainda desejais escutar, eu não te negarei isto

380

E contarei sobre estas coisas e outros sofrimentos Mais lamentáveis dos meus companheiros, que depois pereceram; Eles sobreviveram ao sonoro combate com os Troianos, 103

E no retorno pereceram pela vontade de uma mulher ruim64 . Então, depois que as almas das mulheres

385

A casta Perséfone dispersou aqui e ali, Veio a alma do Atrida Agamêmnon Aflita: e em volta outras se aglomeravam, as quais junto com ele Na casa de Egisto morreram e seguiram o destino. Logo ele me reconhceu, depois de beber o sangue negro,

390

Chorava com voz aguda, derramando lágrimas abundantes, E abriu para mim os braços, desejando abraçar-me; Mas ele não tinha mais o músculo sólido nem a força, Que antes havia nos membros recurvos. Eu chorei ao vê-lo e compadeci-me no coração

395

E a ele falei proferindo palavras aladas: “Glorioso Atrida, chefe de heróis, Agamêmnon, Que Quera65 da morte dolorosa te venceu? Posêidon submeteu-te nas naves Levantando dos terríveis ventos o horrendo sopro?

400

Ou homens inimigos te massacraram em terra firme Depois que roubaste bois e belos rebanhos de ovelhas, Ou depois de combater em volta de uma cidade e por causa de mulheres?” Assim falei. E ele logo respondendo-me disse: “Divino Laercíada, multiengenhoso Odisseu,

405

Nem me submeteu nas naves Posêidon, Levantando dos terríveis ventos o horrendo sopro; Nem me massacraram homens inimigos em terra firme: Mas Egisto tendo preparado para mim a morte e a ruína

64

Não se sabe ao certo que “mulher ruim” é essa. Pode ser uma referência a Clitemnestra ou mesmo Helena. 65

Deusa da morte.

104

Matou-me com a ajuda da esposa funesta, chamando-me para casa,

410

Num banquete, como se mata um boi no estábulo. Assim morri uma morte lamentável: e em volta os outros companheiros Em seguida mataram como porcos de dentes brancos Na casa de um homem rico muito poderoso, Por causa de um casamento, de refeição ou de banquete abundante.

415

Já assististe ao assassinato de muitos homens Mortos em combate singular e na batalha vigorosa, Mas se visses aquelas muitas mortes tu te lamentarias no coração, Como em torno à cratera e às mesas repletas Tombamos no palácio, e todo o chão cheirava a sangue.

420

E ouvi a mais lamentável voz da filha de Príamo, Cassandra, a qual a mentirosa Clitemnestra matava Perto de mim: e eu, sobre o chão as mãos levantando, Lancei-me morrendo em torno à espada. Mas a cadela Fugiu e não teve piedade, enquanto eu ia para o Hades,

425

Para fechar os meus olhos e cerrar a minha boca. Não há nada pior nem mais odioso do que a mulher Que se lançou com a alma em tais crimes, Como ela planejou também tal crime indigno, Contra o esposo legítimo tramando a morte: e eu acreditava

430

Que com alegria pelos meus filhos e pelos meus servos Seria recebido em casa: mas ela, funesto monstro, Sobre si lançou a infâmia e sobre as mulheres Que virão no futuro, mesmo que haja alguma virtuosa.” Assim falou. E eu a ele respondendo disse:

435

“Ó deuses, então muito a semente de Atreu Zeus de grande voz Assustadoramente perseguiu através da vontade de uma mulher Desde o princípio: por Helena muitos de nós pereceram, 105

E para ti Clitemnestra um dolo preparou enquanto estavas distante.” Assim falei. E ele respondendo-me disse:

440

“Tu também nunca deves ser doce com uma mulher, Nem confia a ela todas as suas palavras, que bem sabes, Mas dize uma coisa, e outra deixa escondida. Porém para ti, Odisseu, o assassínio não virá de tua esposa, Que é sábia e tem pensamentos fiéis na alma,

445

A filha de Icário, a prudente Penélope. A ela jovem esposa nós deixamos Partindo para a guerra: e o filho estava no peito Recém-nascido, que agora certamente se assenta entre os numerosos homens; Bem-aventurado. Pois o pai querido o verá quando retornar,

450

E ele abraçará o pai: esta é a justiça. A minha esposa, por outro lado, não me permitiu saciar Os olhos do meu filho: antes matou a mim e a ele. E outra coisa te digo, e tu guarda isto no teu peito: Secretamente, não às claras, até a terra pátria querida

455

A nave dirige: pois jamais deves confiar nas mulheres. Mas vamos e isto conta-me e com siceridade fala, Se ainda vivo ouves algo sobre meu filho, Se está no Orcómeno, ou na Pilos arenosa Ou com Menelau na ampla Esparta.

460

Pois não morreu ainda sobre a terra o divino Orestes.” Assim falou. E eu a ele respondendo disse: “Atrida, por que me perguntas estas coisas? Nada sei, Se vive ou se morreu: é ruim dizer coisas vãs.” Assim nós dois trocando tristes palavras

465

Permanecemos aflitos derramando abundantes lágrimas; E veio a alma do Pelida Aquiles 106

E a de Pátroclo e a do nobilíssimo Antíloco, E a de Ájax, que era o mais belo de aspecto e de corpo Entre os outros Dânaos depois do nobilíssimo Pelida.

470

E reconheceu-me a alma do Eácida de pés ligeiros, E suspirando disse-me palavras aladas: “Divino Laercíada, multiengnhoso Odisseu, Infeliz, por que ainda uma fadiga maior meditar na alma? Como ousaste descer até o Hades, onde os mortos

475

Privados de mente moram, sombras de homens mortais?” Assim falou. E eu respondendo-lhe disse: “Ó Aquiles, filho de Peleu, melhor dos Aqueus, Vim por necessidade consultar Tirésias, se algum conselho Me desse, como eu poderia voltar para Ítaca rochosa;

480

Pois ainda não cheguei à Acaia, nem ainda pisei Na minha terra, mas sempre encontro obstáculos. Mas mais do que tu, Aquiles, Nenhum herói, nem antes, nem depois foi mais feliz: Antes quando estavas vivo te honrávamos como aos deuses, Nós, os Argivos: agora grande reinas entre os mortos

485

Estando aqui; por isso não te aflijas por estar morto, Aquiles.” Assim falei. E ele logo respondendo-me disse: “Não louve a minha morte, glorioso Odisseu. Preferiria ser lavrador, servir a outro, A um homem pobre, que não tivesse muitos recursos,

490

Do que sobre todos os defuntos mortos reinar. Mas vamos, conta-me algo sobre meu nobre filho, Se na guerra continua a ser o primeiro ou não mais. Diga-me, se sabes algo sobre o nobilíssimo Peleu: Se ele ainda tem a honra entre os muitos Mirmidões.

495

Ou o desprezam na Hélade e na Ftia, 107

Pois o submete a velhice nas mãos e nos pés. Se eu fosse sua proteção sob os raios do sol, Sendo tal como certa vez na ampla Tróia Eu matava o melhor exército defendendo os Argivos!

500

Se assim eu retornasse por pouco tempo para o palácio de meu pai, Assim eu odiaria com a alma e com mãos invencíveis, Àqueles que o agridem e usurpam a sua honra.” Assim falou. E eu a ele respondendo disse: “Do nobilíssimo Peleu nada sei,

505

Mas do teu querido filho Neoptólemo Toda verdade direi, como me pedes; Eu mesmo a ele sobre côncava nave bem-feita Conduzi de Ciro entre os Aqueus de belas grevas. E quando em torno à cidade de Tróia meditávamos conselhos,

510

Sempre primeiro ele falava e não falhava nos discursos: Somente Nestor semelhante a um deus e eu o vencíamos. Mas quando em torno à cidade de Tróia nós Aqueus lutávamos, Nunca na multidão de homens permanecia, nem na sua tropa, Mas muito antes corria, seu furor ao de ninguém sendo inferior;

515

E muitos homens matou no terrível combate. Todos eu não poderia recordar nem nomear, Quantos guerreiros matou defendendo os Argivos; Mas como o Telefida matou com o bronze, O herói Eurípilo: e muitos companheiros em torno a ele

520

Cétios eram mortos por causa do presente de uma mulher 66. E ele foi o mais belo que vi depois do divino Mêmnon.

66

Heubeck (1992:108) explica que depois da morte de Aquiles, Príamo seduziu a mãe de Eurípilo, Astíoque, com a vinha de ouro feita por Hefesto (o “presente de uma mulher”) para persuadir seu filho a lutar do lado dos Troianos. Os cétios eram o povo que acompanhava Eurípilo, que era filho do rei Télefo de Teutrânia, na Mísia. 108

Quando entramos no cavalo, que Epeu construíu, Os melhores dos Argivos, e tudo de mim dependia, Abrir a sólida armadilha e fechá-la,

525

Ali outros chefes e reis dos Dânaos Enxugavam suas lágrimas, e as pernas de todos em baixo tremiam; Mas a ele nunca por nada vi com os olhos Nem ficar pálida sua bela pele nem das faces Enxugando lágrimas; e ele muito me pedia

530

Para sair do cavalo, e lançava a mão ao punho da espada E à haste pesada de bronze, e tramava males para os Troianos. Quando enfim a alta cidade de Príamo destruímos, Sua parte e um belo presente levando na nave embarcou São e salvo, sem ter sido atingido pelo bronze agudo,

535

Nem ferido no corpo a corpo, como muitas vezes Acontece na guerra: na confusão Ares todos torna furiosos.” Assim falei. E a alma do Eácida de pés rápidos Desceu com grandes passos para o prado de asfódelos, Alegre pois eu dissera que seu filho estava cheio de glória.

540

E as outras almas dos mortos defuntos Permaneceram aflitas, e cada uma dizia suas dores. Mas somente a alma de Ájax Telamônida À parte se colocava, irritada por causa da vitória, Que sobre ele eu obtive lutando junto às naves

545

Pelas armas de Aquiles; em disputa colocou-as a mãe soberana: As filhas dos Troianos julgaram e Palas Atena também. Assim não foi vantajosa a vitória naquela disputa. Este herói por causa destas coisas a terra submeteu, Ájax, que pela beleza e pelos trabalhos se destacava

550

Entre os outros Dânaos depois do nobilíssimo Pelida. 109

E isto eu disse com palavras feitas de mel: “Ájax, filho do nobilíssimo Télamon, não poderias Nem morto esquecer do ódio a mim por causa das armas funestas? Estas coisas foram males que os deuses enviaram para os Argivos, 555 Porque tu, a defesa deles, morreste; e nós Aqueus à tua Assim como à cabeça do Pelida Aquiles Choramos quando morreste sem cessar. E não há outro Culpado: mas Zeus o exército dos Dânaos armados de lanças Assustadoramente odiou, e te enviou o teu destino.

