Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade (Dissertação, 2015)

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

DISTINÇÕES DO DESENVOLVIMENTO SEXUAL: Percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade

Barbara Gomes Pires

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

Distinções do Desenvolvimento Sexual: Percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade

Barbara Gomes Pires

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.

Orientadora: María Elvira Díaz-Benítez

Rio de Janeiro Fevereiro de 2015

Distinções do Desenvolvimento Sexual: Percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade

Barbara Gomes Pires Orientadora: María Elvira Díaz-Benítez

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social. Aprovada em Banca Examinadora:

______________________________________________ Prof.ª Dr.ª María Elvira Díaz-Benítez (Presidente) PPGAS/MN/UFRJ ______________________________________________ Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte PPGAS/MN/UFRJ ______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Maria Fátima Lima UFRJ-Macaé ______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Paula Sandrine Machado PPGAS/UFRGS ______________________________________________ Prof.ª Dr.ª Adriana de Resende Barreto Vianna (Suplente) PPGAS/MN/UFRJ ______________________________________________ Prof. Dr. Sérgio Luis Carrara (Suplente) IMS/UERJ

CIP - Catalogação na Publicação

P667d

Pires, Barbara Distinções do Desenvolvimento Sexual: percursos científicos e atravessamentos políticos em casos de intersexualidade / Barbara Pires. -- Rio de Janeiro, 2015. 136 f. Orientadora: María Elvira Díaz-Benítez. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, 2015. 1. Intersexualidade. 2. Humanidade. 3. Biomedicalização. 4. Gerenciamento Sociomédico. 5. Veridicção. I. Díaz-Benítez, María Elvira, orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Às crianças e jovens intersexuais. Às vidas que transbordam.

AGRADECIMENTOS

Agradeço, antes de tudo, à minha mãe. A pessoa mais esforçada e mais teimosa que conheço, só espero ter sempre um pouco da sua coragem para superação, não importando o tamanho das adversidades. Obrigada por se dedicar tanto e por nunca duvidar da gente, espero retribuir com a mesma potência todo esse cuidado. Do mesmo modo agradeço ao meu irmão Vinicius. Por ser o meu oposto, o meu sol. Agradeço então, primeiramente, ao meu núcleo duro, sofrido e amado. Com vocês dois eu supero tudo. Também agradeço ao meu pai. Porque pessoas mudam até o ponto de não nos reconhecermos mais, e os laços se desfazem, mas eu não seria o que sou sem você. De antíteses nos formamos. E mesmo sendo essa aquariana avoada que some e só se faz presente durante poucas vezes no ano, agradeço aos Gomes por serem “minha família”. As visões e vidas tão diferentes não impedem que nos amemos e nos apoiemos incondicionalmente. Por isso agradeço a minha vozinha Zenith, o porto seguro de todos. Agradeço também ao meu vô Hilário. Minhas tias queridas, Leinha, Nem e Lene. Aos tios Beto, Fernando, Gilson, Gegê, Maca, Paulinho e Van. Meus primos e primas: Douglas, Thiago, Bruno, Carol, Weslley, Matheus e Lorena. Aos nossos Natais, espaços de reencontros, farturas, verão, risadas soltas e, principalmente, de acolhimento desde minha infância. Agradeço também à Joana, minha avó paterna, que me confortou com carinhos e alegrias desde que eu me recordo, e em meios a tantos conflitos sempre nos auxiliou com atenções e cuidados fundamentais para que seguíssemos em frente. Saudades, vó. E deslocando para além da família consanguínea, antes de me imaginar antropóloga, eu só precisava sobreviver à adolescência e às angústias que se seguem quando você tem tempo demais para se descobrir. Foram momentos de experimentações, ciladas e aprendizados, e sem a troca e a companhia de amigos nada seria possível. Por isso agradeço aos amigos da época do ensino médio que estão presentes até hoje, especialmente Érica Sarmet, Isabelle Weber, Mikhaila Copello e Ricardo Wanderley. Agradeço também à Nathalia Gonçales, porque entre os nossos acertos e tropeços juvenis, compartilhou comigo mais do que eu poderia esperar de um “coming-of-age story”. Durante a graduação, nas salas e escadarias do IFCS, pelos bares do Centro da cidade, pelas choppadas, por sebos, a quilos, cadernos, livros e papeis de xerox, fui descobrindo o mundo. Agradeço aos professores e aos amigos da UFRJ pelo convívio e pelo crescimento.

Agradeço muito mais aos meus amigos de estudos, de trabalhos e de uma vida toda, obrigada Michel Carvalho, Tamara Lajtman e Tássia Mendonça. E mais detalhadamente porque vocês merecem: Tássia, obrigada pelo “nosso jeitinho” tão distinto, mas tangenciável, pelo escracho, pela genialidade e pelos reencontros. Tamara, obrigada pelos regalos, pela política latina, pelos passeios barrenses e churrascos, por nos aproximarmos de fato quando parecia que já nos conhecíamos antes. Michelito, obrigada por ser meu par, minha alma gêmea da terceira idade, porque pode não se dar conta, mas é meu melhor amigo. Eu só tenho a agradecer por me mostrarem a vida além de mim, do meu lugar comum, da minha experiência, do meu edital. Por bons drinks, picnics e fechações, pela honestidade de contar e recontar crises existenciais, pelas dicas e alteridades, quero vocês sempre perto. Agradeço também à Magda Lajtman, mãe de Tamara, pois sem ela e seus contatos essa etnografia não existiria. Muito obrigada pela memória e pela gentileza. Em outro nível, agradeço às experiências de trabalho que me proporcionaram um vínculo comunitário, e porque não também etnográfico, importante para começar a aprender as dinâmicas de investigação e de pesquisa. Assim, agradeço ao ISER e às pessoas com que tive o prazer de trabalhar por lá, Ana Paula, André, Ben, Carlos, Cuíca, Helena, Lilian, Maija, Paulo Victor, Pedro, Raíza, Raphael, Suellen. Agradeço também ao Instituto Promundo, especialmente ao Marco Aurélio Martins, por toda a oportunidade e força. No Museu Nacional, agradeço aos amigos de mestrado por amenizarem o impacto dessa nova fase do “videogame”. Sem salvar, sem novas vidas, com quilos de leituras e demandas novas, mas com muito acolhimento e felicidade coletiva. Agradeço pela ajuda mútua e pelas trocas não se limitarem ao entorno do chafariz do pátio. Um obrigada especial aos queridos Aline Rabelo, Everton Rangel, Lucas Freire, Morena Freitas e Vlad Schüller. Os meninos, principalmente, pela companhia nas viadagens e/ou pela nerdice. Por também me auxiliarem demais com comentários, revisões e apoios. Estou com vocês em 2015 e para frente: vambora fazendo. Ainda no Museu Nacional, agradeço também às diversas experiências de aulas, todas transformadoras, com as professoras Adriana Vianna, Giralda Seyferth e Renata de Castro Menezes, e os professores Luiz Fernando Dias Duarte, Marcio Goldman e Eduardo Viveiros de Castro. Da mesma forma, agradeço aos técnicos administrativos da secretaria do PPGAS, especialmente à Drica e ao Bernardo, e aos funcionários da biblioteca Francisca Keller, obrigada pelos pequenos auxílios burocráticos que, no fim do dia, fazem toda diferença.

Agradeço também à gentileza dos professores que aceitaram fazer parte da banca desta dissertação, Luiz Fernando Dias Duarte, Fátima Lima e Paula Sandrine Machado. E aos professores Adriana Vianna e Sérgio Carrara, por se disponibilizarem para serem suplentes. Agradeço à María Elvira Díaz-Benítez pela orientação paciente e persistente, sempre atenta às dinâmicas da escrita, organizações e prazos. E, principalmente, por me ajudar a “segurar forninhos” com encontros e conversas sempre instigantes, que me proporcionaram muitos caminhos fundamentais de análise. Agradeço também por formar o NuSEX, núcleo de pesquisa de tantas apresentações incríveis e trocas importantes, que mobilizou meu ano de 2014, não deixando-o tão pesado com as minúcias da pesquisa e da escrita. E sem a presença crucial de dois seres no meu dia a dia, teria terminado esta dissertação muito mais cansada e muito menos sã. Por isso agradeço ao meu gatinho Milo, minha bola de pelo ranzinza e carinhosa, companhia mais que essencial durante a escrita e a vida em geral. E à Carina, porque podemos encontrar alguém que importa nos lugares mais improváveis. Obrigada por estar comigo em meio às minhas inseguranças e loucuras. Por mostrar que podemos amar profundamente de forma leve, sem pesos e desigualdades. Por não desistir quando as diferenças são grandes, por ser a mais humilde, por quebrar minha casca. Por compartilhar comigo a vida, as descobertas, as brincadeiras idiotas, os dramas familiares, a nossa cama. Mesmo sem nomear, não poderia deixar de agradecer às três instituições hospitalares onde realizei a etnografia, bem como seus profissionais de saúde. Sem a abertura e disposição desses médicos e especialistas para que pudesse acompanhar seus cotidianos de trabalho, outra análise muito menos pungente teria que ser descrita nessas próximas páginas. De modo que agradeço à receptividade, à compreensão com o meu tema e aos atendimentos – pois mesmo que cheio de controvérsias e críticas, no que tange ao tema da intersexualidade, não há questionamento em relação ao peso que esses profissionais investem em suas práticas médicas. Acreditam nesses atendimentos, nessas verdades, de tal forma que dão tudo de si. Por isso agradeço por se mostrarem tão inteiros. No fim, nenhum agradecimento é suficientemente forte para expressar minha gratidão com as crianças e jovens intersexuais, e suas famílias, atendidas nos hospitais que acompanhei. Agradeço por narrarem suas vidas para mim, de maneira direta ou indiretamente, e compartilharem seus dramas sociais e biomédicos de não conformidades, incertezas e angústias corporais. Tentei da melhor forma que pude relatar suas histórias. Histórias das verdades que atravessam a necessidade de ter um corpo sexuado, as mobilizações para ser alguém, os

caminhos reconhecidos como possíveis para se humanizar. Obrigada por iluminarem com suas experiências algumas dessas controversas negociações. Por último, agradeço à CAPES por financiar minha bolsa de mestrado, que permitiu minha dedicação integral aos estudos e à esta pesquisa.

RESUMO

PIRES, Barbara 2015.

Distinções

do

Desenvolvimento

Sexual:

percursos

científicos

e

atravessamentos políticos em casos de intersexualidade. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Esta dissertação consiste em análises de gerenciamentos sociomédicos de alguns casos de intersexualidade, ou nos controversos termos biomédicos atuais, de pessoas com “distúrbios do desenvolvimento sexual”. Os dados descritos são frutos de um trabalho de campo realizado em três hospitais da cidade do Rio de Janeiro. Entre geneticistas, pediatras, endocrinologistas pediátricos, cirurgiões urologistas, psicólogas e assistentes sociais, circulando por três ambulatórios e enfermarias distintas, acompanhei atendimentos de recém nascidos, crianças e jovens intersexuais. As regulações desses corpos tidos como ambíguos serão analisadas tanto genealogicamente quanto criticamente em suas atuações clínicas contemporâneas. Busco também relacionar tais práticas normalizadoras com a constituição de saberes sobre o sexo, o gênero e a sexualidade. Como os guidelines científicos cada vez mais moleculares e descritivos atualizam as práticas médicas? E como as incorporações desses protocolos são vivenciadas cotidianamente pelos profissionais de saúde, pelos movimentos políticos intersexuais, pelas famílias e pelas crianças e jovens intersexuais? De modo complementar, um fio condutor atravessa esses gerenciamentos em que discursos biomédicos a favor de um “bem estar físico e psicossocial” dos pacientes terminam por encobrir as negociações dos sofrimentos, dos desconfortos e das incertezas que tais corpos e vidas atípicas trazem à tona. Justificativas em prol de supostas coerências que dificilmente se cumprem. No fundo desses saberes, práticas, assimilações e resistências, há movimentos contínuos de veridicção sobre o corpo sexuado. Uma necessidade particular de reiteração de regimes de verdade segundo corpos humanos inteligíveis, funcionais e possíveis de serem socializados, sensibilizados e vividos.

Palavras-chave: Intersexualidade; Distúrbios do Desenvolvimento Sexual; Humanidade; Biomedicalização; Gerenciamento Sociomédico; Veridicção.

ABSTRACT

PIRES, Barbara 2015. Distinctions of Sexual Development: scientific paths and political crossings in cases of intersexuality. Master Thesis in Social Anthropology. Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

This dissertation consists in analysis of social and medical management of some intersexuality cases, or in the controversial biomedical terms used at present days, of people with “disorders of sex development”. The data described here results of a fieldwork in three hospitals located in Rio de Janeiro city. Among geneticists, pediatricians, pediatrics endocrinologists, urologist surgeons, psychologists and social workers, passing around three different clinics and wards, I follow the care and appointments of intersexual newborns, children and youngsters. The social and medical adjustments made in these bodies considered as ambiguous are analyzed both in the genealogical method as well as in the contemporaneous clinical treatments. I also try to connect these normalizing practices with the formation of knowledge of sex, gender and sexuality. How the scientific guidelines increasingly genetic and descriptive updated the medical practices? Moreover, how the incorporations of these protocols are lived daily by the health professionals, by the intersexual political movements, by the families, and by the intersexual children and youngsters? As a complement, a conducting wire go through these managements where biomedical discourses in favor of a “psychosocial and psychic well-being” of the patients end up occulting the negotiations of sufferings, discomforts, and uncertainties that these atypical bodies and lives bring to light. Justifications towards presumed coherences that hardly fulfils. At the bottom of these knowledges, practices, assimilations, and resistances, exists continuous movements of veridiction of the sexual body. A particular need for reiteration of regimes of truth according intelligible and functional human bodies, capable of being socialized, sensitized and dwelled.

Keywords: Intersexuality; Disorders of Sex Development; Humanity; Biomedicalization; Social and Medical Management; Veridiction.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CIRPED1 – Cirurgião Pediátrico 1 CIRPED2 – Cirurgião Pediátrico 2 DDS – Distúrbios do Desenvolvimento Sexual DNV – Declaração de Nascido Vivo ENDOPED1 – Endocrinologista Pediatra 1 ENDOPED2 – Endocrinologista Pediatra 2 GEN1 – Geneticista 1 HAC – Hiperplasia Adrenal Congênita HZN1 – Hospital Zona Norte 1 HZN2 – Hospital Zona Norte 2 HZS – Hospital Zona Sul ISNA – Intersex Society of North America OII – Organisation Internationale des Intersexués/Organisation Intersex International R1 – Residente 1 R2 – Residente 2 SISREG – Sistema Nacional de Regulação SIPA – Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos SK – Síndrome de Klinefelter SUS – Sistema Único de Saúde TFD – Programa de Tratamento Fora do Domicílio

SUMÁRIO

Introdução – Das sensibilidades de uma vida ambígua _______________________

1

1. O “sexo” e a “sexualidade” precisando, modelando e corroendo __________________________________________________________________

10

1.1 Algumas localizações do intersexo: da Antiguidade à Modernidade

10

1.2 Sobre as tecnologias de poder: a medicalização dos corpos e a normalização das ambiguidades

15

1.3 Ordens classificatórias e economias corretivas: o “sexo” como verdade

18

1.4 A impossibilidade do hermafroditismo e a emergência dos estados intersexuais: generificando corpos, orientando sexualidades

22

2. O engolfamento terminológico e a resistência minoritária __________________

31

2.1 A “ciência” de constituir verdades: do gênero ao dimorfismo sexual

31

2.2 Nova revisão classificatória? Os consensos sobre as desordens, os distúrbios e as anomalias

40

2.3 Controvérsias: sobre os protocolos, as classificações e a política

46

3. Vidas verificadas, sofrimentos vividos __________________________________

58

3.1 Uma etnografia da biomedicina: a ciência em ação hospitalar

58

3.2 Percursos do campo biomédico: as circulações etnográficas em três hospitais do Rio de Janeiro

61

3.3 O que fazer quando surge um caso de intersexualidade? O manejo da urgência, da necessidade e da intervenção

66

3.4 Para além das molecularidades e mediações científicas: a gênese diagnóstica na marca “sexo-gênero-desejo”

78

3.5 Algumas notas sobre desconfortos e normalizações em duas experiências 47, XXY 101

Considerações Finais – As Constituições Humanas: travessias antropológicas e políticas nas experiências intersexuais ____________________________________ 114

Glossário ____________________________________________________________

123

Referências Bibliográficas ______________________________________________ 128

1

Introdução Das sensibilidades de uma vida ambígua

Durante minha graduação, em meio a leituras sobre gênero, me deparei com a introdução de Michel Foucault para às memórias de Adélaïde Herculine Barbin, na época em que pesquisava material para seus escritos sobre a história ocidental da sexualidade. Alexina, como era conhecida pelos familiares, cresceu como uma menina na França do século XIX. Após a morte de seu pai, a mãe de Alexina, em situação de pobreza, conseguiu por meio de indicações que sua filha ficasse em um hospital-orfanato da região. Tinha 7 anos. Logo depois, através da influência de uma irmã da casa de cuidados, conquista uma vaga em um convento prestigiado, o qual servia como colégio e internato católico para garotas nobres e burguesas. Lá progride nos estudos e cultiva seus primeiros desejos homossexuais. Essas novas sensações tumultuavam os princípios de devoção e confissão que pautavam sua vida, construída dentro de espaços e referências bastante religiosas. Entre seus estudos no convento e a preparação para ser professora, Alexina mora por um tempo, durante a adolescência, com sua mãe em uma casa de nobres. Tinha uma saúde frágil, estava sempre com cólicas, febril e doente – outra aflição descrita em suas memórias era o fato de nunca ter entrado em puberdade. Essa constante preocupação – em seus termos, “Eu tinha sido devorada pela terrível doença do desconhecido” (2010: 34, grifo no original) – logo irá se materializar para além de sua consciência. Seguindo os eventos narrados, Herculine (ou Camille, como aparece sua persona nas memórias) ganha o certificado de professora, passando no exame na primeira colocação, e com isso uma chance de dar aulas em um colégio interno. Na época tinha 19 anos, de modo que precisava trabalhar como professora assistente até os 21 anos de idade, para assim ser efetivada como professora titular. Nesta escola, ela se apaixona por Sara, uma professora e uma das filhas da proprietária do lugar. As duas eram responsáveis pelos ensinos das alunas – Herculine com as alunas mais velhas, Sara com as mais jovens. Com a relação se aprofundando, já dividindo a mesma cama, rumores sobre o comportamento muito carinhoso e suspeito das duas começaram a se proliferar. Em nossas deliciosas conversas íntimas, ela se apegava ao prazer de usar pronomes e adjetivos masculinos para me qualificar, qualificações que posteriormente se adequariam ao meu status oficial. “Meu querido Camille, Eu

2

te amo tanto! ! ! Por que eu te encontrei se este amor se tornaria a mágoa de minha vida? ! !” (Ibid.: 58)1

Com as férias do colégio, Alexina volta para casa e resolve confessar suas experiências para um missionário que passava na cidade. Junto da prática médica, a confissão irá moldar e reorganizar as subjetividades modernas, e ilustra bem como as regulações institucionais sobre o sexo e a sexualidade se pautavam na época. O missionário aconselha Alexina a juntar-se a um convento como freira, e esquecer seus anseios de casar-se com Sara. Por sua vez, Herculine volta ao internato e aos braços de Sara, ignorando os conselhos do religioso. Mas o mal estar avançava na medida que as dores que sofria aumentavam cada vez mais. Um médico foi chamado ao colégio, e insistiu em examinar Alexina. Durante o exame físico, ele se surpreende – “Meu Deus! Seria possível?” (Ibid.: 68). Sai às pressas e confronta a mãe de Sara, Madame P., sobre o passado de Barbin e sua pessoa. Aconselha, então, que liberem Herculine de suas obrigações o mais rápido possível, sem dar maiores detalhes. Ao voltar para casa em outras férias escolares, ela se confessa com o Bispo da região. Ele ouve atentamente suas histórias, e então pede permissão para revelar seus segredos confessionais ao seu médico particular. No dia seguinte, Herculine retorna para a consulta médica. Depois de um exame físico bastante minucioso, o médico finalmente afirma para a mãe de Alexina, “é verdade que você perdeu sua filha, mas encontrou um filho, um que não estava esperando” (Ibid.: 78). As terríveis dores que sentia eram seus testículos não descidos na região pélvica. Herculine então se desfaz de seu cargo como professora assistente, e termina seu romance com Sara, não só para evitar um escândalo maior quando tudo fosse modificado, em seu registro civil, mas principalmente pelas pressões sociais e institucionais impostas. Monseigneur de B., Monsieur de V., Monsieur D., Doctor H., Doctor G., Doctor C., todos indicando os caminhos para Herculine restituir-se à masculinidade verdadeira. Seu primeiro nome foi alterado, de Adélaïde para Abel. O julgamento e seus dados foram posteriormente registrados no Annales de Médecine Légale. Então, estava tudo acabado. De acordo com meu status civil, eu pertenceria, de agora em diante, àquela outra metade da humanidade que é chamada do sexo mais forte. Eu, que tinha sido criada até os vinte e um anos de idade em casas religiosas, entre tímidas companheiras femininas, teria que abandonar esse passado tão encantador e agora tão distante de mim, e como Aquiles, entrar nas

No original: “In our deliciously intimate conversations, she took pleasure in using masculine qualifiers for me, qualifiers which would later suit my official status. ‘Mon cher Camille, I love you so much! ! ! Why did I meet you if this love was to become the sorrow of my whole life? ! !’”. 1

3

listas, apenas armada com minha fraqueza e minha profunda inexperiência das coisas e dos homens. (Ibid.: 89)2

As notícias se espalharam, não só pela população da cidadezinha onde vivia, com suas conversas informais, surpresas, estigmas e acusações, mas também em publicações. Jornais de Paris chegaram a noticiar a história de Herculine. Já como Abel, vai até a capital tentar um emprego no sistema ferroviário. Ele – e desde que faz a transição passa a se referir no masculino – em certa medida se responsabiliza por este fim (mesmo condenando a sociedade e a ciência pela espetacularização do seu caso), acusa a si mesmo pela falta de tato e gerência com a situação, principalmente em relação a Sara. “Que estranha cegueira foi esta que me fez seguir neste papel absurdo até o fim?” (Ibid.: 114-115). A partir deste ponto até sua morte, os relatos tornam-se fragmentados, amargos e viscerais. Com o suicídio de Herculine, há uma reestruturação do paradigma médico em torno dos reconhecimentos e cuidados dos intersexuais. As memórias de Barbin impactaram os saberes médicos da época, como bem demonstra Foucault ao anexar na organização do livro de memórias os laudos médicos e um conto ficcional escrito por um psiquiatra inspirado na vida de Adélaïde/Abel. O discurso científico começa a argumentar que tal sofrimento, levando ao suicídio, poderia ser evitado. Mais propriamente, alega-se que a angústia de ter que viver com um sexo “errado” poderia acabar se as intervenções médicas ocorressem em tempo de descobrir o sexo verdadeiro dessas pessoas. Essa nova interpretação modifica os manejos de indivíduos com ambiguidade sexual. A partir de então, segue-se uma contínua produção de discursividades medicalizantes através de guidelines, protocolos e intervenções cada vez mais urgentes e precoces. Atualmente, durante o dia 8 de novembro, data em que nasceu Herculine Barbin, comemora-se o Intersex Day of Remembrance, dia de reflexão e conscientização internacional das vicissitudes que os intersexuais ainda vivenciam e enfrentam cotidianamente. Por conseguinte, com tal referência sensibilizando e atravessando minhas escolhas etnográficas, esta dissertação engloba investigações sobre o gerenciamento sociomédico (Machado, 2008a) de casos atuais de intersexualidade, realizadas em três hospitais de alta complexidade na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, esse gerenciamento, ao longo das análises,

No original: “So, it was all over. According to my civil status, I was henceforth to belong to that half of the human race which is called the stronger sex. I, who had been raised until the age of twenty-one in religious houses, among shy female companions, was going to leave that whole delightful past far behind me, like Achilles, and enter the lists, armed with my weakness alone and my deep inexperience of men and things”. 2

4

torna-se um processo que pretendo chamar (inspirada pelas formulações foucaultianas) de veridicção da intersexualidade, onde não só o caráter administrativo do atendimento médico, mas também o caráter gestativo da ciência médica, se atualizam em suas técnicas e abordagens a fim de assegurar a produção de verdades acerca do corpo sexuado e intersexual. Posto isto, acompanhei, por meio da observação participante e da pesquisa documental de prontuários, grupos de médicos de várias especialidades em suas rotinas profissionais de atendimento e encaminhamento de pacientes com distúrbios do desenvolvimento sexual. O termo refere-se a nova definição classificatória da intersexualidade, e seus contextos construtivos e implicações também serão expostas ao longo do trabalho. Tal termo é usado científico e clinicamente, portanto, de forma a abranger inúmeros níveis de determinação e diferenciação ambíguas do que se espera de um sexo funcional e normal, exemplificando-se no atendimento de casos como agenesia peniana, síndrome de klinefelter, síndrome de insensibilidade aos andrógenos e hiperplasia adrenal congênita. Neste sentido, o título da dissertação se constrói criticamente à adoção da nova terminologia. Em vez de “distúrbios”, ou “desordens” ou “anomalias”, outras possíveis traduções, me espelho em Pierre Bourdieu (2007) e utilizo a palavra distinções para evidenciar o caráter simbólico da apropriação desses termos científicos, os quais representam, por sua vez, as relações de poder constituintes das racionalidades e sensibilidades médicas. Como veremos no capítulo 2, o uso de “distúrbios” indica que existe um padrão de desenvolvimento sexual, onde as variações desta norma são tidas como atípicas e desviantes. A escolha dos termos e dos sentidos que tais classificações explicitam garantem o privilégio de explicação, de reconhecimento, de gerenciamento sociomédico e de veridicção das pessoas intersexuais. Situando melhor: o que chamo dos processos, regimes ou modos de veridicção da intersexualidade estão enraizadas nas análises de Foucault (2008) sobre a biopolítica. Na medida em que uma conjuntura histórica, com muitas facetas e que iremos rastrear ao longo da dissertação, modifica a maneira com que a verdade é contada, formas específicas de inteligibilidade e de subjetividades serão postas em jogo de acordo com essas discursividades3. E a problematização desta análise foucaultiana com meus materiais etnográficos será para tentar

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A questão da veridicção em Foucault atravessa suas análises sobre poder e conhecimento, além dos escritos sobre a sexualidade, e culmina na problemática da “parrhésia”, isto é, sobre a relação franca de sujeitos e subjetividades com a verdade. Neste sentido, os regimes de verdade, e as relações específicas entre sujeitos dentro desses processos (como a relação médico-paciente), “funcionam como uma prática de auto formação do sujeito”, em que pauta-se uma obrigação com a verdade de si (Wellausen, 1996: 114). Esses jogos são conflituosos, com controvérsias e resistências, como iremos desenvolver ao longo dos capítulos.

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esclarecer como o gerenciamento sociomédico, empregando cotidianamente seus regimes de verdade, se relaciona com as próprias verdades de si (muitas vezes incertas e não coerentes) que as pessoas e as experiências intersexuais trazem à tona. Em vista disso, devido à preocupação social e científica em corrigir corpos sexuados não hegemônicos, a biomedicina leva ao limite estratégias de controle e de regulação do biopoder foucaultiano. Legitima-se cada vez mais diagnósticos urgentes e intervenções clínicas e cirúrgicas precoces em corpos de sujeitos intersexuais. A justificativa do sofrimento, que vai se repetir desde o século XIX com o paradigma do caso de Herculine Barbin, invisibilizará as sistematizações generificadas e políticas (travestidas com discursividades supostamente neutras, pois científicas) feitas nesses corpos que faltam ou excedem a normalidade. Logo, o gerenciamento e a veridicção da intersexualidade ocorrem na medida em que o discurso científico visualiza os corpos intersexuais como não inteligíveis, isto é, quando o desenvolvimento sexual desses sujeitos é entendido como atípico para o padrão médicocientífico do que seria correto para um desenvolvimento cromossômico, gonadal e anatômico do sexo. Essa não conformidade corporal do que seria um processo lógico e natural da diferenciação e determinação do sexo se apresenta, portanto, como um problema. Neste ponto, na prática médica, surge a necessidade do diagnóstico e da intervenção nos corpos intersexuais. E é papel do profissional de saúde ajustar tal ausência, excesso ou ambiguidade para modelos corporais que possam ser assimilados clínica e socialmente. Mas essas normalizações não serão homogêneas e uniformes nem suas aplicações na prática médica estão ausentes de críticas e diálogos para definição de condutas “centradas no paciente”. As dinâmicas entre esses manejos cotidianos e os guidelines serão mobilizadores para a reconfiguração de processos decisórios médicos mais inclusivos e o adiamento das intervenções cirúrgicas em favor de outros cuidados terapêuticos menos mutiladores, duas das demandas do movimento intersexual contemporâneo.

