Distinção entre ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico unilateral: anotações à margem de Pontes de Miranda

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ADRIANO SOARES DA COSTA Advogado. Presidente de honra da IBDPub – Instituição Brasileira de Direito Público. Graduação em Direito pela Universidade Federal de Alagoas.

Palavras-chaves: Negócio jurídico unilateral; ato jurídico stricto sensu; declaração de vontade; teoria do fato jurídico; Pontes de Miranda. Keywords: Unilateral legal transaction; stricto sensu legal act; statement of intent; theory of legal fact; Pontes de Miranda. Trata-se de exposição de um critério mais adequado para distinguir os atos jurídicos sctricto sensu do negócio jurídico, a partir do pensamento de Pontes de Miranda, adotando-se como critérios as espécies de exteriorização da vontade que compõe o núcleo do seu suporte fático. It is exhibition of a more appropriate criterion for distinguishing the sctricto sensu legal act and legal transaction, from the thought of Pontes de Miranda, adopting as criteria kinds of manifestation of will that makes up the core of your factual support.

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Distinção entre ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico unilateral: Breves anotações à margem de Pontes de Miranda

Distinction between stricto sensu legal act and unilateral legal transaction: Brief notes on the margins of Pontes de Miranda.

1. Espécies de fatos jurídicos e o problema do critério para separar os atos jurídicos dos negócios jurídicos.

Os fatos jurídicos devem ser classificados quanto ao seu conteúdo, não quanto aos seus efeitos. A classificação dos efeitos do fato jurídico atende ao que se passa no plano da eficácia, não servindo de critério para categorizar os fatos jurídicos, senão por elipse: fato jurídico cujo efeito é prefigurado total ou apenas parcialmente; fato jurídico cujo efeito é declaratório, condenatório, constitutivo, executivo ou mandamental. Daí o falarse em ato vinculado ou discricionário, ato mandamental ou constitutivo, e assim por diante. Embora aí não se fale em efeitos jurídicos, são eles que estão sendo classificados nessas espécies, como também através de outros critérios que a ciência jurídica deseje eventualmente adotar.

A taxionomia dos fatos jurídicos é feita por Pontes de Miranda levando em conta (a) a sua conformidade (licitude) ou desconformidade (ilicitude) ao direito, e (b) o critério que o identifica e sem o qual ele simplesmente não é, não existe. A existência do fato jurídico depende da incidência da norma jurídica sobre o seu suporte fático concreto, ou seja, sobre o conjunto (unitário ou não) de fatos descritos no antecedente na norma e ocorrido no mundo. De modo que é no suporte fático que se deve buscar os critérios de classificação adequados das espécies de fatos jurídicos, não em meio aos seus efeitos, previstos no prescritor da norma. Pontes de Miranda denomina esses elementos identificadores, e sem os quais fato jurídico não há, de núcleo do suporte fático1.

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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, tomo I, 4ª ed., São Paulo: RT, 1977, p.33, passim.

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A distinção quanto aos elementos nucleares de cada espécie tem utilidade não apenas teórica, sendo um útil critério para a análise do seu tratamento jurídico adequado. Na classificação proposta pelo autor alagoano, os fatos jurídicos lato sensu são divididos em três espécies lícitas: os fatos jurídicos stricto sensu, os atos-fatos jurídicos e os atos jurídicos lato sensu, que se subdividem em ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico (unilateral, bilateral, plurilateral). Dois são os critérios nucleares para a classificação: a existência, ou não, de conduta humana e a existência, ou não, do elemento vontade; existindo ela, a sua forma de expressar-se: manifestação, declaração ou exteriorização (= ato ou omissão) material. Os fatos jurídicos stricto sensu não nos interessam aqui, porque são os fatos e eventos que ingressaram no mundo jurídico sem que a conduta humana fosse relevante para a sua juridicização.