560

Mas venha aqui, senhor, para que ouças a minha palavra E o meu discurso: vença a ira e o coração soberbo.” Assim falei. E ele nada me respondeu e foi junto com outras Almas para o Érebo dos mortos defuntos. Ali mesmo irado falava, e eu a ele;

565

Mas a mim veio o desejo no querido peito De ver as almas dos outros defuntos. Lá então vi Minos, filho ilustre de Zeus, Segurando o cetro de ouro, fazendo justiça aos mortos, Sentado; e em torno ao juiz eles perguntavam as sentenças,

570

Sentados e de pé na casa de amplas portas de Hades. E depois dele reconheci o gigante Órion Caçando feras em grupo no prado de asfódelos, Aquelas que ele matava nas montanhas desertas, Segurando nas mãos o bastão todo de bronze, que nunca se quebra.

575

E vi Tício, filho da gloriosa Gaia, Estendido no chão; e ele se estendia por nove plétros 67 E dois abutres de cada lado estavam o fígado bicando, Adentrando as vísceras; e ele não se defendia com as mãos; 67 Antiga

medida correspondente a 100 pés gregos.

110

Pois agrediu Letó, a ilustre companheira de Zeus,

580

Que ia a Pitó através de Panopeu de belos coros 68. E vi Tântalo sofrendo penas atrozes De pé na água: e esta chegava ao seu queixo. Estava de pé e tinha sede de beber, mas não podia saciar-se; Toda vez que se abaixava o velho, desejando beber,

585

Sempre a água desaparecia engolida; e em torno aos seus pés A terra negra aparecia: um deus a fazia secar. E árvores de altas folhas em baixo de sua cabeça deixavam pender seus frutos, Pereiras, romãzeiras e macieiras de esplêndidos frutos, Doces figos e azeitonas vigorosas;

590

Mas quando o velho tentava com as mãos tocá-los O vento os lançava para as nuvens sombrias. E vi Sísifo sofrendo duras penas, Empurrando uma pedra enorme com as duas mãos. Então apoiando-se com as mãos e com os pés

595

A pedra de baixo para cima empurrava para o cume da colina; Mas quando estava para superar o cume, empurrava-a de volta uma força; Novamente para o solo rolava a pedra maligna: E ele de volta empurrava estendo-se; e o suor Escorria pelos membros; e a poeira em torno à cabeça se levantava.

600

E depois disto reconheci a força de Héracles, Somente a sombra; ele com os deuses imortais Se sacia nos banquetes e tem Hebe de belos pés, A filha do grande Zeus e de Hera de sandália de ouro. E em torno a ele o clamor dos mortos era como o dos pássaros,

605

Por toda parte voando sem direção; e ele semelhante a uma noite sombria, Segurando um arco nu e uma flecha no nervo, 68

Pitó era um antigo nome de Delfos e Panopeu era uma cidade entre a Fócida e a Beócia.

111

Terrivelmente encarando, sempre semelhante a um arqueiro. E assustador era o cinto em torno ao peito E a correia de ouro, onde estavam esculpidos trabalhos prodigiosos,

610

Ursos selvagens, porcos e leões de olhos brilhantes, Batalhas, guerras, mortes e massacres de heróis. Não criou nem poderia criar uma outra Quem aquela correia esculpiu com tal arte. Ele reconheceu-me logo, depois que me viu com os olhos,

615

E lamentando-se disse palavras aladas: “Divino Laercíada, Odisseu multiengenhoso, Ah mísero, também tu carregas um mal destino, Como eu levei sob os raios do sol? E eu era filho de Zeus Cronida, mas o infortúnio

620

Sem fim eu conheci; a um homem muito inferior Eu devia servir; e ele me ordenava difíceis tarefas. E certa vez aqui para baixo me mandou para levar o cão: ainda não Tinha compreendido que não havia uma tarefa mais difícil do que esta para mim. Mas o levei e conduzi para fora do Hades:

625

Hermes me guiou e Atena de olhos glaucos.” Assim tendo falado novamente desceu para a morada de Hades. Mas eu ali fiquei parado, se viesse Algum dos heróis que morreram no passado. E então ainda teria visto homens antigos, como eu queria,

630

Teseu e Pirítoo, filhos gloriosos dos deuses. Mas antes uma grande multidão de mortos se reuniu Com uma grita extraordinária: e um verde temor me tomou De que a cabeça da Górgona, o monstro tremendo, Do Hades enviasse a ilustre Perséfone

635

E logo para a nave fugindo ordenei aos companheiros 112

Também eles embarcar e soltar as amarras: E eles logo embarcaram e se sentaram sobre os bancos. E a nave sobre o rio Oceano levava sobre a espuma da corrente, Primeiro, a força dos remos e, depois, um belo vento.

640

113

Eneida, de Virgílio - Livro VI Tradução e Notas

114

Assim diz lacrimando69, solta as amarras da armada E finalmente aporta nas praias eubóicas 70 de Cumas. Voltam as proas para o mar; depois, com dente tenaz, A âncora firmou as naves e as curvas popas Bordejam o litoral. O ardente esquadrão dos jovens salta

05

Sobre o litoral hespério71; uma parte procura sementes De fogo escondidas nos veios da rocha, a outra parte saqueia a floresta, Denso abrigo de feras, e revela os regatos encontrados. O pio Enéias, porém, busca as colinas sobre as quais comanda O alto Apolo e ao longe os recessos, enorme antro, da temível Sibila,

10

À qual o vate délio72 inspira a grande mente e o ânimo E revela as coisas futuras. Já se aproximam Dos bosques e dos tetos dourados de Trívia73 . Dédalo74, como se conta, fugindo dos reinos de Minos Com penas velozes ousou confiar-se ao céu

15

69

O canto sexto da Eneida se inicia com o lamento de Enéias, pois no final do livro V ele descobrira que o seu piloto Palinuro caíra no mar e se afogara. Mais à frente eles se encontrarão nas praias do Estige (VI, 321-371). 70

Eubóico: referente à ilha Eubéia, na Grécia. Cumas foi fundada por colonos provenientes dessa ilha. 71

Hespéria era o nome dado pelos gregos a toda a região localizada do lado do sol poente (hésperos em grego, vesper em latim), a ocidente em relação à Grécia. 72

Délio: de Délos. Refere-se a Apolo.

73

Trívia: Diana-Ártemis, nesse contexto identificada à deusa Hécate, divindade infernal.

74

Lendário construtor do labirinto do Minotauro.

115

E por um caminho insueto escapou rumo às gélidas Ursas75, E suavemente enfim pousou sobre o monte calcídico76. Tendo chegado a estas terras primeiro a ti, Febo, consagrou O engenho das asas e ergueu enormes templos. Nas portas a morte de Androgeu77; depois os cecrópidas

20

Obrigados a sofrer os castigos (que miséria!): a cada ano Sete cadáveres de jovens 78; lá está a urna para tirar as sortes. Em frente está, elevada sobre o mar, a terra de Cnossos: Aqui está o cruel amor do touro, Pasífae Unida ilícitamente e o Minotauro,

25

Raça mista, prole biforme, lembrança da nefanda Vênus; aqui a obra daquela casa e o inextricável erro 79; Mas, compadecido com o grande amor da rainha80, Dédalo Explicou ele mesmo os ardis e os enigmas do edifício, Guiando com um fio os passos cegos. Tu também, Ícaro,

30

Terias tido um grande papel em tamanha obra, se a dor permitira. Duas vezes ele tentou cinzelar no ouro a tua queda, Duas vezes caíram as mãos paternas. E sem interrupção Todas as coisas eles admirariam, se já Acates, Antes enviado, não retornasse junto com a sacerdotisa

35

De Febo e de Trívia, Deífobe81 de Glauco, que tais coisas diz ao rei:

75

I.e., rumo ao norte.

76

I.e., Cumas.

77

Filho do rei Minos, de Creta, e célebre participante dos jogos atenienses.

78

Todo ano os atenienses (descendentes de Cécrops) deviam entregar sete jovens para serem sacrificados pelo Minotauro. 79

Trata-se do labirinto construído por Dédalo.

80 Aqui 81

a rainha à qual se refere o poeta é Ariadne, que era filha do rei Minos.

Nome da Sibila de Cumas, filha de Glauco, deus marinho que tinha o dom da profecia.

116

"Este momento não pede a contemplação destas coisas; agora seria Preferível sacrificar sete juvencos de um rebanho intacto, E outras tantas ovelhas escolhidas segundo o costume". Tendo-se dirigido Com tais palavras a Enéias (e os homens não tardam a

40

Executar as sacras ordens), a sacerdotisa chama os Teucros aos altos templos. Um lado da rocha eubóica foi cortado num antro ingente, Ao qual levam cem largas entradas, cem portas, De onde se lançam outras tantas vozes, as respostas da Sibila. Chegara-se ao limiar, quando diz a virgem: "É tempo de interrogar

45

Os oráculos: o deus, eis o deus!" E dela, dizendo tais coisas, Diante das portas, subitamente, não permaneceram os mesmos Nem o rosto nem a cor, nem compostas as comas; Mas o peito ansioso e o feroz coração se intumecem de raiva, E maior parece e sua voz não soa humana, já que foi inspirada

50

Pelo nume mais próximo do deus. Ela diz: "Retardas os votos E as preces, Troiano Enéias, retardas? Pois, antes não Se descerrarão as grandes portas da inspirada morada". E, ditas tais coisas, Calou-se. Gélido aos Troianos pelos duros ossos correu Um tremor e o rei derramou preces do imo peito:

55

"Febo, sempre compassivo com as graves fadigas de Tróia, Que dirigiste os dardos dardânios e a mão de Páris Contra o corpo do Eácida82 , sendo tu o guia, Entrei em tantos mares que circundam grandes terras E nas completamente separadas do nação dos Massílios83

82 Aquiles, 83

60

neto Éaco, lendário rei de Egina.