*

Portanto, o estudo da intersexualidade se insere aqui não como um puro registro do gerenciamento sociomédico de casos e seus “distúrbios”, mas como uma tentativa genealógica, ética e política de entender as possibilidades de produção de verdades – sobre o sexo, o gênero,

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o corpo, a sexualidade, a humanidade e outras travessias – a partir de corporalidades que não se conformam fisiologicamente com os aspectos hegemônicos do que seriam homens e mulheres definidos culturalmente. Ainda hoje, resquícios da antiga produção discursiva médico-científica nos corpos de hermafroditas refletem nos saberes e práticas contemporâneas de manejo dos distúrbios do desenvolvimento sexual. As classificações se transformam e se especificam com o tempo, enquanto os limites e fronteiras sobre as conceituações distintas de masculinidades e feminilidades tentam se manter erguidas em meio às fissuras que corporalidades e performances dissidentes tendem a provocar. A reiteração da coerência entre o sexo, o gênero, a sexualidade, a anatomia e as práticas sociais é, neste sentido, uma tecnologia de poder vital para a compreensão das subjetividades e socializações. Podemos nos perguntar como, hoje em dia, ocorre as estratégias, em alguns momentos conscientes e outros não, de manter essa congruência nos atendimentos dos casos de intersexualidade? Assim, além de mapear alguns casos de intersexuais atendidos por profissionais de saúde de várias especialidades, pretendo discorrer sobre como tal gerenciamento sociomédico afeta a formação de corpos generificados e de práticas sexuais hegemônicas e não hegemônicas. No limite, demonstrar como a concepção de sexo vigente provoca a humanização de corpos impossíveis em corpos possíveis, necessários e coerentes. Destarte, no primeiro capítulo, retrato alguns caminhos ocidentais da identificação e regulação dos corpos ambíguos. Desde os mitos sobre a monstruosidade e divindade dos sujeitos limítrofes, às concepções modernas do hermafroditismo, até as formulações dos primeiros consensos e guidelines sobre as classificações e os tratamentos de pessoas intersexuais. O capítulo serve para mapear genealogicamente as abordagens sobre o corpo e o sexo/gênero – categorias mais do que analíticas, foram preocupações que conduziram organizações e divisões sociais, gêneses religiosas, normas jurídicas, modelos epistemológicos, transformações tecnocientíficas, cuidados e atenções salutares através de todos os períodos da história ocidental. De modo que falar sobre “sexo” é também discutir sobre os saberes e poderes que regulam a vida social, e falar sobre intersexualidade é apontar mais minuciosamente onde se gesta tais regulações. No segundo capítulo faço, por um lado, uma análise bibliográfica contemporânea sobre como o dispositivo da intersexualidade aprofunda suas localizações sobre a “verdade” do sexo em instâncias cada vez mais moleculares, classificatórias e específicas. De modo

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complementar, relaciono como a produção médico-científica volta-se para o estudo dos casos de distúrbios do desenvolvimento sexual e, ao produzir consensos e guidelines sobre o tema, influencia, afeta e direciona o manejo diário desses casos de intersexualidade. Por outro lado, problematizo as controvérsias médicas e políticas de tais consensos, principalmente o consenso classificatório de 2006, que atualiza os manejos clínicos e modifica a terminologia científica, gerando rupturas, reorganizações, assimilações e resistências tanto no interior do campo médico-científico como também dos movimentos civis intersexuais. No terceiro capítulo, finalmente desenvolvo os dados e as articulações do trabalho de campo realizado em três ambulatórios/enfermarias de especialidades médicas diferentes, dentro de três instituições distintas, todas localizadas na cidade do Rio de Janeiro. Em paralelo à apresentação das escolhas teórico-metodológicas e de situar os percursos institucionais e as relações dos interlocutores da etnografia, inicio a descrição de seis casos clínicos de pacientes intersexuais. Acompanhei mais casos ao longo desses meses de campo, mas muitos foram ou repetições diagnósticas ou encaminhados para outros ambulatórios. Em vista disso, decidi fechar a análise com apenas seis casos mais comparáveis e desenvolvidos. Logo, uma das ideias do capítulo é seguir o caminho proposto por Machado (2008a) de perceber as práticas e os processos decisórios envolvidos no gerenciamento sociomédico da intersexualidade. Tal manejo é problematizado segundo os apontamentos médico-científicos dos artigos e consensos detalhados no segundo capítulo, entendidos como referências mobilizadoras de condutas. Relacionar como a produção de conhecimento especializado sobre o tema influi no tratamento diário dos pacientes intersexuais e, de outro modo, como as controvérsias e os posicionamentos críticos do saber posto em prática requalificam as experiências de cada caso e cada atendimento. Uma vez expostas as minúcias dos casos, tento indicar em que medida essa trajetória médica, que vai da internação, passando pela construção diagnóstica, circulando por cada especialidade, até a produção de intervenção para cada paciente, pauta-se por guidelines cada vez mais moleculares, técnicos e descritivos (Machado, 2008b). Ao mesmo tempo, esclareço também como as atuações médicas mobilizam-se por saberes “localizados” e não tão “consensuais”, pois atravessam concepções normalizantes, olhares generificados, proliferação de valores, mediações de silêncio, dentre outros registros sociais que atravessam o processo do saber-poder científico e de veridicção da intersexualidade. Nas considerações finais, tento esboçar os limites das constituições de humanidades através de corpos sexuados. Por um lado, descrevo como o dimorfismo sexual como valor dentro do modelo corrente de direitos humanos e sexuais aposta em uma humanidade binária.

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Assim, analiso que corpos humanos precisam, dentro dessa ética e política contemporânea, passar por transformações biomédicas para serem incorporados ao universo da “natureza humana”. Contudo, as transformações se limitam às concepções de integridade corporal de cada sujeito, isto é, as normalizações biomédicas podem ser feitas desde que autodeterminadas pelos próprios intersexuais. As justificativas para as intervenções estariam em lugares mais profundos, não somente biomédicos, mas embasadas pela própria noção de humanidade que os direitos humanos e sexuais acionam para combater os excessos médicos; como dar conta dessa contradição? Por outro lado, aponto também como, em uma escala mais macro, as experiências da intersexualidade são gestadas a partir de processos farmacopolíticos (Preciado, 2008). No final da dissertação busco refletir um pouco sobre como a medicalização da vida e as noções de humano vigentes produzem “estados de exceções” (Cabral, 2006) que as pessoas intersexuais precisam se adequar para terem vidas inteligíveis e possíveis.

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Worshiping, then, the nurturing god Venus, whether she is male or female, just as the Night-shiner [Moon] is a nurturing goddess.4

Do we truly need a true sex? With a persistence that borders on stubbornness, modern Western societies have answered in the affirmative. They have obstinately brought into play this question of a “true sex” in an order of things where one might have imagined that all that counted was the reality of the body and the intensity of its pleasures.5

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Macrobius; Kaster, Robert A. Saturnalia. Volume 2. Harvard University Press, 2011, p. 58.

Foucault, Michel. Herculine Barbin: Being the Recently Discovered Memoirs of a Nineteenth-century French Hermaphrodite, 2010, vii.

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1 O “sexo” e a “sexualidade” precisando, modelando e corroendo

Algumas localizações do intersexo: da Antiguidade à Modernidade

Ao tangenciarmos o mito e a história do hermafroditismo, seguindo os rastros que desembocam no estudo contemporâneo sobre os intersexuais – e em sua vertente médicopatologizante dos “distúrbios de desenvolvimento sexual” – um caminho é traçado onde essas entidades metamorfoseiam-se em monstros e impossibilidades ambíguas em uma tentativa de transformarem-se em humanos. Assim, nesta primeira interseção, do conflito da divindade e da monstruosidade com a humanidade, que a conceituação desta dissertação se inicia. O que conhecemos como intersexualidade hoje foi representada historicamente através da figura do hermafrodita, congregando a dualidade no uno. Na mitologia grega, havia uma divindade vinda da ilha de Chipre chamada Afrodito, que era representada como uma versão masculina da deusa da beleza, sexualidade e fertilidade, Afrodite. Possuía um corpo feminino, mas com falus e, ocasionalmente, barba. Filósofos da Antiguidade relatam que rituais feitos em seu nome eram agraciados com o aumento da fertilidade e da influência na criação de animais e vegetais, justificando essa potência pela combinação dos sexos, e também pelo fato da divindade estar associada à Lua (Bonnefoy, 1992: 171). Durante o período clássico, discussões sobre a origem da natureza humana e suas vicissitudes aparecem em diversos diálogos filosóficos. Em O Banquete, de Platão, o comediógrafo Aristófanes se propõe a explicar para o médico Erixímaco o surgimento da humanidade, com base em uma interpretação sobre a totalidade do ser, ao dizer: Em primeiro lugar, três eram os gêneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um gênero distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao

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masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. (Platão, 2000: 20)

Segundo o mito, os seres humanos já foram um dia seres duplos e integrados, enormes e redondos, com quatro braços e pernas, duas cabeças e sexos. Os inteiramente masculinos, eram os descendentes do Sol; os inteiramente femininos, eram os descendentes da Terra; e os andróginos, tanto masculinos quanto femininos, eram descendentes da Lua. Ao tentarem escalar o Olimpo para destronar os Deuses, Zeus os enfraquece cortando-os ao meio. Divididos, passam a vagar em busca de sua metade para tornarem-se completos outra vez. O mito de origem da humanidade, descrito por Platão, relata também a formação do amor – como falta – e da concepção. Neste período histórico, segundo Laqueur, “ser homem ou mulher fazia parte de um todo envolvendo posição social, grau de liberdade, desejos, roupas, comportamentos e espiritualidade, sendo a diferenciação genital apenas mais um, mas não o principal, dos elementos que caracterizavam esta distinção, pois o corpo era visto como um só para os dois, variando apenas seu grau de desenvolvimento” (Leite Jr, 2008: 19). Neste sentido, o sexo era entendido como único – homens e mulheres, generificados em sociedade, possuíam uma única carne (Laqueur, 2001: 19-20). A semelhança era o motor do pensamento e da representação. Não havia uma retórica de dimorfismo sexual ontológica, a diferença era entendida como relacional e se dava no nível das coisas, das palavras, da posição e do gênero. Posteriormente, através de contos neoplatonistas entre os séculos I e IX d.C., a origem de Afrodito é recontada. Torna-se o filho de Hermes e Afrodite, com o nome de Hermafrodito (Brisson, 2002: 54). Alguns falam que ele é um deus, manifesto de tempos em tempos entre os humanos, e que nasceu com um corpo marcado por uma dupla natureza, masculina e feminina, no sentido de que seu corpo tem o charme e a delicadeza tal como beneficia as mulheres, e a virilidade e a energia dos homens. Outros dizem que aqueles que revelam naturezas desse tipo são monstros os quais raramente fazem uma aparição, e precedem anúncios às vezes de infortúnios e às vezes de boas novas. (Siculus, Library IV 6, 5 apud. Brisson, ibid.: 55)6

Nesta versão, era um ser belo que unia qualidades masculinas e femininas de ambas as divindades parentais. Porém, somente se transforma em um ser literalmente andrógino após sua No original: “Some say that he is a god, that he manifests himself from time to time among human beings, and that he was born with a body marked by a double nature, both masculine and feminine, in the sense that his body has the charm and delicacy that befit a woman, and the virility and energy of a man. Others say that those who display natures of this kind are monsters that rarely make an appearance and that herald sometimes misfortunes, sometimes good things”. 6

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união – violenta – com a ninfa Salmácis. No mito descrito por Ovídio, em Metamorfoses, Hermafrodito, ainda um jovem, perde a possibilidade de deter uma posição masculina e ativa na sociedade, pois transforma-se em um “meio homem” ao conectar-se e então adquirir o sexo e as características femininas de Salmácis, tornando-se estéril e efeminado (Brisson, ibid.: 5760). Tal (re)concepção, podemos apontar, desloca uma noção de divindade com motivações ritualísticas positivas, geradoras de fecundidade, para atestar através do mito o drama social de um erro, expresso pela ambiguidade forçada. Erro este que era materializado nas crianças andróginas. Não só no período helenístico, mas mesmo na Grécia Antiga, crianças com ambiguidade genital eram sacrificadas como forma de aliviar algum presságio ou mal advindo dos Deuses (Leite Jr, ibid.: 25). Logo, a androginia pulsava entre um ideal divino e metafísico – como no mito dos andróginos e na divindade Afrodito/Hermafrodito – para entendimentos materiais avessos à ambiguidade, motivados pelo espanto, medo e receio da ira divina frente ao corpo humano unificado. Nesta interpretação, se as mulheres já tinham uma posição subordinada, por não possuírem calor e perfeição suficientes para tornarem-se homens, o lugar social dos seres ambíguos fora da mitologia era marginal e arriscado. Enquanto a tradição hipocrática entendia os seres ambíguos como um meio termo entre extremos masculinos e femininos, Aristóteles e seus seguidores pensavam o hermafrodita como alguém que transbordava, ou seja, alguém cuja geração teve tanto calor material por parte da mãe, que excedeu os caracteres sexuais de um sexo só, tornando-se assim um ser ambíguo (Dreger, 1998: 32). De modo que, com o início de uma transição epistemológica, aos poucos é introduzida uma nova composição das corporalidades. O corpo, ainda visto como contendo uma única carne/sexo adaptável e muitos graus de desenvolvimento/gêneros, ganha cada vez mais contornos biológicos e anatômicos. Tanto Aristóteles quanto Galeno (médico e anatomista do século I), e também Soranus (físico do século II), discorreram sobre o modelo de sexo único, na qual ligavam os órgãos reprodutivos masculinos e femininos, distintos em sua capacidade de gerar, ao sistema alimentar e uma economia dos fluidos, comum a toda carne (Laqueur, ibid.: 48-49, 57). As fronteiras entre os papéis de homens e mulheres na geração, desde a concepção pelo ato sexual até a geração de vida fundando uma diferenciação sexual, são menos explicadas por

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uma essencialização de condições distintas entre machos e fêmeas – fato que depois iria protagonizar o modelo de dois sexos – do que por uma necessidade de lidar com poder, status, legitimidade e paternidade. Desta maneira, para o modelo do sexo único – no qual os órgãos genitais eram pensados segundo uma semelhança, onde, por exemplo, a vagina era nomeada e compreendida como uma versão invertida do pênis, mas com suas diferenças anatômicas cada vez mais detalhadas a fim de comprovarem os funcionamentos da ordem social – o que importava de fato era atestar a superioridade da potência do homem (Laqueur, ibid.: 70-72). A anatomia trabalhava aqui para reforçar uma verdade ideológica, onde os limites entre as mulheres e os homens ainda eram, em regra, sociológicos, e não ontológicos. Mais à frente, com o deslocamento de uma cosmologia greco-romana para o pensamento medieval, a androginia passa a representar o mal encarnado. A partir de reapropriações judaicocristãs do simbolismo e da figura do andrógino, o hermafrodita é concebido como um descendente ou parceiro de Satã. Neste período, seres com ambiguidade passam a ser mortos “não apenas para eliminar um Mal que eles inevitavelmente encarnam para os olhos de tal cultura, mas principalmente em nome de um Bem maior: evitar que o demônio e seus frutos desorganizem o frágil e constantemente ameaçado reino de Deus sobre a terra” (Leite Jr, ibid.: 28). Também nesta época, no âmbito do cristianismo, o uso da confissão começa a atribuir ao sexo e à sexualidade a classificação de algo que precisava ser examinado, confessado, vigiado e transformado em discurso. Assim, conferindo ao domínio do sexo o atestado de uma perda de pureza original, que necessitava de controle e salvação, a prática da confissão iria impulsionar uma regulamentação dos corpos e práticas sexuais, o que, posteriormente, fomentaria a disciplinarização dos corpos através de uma “ciência sexual”. Essas regulações, portanto, não aconteciam só por meio de procedimentos negativos, como proibições e censuras, mas também por uma incitação ao discurso do sexo, que embasaria uma produção de saber sobre a sexualidade (Foucault, 2011). Dentro deste mundo, os hermafroditas eram considerados monstros, seres fantásticos causadores de encantos e repulsas, pois eram entendidos como um misto anatômico tanto masculino quanto feminino, o que contrariava o modelo de sexo único que gerenciava os valores e status sociais. Durante este período medieval, até o século XVI, a norma pedia que fossem “executados, queimados, suas cinzas jogadas ao vento” (Foucault, 2001: 83).

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Com a modificação da jurisprudência no âmbito renascentista, já durante o século XVII, o hermafrodita passa a não ser mais condenado por sua ambiguidade como tal. Pedia-se que escolhesse um gênero, o que achava dominante, e vivesse em função deste sexo escolhido. Somente se transgredisse essa lei e “usasse o sexo anexo que, nesse momento, incorria nas leis penais e merecia ser condenado por sodomia” (Foucault, ibid.: 84). Neste ponto, Laqueur discorda de Foucault ao afirmar que seria utópico pensar que a escolha do gênero era de critério pessoal (Laqueur, ibid.: 161), e continua a discorrer sobre a distinção dos sexos na Renascença. Assim, para os hermafroditas a questão não era ‘a que sexo eles pertenciam realmente’, mas a que gênero a arquitetura de seus corpos mais se ajustava. Os magistrados eram menos preocupados com a realidade corpórea – que o que hoje nós chamaríamos de sexo – que com a manutenção de claras fronteiras sociais, a manutenção de categorias de gênero. (Laqueur, ibid.: 171)

Neste contexto, a diferenciação e regulação desses seres não ocorria mais em níveis espirituais e filosóficos. O sexo dominante deveria ser reforçado com vestimentas, atitudes, ocupações e orientações. Com a crescente preocupação em indicar o sexo “válido” socialmente em casos de difícil determinação sexual, o especialista era chamado ao tribunal. A observação e o exame físico ganham importância, os comentadores da época insistiam que “mesmo quando não há órgãos genitais visíveis, há sinais que indicam qual é o sexo mais potente e qual é menos potente ou importante” (Ibid.: 176). Aos poucos, a relevância no comportamento – evidenciando posições e status – se deslocava para a condição da pessoa – em termos puramente biológicos e essenciais. Em algum momento durante o século XVIII, mulheres e homens começam a ser explicados segundo um dimorfismo anatômico e sexual, na qual era reiterada a incomensurabilidade da “natureza” entre os dois. O modelo de uma única carne é destronado por um modelo de dois sexos biológico e ontologicamente distintos. Essa ruptura ocorreu com a ressignificação do corpo feminino. Suspendeu-se a ideologia que reiterava a mulher como uma variante menos quente e perfeita do homem, o discurso e a prática médica trabalham agora para classificar e explicar os domínios exclusivos de cada sexo. O clitóris e os ovários foram nomeados, não eram mais uma versão inversa do pênis e dos testículos masculinos. A vagina também foi classificada e objetivada. As diferenças entre os sexos eram reafirmadas sobretudo de acordo com as diferenças dos órgãos reprodutivos e do prazer sexual. O calor não era mais a marca distintiva entre os sexos. Finalmente o discurso médico assume “não só um repúdio explícito do velho isomorfismo como também, e mais importante, uma rejeição da ideia de que as diferenças sutis entre os órgãos, fluidos e processos fisiológicos

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refletiam uma ordem transcendental de perfeição” (Ibid.: 189). Não apenas em termos do orgasmo, dos prazeres e da concepção que homens e mulheres tornam-se incomensuráveis, mas também em estruturas que eram consideradas comuns aos sexos – os ossos e o sistema nervoso são, da mesma forma, diferenciados de modo a corresponderem aos seus modelos culturais vigentes. Com as rupturas e mudanças epistemológicas e políticas, a natureza passa a ser o único plano de comparação entre os corpos e os cosmos. No mundo da explicação racional reducionista e cética, “o que importava era o fundamento simples, horizontal e imóvel do fato físico: o sexo” (Ibid.: 191). A relação entre os sexos, e consequentemente entre homens e mulheres generificados em sociedade, eram, nesta concepção, uma relação de diferença. A semelhança da episteme antiga – com suas graduações de desenvolvimento indicando relações de igualdade e desigualdade – cedeu lugar à diferença – uma estrutura interpretativa que legitima, a partir da categoria “sexo”, a distinção completa entre o social e o natural. Neste novo modelo de dimorfismo sexual, a noção do hermafroditismo como monstruosidade, exemplificado pela mistura “antinatural” entre dois sexos/gêneros de acepções distintas em uma única carne, perde espaço para uma explicação preocupada em descobrir a “verdadeira” localização do único sexo possível desse corpo ambíguo. O hermafrodita não é mais cerne de uma monstruosidade da “natureza”, mas é provável representante de uma monstruosidade jurídico-moral – é preciso, portanto, corrigi-lo (Foucault, ibid.: 92).

Sobre as tecnologias de poder: a medicalização dos corpos e a normalização das ambiguidades

As transformações econômicas, políticas, ideológicas e sociais que adquiriram força no século XVIII – podemos citar, a mudança na estruturação social-estatal com a formação das cidades e a urbanização, o aprofundamento de práticas mercantilistas e seus fluxos de mercado impulsionando a industrialização e o surgimento do operariado – fizeram também com que a prática e o saber médico se reestruturassem. Neste sentido, na época, a medicina social se consolida basicamente como uma tecnologia de controle populacional.

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Com raízes na medicina estatal alemã e na medicina urbana francesa, é na Inglaterra que ela aperfeiçoará suas técnicas de vigilância e hospitalização em três ramos: assistencial, administrativa e privada. Preocupada em controlar epidemias e doenças, mas também em normalizar as atividades e o ensino médico, a grande mudança ocorre na medida em que se institui uma medicalização dos corpos e uma disciplinarização dos espaços públicos. Há uma atenção em controlar a saúde e o corpo das classes mais pobres para “torna-las mais aptas ao trabalho e menos perigosas às classes mais ricas” (Foucault, 1977: 56), isto é, aperfeiçoando gradual e continuamente suas capacidades ao mesmo tempo em que neutraliza-se as possibilidades de resistência, tornando-os mais úteis como força de trabalho e dóceis politicamente. Segundo Foucault (Ibid.: 60-64), as técnicas disciplinares são antigas, mas existiam isoladamente até o século XVIII, fortalecendo-se na medida em que o poder disciplinar foi aperfeiçoado como uma tecnologia de gestão das populações – no exército, nas escolas, nas fábricas. Contudo, não foi somente com a introdução dessas técnicas nos espaços hospitalares que a medicalização foi possível, mas também pela transformação sofrida na prática e no saber médico que marcou a transição epistemológica do período, com o advento da modernidade e do poder médico-científico como um de seus pilares. A regulação do olhar e do registro, atendendo e documentando os pacientes, produz um acúmulo do saber, que indica simultaneamente os objetos alvos do saber e de intervenção médica: o indivíduo e a população. O indivíduo está situado dentro do contexto populacional, como parte integrante de um corpo social em que é preciso definir, por exemplo, cuidados coletivos, pautas econômicas e estratégias de governança. Nesta interpretação foucaultiana, a medicalização indica os processos que seriam designados como próprios do domínio da medicina, como o controle do espaço hospitalar para ajudar na formação de Estados-nações ou na manutenção de interesses das classes burguesas. De modo que esses processos engendram técnicas e procedimentos que agem sobre o comportamento dos indivíduos, modificando, influenciando ou formando modos de se portar e viver. Nos termos de Luiz Fernando Dias Duarte (1999), parafraseando Foucault, processos que fomentam a produção de um “dispositivo de sensibilidade” (Ibid.: 24). Portanto, esta nova percepção do mundo com sua faceta medicalizante está indissociável de sua aplicação ao âmbito da sexualidade.

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A constituição de saberes e práticas sobre o sexo, ou melhor, deste “dispositivo da sexualidade” caracterizado por Foucault, nos séculos XVIII e XIX, indica que falar sobre sexo é uma tecnologia de poder. A sexualidade ocupa um lugar privilegiado na gestão da vida não somente com a biopolítica, ou seja, nas formas de organizações políticas e regulações das populações. Mas também na administração disciplinar dos corpos, seja pela medicalização da família através da vigilância e controle da sexualidade infantil, ou pela gênese religiosa do dispositivo da sexualidade com base na confissão-desvelamento, ou, por fim, pela composição dos saberes psiquiátricos. Ainda em Duarte (Ibid.), o dispositivo da sexualidade coloca em jogo três aspectos fundamentais para se pensar a construção ideológica e institucional deste momento histórico. A perfectibilidade (o aperfeiçoamento progressivo de si e da humanidade), a experiência (representando um modelo empirista de relação com o mundo) e o fisicalismo (investindo em uma distinção radical e cosmológica do corpo e do espírito) são aspectos que transformarão a forma com que se conhece o corpo sexuado e humano. A exploração da corporalidade em seus limites – intensificando o uso do corpo para o trabalho disciplinar, para os prazeres, para a gestão da vida – explicaria a própria humanidade. Posto isto, os saberes e as práticas de regulação, gerenciamento e veridicção do corpo sexuado instauram regimes de verdade sobre o que somos e como devemos/podemos viver. Nas palavras de Foucault, “a sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da população. Portanto, ela depende da disciplina, mas também depende da regulamentação” (2002: 300). Nesta interpretação, o indivíduo também é produto do poder, da biopolítica, das tecnologias da sexualidade. Sendo assim, podemos concluir que a incitação e interpretação do discurso da sexualidade produz não só subjetividades, mas também instâncias de verdade. De modo que outra interseção move esta dissertação: a da constituição do dispositivo da (inter)sexualidade que busca produzir verdades segundo tecnologias de poder-saber médicocientíficas, ou como também utilizarei ao longo da dissertação, biomédicas. Neste sentido, uma forma de medicalização dos corpos que agiu como tecnologia de poder e de normalização foi a regulação dos corpos com ambiguidades sexuais. Não era mais permitido voltar e tornar-se um outro sexo, como no Renascimento; a tarefa científica em meados do século XVIII era de desfazer as máscaras ambíguas impostas pela natureza e determinar, através de um exame minucioso pelo corpo, o sexo “verdadeiro”. A biologia era o fim possível e necessário.

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Dentro dessa nova maneira de pensar e classificar o mundo, com as ciências médicas e psiquiátricas conceituando monstros morais, invertidos e perversos, o hermafrodita da idade clássica e medieval transforma-se novamente e torna-se o pseudo hermafrodita (Leite Jr, ibid.: 52). Nesta lógica, não há mais espaço para o meio termo. É imprescindível a descoberta do sexo “real”, uma vez que torna-se impossível a existência de seres humanos fora da concepção anatômico-social dos dois sexos vigentes. A prática médico-científica detém, neste contexto, a responsabilidade de investigar a “verdade” por trás da aparente ambiguidade genital desses desviantes. Como relata Foucault sobre o período, De um ponto de vista médico, isto significa que quando defrontado com um hermafrodita, o doutor não estava mais preocupado em reconhecer a presença dos dois sexos, justapostos ou entrelaçados, ou em saber qual dos dois sexos prevalece sob o outro, mas estava interessado preferencialmente em decifrar o verdadeiro sexo escondido embaixo da aparência ambígua. (Foucault, 2010: viii)7

Logo, a possibilidade de escolha entre um dos sexos possíveis é negada, não é mais papel do indivíduo decidir qual o sexo dominante que ele poderá viver, judicial e socialmente. É papel do especialista decidir a “verdadeira” natureza do sexo e indicar para a sociedade como o pseudo hermafrodita poderá ser reconhecido.

Ordens classificatórias e economias corretivas: o “sexo” como verdade

Como apresentei nos tópicos anteriores, a normalização de corpos entendidos como fora do padrão de feminilidade e masculinidade torna-se central dentro de uma economia de regulação e correção dos corpos e das sexualidades. As fronteiras e limites do que é masculino e do que é feminino precisam ser, nesta nova realidade biopolítica, esmiuçados e reafirmados continuamente. Os corpos com ambiguidades sexuais tornam-se marcadores fundamentais para o processo classificatório e político de governança das populações e das subjetividades.

No original: “From the medical point of view, this meant that when confronted with a hermaphrodite, the doctor was no longer concerned with recognizing the presence of the two sexes, juxtaposed or intermingled, or with knowing which of the two prevailed over the other, but rather with deciphering the true sex that was hidden beneath ambiguous appearances”. 7

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Neste sentido, no final do século XVIII e começo do século XIX, o discurso médicocientífico surge como a nova autoridade para declarar quais corpos eram corretos e anormais, masculinos e femininos. Com a percepção moderna de que a natureza era o parâmetro de referência, sendo um todo completo, os estudos sobre as anormalidades começam a ganhar relevância, pois era a partir das nomeações e explicações do que era desviante, que ditavam as regras do que era considerado o desenvolvimento normal. Assim, ao mesmo tempo em que o antigo hermafrodita sai do espaço da não-natureza monstruosa, agora ele passa a ser tratado como uma patologia que necessita de correção. A concepção antiga do hermafroditismo torna-se impossível. O discurso médico insistia que, embora casos de hermafroditismo verdadeiro existissem em outros domínios da natureza, era extremamente raro a existência de algum humano com a capacidade funcional reprodutiva e sexual dos dois sexos (Reis, 2009: 42). Houveram debates sobre como identificar os “verdadeiros” e “falsos” hermafroditas, se realmente existiam humanos não só com órgãos genitais ambíguos, mas também com testículos e ovários em um só corpo. Em afirmativa, somente estes que seriam designados “verdadeiros”. Destarte, o discurso médico da época confirma, somente indivíduos com ambos tecidos, testiculares e ovarianos, seriam considerados hermafroditas verdadeiros. Com esta menção, surgirá o termo falso hermafrodita para identificar os corpos ambíguos – por exemplo, uma pessoa com tecido testicular, mas com a genitália feminina – que teriam alguma incongruência entre suas gônadas e seus órgãos genitais, mas que, no fim, possuíam uma base “verdadeira” masculina ou feminina (Ibid.: 59). Neste exemplo dado, o sujeito seria designado masculino devido às suas gônadas testiculares. Logo, a marca privilegiada e “verdadeira” da diferenciação entre os sexos encontravase nas gônadas. Os traços de determinação sexual de homens e mulheres eram baseados, primeiramente, na presença de tecido testicular ou de tecido ovariano. Antes do desenvolvimento tecnológico capaz de analisar os tecidos gonadais, os médicos focavam em marcadores visuais, principalmente os órgãos genitais, mas também caracteres secundários, como a menstruação, para determinar o sexo da pessoa. Nos momentos em que esses marcadores biológicos eram inconclusivos, os doutores debruçavam-se sobre indicadores sociais, ao avaliarem os jeitos, vestimentas e gostos pessoais do sujeito (Ibid.: 54). Esses marcadores não foram esquecidos nas avaliações, ainda compunham as variáveis necessárias para atestar o sexo de alguém, mas o atributo fundamental para definir alguém como essencialmente homem ou mulher era o fator gonadal.