Os atos-fatos jurídicos são as condutas humanas tomadas pela norma jurídica como simples fatos, desconsiderando a existência do elemento volitivo para a sua configuração. Embora condutas humanas, as normas as apanham como puros fatos, em que a vontade é totalmente desprezada para o plano jurídico, ainda que exista no plano fático. São exemplos de atos-fatos jurídicos no direito administrativo: a homologação tácita do tributo pela omissão do Fisco, os sinais e apitos dos agentes de trânsito, o estado de exercer o serviço público que origina a gratificação por tempo de serviço, a viagem que origina o direito a diárias ou indenização, etc. Em todos esses exemplos, que poderiam ser multiplicados, a norma toma o agir do agente público como um fato, sendo irrelevante a sua vontade ou elementos psíquicos internos.

Os atos jurídicos lato sensu são aqueles em que a vontade é elemento nuclear do suporte fático. É dizer, a conduta humana tem relevo para o direito a partir da vontade manifestada. Há duas espécies de atos jurídicos lato sensu: os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos. Trata-se de separação conceitual nem sempre feita adequadamente, nada obstante a sua importância na sistematização dos atos jurídicos, dadas as suas particularidades, sutilezas teóricas e complexidade. Essa categorização, contudo, se a muitos poderia parecer de relativo relevo no direito privado, ganha sobeja magnitude no direito público, sobretudo para o correto tratamento jurídico a ser ministrado aos atos administrativos e aos negócios jurídicos administrativos, cujos princípios e estruturas são bem diversos.

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A separação conceitual entre ato jurídico stricto sensu e negócios jurídico poderia ser menos problemática, não fosse a existência dos chamados negócios jurídicos unilaterais. Sim, porque os atos jurídicos stricto sensu não se bilateralizam, o que poderia ser o elemento definidor de uma e outra espécie. Porém, também o negócio jurídico unilateral é de um lado só quanto à manifestação de vontade, tal qual o ato jurídico stricto sensu. Pontes de Miranda, com a sua capacidade analítica e genialidade, fez estudo caso por caso do ordenamento jurídico, catalogando os atos jurídicos em que a vontade é elemento nuclear e utilizando muitos dos instrumentos teóricos disponíveis na doutrina germânica, de modo a especificar os exemplos de atos jurídicos stricto sensu, classificando-os em reclamativos, comunicativos, enunciativos e mandamentais 2. É uma distinção que leva em conta, segundo o modelo adotado, os tipos daquela espécie de manifestação de vontade que identificariam a differentia specifica dos atos jurídicos stricto sensu em relação ao negócio jurídico, sobretudo unilateral.

Há dificuldades doutrinárias na distinção precisa entre os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos unilaterais. Houve quem entendesse que a diferenciação entre essas espécies fosse determinada pela impossibilidade de escolha da categoria jurídica quando da prática do ato, o que não aconteceria no negócio jurídico. Incidiu nesse erro Marcos Bernardes de Mello3, que pôs o poder de escolha da categoria jurídica como elemento basilar do suporte fático dos negócios jurídicos. Ora, o primeiro equívoco nessa conceituação está em que ela se funda nos efeitos do fato jurídico, não no elemento nuclear do seu suporte fático. Dizer que o ato jurídico stricto sensu tem os seus efeitos dispostos previamente por lei, sem que possa haver mudança promovida pela vontade, é olhar para o plano da eficácia com o fito de conceituar o que se passa no plano da existência4. Há negócios jurídicos, outrossim, em que os efeitos estão integralmente predeterminados, o que elimina a utilidade do critério de distinção. 2

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, t. II, 4ª ed., São Paulo: RT, 1977, p.451. Essa classificação contém equívocos, adiante examinados. 3 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, pp.140-141. 4 A conceituação dos fatos jurídicos pelos efeitos foi, com base em Pontes de Miranda, criticada corretamente por MELLO, Marcos Bernardes. Teoria…, cit., pp.94 ss., que não se forrou, porém, de preservar-se fiel aos pontos de partida teóricos que assumiu, sobretudo em razão da interpretação falha que deu a uma passagem de PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado…, t. II, cit., p.447: “No ato jurídico stricto sensu, a vontade é sem escolha de categoria jurídica, donde certa relação de

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Dada a influência da obra de Marcos Bernardes de Mello, o conceito assim veiculado ganhou adesões irrefletidas de todos os pontesianos, sobretudo aqueles formados na escola alagoana do direito5. Assentaram-se como características determinantes do ato jurídico stricto sensu, que o diferenciaria do negócio jurídico, os seguintes aspectos: (a) os efeitos seriam preestabelecidos, diversamente da autonomia de vontade presente nos negócios jurídicos para determinar com liberdade os seus efeitos; (b) teria o ato nãonegocial efeitos ex lege, diferentemente dos efeitos ex voluntate dos negócios; e (c) os efeitos seriam inalteráveis por vontade das partes, quando nos negócios as partes escolheriam a categoria jurídica e a estruturação do seu conteúdo 6.