Povo vizinho da Numídia (Norte da África). Referência metonímica para Cartago. Ver também En. 4,132 e 4, 483. 117

E nos campos orlados pelos Sirtes84. Agora enfim tocamos as praias fugitivas 85 Da Itália. Que a Fortuna troiana86 nos tenha perseguido só até aqui. A vós também agora é justo poupar o povo de Pérgamo, Deuses e deusas todos aos quais Ílio e a grande glória Da Dardânia foi obstáculo. E tu, ó santíssima profetisa,

65

Conhecedora do futuro, concede (não peço um reino indevido Aos meus fados) que no Lácio se assentem os Teucros, Os deuses errantes e os numes perseguidos de Tróia. Então para Febo e Trívia um templo de sólido mármore Erguerei e dias de festa em nome de Febo instituirei.

70

Grandes santuários esperam-te também nos nossos reinos: Aqui eu guardarei as tuas sortes e os arcanos fados Pronunciados ao meu povo, benfazeja, e consagrarei homens Escolhidos87. Mas não confies as predições às folhas, Para que não voem como turvos ludíbrios com os rápidos ventos:

75

Cantes tu mesma, eu peço88." E fim deu à oração. Mas por Febo não ainda submetida, a profetisa debate-se Horrenda no antro, como que tentando arrancar O grande deus do peito; tanto mais ele atormenta A boca espumante, domando o fero coração, e apertando-a

80

Doma-a 89. E logo as cem portas ingentes da morada se abriram 84

Banco de recifes no Norte da África entre Cirena e Cartago.

85

Austin, no seu comentário (1988:62), diz que fugientis é acusativo plural e está ligado a oras e que o ritmo e o estilo virgiliano não aceitariam um genitivo singular ligado a Italiae (que é a maneira como Perret interpreta a passagem). Por isso nossa tradução adota a solução defendida por Austin. 86

I.e., que a má sorte dos Troianos tenha chegado só até este ponto e que ela não vá adiante.

87

Nesse trecho parece haver uma referência antecipada aos quinze sacerdotes que custodiavam os Livros Sibilinos. Ver Austin, 1988: 65. 88 89

Esse verso lembra o que Heleno disse a Enéias em En. 3, 441-460.

A tradução literal de fingitque premendo seria "e molda apertando". Esse tipo de uso do verbo fingo aparece como metáfora para o ato de domar um cavalo. Cf. Austin, 1988: 68. 118

Espontaneamente e pelo ar trouxeram as respostas da profetisa: "Ó tu que superaste enfim os grandes perigos do mar, (restam porém os da terra mais penosos), aos reinos de Lavínio Chegarão os Dardânios (tira este receio do peito),

85

Mas quererão também não ter chegado. Guerras, horríveis Guerras, e o Tibre espumando com muito sangue vejo. E não te faltarão o Símois nem o Xanto Nem os acampamentos dóricos 90; outro Aquiles já nasceu No Lácio, ele também filho de uma deusa; e os Teucros

90

A hostil Juno nunca deixará em paz, quando tu, súplice, Em dificuldades, que povos da Itália ou que cidades não invocarás! A causa de tamanho mal para os Teucros de novo será Uma esposa estrangeira e de novo tálamos externos. Tu não cedas aos males, mas, ao contrário, vai com mais audácia

95

Do que a tua fortuna te permitirá. A primeira via de salvação, Com o que tu pouco contas, virá de uma cidade grega." Com tais ditos a Sibila de Cumas do ádito canta Horrendos enigmas e no antro remuge envolvendo Com obscuridades o verdadeiro: esses freios à furiosa agita

100

Apolo e revira os estímulos sob o peito. Logo que cessou o furor e se acalmou a boca raivosa, Começou a falar o herói Enéias: "Nenhuma forma de fadiga, Ó virgem, parece nova ou inopinada para mim; Tudo previ e no ânimo comigo antes considerei.

105

Apenas isto peço: já que se diz que aqui é a porta do rei do inferno E o tenebroso pântano com o Aqueronte estagnado, Que me seja permitido ir ao encontro e às palavras do meu caro pai;

90

Símois e Xanto: rios de Tróia. Essa frase quer significar que as guerras que Enéias travará no Lácio serão tão sagrentas quanto a guerra de Tróia. 119

Que me ensines o caminho e que me abras as sacras portas. Eu o arranquei das chamas e de mil dardos que nos perseguiam

110

Sobre estes ombros e o retirei do meio dos inimigos; Ele, acompanhando o meu caminho, suportava comigo Todos os mares e todas as ameaças tanto do mar como do céu, Enfraquecido, além das forças e da sorte da velhice. Além do mais, ele próprio pedindo deu ordens para que

115

Eu pedisse, súplice, a ti e que eu cruzasse a tua porta. Tem piedade, te peço, ó benfazeja, do filho e do pai (pois tu podes tudo e não foi em vão que Hécate te confiou os bosques do Averno), se Orfeu pôde buscar os manes Da esposa, confiado na cítara trácia e nas cordas sonoras,

120

Se Pólux resgatou o irmão com uma morte alternada E vai e volta tantas vezes pelo caminho. O que dizer do grande Teseu E de Alcides91? Também a minha raça vem do sumo Jove." Com tais ditos pedia e tinha as mãos sobre o altar Quando assim a profetisa começou a falar: "Troiano Anquisíada,

125

Nascido do sangue dos deuses, é fácil a descida ao Averno: Noite e dia está aberta a porta do negro Dite92 ; Mas refazer o passo e retornar ao ar aberto, isto é difícil, isto é trabalhoso. Poucos gerados de deuses, os quais o justo Júpiter Amou ou uma ardente virtude alçou às estrelas, puderam.

130

As selvas ocupam toda a parte intermédia e o Cocito Correndo em negra curva as circunda. Pois se tamanho É o amor na alma, se tamanho é o desejo de atravessar Duas vezes o lago Estige, de duas vezes ver o negro Tártaro, 91

Hércules.

92

Divindade infernal correspondente a Hades ou Plutão grego.

120

E é justo dedicar-se a uma fadiga tão insana, escuta o que

135

Deve ser feito primeiro. Está escondido numa árvore sombria Um ramo áureo93 tanto nas folhas como na haste flexível, Considerado sagrado para a Juno infernal94; todo o bosque O protege e em obscuros vales as sombras o cercam. Mas não é permitido afrontar os segredos da terra antes

140

Que alguém tenha colhido os brotos aurícomos da árvore. A bela Prosérpina estabeleceu que esse seu presente Fosse levado a ela. Arrancado o primeiro, não demora outro áureo, E viceja um ramo semelhante de metal. Portanto, no alto procure Com os olhos e, tendo-o encontrado, arranque-o com a mão

145

Segundo o rito; de fato, se os fados te chamam, ele cederá fácil E docemente; de outro modo não poderás vencê-lo Com nenhuma força nem arrancá-lo com o duro ferro. Além disso o corpo de um amigo teu jaz exânime (ah, tu ignoras!) e contamina toda a frota com seu cadáver,

150

Enquanto tu pedes respostas e hesitas ante a nossa porta. Primeiro leva-o às suas sedes e o depõe no sepulcro. Conduze negros animais; que eles sejam as primeiras vítimas. Assim tu verás enfim os bosques do Estige e os reinos Inacessíveis aos vivos." Disse e, tendo fechado a boca, calou-se.

155

Enéias, olhos baixos com o rosto triste, Põe-se a caminho deixando o antro, e na alma consigo Medita sobre os obscuros eventos. Com ele vai

93

Note-se o contraste entre a cor áurea, brilhante, luminosa do ramo e a escuridão que o cerca e esconde. Sobre toda a problemática que envolve o tema do ramus aureus ver Austin, 1988: 82-84. 94

Prosérpina, rainha dos Infernos e esposa de Plutão.

121

O fiel companheiro Acates e com iguais cuidados marca os seus passos. Muitas coisas diziam entre si num discurso variado:

160

Qual o companheiro morto, que corpo, dizia a profetisa, Deve ser enterrado. E eles, quando chegaram ao seco litoral, Viram Miseno, aniquilado por uma morte indigna, o Eólida Miseno: Do que ele não houve outro mais hábil a animar Os homens com a trompa e acender Marte95 com o canto.

165

Fora companheiro do grande Heitor, insigne com o clarim E com a lança enfrentava as batalhas junto com Heitor. Depois que Aquiles vitorioso tirou a vida deste, O fortíssimo herói se juntara como companheiro Ao Dardânio Enéias, seguindo outro não inferior.

170

Mas então, enquanto faz ressoar o mar com a oca concha, Demente, e chama os deuses para a luta com o canto, O invejoso Tritão, se é digno crer, imergira o herói Surpreendido entre as pedras pela onda espumosa. Por isso todos ao redor gritavam com grande clamor,

175

Principalmente o pio Enéias. Então, sem demora, Apressam as ordens da Sibila, chorando, e correm A compor o altar do sepulcro com árvores e a alçá-lo aos céus. Vão a uma floresta antiga, refúgio profundo de feras: Caem os pinhos, ressoam a azinheira golpeada pelos machados

180

E os troncos de freixos com a cunha e o físsil carvalho É fendido, levam enormes freixos das montanhas. E Enéias primeiro entre tais trabalhos Exorta os companheiros e se mune de iguais armas. E estas coisas ele revolve com seu coração triste 95

I. e.: a guerra.

185 122

Observando a floresta imensa e assim por acaso pede: "Se agora se me mostrasse aquele ramo áureo sobre uma árvore Num bosque tão grande! Já que, ai de mim, a vate disse tudo Com verdade excessiva, ó Miseno, acerca de ti." Apenas tinha dito isto quando por acaso duas pombas

190

Vieram voando do céu sob o próprio rosto dele E pousaram sobre o solo verde. Então o grandioso herói, Reconhecendo as aves maternas 96, alegre pede: "Sede guias, oh!, se há algum caminho e dirigi o vôo Pelos ares para os bosques onde o ramo precioso sombreia

195

A fértil terra. E tu, oh!, não me abandones num Momento de incerteza, divina mãe." Tendo falado assim, deteve os passos Observando que sinais trazem, para onde vão dirigir-se. As pombas, Pascendo, avançam voando tanto quanto os olhos De quem as seguia pudessem observar com o olhar.