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Concomitantemente aos processos classificatórios descritos, alia-se uma evolução das tecnologias médicas, como os usos dos microscópios e do começo das intervenções cirúrgicas para biópsias. Com um maior detalhamento dos instrumentos para a determinação do sexo gonadal, e as novas categorizações estabelecendo parâmetros mais rígidos para a definição das ambiguidades sexuais, os hermafroditas, principalmente os tidos como verdadeiros, aos poucos vão se invisibilizando (Dreger, ibid.: 139). Esta medicalização e consequente invisibilidade das ambiguidades reflete nas disputas sociais que se iniciavam no período. Na medida em que eram travadas batalhas por equidade social entre os sexos, no final do século XIX e início do século XX, o discurso e prática médico-científica desenvolviam critérios mais estritos e exclusivos para a definição e regulação dos casos de hermafroditismo. Anne Fausto-Sterling discute essa conjuntura, ao dizer: Teorias acerca da intersexualidade no século XIX – os sistemas de classificação de Saint-Hilaire, Simpson, Klebs, Blackler e Lawrence – se dispõem em um grupo maior de ideias biológicas sobre a diferença. Cientistas e médicos insistem que corpos de homens e mulheres, de brancos e pessoas de cor, de judeus e não judeus, de classe média e classe popular diferem profundamente. Em uma era em que se argumenta politicamente pelos direitos individuais com base na igualdade humana, cientistas definem alguns corpos como melhores e mais merecedores de direitos do que outros. (Fausto-Sterling, 2000: 39)8

Deste modo, os sistemas classificatórios propostos por Isidore Geoffroy Saint-Hilaire9 e Sir James Young Simpson10, seja nas excessivas descrições da teratologia ou nas taxonomias britânicas, que guiaram o modo como hermafroditas eram identificados até quase o final do século XIX, gradativamente são substituídos por novos modelos classificatórios. A Era das Gônadas, como Alice Dreger intitulou o período após a morte de Herculine Barbin, de 1870 à 1915, foi o período onde a “verdade” sobre o sexo era marcada na anatomia “natural” dos tecidos gonadais: ovariano ou testicular.

No original: “Nineteenth-century theories of intersexuality—the classification systems of Saint-Hilaire, Simpson, Klebs, Blackler, and Lawrence—fit into a much broader group of biological ideas about difference. Scientists and medical men insisted that the bodies of males and females, of whites and people of color, Jews and Gentiles, and middleclass and laboring men differed deeply. In an era that argued politically for individual rights on the basis of human equality, scientists defined some bodies as better and more deserving of rights than others”. 8

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Saint-Hilaire foi um zoólogo francês do século XIX, especialista de um tipo de investigação chamada “teratologia”, termo cunhado por si mesmo, em que estuda espécies desviantes do que considerava ser uma estrutura “normal” de desenvolvimento biológico, dentre eles casos de hermafroditismo. 10

Simpson foi um médico obstetra escocês do século XIX, muito reconhecido na Inglaterra por introduzir o clorofórmio como instrumento anestésico, e também por ser a principal referência britânica sobre os estudos do hermafroditismo em sua época.

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Durante este intervalo, o fator gonadal para diferenciação dos sexos se estabelece como um consenso médico. Incorporando esta nova dimensão sobre a “verdade” do sexo, o patologista Theodor Klebs propôs, em 1876, um novo sistema classificatório para os casos de ambiguidade sexual (Dreger, ibid.: 145). Nesta interpretação, a literatura médica da época classificava os corpos ambíguos da seguinte forma: pseudo hermafrodita masculino, para os casos de ambiguidade em que o tecido gonadal era testicular; pseudo hermafrodita feminino, para os casos de ambiguidade em que o tecido gonadal era ovariano; e hermafrodita verdadeiro, para os casos de ovotestis, isto é, nos quais encontravam-se ambos os tecidos, testicular e ovariano11. A necessidade de regular corpos ambíguos e de impor classificações sobre o sexo cada vez mais rígidas e específicas refletiam na maneira com que o discurso médico-científico concebia as distinções das capacidades reprodutivas entre homens e mulheres como o marcador fundamental de diferença “natural” entre os sexos. Com o decorrer do século XX, o atestado do sexo como gonadal, definindo as particularidades das funções masculinas e femininas no papel reprodutivo, torna-se imprescindível para a rápida correção dos casos de ambiguidade que poderiam borrar essas fronteiras. Não diagnosticar e não corrigir os casos de hermafroditismo possivelmente levariam, discorriam os médicos da época, a “miseráveis consequências, infelicidades, pedidos de divórcio, e até mesmo suicídios”, ou pior, aos casamentos acidentais entre pessoas do mesmo sexo – tudo isto indicaria a magnitude da responsabilidade de identificação e correção precoce desses casos de ambiguidade sexual (Ibid.: 80). Assim, para traçar a história da medicalização de corpos ambíguos, foi preciso entender como a história do gênero e do sexo, como modelos socioculturais, variaram através das épocas na Europa. As tradições médicas europeias viajaram para novos territórios. Na América do Norte colonial, até o final do século XVIII, o hermafroditismo também foi compreendido como uma anormalidade. Sua monstruosidade não residia simplesmente na dupla “natureza” em que dois sexos compunham um único corpo, mas era reprimido principalmente nos casos de mulheres com clitóris avantajados designadas erroneamente como homens. O perigo englobava os possíveis atos sexuais ditos pecaminosos e errados que essas mulheres consumavam, ao utilizar suas genitálias “anormais”, com outras mulheres (Reis, ibid.: 14-15). Posteriormente,

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No período, os tecidos encontrados nos hermafroditas verdadeiros não precisavam ser funcionais, somente atestar a presença anatômica das gônadas, seja na forma dos testículos ou na forma dos ovários (Dreger, ibid.: 36).

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como os europeus, na medida em que a definição sobre o sexo se modifica, também se altera a regulação dos casos de ambiguidade sexual. O que permanece inalterado através das épocas e lugares é o temor de que esses corpos ambíguos incitem a prática de sexualidades desviantes. Como proposto por Judith Butler em Problemas de Gênero (2008), a reiteração de uma matriz de heterossexualidade compulsória, produtora de subjetividades e gêneros, pode ser observada nesta preocupação médica, científica e política em tratar das sexualidades desses corpos ambíguos. Ao sair de explicações baseadas na monstruosidade para a impossibilidade médico-científica, tanto na América do Norte quanto no Velho Mundo, é instaurada uma ansiedade geral de regular e corrigir ambiguidades corporais que possam levar a condutas sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Neste registro, a desconfiança e a urgência advindas da posse de um corpo ambíguo (que levaria, dentro desta interpretação, a uma falta de clareza sobre a sexualidade da pessoa) já validariam uma intervenção médica. A preocupação incessante com uma “verdadeira” localização do sexo em meio ao corpo imperfeito e ambíguo não só retroalimenta a busca por uma verdade sobre o corpo, a humanidade e a realidade, mas também anda lado a lado com a necessidade primária de manter o regime heterossexual de reprodução social e biológica inalterado.

A impossibilidade do hermafroditismo e a emergência dos estados intersexuais: generificando corpos, orientando sexualidades

Devido às urgências sociais para a correção dos casos de ambiguidade sexual, as quais equiparavam o desenvolvimento “anormal” dos pseudo hermafroditas com a prática mais geral do que entendiam como “perversão sexual”, inscreve-se como crucial a intervenção precoce nesses corpos. Os médicos insistiam que para evitar imoralidades como os casos de homossexualidade – acreditavam que estes tinham deformações no cérebro que os levavam a praticar tais atos depravados, da mesma maneira que hermafroditas tinham alterações em suas genitálias em relação ao padrão gonadal “correto” e também estariam mais propensos a esses comportamentos desviantes – fossem corrigidas as inversões congênitas antes que estas se tornassem mais problemáticas.

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As ligações médicas do hermafroditismo com a homossexualidade é um terreno prolífico no século XIX. Nessas percepções, a formulação de que as “inversões sexuais psíquicas” são formas extremas de um hermafroditismo biológico baseará toda uma ciência sexual do século XX (Leite Jr, 2008: 56). Neste contexto, Richard von Krafft-Ebing foi um psiquiatra germânico importantíssimo para a construção de um saber científico sobre as “perversidades sexuais”, em seus níveis corporais e psíquicos. Os limites patológicos das inclinações e desejos sexuais pressupunham instintos essenciais hierarquizados, que, por sua vez, poderiam aparecer de forma invertida em homens e mulheres, os chamados hermafroditas psíquicos. Com tal vinculação da intersexualidade com a homossexualidade, nasce uma ciência psiquiátrica que pensa, dentre outros temas, como ordenar os sexos/gêneros (aos poucos cada vez mais divididos) e os desejos sexuais. Mais além, essa ciência começará a estudar, regular e tratar o que se entende hoje como as experiências transexuais. Nesta direção, o hermafroditismo converte-se em um termo que podia ser usado tanto para descrever uma condição física, com ou sem homossexualidade, mas também uma condição psicológica que envolvia o desejo por pessoas do mesmo sexo (Reis, ibid.: 66). A lógica de apagamento, impossibilitando a existência dos casos de hermafroditismo verdadeiro, transpunha-se para essa classificação e regulação das práticas sexuais entendidas como desviantes. A ambiguidade, seja corporal ou psíquica, precisava ser combatida. Desse modo, as cirurgias de “des-sexualização” ou castração dos corpos ambíguos, para evitar performances desviantes, ganham mais importância. Adequando as genitálias do pseudo hermafrodita para os padrões vigentes, as operações eram consideradas um sucesso quando esses pacientes mostravam-se aptos ao sexo heterossexual e, possivelmente, ao papel social do casamento e da constituição familiar (Ibid.: 71). As cirurgias eram, nos casos de pacientes consideradas mulheres (com tecido ovariano), de remoção de algum excesso clitoriano12 ou de aprofundamento da abertura vaginal, e para os casos de pacientes considerados homens (com tecido testicular), corrigiam-se formas atípicas das genitálias como as hipospádias13 para que a

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Anna Fausto-Sterling ilustra esse excesso clitoriano, considerado como inaceitável para os padrões médicos de genitália feminina, na figura 3.4 do terceiro capítulo de seu livro Sexing the Body (2000). Medidas acima de um centímetro, para uma criança feminina, ao nascer, já seriam passíveis de correção cirúrgica. 13

Hipospádia é uma condição congênita em que a saída da uretra não se encontra na ponta do pênis. Mas, ocasionalmente, em sua base ou, por vezes, na própria bolsa escrotal. Em alguns casos, essa alteração leva a uma ereção do pênis com curvatura em direção à bolsa escrotal, em outros casos mais graves, há má formação do pênis, apresentando uma forma parecida com uma lábia.

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uretra ficasse na ponta do pênis – permitindo tanto a função sexual quanto, por exemplo, o ato tipicamente “masculino” de urinar em pé14. Após a Primeira Guerra Mundial, com a ruptura das estritas definições da Era das Gônadas, novas tecnologias médicas e avanços científicos continuaram modificando as categorizações do verdadeiro hermafroditismo e das localizações do sexo. Tecidos gonadais, caracteres secundários, comportamentos, níveis hormonais e, por fim, as determinações cromossômicas, foram fatores que fizeram possíveis a reavaliação das fronteiras do sexo e suas regulações. Como já apontado, a única consistência através dessas evoluções técnico-científicas foi o comprometimento médico com a manutenção das práticas heterossexuais a fim de garantir a união de dois sexos opostos “perfeitamente” masculinos e femininos (Reis, ibid.: 85). Gradativamente, durante a primeira metade do século XX, o conceito de um “verdadeiro sexo” encontrável em algum órgão do corpo ou função fisiológica vai sendo substituído pela ideia de um “sexo prevalecente” que, assim, torna-se então o “verdadeiro”. A regra então para descobrir este sexo em alguém já adulto ou pelo menos não mais bebê passa a ser a composição do “todo” de uma pessoa e o que mais a equilibra para o lado feminino ou masculino, envolvendo gônadas, caracteres e funções sexuais e, cada vez mais, a influência psíquica. (Leite Jr, 2008: 80)

Neste sentido, criar uma coerência entre o corpo anatômico, o sexo psicológico e a apresentação generificada deste sexo, fortaleceu-se como uma justificativa mais potente para a cirurgia de redesignação sexual do que a argumentação anterior de congruência necessária entre as gônadas e as genitálias. Como Reis aponta sobre o período, as pessoas estavam corriqueiramente (a não ser as informadas) ignorantes de seus cromossomos e status hormonais. Logo, o que se tornou mais relevante para otimizar a integração da personalidade individual era manter uma congruência entre genitália externa e sexo de criação, e consequentemente o senso de bem estar psicossocial do paciente em pertencer ao sexo masculino ou feminino (Reis, ibid.: 116). A ênfase na psicologia em detrimento às gônadas marca a metade do século XX. Conjuntamente, com a importância dos cromossomos e hormônios sexuais, a morfologia genital aparece como um critério fundamental no tratamento de pessoas com ambiguidade sexuais. 14

É importante notar que nas literaturas médicas da primeira metade do século XX, justifica-se muitas das intervenções cirúrgicas a pedido dos próprios pacientes, que queriam ser normalizados para assumirem as funções “corretas” e “coerentes” de seus sexos sociais, por exemplo, conseguir manter uma relação sexual heterossexual com penetração. (Reis, ibid.: 87). Será discutido nos próximos capítulos como essas necessidades de normalização são fundamentais para a autodeterminação do próprio gênero e sexualidade dos pacientes, mas que não deixam de estar inseridas em processos e dinâmicas médicas, científicas, políticas e culturais sobre os limites e papéis de homens e mulheres.

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Acreditava-se que a morfologia genital poderia ser transformada para se adequar ao gênero socializado. O sexo social designado deveria ser, portanto, o parâmetro para a genitália externa, e quando necessário, operá-la para conformar mais “corretamente” ao modelo sexual escolhido. Em paralelo, se interviria também em nível hormonal para afinar essas coerências. Dessa maneira, a ideia de “criação” aliada às intervenções cirúrgicas e hormonais tornam-se o modelo preferível para guiar a determinação sexual em casos de ambiguidade sexuais – que, aos poucos, seriam identificados como “estados intersexuais”, assentando o fim das taxonomias dos hermafroditismos. Retratando esse modelo a partir de um caso clínico do começo da década de 1940, Reis cita um trecho do artigo científico que resultou desse atendimento, em que: Era óbvio para eles que outros fatores [psicológicos] desempenhavam um papel mais significativo do que a anatomia. “O que esses outros fatores são atualmente não estão claros,” eles divulgam em uma admissão incomum de incerteza. Eles tinham problemas em entender porquê ou como uma pessoa com todas as indicações de masculinidades [isto é, possuir tecido testicular funcional] poderia modelar mente e emoções femininas, mas seus pacientes provavam claramente as possibilidades. “Este estudo vai indicar,” eles concluem, “que em termos gerais o ambiente e fatores situacionais (criação como menina, identificação com a mãe, relacionamento com o pai, etc.) dessa paciente desempenham um papel predominante em seu desenvolvimento emocional e psicossexual.” (Finesinger, Meigs, Sulkowitch, 1942 apud Reis, 2009, inserção minha)15

Como se nota, a conceituação de uma noção de identidade de gênero começa a se delinear neste período. Seguindo inspiração nas teorias psiquiátricas do começo do século XX, acreditava-se que as dinâmicas sociais, o ambiente, além das incorporações inconscientes, eram fatores relevantes para designação sexual. Propunham moldar o sexo morfológico de alguém a partir da identificação psicológica e social com um determinado gênero possível, masculino ou feminino. Essa determinação acontecia a partir de testes psicológicos específicos, como demonstrado no trecho anterior, em que a identidade de gênero era assumida segundo noções de papéis sociais generificados hegemonicamente – a identificação com a mãe, a relação submissa com o pai, o desejo heterossexual, dentre outros fatores.

No original: “It was obvious to them that other factors played a more significant role than anatomy. “What these other factors are is at present not clear,” they disclosed in an unusual admission of uncertainty. They had trouble understanding why or how a person with every physical indication of maleness could model the mind and emotions of a woman, but their patient clearly proved the possibility. “This study would indicate,” they concluded, “that broadly speaking the environmental and situational factors (reared as a girl, identification with mother, relationship to father, etc.) in this patient played the predominating role in her psychosexual and emotional development”. 15

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Na segunda metade do século XX, argumentando a favor de uma preocupação em atenuar o sofrimento que essas pessoas passavam ao terem que redesignarem seus corpos e gêneros durante a fase adulta e também em assegurar a coerência entre corpo, sexo e gênero o mais rápido possível, a precocidade da intervenção foi acionada como a melhor saída médica para os casos de ambiguidade sexual. O psicólogo e pediatra John Money publicou, durante a década de 1950, um artigo afirmando que era melhor intervir no intersexual antes que o padrão de comportamento sexual fosse cristalizado. Acreditava que a identidade de gênero de alguém era neutra e maleável até os dezoito meses de vida (Leite Jr, ibid.: 143). Neste registro, a situação se inverte. Não mais a morfologia sexual é transformada para se adequar a um sexo social consolidado: com a tese de Money, a genitália deveria ser ajustada o quanto antes para garantir o desenvolvimento “adequado” e “saudável” do gênero futuro. Assim, uma vez que houvesse um caso de ambiguidade genital, impossibilitando a identificação imediata do sexo, esse bebê seria moldado cirurgicamente para ter uma genitália com a aparência mais “normal” possível – usualmente, genitálias femininas – e então comprometer aos pais a criação e o cuidado necessários para assegurar essa designação. Mesmo que médicos tenham discordado por séculos sobre quais fatores eram os mais importantes na determinação sexual, praticamente todos concordavam que alguns precisavam ser considerados. As gônadas, por muito tempo o modelo de ouro, enfraqueceram em sua potência, mas outros critérios, particularmente os hormônios e os cromossomos, e, para pacientes mais velhos, a psicologia, eram avaliações necessárias. Money não abandonou completamente esses outros critérios, mas em suas publicações ele enfatizava cada vez mais a habilidade de criar genitálias mais fidedignas aos meninos e meninas, as quais garantiriam uma inabalável e contínua criação em seus gêneros particulares a fim de, consequentemente, gerar pacientes mais saudáveis psicologicamente. (Reis, ibid.: 137)16

Essa percepção de Money, e de Joan Hampson, psiquiatra e colega de Money no hospital Johns Hopkins, foi baseada na pesquisa dos dois com intersexuais. Diziam que os pacientes adultos com ambiguidade sexual atendidos e entrevistados se sentiam bem com os gêneros com que foram criados (Ibid.: 138). Desse modo, entendiam que intervir cirurgicamente na infância

No original: “Though physicians had disagreed for over a century about which factors were the most important in determining sex, nearly everyone agreed that several needed to be considered. The gonads, long considered the gold standard, had waned in significance, but other criteria, particularly hormones and chromosomes, and, for older patients, psychology, all needed assessment. Money did not completely abandon those other criteria, but in each publication he emphasized that the ability to craft genitals that most closely approximated those appropriate for boys or girls would best ensure steadfast rearing in that particular gender and, hence, psychologically healthier patients”. 16

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ajudaria ainda mais na garantia da identificação e do papel de gênero desses sujeitos, pois não teriam que passar por fases de constrangimento ou insegurança com seus corpos. A busca por eliminar ambiguidades, dúvidas e mal entendimentos em relação ao corpo intersexual, tanto da própria pessoa quanto do grupo social em que esta se insere, guia as políticas médicas-científicas a partir da metade do século XX. Uma preocupação que sobrevoou toda a genealogia histórica que acompanhamos, mas que vai se impor como um protocolo médico a ser seguido nos hospitais com todo bebê nascido de genitália ambígua. Portanto, mesmo que a justificativa para as intervenções seja a salvaguarda do “bem estar” relacionado à saúde física e psicossocial do paciente – discurso que, como iremos ver, se mantém nos gerenciamentos atuais –, a necessidade de preservar uma inteligibilidade de gênero e uma lógica heteronormativa, nos moldes escritos por Butler (2008), perpassa os guidelines parentais de cuidado e criação, as “correções” das genitálias ambíguas e as administrações de hormônios para garantir uma morfologia corporal correspondente ao sexo designado.

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Até o momento, utilizei o termo hermafroditismo para definir os casos de ambiguidade sexual tratados ao longo da história. Com suas variações classificatórias, em falso e verdadeiro hermafrodita, e, posteriormente, em pseudo hermafrodita, foi somente 1917, que o termo “intersexo” e “intersexualidade” é finalmente usado para se referir as variedades de ambiguidades sexuais identificadas. Ainda assim, o termo forjado pelo geneticista Richard Goldschmidt não terá um uso recorrente na literatura médica até a segunda metade do século XX (Leite Jr, ibid.: 63). A mudança de terminologia acontece porque, assim como as outras transições analisadas, o discurso médico preocupa-se em consolidar uma taxonomia mais rigorosa e específica a fim de desconstruir a ideia de uma ambiguidade sexual completa, de um sujeito contendo os dois sexos em si, como a etimologia do hermafrodita permitia, e substituir por um termo em que o sujeito está em um dos dois sexos possíveis – somente requerendo auxílio para a descoberta do sexo “verdadeiro”. Assim, aos poucos, o uso dos termos e da ideia de um “estado intersexual”, esperando sua designação sexual “correta”, vai se firmando. Posteriormente, em momentos mais contemporâneos, o termo intersexual passa a ser usado tanto na prática médica e na produção científica, como também se consolida como uma

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categoria identitária e de reinvindicação social e política. Neste sentido, intersexual é um termo para designar variedades de condições congênitas em que a anatomia, em suas múltiplas camadas – genitais, gonadais, hormonais, cromossômicas e moleculares – não se conformam em uma definição padrão de masculinidade e feminilidade entendidos como típicos para homens e mulheres. É, portanto, uma categoria social que reflete variações biológicas e anatômicas das determinações sexuais hegemônicas. As modificações terminológicas contemporâneas, como o novo consenso classificatório feito em 2006, e as disputas políticas entre os movimentos intersexuais, assumindo ou não as categorias médico-científicas, serão explicadas melhor ao longo do segundo capítulo. Como último ponto, é crucial expor que a escolha e utilização do termo na dissertação se insere em afinidade às compreensões e demandas éticas, políticas e culturais feitas pelos movimentos intersexuais internacionais17. De modo que, achando menos patologizante e mais político o termo “intersexual” em vez de “hermafrodita” ou “distúrbios do desenvolvimento sexual”, irei utilizar o primeiro sem aspas para me referir ao longo do texto aos casos e à análise da intersexualidade enquanto tema acadêmico e aposta política. Quando necessário utilizar as outras categorias para ilustrar ênfases e posicionamentos distintos, médico-científicos ou outros em relação aos meus escritos, estarão com aspas ou em itálico para demarcar tal diferença.

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Como vimos, a determinação, a identificação e o manejo dos casos de intersexualidade ao longo dos anos foi modificada continuamente, seja com transições epistemológicas, evoluções técnicas e científicas, ou novos sistemas classificatórios, o entendimento e a abordagem do corpo e do sexo/gênero foram uma preocupação condutora por todos os períodos que percorremos. Do papel social generificado que evidenciava dois tipos anatômicos distintos, ao comportamento e orientação sexual, à uma determinação gonadal, para outra mais uma vez generificada, até uma validez cromossômica e molecular que se consolidará nas próximas décadas. Neste sentido, o gerenciamento da intersexualidade nos diz bastante sobre o sexo como tecnologia de poder, como veridicção da verdade sobre o corpo sexuado, sobre os limites das 17

Ainda não temos hoje, no Brasil, nenhum grupo social e político autodenominado intersexual (ou em qualquer outra variante classificatória apresentada na introdução), militando ou fazendo lobby politicamente de forma estrita para pessoas com ambiguidade sexuais.

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masculinidades e feminilidades continuamente reavaliadas e reiteradas, sobre corpos impossíveis e corpos humanizados – as práticas e saberes se atualizam, com silêncios e incitamentos, que iluminam narrativas normais e dissidentes, e também nossas próprias histórias. Continuemos nos rastros.

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Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores — quanto à estabilidade, à fecundidade e à variabilidade da vida — às normas específicas anteriores, serão chamadas patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes — no mesmo meio — ou superiores — em outro meio —, serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade. O patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida. (...) Se é verdade que o corpo humano é, em certo sentido, produto da atividade social, não é absurdo supor que a constância de certos traços, revelados por uma média, dependa da fidelidade consciente ou inconsciente a certas normas da vida. Por conseguinte, na espécie humana, a frequência estatística não traduz apenas uma normatividade vital, mas também uma normatividade social. Um traço humano não seria normal por ser frequente; mas seria frequente por ser normal, isto é, normativo em um determinado gênero de vida.18

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Canguilhem, Georges. O normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2009.

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2 O engolfamento terminológico e a resistência minoritária

A “ciência” de constituir verdades: do gênero ao dimorfismo sexual

Como acompanhamos no capítulo anterior, o uso histórico do termo hermafroditismo, com suas variações classificatórias cada vez mais científicas, até a chegada dos “estados intersexuais”, marca a identificação da intersexualidade na metade final do século XX. Os corpos “ambíguos” são, nesta época, questionados com protocolos médicos tidos como necessários e urgentes, de modo que as intervenções clínicas e cirúrgicas são realizadas mais precocemente. O ápice desta irredutibilidade encontra-se em um caso acompanhado pelo psiquiatra John Money e sua equipe durante a década de 60 e 70 nos Estados Unidos. Recapitulando a abordagem de Money e seguidores, nesta interpretação do gerenciamento sociomédico da intersexualidade (Machado, 2008a), a escolha para designar o sexo de alguém ocorria principalmente segundo o tamanho, estético mais do que funcional, da genitália do paciente. A identidade de gênero, dizia, podia ser moldada até os dezoito meses de vida da criança (Reis, 2009: 135). Portanto, alterações anatômicas podiam ser feitas desde que o sexo designado fosse reafirmado continuamente através da criação psicossocial. Assim, em casos de 46, XY, isto é, a retratação cromossômica do sexo masculino, a designação ocorria a partir do tamanho “aceitável” para funcionalidade – ereção, ejaculação e posicionamento do meato urinário – se manter com base em uma estética na qual o falus deveria ter, pelo menos, acima de 2,5 centímetros. Deste modo, quando o tamanho do pênis era abaixo dessa medida, entendia-se que não haveria possibilidade de uma vivência plena da masculinidade, a partir das categorias acionadas anteriormente, então se recorria à cirurgia de correção genital e à designação sexual feminina – com as consequentes reiterações psicossociais do sexo designado. Em casos de bebês em que o cromossomo sexual indicava 46, XX, isto é, a retratação cromossômica do sexo feminino, a correção ocorria geralmente para adequar a

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genitália “ambígua” ao sexo cromossômico. Se a genitália fosse maior do que 1 centímetro, esta já seria passível de intervenção cirúrgica (Fausto-Sterling, 2000: 59-60; Dreger, 1998: 183). Dessa maneira, os casos de bebês com cromossomos femininos eram, em sua maioria, designados de acordo com seu cromossomo sexual, indicando a necessidade de manter a fertilidade gonadal, enquanto que nos casos de bebês com cromossomos masculinos, suas designações dependiam do tamanho, da estética e da funcionalidade de suas genitálias. A história que desestabilizou esse protocolo de atendimento foi o de David Reimer, ou, como ficou conhecido na literatura médica, o “caso John/Joan”. David, nascido e registrado como Bruce, era um bebê 46, XY e não-intersexual, ou seja, não tinha nem uma diferenciação no desenvolvimento sexual (cromossômico, gonadal ou anatômico) nem uma genitália ambígua. Quando tinha seis meses de idade, foi diagnosticado com fimose e encaminhado para uma circuncisão dois meses depois. Em 1966, o urologista que realizou a cirurgia, com uma técnica de cauterização, queimou quase que a totalidade do pênis de Bruce. Brian, seu irmão gêmeo e que também tinha a fimose, não realizou a cirurgia. Com o pênis severamente danificado, a família, após descobrir sobre John Money e sua teoria da “plasticidade de gênero”, leva o bebê até a Clínica de Identidade de Gênero, na Universidade Johns Hopkins (Butler, 2004: 59-60). Em Baltimore, Money e sua equipe decidem redesignar o sexo do bebê e cria-lo como uma menina, pois acreditava-se que a ausência de um pênis funcional e esteticamente adequado impossibilitaria a estabilidade psicossocial da criança e o desenvolvimento “normal” da masculinidade. O caso era visto como paradigmático para atestar sua teoria de socialização do gênero, na medida em que um dos irmãos, Brian, seria criado no sexo social masculino, de acordo com seu sexo cromossômico e gonadal, e o outro, Bruce, no sexo social feminino, ajustando hormonal e cirurgicamente o que fosse necessário para adequar a anatomia ao sexo designado. Caso a socialização dos gêmeos ocorresse sem resistências e de modo normalizador, garantindo a fixação do gênero designado para as duas crianças, seria a comprovação ímpar de sua tese. Desse modo, o bebê chamado Bruce torna-se Brenda durante a infância. Os encaminhamentos, além da alteração do registro civil, foi uma cirurgia para a retirada das gônadas testiculares, uma cirurgia preliminar para a criação de uma vagina, contínuas intervenções hormonais e a indicação para os pais criarem a criança de modo mais feminino possível – com muita roupa rosa, penteados, etiquetas, delicadezas e o que mais estivesse associado à corporificação da feminilidade (Fausto-Sterling, 2000: 67). Como o bebê tinha