Observe-se que os elementos usados nesses casos para a categorização do ato jurídico stricto sensu, com escopo de distá-lo do negócio jurídico, são quanto aos efeitos, é dizer, no plano da eficácia, nada obstante os exemplos práticos mostrem que há efeitos predeterminados em ambas espécies, consoante já o dissemos. Não é a maior ou menor possibilidade de definir os seus efeitos que serve à classificação dos atos jurídicos lato sensu, porém o elemento nuclear completante do seu suporte fático: a vontade. E isso fica evidente quando se observam os exemplos de negócio jurídico unilateral amiúde citados pelos pontesianos. Pense-se na derrelicção, acomodada como espécie de negócio jurídico unilateral por Pontes de Miranda, com o endosso de Marcos Bernardes de Mello 7. Se bem observarmos, trata-se de negócio jurídico unilateral realizado por manifestação de vontade (nada se declara), cujos efeitos estão integralmente predeterminados pelo ordenamento jurídico (atualmente, § 2º do art.1.276 do CC-002).

antecedente a consequente, em vez de relação de escolha a escolhido”. Ocorre que Pontes de Miranda expunha aí as concepções ao seu sentir equivocadas sobre a conceituação dessa espécie jurídica, embora com uma redação em que o verbo foi conjugado no presente do indicativo, o que gerou a confusão teórica e empanou a apreensão daquilo que realmente estava sustentando. 5 Cito como exemplo de autores pontesianos com raízes em Alagoas: LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: parte geral, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, pp.220-223; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de direito civil, tomo I, Salvador: JusPodivm, 2015, pp.371-372; e EHRHARDT JR., Marcos. Direito civil, vol. I, Salvador: JusPodivm, 2009, pp.394-398. Os autores, professores qualificados e alunos - como eu de Marcos Bernardes de Mello, citam praticamente os mesmos exemplos e cometem o mesmo deslize. Também eu, noutro contexto, perlustrei a mesma trilha: COSTA, Adriano Soares da, Instituições de direito eleitoral, 9ª ed., Belo Horizonte: Fórum, 2013, p.96, na nota 79. 6 EHRHARDT JR., Marcos. Direito…, cit., p.397. Outrossim, LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito…, cit., p.224. 7 MELLO, Marcos Bernardes. Teoria…, cit., p.178.

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Fôssemos adotar o conceito exposto por Marcos Bernardes de Mello, teríamos que colocar a derrelicção entre os atos jurídicos stricto sensu, dada a predeterminabilidade dos seus efeitos integralmente pela norma jurídica. De onde se vê a inadequação da classificação dos atos jurídicos por seus efeitos, que termina por causar confusões vitandas decorrentes da utilização de elementos heterogêneos de discrímen8.

De outra banda, os atos mandamentais, citados por Pontes de Miranda e reproduzidos por Marcos Bernardes de Mello, não possuem prefiguração de efeitos em todos os casos, sobretudo no direito público. Usando o conceito de Marcos Bernardes de Mello para a definição dos atos jurídicos stricto sensu - que não é o mesmo de Pontes de Miranda! -, haveriam de ser eles classificados como atos negociais, como muitos, de fato, o são. Aliás, diga-se que os exemplos de atos mandamentais citados por Pontes de Miranda no direito privado nada têm de mandamentalidade, cujo conceito é enchido também pelo imperium de quem o pratica, cuja ausência é evidente na manifestação do proprietário para exigir que o dono do prédio vizinho proceda à sua demolição ou reparação (art.555, CC-16). Exigir não é mandar, mas apenas pedir, exortar, conclamar. Nada há aí de mandamento, porque falta investidura em posição de mando por parte do vizinho9. Se o vizinho dissesse imperativamente "ordeno que pare a obra!", o poder de mando não viria de norma jurídica, sendo poder de fato, talvez podendo descambar para o exercício ilícito das próprias razões.