200

Então quando chegaram à boca do fétido Averno, Se levantam velozes e, deslizando pelo ar límpido, Pousam sobre a árvore dupla, no lugar desejado, De onde brilhou através dos ramos um ar dourado de cor diferente. Como nas florestas costuma verdejar com nova fronde

205

No frio do inverno o visgo, que semeia uma árvore não sua, E costuma circundar os troncos arredondados com fruto amarelo, Tal era o aspecto do ouro frondoso sobre a azinheira opaca, Assim crepitava a folha dourada ao vento suave. Imediatamente Enéias o agarra e ávido quebra o ramo,

210

Que resiste, e o leva à morada da vate Sibila. Enquanto isso não menos choravam Miseno os Teucros Na praia e à insensível cinza celebravam as exéquias. 96 As

pombas eram pássaros consagrados a Vênus e esta era a mãe de Enéias.

123

A princípio levantaram uma grande pira densa Com galhos e lenha cortada, da qual cobriram os lados

215

Com fúnebres frondes e puseram em frente funestos Ciprestes e a adornaram por cima com armas esplêndidas. Uns preparam a água quente e os vasos de bronze Borbulhantes para as chamas e lavam e ungem o corpo do morto. Faz-se o gemido. Então colocam os membros lamentados

220

Sobre o leito fúnebre e lançam sobre o corpo vestes purpúreas97, Panos dele conhecidos. Outros tomaram parte no enorme féretro, triste tarefa, E seguraram a tocha aproximando-a de acordo com o costume dos pais Volvendo o rosto para trás. São queimados as oferendas de incenso

Recolhidas, as vítimas e as crateras com óleo espalhado.

225

Depois que as cinzas se desfizeram e a chama se enfraqueceu, Lavaram com vinho os restos e a brasa encharcada, E Corineu depôs os ossos recolhidos em um vaso de bronze. Ele mesmo purgou os companheiros com água pura Aspergindo com gotas leves e com um ramo de fecunda oliveira,

230

Purificou os homens e disse as últimas palavras. Mas o pio Enéias levanta um sepulcro de enorme tamanho E põe as armas do herói sobre ele, o remo e a trombeta, Sob o alto monte, que agora é chamado por ele Miseno e para sempre conserva pelos séculos este nome.

235

Feitas essas coisas, rapidamente executa as ordens da Sibila. Havia uma gruta profunda e pela imensa abertura horrenda, Rochosa, protegida por um lago escuro e pelas tênebras dos

97 Austin

(1988) diz à página 104 de seu comentário: “uma razão antiga para se envolver o morto em púrpura era que a cor representava o sangue de uma vítima sacrificial”. 124

Bosques, sobre a qual nenhum pássaro poderia impunemente Com as asas dirigir o vôo: tal era o hálito saindo

240

Das negras gargantas que subia rumo aos céus. [Por isso os gregos deram o nome de Aorno98 ao lugar] Alí primeiro a sacerdotisa colocou quatro juvencos De dorso negro e na fronte derrama o vinho, E arrancando os pêlos da cabeça, de entre os cornos,

245

Os joga no fogo sacro, como primeiro sacrifício, Invocando Hécate, potente no céu e no Érebo. Outros enfiam as facas e recolhem o tépido sangue Nas páteras 99. O próprio Enéias fere com a espada Uma ovelha de lã negra para a mãe das Eumênides 100

250

E para a grande irmã101 e para ti, Prosérpina, uma vaca estéril102. Então ao rei do Estige prepara altares noturnos, Põe sobre as chamas vísceras inteiras de touros E pingue óleo derrama sobre as entranhas ardentes. Mas eis que, antes do surgimento e do levantar-se do primeiro sol

255

Começou a mugir sob os pés deles o solo e a mover-se As copas das árvores e foram vistas cadelas a uivar na sombra Com a chegada da deusa. “Longe, longe permanecei, ó profanos, Grita a vate, “e retirai-vos de todo este bosque; E quanto a ti inicia o caminho e da bainha arranca a espada:

260

Agora, Enéias, é preciso ter coragem, agora mantém-te firme”. 98

Aornon: sem pássaro. Este verso é uma interpolação que aparece em vários manuscritos desde a Baixa Antigüidade. 99

Tipo de vaso de boca larga e chato usado em sacrifícios.

100

I.e.: a Noite.

101

I.e. a Terra.

102

Prosérpina não tinha filhos. Da mesma maneira, Circe (Od. X, 522) instrui Ulisses a sacrificar às sombras uma vaca sem filhos (estéril) quando chegasse a Ítaca. 125

Depois de dizer somente isto com fúria entrou no antro aberto; Ele, com passos não tímidos, faz o mesmo que a guia que avança. Ó deuses, aos quais cabe o império das almas, sombras silentes, Caos e Flégeton, lugares que se calam profundamente na noite,

265

Seja permitido a mim dizer as coisas ouvidas, revelar, com vossa Permissão, as coisas imersas na profunda terra e na obscuridade. Iam obscuros sob a noite solitária pela sombra, Pelas moradas desertas e pelos reinos inanes de Dite: Assim na incerta lua sob uma luz maligna

270

É o caminho nas florestas, quando Júpiter escondeu o céu Na sombra e a negra noite arrancou a cor das coisas. Bem em frente ao vestíbulo e nas primeiras entradas do Orco O Luto e os Cuidados vingadores puseram suas moradas; E as pálidas Doenças habitam ali e a triste Velhice,

275

O Medo e a malvada Fome e a torpe Pobreza, Figuras terríveis de se ver, a Morte e o Trabalho; Depois o Sono irmão da Morte, as más Alegrias Da alma, a mortífera Guerra na porta em frente, Os férreos tálamos das Eumênides e a Discórdia demente,

280

Tendo sua cabeleira viperina amarrada com fitas ensangüentadas. No meio estende os ramos, como braços idosos, Um enorme olmo opaco que comumente dizem que os vãos Sonhos guardam como morada e sob todas as folhas estão presos. Além disso, muitos simulacros de animais diversos:

285

Os Centauros habitam as portas, as biformes Cilas, Briareu dos cem braços, o monstro de Lerna Que sibila horrendamente, a Quimera armada de chamas, As Górgonas, as Harpias e a forma da sombra tricorpórea. Ali, amedrontado por um súbito medo, Enéias agarra a espada

290 126

E empunhando-a apresenta a sua ponta àquelas que vêm, E se não o advertisse a sábia companheira que são Vidas tênues sem corpo sob uma vã imagem de forma, Atacaria e em vão com a espada cortaria as sombras. Dali o caminho que leva às ondas do tartáreo Aqueronte.

295

Ali turvo com a lama e com a vasta voragem arde O abismo e lança toda a areia no Cocito. O horrendo barqueiro que guarda estas águas e o rio É Caronte de terrível imundície, do qual abundante no queixo Se estende descomposta a cinza barba, tem os olhos acesos como chamas, 300 E está amarrado com um nó nos ombros o manto sórdido. Ele próprio com uma vara conduz a barca e governa as velas E sobre a ferruginosa jangada transporta os corpos, Já velho, mas vigorosa e verde é a velhice para o deus. Ali se precipitava toda a turba, espalhada pelas praias,

305

Mães e homens e corpos defuntos sem vida De magnânimos heróis, meninos e meninas não desposadas, E jovens postos em piras ante os olhos dos pais: Como as muitas folhas na floresta que desligando-se caem No primeiro frio do outono ou como as muitas aves se aglomeram

310

Na terra vindas do alto mar quando a estação fria Os afugenta além mar e os envia a terras ensolaradas. Estavam de pé pedindo para atravessar primeiro E estendiam as mãos desejando a outra margem. Mas o severo barqueiro aceita ora estes ora aqueles,

315

Porém outros, afastados para longe, ele os retém sobre a areia. Enéias então assombrado e comovido com o tumulto Exclama: "Dize, virgem, o que significa esse concurso rumo ao rio? 127

Ou o quê buscam as almas? Ou por que escolha elas deixam As praias, e com os remos sulcam as lívidas águas?"

320

A ele assim brevemente falou a longeva sacerdotisa: "Gerado de Anquises, prole certíssima de deuses, Tu vês as profundas águas estagnadas do Cocito e o pântano Estígio, Nume pelo qual os deuses temem jurar e enganar103. Toda esta, A qual vês, é a turba mísera e insepulta: aquele é o barqueiro Caronte;

325

Aqueles, os quais a onda transporta, são os sepultados. E não é permitido além das praias horrendas e das roucas correntes Levá-los antes que os ossos tenham descansado no sepulcro. Erram por cem anos e voejam em torno a estes litorais. Depois, finalmente, aceitos revêem as águas desejadas."104

330

Deteve-se o filho de Anquises e reteve o passo Muitas coisas pensando e lamentando na alma a iníqua sorte daqueles. Ali vê tristes e privados da honra da morte Leucáspide e Orontes, comandante da esquadra lícia105 , Os quais, levados juntos de Tróia por mares ventosos,

335

O Austro aniquilou, com água envolvendo a nave e os homens. Eis que avança o piloto Palinuro, Que pouco antes na rota da Líbia, enquanto observava as estrelas, Caíra da popa engolido em meio às ondas. Quando com dificuldade o reconheceu, triste, na profunda sombra,

340

Assim primeiro lhe falou: "Qual dos deuses, Palinuro, Te arrancou de nós e te submergiu no meio do mar? 103

Um juramento feito em nome do Estige era inviolável e sagrado. Em En. IX, 104 e X, 113, Júpiter jura Stygii per flumina fratris. 104

É difícil determinar uma fonte para essa idéia. Norden (1916) fala de uma origem pitagórica, lembrando a passagem da República, (X, 615ab), de Platão, onde cem anos são tomados como um período da vida humana. 105

Leucáspide e Orontes, antigos companheiros de Enéias, em Tróia, ficaram privados de funerais e sepulturas. 128

Dize, vamos. Pois somente com esta resposta a minha alma Apolo enganou, nunca antes imaginado mentiroso, Ele que vaticinava que tu estarias incólume no mar

345

E que chegarias aos confins ausônios 106. É esta então a confiança prometida?" E aquele: "Não te enganou o oráculo de Apolo, Chefe anquisíada, nem um deus me submergiu no mar; De fato, o timão foi arrancado por acaso com muita violência, Ao qual como guardião designado eu estava amarrado e dirigia o curso, 350 E, caindo, arrastei-o comigo. Juro pelos mares ásperos Que nenhum temor tão grande por mim me tomou Quanto o de que a tua nave, privada de instrumentos, morto o timoneiro, Ficasse abandonada entre tamanhas ondas elevadas. Por três noites tempestuosas Noto, por mares imensos,

355

Me levou sobre a água violentamente; somente no quarto dia Cheguei à Itália, no alto em cima de uma onda. Pouco a pouco eu nadava rumo à terra; já alcançava a segurança Se não me tivesse atacado com a espada, oprimido com a veste úmida E segurando com as mãos aduncas os cimos ásperos do monte,

360

Uma gente cruel e ignara e se não me tivesse julgado uma presa. Agora a onda me tem e os ventos me fazem voltar ao litoral. Por isso te peço pela agradável luz e pelos ares do céu, Pelo teu pai, pela esperança de Iulo que cresce, livra-me, Ó invicto, destes males: ou lança terra sobre mim,

365

De fato podes, e procura os portos de Vélia; Ou tu, se há algum caminho, se algum a deusa mãe Te mostrou (então, eu creio, não te preparas sem a vontade dos deuses Para atravessar tão grandes rios e o pântano estígio), 106

I.e.: à Itália. Os ausônios eram um povo da antiga Campânia.