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apenas dezessete meses de vida na época (o limite para sua tese da “plasticidade de gênero” era até os dezoito meses), Money acreditava fortemente na possibilidade de reajustamento do sexo social (Reis, ibid.: 149). O protocolo de Money, Hampson e equipe, contradizia-se entre práticas de ocultamento e transparência. Por um lado, eles insistiam na conversa e no acolhimento parental, advogando para a instrução completa dos pais sobre a “condição” da criança (Ibid.: 145). Esse esclarecimento ajudaria os pais tanto na verbalização das informações que poderiam ser passadas ou não para a criança como também na reafirmação social do sexo designado da criança. Por outro lado, tentava-se esconder o máximo possível da criança – com o receio de que qualquer dúvida em relação ao seu sexo biológico desmantelaria a reiteração do sexo social designado. Neste sentido, entendiam que evitar e desfazer confusões através de ocultamentos era a única maneira de assegurar a estabilidade da identidade e do papel de gênero da criança. As orientações iniciais chegavam ao ponto de instruir os pais para o afastamento de alguns vínculos de amizade e a mudança de cidade a fim de evitarem suspeitas (Ibid.: 146). Money e sua equipe eram constantemente bombardeados contra seus protocolos de manejo da intersexualidade: alguns profissionais de saúde, como o sexologista Milton Diamond e o psiquiatra Bernard Zuger, já publicavam contra as atuações de Money desde o começo da década de 1970 (Ibid.: 150). Mesmo com as revisões feitas posteriormente, em relação à mudança de cidade pós-cirurgia de redesignação sexual e ao ocultamento completo dos pais e médicos com as crianças intersexuais, muitos médicos e profissionais de saúde continuaram a utilizar seu protocolo original. Como Reis aponta a seguir, Money tentou reavaliar suas estratégias sobre o segredo, mas sem sucesso. A aparente eficácia da sua teoria de socialização do gênero tornou-se consenso tanto na esfera médica quanto no meio midiático, sendo noticiada como a “mais progressiva, a mais liberal, o ponto de vista mais atualizado até o momento” (Fausto-Sterling, 2000: 67). Na verdade, Money e seus colegas estavam cientes acerca da natureza intuitiva das crianças e sugeriram que elas descobririam as coisas se os pais tentassem ocultar a condição médica das mesmas. Eles incitaram os médicos a contarem a verdade para as crianças afetadas. “Logo, longe de sobrecarregá-las com preocupações desnecessárias, é de fato um alívio, para tirar o encargo/peso de preocupações e dúvidas secretas, que o doutor fale francamente com as crianças. A verdade é raramente tão angustiante quanto o mistério do desconhecido” eles aconselham. Usando metáforas das “genitálias incompletas,” Money e seu time pensavam ser melhor para uma criança aprender desde cedo sobre suas limitações corporais, como a esterilidade, do que ser confrontado com tal

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informação mais tarde na vida, quando o choque e o desapontamento podem ser maiores. (Reis, ibid.: 147)19

Portanto, foi “mais tarde na vida”, que David aprendeu sua verdadeira história. Durante a adolescência, após várias fases de resistência, depressão e agressividade20, os pais21 são aconselhados por outros psiquiatras e médicos a revelarem tudo o que aconteceu em sua vida. Aos quatorze anos, mais aliviado em saber que não era “anormal” do que abalado com as constantes mutilações e experimentações feitas em seu corpo, Brenda assume, enfim, o nome de David e a identidade de gênero masculina (Butler, 2004: 60). Depois de sucessivas imposições clínicas22, David finalmente escolhe seus encaminhamentos. Recebeu doses de hormônios masculinos, realizou uma mastectomia para a retirada dos seios crescidos pela hormonoterapia anterior e, entre os quinze e dezesseis anos, fez uma faloplastia. Ainda assim, David urinava por uma fístula na base do pênis e tinha pouca sensibilidade na genitália, devido as muitas cicatrizes no local, porém, parecia conseguir ejacular através do sexo penetrativo (Diamond, Sigmundson, 1997: 8). Ao longo do desenvolvimento de David como Brenda, Money publicava bastante artigos científicos atestando a eficácia de sua teoria da “plasticidade de gênero”, crescendo e fortalecendo ainda mais a aderência e consenso médico-social em seu protocolo. Com a publicação, em 1997, de um artigo revisando o diagnóstico e a abordagem do caso, por Milton Diamond e H. Keith Sigmundson, o psiquiatra supervisor de David durante a adolescência, todo o protocolo da socialização de gênero moneyziano começa a ser fortemente questionado. No

No original: “In fact, Money and his colleagues were cognizant of children’s intuitive nature and suggested that they would figure things out even if parents tried to conceal the child’s medical condition. They urged doctors to tell the truth to affected children. “Thus, far from burdening them with unnecessary worries, it is actually a lifting of the burdens of secret worries and doubts for the doctor to talk frankly with children. Truth is seldom as distressing as the mystery of the unknown,” they counseled. Using the metaphor of “unfinished genitals,” Money and his team thought it best for a child to learn about his or her body’s limitations, such as sterility, than to be confronted with such knowledge later in life when the shock and disappointment might be greater”. 19

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Para conhecer mais detalhadamente a história de David Reimer, ver Diamond, Sigmundson (1997) e Colapinto (2000). 21

A família de David se desestabilizou com o gerenciamento pelo segredo, a mãe também entra em depressão e o pai torna-se alcoólatra (Guimarães Jr, 2014: 51). 22

Butler (2004), a partir de várias documentações, também narra as situações e imposições que David/Brenda passou durante a infância e um pedaço da adolescência, cito algumas: consumo de estrogênio, bullying escolar, repetidas entrevistas médicas, argumentações por parte de Money para que aceitasse construir uma vagina – através de métodos como fazê-lo olhar para várias fotos de vaginas, de mulheres em trabalho de parto, ser forçado a conversar com mulheres transexuais sobre os benefícios da reconstrução da genitália, dentre outros casos mais gráficos (Ibid.: 60).

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documento, os dois desconstroem o mito da “eficácia” e do “sucesso”, pregado por Money, de adequação e estabilização da identidade e do papel de gênero de David enquanto Brenda. Joan sabia que já tinha pensamentos suicidas provocados por esse tipo de dissonância cognitiva e não queria estresse adicional. Joan lutava tanto com os meninos como as meninas, que sempre a importunavam sobre sua aparência masculina e roupas femininas. Ela não tinha amigos; ninguém brincava com ela. "Todos os dias eles vinham mexer comigo, todos os dias eu era provocado, todos os dias eu era ameaçado. Então eu disse que era suficiente…" A mãe relata que Joan era bonita como garota. Mas "quando ele começava a andar ou falar, isso o entregava, e o estranhamento e as incongruências tornavam-se aparentes." (…) Mesmo com a ausência de um pênis, Joan tentava regularmente urinar de pé. Apesar das advertências contra seu comportamento e tal desordem, Joan persistiu a tal ponto que, na escola, ela foi pega urinando em pé no sanitário feminino tantas vezes que as outras meninas recusavam-se a aceitar sua presença no banheiro. A mãe relata que outras garotas ameaçaram “matá-la” se ela persistisse. Joan também ia ao banheiro dos meninos para urinar. (...) John relembra pensar, durante a pré escola até o ensino fundamental, que médicos estavam mais preocupados com a aparência de sua genitália do que si mesmo. As genitálias de Joan eram inspecionadas a cada visita no Hospital Johns Hopkins. John relembra: "Deixe-me em paz e eu ficarei bem … Era bizarro. Minha genitália não me incomoda, e não vejo motivo para que incomode vocês tanto assim". (Diamond, Sigmundson, ibid.: 4-7)23

Entretanto, a crítica feita não foi somente em relação à precocidade e violência das intervenções clínicas e cirúrgicas, ou em relação ao estigma, isolamento e vergonha causados por um protocolo que se reafirmava por meio de ocultamentos e segredos, mas foi feita – especialmente – para combater a visão de que a identidade de gênero pudesse ser maleável socialmente. Contrários às teses de Money sobre as possibilidades de adequação de um sexo social não congruente com o sexo biológico através da criação e do meio ambiente, Diamond e Sigmundson ecoavam noções sobre um “núcleo de gênero essencial, que é ligado irreversivelmente a uma anatomia e a uma determinação biológica do ser” (Butler, ibid.: 62). E

No original: “Joan knew she already had thoughts of suicide brought on by this sort of cognitive dissonance and didn't want additional stress. Joan fought both the boys as well as the girls who were always "razzing" her about her boy looks and her girl clothes. She had no friends; no one would play with her. "Every day I was picked on, every day I was teased, every day I was threatened. I said enough is enough…" Mother relates that Joan was good looking as a girl. But it was "When he started moving or talking, that gave him away and the awkwardness and incongruities became apparent." (…) Despite the absence of a penis, Joan often tried to stand to urinate. Despite admonitions against the behavior and the untidiness, Joan persisted to such an extent that, at school, she was caught standing to urinate in the girls' bathroom sufficiently often that the other girls refused to allow her entrance. Mother recalls the other girls threatening to "kill" her if she persisted. Joan would also go to the boy's lavatory to urinate. (...) John recalls thinking, from preschool through elementary school, physicians were more concerned with the appearance of Joan's genitals than was Joan. Her genitals were inspected at each visit to The Johns Hopkins Hospital. John recalls thinking: "Leave me be and then I'll be fine … It’s bizarre. My genitals are not bothering me, I don't know why its bothering you guys so much"”. 23

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continua sobre a comparação dos dois modelos de inteligibilidade24 de sexo/gênero e do manejo da intersexualidade ao dizer que, Logo, em um caso, como a anatomia se apresenta, como aparece para os outros, e para mim mesma, conforme percebo os outros olhando para mim – esse seria o centro da identidade social enquanto mulher ou homem. No outro caso, como a presença genética do “Y” trabalhando de maneiras ocultas para estruturar a sensibilidade e a auto identificação como uma pessoa sexuada seria o fundamento. Money então argumenta para a facilidade com que corpos femininos podem ser cirurgicamente construídos, como se a feminilidade fosse sempre uma forma de construção cirúrgica, uma eliminação, um cortar fora. Diamond argumenta para o invisível e a necessidade de persistência da masculinidade, a qual não precisa “aparecer” a fim de operar como uma característica fundamental na formação da própria identidade de gênero. (Ibid.: 64)25

Neste registro, enquanto Money e sua equipe aplicavam protocolos de intersexualidade à Brenda, a fim de normalizarem sua anatomia e seu sexo/gênero para a garantia de uma noção normativa de estabilidade psíquica e social, em outro momento, Diamond e seguidores indicavam a verdadeira predisposição e orientação de David (homem 46, XY e heterossexual – ou, como descrevem, “a gynecophilic sexually active male”), que, desta forma, precisava ser restituído à sua naturalidade biológica através de protocolos de transexualidade, como hormonoterapia e faloplastia. Fazendo um parêntese: as diferenças entre os dispositivos de intersexualidade e de transexualidade são evidentes, mas suas complementaridades também são numerosas, e podem se assemelhar principalmente em relação a instrumentalização clínica e cirúrgica usada pelos médicos e profissionais de saúde. Para exemplificar, a hormonoterapia é administrada tanto em bebês e crianças intersexuais quanto em adolescentes ou adultos transexuais; o que difere os primeiros dos últimos seria, à primeira vista, a autodeterminação de suas identidades de gênero e a autorização via consentimento mais esclarecido a realização desses procedimentos médicos em seus corpos. No fim, tanto a intersexualidade quanto a transexualidade “levantam questões Entendo o conceito de “inteligibilidade” a partir da obra de Butler e o penso em diálogo com a noção de “dispositivo” foucaultiano (Foucault, 2011). Neste sentido, a inteligibilidade é produto de ligações entre instituições, categorias, linguagens, moralidades, dentre outras marcas de cognição e reconhecimento baseados na matriz heterossexual compulsória que a autora apresenta e problematiza desde Problemas de Gênero (2008). 24

No original: “Thus, in the one case, how anatomy looks, how it appears to others, and to myself, as I see others looking at me—this is the basis of a social identity as woman or man. In the other case, how the genetic presence of the “Y” works in tacit ways to structure feeling and self-understanding as a sexed person is the basis. Money thus argues for the ease with which a female body can be surgically constructed, as if femininity was always little more or less than a surgical construction, an elimination, a cutting away. Diamond argues for the invisible and necessary persistence of maleness, one that does not need to “appear” in order to operate as the key feature of gender identity itself”. 25

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sobre que tipo de corpo alguém necessita ter a fim de reclamar pertencimento em algum gênero ou se a sensação de pertencimento em um gênero é colorida pela experiência de viver em um corpo que foi tocado pela tecnologia médica”26 (Morland, 2014: 114). Mariza Corrêa (2008) indica outra proximidade dos dois protocolos em suas tentativas de normalizarem/naturalizarem aparências e essências, ao comparar a história de David com a de Agnes, jovem mulher transexual. Ela, ao tomar de forma independente durante a adolescência hormônio feminino, através de receitas dadas por sua mãe, feminiza seus caracteres secundários e mascara seu “verdadeiro” sexo biológico masculino. A partir de então, busca atendimento médico e argumenta que, na verdade, era intersexual. Com essa estratégica de passing, convence vários médicos a realizaram uma cirurgia de redesignação sexual para ajustar de forma coerente sua anatomia ao seu self feminino – um desses médicos era o psiquiatra e psicanalista Robert Stoller, especialista da época em transexualidade e, assim como seu contemporâneo John Money, também pioneiro no uso científico do conceito de “identidade de gênero”27. De modo que esses tratamentos são influenciados não só por concepções históricas sobre o sexo, o gênero e a sexualidade, mas também por contextos científicos e intelectuais. Money combinava uma noção de determinismo psicanalítico e de psicologia do ego para justificar a “prática terapêutica” das cirurgias precoces em crianças. Imaginava que para que a diferenciação psicossexual ocorresse de forma “adequada” era preciso que as genitálias estivessem “corretas”, “normalizadas” e visíveis; o tratamento clínico e psicológico posterior ajudaria a guiar a modelização do gênero de acordo com o sexo designado e a assentar os conflitos interiores entre a anatomia corporal e a construção do self do indivíduo intersexual (Morland, 2009a: 195). Iain Morland, intersexual, pesquisador do tema e professor de literatura inglesa na Universidade de Cardiff, comenta sobre a conjuntura médica e científica do período: A cirurgia de designação de gênero parecia, portanto, exemplificar uma natureza humana, precisamente porque ensinou a lição de que humanos não tem uma natureza em particular. Segundo esses jeitos (e sem dúvida em muitos outros), o modelo de tratamento tradicional atravessa os múltiplos entendimentos da construção da pessoa na cultura Ocidental – uma mistura

No original: “(…) both intersex and transsexuality raise the question of what kind of body one needs to have in order to claim membership in a gender and whether a person’s sense of belonging to a gender is colored by the experience of living in a body that has been touched by medical technology”. 26

27

Para conhecer melhor a história de Agnes, ver Garfinkel (2006).

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potente que permite o modelo funcionar como um “polvo ideológico”, que atraiu por muitos anos tanto os tradicionalistas quanto os progressistas.28 (Ibid.)

Voltemos a David Reimer. Ele se suicida em 2004, após um pedido de divórcio de sua esposa. Dois anos antes, seu irmão gêmeo, Brian, também tinha se suicidado (Butler, 2004: 75). Com a exposição de sua história, agravada pelo seu desfecho, assim como Herculine Barbin, há uma revisão da abordagem e do gerenciamento sociomédico da intersexualidade. Em 1998, a psicóloga Suzanne Kessler publica Lessons from the Intersexed, uma publicação marcante para o tema na qual argumenta que a maneira com que médicos e profissionais de saúde manejavam a intersexualidade era guiada mais pela cultura e seus conflitos valorativos sobre gênero, sexo e anatomia do que sobre as necessidades exclusivas da criança. Aos poucos se evidenciam os ruídos do processo contemporâneo de veridicção da intersexualidade. De modo que essa nova onda crítica aos protocolos de intersexualidade resulta em modificações de manejo. Em 1999, uma conferência médica realizada em Dallas, Texas, nos Estados Unidos, reforça duas estratégias que seguirão como metas a serem atingidas até hoje: mais pesquisas a longo prazo e esclarecimento sobre todas as informações do caso para o paciente assim que for possível (Diamond, 2004: 9). A normativa para uma maior produção de avaliações longitudinais existe, mas ainda são escassas. Enquanto a técnica de “ocultamento” perde valor e referência nas atualizações do discurso médico contemporâneo, ainda hoje são reiteradas a precocidade das intervenções cirúrgicas como forma de atenuar o mais breve possível a angústia e o sofrimento das pessoas intersexuais e seus familiares. Mas os resultados dessa precocidade cirúrgica continuam a não ser avaliados uniforme e metodologicamente pelo mesmo saber científico que defende tal intervenção. Conforme dois urologistas pediátricos descrevem em um texto sobre os tratamentos e resultados da reconstrução cirúrgica em pacientes com hiperplasia adrenal congênita: Resultados acerca das cirurgias feminizantes, como a genitoplastia, são únicos no sentido de que seus efeitos são desconhecidos por cerca de 15 a 20 anos. Isso faz com que quase todos os estudos sejam desatualizados, fazendo com que muitos cirurgiões questionem a validade de seus procedimentos. A triste realidade é que os resultados atuais das vaginoplastias e clitoroplastias reportam pouca eficácia, com estenose vaginal identificada em 30-90% dos casos e resultados cosméticos ruins em até 50% dos casos. Além do mais, as revisões No original: “The surgical assignment of gender therefore seemed to exemplify human nature, precisely because it taught the lesson that humans have no nature in particular. In these ways (and doubtless several others), the traditional treatment model straddles multiple understandings of selfhood in Western culture — a potent mix enabling the model to work as an “ideological octopus,” which has appealed for many years to traditionalists and progressives alike”. 28

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que os cirurgiões fazem de seus resultados focam no tamanho do canal vaginal, em sua aparência cosmética, e sua contingência, enquanto que os pacientes se preocupam mais com a sensação e satisfação sexual, como o orgasmo, a lubrificação e um sexo penetrativo sem dor. A aparência cosmética e os resultados funcionais iniciais quase sempre são favoráveis. São os resultados a longo prazo que nosso conhecimento precisa traduzir para melhorar os resultados finais. Assim, a revisão de literatura é frustrante porque o tipo de procedimento usado, a origem e o nível de virilização, a localização da confluência vaginal, e a qualidade do controle endocrinológico são, por muitas vezes, desconhecidos. (Rink, Whittam, 2014: 282-283)29

No Brasil, a conduta padrão para os casos de hiperplasia adrenal congênita também é, como iremos ver, a genitoplastia feminilizante. Esse manejo é justificado, como já observamos, pela “crença de clínicos na melhora do estado psicológico da criança e da família”. No entanto, as

pesquisas

realizadas

por

médicos

nacionais

e

internacionais

sugerem

mais

comprometimentos cirúrgicos do que benefícios, principalmente em relação ao desempenho sexual. Este se compromete seriamente com a realização da cirurgia clitoriana nesses casos de intersexualidade, e mais além, tais procedimentos não são explicados em suas totalidades (dos riscos cirúrgicos aos limites dos resultados estéticos e funcionais) para familiares de crianças e jovens intersexuais. A problematização desta falta de consentimento esclarecido será detalhada nas descrições dos casos posteriores. Mas nos termos de médicos e pesquisadores brasileiros, Bebês e crianças jovens são incapazes de se opor a qualquer procedimento. Então, a cirurgia genital para eles não é só uma questão médica, mas também moral. O debate ético com as partes interessadas deve, portanto ser encorajado. Isso pode corroborar a opinião dos grupos de apoio de intersexo que acreditam que a decisão de se fazer uma cirurgia precoce é tomada mais para satisfazer aos pais e clínicos do que às crianças. Porém mais estudos precisam ser feitos, com uma amostra mais significativa e que comparem indivíduos portadores de genitália ambígua que foram submetidos à cirurgia corretiva com aqueles sem cirurgia, a fim de se eliminar o fator de confusão gerado pela patologia de base (Mello et al., 2010: 38).

Tal debate clínico e ético é despertado com o detalhamento da história de Reimer. Mobilizam-se e estabelecem-se novos fundamentos para se pensar o dimorfismo sexual, em níveis cada vez mais genéticos e hormonais, sobretudo com o reconhecimento científico das

No original: “Outcome data for feminizing genitoplasty is unique in that results are not known for 15–20 years. This makes nearly all studies outdated, causing many surgeons to question their validity. The unfortunate reality is that current reported outcomes of vaginoplasty and clitoroplasty are poor, with vaginal stenosis being noted in 30–98% and poor cosmetic results in up to 50%. Furthermore, the surgeons reviewing their results have focused on vaginal size, cosmetics, and continence, whereas the patients are more concerned with sexual sensation and satisfaction, orgasm, lubrication, and pain-free intercourse. Cosmetic and early functional results have nearly always been favorable. It is the long-term outcomes where our increased knowledge must translate to improved results. Review of the literature is frustrating because the type of procedure used, the original degree of virilization, the location of the vaginal confluence, and the quality of endocrinologic control is often unknown”. 29

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influências pré-natais no subsequente comportamento sexual e generificado dos indivíduos. Neste sentido, o sexo de criação passará a ser decidido, na maior parte das vezes, segundo o sexo cromossômico e suas consequentes representações/variações hormonais. Considera-se não só os efeitos estéticos e anatômicos das reconstruções cirúrgicas, mas também a centralidade dos manejos clínicos para preservar ou estimular certas funcionalidades fisiológicas, hormonais, sexuais e reprodutivas. Em meio às muitas controvérsias que se acumulam, reuniões e conferências médicas continuarão a ser feitas com o objetivo de compartilhar novos materiais clínicos sobre os tratamentos e resultados do gerenciamento médico da intersexualidade.

Nova revisão classificatória? Os consensos sobre as desordens, os distúrbios e as anomalias30

A partir da década de 1990, a intersexualidade passa a ser entendida por outros registros. A preponderância médico-científica na identificação dos casos de intersexualidade ainda se mantém, porém, outros discursos e práticas, como narrativas e autobiografias de intersexuais expandem o domínio político de como esses sujeitos serão reconhecidos e tratados. O grau de atenção que o caso de David Reimer trouxe para o protocolo de intersexualidade foi imenso, com ele também se evidenciou o impacto deletério e violento, principalmente em níveis psicossociais, da insistência em classificações e representações patologizantes de diferenças e ambiguidades – variações não inteligíveis do que se esperam de corpos, sexos, gêneros e sexualidades. Irei abordar na próxima seção as consequências e controvérsias que tais classificações exercem em movimentos sociais e políticos intersexuais. Por ora, vou me aprofundar nas duas últimas décadas, entre 2000 e 2010, ambas marcadas pela consolidação de novos manuais diagnósticos e de gerenciamento da intersexualidade, cada vez mais específicos, codificados e “neutros”. Nesta direção, afinado com os debates e as disposições internacionais sobre o tema, o Conselho Federal de Medicina, na resolução de nº 1.664, de 2003, indica a seriedade de tratar da intersexualidade, ou melhor, dos pacientes portadores de “anomalias da diferenciação Algumas ideias desenvolvidas e discutidas aqui foram primeiramente elaboradas na versão “Agenesia Humana: alguns percursos médico-científicos em casos de intersexualidade” (2014). 30

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sexual”31, por ser uma “urgência biológica e social”. Tanto biológica, já que, no entendimento médico, “muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida”, como também social, “porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do prognóstico, também do paciente, gera graves transtornos”. O “transtorno”, como já vimos repetidas vezes, é duplo, da anomalia e do drama. A atenuação do sofrimento psicossocial dos intersexuais e seus familiares por estarem em situação de limiaridade – como, por exemplo, a criança estar sem registro civil atestando sua existência social – é uma estratégia discursiva repetida inúmeras vezes para validar o diagnóstico e a continuidade das intervenções clínico-cirúrgicas. De modo que, mesmo com as revisões pós-David Reimer e a politização dos grupos intersexuais, o protocolo e manejo dos casos de intersexualidade continuariam sendo vistos como urgentes, pois desestabilizam lógicas e coerências hegemônicas de como registrar, como viver, como socializar. Nesta tendência, então, dois endocrinologistas pediátricos referenciados nacionalmente expõem em uma de suas avaliações sobre o tema que “todo paciente com anomalia da diferenciação sexual constitui uma emergência, tanto no sentido de risco de vida (em situações de perda de sal, por exemplo, nas hiperplasias adrenais congênitas) quanto no sentido da integridade psicossocial” (Damiani, Guerra-Júnior, 2007: 1016). A busca por validar o manejo dos casos de intersexualidade, bem como garantir a legitimidade das intervenções clínico-cirúrgicas após as críticas e dúvidas levantadas com a história de Reimer, ajusta-se na medida em que o discurso médico se mobiliza para sanar essas indisposições e desaprovações por meio de produções científicas mais intensas, especializadas e que produzem consenso na área. Assim, em 2005, uma conferência proposta pela Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society (PES) e pela European Society for Paediatric Endocrinology (ESPE), reuniu cerca de cinquenta médicos de várias especialidades32 – e, apesar de pioneira neste sentido, apenas duas participantes intersexuais, as ativistas Cheryl Chase e Barbara Thomas33 – para discutirem e pensarem sobre os protocolos, manejos e gerenciamentos No artigo primeiro da resolução, especificam que consideram “anomalias de diferenciação sexual as situações clínicas conhecidas no meio médico como genitália ambígua, ambiguidade genital, intersexo, hermafroditismo verdadeiro, pseudo-hermafroditismo (masculino ou feminino), disgenesia gonadal, sexo reverso, entre outras” (Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.664/2003). 31

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A única participante brasileira do Consenso, a endocrinologista Berenice B. de Mendonça, também foi a única médica latino-americana convidada para a reunião. 33

Cheryl Chase (pseudônimo de Bo Laurent) é uma ativista intersexual norte-americana que fundou, em 1993, o grupo de suporte Intersex Society of North America. Barbara Thomas é uma ativista intersexual alemã que participa do grupo de suporte XY-Frauen e Androgen Insensitivity Syndrome Support Group UK (AISSG UK).

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sociais, médicos e científicos que envolvem casos de intersexualidade. Desta reunião, resultou a produção do texto Consensus Statement on Management of Intersex Disorders (2006), no qual chegam a alguns acordos comuns: necessidade de reformulação da nomenclatura vigente; maior e melhor comunicação entre médicos, pacientes e familiares; e uma abordagem mais cautelosa em relação a cirurgia – principalmente devido à falta de estudos longitudinais para atestar os resultados e a eficácia cirúrgica, porém, continuariam indicando a intervenção precoce em muitos casos. Logo, os médicos e participantes do Consenso entenderam que devido à pequena evidência sobre os benefícios e resultados positivos das cirurgias de correção genital em crianças, não podiam advogar – como alguns médicos e cientistas faziam antigamente – que as intervenções cirúrgicas “melhoravam o vínculo entre a criança e os pais, diminuíam a aflição parental com as genitálias atípicas, asseguravam o desenvolvimento da identidade de gênero em acordo com o gênero designado, ou eliminavam de vez a condição intersexual” (Reis, ibid.: 156). Contudo, apesar do documento deixar de conectar a “eficácia” da designação sexual com a realização de uma intervenção cirúrgica, afirmando que cirurgias só deverão ser consideradas em casos de virilização severa (Prader III-V)34, e feitas em conjunto com a reparação do trato urinário (Lee et al., 2006: e491), alguns pontos em relação aos procedimentos cirúrgicos ainda são bastante incisivos. Por exemplo, a indicação é de remoção precoce dos testículos em pacientes com Síndrome de Insensibilidade (Parcial ou Completa) aos Andrógenos35 criadas no sexo social feminino devido a possibilidade de malignidade do tecido gonadal – enquanto que reportam, logo em seguida, que o relato mais breve de diagnóstico de malignidade do tecido testicular foi aos 14 anos, isto é, após a puberdade (Ibid.: e492). Barbara Thomas, ativista intersexual que participou da reunião que ficou conhecida como “Consenso de Chicago”, reflete no seu relatório sobre a conferência ao dizer que esta posição é “extremamente decepcionante” 34

A escala Prader é uma classificação de virilização elaborada em 1954 para lidar com os níveis de ambiguidade genital, sendo elas: Prader I – aumento isolado do clitóris, indicando que a virilização tenha ocorrido após 20 semanas de vida intrauterina (VIU); Prader II – aumento do clitóris associado a um introito vaginal em forma de funil, podendo visualizar-se aberturas uretral e vaginal distintas, indicando virilização iniciada com 19 semanas de VIU; Prader III – aumento de clitóris associado a um introito profundo, em forma de funil, com a uretra esvaziandose na vagina, como um pseudo seio urogenital, há vários graus de fusão lábio escrotal indicando uma virilização ocorrida com 14-15 semanas de VIU; Prader IV – clitóris fálico com abertura urogenital em forma de fenda na base do falo, indicando virilização ocorrida com 12-13 semanas de VIU; Prader V – fusão lábio escrotal completa e uretra peniana, indicando virilização ocorrida com 11 semanas de VIU (Damiani et al., 2001: 43). A Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos (SIA – e AIS, em inglês) é uma condição ligada ao cromossomo X que afeta indivíduos com cariótipo 46, XY, nos quais há prejuízo total ou parcial do processo de virilização intrauterina devido à alteração funcional do receptor de andrógenos, isto é, dos hormônios masculinos (Melo et al., 2005: 88). 35

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(2006a: 4, 2006b: 3). Nesses casos, a remoção quase que automática dos testículos é indicada para que não seja assumido um risco maior, com possibilidade futura de mutação e formação cancerígena do tecido, onde a ausência gonadal seria substituída por mais intervenções clínicas, como a terapia de reposição hormonal. Como se nota, o consentimento e a autodeterminação dos sujeitos intersexuais, crianças ou adolescentes, com seus próprios corpos, não foi uma variável importante para se repensar ou ao menos atrasar as indicações para essas “esterilizações”. Por outro lado, no tópico em que discutem os resultados cirúrgicos, mesmo citando alguns artigos científicos que demonstram resultados satisfatórios com as cirurgias precoces em crianças intersexuais, prezam pelo tom crítico ao demonstrarem os riscos e alguns dos efeitos deletérios nas cirurgias, como a clitoroplastia – que pode resultar em diminuição da sensibilidade sexual e perda de tecido clitoriano – ou a vaginoplastia – que carrega o perigo de formar cicatrizes e, assim, de repetição dos procedimentos até que a função sexual seja alcançada. Por fim, indicam que “não há triagem de controle clínico para atestar a eficácia das cirurgias precoces (até os 12 meses de idade) versus as cirurgias posteriores (feitas na adolescência e em adultos)” ou até mesmo da “eficácia dos diferentes tipos de técnicas” para a realização dos procedimentos cirúrgicos (Lee et al., ibid.: e496). De toda maneira, o objetivo principal dessa produção foi, além de atualizar os manuais de diagnósticos e manuseios dos casos de intersexualidade, o de eliminar os “termos que pudessem causar dúvidas e/ou dar a conotação de o indivíduo ser ou estar sendo criado em um sexo incompatível com o seu diagnóstico” (Damiani, Guerra-Júnior, 2007: 1014). Em outras palavras, o Consenso teve a função de determinar novas (e mais neutras) categorias classificatórias com o intuito de: 1) diminuir o caráter patologizante do termo “hermafrodita”, que vimos genealogicamente no primeiro capítulo, 2) também de evitar a confusão e adesão política do termo “intersexual” (termo que muitos pais de crianças intersexuais evitam por passar uma impressão de um “terceiro sexo”) e, 3) principalmente, de afinar a terminologia diagnóstica para melhorar o cuidado médico de “homens” e “mulheres” designados, ao mesmo tempo em que afasta as possibilidades de fissuras trazidas pela materialidade ambígua dos corpos a priori intersexuais. Como o próprio texto do Consenso revela, Termos como “intersexual”, “pseudo hermafroditismo”, “hermafroditismo”, “sexo reverso”, e classificações diagnósticas baseadas no gênero são particularmente controversas. Esses termos são percebidos como potencialmente pejorativos pelos pacientes e podem ser confusos para os médicos e os pais também. Nós propomos o termo “distúrbios do desenvolvimento sexual” (DDS), conforme definido pelas condições congênitas