A existência de negócios jurídicos unilaterais em que os seus efeitos, totais ou parciais, estão prefigurados pelo ordenamento jurídico, deixa manifesto o erro em se adotar a liberdade de escolha da categoria jurídica como adequado critério de discrímen 10. Basta olhar com atenção o que se passa no ordenamento jurídico e veremos que o negócio jurídico unilateral da derrelicção tem efeitos definidos integralmente em lei, enquanto o

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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, tomo III, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p.150: “No conceito de negócio jurídico unilateral, não se alude à eficácia; alude-se à composição”. 9 MELLO, Marcos Bernardes. Teoria…, cit., p.141. 10 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, Tomo III, Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, p.140: “O sistema jurídico concebe os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos unilaterais como de eficácia prefixada, consistente, definida; daí ser menor a auto-regrabilidade pelo figurante”. E adiante: “O ato jurídico unilateral deve ter eficácia definida; por isso mesmo, de regra não permite condição ou termo”.

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negócio jurídico unilateral de oferta deixa margem em branco para ser preenchida pelo sujeito emitente da vontade.

2. O elemento cerne completante dos atos jurídicos lato sensu: a manifestação de vontade. As suas espécies e a adequada fundamentação do discrímen entre atos e negócios jurídicos.

Não sendo a prefiguração dos efeitos ou a impossibilidade de escolha de categoria jurídica os critérios adequados para separar as espécies de atos jurídicos lato sensu, resta saber se (a) existiria realmente essa distinção e (b) havendo as duas categorias, qual seria o critério de distinção. A diferença existe, é necessária e avulta em importância no direito público. Convém, de conseguinte, explicitar em que ela consiste.

A diferença fundamental entre essas espécies está em que os atos jurídicos stricto sensu não declaram vontade decisória, apenas manifestam ou declaram vontade assertórica. É dizer, trata-se de declaração de vontade em sentido débil. Mesmo quando declaram vontade, de conseguinte, o seu conteúdo não é decisório, mas emissão de enunciado assertórico. A vontade aí está em afirmar, dizer, clamar, proclamar, exortar, avisar, pedir, etc., sendo enunciada através de comunicação de vontade, comunicação de fato (inclusive de sentimento) e enunciação assertórica sobre fato (declaração em sentido débil, indicativa). Já o negócio jurídico unilateral, diferentemente, tem na vontade decisória ou dispositiva o seu elemento nuclear, seja por meio de declaração de vontade forte, é dizer, em que o declarar é um fazer, ex-pondo, pondo para fora claramente o que há de determinativo no animus ou, nalguns casos, através de exteriorização material de vontade decisória ou dispositiva. Grassou a confusão entre os pontesianos no trato da manifestação e declaração de vontade. Ou bem as trataríamos como duas espécies autônomas ou bem teríamos o gênero manifestação de vontade, de que declaração de vontade e manifestação stricto sensu de vontade seriam espécies11. Para não turbarmos o uso dos signos já correntes, tomamos a manifestação de vontade como gênero de três espécies: (a) declaração de

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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado…, t.I, cit., p.81.

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vontade, (b) manifestação adeclarativa de vontade - é dizer, manifestação de conhecimento, manifestação de vontade e enunciação assertórica de fato (declaração débil, não-decisória, indicativa) -, e (c) exteriorização material de vontade. Foi por não perceberem no ordenamento jurídico os meios diferentes pelos quais os atos volitivos ingressam nos suportes fáticos, que muito se embaralhou a exposição precisa e científica da teoria do fato jurídico.

Sempre que falarmos em declaração de vontade, simplesmente, é sobre a declaração forte, com força ilocucionária decisória que estaremos falando.