129

estende a destra a este mísero e contigo leva-me sobre as ondas,

370

para que pelo menos eu repouse na morte em plácidas moradas." Tais coisas dissera, quando começou a profetisa estas palavras: "De onde, Palinuro, te vem este desejo tão terrível? Tu, sem sepultura, verás as águas estígias e o rio severo Das Eumênides, ou te dirigirás à praia sem ter sido mandado?

375

Deixa de esperar que os fados dos deuses se curvem a quem pede, Mas mantém na memória as palavras, consolos da dura sorte: Pois os habitantes perseguidos pelos prodígios celestes Ao longe e ao largo pelas cidades recolherão teus ossos E erguerão um túmulo e no túmulo colocarão solenes ofertas,

380

E o lugar de Palinuro terá um nome eterno." Com essas palavras foi afastado o afã e expulsa por um momento A dor do coração triste; ele se alegra com o cognome da terra107. Prosseguem portanto o caminho iniciado e se aproximam do rio. E o barqueiro como já desde a onda estígia os visse

385

Avançar pelo bosque tácito e dirigir o passo à praia, Assim primeiro os ataca com palavras e além disso ameaça: "Quem quer que sejas, que armado te diriges aos nossos rios, dize logo por que vens, de onde és e retém o passo. Esta é a morada das sombras, do sono e da noite soporífera;

390

Não é permitido transportar corpos vivos sobre a barca estígia. Nem mesmo me alegrei por ter acolhido sobre o lago Alcides em viagem, nem Teseu nem Pirítoo Embora tivessem sido gerados por deuses e fossem invictos pela força. Aquele arrastou em correntes com sua mão o guardião do Tártaro

107

395

Passagem com motivo etiológico com a função de explicar a origem do nome do Cabo de Palinuro, na antiga Lucânia. 130

Do trono do próprio rei e o levou embora tremendo108; Os outros tentaram roubar do tálamo a senhora de Dite109". Em resposta a essas palavras brevemente falou a profetisa anfrísia110: "Aqui nenhuma insídia tal, deixa de estar irritado, Nem as armas trazem violência, ainda que o enorme guardião que late

400

Eternamente no antro assuste as sombras exangues, Ainda que more na casa do tio paterno a casta Prosérpina. O troiano Enéias, insigne na piedade111 e nas armas, Desce ao pai, às sombras profundas do Érebo. Se não te comove a imagem de tamanha piedade,

405

Ao menos este ramo (mostra o ramo, que estava escondido sob a veste) Reconheças." Então se acalma o coração túmido de ira. E ela não diz nada além disso. Ele, admirando o dom venerável Do ramo fatal visto depois de longo tempo Volta a cerúlea112 popa e se avizinha da praia.

410

Então expulsa as outras almas, que nos longos bancos se sentavam, E libera os assentos; ao mesmo tempo recebe na canoa O enorme Enéias. Gemeu sob o peso a barca De juncos e, cheia de fissuras, recebeu muita água.

108

Sobre a catábase de Héracles (Alcides) com objetivo de roubar Cérbero ver p. mundo das sombras..... 109

Sobre a tentativa de Teseu e Pirítoo de raptar Prosérpina ver p. sombras....

do capítulo "O

do capítulo "O mundo das

110

Apolo, certa vez, servira a Admeto como pastor junto ao rio Amfriso, na Tessália. Por isso ele recebera o epíteto de amfrísio. E, sendo a Sibila uma servidora de Apolo, ela recebe o epíteto de seu senhor. Cf. Austin, 1988:147. 111

Não é demais lembrar que o epíteto característico de Enéias é pius. É preciso dizer também que a pietas romana é diferente da piedade cristã. A pietas era o sentimento de respeito que se tinha em relação aos pais, aos antepassados e aos deuses, enquanto que a piedade cristã é um sentimento de comiseração em relação àqueles que sofrem ou estão em condição inferior. 112

É interessante notar a variedade de qualificativos aplicados à barca de Caronte: no verso 303 Virgílio escreveu ferruginea cumba. Agora aparece esta caeruleam puppim, popa cerúlea, popa azul. Aqui azul é usado como uma metáfora para escura. Cf. Austin, 1988:149. 131

Finalmente depois do rio, incólumes, a profetisa e o herói

415

Ele desembarca na lama disforme e na ulva glauca. O enorme Cérbero estes reinos faz ressoar Com latido trifauce, deitado, imane, na caverna em frente. A ele a profetisa, vendo já os pescoços eriçar-se de serpentes, Lança um bolo soporífero de mel e de grãos enfeitiçados 113.

420

Ele, abrindo as três gargantas com raivosa fome, Agarra o bolo e deitando-se sobre a terra estende O dorso imenso e enorme ocupa a gruta inteira. Enéias se apressa em direção à entrada, estando o guardião adormecido, E rápido deixa a praia da água de onde não se retorna.

425

De repente vozes foram ouvidas e um enorme vagido E almas de infantes chorando na primeira entrada Os quais privados da doce vida e arrancados do seio materno Um negro dia levou e submergiu em acerba morte. Perto desses os condenados à morte por uma falsa acusação;

430

Nem mesmo estas moradas são dadas sem uma sorte, sem um juiz: Minos, o inquisidor, move a urna, convoca uma assembléia De silenciosos e examina as vidas e as culpas. Depois ocupam os lugares próximos, tristes, aqueles que, Inocentes, prepararam a morte com as próprias mãos para si

435

E tendo odiado a luz abandonaram a vida. Como quereriam Agora sob o alto céu suportar a pobreza e as duras fadigas114! O destino se opõe e o triste pântano de odiosa onda Impede e os aprisiona o Estige nove vezes interposto. E não longe dali se mostram estendidos em toda parte

440

Os campos chorosos; assim por esse nome eles são chamados. 113 Acerca 114

desse bolo (offa) ver p. 65.

Eco das famosas palavras ditas por Aquiles a Ulisses, na Odisséia, XI, 489 ss.

132

Ali secretos caminhos escondem e em torno a floresta De mirto protege aqueles que o duro amor consumiu Com uma peste cruel; os cuidados nem na própria morte os abandonam. Nesses lugares115 ele vê Fedra, Prócris e a triste Erífile

445

Que mostra as feridas do filho cruel, Evadne e Pasífae; com essas vai a companheira Laodamia e Ceneu, certa vez um jovem, agora uma mulher, Novamente pelo destino retransformada no antigo aspecto. Em meio a essas errava na grande floresta

450

A fenícia Dido, com uma ferida recente; logo que o herói troiano Estacou próximo a ela e a reconheceu obscura entre as sombras, Como quem no início do mês vê ou pensa ter visto Surgir a lua entre as nuvens, deixou cair Lágrimas e falou com doce amor:

455

"Infeliz Dido, então a notícia que chegou até mim era verdadeira: tu te mataste com uma espada e buscaste os extremos? Fui a causa, ai de mim, da tua morte? Juro pelas estrelas, Pelos deuses do céu e se há alguma lealdade sob a terra profunda, Ó rainha, a contragosto me afastei do teu litoral.

460

Mas as ordens dos deuses, as quais agora me obrigam a andar Entre estas sombras, através de lugares horrendos pela sujeira E através da noite profunda, me impelem de acordo com seus desejos; E nem pude crer que eu provocaria a ti uma dor tamanha com a minha partida. Retém o passo e não te afastes dos meus olhos.

115

465

Começa aqui um catálogo de heroínas similar ao apresentado na Odisséia, XI, 225-330.

133

De quem foges? Por destino, esta é a última vez que te falo 116." Com tais palavras Enéias consolava a alma ardente Que torvamente olhava e derramava lágrimas. Ela, de costas, tinha os olhos fixos no chão E não se comove no rosto, tendo iniciado o discurso,

470

Mais do que se estivesse parada uma dura pedra ou uma rocha marpesia117. Finalmente fugiu e, hostil, se refugiou no bosque umbroso, Onde o primeiro marido, Siqueu, aos seus cuidados corresponde e iguala o seu amor. Nem menos Enéias golpeado pelo acaso iníquo

475

Segue longamente lacrimando e se compadece enquanto ela se vai. Então retoma o caminho concedido. E agora nos últimos campos Estavam, os quais povoam à parte os valorosos na guerra. Ali Tideu correu até ele, ali Partenopeu Famoso nas armas e a imagem do pálido Adrasto,

480

Ali os dardânidas caídos em guerra e muito chorados na superfície118, Os quais, ao vê-los a todos, em longa fila lamentou: Glauco, Medonte, Tersículo, Os três Antenôridas, Polibetes sacerdote de Ceres E Ideu, que ainda tinha seu carro e suas armas.

485

As almas em grande número o circundam à direita e à esquerda, E não basta ver uma só vez; agrada-lhes demorar-se um pouco,

116

Como diz Austin (1988:162): "Entre elas [as heroínas] Enéias vê o fantasma de Dido. Ela vem com intenso impacto dramático: mesmo para Enéias, as outras vinham de um passado lendário; Dido, por outro lado, ele a tinha conhecido e amado. É uma medida do poder criativo de Virgílio o fato de que a presença dela ainda provoque um choque: o resto é mito, Dido é real." Um modelo para esta passagem pode ser encontrado na Odisséia, XI, 541 ss., onde Ulisses tenta aplacar a ira da sombra de Ájax. 117

Marpeso era uma montanha em Paros e o mármore pário tinha uma superfície de qualidade luminosa. Virgílio faz essa comparação tanto para dizer que a alma de Dido está endurecida pela mágoa como para realçar o brilho do fantasma da rainha fenícia na escuridão. Cf. Austin, 1988:167. 118

É bom lembrar que Enéias e a Sibila estão sob a superfície da terra.