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em que os cromossomos, as gônadas, ou o sexo anatômico se desenvolve de forma atípica. (…) Um léxico moderno é necessário para integrar o progresso molecular e genético dos aspectos do desenvolvimento sexual. Porque os resultados médicos referentes aos procedimentos dos indivíduos com DDS são limitados é essencial usar precisão no momento de aplicar definições e classificações diagnósticas.36 (Lee et al.: e488, grifo meu)

Destarte, para atingir esse efeito de “naturalidade” e “neutralidade” científica na nova classificação da intersexualidade, produz-se um documento definindo uma nomenclatura “calcada em termos cada vez mais ‘técnicos’ e com códigos muito complexos e específicos” (Machado, 2008b: 112). A indicação para descrever com maior precisão, com mais detalhes e em termos da etiologia genética dos tipos de “Distúrbios do Desenvolvimento Sexual”37 (DDS) desloca para um novo lugar a “verdade” sobre a localização do sexo (Ibid.). Para exemplificar, o diagnóstico médico que antes era feito, dentro dos antigos “estados intersexuais”, a partir da classificação de pseudo hermafroditismo masculino, agora torna-se um “DDS 46, XY”38. Ou, caso seja possível, preza-se na utilização do termo descritivo do “distúrbio específico”, como a Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos. De modo que a crescente centralidade da genética e da biologia molecular na produção de conhecimento sobre o tema é notável. A genética detém atualmente o grau de maior legitimidade para a explicação sobre a diferenciação, a determinação e o desenvolvimento sexual. Como vemos na introdução de um livro chamado Genetic Steroid Disorders39 (2014), a presença da linguagem biogenética

No original: “Terms such as “intersex,” “pseudohermaphroditism,” “hermaphroditism,” “sex reversal,” and gender-based diagnostic labels are particularly controversial. These terms are perceived as potentially pejorative by patients and can be confusing to practitioners and parents alike. We propose the term “disorders of sex development” (DSD), as defined by congenital conditions in which development of chromosomal, gonadal, or anatomic sex is atypical. (…) A modern lexicon is needed to integrate progress in molecular genetic aspects of sex development. Because outcome data in individuals with DSD are limited, it is essential to use precision when applying definitions and diagnostic labels”. 36

Tradução de “Disorders of Sex Development” (DSD), a nova classificação dos “estados intersexuais”, de acordo com o Consenso de Chicago. Particularmente, preferi traduzir o termo “disorders” para “distúrbios” primeiro por ser uma tradução que evidencia bastante o caráter patológico do termo, mesmo que a tradução mais próxima da inscrição inglesa seja “desordens” (e apesar de muitos artigos médicos nacionais traduzirem como “anomalias”), e também porque meus interlocutores de campo chamam os casos de intersexualidade que atendem de “DDS”, portanto, “Distúrbios/Desordens do Desenvolvimento Sexual”, e não “ADS” ou “Anomalias do Desenvolvimento Sexual”. 37

As outras mudanças foram: pseudo hermafroditismo feminino para “DDS 46, XX”, hermafroditismo verdadeiro para “DDS ovotesticular”, homem XX para “DDS testicular 46, XX”, sexo reverso XY para “disgenesia gonadal completa 46, XY” e síndrome de Turner/Klinefelter para “DDS ligado ao cromossomo sexual”. 38

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Este livro foi organizado e editado, em conjunto com médicos de outras especialidades, pela endocrinologista Dra. Maria New, tida como referência nos estudos dos “distúrbios do desenvolvimento sexual”, especialmente nos casos de hiperplasia adrenal congênita. Dentre os médicos e pesquisadores que contribuíram para a organização do livro, encontram-se onze brasileiros.

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é indispensável para se pensar hoje o que entendem como os “distúrbios do desenvolvimento sexual”: A história dos distúrbios esteróides é muito antiga. A primeira publicação reportando um cadáver com genitália ambígua, cujo sexo tinha sido trocado de mulher para homem, foi-me descrita por um dos meus mentores, Alfred Bongiovanni. O cadáver era de um homem que se descobriu, durante a autópsia, ter ovários, útero, trompas de Falópio, e as adrenais extremamente inchadas. Esses achados foram considerados pelo anatomista, de Crecchio, uma descoberta maravilhosa e misteriosa. A publicação feita por de Crecchio é considerada por muitos o primeiro caso reportado de uma mulher com hiperplasia adrenal congênita criada como homem40. (…) Estudos iniciais dos distúrbios esteróides investigaram o metabolismo esteróide na urina, e mais tarde usaram os níveis hormonais do soro sanguíneo para identificar os distúrbios. Depois disso, os distúrbios esteróides se beneficiaram sobremaneira com o advento da biologia molecular. Realmente, este livro serve para demonstrar que cada distúrbio esteróide causando uma anormalidade tanto clínica quanto bioquímica nos pacientes agora tem uma base genética.41 (New et al., 2014: 1, grifo meu)

A antropóloga Paula Sandrine Machado, em um texto na qual analisa a nomenclatura pós-Consenso de Chicago e suas implicações regulatórias, diz que a “etiologia genética constitui-se, assim, como uma versão naturalizada do sexo, que balizaria a diferenciação entre homens e mulheres em um nível profundo, posição outrora ocupada principalmente pelas gônadas” (2008b: 113). Nesta mesma publicação, introduz o prolífico conceito de “sexocódigo” para demonstrar como os novos conhecimentos da biogenética geram deslocamentos nas formas de pensar e lidar com o corpo e o sexo/gênero. As novas terminologias emergem, portanto, entrelaçando posições cada vez mais técnicas e descritivas com demandas, por sua vez, cada vez mais ético-políticas. As classificações dos “distúrbios/desordens/anomalias” são atravessadas por códigos, seja dos cromossomos sexuais ou dos genes em mutação42. Contudo, o aprofundamento das

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Publicação datada do ano de 1865.

No original: “The history of steroid disorders is very old. The first published report of a cadaver with ambiguous genitalia whose sex was changed from female to male was given to me by one of my mentors, Alfred Bongiovanni. The cadaver was a male who was found at autopsy to have ovaries, uterus, and Fallopian tubes, and the adrenals were extremely large. These findings were considered by the dissector, de Crecchio, to be wondrous and mysterious. This publication by de Crecchio is considered by many to be the first report of a female with congenital adrenal hyperplasia raised as a male. (…) Early studies of steroid disorders investigated steroid metabolites in the urine, and later used serum hormone levels to identify the disorder. Thereafter, steroid disorders benefited greatly from the advent of molecular biology. Indeed, this book demonstrates that each steroid disorder causing both clinical and biochemical abnormalities in patients now has a genetic basis”. 41

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Com os avanços dos estudos da biologia molecular, começamos a conhecer alguns dos genes que estão envolvidos no desenvolvimento sexual e, consequentemente, nos casos de “DDS”. É o caso do “DDS testicular 46, XX”, nova terminologia do que era conhecido como homem XX, em que há uma translocação do gene SRY (e

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classificações moleculares se contrasta com um gerenciamento sociomédico ainda baseado na coerência do fenótipo. A localização do sexo pode estar na etiologia genética, porém, sua reiteração ocorre na materialidade do sexo/gênero designado em cada corpo intersexual. Desta forma, a fabricação do consenso dos protocolos em casos de intersexualidade não se faz apenas em níveis da produção de conhecimento médico-científico, mas também na prática e no manejo diário desses casos. Mesmo com a importância da genética na localização do sexo pela definição do cariótipo ou da mutação genética do tipo de “DDS”, a endocrinologia é a especialidade em evidência, pois administra diferentes áreas e profissionais de saúde no atendimento de pacientes intersexuais. No próximo capítulo, descreverei mais sobre essa organização hospitalar e esse gerenciamento sociomédico, que atravessam dinâmicas e controvérsias do novo consenso científico sobre intersexualidade.

Controvérsias: sobre os protocolos, as classificações e a política

Conforme apontei anteriormente, no final do século XX inicia-se um processo de revisão dos discursos “autorizados”, o saber e a prática médico-científica, para outros agentes capazes de verbalizar, representar e mobilizar politicamente demandas dos sujeitos intersexuais. Essa multiplicação de movimentos sociais e grupos de suporte durante a década de 1990, principalmente depois dos questionamentos levantados pela história de David Reimer, pode ser entendida dentro de um recorte maior, na qual uma vasta literatura acadêmica nomeia criticamente como um momento de “pós modernidade”43. Podemos descrever o conceito como uma tentativa crítica de descolonizar discursos e práticas para outras formas de representações e narrativas, marcado por um momento histórico que se constituiu em repensar e superar alguns preceitos e vícios modernos. Todavia, tais possivelmente outros genes), usualmente um gene presente no cromossomo Y, mas que aqui surge no cromossomo sexual X – de modo que se desencadeia na vida intrauterina uma diferenciação sexual masculina, mesmo com o cariótipo 46, XX. Há casos mais raros desse tipo de “DDS”, em que o indivíduo de fenótipo masculino e cariótipo 46, XX não apresenta translocação do gene SRY, indicando que haveriam muitos outros genes, autossômicos e/ou ligados ao X, responsáveis pela determinação gonadal (Damiani et al., 2005: 80). 43

Especificamente aqui, para entender o termo dentro do recorte antropológico que pensa racionalidade, regimes de verdade e produção de discursos, artificialidade, biopoder, escrita etnográfica, dentre outros temas dialógicos da conjuntura reflexiva apelidada de “pós moderna”, ver Rabinow (2002).

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deslocamentos se davam ainda dentro de tradições de pensamento e de conhecimento iluministas e românticas, constituintes da dita “modernidade” na cultura ocidental (Duarte, 2012). Como Facchini e Ferreira descrevem da efervescência do período, Esse período está relacionado a um conjunto de eventos históricos e movimentos sociais nos quais despontaram sensibilidades gestadas a partir de novas formas de entender o poder e a política. A luta contra o colonialismo e o nascimento, em várias partes do mundo, do movimento pelos direitos civis, dos movimentos ecológicos e pacifistas e, em especial, a emergência da contracultura e das reivindicações políticas e epistemológicas dos movimentos feministas e homossexuais possibilitaram o engendramento de novas práticas, ferramentas conceituais, sistemas de conhecimento, saberes científicos e linguagens jurídicas que modificaram as maneiras de viver, conceber e entender as relações antes restritas ao mundo privado e da intimidade. (Facchini, Ferreira, 2013: 165)

Podemos citar então, como exemplo, as críticas feitas pelos movimentos feministas contra a noção de um essencialismo metafísico do ser – e que, no limite, levou a um questionamento sobre a amplitude política da categoria “mulheres”, se invisibilizava ou não os contextos e as diferenças de cada vivência feminina. De modo que essa experiência crítica levou, durante as décadas de 1970 e 1980, a proliferação de outras mobilizações políticas, com pautas raciais e lgbt’s. De maneira similar, outra crítica de cunho pós moderno que se fortificou com as mobilizações lgbt’s – sobretudo com a conjuntura da epidemia de HIV/aids (Gould, 2001) – foi o questionamento das patologizações. Seguindo o rastro do pensamento foucaultiano de que a ideia de normalização dos corpos e das diferenças funda e mantém o biopoder na modernidade, e também de que as próprias construções hegemônicas sobre o tempo e o espaço são generificadas e sexualizadas (Halberstam, 2005), a movimentação política contra com as classificações patologizantes indica uma oportunidade para se repensar as relações de poder e as práticas de produção de verdade sobre o corpo e sobre as identidades. Não haveria mais uma única verdade sobre o sexo, como também não haveria mais o privilégio médico sobre o registro da experiência da intersexualidade. Neste sentido, os primeiros grupos de suporte intersexuais surgem durante a década de 1980. Pessoas com síndrome de Turner, Klinefelter e AIS começam a se reunir, no decorrer da década, para formar os primeiros coletivos intersexuais – nos Estados Unidos, Canadá e Reino

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Unido (Diamond, 2004: 4)44. Posteriormente, em 1993, Cheryl Chase (que participou do Consenso de Chicago descrito no tópico anterior), funda a Intersex Society of North America (ISNA)45, buscando acabar o com estigma perpetuado pelas classificações médicas negativas como também prover suporte para indivíduos com condições congênitas que se encaixem nas descrições de intersexualidade. Durante esta época, o uso do termo “intersexual” ganhou força política e legitimidade enquanto identidade para representação do movimento social – mais além, outros intersexuais aprofundavam a crítica contra a patologização ao vestirem camisetas com os dizeres “Hermafroditas com Atitude” e irem protestar em congressos médicos contra a estigmatização e as cirurgias genitais precoces em crianças (Reis, ibid.: 155). Assim, inicialmente, o ativismo intersexual organiza-se politicamente a fim de contestar as classificações patologizantes e as cirurgias de “correção” genital comumente feitas pelos médicos em pacientes que nascessem com genitália atípica para o padrão hegemônico. Aos poucos, de um registro patológico dos sujeitos, dos corpos e de suas condições, forma-se uma rede que busca não apenas o suporte entre os intersexuais que vivenciam essas intervenções em seus corpos, mas também começam a construir uma marca identitária que se opunha ao saber médico-científico autorizado e supostamente neutro, materializando suas experiências em torno de outros registros: suas experiências, narrativas e políticas46. Outros grupos e movimentos sociais intersexuais começam a ganhar relevância, como a rede global e descentrada Organisation Internationale des Intersexués (OII)47. No site da organização indicam que a “OII tem afiliados em vinte países, em seis continentes, falando dez línguas, incluindo mandarim e árabe”48. Com uma postura mais voltada para a atuação dos direitos humanos, tanto em níveis locais (através de suporte informativo, educativo e médicosalutar) como em níveis estatais (promovendo e influenciando processos decisórios e políticas

Sites dos grupos de suporte: Turner Syndrome Society of the United States – http://www.turnersyndrome.org/; Klinefelter's Syndrome Association (KSA) – http://www.ksa-uk.net/; Androgen Insensitivity Syndrome Support Group (AISSG) – http://www.aissg.org/. 44

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Site da Intersex Society of North America (ISNA) – http://www.isna.org/.

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Para uma discussão aprofundada sobre a abordagem jurídica da intersexualidade, ver a dissertação de Anacely Costa, “Fé cega, faca amolada: reflexões acerca da assistência médico-cirúrgica à intersexualidade na cidade do Rio de Janeiro” (2014), e a tese de Anibal Guimarães, “Identidade cirúrgica: o melhor interesse da criança intersexo portadora de genitália ambígua. Uma perspectiva bioética” (2014). 47 48

Site da Organisation Internationale des Intersexués (OII) – http://oiiinternational.com/.

A capilaridade da rede é enorme, com apoio a organizações em áreas como Palestina (http://www.alqaws.org/) e Uganda (http://sipd.webs.com/). De modo que é surpreendente notar a falta de grupos de suporte e movimentos sociais intersexuais no Brasil.

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públicas), a rede incentiva também à autonomia corporal e autodeterminação das pessoas intersexuais. Dentro deste registro, a filial australiana da OII parece aprofundar essa postura crítica, comunitária e minoritária49 em relação a abordagem política da rede ao expor em seu site que, Reconhecemos os proprietários tradicionais do país por toda a Austrália, sua diversidade, histórias e conhecimento e suas conexões contínuas com à terra e à comunidade. Nós respeitamos e homenageamos todos os povos indígenas australianos e suas culturas, e os anciãos do passado, da geração presente e das futuras gerações. (OII Australia/About/Acknowledgements)50

Nos termos propriamente deleuzianos, este “devir-minoritário” indicaria uma orientação, um “jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou de verdade” (Deleuze, Parnet, 1998: 10). Tal processo representaria “não só polos de resistência, mas potencialidades de processos de transformação, suscetíveis, numa etapa ou outra, de serem retomados por setores inteiros das massas” (Guattari, Rolnik, 1996: 75). Assim, uma orientação minoritária, conforme propõe a OII-Australia, percorre uma política em que outras subjetividades buscam escapar dos poderes e impotências de um estado/uma situação a fim de tornarem-se independentes na medida em que também são reconhecidos, garantem direitos e sobrevivem. Por conseguinte, com a revisão do Consenso de Chicago para uma nova nomenclatura diagnóstica da intersexualidade, apoiando-se em termos mais descritivos e genéticos, mas ainda assim mantendo uma base patológica ao categorizar esses sujeitos como pessoas com “distúrbios do desenvolvimento sexual”, viu-se abrir uma controvérsia entre os grupos de suporte e movimentos sociais e políticos intersexuais. Alguns pais de crianças intersexuais já se sentiam desconfortáveis com o termo “intersexual”, pela categoria passar a impressão de um terceiro gênero ou de alguma coisa entre o feminino e o masculino. Tanto que o termo nunca ganhou aderência de fato no discurso

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Uso o termo pensando em Gilles Deleuze, quando ele diz em uma entrevista que ficou conhecida como o “Abecedário”, que a distinção entre maiorias e minorias não se trata de uma questão quantitativa, mas de desafios de afrontamentos e capturas. Enquanto o primeiro termo indicaria um modelo “vazio”, por exemplo, o do “homem, adulto, macho e cidadão”, o segundo termo seria “todo mundo” não compostos nesse modelo. Nesta concepção, a minoria seria a subtração de uma multiplicidade, um devir-minoritário em que esse “minoritário” compreende percepções “mulher”, “índio”, “criança” etc, singularidades que inventam novas forças ou novas armas contra as formas instituídas. No original: “We acknowledge the traditional owners of country throughout Australia, their diversity, histories and knowledge and their continuing connections to land and community. We pay our respects to all Australian Indigenous peoples and their cultures, and to elders of past, present and future generations”. 50

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médico contemporâneo – estacionou nos “estados intersexuais” no começo do século XX e nunca chegou a ser usado consensualmente como um termo diagnóstico. Com a nova terminologia, há fissuras na mobilização intersexual, onde uma parte expressiva de acadêmicos, pais, ativistas intersexuais e pacientes juntam-se ao consenso classificatório, enquanto outra parte resiste à uma provável assimilação do termo “intersexual” – já politizado e fortificado por anos de mobilização como uma categoria identitária – ao termo clínico, descritivo, apolítico e supostamente neutro dos “DDS”. Neste sentido, após a publicação do texto do Consenso, uma das primeiras organizações de ativismo intersexual, a Intersex Society of North America (ISNA) publica em conjunto com pais de crianças intersexuais, alguns médicos e ativistas intersexuais, dois livros que servem como guidelines para o gerenciamento sociomédico dos “DDS”. Ambas as publicações são derivadas do Consortium on Disorders of Sex Development, realizado pela ISNA51, também em 2006, em que reafirmam o compromisso estabelecido em Chicago para a utilização da nova nomenclatura. Cada documento, o Clinical Guidelines for the Management of Disorders of Sex Development in Childhood (2006a) e o Handbook for Parents (2006b), tem o propósito de “assistir os profissionais de saúde no fornecimento do diagnóstico, tratamento, educação e suporte para crianças nascidas com distúrbios do desenvolvimento sexual (DDS) e para suas famílias” (ISNA/Accord Alliance, 2006a: 1). O objetivo é retirar o caráter ambíguo, estigmatizante e não-descritivo do termo “intersexual” para focar especificamente na condição médica. Importa, nesta perspectiva, assinalar o diagnóstico clínico e centrar a abordagem no cuidado médico ao paciente (Ibid.: 9). Este não deve ser o nó representativo da classificação, mas deve ser o foco do atendimento médico e hospitalar. Assim, o paciente possuiria apenas uma condição congênita em que precisa de cuidados. Ainda que continue sendo entendido como um distúrbio da orientação “normal” do desenvolvimento sexual, esse ativismo enxerga mais ganhos (principalmente voltados para as melhorias de atendimento médico) do que perdas (a manutenção de uma classificação médica patologizante).

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É interessante notar que a historiadora e filósofa da ciência Alice Dreger, que citei bastante no decorrer do primeiro capítulo com seu livro Hermaphrodites and the Medical Invention of Sex (1998) co-dirigiu a ISNA por sete anos (em diversos cargos) e, antes do seu término, organizou, coordenou e editou o DSD Consortium’s e seus guidelines.

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Logo após a publicação desses guidelines, a ISNA se dissolve e, em seu lugar, surge uma nova organização chamada Accord Alliance52, criada em 2008 (Machado, 2014). Nota-se que não leva mais o termo “intersex” no nome. Em seu site, no FAQ com a pergunta “Qual a utilidade da terminologia DDS? Quando esta não é útil?”, eles indicam que um dos problemas das terminologias antigas (como pseudo hermafrodita ou intersexual) é que elas especificam um tipo de identidade, quando, na verdade, a condição não é um aspecto crítico da identidade do paciente. E continuam ao dizerem que, em contraste aos termos antigos, a categoria “DDS” refere-se a condição que a pessoa tem, não ao que a pessoa é – e finalizam: “[o termo novo] procura colocar a pessoa em primeiro lugar” (Accord Alliance, 2014). Pesquisadores do tema também já começaram a se posicionar e, em alguns casos, a assumirem as classificações do Consenso. A filósofa Ellen Feder e a antropóloga Katrina Karkazis, ambas estadunidenses, publicaram um artigo em conjunto sobre as controvérsias da nova nomenclatura. Para elas, a nova classificação busca superar a densa história dos “hermafroditas” e “intersexuais” – cheias de conflitos éticos que marcaram as atuações médicas dos casos nos últimos séculos. Argumentam, em concordância com o que foi descrito anteriormente no site da Accord Alliance, que esses termos antigos identificam grupos de pessoas, e não indivíduos com condições congênitas que tem profundas consequências médicas53. Segundo as duas, a mudança na nomenclatura possibilitou que as pessoas com “condições intersexuais” pudessem ser transformadas de pessoas com “distúrbios únicos” (no original: “disorders like no other”) para pessoas com “distúrbios comuns” (no original: “disorders like many others”) e, assim, tratadas ética e clinicamente como qualquer outra condição médica (2008: 35). Talvez ironicamente, o que faz as condições intersexuais serem únicas, como nenhuma outra, é porque elas foram tratadas tanto pelos médicos visando “corrigi-las” quanto pelos ativistas resistindo as mesmas práticas como uma questão de identidade. Se uma mudança na nomenclatura pode promover o importante desenvolvimento de atenção para as questões médicas genuínas associadas com tais condições intersexuais e deslocar das preocupações com a identidade de gênero, então a intersexualidade pode ser contada entre os muitos distúrbios em que os termos “normal” e “anormal” são tomados para marcar diferenças – algumas consequentes, outras nem tanto – do funcionamento dos corpos humanos. (…) Logo, a introdução dos DDS marca outro momento na história da medicalização dos corpos que desafiam as normas do chamado 52 53

Site da Accord Alliance – http://www.accordalliance.org/.

Essa distinção é importante, pois esclarece muito sobre as dinâmicas conflituosas dos saberes e práticas biomédicas “individualizadas” em contraste com as dimensões mais “holistas” das pessoas intersexuais nos movimentos sociais. Uma válvula de escape desse conflito seria, como já citei na introdução, instigar um cuidado mais “centrado no paciente” (isto é, mais “totalizante” em relação à experiência da saúde/doença).

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desenvolvimento natural do sexo. (…) Seria ingênuo pensar que uma mudança na nomenclatura poderia tirar o estigma de gêneros atípicos. É o último salto – isto é, um enfoque nos distúrbios específicos em questão – que considera a promessa imediata de desmedicalizar aspectos da condição que foram impropriamente patologizados. (…) Nós devemos admitir que enquanto não há terminologia que possa erradicar o estigma de anatomias atípicas, uma nomenclatura que situe as condições no modelo “usual” da medicina – como uma questão de saúde em vez de identidade – pode certamente ajudar a corrigir os muitos erros feitos no passado. (Ibid.)54

Independente das atuações e dos ganhos políticos das duas pesquisadoras – ambas são “aliadas” de movimentos sociais intersexuais –, percebo a proposta das duas neste artigo como bastante paradoxal. Primeiro porque tentam justificar uma terminologia medicalizante (mas que foi “impropriamente patologizante”), através dos termos cada vez mais descritivos e codificados dos sexos cromossômicos, das condições clínicas e dos tipos de síndromes, para a partir das mesmas tentar reavaliar os excessos cometidos em nome do discurso e da prática biomédica. Enquanto este mesmo discurso não possibilitaria, no fim, a criação de uma nomenclatura que possa erradicar completamente o estigma das pessoas que nascem com anatomias fora dos padrões hegemônicos – exatamente porque esses padrões são culturais, e não classificações criadas no vácuo da linguagem médica-científica. Segundo porque indicam que alguns “aspectos” da intersexualidade foram impropriamente patologizados pela biomedicina, não todos. Isto é, a lógica hegemônica científica da diferenciação, determinação e desenvolvimento sexual continua intocada. Assim, por último, ao indicarem que o único caminho possível para um sistema classificatório não seria pela mobilização política identitária (atravessadas e repensadas continuamente pelas noções de gênero e pelas relações de poder), mas sim pelo mesmo discurso médico (que se reatualiza com muito menos celeridade) em que tantos excessos foram cometidos – e alguns ainda são –, de certo modo continuam a legitimar a hierarquia e o privilégio do saber médico em definir padrões

No original: “Perhaps ironically, what makes intersex conditions like no other is that they have been treated, both by physicians aiming to “correct” them and by activists resisting these same practices, as an issue of identity. If the change in nomenclature can promote the important development of attention to the genuine medical issues associated with intersex conditions and so displace the concerns with gender identity, then intersex can be counted among the many disorders for which the terms “normal” and “abnormal” are taken to mark differences— some consequential, others less so—in the functioning of human bodies (…) Thus, the introduction of DSD marks another moment in the history of medicalizing bodies that defy the norms of so-called natural sex development. (…) It would be naive to think that the change in nomenclature can destigmatize gender atypicality. It is the latter shift—that is, a focus on the specific disorders in question— that holds immediate promise for demedicalizing aspects of the condition that have been improperly pathologized. (…) We must grant that while there is no terminology that can eradicate the stigma of atypical anatomies, nomenclature that situates conditions in the “usual” way of medicine—as matters of health rather than identity—can certainly help to correct many of the gross wrongs of the past”. 54

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de normalidade e de conduta. Para essas pesquisadoras tal justificativa seria aceitável já que, pelo menos assim, os sujeitos intersexuais teriam assegurado uma atenção e cuidado médico no modelo usual da Medicina. Mais além, as autoras parecem estar empenhadas em problematizar a politização da categoria intersexual como uma parcela específica da experiência da intersexualidade, ou melhor, das pessoas que vivenciam esses “distúrbios do desenvolvimento sexual”. Conforme Anacely Costa (2014) analisa sobre um texto posterior de Ellen Feder: Em outro artigo que discorre mais detalhadamente acerca do seu posicionamento em favor da nova terminologia, Feder (2009) lembra um ponto importante. A autora observa que as classificações anteriores – intersex e hermafrodita – não descrevem condições médicas, mas conformariam um “tipo” de pessoa. A linha de argumentação dela sugere que os defensores da antiga classificação parecem aceitar com pouca reflexão a produção histórica do tipo patológico intersex e hermafrodita. Nesse caso, a autora diz que parece haver uma aceitação destes tipos como naturais porque se focaria em uma leitura da medicalização apenas como um instrumento político de repressão. (Ibid.: 30)

Ainda que tal crítica seja válida, pois a categoria “intersexual”, assim como o novo sistema classificatório, também surgiu dentro das discursividades médicas, a autora não contempla as possibilidades de transformação conceitual e de autodeterminação dos sujeitos. A ênfase em um diagnóstico mais objetivo e uma assistência médica mais eficiente não invalida as demandas de reconhecimento feitas pelos intersexuais. Protocolos de cuidado médico e hospitalar devem andar juntos com as escolhas e os posicionamentos identitários individuais e coletivos. No limite, tal posição não questiona a problemática hierarquia médica em relação às explicações e definições do sexo e da sexualidade. Entretanto, há alguns contrapontos ao grande consenso atual em que médicos, ativistas, acadêmicos, pais e intersexuais adultos assumem e apoiam o uso do termo “DDS”. Essa outra visão encarna, principalmente, as performances e vozes de ativistas intersexuais e aliados, e que podemos ilustrar com a atuação feita através das redes da OII. Hida Viloria, diretora da OIIUSA, escreveu uma matéria para a revista The Advocate no começo de 201455, no qual ela comenta sua posição sobre o uso da nova terminologia. Não era um insulto intencional às pessoas intersexuais: estavam apenas usando a classificação médica vigente – e provavelmente pegaram de defensores. Sim, alguns defensores dentro dos Estados Unidos usam o termo DDS, particularmente aqueles que trabalham com pais de crianças intersexuais. A razão que me foi justificada é que alguns pais e pessoas intersexuais preferem falar que têm um distúrbio ou uma condição médica do que a atribuir suas 55

Link da matéria: http://www.advocate.com/commentary/2014/05/14/op-ed-whats-name-intersex-and-identity

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diferenças como uma “identidade”. (…) E mesmo que alguns digam que DDS é uma classificação melhor para aqueles que não são andróginos ou LBGT, já que a intersexualidade é associada com os dois, algumas dessas orgulhosas pessoas “intersexuais” são na verdade héteros e normativas em relação à expressão de seus gêneros. Eles perceberam que mesmo que não fossem LBGT, ainda sofreriam discriminação porque nós desafiamos o sexo e as normas de gênero. (…) Eu respeito o direito de todos se identificarem como eles preferirem, mas pessoalmente, falar que sou intersexual soa muito melhor do que dizer que eu tenho alguma coisa – com uma doença.56

É neste sentido que ativistas intersexuais contrários à classificação dos “DDS” vocalizam uma parceria, pelo menos em nível retórico e político, com o movimento das pessoas com deficiência, ao argumentarem que estes nos ensinaram que uma condição atípica não significa necessariamente um distúrbio – e mais, que a diferença não precisa ser vista como inerentemente menor e insuficiente. Se a palavra indica uma necessidade de reparação, então a nova nomenclatura estaria contradizendo a centralidade do ativismo intersexual, que anatomias atípicas não precisam de adequação através de “correções” cirúrgicas e hormonais (Reis, ibid.: 156). A insistência na palavra “distúrbios/desordens” marca uma orientação supostamente lógica e natural do desenvolvimento sexual, na qual corpos que não se encaixam nos modelos binários ainda precisam ser alvos de reconstruções, cuidados médicos e justificativas. Fundamental esclarecer também a contínua vinculação – vista como negativa, ou ao menos suspeita, pelo discurso médico e parceiros – da categoria identitária “intersexual” com os movimentos agora lgbti’s57. Como se todas as pessoas que fossem abrigadas dentro do termo intersexual estivessem em ameaça suspensa de possuírem algum nível de “disforia” de gênero ou de homossexualidade. A lógica heteronormativa das designações sexuais não abandonou a nova terminologia. Por mais que a literatura médica pós-Consenso aponte que uma futura orientação sexual homoafetiva do indivíduo com “DDS” não indique uma falha ou dúvida na designação sexual – como registra o texto do guideline clínico da Accord Alliance de 2006: No original: “It wasn’t intentionally insulting intersex people: It was just using our current medical label — and probably got it directly from advocates. Yes, some advocates in the United States use the term DSD, particularly those who work with parents of intersex children. The reason I’ve been given is that some parents and intersex people themselves prefer to say they have a disorder or a medical condition to labeling their difference an “identity.” (…) And while some say DSD is better for those who aren’t androgynous or LGBT, since intersex is associated with both, some of these proudly “intersex” folks are indeed straight and gender-normative. They realize that even if we’re not LGBT, we’re still discriminated against because we challenge sex and gender norms. (…) I respect everyone’s right to identify as whatever they want to, but personally, saying that intersex is what I am feels much better than saying it’s something I have — like a disease”. 56

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Se, por um lado, não há uma organização estritamente intersexual no Brasil, a incorporação de intersexuais na cena política nacional é fundamental. Com a crescente visibilidade da experiência transexual, também há uma maior inclusão do debate e do reconhecimento das demandas e das experiências intersexuais, mesmo que tais sujeitos ainda sejam, de certa maneira, fragmentados frente à política mainstream gay e lésbica.