Manifesta-se vontade formalmente, declarando-a. É assim nos mais importantes negócios jurídicos bilaterais, de que são espécies os acordos, convênios e, sobretudo, os contratos. Manifesta-se vontade, também, sem declará-la, através de proposições com conteúdo volitivo diverso, como a comunicação de vontade, a comunicação de conhecimento (ou sentimento) e a enunciação assertórica sobre fato. Finalmente, manifesta-se

vontade

adeclarativa

mediante

a

sua

exteriorização

material

ilocucionariamente decisória ou dispositiva. São distinções negligenciadas, porém fundamentais para classificar os atos jurídicos lato sensu12. Graficamente:

comunicação de vontade manifestação adeclarativa 

comunicação de conhecimento enunciação assertórica de fato

Exteriorização de vontade 

declaração de vontade exteriorização material

Quando fazemos o distinguish entre enunciação assertórica (declaração débil) e declaração decisória ou dispositiva, estamos chamando a atenção de que os mesmos atos de fala podem ter conotação diferente conforme o efeito ilocucionário desejado pelo actante, é dizer, o seu emissor. Uma mesma expressão pode servir, a depender da entonação da voz, por exemplo, para ordenar, perguntar ou pedir. Essa força específica 12

Essa exposição dá racionalidade à classificação das formas de exteriorização da vontade e corrige a exposição de Pontes de Miranda, sempre usando a sua própria inspiração.

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do ato de fala é o que se chama de efeito ilocucionário, é dizer, o modo como estamos usando as palavras13. Para que se saiba qual a força ilocucionária do ato de fala devese observar as convenções do uso da linguagem 14. Desse modo, podemos manifestar enunciando que algo no mundo ocorreu (asserir, registrar) ou podemos declarar uma tomada de posição sobre algo consoante normas (decidir, dispor). É o contexto e o uso da linguagem que dirão do efeito ilocucionário da exteriorização da vontade como declarativa ou enunciativa (declaratividade débil). Um outro aspecto que deve ser sublinhado é a diferença entre a vontade como conteúdo do querer e a vontade em declarar aquela, que nem sempre obtém adequada coextensividade com a vontade declarada. Assim, devemos estar atentos, no estudo da teoria da vontade, útil à Ciência do Direito, às três espécies: i) vontade-objeto ou vontade-conteúdo; ii) vontade de declarar a vontade-objeto; e iii) vontade declarada25. A vontade de declarar a vontade-objeto (rectius, vontade negocial) é manifestada, notem bem, pela vontade declarada. A vontade declarada é proposição que busca enunciar a vontade-objeto, que é a que se tem, e cuja força ilocucionária é decisória. Ao veicular enunciado expositivo da vontade-objeto, declara aquela e manifesta a vontade em declará-la. Há sutileza de monta, é certo, mas em assuntos de elevada complexidade são elas, as sutilezas, que contam na sua perfeita compreensão. Como adverte Pontes de Miranda, o erro quanto à vontade em declarar atinge o negócio jurídico, porque se não quis declarar; não assim o erro quanto à vontade declarada, é dizer, em caso de alegação de discordância entre o que se quis (vontade-objeto) e o que se enunciou querer (vontade declarada)26. No estudo das consequências do erro do ato administrativo, no direito público, a distinção é de imensa utilidade. Os negócios jurídicos unilaterais, asseveramos, não se confundem com os atos jurídicos stricto sensu. Nos atos jurídicos stricto sensu há manifestação de vontade (ou seja, todas as suas espécies menos declaração de vontade dispositiva e exteriorização material de vontade), sem que haja possibilidade de bilateralização da relação jurídica, dada a sua 13

AUSTIN, J. L. How to do things with words, Londres: Oxford, 1969, p.99. AUSTIN, J. L. How to do…, cit., p.106. Os atos locucionários são observados pelo seu significado, os ilocucionários, pelos sua força ao dizer algo, e os perlocucionários, pelos seus efeitos perante terceiros ao dizer algo (p.120). 14

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própria natureza. De outra banda, nos negócios jurídicos unilaterais há comumente declaração de vontade ou, por vezes, exteriorização material (manifestação) de vontade dispositiva, de um figurante da relação jurídica, dirigida a sujeitos determinados ou determináveis, sendo, porém, vinculativa para quem a editou ou manifestou.

Note-se que há bilateralidade dos efeitos jurídicos em todo negócio jurídico, ainda que sejam eles mínimos, como a vinculabilidade da vontade manifestada. Sendo, porém, unilateral o negócio jurídico, apenas pode alcançar a esfera jurídica alheia se for em benefício dela. A esse aspecto importantíssimo, Pontes de Miranda chamou de princípio de incolumidade das esferas jurídicas 15.