134

Acompanhar o passo e ouvir os motivos da vinda deles. Mas os comandantes dos Dânaos e as falanges de Agamêmnon, Quando viram o herói e as armas resplandecendo entre as sombras,

490

Tremeram com enorme medo119; uns viraram as costas Como certa vez fugiram para as naves, outros alçaram A fraca voz: mas o clamor iniciado se frustra nas bocas abertas. E ali viu Deífobo, priamida, desfigurado Em todo o corpo, cruelmente lacerado no rosto,

495

O rosto e ambas as mãos, destruídas as têmporas por causa Das orelhas arrancadas e cortadas as narinas com uma ferida vergonhosa. Com dificuldade então o reconheceu enquanto ele tremia e cobria As horrendas mutilações e ao longe o chama com a conhecida voz: "Deífobo, potente nas armas, raça do alto sangue de Teucro,

500

Quem decidiu impetrar castigos tão cruéis? A quem foi permitido ofender-te tanto? A mim chegou a notícia De que na última noite tu, exausto pela enorme matança dos Pelasgos, Caíste sobre um monte de confusa carnificina. Eu mesmo então ergui um túmulo vazio na margem

505

Do Reteu, com alta voz e três vezes os manes invoquei. O nome e as armas guardam o lugar; a ti, amigo, não pude Reencontrar e partindo enterrar-te na pátria terra." A estas palavras respondeu o Priamida: “Não esqueceste de nada amigo; Tudo resolveste para Deífobo e para a sombra do cadáver.

510

Mas o meu destino e o crime horrendo da lacedemônia120 Me mergulharam nestes males; ela me deixou estas marcas. De fato como tínhamos passado a última noite entre falsas alegrias

119

Essa passagem é uma entre várias da Eneida que contradizem a idéia de que no Hades as sombras permaneceriam insensíveis e sem memória. 120

I.e: Helena.

135

Tu o sabes: e é mais que necessário recordar. Quando o cavalo fatal de um salto sobre a alta Pérgamo

515

Veio e grávido trouxe no ventre a infantaria armada, Ela, simulando uma dança conduzia em torno as Frígias Celebrando orgias 121; ela mesma no meio levava uma enorme Tocha e de cima da cidadela chamava os Dânaos. Então esgotado pelos cuidados e oprimido pelo sono

520

Me recebeu o infeliz tálamo, e deitado veio-me Uma paz doce e profunda e muito símile à plácida morte. Enquanto isso a egrégia esposa122 tira da casa Todas as armas e tinha retirado do chefe a fiel espada; Dentro da casa chama Menelau e abre as portas,

525

Evidentemente esperando que isto fosse um grande presente para o amado, E que assim pudesse extinguir a lembrança dos antigos males. Porque me demoro? Irrompem no tálamo, acompanhados Do Eólida123 instigador de delitos. Deuses, restituí Aos gregos tais horrores, se com pia boca peço os castigos.

530

Mas que acasos, vamos, diga por sua vez, te trouxeram Aqui vivo. Vens conduzido por incertezas sobre o mar Ou por ordem dos deuses? Ou que fortuna te obriga A entrar nas tristes moradas sem sol, lugares tenebrosos?” Com esta troca de palavras a Aurora com as róseas quadrigas

535

Já tinha ultrapassado no etéreo caminho a metade do céu; E talvez transcorreriam entre tais palavras todo o tempo concedido, Mas avisou a companheira e brevemente a Sibila falou: 121 As 122 123

orgias eram os mistérios de Baco, que eram celebrados aos gritos de evoé (euhan).

Note-se a ácida ironia das palavras de Deífobo referindo-se a Helena.

Eólida: Ulisses. Mais uma vez Deífobo está sendo irônico, pois ao usar o adjetivo “Eólida” está aludindo à lenda que dizia que Ulisses era um bastardo, filho de Sísifo, que era filho de Éolo. Cf. Austin, 1988:177. 136

“A noite desce, Enéias; nós passamos as horas a chorar. Aqui é o lugar onde a estrada se divide em duas partes:

540

A direita, que se dirige aos muros do grande Dite, Por aqui é a nossa via para o Elísio; mas a esquerda pune As culpas dos malvados e conduz ao ímpio Tártaro.”124 Deífobo responde: “Não te irrites, grande sacerdotisa; Vou-me embora, completarei o número e retornarei às trevas.

545

Vai, vai glória dos nossos; desfruta de melhores destinos.” Disse somente isto e entre as palavras volveu os passos para trás. Enéias olha em volta: subitamente e sob um penhasco à esquerda Divisa altas muralhas rodeadas por um tríplice muro, Que um rápido rio cerca com chamas ardentes,

550

O tartáreo Flegetonte, e arrasta ressoantes rochedos. Em frente, uma porta enorme e colunas de sólido ferro, Que nenhuma força de homem, nem os próprios habitantes do céu Poderiam derrubar numa batalha; levanta-se rumo aos céus Uma torre de ferro, e Tisífone125 sentada envolta em uma veste cruenta, 555 Insone, guarda o vestíbulo de noite e de dia. Dali se ouviam gemidos e ressoavam cruéis chicotadas, Depois estridor de ferro e correntes arrastadas. Enéias estacou e assustado escutou o estrépito. “Que tipo de delitos, fala, virgem, ou por que penas

560

São atormentados? Por que tamanho lamento rumo aos céus?” Então a profetisa assim começou a falar: ”Chefe ínclito dos Teucros, A nenhum casto é permitido adentrar a porta celerada: Mas quando Hécate me confiou os bosques do Averno,

124

Nesta passagem Virgílio usa a tradição órfico-pitagórica da dupla via. Cf. Austin, 1988:179 e Cumont, 1949:279ss. 125

Tisífone era uma das três Erínias (ou as Fúrias, mitologia romana).

137

Ela mesma me ensinou as penas dos deuses e entre todos me conduziu.

565

Radamanto de Cnossos estes reinos duríssimos governa, Castiga, escuta os dolos e obriga a confessar O que cada um sobre a terra, alegrando-se com um inútil furto, Fez até a morte tardia, os sacrilégios cometidos. Continuamente, armada com um flagelo, vingativa, Tisífone

570

Golpeia os culpados, insultando-os, e torvas serpentes Agitando com a mão esquerda chama a tropa cruel das irmãs. Então enfim estridentes sobre os gonzos com horrível som Se abrem as portas sagradas. Vês que guardiã Se senta no vestíbulo, que rosto protege as portas?

575

Com cinqüenta negras gargantas uma hidra enorme, Mais cruel, lá dentro tem morada. Depois o próprio Tártaro Duas vezes se abre num precipício e se estende tanto nas sombras Quanto é altura do céu até o etéreo Olimpo. Ali a antiga estirpe da Terra, a prole titânica,

580

Abatida pelo raio nas profundezas se contorce. Ali eu vi também os gêmeos filhos de Aloeu126, De corpos imensos, que tentaram destruir com as mãos O grande céu e expulsar Jove dos reinos celestes. Vi também Salmoneu que pagava penas cruéis:

585

Enquanto imitava as chamas de Jove e o som do Olimpo, Este, levado por quatro cavalos e agitando uma lâmpada, Ia exultante através dos povos da Grécia e através da cidade Do centro da Élida e exigia para si a honra dos deuses, Demente, o qual os nimbos e o inimitável raio

590

Com o bronze e os golpes dos cavalos cornípedes imitava.

126

Aloeu era um gigante cujos filhos gêmeos eram Oto e Efialte, (Il., V, 386) ou de Posêidon com a esposa de Aloeu (Od., XI, 306ss.). Cf. Austin, 1988:186-187. 138

Mas o pai onipotente entre as densas nuvens um dardo Atirou, não fachos nem luzes fumarentas de resina E no precipício com um vórtice imane o lançou. E também Tício, filho da Terra que tudo gera,

595

Era possível discernir, do qual o corpo por nove jeiras127 inteiras Se estende, e um abutre imenso de rostro adunco Rói-lhe o fígado imortal e as vísceras fecundas em castigos Como comida as fende e no profundo peito tem morada, Nem descanso algum é dado às fibras renascidas.

600

Por que eu me lembraria dos Lapitas, de Ixião e de Pirítoo? Sobre eles uma negra rocha agora mesmo está para cair E semelhante a uma que cai pende; brilham os balaústres dourados Sobre altos leitos suntuosos, e diante dos rostos estão preparadas as mesas Com luxo real; a mais velha das Fúrias ali perto

605

Está deitada e com as mãos impede de tocar as mesas, Se alça brandindo o facho e troveja com a voz. Ali aqueles aos quais os irmãos foram odiosos, enquanto viveram, Ou que perseguiram o pai e urdiram um dano para o cliente, Ou aqueles que sozinhos lançaram-se sobre as riquezas encontradas

610

E não repartiram com os seus (que é uma enorme multidão), Aqueles que foram mortos por adultério e aqueles que seguiram Ímpias armas e não temeram enganar as destras dos patrões, Presos esperam a pena. Não queiras saber que pena, Que causa ou que acaso afundou aqueles homens.

615

Uns rolam uma enorme pedra e nos raios das rodas Presos pendem; está sentado e para sempre estará

127

Jeira: medida agrária de 240 pés de comprimento por 120 de largura.

139

O infeliz Teseu128 e Flégias, misérrimo, todos admoesta E com alta voz pelas sombras afirma: “Aprendei a justiça, admoestados, e não desprezeis os deuses.”