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“Hoje os especialistas tratando os DDS geralmente concordam que a orientação sexual do paciente não pode ser a medida de sucesso clínico. Ser gay, lésbica ou bissexual é menos comum, mas, ainda assim, um resultado saudável.” (Accord Alliance, 2006a: 40) – esse gerenciamento sociomédico acontecerá com alguns ruídos, como descreverei no próximo capítulo. Em relação à controvérsia, o próprio Milton Diamond, central em outro conflito, no embate feito com Money e na revisão do caso Reimer, comenta de forma crítica sobre a nova nomenclatura. O consenso sugeriu que o termo “distúrbios do desenvolvimento sexual” deveria ser o substituto para “intersexual” ou para “condições intersexuais”; entretanto, outras partes sugeriram que essa terminologia não é menos estigmatizante que muitos outros termos anteriores, como os “defeitos de diferenciação do sistema genital” ou “erros sexuais”. O maior grupo de suporte intersexual no mundo – Organisation Intersex International – considera esse novo termo negativo, e apoia o uso de expressões não estigmatizantes como “variações do desenvolvimento sexual”, e provavelmente apoiariam o termo “diferenças do desenvolvimento sexual”, que agora nós preferimos. Estes termos reconhecem as variações inerentes às condições intersexuais, mas também respeitam a noção que indivíduos estão sendo retratados em vez de simplesmente distúrbios médicos. (Diamond, Beh, 2008: 3)58

Neste registro, não só Diamond, mas também a historiadora Elizabeth Reis, já comentada e referenciada nesta dissertação, apoia o uso da nova nomenclatura dos “DDS” desde que trocando a palavra “distúrbios/desordens” por outro termo menos patologizante e estigmatizante. No caso de Diamond, ele indica a troca para “diferenças”. No caso de Reis, ela se posiciona a favor do uso de “divergências”. As palavras importam. No mesmo sentido da referência do sexólogo, ela diz que assumir o uso de “divergências” como categoria diagnóstica e classificatória é um passo mínimo, mas sensível, para deixar de marcar os intersexuais como estados físicos destoantes do “normal” que necessitam de reparação (Reis, ibid.: 160). Logo, se a nova nomenclatura entende que as anatomias atípicas são sintomas de condições congênitas, e que estas são meras variações dos caminhos possíveis de desenvolvimento sexual, então não haveria problema na mudança do termo “distúrbios” para No original: “The consortium suggested that the term “disorder of sex development” should be substituted for “intersex” and for “intersex conditions”; however, other parties have suggested that this terminology is no less stigmatizing than many other terms that have been offered, such as “defective differentiation of the genital system” or “sex errors”. The largest intersex support group in the world—Organisation Intersex International—considers such terms negative, supports the use of nonstigmatizing expressions such as “variety of sex development”, and would probably support the term “differences of sex development”, which we now prefer. These terms acknowledge the variations inherent in intersex conditions, but also respect the notion that individuals are being portrayed rather than just medical disorders”. 58

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“divergências” ou “diferenças”. Mas é exatamente pelo risco dessa modificação indicar que o peso maior do tratamento dos intersexuais é de caráter cultural, isto é, revelando os problemas de gênero – e as necessidades hegemônicas de “correção” e normalização dos corpos – e não exclusivamente no atendimento e cuidado médico-hospitalar como o ponto nevrálgico do gerenciamento, que tal mudança não foi e não é realizada. A integridade corporal atravessa a linguagem. Enquanto os termos do debate sobre intersexualidade focarem de maneira seletiva no consenso científico e no tratamento clínico, e não abrigar as críticas e possibilidades da discussão sobre gênero, sexualidade, política e poder, excessos e estigmas continuarão a serem produzidos e proliferados através de discursos e práticas, sejam elas acadêmicas ou médicas.

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La promesa de mi médico a mi familia fue la de transformarme en una mujer verdadera; una franja de insensibilidad entre el ombligo y el pubis, cruzada por cicatrices, es la marca de la promesa. (Mauro Cabral)

Un anochecer de noviembre de 1958, mi madre había entrado al baño donde yo estaba jugando en la bañera. Había ido al doctor unos pocos días antes y los hombres habían mirado entre mis piernas. Ella me dijo que debía ir al hospital al día siguiente para una operación. Recuerdo algo huyendo de mí en ese momento, como viento a través de una puerta que se cierra–– todo mi poder escapándose. No se me dio ninguna explicación de la cirugía, y cuando el cirujano cortó la mayor parte de mi clítoris de media pulgada, fue como si hubiera cortado mi lengua. No pude llorar a los gritos para salvarme, y ese grito ahogado apretaba mi garganta, bloqueando mi voz. Miedos sin fin acerca de quién y qué era yo tomaron el lugar de las palabras, y se instalaron como un velo sobre mí. (Martha Coventry)

A los 16, cuatro años después de la última de nueve cirugías, empecé a pensar seriamente qué carajos podía haber sido peor que esta amasijo de carne con costuras, insensible al tacto y repugnante a la vista. ¿Mear sentado de por vida hubiera sido peor? ¿Cómo pudo alguien convertir mi cuerpo en esto? (Ariel Rojman)59

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Cabral, Mauro. En estado de excepción: intersexualidad e intervenciones sociomédicas. In: Cáceres, C. F.; Careaga, G.; Frasca, T.; Pecheny, M. (eds.). Sexualidad, Estigma y Derechos Humanos. Desafíos para el acceso a la salud en América Latina. Lima: FASPA/UPCH, 2006.

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3 Vidas verificadas, sofrimentos vividos

Uma etnografia da biomedicina: a ciência em ação hospitalar

Escrever sobre os manejos clínicos de profissionais de saúde, percursos que também estão atravessados por implicações sociais e políticas, não é uma tarefa fácil. A biomedicina é um “objeto”, como explicou Octavio Bonet, que afeta a todos em sociedade. Ela sempre exige de nós uma tomada de posição (2004: 15). Este posicionamento, em nível metodológico, não foi isento de isolamentos e estranhamentos. De modo que espero situar um pouco das referências que me ajudaram a refletir sobre esse “estar lá” e os processos de escrita, antes de narrar propriamente os dados e as experiências de campo. Assim, de antemão, percebo que o recorte da dissertação se insere dentro de uma linha mais geral antropológica-etnográfica dos “studying up” (Nader, 1972). Tais estudos podem ser descritos como diferenciais à tradição metodológica pela escolha do pesquisador em estudar grupos, dentro de sua própria sociedade, com dinâmicas de poder distintas (mas não necessariamente inversas) aos registrados nas interações com os “nativos” ou os “colonizados” – sujeitos mais clássicos da inquietação e do estudo antropológico. Dessa maneira, em vez de tecermos uma relação desigual, a priori, “de cima para baixo”, examinando eventos e pessoas segundo recortes em que a mobilidade e estrutura de poder seriam mais “precárias” ou menos evidentes,

escolhe-se

pesquisar

situações

ou

grupos

que

participam

ativamente

(conscientemente ou não) dessas malhas de produção de discurso e poder. Assim, o estranhamento e o distanciamento causados pela pesquisa não seriam uma propriedade única dos “estudados”, mas seriam compartilhados também pelo pesquisador, a partir das assimetrias de poder impostas pela reconfiguração dos reconhecimentos e papéis sociais dos sujeitos em jogo no campo. Neste mesmo registro, a “ciência em ação” presente nas etnografias de laboratórios (Latour, 2000 e Latour, Woolgar, 1997) também faz eco aqui. O estudo, a partir das descrições

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densas dos espaços e das práticas cotidianas nos laboratórios, busca relatar como se produz uma diferença de conhecimento específica das sociedades ocidentais – a junção de um fato científico com um artefato técnico através de inscrições, experimentos, manipulações e deslocamentos que moldam a reflexão e o fazer científico. O que interessa nessa visão de ciência é percebê-la também como uma construção social, “marcada pelas contingências situacionais e pelos interesses específicos dos contextos nos quais tais construções são realizadas” (Bonet, ibid.: 23). Este fazer etnográfico se desenvolve ao tentar elucidar “como” se mediam e desenrolam os caminhos para que um enunciado científico seja incorporado como consensual, ou melhor, como ciência regulada e formalizada. Inserida nesta abordagem do “como”, em meu trabalho de campo, tentei perceber se as atuações micropolíticas estavam em consonância ou atrito com os fatores institucionais e os modelos consensuais científicos, e de que modo essas dinâmicas afetaram a forma com que o saber foi transmitido e a prática médica se transladou em atendimentos. Justamente, procuro entender como as transformações tecnológicas e científicas na esfera do saber-poder médico modificam as condições em que se pratica o atendimento e, consequentemente, influem na construção de subjetividades e nas socializações seguintes. Ao mesmo tempo, também situo os posicionamentos críticos aos modelos, transformando as dinâmicas hospitalares em mais do que a reprodução da racionalidade científica e proposições clínicas. Portanto, sigo um movimento que pretende pensar as relações entre ciência, tecnologia e sociedade em espaços hospitalares. Espaços que são atravessados por fluxos (bio)éticos, sociais e políticos. Neste sentido, nos termos de Haraway (1995), os saberes são localizados. Se todo conhecimento é parcial, pois social e historicamente situado, a importância de Haraway para este trabalho é o de dizer que precisamos ir além dos rastros das mediações transcendentais científicas – por exemplo, dos corpos tornando-se cada vez mais códigos biomoleculares, segundo suas explicações genéticas. Precisamos, ela diz, procurar “uma rede de conexões para a Terra, incluída a capacidade parcial de traduzir conhecimentos entre comunidades muito diferentes – e diferenciadas em termos de poder” (Ibid.: 16). Médicos, pacientes, pesquisadora, todos atualizando os efeitos de poder, biomédicos e generificados, postos em relação nos espaços hospitalares. O que surge daí? De modo que, [Os] saberes localizados requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente, não como uma tela, ou um terreno, ou um recurso, e, finalmente, nunca como um escravo do senhor que encerra a dialética apenas na sua agência e em sua autoridade de conhecimento "objetivo". A observação é paradigmaticamente clara nas abordagens críticas das ciências sociais e humanas, nas quais a própria agência das pessoas estudadas transforma todo o

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projeto de produção de teoria social. De fato, levar em conta a agência dos "objetos" estudados é a única maneira de evitar erros grosseiros e conhecimentos equivocados de vários tipos nessas ciências. (...) Explicações de um mundo "real", assim, não dependem da lógica da "descoberta", mas de uma relação social de "conversa" carregada de poder. (...) Os vários corpos biológicos em competição emergem na interseção da pesquisa e dos textos biológicos, das práticas médicas e outras práticas de negócios, e da tecnologia. (Ibid.: 36-41)

Tento seguir esta indicação aqui. E mais, para a autora, o ofício de narrar, explicar e intervir no mundo necessita de accountability. Tal responsabilidade de observação e produção de conhecimento, em comunicar saberes e práticas particulares, pressupõe uma “localização limitada” e um “conhecimento localizado”. Assim, mesmo com o reajuste dos reconhecimentos e poderes trazidos por uma etnografia feita “de baixo para cima”, também se faz necessário uma reavaliação crítica e interpretativa das relações sociais por uma perspectiva situacional e feminista, portanto, periférica e interseccional. No limite, mesmo com as relações de poder produzindo particularidades em campo, tanto a partir das observações quanto das atuações e mediações científicas, a responsabilidade do efeito que a escrita atualiza aqui é inteiramente minha. A tarefa de compreender e narrar os saberes e as técnicas médicas em espaços hospitalares tem, enfim, a finalidade de iluminar as conexões feitas em nome de consensos e através de instrumentalizações científicas nas corporificações do dia a dia – como quando a imagem de um ultrassom traduz as dúvidas e ansiedades de médicos, pais e da própria pessoa intersexual materializando (in)certezas anatômicas com imagens científicas. Mas o movimento é de não privilegiar essa redução (“ansiedade-ultrassom-diagnóstico-verdade”) como a melhor explicação do atendimento de algum caso de intersexualidade, e sim o de tentar descrever as conexões entre esses pontos, que são feitas na medida em que se necessita de normalizações de gênero. Dito isto, nos dois capítulos anteriores já rastreamos algumas justificativas para as contínuas normalizações, de modo que o capítulo atual se estrutura na descrição das escolhas e das práticas clínicas que são tomadas atualmente para garantir aquilo que é posto como “fim comum”: uma noção específica de integridade e bem estar físico e psicossocial dos pacientes intersexuais. Ao mesmo tempo em que tais escolhas e práticas são particulares e localizadas. Portanto, será que noções e posições específicas de gênero, sexualidade, classe, cor, procedência, capital cultural, marcam as maneiras possíveis de leitura de um exame, as configurações de um diagnóstico, os encaminhamentos de um tratamento? De modo que tento interpretar alguns desses significados para além das “objetividades transcendentais”. Narrar as

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heterogeneidades que se encontram nas anamneses, nos artefatos tecnocientíficos, nos diagnósticos clínicos, nas rotinas hospitalares, nas intervenções cirúrgicas e outros manejos.

Percursos do campo biomédico: as circulações etnográficas em três hospitais do Rio de Janeiro

A inserção no trabalho de campo ocorreu circularmente. A primeira parada foi em março de 2014, após apresentação virtual, feita por uma amiga em comum, à uma médica geneticista de um hospital público de alta complexidade na Zona Sul do Rio de Janeiro. Com nossas trocas de emails subsequentes, ela conseguiu uma autorização informal com o chefe de seu departamento para que eu conversasse com alguns médicos sobre casos de intersexualidade. Uma de suas doutoras, responsável pelo ambulatório da especialidade, e nomeada aqui como GEN160, foi fundamental para que este trabalho de campo se desenvolvesse, como também me auxiliou de sobremaneira ao sanar meus questionamentos e dúvidas iniciais sobre os gerenciamentos dos casos de intersexualidade – ou, como chamavam por lá, de genitália ambígua. Com ela foi realizada a única entrevista semiestruturada da dissertação. Neste local, portanto, que se inicia a trajetória etnográfica e onde acompanhei alguns atendimentos ambulatoriais de uma equipe do departamento de genética. O Hospital Zona Sul (HZS) é especializado no cuidado e tratamento maternal e infantil, sendo bastante reconhecido institucionalmente por sua qualidade e atuação em saúde na área da genética. Em vista disso, recebia muitos encaminhamentos de outros hospitais públicos do Estado, como também atendia casos vindos de outras regiões do país. A área da genética e da cirurgia pediátrica andam lado a lado nas orientações dos casos de intersexualidade, afinando as intervenções terapêuticas e cirúrgicas nas crianças intersexuais nascidas no hospital – posto que realiza uma cobertura integral das assistências obstétricas e ginecológicas. Entretanto, no hospital não havia um departamento específico de endocrinologia, pediátrica ou geral. Com a necessidade de acompanhamento hormonal mais técnico (os exames clínicos e dosagens 60

Seguindo a mesma metodologia de nomeação de Machado (2008a) e Costa (2014), utilizo a sigla da especialidade (ou da posição, no caso dos residentes) do interlocutor em conjunto com um número, que se refere a ordem cronológica de encontro e interação na trajetória do trabalho de campo. Esta estratégica detém importância também na medida em que pretendo preservar o anonimato dos médicos e a confidencialidade institucional.

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hormonais básicas eram feitas no próprio hospital) encaminhavam os pacientes para tratamento em outra instituição, em um hospital parceiro no Centro da cidade do Rio de Janeiro. Nos dois meses que acompanhei as rotinas de atendimento dos profissionais de genética do HZS, não consegui observar o atendimento de nenhum caso de intersexualidade, apenas manter conversas informais sobre casos e prontuários antigos. Os casos de intersexualidade “estavam em falta”, como me diziam, então minha movimentação inicial foi a de reconhecer o mais prontamente possível as lógicas de atendimento e de diagnóstico desses profissionais, já que não estava ciente de como se organizava as rotinas biomédicas. Os atendimentos dos profissionais da área da genética ocorriam em um ambulatório pediátrico, mas voltado para esta especialidade, de modo que eram atendidos diversos casos, principalmente casos de trissomia do cromossomo 21 – mais conhecido como Síndrome de Down. Os residentes eram responsáveis pela organização e atendimento dos casos, estruturação que se repetiu nos outros dois ambulatórios que observei. Todos os três espaços eram hospitaisescola, mas apenas o último etnografado era ligado diretamente a uma faculdade. De modo que eles atendiam os pacientes com seus respectivos familiares segundo consultas previamente agendadas, e de acordo com a ordem de chegada no dia do ambulatório. Enquanto os professores e médicos contratados acompanhavam a ronda dos atendimentos – se fosse necessário auxiliar em algum caso mais complicado ou se existisse alguma dúvida dos residentes, atendiam em conjunto dos mesmos. Neste registro, entendo a residência como uma marca de “tensão estruturante” na formação médica. Nos termos de Bonet, será durante a residência que o saber científico será experimentado e consolidado enquanto prática médica. Por um lado, enfatiza-se o saber científico e protocolar da clínica, e por outro, o aprendizado do vivido, da experiência individual e sensível (2004: 72). Esse “estar lá” no hospital elucidaria na prática os termos e sintomas das conceituações diagnósticas aprendidas durante a faculdade, posto que o “diagnóstico” é o propósito central da prática médica – é o elemento que mobiliza a totalidade do processo clínico. Por conseguinte, para que essa construção seja possível, é necessário adquirir uma expertise médica, e tal competência passa por uma reconfiguração do olhar desses profissionais de saúde. Assim como Bonet, Machado (2008a) também fala sobre a formação desse habitus médico, o qual nomeia como “treinamento do olhar”. Em suas palavras: Mediante um exaustivo processo de aprender a ver, estudantes e residentes vão recebendo dicas sobre aquilo que é preciso olhar e o que, daquilo que se olha, é “normal” ou “patológico” (GOOD, 1994). Conforme aponta Michel Foucault

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(1988 [1976]), é dessa forma que a medicina conserva e reforça sua legitimidade social de falar sobre os corpos, produzindo um discurso de verdade sobre os mesmos, exatamente como o faz sobre o sexo. (...) Transmite-se, assim, a ideia de que só é possível falar sobre aquilo que se vê, no entanto só é possível ver “corretamente” depois de ter sido iniciado. (Machado, 2008a: 142-143)

Em vista disso, fui inicialmente para o HZS porque descobri nos contatos introdutórios pré campo, através de trocas de emails com a geneticista do hospital que me introduziu no campo, a existência de um possível caso de “genitália ambígua” marcado para atendimento. No dia da consulta, entretanto, a residente de genética responsável pela assistência anuncia que o caso não era de intersexualidade. Esclarece que em seu exame físico não verificou qualquer traço de ambiguidade na genitália da criança, sustentava que a genitália era de uma “menina normal”. A paciente tinha sido encaminhada de outro hospital, pela pediatria, os quais suspeitavam da ambiguidade anatômica. R1 estava no terceiro e último ano de residência, e afirmava que não havia nenhuma confusão diagnóstica, fato assegurado por ela ao chamar a mãe da criança para olhar e comprovar que a genitália de sua filha era claramente feminina. Não realizou nem mesmo o exame de cariótipo61 para definição do sexo cromossômico, sem demora, liberou a criança da consulta com a finalização do exame físico. Esse exemplo é curioso, pois a responsabilidade da genética é fundamentalmente na definição do sexo cromossômico, como foi confirmado depois. Mas o olhar especializado da R1 mediou o diagnóstico, ou a não necessidade dele, neste caso de confusão entre especialidades. A incorporação do habitus médico não é uniforme, há disputas valorativas e técnicas entre as especialidades, garantindo um certo monopólio na explicação e no atendimento de condições específicas. Desta maneira, o treinamento do olhar atua sobretudo na utilização (e consequente reiteração) de escalas, medidas e formas generificadas de genitálias tidas como normalizadas e atípicas. As genitálias normais precisam ser assimiladas intensamente em seus traços e composições para a determinação e “correção” das anômalas. De tal maneira que o processo ocorre segundo mediações técnicas e através de inscrições supostamente objetivas, mas na verdade generificadas, para justificar a (re)construção do sexo “como se fosse natural” (Machado, 2005). Semanas depois desse caso, em um dos dias de ambulatório, que eram realizados segundas, quartas e sextas na parte da manhã, um dos residentes me esclareceu mais sobre como 61

É um exame para determinação do sexo cromossômico ou de alguma condição congênita. Realiza-se ao extrair sangue para cultivo citogenético, com o objetivo de analisar células no estágio de metáfase da divisão celular, isto é, uma fase em que o DNA está em grau máximo de condensação e é possível a observação dos cromossomos através de um microscópio.

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chegavam e quais eram os encaminhamentos dos pacientes intersexuais no hospital. Como os casos de intersexualidade estavam em falta, sem previsão de consulta agendada, ia uma vez por semana ao ambulatório de genética pediátrica acompanhar a rotina dos profissionais de saúde e conversar com a GEN1, quando estava disponível, já que era sempre solícita comigo ao narrar histórias e casos antigos. Neste dia, estava a sua espera, mas acabei me ocupando com a observação dos atendimentos dos residentes do primeiro ano. Um deles, R2, relatou-me que normalmente casos do tipo chegavam através de encaminhamentos de outros hospitais, ou pelo Sistema Nacional de Regulação (SISREG), sistema online gerenciador do complexo regulatório do Sistema Único de Saúde (SUS), que vai desde agendamentos ambulatoriais às internações hospitalares. Quando chega ao hospital, a responsabilidade da genética é principalmente para realização do cariótipo, ou seja, para definição do sexo cromossômico – e em casos mais difíceis e raros, para processamento do sequenciamento genético. Então, a partir do cariótipo, e outros exames de imagem e hormonais, busca-se associações e causas para elaboração do diagnóstico do paciente. Esta etapa diagnóstica envolve regularmente o manejo multidisciplinar, com várias especialidades atendendo em conjunto. Da mesma maneira, GEN1 reitera na entrevista que fizemos em julho de 201462: A gente examina, né. Até pra se ter uma hipótese. Hiperplasia tem que ser afastada logo porque pode levar ao óbito, é grave. A gente examina, vê se parece mais um ou outro, de acordo com... [o padrão]. (...) Sempre se colhe o cariótipo pra poder, mesmo que isso não faça diferença no que você vai fazer depois, mas pelo menos pra determinar, precisa. [Faz parte do diagnóstico?] É, na verdade vem pra genética pra isso principalmente, pra ver qual o sexo cromossômico. (...) Às vezes, como é a suspeita de hiperplasia, já vem até dosado a 17-alfahidroxilase. Às vezes não, aí fazemos essa também. Aí os exames de imagem e tal é de acordo se já foi feito ou não, depende de como a criança chegou. Às vezes ela vem do berçário, aí lá a gente pede tudo.

GEN1 também era contratada de outro hospital público de alta complexidade. Depois de dois meses de acompanhamento no departamento de genética do HZS sem nenhum atendimento agendado ou caso de intersexualidade encaminhado, ela me aborda para noticiar que estava participando de uma equipe multidisciplinar com o objetivo de atender um possível caso de Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) em outro hospital, na Zona Norte do Rio de Janeiro, e que eu poderia acompanhar o desenvolvimento desse caso, se estivesse interessada. Prontamente aceitei. De tal forma que acontece minha primeira circulação entre hospitais.

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As observações em colchetes e itálico serão usadas na transcrição da entrevista para indicar meu diálogo com a GEN1, representando tanto perguntas quanto complementações que fiz à sua fala no momento mesmo da realização da entrevista.

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Os detalhes aprofundados desse caso serão expostos no próximo tópico. No momento indico algumas rotações de campo. No Hospital Zona Norte 1 (HZN1), depois de participar de uma reunião multidisciplinar para discussão do caso, tive a oportunidade de conhecer o endocrinologista que ficou responsável pelo atendimento do bebê com hiperplasia. Este médico, chamado aqui de ENDOPED1, pois é especializado em endocrinologia pediátrica, foi o outro interlocutor-chave para esta dissertação. Não só pela centralidade que lhe foi dada no atendimento desse paciente, mas também por ser responsável pela próxima circulação espacial da etnografia. Este movimento aconteceu depois da reunião multidisciplinar. Enquanto saía do hospital, ENDOPED1 pergunta qual era o tema da minha dissertação. Explico meu interesse em conhecer melhor as dinâmicas do “gerenciamento sociomédico” da intersexualidade, e ele se mostra admirado e curioso. Logo depois me conta que durante sua especialização stricto sensu também escreveu sobre intersexualidade. Convida-me, então, para acompanha-lo no outro hospital em que trabalha, já que lá também estava atendendo um caso de intersexualidade. Neste momento, me mostra em seu celular algumas fotos da “genitália ambígua” de seu paciente. Tento não demonstrar surpresa frente às imagens. Eu estava inserida, ou sendo testada? Com as imagens passando em seu celular, discorre detalhes clínicos sobre o caso. Anacely Costa (2014) desenvolve articulações interessantes sobre o “regime escópico da medicina”, cujas necessidades imagéticas, através de fotos, ultrassons, radiografias, escalas e medidas de especificidades anatômicas, atuam como mediações importantíssimas para a construção diagnóstica e dos tipos de intervenção. Esse apego imagético atua também como uma mediação técnica, já descrita, a fim de garantir a reprodução do “treinamento do olhar” médico. Por fim, ENDOPED1 diz que iria autorizar minha ida para este outro hospital, também na Zona Norte do Rio de Janeiro, com o chefe de seu ambulatório e me enviaria um email confirmando a anuência. Na ocasião, portanto, fecha-se a última circulação do campo em outro hospital, o Hospital Zona Norte 2 (HZN2). Neste hospital foi realizada a maior parte da etnografia descrita no capítulo, feita de maio até novembro de 2014. A etnografia ocorreu tanto pela observação das rotinas do ambulatório de endocrinologia pediátrica como pela consulta aos prontuários médicos dos casos atendidos nesta época e que tive a oportunidade de acompanhar, direta ou indiretamente.

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Ao transitar entre três instituições hospitalares diferentes e atravessar vários ambulatórios e enfermarias, alguns médicos se fizeram mais presentes que outros, dependendo do caso que me permitiam acompanhar. Nessas idas e vindas de observação dos espaços hospitalares e das práticas médicas cotidianas em casos de intersexualidade, pude notar a endocrinologia assumindo responsabilidade pelo manejo dos pacientes intersexuais e de seus familiares, enquanto as outras especialidades eram acionadas de acordo com a organização específica de cada caso. Tal estruturação das especialidades também foi descrita anteriormente na tese de Machado (2008a). Então, mesmo com a perspectiva da especialidade acompanhada em campo representando cada hospital – HZS: genética, HZN1: pediatria e HZN2: endocrinologia pediátrica – indico que tive mais tempo de observação e de acesso aos dados a partir do trabalho de campo realizado com a equipe de endocrinologia pediátrica. Tanto a genética quanto a urologia pediátrica, além da psicologia, serão especialidades acionadas constantemente nessas rotinas, mas é a endocrinologia enquanto especialidade médica que tem o papel de gerenciar, encaminhar e manter o tratamento presente e futuro dos casos de intersexualidade.