Nos negócios jurídicos unilaterais ou se declara vontade - no que há muito de decisão, de disposição - ou se exterioriza materialmente vontade dispositiva, conduta adeclarativa tomada também com essa mesma força ilocucionária. A derrelicção prevista no § 2º do art.1.276 do CC-002, por exemplo, é manifestação de vontade exercida por exteriorização material de vontade, ou seja, por conduta em que a norma jurídica a apanha em seu efeito ilocucionário decisório ou dispositivo: o agir é tomado linguisticamente como um ato de disposição. Não há dúvidas que essa força ilocucionária da conduta, ao expressar vontade dispositiva de excluir do patrimônio o imóvel urbano de sua propriedade, se houver o seu abandono por mais de três anos, contados do não pagamento dos ônus fiscais, é legalmente presumida.

O negócio jurídico unilateral da derrelicção, de outra banda, integra o suporte fático do negócio jurídico unilateral de arrecadação municipal do imóvel abandonado, que tem como elemento nuclear uma declaração de vontade. Os efeitos da derrelicção são predeterminados pelo ordenamento jurídico, como mostramos, nada obstante seja ela negócio jurídico.

É no conteúdo do ato jurídico lato sensu em que se deve buscar o elemento nuclear, fundamental para a sua classificação. O núcleo do ato jurídico stricto sensu é a

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PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado…, t.III, cit., p.137.

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manifestação de vontade adeclarativa 16; o núcleo do negócio jurídico é sempre declaração de vontade ou exteriorização material de vontade. No ato jurídico stricto sensu, a vontade é manifestada para a comunicação de conhecimento, a comunicação de vontade ou a enunciação assertórica sobre algo no mundo (evento, estado, situação, etc.). No negócio jurídico, há vontade conteudística - ainda que predeterminada -, seja por meio de declaração ou seja por meio de exteriorização material de vontade (conduta decisória ou dispositiva).

Tudo quanto aqui se disse pode ser resumido em três proposições: (a) o ato jurídico stricto sensu não contém nunca declaração de vontade, ao contrário do negócio jurídico. Difere do ato-fato jurídico porque, nele, o suporte fática despreza o elemento vontade e toma o ato como fosse um mero fato; (b) a manifestação de vontade do ato jurídico stricto sensu é adeclarativa, salvo quando assertórica de fatos (sem conteúdo dispositivo), podendo ser: comunicação de vontade, comunicação de fato (inclusive de sentimento) e enunciação assertórica de fato; e (c) o negócios jurídico unilateral é declaração de vontade ou, nalguns casos, exteriorização material de vontade (manifestação adeclarativa de vontade decisória ou dispositiva).

No direito público, por exemplo, a nomeação do aprovado em concurso público para ingressar no serviço público é ato decisório constitutivo de nova situação jurídica, em que a pessoa passa à condição de servidor público. Declara-se vontade em constituir o vínculo; trata-se, então, de negócio administrativo unilateral receptício, em que o concursado aprovado e classificado passa a ter o gozo de nova situação jurídica

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Pontes de Miranda não raro menciona que os atos jurídicos stricto sensu conteriam, também, declaração de vontade (não-negocial, dirá; ou seja, sem o intuito de criação de negócio jurídico). Ensinava ele: "há atos jurídicos stricto sensu em cujo suporte fático não basta que a vontade, o conhecimento, ou o sentimento seja manifestado, - é preciso que seja declarado." (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado..., t. I, cit., p.85, passim). Está certo, porém faltou a Pontes de Miranda precisar que a "declaração" a que se refere no ato jurídico stricto sensu é o que denominei enunciação assertórica em que não há dispositividade, decisoriedade, de vez que é esse aspecto ilocucionário que a difere da declaração presente no ato jurídico negocial. Noutras palavras: na declaração (rectius, enunciação) presente no ato jurídico não-negocial não há declaração-objeto, mas apenas a vontade em declarar que algo se deu, ou se dá, ou se dará, para que os efeitos predeterminados pelo ordenamento jurídico dimanem do ato jurídico não-negocial. Há, pois, vontade em declarar (no sentido de enunciar, asserir) que algo no mundo se deu e, mediante a emissão do ato jurídico, para nascerem os efeitos previstos na norma jurídica. Só no sentido larguíssimo que Pontes de Miranda deu ao signo "declaração de vontade" (idem, p.84) é que se poderia falar, como ele falou, em declaração de vontade no suporte fático do ato jurídico stricto sensu, ou seja, a declaração débil de vontade.