620

Este por ouro vendeu a pátria e impôs um tirano Poderoso; sob preço fez e desfez leis; Este invadiu o tálamo e as núpcias proibidas da filha. Todos ousaram um grande delito e se aproveitaram do que foi ousado. Eu não poderia, mesmo se tivesse cem línguas e cem bocas,

625

E uma férrea voz, compreender todas as formas De crimes, nem percorrer todos os nomes dos castigos.” Quando disse essas palavras a longeva sacerdotisa de Febo, “Mas agora vai, toma o caminho e termina o trabalho iniciado; Apressemo-nos” exclamou; ”Vejo os muros construídos

630

Pelas forjas dos Ciclopes e as portas abobadadas ali em frente, Onde a regra nos ordena que deponhamos este dom.” Dissera e encaminhando-se juntos pela escuridão dos caminhos Percorrem com pressa o espaço no meio e se aproximam dos portas. Enéias chega à entrada e o corpo esparge

635

Com água fresca e o ramo fixa na porta em frente. Feitas enfim estas coisas, tendo oferecido o dom à deusa, Chegaram aos lugares alegres e aos amenos vergéis Dos bosques dos afortunados e às sedes beatas. Ali o ar é mais abundante e os campos com uma luz

640

Purpúrea reveste e conhecem um sol e estrelas próprios. Uns em academias herbosas exercitam os membros, Disputam jogos e lutam sobre a areia fulva; Outros com os pés marcam o ritmo das danças e entoam canções

128

Neste ponto Virgílio se vale da tradição que dizia que Teseu não havia saído do inferno, em contradição com a tradição referida no verso 122. Cf. Austin, 1988:197. 140

E o sacerdote trácio129 com uma longa veste

645

Faz ressoar ritmadamente os sete intervalos das notas, E ora com os dedos, ora com o plectro ebúrneo as toca. Ali a raça antiga de Teucro, belíssima prole, Heróis magnânimos nascidos em tempos melhores, Ilo, Assáraco e Dárdano, fundador de Tróia.

650

Ao longe se vêem as armas e os carros de guerra vazios dos varões, Permanecem plantadas na terra as lanças e aqui e ali livres Pelos campos cavalos pastam; o amor que tinham pelo carro de guerra E pelas armas quando estavam vivos, aquele cuidado em alimentar Os esplêndidos cavalos, tudo é o mesmo embora postos sob a terra.

655

Eis que vê outros à direita e à esquerda sobre a grama Regalando-se, cantando em coro um alegre peã No meio de um bosque perfumado de louro, de onde para o alto Através da floresta corre o caudaloso rio Erídano. Ali a tropa dos que sofreram feridas lutando pela pátria,

660

Os sacerdotes castos enquanto viveram, Os pios profetas que disseram coisas dignas de Febo, Ou aqueles que enobreceram a vida com a invenção das artes E aqueles que merecendo fizeram os outros lembrar deles: As têmporas de todos esses são cingidas com uma nívea fita.

665

Àqueles, espalhados em torno, assim falou a Sibila,

A Museu antes de todos (pois este está no meio Da maior multidão, e o olha destacando-se com seus altos ombros): “Dizei, almas felizes, e tu, melhor dos profetas, Em que parte, em que lugar está Anquises, pois por ele

670

Viemos e atravessamos os grandes rios do Érebo.” 129

I.e.: Orfeu, filho de Eagro e de Calíope, originário da Trácia.

141

E a ela com poucas palavras assim deu a resposta o herói: “Para ninguém há uma morada certa; habitamos os bosques opacos, Os leitos das praias e os prados frescos dos regatos Freqüentamos. Mas vós, se assim no coração a vontade pede,

675

Superai este morro e numa fácil vereda já os colocarei.” Disse e levou antes o passo e do alto mostra Os campos reluzentes; dali deixam os altos cimos. Mas o pai Anquises no fundo de um verde vale As almas presas e as que estavam para ir para a luz superior130

680

Admirava observando-as com amor e todo o número Dos seus ao acaso, os caros netos, o destino E a sorte dos heróis, os costumes e o valor passava em revista. E ele, quando viu Enéias vindo ao seu encontro Através do prado, alegre, as mãos estendeu,

685

Correram pelas faces as lágrimas e a voz saiu de sua boca: “Vieste enfim e a tua piedade esperada pelo pai Venceu o duro caminho? É dado, filho, ver O teu rosto, ouvir a tua conhecida voz e responder? Assim certamente julgava na alma e pensava que estavas por vir

690

Contando os momentos, e não me enganou meu cuidado. Por que terras e por quantos mares levado Eu te recebo!, filho, e por quantos perigos lançado! Quanto temi que em algo te prejudicassem os reinos da Líbia!” E aquele: “A tua, a tua triste imagem, pai,

695

Mais vezes ocorrendo-me me levou a cruzar estas portas; No mar Tirreno estão amarradas as naves. Dá-me a destra para apertar, Dá, pai, e não te subtraias do nosso abraço.” 130

I.e.: para a vida na Terra.

142

Assim lembrando banhava ao mesmo tempo o rosto com largo pranto. Três vezes tentou então colocar os braços em volta do pescoço,

700

Três vezes em vão enlaçada a imagem fugiu das suas mãos, Como os ventos ligeiros e semelhante a um sonho alado131. Enquanto isso Enéias vê num vale apartado Um bosque separado e a ramagem murmurante da floresta E o rio Leteu que banha plácidas moradas.

705

Em torno a este inúmeras pessoas e povos voejavam, E como nos prados quando as abelhas no sereno verão Pousam sobre as flores variadas e se difundem Em torno aos cândidos lírios, todo o campo ressoa com o murmúrio. Ele se assusta com a visão repentina e as causas pergunta

710

O insciente Enéias, que rio é aquele à distância Ou que homens ocuparam as margens em multidão tão grande. Então o pai Anquises132: “As almas, às quais pelo destino Cabe outro corpo, da onda do rio Leteu bebem As águas serenas e um longo oblívio.

715

Já há algum tempo desejo certamente falar destas coisas e mostrar-te Frente a frente, enumerar esta prole dos meus, Para que mais te alegres comigo com a Itália encontrada.” “Ó pai, é preciso talvez pensar que algumas almas vão Daqui para o alto rumo aos céus e de novo retornam para os tardos

720

Corpos? Que desejo tão terrível pela vida há nesses miseráveis?” “Certamente direi, filho, e não te deixarei em suspenso” Retoma Anquises e em ordem cada coisa em particular revela. 131

Como lembra Austin (1988:216) estas linhas são repetidas de En., II, 792ss., onde a sombra de Creusa aparece para Enéias. Além disso, em En., V, 740 e Geo., IV, 499ss. aparecem versos similares. Mas a fonte mais remota desta passagem se encontra na Od., XI, 206ss., onde Ulisses tenta abraçar a sombra de sua mãe e esta lhe foge “como um sonho alado”. 132

Nesse trecho, 713-718, Virgílio nos fala sobre a teoria da metempsicose, de origem órficopitagórica. No verso 680, o poeta já faz alusão a tal teoria. 143

“Em primeiro lugar133 o céu, a terra, os campos líquidos, O reluzente globo da lua e os astros titânicos

725

Um espírito dentro anima e espalhada pelos membros a alma Move toda a massa e com o grande corpo se mistura. Daí a raça dos homens e das bestas e a vida dos pássaros E os monstros que o mar gera sob sua superfície marmórea. Para aquelas sementes há um vigor ígneo e uma origem celeste,

730

O quanto corpos nocivos não retardam e não os enfraquecem As articulações terrenas e os membros destinados a morrer. Daqui temem e desejam, sofrem dores, se alegram e os ares Não reconhecem fechados nas trevas e num escuro cárcere. Pois mesmo quando a vida os deixou com a última luz,

735

Entretanto nem todo o mal nem todas as pestes do corpo Se distanciam completamente dos míseros e é necessário Que muito profundamente plantados cresçam de modo admirável. Portanto estão submetidos às penas e pagam os suplícios Dos antigos males. Algumas suspensas se expõem

740

Aos ventos ligeiros, a outras a infecção do crime Sob o vasto mar é lavada ou com o fogo é queimada. Cada um de nós sofre o seu suplício. Então somos enviados Para o amplo Elísio (e poucos permanecemos nos campos alegres), Até que um longo dia, completo o ciclo do tempo,

745

Expulsa a peste endurecida e deixa puro O etéreo sentido e o fogo do espírito simples. Todas essas quando por mil anos giraram a roda, O deus as chama ao rio Leteu em grande multidão,

133

Nesse trecho, 724-751, de estilo marcadamente lucreciano, Virgílio nos fala, pela boca de Anquises, de um sistema cósmico da origem e do desenvolvimento da alma evidenciando influências do estoicismo (com a teoria da anima mundi), do platonismo e do orfismo-pitagorismo. Cf. Austin, 1988:220-221 e Norden, 1916:16-20. 144

Exatamente para que, sem lembranças, de novo vejam

750

A curva superior e comecem a querer retornar aos corpos.” Dissera Anquises e o filho junto com a Sibila Leva para o meio da multidão e para a turba rumorejante, E chega a uma colina de onde se pudesse observar os que estavam de frente Em longa fila e reconhecer o rosto daqueles que vinham.

755

“Agora vamos, que glória siga a descendência de Dárdano, Que netos estão destinados a surgir da ítala gente, Almas ilustres, e que virão em nosso nome, Explicarei com palavras e te ensinarei teus destinos. Aquele jovem, tu o vês, que se apoia numa lança pura134 ,

760

Por sorte habita os lugares mais próximos da luz, primeiro subirá Aos ares etéreos misturado com sangue ítalo, Sílvio, nome albano, tua póstuma135 prole, Que por ti longevo tarde a esposa Lavínia Educará nos bosques como rei e pai de reis,

765

A partir do qual a nossa raça dominará sobre Alba Longa. Aquele ali perto é Procas, glória da raça troiana, Cápis e Númitor e aquele que te fará reviver pelo nome, Sílvio Enéias, igualmente famoso tanto pela piedade Como pelas armas, se alguma vez receber Alba para reinar.

770

Que jovens! Observa quanta força ostentam E trazem as têmporas sombreadas pelo carvalho cívico136. Estes por ti fundarão Nomento, Gábios e a cidade de Fidene,

134

Pura aqui significa “sem a ponta de ferro”. Como explica Sérvio, 1986:108, sine ferro, “ pois este era o prêmio entre os antigos daquele que então primeiro vencesse na batalha”. 135 136

Póstuma pois Sílvio nascerá depois da morte de seu pai Enéias.

O carvalho civil ao qual Virgílio se refere era a ‘coroa civil’, uma das mais altas condecorações militares, uma coroa de folhas de carvalho concedida a alguém que tinha salvo uma cidade numa batalha. Cf. Austin, 1988:237. 145

Estes sobre os montes as cidadelas colatinas, Pomécia e o Castro de Ínoo137, Bola e Cora.