O que fazer quando surge um caso de intersexualidade? O manejo da urgência, da necessidade e da intervenção63

O Hospital Zona Norte 1 (HZN1) localiza-se nas proximidades de uma das maiores vias expressas do Rio de Janeiro, em vista disto, recebe pacientes de várias localizações da cidade e do estado. Diferente dos outros dois hospitais onde realizei o trabalho de campo, este é o único com atendimento emergencial, além de disponibilizar atendimento ambulatorial, cirúrgico e internação. O paciente que a GEN1 tinha mencionado se chamava Marcos 64. Ele estava registrado com sexo e prenome masculino e foi internado no hospital com apenas 1 mês de idade sofrendo de vômitos, mal-estar e desidratação acentuada. Desde o primeiro momento de internação, foi tratado para o quadro de desidratação e monitorado.

Algumas ideias desenvolvidas e discutidas aqui foram primeiramente elaboradas na versão “Agenesia Humana: alguns percursos médico-científicos em casos de intersexualidade” (2014). 63

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Todos os nomes apresentados ao longo do capítulo serão nomes fictícios.

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No espaço da enfermaria pediátrica, os médicos pediatras começaram o delineamento das causas responsáveis pela desidratação de Marcos. Quando se realizou a anamnese e o exame físico para esta construção diagnóstica, constatou-se que em sua bolsa escrotal não havia tecido testicular, isto é, os testículos não estavam palpáveis. Nos relatos clínicos descritos no prontuário do bebê, há desde o início a possível indicação de “hiperplasia adrenal congênita”, seguida sempre de algumas interrogações. Assim, além de reajustar as faltas e excessos de minerais que causaram a desidratação, a primeira conduta médica foi a solicitação da coleta de raspado da mucosa oral para definição da cromatina sexual do bebê, e de outros exames clínicos, como dosagens hormonais e ultrassom pélvica. Quando cheguei ao hospital Marcos já estava internado há 20 dias. GEN1 me apresentou para os residentes locais, um deles acompanhava mais de perto o caso e detalhou algumas variáveis importantes. A observação que mais me impactou foi em relação ao esforço médico para precisar a “ambiguidade” da genitália do bebê. De início, segundo os relatos médicos, a aparência da genitália dele não era ambígua, ao contrário, o pênis estava no tamanho padrão com o meato urinário na ponta e fusão lábio escrotal completa. A bolsa escrotal era pigmentada e pregueada. Mas a genitália não podia ser inteiramente masculina porque ele não tinha testículos. A bolsa escrotal estava vazia. Desse modo, a diferenciação sexual volta-se, novamente, às faltas e excessos. E, mais além, à definição gonadal como parâmetro. É o primeiro passo da análise, antes de qualquer detalhamento molecular. Mas tal diferenciação não parecia tão brusca assim, na verdade, tinha certa continuidade entre as anatomias sexuais. Pela escala médica, apontaram que Marcos estava com o grau de virilização Prader V. Ela determina os graus de virilização da genitália, e neste nível indicava que a genitália parecia ser mais visivelmente masculina possível. Na superfície era tudo igual, na anatomia era bastante similar, exceto a falta de gônadas. De tal forma que somente com a minúcia do exame físico foi possível detectar a ausência testicular. Logo, associaram a descoberta com o quadro de desidratação, e determinaram que o pré diagnóstico de Marcos era de Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC). Contudo, para confirmação e intervenção clínica ainda precisavam da definição do sexo cromossômico. Relembrando as notas explicativas da introdução, a HAC65 é considerada uma doença que resulta na deficiência da enzima 21-hidroxilase produzida no córtex adrenal. “A ausência

A partir deste momento, me refiro ao longo do texto à “Hiperplasia Adrenal Congênita” pelo uso de sua sigla “HAC”. 65

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ou inatividade funcional dessa enzima impede a produção normal de cortisol e de aldosterona (em até 75% dos pacientes), desviando os produtos intermediários acumulados para a síntese excessiva de andrógenos”, isto é, de hormônios androgênicos, como a testosterona. A literatura médica indica que a combinação dessas variações congênitas, genéticas e hormonais, que se manifestam desde o período intrauterino, são “responsáveis pelo surgimento, ao nascimento, de um quadro clínico clássico na criança: genitália externa ambígua com vários graus de virilização (nas meninas) e macrogenitossomia66 (nos meninos)” (Telles-Silveira et al., 2009a: 1113, grifo meu). Deste modo, em sua forma clássica, a HAC é “perdedora de sal”. Sua incidência não é consensual, mas varia entre 1:10.000 e 1:20.000 nascimentos, sendo mais “prevalente em alguns grupos étnicos, particularmente em regiões geográficas remotas (por exemplo, os Yupiks do Alasca)” (Speiser et al., 2010: 7). No Brasil, a incidência é maior, de 1:7.533 nascimentos (Silveira, 2008: 4). Nesse caso, com o exame da cromatina sexual realizado, indicava-se um resultado prévio do sexo cromossômico. As células contadas tinham corado, sugerindo que os corpúsculos de BARR (a tal da “cromatina sexual”) estavam presentes e inativos. Esse procedimento só ocorre em pessoas com pelo menos um cromossomo X no par de cromossomos sexuais, por exemplo, 46, XX ou 47, XXY, exatamente porque o cromossomo X não ativo, que sobra, espiraliza-se ao inativar – e torna-se o corpúsculo de BARR visualizado no exame. Nas hipóteses de cariótipo 46, XY, o único cromossomo X fica ativo, por isso não apresenta a cromatina. O resultado do teste corado evidenciando a cromatina sexual e, consequentemente, pelo menos um X inativo, demonstrava que o sexo cromossômico de Marcos já não incluía o masculino usual. Entretanto, o patologista que realizou o exame não quis “se comprometer” – informação da GEN1 que acompanhava o caso – com a definição do sexo feminino em um paciente que estava registrado com o sexo e prenome masculino. A saída então era retirarem sangue para a análise citológica e uma definição mais fidedigna do cariótipo. Na visão dos médicos, a angústia da “emergência social” não podia apressar a definição mais objetiva possível do sexo cromossômico, pois ali constava a verdade molecular do sexo. Logo que saiu o cariótipo do bebê, afirmando o sexo cromossômico de 46, XX, confirmou-se o diagnóstico de hiperplasia adrenal congênita. Mesmo com o sexo 66

Entende-se clinicamente como um desenvolvimento excessivo e prematuro dos órgãos genitais e caracteres sexuais secundários masculinos.

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cromossômico definido, associaram o resultado aos outros exames clínicos pedidos, que também assinalavam taxas de hormônios androgênicos elevadas – comprovando a lógica da produção excessiva pela suprarrenal. Desta forma, providos de vários tipos de exames e com um diagnóstico fechado, os médicos atuantes no caso, das áreas de pediatria, genética, endocrinologia e psicologia, decidiram realizar uma reunião multidisciplinar a fim de produzirem um consenso sobre o manejo do paciente e sua família67. Algumas explicações já haviam sido dadas para a família, especialmente para a mãe, que era a familiar que sempre estava presente durante a internação de Marcos. Enquanto a mãe era do lar, o pai trabalhava em um restaurante, mas faltava ao trabalho ocasionalmente durante o tempo de internação para acompanhar as explicações e os gerenciamentos médicos. Como minha relação de campo, neste momento institucional e hospitalar, não permitia o acompanhamento dos profissionais de saúde em contato com a família, soube dos desenvolvimentos dessas abordagens e conversas pelos próprios médicos com quem mantinha interlocução. Posto isto, o que me foi descrito era que eles “esclareceram dúvidas preliminares” para a família ao afirmarem que o sexo masculino designado ao nascer não estava definido, além do fato de que o “diagnóstico não estava fechado”, ainda precisavam de mais tempo para a determinação sexual. Pediram um acompanhamento psicossocial para a mãe, que ficou bastante angustiada – no prontuário de Marcos, a psicóloga que atendeu a mãe relata que ela ficou mais angustiada com o fato de terem dado essa notícia no meio da enfermaria pediátrica (por uma endocrinologista chefe do ambulatório, que depois foi deslocada da responsabilidade do caso), onde todas as outras crianças e familiares ficam internados, gerando um mal estar associado ao estigma desta falta de designação sexual tornar-se pública. Telles-Silveira et al. (2009a), um grupo de médicos de várias especialidades, avaliaram qualitativamente as dificuldades de comunicação entre os atores envolvidos em casos de HAC. Entrevistaram médicos, familiares e pacientes em um hospital de São Paulo, e enquanto os primeiros reclamavam da “passividade” dos últimos nas consultas, os autores observaram que é preciso cautela com essa declaração. Argumentam que as dinâmicas de ambulatórios de hospitais-escolas aprofundam a falta de cuidado centrado no paciente, não permitindo conversas mais abertas com os familiares, os

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De acordo com o Consenso de Chicago, a composição ideal para uma reunião multidisciplinar de casos de intersexualidade teria a participação de pediatras com especialistas nas áreas de endocrinologia, cirurgia e/ou urologia, psicologia/psiquiatria, ginecologia, genética, neonatologia e, se possível, alguém da assistência social, da enfermaria e da bioética (Lee et al., 2006: e490).

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quais, por sua vez, também não sabem se explicar para seus filhos/filhas em atendimento, que terminam por internalizar ainda mais sofrimentos e angústias. No caso em questão, os médicos também indicaram para a mãe que na próxima conversa iriam explicar os encaminhamentos necessários com base na reunião multidisciplinar agendada. Nesse ponto de vista, o ambiente hospitalar, especialmente por ser um hospital-escola, multiplica as possibilidades de estigmatizações. Resgato pontualmente algumas contribuições de Goffman, mas de maneira diferente ao narrado no capítulo anterior, quando falamos sobre estratégias políticas e controvérsias classificatórias, que de modos distintos tentam reajustar o estigma para condições mais salutares ou humanas, nesta situação vemos a tentativa e a consequente falha de manipulação do estigma in loco. O drama da “emergência social” irrompe mais pelo limbo causado pela falta de definição sexual do que pelo risco agudo de desidratação do bebê – representadas relacionalmente pela impossibilidade de explicação materna do que acontecia com a criança para familiares e desconhecidos da enfermaria e acentuadas com os vagos “esclarecimentos preliminares” por parte dos médicos. Uma abordagem pertinente relaciona-se à compreensão da vulnerabilidade como uma condição compartilhada (Butler, 2004). Neste sentido, perceber o corpo sexuado como localização (e verbalização) da vulnerabilidade que estrutura a humanidade, levaria a um gerenciamento sociomédico desses casos com maior reconhecimento na complementariedade do sofrimento e da exposição do outro. Igualmente, se dar conta de tamanha vulnerabilidade, manifestada aqui pela falta de um marcador fundamental para garantia de sociabilidade, o gênero, torna mais compreensível a atitude materna em se calar diante do limbo de inteligibilidade – a não definição sexual de seu bebê – do que consentir com a exposição, e possivelmente com a espetacularização, dessa mesma vulnerabilidade. Assim, no dia da reunião multidisciplinar, Marcos completava 29 dias de internação. A questão clínica mais arriscada, disse um dos médicos endocrinologistas, estava resolvida – a desidratação havia sido tratada. Para evitar que outras crises ocorressem, era preciso dar ao paciente doses de um hormônio esteroide do tipo “glicocorticoide” para regular a insuficiência adrenal e suprimir a produção excessiva de hormônios androgênicos. Desta forma, a virilização iria parar e a perda de sal gerando reflexos de desidratação também. A hormonoterapia nos pacientes com HAC na forma clássica é praticada ao longo de toda a vida. À vista disto, o necessário mesmo, dizia o ENDOPED1, era buscar um consenso médico sobre a designação sexual.

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A escolha da designação sexual era o ponto nevrálgico do debate. Enquanto uns apontavam para o fato de que a cirurgia não era simples, como a GEN1, que optou por manter a designação no sexo masculino até a criança formar sua identidade de gênero e poder opinar nas formas de tratamento e intervenção. Outros, principalmente os dois endocrinologistas presentes e responsáveis pelo gerenciamento do paciente, insistiram no modelo de abordagem médica para os casos de pacientes 46, XX com HAC: a designação do sexo feminino. Dentre os participantes da reunião, oito eram mulheres – das áreas de pediatria, psicologia, genética e endocrinologia pediátrica – e dois eram homens – o ENDOPED1 e um residente do primeiro ano de pediatria. O interessante, nesse ponto da narrativa, é perceber a retórica da funcionalidade acionada pelos endocrinologistas para justificar e legitimar essa designação em atrito com as dúvidas e opiniões críticas das médicas de outras especialidades. Na entrevista semi estruturada que fiz com a GEN1, ela comenta sobre a reunião multidisciplinar. É, são raros os casos complicados. Normalmente a criança já chega com uma... Assim, é mais fácil. Não é tão virilizado. Ele é muito virilizado, ele era um caso raro. Não é muito comum a gente vê não. Então quando é assim, acho que é bom, né. É a segunda vez que a gente faz lá. É a segunda vez que a gente faz num caso parecido, que eram crianças muito virilizadas. O primeiro foi um menino que ficou como menino, porque foi descoberto muito tarde, ele [era HAC, mas] não era perdedor de sal. O Diego, de 4 anos. Então a gente fez a reunião porque a grande dúvida é o que que faz... Se tira os ovários, não tira. (...) E aí assim, o que eu andei lendo, pelo menos, era que tinha que intervir o mínimo possível. (...) É, o que a gente estava questionando nesse menino, no Marcos, era justamente isso. O ex Marcos, né. Era que tudo bem que a conformidade com o gênero feminino é maior, mas a cirurgia é muito difícil. É uma cirurgia complicada, que nem sempre dá um resultado final bom. Pode sentir dor na relação sexual. Que vira uma vagina, né. [Seria difícil reconstruir?] Quando é muito virilizado parece que é mais difícil, porque eles pegam o clitóris e invertem, pra não tirar, né, senão a pessoa não vai ter sensibilidade nenhuma. Consigo imaginar, se é muito grande, como você vai conseguir inverter aquilo? Não dá. O problema é que tem que manter a ponta, né, é a ponta que é sensível. Mas não sei o que eles fazem. Pode ter muita estenose, fica apertado demais, tem dor. [Aí a cirurgia desaconselhou isso?] Pois é, a cirurgia, que era até o CIRPED1, ele era contra. Ele era a favor de deixar como menino.

Enquanto que na reunião, a outra endocrinologista pediátrica presente se manifestava ao dizer que “não existe uma solução ótima nem mesmo uma solução boa, apenas uma solução possível”. Neste sentido, em meio às complicações sobre as possibilidades de tratamento e intervenção, um tipo de argumento se sobrepõe às controvérsias. A preocupação com o bem estar psicossocial do paciente e da família surge como norte em qualquer fala, seja qual for a especialidade médica. Mas essa conceituação do bem estar é também técnica e singular, pois se

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associa a um entendimento funcional do corpo. Tal funcionalidade aparece em dois níveis: reprodutivo e sexual. Como Machado já revelou, De forma geral, a função reprodutiva remete à capacidade de fertilidade, e a função sexual, à resposta ao estímulo hormonal: aumento do pênis e possibilidade de ereção, para os homens; não-masculinização (não crescimento de pelos e não engrossamento da voz, desenvolvimento de mamas e menstruação), para as mulheres. (2008a: 129-130)

Assim, o que importava manter nesses casos não era a possível coerência anatômica da genitália completamente masculina com um sexo social já inscrito, mas adequar a designação do sexo social ao sexo cromossômico e às gônadas femininas. Mesmo com o grau máximo de virilização, Prader V, isto é, com a genitália masculina visualmente mais tipo ideal, a terminologia usada ainda era de “genitália ambígua” em relação às gônadas e ao sexo cromossômico notado clínica e cientificamente como feminino. “A fertilidade é imprescindível”, apontou a endocrinologista durante a reunião. A retórica de manutenção das gônadas femininas, garantindo fertilidade futura ao bebê, foi a síntese para afinar o discurso médico e legitimar a mudança de designação do sexo para os pais. O único pedido feito pela família foi da certeza de fertilidade, logo, os médicos pediram outro exame: a genitografia. Esta radiografia com contraste da região pélvica atestaria a existência das gônadas femininas que possibilitariam, no futuro, a menstruação e a consequente reprodução heterossexual. Entretanto, mesmo com essa salvaguarda imediata, não há garantia posterior da menstruação nem mesmo da orientação sexual heteronormativa como indicador de fertilidade e reprodução futura, mas foi o que bastou naquele contexto para dar coerência ao caso e atestar a transição do sexo designado. Das indicações médicas para a família, uma é fundamental para o entendimento das práticas científicas como (um dos) eixos na produção de subjetividades: pediram para os pais levarem o bebê com roupa rosa na próxima consulta. Antes, nos dias de internação na enfermaria pediátrica, a mãe só vestia o bebê com roupas azuis. Sugeriram também que a família desse outro nome ao bebê – o prenome no registro civil só pode ser alterado por meio de decisão judicial, e é necessário um laudo médico explicando a condição de intersexualidade para justificar a modificação do registro civil no âmbito jurídico, mas a equipe médica já indica para a família chamar o “antigo” Marcos por um nome e gramáticas femininas. Nesses casos, um dos médicos me confessou, não adiantava de nada a decisão médica de designar para o sexo feminino se a família não reforçasse este sexo social cotidianamente.

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A mediação ocorre em duplo sentido: das técnicas científicas e das incorporações linguísticas/materiais de gênero. Com a intervenção precoce assegurada, a entrevista com GEN1 meses após a reunião multidisciplinar demonstra como a internalização desses conflitos generificados surgem em níveis gramaticais e sociais. Ao evidenciar suas próprias expectativas de aderência ao sexo social designado, esclarece um pouco sobre as preocupações médicas com os resultados decorrentes do tipo de intervenção escolhida. Por outro lado, também cita algumas das dificuldades futuras da paciente. Lá eu tava na pediatria. A gente vê tudo, e aí se por acaso tem algo mais específico da genética eu vou lá ver. E ele tava internado, né... Ela, agora é ela. (...) É, agora ela é Martha. Tá ótima, segundo as meninas da endocrinologia. Eu vi, ela tá linda. [Mas já saiu da internação?] Já, tá no ambulatório, só acompanhando. E assim, a mãe jogou tudo do azul fora, deu as roupinhas, comprou vestidos e ela anda menina. Furou orelha. [Lembro que tinha essa dificuldade...] É, mas não, ela tá... A criança tá ótima. Ela se encontrou como menina. Não sei como isso é possível... uma criança tão pequena (risos). [Mas ela tá tomando algo?] É, ela tem que tomar o corticoide. Independente do que vai se decidir da vida dela. Mas isso ela tem que tomar mesmo. Ela precisa tomar o corticoide pra bloquear e parar de virilizar também. Pra isso, mas pra ela também, é pra não morrer, né. [Exato, porque é perdedora de sal...] Ela é. Aí bloqueia e não cresce mais. Para mais ou menos onde tá, por ali. [E ela foi encaminhada para cirurgia?] Não sei, eu sei que ela tá acompanhando na endócrino, agora a cirurgia eu não sei o que ela tá fazendo. [Teria que falar com o ENDOPED1, né...] É, ele é o médico dela. Ficou com ele. A mãe confiou mais nele. Se identificou mais com ele. Ele trabalhou com mais jeitinho, então a mãe acho que confiou mais nele. O resto tinha sido uma coisa mais atravancada, assim, aí não deu muito certo.

A família era composta pela mãe, pelo pai e um irmão de 9 anos de idade. Pelo registro da GEN1 e do que pude notar das observações da enfermaria pediátrica, de uma consulta que acompanhei, dos relatos médicos informais e documentados nos prontuários, o ambiente familiar era majoritariamente e simbolicamente masculino. A mãe reforçava sua confiança em um ambiente masculino, e evidenciava esse conforto por certas internalizações da autoridade médica. Inicialmente, a responsabilidade de administração do caso era conjunta do ENDOPED1 com outra endocrinologista pediátrica, mas como citei anteriormente, esta médica se excedeu ao explicar a condição de Marcos/Martha para a mãe, em meio a enfermaria pediátrica, gerando um maior desconforto familiar e também uma quebra de confiança da família nesta profissional. O caso é assumido integralmente por ENDOPED1, e a mãe se mostra muito menos angustiada com o atendimento médico. Tanto que as rondas de exames, as quais eram feitas por vários residentes, também se firmaram com um residente homem do primeiro ano. O acolhimento hospitalar e a construção de confiança médica são processos delicados, que depende de cada paciente e caso específico, e esta família em questão – mais fortemente a mãe que acompanhava

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a internação de Marcos/Martha – se apresentou mais suscetível com a escuta e a explicação vindas de médicos homens. GEN1 não examinava o bebê fisicamente, mas participava do grupo multidisciplinar que atendia o caso, por isso sabia desses detalhes do atendimento. Outro relato da psicóloga no prontuário e reiterado na reunião multidisciplinar, era de que o irmão de Marcos/Martha se inquietava em casa perguntando do “irmãozinho”, aprofundando a angústia materna. Ela fez alguns pedidos de acompanhamento psicossocial para levar o outro filho até à enfermaria para visita. Mas com a garantia de fertilidade dada pelos médicos, os pais parecem abraçar a possibilidade de ter uma menina e findar as angústias causadas pelos trâmites da determinação sexual. Podemos questionar a eficácia de tal confiança, se é uma aceitação total da explicação e intervenção médica ou se apenas é um aceno momentâneo contra a incerteza para finalizar o sofrimento presente. Aposto na segunda opção, precisamente porque essa incerteza nunca irá embora. Como citei antes, um dos médicos afirma a necessidade de reforçar o sexo social cotidianamente, evidenciando que essas determinações têm caráter cultural – e, por conseguinte, que a ciência e suas práticas estão inseridas nesses mesmos processos simbólicos. Portanto, tal negociação parental/médica com a incerteza demonstra que a confiança nessa coerência científica do sexo e nas intervenções clínicas e cirúrgicas são parciais e, muitas vezes, porosas. Assim, após a definição da abordagem pela reunião multidisciplinar, Marcos, agora Martha, teve alta da enfermaria pediátrica pelo quadro de desidratação, retornando somente para consultas com a equipe multidisciplinar a fim de intervirem na designação sexual escolhida. A genitografia ainda não tinha sido realizada por falta de equipamento hospitalar. Mas, independentemente da estabilidade que o exame daria, a criança foi encaminhada com a família para a área de urologia e cirurgia pediátrica. Minha última informação sobre o caso foi em setembro de 2014 através do ENDOPED1, já o acompanhando em outra instituição, no HZN2, ao me dizer que a família havia mudado o prenome da criança e aceitado a intervenção cirúrgica. “A genitoplastia68”, ele contou, “tem que ser realizada antes dela completar 1 ano de idade”. Nesta interpretação, a precocidade da intervenção cirúrgica é justificada pelo bem estar e pela satisfação psicossocial do paciente e seus familiares. É uma releitura do discurso de sofrimento travestido por significados específicos do que seria esse “bem estar”. Enquanto não

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É uma cirurgia feminizante que engloba reconstruções clitorianas e vaginais, como a clitoroplastia e a vaginoplastia.

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existir uma congruência entre o corpo sexuado, representado aqui pela “genitália ambígua”, e o sexo cromossômico e gonadal do paciente, haveria uma sensação de angústia que não permitiria esse bebê ser aceito e socializado plenamente. Mas para que essa inserção necessária ocorra, para que a entrada no regime de inteligibilidade do binarismo sexo-gênero seja eficaz, como homens ou mulheres cisgêneros69, é norma a mediação médico-científica, independente das implicações cirúrgicas serem deletérias e mais questionáveis do que positivas. Possivelmente Martha terá que passar por outra cirurgia de reparação durante a puberdade, para aperfeiçoar o resultado cosmético e funcional da genitália, e mesmo assim não há garantia de que um desempenho funcional e sexual satisfatório se concretize. Logo, os corpos intersexuais tornam-se inteligíveis – e consequentemente funcionais, reprodutivos e humanos – quando passam pelas reposições hormonais e intervenções cirúrgicas. De tal forma que essas práticas devem ser reconhecidas dentro do arsenal discursivo de produção de corpos e subjetividades, e não simplesmente como encaminhamentos necessários, neutros e naturais para a designação correta e coerente do sexo de um sujeito. São muitas as dificuldades e complicações deste tipo de intervenção, mesmo em pacientes adolescentes ou adultos que não apresentam desconfortos posteriores com o sexo designado na infância. Não precisamos nem mesmo discutir a “correção cirúrgica” como prática invasiva e irreversível70, a própria reposição hormonal é tida como um “desafio” já que é “imperfeita e não mimetiza a secreção fisiológica” dos hormônios (Gilban, 2013: 5), podendo levar a outra “desordem endócrina” como nos casos de Síndrome de Cushing ou hipercortisolismo71.

O termo “cisgênero” tem uma utilização arriscada dentro do tema da intersexualidade. Ele indica um contraponto ao termo “transgênero”, isto é, alguém não se sente confortável com o sexo designado ao nascer, e é utilizado pelos transexuais como forma de questionar os marcadores e as relações de poder do sexo e da sexualidade, que privilegiam as narrativas e os sujeitos cujas identidade dê gênero são coerentes com o sexo assignado. Nomear a experiência intersexual dentro de uma categoria trans* tem seus limites, mas utilizo o termo aqui exatamente para evidenciar essas mesmas estruturas de poder. A lógica médica busca reconstruir os corpos sexuados desses sujeitos dentro de estratégias e protocolos científicos similares, em que perseguem uma ficção de coerência sobre identidade de gênero e sexualidade da mesma forma que detém o registro da “verdade” sobre o desenvolvimento sexual e as “localizações” do sexo. 69

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Para ver uma discussão sobre as práticas de intervenção tecnológico-cirúrgica aplicadas sobre os corpos intersexuais com objetivos de “correção”, e uma comparação desta prática com outras de “mutilação genital”, ver Knauth, Machado (2013). O principal glicocorticoide usado no tratamento de pacientes com HAC é o “cortisol”, que em sua forma sintética é chamado de “hidrocortisona”. A reposição excessiva desse hormônio ou de outros tipos de glicocorticoides pode desencadear uma supressão no crescimento que levaria a “prejuízos ao crescimento linear e maturação fisiológica do paciente” (Gilban, 2013: 5). 71

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Ainda que existam agentes argumentando em favor de condutas contrárias, ou ao menos críticas, aos protocolos de consenso médico, como a GEN1 articulando-se repetidamente contra a intervenção cirúrgica precoce do bebê com HAC, é a norma médico-científica que serve de referência para as decisões feitas nos casos de intersexualidade72. Na medida em que se monta o quebra cabeça diagnóstico, se aciona discursividades biomédicas calcadas em concepções generificadas para tentar dar conta da necessidade de assunção de um gênero binário. Como demonstra Machado (2008a) em sua própria etnografia sobre um caso de bebê com HAC. A discussão prosseguiu e inúmeros pareceres iam sendo fornecidos acerca das “condições biológicas” da criança e também sobre os “aspectos psicológicos” da mãe, até que uma das médicas inadvertidamente lançou ao grupo a seguinte questão: mas por que operar? A pergunta não foi recebida sem um certo espanto e até mesmo impaciência. Risos e murmúrios completavam a cena. Afinal, a preocupação da equipe era a de como “melhor intervir”, o que explicava a busca pela definição inequívoca do sexo do bebê. A pergunta da médica naquele contexto soava, finalmente, pouco sensata, pois: Como a criança iria viver num mundo sem a definição do sexo? Era isso que se tratava de resolver. (Ibid.: 151152)

Na reunião multidisciplinar, houve uma votação para a definição do encaminhamento, mas com caráter simbólico. O voto para a não intervenção e manutenção da designação masculina de Marcos/Martha ganhou, com votos das áreas da pediatria, psicologia e genética. Achavam melhor esperar para realizar qualquer intervenção cirúrgica irreversível no bebê. Mas o tratamento de HAC é considerado um “caso fácil” para a medicina, pois se alinham as localizações do sexo tanto em níveis genéticos quanto gonadais – abrindo espaço para a funcionalidade e reprodução futura –, necessitando apenas de reparo da anatomia ambígua (Ibid.: 153). Então, mesmo com a maioria dos profissionais de saúde a favor da não intervenção precoce, a abordagem intervencionista prevaleceu. Quando questionado na reunião sobre a existência das exceções às facilidades do caso, um dos endocrinologistas argumentou: “não podemos nos deixar influenciar por um viés de amostra”. Alguns pacientes 46, XX com HAC, que são designados no sexo feminino durante a infância apresentam, posteriormente, disforia de gênero73. Após todas as intervenções clínicocirúrgicas as quais são submetidos, na adolescência ou na fase adulta, entram em processo de transexualização. De modo que até mesmo dentro do saber científico, produtor dos guidelines, há um forte questionamento médico atual sobre se o estímulo excessivo de hormônios 72

Essa referência é reiterada a todo momento, como quando um endocrinologista pediátrico do HZN2 me corrige quando digo “intersexuais” ou “intersexualidade” para “DDS”, ou seja, esses “distúrbios do desenvolvimento sexual” surgem nesses espaços passíveis de serem normalizados. 73

Termo biomédico atual para definir a condição das experiências transexuais.