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vantajosa, dependendo da posse17. Nos editais de licitação, outrossim, há cláusulas declarações de vontade - predeterminadas que devem neles constar obrigatoriamente; sem embargo, há também declarações de vontade estipuladas unilateralmente pela administração pública, sem prévia predeterminação legal, que a vinculam perante os terceiros cujas esferas jurídicas são alcançadas pela sua causa. Tratam-se, de conseguinte, de negócios administrativos unilaterais.

A união estável é negócio jurídico bilateral, cuja formalidade não é exigida, nada obstante possa ocorrer. Marcos Bernardes de Mello, partindo do critério da possibilidade, ou não, de escolha da categoria jurídica pelo sujeito de direito, entendeu que seria ato jurídico sctricto sensu a exteriorização de vontade de viver em comunhão, complementada com a efetiva ocorrência do estado de fato materializado na convivência pública, contínua e permanente entre companheiros em lapso de tempo razoável, sem que se dissesse para quem seria a vontade manifestada 18. Sem razão, parece-nos. A união estável é bilateral em sua formação e em seus efeitos, não podendo, já pela estrutura da relação jurídica básica, forma formada por sujeitos de direito em politopia, ser catalogada como ato jurídico sctricto sensu. Na estrutura do suporte fático da união estável há o elemento cerne completante da exteriorização material de vontade decisória; o ordenamento jurídico toma presuntivamente a "convivência pública, contínua e permanente por razoável lapso temporal" como manifestação de vontade dispositiva, portanto negocial. Diga-se mais: negócio jurídico bilateral. Não há exteriorização de vontade mais fato materializado, como fossem dois elementos distintos somados; o fato exteriorizado é que faz presumir a vontade decisória, manifestando-a. Embrincam-se o fato e a vontade que por meio dele se manifesta. O fazer toma-se por um decidir, ainda que presuntivamente; é dizer, mesmo contra a vontade anímica, real, de um dos companheiros. Se houver contrato

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Com razão, ZANOBINI, Guido. Corso de diritto amministrativo: principi generali, tomo I, 7ª ed., Milão: Giuffrè, 1954, p.262, que o ato de nomeação como negócio de direito público unilateral. 18 MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 16ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p.167.

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sobre a disposição dos bens e da vida em comum, é negócio jurídico bilateral que tem em seu suporte fático o negócio jurídico prévio da união estável 19.

Os atos normativos são sempre negócios jurídicos unilaterais, prescrevendo conduta obrigatória, permitida ou proibida. Não há na mandamentalidade dos atos normativos a natureza sancionatória, o que – acaso houvesse - poderia mudar a sua natureza para atos de preceitação, é dizer, cominatórios (mandamentalidade + condenatoriedade futura), o que os faria unilaterais, porém com invasão da esfera jurídica alheia, de modo que a sua ocorrência é própria do direito público. O fundamental para que se aplique corretamente a classificação dos fatos jurídicos é a atenção à decisoriedade que se contém nos negócios jurídicos, ainda quando sejam decorrentes de manifestação de vontade (declaração de vontade débil ou assertórica). Por isso, as ordens se inserem na categoria dos negócios jurídicos unilaterais 20.