775

Estes serão então os nomes, agora são terras sem nome. Pois também se somará como companheiro ao avô o Mavórcio 138 Rômulo, que do sangue de Assáraco a mãe Ília139 Dará à luz. Vês como estão paradas em cima de duas cristas, E o próprio pai dos deuses já com a sua honra o assinala?

780

Eis, filho, com os auspícios deste aquela ínclita Roma Igualará o império às terras e almas no Olimpo E sozinha com um muro circundará sete colinas para si Feliz pela prole de varões: como a Berecíntia mãe140 Sobre o carro é levada, cercada de torres, pelas cidades frígias,

785

Alegre pelo parto dos deuses, abraçada a cem netos, Todos habitantes do céu, ocupando as altas moradas. Agora para cá volta os dois olhos, observa esta gente E os teus romanos. Aqui está César e toda a descendência De Iulo, que virá sob o grande eixo do céu.

790

Aqui o varão, aqui está, do qual muitas vezes ouves ser prometido para ti, Augusto César, estirpe do deus, que de novo Os séculos de ouro trará ao Lácio pelos campos comandados Por Saturno certa vez; estenderá o império sobre os Garamantes E sobre os Indianos: jaz a terra além das estrelas,

795

Além dos caminhos do sol e dos anos, onde Atlas que segura o céu Dobra no ombro o eixo cercado de estrelas brilhantes. 137

Cidade de Ínoo: Sérvio, 1986:109, identifica Inuus com o Pã grego.

138

Mavórcio, pois Rômulo era filho de Marte, cujo nome arcaico era Marvors, -tis.

139

Ília, ilíaca ou troiana, pois Rea Sílvia, a mãe de Rômulo, era descendente de Enéias.

140

Berecíntia: a deusa Cibele, honrada especialmente pelos Berecíntios da Frígia.

146

A chegada deste já agora temem pelas respostas dos deuses Tanto os reinos cáspios como as terras meóticas, E se turvam trêmulas as bocas do Nilo de sete caminhos.

800

Mas Alcides não percorreu tantas terras, Embora tenha matado a corça de cascos de ouro ou os bosques de Erimanto Tenha pacificado e tenha terrificado a Lerna com o arco141; Nem Líber, que, vitorioso, dirige os jugos com rédeas Pampíneas142, guiando os tigres desde o alto cume de Nisa143 .

805

E ainda hesitamos em perpetuar com feitos o valor Ou o medo nos impede de habitar na terra ausônia? Mas quem é aquele ao longe reconhecível pelos ramos de oliva Trazendo os objetos sagrados? Reconheço os cabelos e a barba encanecida Do rei romano, o qual a primeira cidade com leis

810

Fundará, desde a pequena Cures e de uma pobre terra Enviado a um grande império. A esse depois sucederá Aquele que interromperá os ócios da pátria, Tulo, E às armas incitará os homens tranqüilos e a agora desabituada Multidão aos triunfos. Próximo a ele segue mais jactante Anco,

815

Agora também já excessivamente alegre com a aceitação popular. Queres ver os reis tarqüínios e a alma soberba Do vingador Bruto e os feixes recuperados? Esse primeiro receberá o poder de cônsul e os machados Cruéis e o pai chamará à morte em defesa da bela

820

Liberdade os filhos que novas guerras agitavam.

141

Referência aos 2o (matar a Hidra de Lerna), 3o (levar a corça de Cerinéia para Micenas) e 4o (capturar o javali de Erimanto) trabalhos de Hércules. Cf. Apollod., Bibl., 2.5.2ss. 142 143

I.e.: feitas de folhas de vinha.

Líbero era um nome romano atribuído a Dioníso e Nisa era uma montanha lendária, muitas vezes localizada na Índia, onde dizia-se que o deus da vinha tinha sido criado por ninfas. Cf. Austin, 1988:247-248. 147

Infeliz, entretanto os pósteros julgarão esses fatos: Vencerá o amor da pátria e o imenso desejo de louvores. Além desses observa lá longe os Décios, os Drusos, Torquato Cruel com o machado e Camilo que restitui as insígnias 144.

825

Aquelas almas depois, as quais tu vês brilhar par a par Nas armas, concordes agora e até quando forem premidas pelas noite, Ai! Quanta guerra entre eles, quanta batalha E destruição causarão, se atingirem a luz da vida, O sogro descendo das colinas alpinas e da cidade

830

De Mônaco, o genro preparado de frente para o Ocidente145! Não, filhos, não acostumeis vossas almas a guerras Tamanhas nem volteis as forças vigorosas contra o seio da pátria; E tu primeiro, tu, perdoa, tu, cuja raça deriva do Olimpo; Lança as armas das mãos, sangue meu!

835

Aquele, tendo derrotado Corinto, guiará vitorioso o coche Sobre o alto Capitólio, famoso pelos Aquivos mortos146. Aquele destruirá Argos e a Micenas de Agamêmnon147 E o próprio Eácida, prole do armipotente Aquiles, Vingados os avôs de Tróia e o templo violado de Minerva.

840

Quem te deixaria calado, grande Catão, ou tu, Cosso? Quem a raça de Graco ou os dois Cipiões, dois raios De guerra, ruína da Líbia, e Fabrício potente com pouco 144

Referências a importantes personagens da história romana que lutaram pela liberdade e pelo poder da cidade eterna. 145 Alusão 146 147

às lutas entre Júlio César (sogro) e Pompeu (genro).

Referência L. Múmio, que saqueou Corinto em 146 a.C.

Alusão à vitória de Paulo Emílio sobre Perseu da Macedônia em Pidna, em 168 a.C. vista por Virgílio como uma vingança. Perseu dizia-se descendente de Pirro, rei do Epiro, o qual dizia ser descendente de Pirro (Neoptólemo), filho de Aquiles. E esse era neto de Éaco, lendário rei de Egina. Por isso o chefe macedônio é chamado de Aeacida pelo poeta. 148

Ou tu, Serrano, que semeias no sulco? Onde cansado me levais, Fábios? Tu és aquele Máximo,

845

Que sozinho contemporizando nos restituíste a república?148 Outros forjarão mais delicadamente estátuas de bronze plenas de vida, Acredito sem dúvida, vivos os vultos tirarão do mármore, Sustentarão melhor as causas e descreverão os movimentos do céu Com o compasso e predirão o surgir dos astros:

850

Tu, romano, lembra-te de governar os povos com o império (estas serão as tuas artes), e de impor o costume da paz, de perdoar quem está submetido e de debelar os soberbos.” Assim o pai Anquises estas coisas a eles, maravilhados, também disse: “Observa como avança insigne pelos ricos espólios

855

Marcelo149 e vitorioso eleva-se sobre todos os homens. Este sustentará, como cavaleiro, o estado romano tumultuado Com uma grande guerra, derrotará os cartagineses e os gauleses rebeldes, E os terceiros espólios capturados elevará ao pai Quirino.” E então Enéias (de fato via avançando juntamente

860

Um jovem esplêndido pela beleza e pelas armas refulgentes, Mas a fronte pouco alegre e inclinados os olhos no rosto): “Quem é, pai, aquele que assim acompanha o homem que avança? Um filho ou algum da grande estirpe dos netos? Que clamor de companheiros em torno! Que valor há nele!

865

Mas uma negra noite em torno à sua cabeça voa com uma sombra funesta.” Então o pai Anquises começou a dizer, com lágrimas nos olhos: “Ó filho, não perguntes sobre o grande luto dos teus.

148 149

Esse verso é uma citação de Ênio, Ann., 370, com leves modificações. Cf. Austin, 1988:260.

Virgílio aqui faz referência a M. Cláudio Marcelo, cônsul em 222 a.C., vitorioso sobre os Ínsubres e conquistador de Siracusa. Cf. Norden, 1916:338ss. 149

Os fados mostrarão esse à terra somente e não permitirão Ir além. Demais potente, deuses do céu, vos pareceria

870

A estirpe romana se estes dons tivessem sido duradouros. Quantos gemidos de varões provocará aquele campo À grande cidade de Marte150 ! Ou que funerais verás, Tiberino151, quando correres ao lado do túmulo recente! Nem nenhum filho de estirpe ilíaca elevará

875

A tamanha altura com a esperança os avôs latinos, nem a terra De Rômulo se jactará tanto algum dia de nenhum filho. Ó piedade, ó fidelidade prisca e destra invicta na guerra! Contra ele armado, impunemente, ninguém se aproximaria, Seja quando marchasse à pé contra o inimigo

880

Seja quando com as esporas incitava os flancos do cavalo espumante: Ó miserando rapaz, se de algum modo rompes os ásperos fados, Tu serás Marcelo. Dai-me lírios com as mãos cheias, Para que eu espalhe flores purpúreas e a alma do neto Com esses dons eu pelo menos cubra e um inútil rito

885

Cumpra.” Assim aqui e ali por toda a região vagueiam Nos amplos campos do ar e todas as coisas examinam. Depois que Anquises conduziu o filho por cada um desses lugares E acendeu-lhe o ânimo com o amor da fama vindoura, Lembra então ao varão as guerras a ser combatidas

890

Em seguida e os povos de Laurento e a cidade de Latino lhe mostra E de que modo fugir e suportar cada fadiga.

150

Nessa passagem o genitivo Mavortis pode se ligar tanto a urbem (significando ‘cidade de Marte’, i. e., Roma, pois esta foi fundada por Rômulo, que era filho de Marte) ou a campus (significando ‘campo de Marte’, lugar onde Marcelo foi enterrado). Optamos pela primeira solução por causa da proximidade em que se encontra Marvortis em relação a ad urbem, o que, no estilo virgiliano, indica a existência de uma ligação sintático-semântica. Ver Sérvio (1986:121) e Norden (1916:342) para interpretações diferentes. 151

Tiberino é o deus-rio que passa por Roma (o atual Tibre).

150

Duas são as portas do Sono; uma das quais, diz-se, É córnea, pela qual fácil saída é dada às sombras verdadeiras, A outra, resplendente, feita de cândido marfim,

895

Mas falsos sonhos ao céu enviam os manes. Com estas palavras então Anquises ali acompanha O filho e junto com a Sibila e pelo porta de marfim os faz sair. Ele abre o caminho rumo às naves e revê os companheiros. Então conduz-se ao longo da praia direita ao porto de Caieta.

900

Lança-se a âncora da proa; sobre o litoral as naves ficam firmes.

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