Os atos jurídicos de direito público se submetem integralmente à classifica pontesiana do fato jurídico, não havendo quanto a eles tratamento diferente, salvo quanto ao vetor da vontade, que é sempre mediatamente, no mínimo, tendendo à realização de um interesse público primário. Porém, note-se, a finalidade do ato administrativo é elemento complementar do suporte fático, não fazendo parte dos elementos nucleares. A sua ausência gera invalidade (por desvio de poder, e.g.), não a sua inexistência21. 19

Catalogar a união estável como ato jurídico stricto sensu traz um outro grave equívoco embutido: há aí duas esferas jurídicas que se unem em um mesmo regime jurídico, em relação de ida-e-vinda, dita conversa ou irreflexiva. Não estão os sujeitos que formam a união estável na mesma posição; não se trata de monotopia ou uniposicionalidade. A relação é politópica, pluriposicional, havendo direitos e deveres recíprocos, com maior ou menor margem de disposição, acaso queiram os companheiros formalizar o regime de vida em comum, disciplinado-o dentro dos marcos legais. O negócio jurídico da união estável já nasce bilateral em sua formação, cuja formalidade não é da sua natureza. O que há de diferente em relação ao casamento é que neste a declaração de vontade livre e formal é da sua natureza; há a essencial necessidade de declaração de vontade formalizada, pouco importando o tempo de convívio comum. O casamento é instituição jurídica; a união estável, fato da vida tutelado pelo direito, que juridiciza o tempo de convívio do casal com determinadas características, tomando-o como manifestação de vontade com disposição de constituição de relação jurídica básica predeterminada pelo ordenamento jurídico. Por isso mesmo, em erro mais grave incide quem classifica a união estável como ato-fato jurídico, com olhos fitos na possibilidade de um dos companheiros não querer psicologicamente a juridicização da união estável. Mas a vontade que importa para a classificação dos fatos jurídicos é aquela tomada ou atribuída, ainda que presuntivamente, pelo ordenamento jurídico. 20 FLEINER, Fritz. Instituciones de derecho administrativo, tradução para o espanhol de Sabino A. Gedin, Buenos Aires: Editorial Labor, 1933, p.154: “La orden como negocio jurídico unilateral que es, no necesita la aceptación del ciudadano a quien se dirige”. 21 MELLO, Marcos Bernardes. Teoria…, cit., p.134-137, abriu mão da teoria do fato jurídico pontesiana e se deixou turbar pelos erros dos administrativistas brasileiros, mais ligados à doutrina francesa, que não

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3. Conclusão.

Apresentamos um esboço da correta classificação dos atos jurídicos lato sensu, expondo aspectos fundamentais que não foram levados na devida conta quando da sua exposição pelos pontesianos. A obra de Pontes de Miranda é extremamente rica, malgrado seja por demais complexa, exigindo dos estudiosos uma atenção redobrada sobre pontos do seu pensamento expostos aqui e ali, nem sempre com a preocupação didática, sobretudo devido a quantidade impressionante de livros escritos, todos com rigor teórico e científico, nas mais diversas áreas jurídicas.

Marcos Bernardes de Mello prestou um enorme serviço ao direito brasileiro ao “traduzir” em linguagem mais simples, organizada didaticamente, a obra de Pontes de Miranda, tendo sido o seu maior divulgador, ao lado do saudoso Ovídio Baptista da Silva. Mais de uma geração de alagoanos foi positivamente induzida ao estudo do pensamento pontesiano pelas suas aulas e pelos seus livros, a tal ponto que não raro se dizia que, em Alagoas, não se estudava direito, mas Pontes de Miranda. Embora exagerada, não deixa de haver uma certa verdade no gracejo.

Mas é preciso dizer que Pontes de Miranda está presente com muita força na Faculdade de Direito do Recife, bem como entre os processualistas de maior plana, que seguiram as lições de Ovídio Baptista da Silva, que soube como poucos ir além de Pontes de Miranda sem sair de Pontes de Miranda. É isso que aqui nos propomos também: usar as intuições fantásticas e ricas espargidas na vasta obra pontesiana e usá-las em proveito do aprofundamento de aspectos que necessitam maior estudo e correções de naturais equívocos presentes em qualquer obra científica, que são feitos, no mais da vez, usando as próprias argumentações de Pontes de Miranda para delas sacar novos aspectos não explorados. Foi o que pretendemos fazer aqui.

alcançaram esse nível de exposição a que chegaram os alemães e italianos, cujo ápice, porém, foi alcançado na doutrina de Pontes de Miranda. Falar em atos administrativos, atos da administração, contratos administrativos e contratos da administração, foi galicismo jurídico exacerbado, que deve ser repelido.

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BIBLIOGRAFIA:

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