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androgênicos durante o período intrauterino, como nos casos de HAC, levariam a uma virilização do cérebro e um consequente imprint cerebral do sexo-gênero reforçado neste período (Jorge et al., 2008; Meyer-Bahlburg et al., 2008; Frisén et al., 2009; Nucci, 2010). Essa regulação a priori à vida social entre genótipo, fenótipo e identidade de gênero é contestável do ponto de vista dos discursos antiessencializantes, pois retira o caráter plástico do corpo sexuado (ainda que fora dos registros hiperconstrutivistas moneyzianos), mas de todo modo é interessante perceber a heterogeneidade de discursos e saberes produzidos biomedicamente acerca das possibilidades de determinação sexual em casos de intersexualidade. Conforme discorre a GEN1 sobre um caso que já acompanhou: Eu vi um rapaz, ele era não perdedor de sal, e fez o diagnóstico na época teoricamente precoce, fez o que se fazia na época, que todo mundo virava menina mesmo e quando ele entrou na adolescência ele quis ser homem, então ele parou de tomar o corticoide, virilizou, ele tinha muita barba. Ele não era perdedor de sal, então ele podia ficar sem o remédio. Era meio arriscadinho, mas podia. E aí assim, todo baixinho, porque eles ficam pequenos, mas todo parrudão, barbudo, com uma namorada, mas... Sem nada embaixo. Talvez se não tivessem operado. (...) [Mas o consenso pra esses casos de hiperplasia é exatamente o sexo cromossômico.] Exatamente, o consenso pra hiperplasia é esse. Só que assim, hoje em dia a gente ainda pensa se for muito virilizado, faz uma reunião, vamos conversar, nessa época não, ainda prevalecia que se você fizesse isso até os 5 anos, estava tudo bem. Então você podia operar, dar uma boneca e pronto, você é uma menina.

Nesse cenário descrito, o voto ganho foi dos endocrinologistas em conjunto com a regra, com o peso do modelo “consensual”, que ditaram as escolhas e gerenciamentos do caso. Se por um lado parece fundamental notar que houve um avanço no cuidado e atenção médica, já que décadas atrás, como na história citada acima, a norma era intervir precocemente sem discussão crítica entre as especialidades e manter o ocultamento de informações para pais e paciente. Por outro, modelos de intervenção cirúrgica ainda estão sendo seguidos precocemente, fechando possibilidades futuras ao determinar marcas de gênero e integridades corporais específicas para as crianças intersexuais. A controvérsia perde relevância em favor do protocolo. “Na verdade, eu acho que a maioria das vezes as pessoas não pesam muito, fazem. Porque o consenso é esse e pronto” (GEN1). Continuam a não conservar tempo para autonomia e autodeterminação das pessoas intersexuais, mas apostar em supostas coerências funcionais e normalizadoras.

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Para além das molecularidades e mediações científicas: a gênese diagnóstica na marca “sexo-gênero-desejo”

Retornando um pouco às dinâmicas metodológicas do começo do capítulo, pretendo abordar nesta seção as observações mais medulares da última circulação do trabalho de campo. Colocar em pauta as descrições, as análises, os compromissos e os ruídos que atravessaram esses seis meses de etnografia. Essas reflexões estão encadeadas com a comparação de três casos atendidos no Hospital Zona Norte 2 (HZN2). Todos foram atendidos segundo investigações etiológicas e clínicas similares. O primeiro caso tem o diagnóstico definido como Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos (SIPA)74. Conforme já explicitei anteriormente, a Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos é uma condição ligada ao cromossomo X que afeta pessoas com cariótipo 46, XY, nos quais há prejuízo total ou parcial do processo de virilização intrauterina devido à alteração funcional do receptor de andrógenos, isto é, dos hormônios masculinos (Melo et al., 2005: 88). A recepção, neste caso, será parcial. Os outros dois casos, até o final da etnografia, não tinham etiologias fechadas por serem casos de pacientes vindas de outros estados, durante a adolescência, onde já tinham passado por atendimentos e procedimentos anteriores. Dito isto, a aproximação que realizo ocorre a partir das mesmas abordagens biomédicas, da similitude nos resultados clínicos e de uma mesma possibilidade diagnóstica que é debatida entre os casos. Na minha primeira ida ao HZN2, percorri muitos prédios e salas do hospital a procura do ambulatório de endocrinologia. O espaço fica em um hospital de alta complexidade, com muitos departamentos ambulatoriais, mas sem o atendimento de emergência. A endocrinologia pediátrica funciona em dois turnos semanais, é uma grande sala dividida em várias repartições – pequenas salas que servem de consultórios, outra área que se ajusta em arquivo para os prontuários, um laboratório maior, e um espaço coletivo onde os médicos acessam computadores, descansam entre suas consultas e, quando termina o horário de atendimento, os residentes repassam alguns casos atendidos durante o dia com os professores. Neste primeiro encontro, fui para acompanhar o atendimento do caso de intersexualidade que o ENDOPED1 havia me contado no HZN1.

A partir deste momento, me refiro ao longo do texto à “Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos” pelo uso de sua sigla “SIPA”. 74

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A mãe esperava na porta do departamento com uma prima dela, enquanto esta segurava Ana Luisa, de 2 meses de idade no colo. Estavam aguardando a segunda consulta. Elas vieram de Acari75 até o hospital pelo metrô, cotidiano que se repetiria ao longo desses meses, sempre retornando em horário de pico da linha 2 – horário de vagões lotados com trabalhadores regressando para suas casas após o fim do expediente –, já que o ambulatório terminava usualmente entre 16 e 17 horas nas terças-feiras. A criança estava sem registro civil, no prontuário do ambulatório era apenas identificada como “RN de Michelle”. A falta de registro ocorria porque a mãe não tinha recebido a “declaração de nascido vivo” (DNV) do médico responsável pelo parto, documento que identifica o recém-nascido provisoriamente. A vinculação do número da DNV é obrigatória para que qualquer criança seja registrada civilmente em cartório. Sua emissão é de responsabilidade do profissional de saúde que acompanhou a gestação ou o parto do recém-nascido, de modo que se a variável “sexo” não for preenchida, como na hipótese de um caso de “genitália ambígua”, impossibilita-se a produção do registro civil. E foi o que ocorreu. Michelle, durante o acompanhamento de sua gestação, não teve definição do sexo de seu bebê. Nos ultrassons obstétricos que fazia, os especialistas discordavam entre a definição de uma menina e de um menino. A última que realizou antes do parto, falaram que ela esperava uma menina. Entretanto, quando a criança nasceu os pediatras anunciaram para a mãe que não podiam designar um sexo para a criança, e prontamente encaminharam ela e o bebê para realizar o cariótipo no HZN2. A família levou Ana Luisa, como a chamavam inicialmente, para o hospital com 3 semanas de vida. Perdidas pelo hospital na procura do ambulatório de genética, uma endocrinologista, nomeada como ENDOPED2, notou que o pedido encaminhado tinha como finalidade a “descoberta” da definição sexual do bebê – terminou por assumir o caso e conduziu a família para o ambulatório de endocrinologia pediátrica. Neste primeiro contato, além do exame de cariótipo já solicitado, pediram uma bateria de exames hormonais e um ultrassom pélvico. No começo do capítulo comentei sobre a necessidade de mediação técnica da biomedicina com o objetivo principal de evidenciar os sintomas da doença, mas também, e consequentemente, como forma de relacionar e legitimar as incongruências anatômicas de uma genitália cujos padrões normativos são fomentados pelo saber científico. Esse mapeamento

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Os bairros, capitais e estados citados ao longo do capítulo foram trocados a fim de preservar a identidade e a confidencialidade dos pacientes e de seus familiares.

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ocorre através de imagens fotográficas, como quando ENDOPED1 fotografa a “genitália ambígua” do bebê e me mostra, reproduzindo versões médicas sobre o corpo sexuado, e imagens de tecnologias diagnósticas, como o ultrassom obstétrico. Em relação à essa tecnologia específica, ela pode ser entendida como um marco na assistência terapêutica feita ao longo da gravidez. A difusão e estabilização desse tipo de ultrassom pode ser explicada pelo efeito material que tais imagens produzem, introduzindo precocemente os fetos no mundo da linguagem – e do gênero, pois. A tecnologia antecipa “a existência social futura do bebê” (Chazan, 2012: 178) dentro de modelos generificados já que, conforme Butler escreveu, “o bebê se humaniza no momento em que a pergunta ‘menino ou menina?’ é respondida” (2008, 162). Mas quando essa qualificação não acontece é preciso compreender as causas que impossibilitaram a certeza imagética do sexo de se consolidar. Por isso é interessante notar o fato de a investigação ser feita através das mesmas mediações técnicas. O ultrassom obstétrico é incerto para a definição sexual do bebê de Michelle, mas o ultrassom pélvico não. Ele irá verificar mais profundamente a “verdade” do sexo ao traduzir a existência das gônadas, as quais auxiliarão na construção diagnóstica e designação sexual da criança. Dentro desta racionalidade científica, as marcas corporais precisam cada vez mais serem examinadas em suas minúcias imagéticas e moleculares. A ficção do corpo desvelado intrinsecamente. Não obstante, como apontamos na história de Marcos/Martha, essas mediações não são objetivas nem neutras. É vital que um especialista decifre e interprete os significados inscritos na imagem, contudo, novamente, essas decodificações também não são revelações, mas formas específicas de visualizar o corpo sexuado – o “treinamento do olhar” biomédico. Dois meses depois, quando conheci a família pela primeira vez, mãe e prima retornam com Ana Luisa para receber a definição do sexo cromossômico. As duas são novas, a mãe tem 24 anos e a prima tem 19 anos. Elas moram na mesma rua, de modo que a prima sempre está por perto e se prontifica para cuidar do bebê. Ao longo desses meses de consultas, cada vez mais a prima assumia para si a responsabilidade do cuidado da criança. Na primeira consulta no setor da endocrinologia pediátrica, o residente responsável pelo caso realiza uma anamnese detalhada, onde pergunta e preenche dados do paciente, da família e indica preliminarmente a “impressão diagnóstica” a ser desenvolvida. Constava no prontuário do bebê: “Genitália Ambígua – DDS 46, XY – Insensibilidade Androgênica Parcial?”. Ou seja, de um encaminhamento de “genitália ambígua”, resulta-se na confirmação do sexo

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cromossômico como 46, XY (tipicamente masculino) e, portanto, no questionamento do tipo de “distúrbio do desenvolvimento sexual” a ser investigado. No exame físico de cada consulta, a genitália do bebê também é examinada. No primeiro exame físico, media 2,1 centímetros, abaixo da média definida pelo Consenso, onde a medida infantil para um norte americano do sexo masculino seria de 3,4 centímetros com desvio padrão de 0,3 centímetros, ou seja, abrangendo um intervalo de normalidade entre 3,1 a 3,7 centímetros (Lee et al., 2006: e490)76. No segundo exame físico, a genitália diminuiu ainda mais, a medida foi de 1,5 centímetros. As gônadas estavam palpáveis bilateralmente, com cerca de 1 milímetro, mas as saliências labioescrotais apareciam como pouco pragueadas e pigmentadas. Na escala médica, considera-se tal genitália com um Prader III. No prontuário, entre as opções “pênis”, “clitóris” ou “falus”, assinalaram a última opção na definição da genitália. Nas discussões clínicas do caso, referiam-se como um DDS 46, XY com falus indeterminado/ambíguo. Logo, para os médicos, se tratava de um menino pouquíssimo virilizado. Na sala de estudos, as hipóteses formuladas eram de que o bebê não produzia hormônios androgênicos suficientes ou que esses hormônios não agiam corretamente devido a problemas nos receptores. Quando constataram por meio de exames hormonais que os níveis de testosterona e dihidrotestosterona estavam nos padrões normais, perceberam que a falha estaria na recepção hormonal. O bebê tinha pouca sensibilidade para a absorção de hormônios androgênicos, por isso a baixa virilização. O próximo pulo científico seria identificar a causa do problema de recepção, para isto precisariam realizar um sequenciamento genético, descobrindo a mutação que alterou a capacidade do receptor de se sensibilizar aos andrógenos. Tentaram pedir esse exame através de um pediatra do Grupo Interdisciplinar de Estudos da Determinação e Diferenciação do Sexo (GIEDDS), no Hospital de Clínicas/UNICAMP, mas não conseguiram. O procedimento não é simples, e possivelmente oneroso. Logo, a mediação da dúvida sexual para a certeza diagnóstica teria que ser feita com outro método. Agendaram uma reunião multidisciplinar para discussão do caso em conjunto com especialistas da urologia cirúrgica e psicologia. No dia da reunião multidisciplinar, ENDOPED1, ENDOPED2, a residente de endocrinologia pediátrica responsável pelo manejo do caso, as duas psicólogas que acompanham o ambulatório durante às terças-feiras e eu, fomos até o departamento de urologia para nos reunir com o chefe do ambulatório dessa especialidade.

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No texto do Consenso, descrevem outras médias internacionais, variando desde 2, 9 ± 0,4 cm no Japão à 3,6 ± 0,4 cm na Índia.

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Este profissional, o qual chamarei de CIRPED2, é bastante conceituado no meio médico pela qualidade de suas técnicas cirúrgicas – mas também, como percebi ao longo da reunião, por advogar pela não intervenção precoce em crianças intersexuais. Junto dele estava outro profissional da urologia cirúrgica (o CIRPED1, do caso de Marcos/Martha no HZN1, que também se colocou contra a cirurgia feminizante precoce naquela criança com HAC) e um orientando de iniciação científica do chefe da urologia, ainda na graduação. Após a exposição dos dados clínicos do caso, as psicólogas narraram as dificuldades da família do bebê. Diferentemente do gerenciamento sociomédico da criança intersexual do HZN1, em que ambos ENDOPED1 e CIRPED1 atendiam o caso, aqui a maior controvérsia não pousava na falta de definição sexual do bebê. Em seus discursos, o que instigava e preocupava os médicos era a constituição familiar precária. Como já identifiquei, a mãe era muito jovem, com 24 anos – porém, já tinha 6 crianças, contando uma que faleceu com 1 ano de idade e o bebê em questão. Aliada a essa visão de uma procriação prematura e em abundância, estavam associados registros de escolaridade, de classe e, talvez, de cor77. Evidencio tais recortes porque é fundamental situar essas famílias e crianças intersexuais dentro das dinâmicas de atendimento, usualmente de caráter popular, do Sistema Único de Saúde. Neste sentido, a família, negra, pobre, moradora de uma comunidade de Acari, também se compõe por uma extensa parentela. Das 5 crianças vivas, 3 moram com Michelle, as outras 2 foram adotadas por outros parentes. No entanto, mesmo com muitas primas, tios e tias participando dos cuidados, a situação econômica de Michelle é precária. Mãe e a prima sempre apontavam para o fato de que tinham muita dificuldade de pagar as passagens de metrô para irem às consultas, pois no início do atendimento eram praticamente semanais. A mãe também

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É muito delicado falar sobre racismo no meio médico, mas descrevo uma cena institucional na tentativa de ilustrar um pouco dessa polêmica dentro do âmbito nacional. A recente campanha, lançada dia 25 de novembro de 2014, pelo Ministério da Saúde e pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República para coibir o racismo no atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), em que pedem sob o slogan “Não fique em silêncio. Racismo faz mal à saúde. Denuncie, ligue 136!”, gerou um backlash do Conselho Federal de Medicina (CFM), o qual classificou a própria campanha publicitária do governo como racista. O CFM afirmou em nota que na verdade são problemas estruturais as causas do mau atendimento: “Financiamento limitado, fechamento de leitos, falta de insumos e medicamentos, e ausência de uma política de recursos humanos. Na verdade, são essas as causas do mau atendimento para a população no SUS, não importando questões de gênero, classe social ou etnia”. Por sua vez, o Ministério apresentou a campanha com dados de pessoas atendidas no SUS e apontam que “60% da mortalidade materna ocorre entre mulheres negras, contra 34% da mortalidade entre mães brancas; 56% das gestantes negras e 55% das pardas afirmaram que realizaram menos consultas pré-natal do que as brancas; e a orientação sobre amamentação só chegou a 62% das negras atendidas pelo SUS, enquanto que 78% das brancas tiveram acesso a esse mesmo serviço.”

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era usuária de drogas, informação obtida pela prima78, o que parecia comprometer em algum nível sua atenção, pois tinha muitos bloqueios para se expressar e entender o que os médicos comentavam ou perguntavam79, fato que aumentava a indisposição dos médicos frente ao que percebiam como uma porosa estruturação familiar para o “bom crescimento psicossocial da criança”. Como citei anteriormente, a prima, Frankie, acompanhava a mãe nas consultas e exercia o papel principal de cuidadora. Ela não deixava Michelle dar leite materno para Ana Luisa, com medo da influência das drogas, então dava leite Ninho e suco de laranja para a criança. Os médicos receitaram Nestogeno, um leite em pó mais enriquecido do que o Ninho, mas elas argumentaram que não podiam pagar a diferença. Em meio às dúvidas lançadas em direção à Michelle, Frankie continuava a tentar. Era percebida, aos olhos de todos, como uma espécie de porto seguro para a criança e para a prima. Em algumas conversas que mantive com ela, comentava sua procura por trabalhos e bicos a fim de conseguir pagar as idas para o hospital e comprar roupas para o bebê. Em uma das consultas, conversava comigo sobre uma chupeta (bem gasta) que tinha comprado para a criança, e como já tinha que repor por uma nova. O limite da construção de uma discursividade encapsulada na “vulnerabilidade social” da família, e que também polarizava concepções específicas sobre “bem estar” e “sofrimento”, foi quando a mãe apareceu com uma barriga saliente em uma das consultas, aparentemente grávida. Os comentários iniciais eram muitos, e chegavam ao desânimo sociomédico sobre a possibilidade de ligação das trompas femininas somente com 25 anos de idade. Michelle estava com 24 anos, nesta interpretação, ligar as trompas seria um meio de ajudá-la a não engravidar descuidosamente e aumentar ainda mais as condições de “vulnerabilidade” em que se encontravam. Por fim, quando Michelle abortou involuntariamente – parece que sim, não daria para saber se as drogas, a falta de Pré Natal ou algum outro elemento contribuiu para essa perda – a sensação na sala de estudos do HZN2 era de atenuação do drama familiar.

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Frankie relatou essa informação para os médicos após uma das consultas de Ana Luisa. A prima disse que a mãe usava cocaína e às vezes também maconha. 79

Em uma anamnese realizada pela psicóloga presente no ambulatório de endocrinologia pediátrica, a mãe citava que durante a gravidez, quando brigava com o parceiro dela e pai do bebê, ameaçava tomar remédios e abortar a criança. Ressalta o fato de que queria deixar seu parceiro “desesperado” para interromper a briga. Não se sabe até que ponto a fala é factual, pois ela lembrava da situação muito confusa e aos risos, nem se existiria algum nível de abuso psicológico ou físico desse parceiro com Michelle para justificar tais ameaças. Relata manter essas advertências durante toda a gestação, mas que o aborto não era uma opção real – a prima escuta a história e diz que teria “batido nela” se concretizasse o aborto. Enquanto isso, em meio às conversas da sala de consulta, segurava e embalava a criança no colo.

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Bem, agora um momento reflexivo para explicar meu posicionamento no campo: é complicado descrever essas minúcias do caso e do atendimento, exatamente porque estava (e talvez ainda esteja, aos olhos de pacientes) alinhada com a prática médica. Acompanhava alguns atendimentos e ficava nas salas de estudos. Ouvia as discussões pós consultas, conversava com os médicos sobre assuntos clínicos e casualidades, e participava das dinâmicas locais internas à instituição hospitalar – circulava nos espaços dos médicos e com eles. Por mais que meu compromisso ético se firmasse com as crianças e os movimentos políticos intersexuais, durante a etnografia eu estava, de certo modo, compactuando com as abordagens medicalizantes. Sem elas, não teria o que narrar. Minha relação com os familiares e as crianças intersexuais era interpretada pelas conversas informais com os médicos e pelos prontuários, foram poucas as situações que consegui acompanhar consultas em sua integralidade. Às vezes, participava da anamnese. A exceção foi este caso. Acredito que devido às variáveis expostas, indicando um recorte de acentuada vulnerabilidade e desigualdade social da família, tanto os profissionais de saúde quanto a mãe e a prima permitiram meu acompanhamento mais imediato nas dinâmicas de atendimento clínico. Os médicos não erguiam barreiras e a família parecia se sentir mais acolhida com alguém que tentava equilibrar tais disparidades – segurava a bolsa do bebê, lavava a chupeta, fazia cafuné na criança, conversava com a mãe e a prima, tentava agir de um modo mais sensível para diminuir minha angústia em relação aos excessos e apagamentos vividos pela família e pelo bebê. Se funcionou? Para a família, não sei, acredito que eu não tenha sido um nó significante dentro do fluxo biomédico que seguiam, mas espero ter amenizado os ruídos hospitalares, tão inquietantes. Para os médicos, não notei ser um obstáculo crítico ou incômodo durante a etnografia, eles também não se importaram com meu comportamento mais participativo neste caso; entretanto, não sei como minhas descrições e análises (exposta aqui de maneira bastante incisiva) serão recebidas por eles. Voltando ao relato do caso. Durante a reunião multidisciplinar foram decididas duas direções de conduta. A primeira era relativa à definição sexual – precisavam se valer de qual procedimento para atestar o sexo mais verídico? E, segundo, em vista de todo o drama familiar exposto, tinham que decidir sobre quais seriam os gerenciamentos propriamente sociais do caso. Os cirurgiões estavam receosos em operar sem um diagnóstico fechado, por isso assinalaram que o primeiro passo seria comprovar a tese da Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos. Com tal etiologia comprovada, poderiam garantir a viabilidade cirúrgica para manutenção da funcionalidade da genitália masculina. Logo, os especialistas decidiram na aplicação de um teste: injetariam uma ampola de 2 ml de testosterona durante três meses na

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criança. Se houvesse estímulo fálico, isto é, se a genitália virilizasse, a tese da SIPA seria comprovada e poderiam continuar com os procedimentos padrões para este diagnóstico. Por último, em relação à estrutura familiar, todos concordaram que era necessário encaminhar a família para o departamento do Serviço Social do hospital. Deveriam retornar na próxima semana, tanto para a aplicação da primeira dose de testosterona quanto para a consulta com a assistente social. O CIRPED2 disponibilizou a caixinha de Deposteron através da farmácia do serviço de atenção especializada para pacientes transexuais do hospital, contendo três ampolas de 2 ml com 200 mg de cipionato de testosterona80 cada, exatamente para os três meses do teste de virilização. A aplicação foi custosa para a médica responsável – o ENDOPED1 não estava neste dia de ambulatório. O líquido da testosterona era oleoso, de tal forma que essa viscosidade dificultou a aplicação imediata. O bebê chorava muito. Parecia doer bastante. Lembrei das vacinas de benzetacil (um antibiótico da família das penicilinas), também de líquido oleoso e aplicadas intramuscular, que magoavam a área dias depois da aplicação, mesmo em um adulto. Em suma, não saberia precisar a prorrogação dessa dor, mas a coxa da criança certamente ficaria dolorida por algumas horas. Foi Frankie, a prima, quem levou o bebê para a primeira aplicação. Não tinham dinheiro para arcar com quatro passagens, contabilizando a ida e a volta, dela e da Michelle, de modo que ela assumiu o compromisso. Juntava dinheiro para essa locomoção dos serviços que arranjava e se sentia mais capaz para lidar com os manejos clínicos e com os cuidados da criança. As aplicações se repetiram durante os dois meses seguintes. Logo, se a injeção foi penosa, quais seriam os desenvolvimentos da interação da testosterona (suas composições e reações) com o corpo de um bebê de 3 meses de idade? Na bula do remédio, aponta-se os efeitos colaterais: possibilidade de ginecomastia81; alterações cutâneas, como alopecia, seborreia e acne; aumento da retenção de água, sódio, potássio, cálcio e fosfatos inorgânicos; náusea, dor de cabeça, ansiedade e depressão; inflamação e dor no local da administração intramuscular. Por fim, um aviso que alerta para o contrassenso desse manejo médico frente ao guideline científico, cuja prioridade aparente é a preservação da funcionalidade gonadal – o tratamento

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É um derivado sintético da testosterona, enquadra-se na classe dos hormônios esteróides com propriedades androgênicas e anabólicas. 81

Condição que considera um crescimento atípico e, portanto, patológico, das glândulas mamárias e das mamas masculinas.

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com altas doses de testosterona (e qual é a dose correta para um recém-nascido?) pode reduzir ou interromper a espermatogênese, como também pode agir na redução dos testículos. Tal qual o paciente com HAC, não há garantia do pleno desenvolvimento funcional, tanto em nível reprodutivo como sexual. Os estudos longitudinais são precários e pouco conclusivos. Conforme informa um pediatra britânico justamente sobre o gerenciamento dos casos de insensibilidade androgênica: Suplementos androgênicos podem ser úteis na puberdade em pacientes com resistência aos andrógenos, mas não são sempre necessários. Realiza-se cirurgias entre o segundo e terceiro ano de vida para reparar hipospádias e trazer testículos não descidos para as bolsas escrotais. Ginecomastia ocorre ocasionalmente em adolescentes, e pode ser preciso mamoplastias redutoras. (…) Entretanto, estudos com resultados desses procedimentos são poucos e recortam um número pequeno de amostras. São necessários estudos com mais pacientes envolvidos que usem modelos padronizados e válidos para a mensuração da função sexual. (Hughes et al., 2012: 1425-1426)82

Por outro lado, o encaminhamento social dos médicos direcionou a família para o Serviço Social. A conversa foi feita com Frankie, quem levou a criança outra vez para a consulta. Ela segurava o bebê no colo enquanto a assistente social perguntava sobre a estrutura familiar da casa de Michelle, sobre a parentela e qual a relação que tinham de suporte entre si, sobre o papel do pai da criança no cuidado da mesma (e no convívio com Michelle e seus outros filhos), enfim, perguntas que possibilitavam mapear certas condições de cuidado. Frankie sempre segurava Ana Luisa no colo, limpando a baba ou ajeitando a roupinha dela, e respondia aos questionamentos da assistente social. Em um determinado momento, ela devolve o questionamento “vocês não vão tirar a criança da gente não, né?”. Ela faz a pergunta com sofrimento. Parecia algo sufocado em seu peito, talvez desde as primeiras consultas e atendimentos. Frankie dizia ter esse receio há um tempo, mas somente com a assistente social efetivamente perguntando (mesmo com a intenção de mapear a trajetória de vulnerabilidade daquela família) suas percepções sobre o atendimento clínico, ela foi capaz de vocalizar suas noções sobre as explicações médicas, suas vontades e seus medos. Quando a assistente social devolve que ela não poderia retirar Ana Luisa da família (uma resposta parcial, pois se a

No original: “Androgen supplementation might be needed at puberty in patients with androgen resistance, but is not always necessary. Surgery is done during the second to third year of life to repair hypospadias and bring undescended testes into the scrotum. Gynaecomastia often occurs in adolescence, and requires reduction mammoplasty. (…) However, outcome studies are few and comprise small numbers. Studies with large sample sizes that use standardised and validated measures of sexual function are needed”. 82

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assistente social concluísse que tal situação familiar fosse prejudicial à criança, seria obrigada profissionalmente a denunciar ao Juizado de Menores), Frankie fica visivelmente mais aliviada. É relevante também notar suas observações sobre o manejo clínico e dos profissionais de saúde. Quando questionada acerca do que entendia ser o problema da criança, Frankie disse não saber muito bem. Entendia a dificuldade de estabelecer um sexo definitivo para a criança, mas não entendia os motivos para a confusão. Disse não saber exatamente qual a condição carregada pelo bebê, somente que os médicos falavam “umas coisas aí” de difícil memorização, e que aceitariam a intervenção dada pelos profissionais, pois só queriam o melhor para Ana Luisa. Embora a prática do ocultamento de informações seja combatida na literatura médica atual, como forma de redefinir a prática médica viciada pós John Money, ainda é arriscado afirmar que a revelação sobre a condição da criança intersexual, os cuidados possíveis e a participação parental no processo decisório sejam completas. Como bem disse Frankie ao lembrar dos médicos discorrendo “umas coisas aí” sobre a dificuldade de determinação sexual do bebê. O Consenso de Chicago estabeleceu desde 2006 que os manejos dos casos de intersexualidade sejam feitos com uma terminologia supostamente não estigmatizante, como DDS 46, XY, e cada vez mais descritiva, como Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos. Entretanto, essas classificações não têm um significado particular (ainda mais científico), cuja suposta neutralidade descritiva impulsionou a mudança no guideline, para pessoas sem conhecimento biomédico83. Principalmente para familiares com recortes específicos de vulnerabilidade social. Frankie estava mais interessada em conseguir um trabalho para comprar roupas novas para o bebê do que entender as dinâmicas congênitas e hormonais que levavam uma criança a se virilizar pouco e com isso ter seu sexo questionado, debatido e escrutinado até a determinação sociomédica legítima. Neste registro, no âmbito dos direitos sexuais, de acordo com María Elvira DíazBenítez, o consentimento aparece como uma chave fundamental para se pensar as práticas

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E conhecimento biomédico aprofundado, pois casos de intersexualidade são difíceis de serem diagnosticados e gerenciados, como se pode notar pelas descrições dessas histórias. Os próprios residentes ficavam chateados ao pegarem um caso de “DDS” para atendimento ambulatorial. Quando tinham que explicar o caso no grupo de estudos após a ronda de atendimentos, faziam-no com muitas dúvidas e desgaste. ENDOPED1 sempre brincava ao dizer que essas dúvidas seriam “questões de prova”, para a intensificação dessa espécie de cansaço entre os residentes com os casos de intersexualidade.

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sexuais contemporâneas, e porque não também as práticas biomédicas, já que inserida em uma mesma racionalidade ocidental e moderna. Em seus termos: Como dito anteriormente, o consentimento é o elemento central na definição da licitude de uma relação sexual (Vigarello, 1998) e está diretamente relacionado à categoria de sujeito contemporâneo, isto é, indivíduos com direitos inalienáveis em uma concepção individualista da sociedade (Vianna e Lacerda, 2004). No debate jurídico contemporâneo, a noção de consentimento vinculase à definição dos direitos de crianças e adolescentes a respeito do exercício de sua sexualidade. As crianças são vistas como sujeitos de direitos, e a violação de seus direitos é percebida como um crime contra a humanidade (Faleiros e Campos, 2000; Lowekron, 2012). Às crianças e adolescentes adjudica-se uma condição de vulnerabilidade, isto é, a ideia de que à diferença das pessoas adultas, eles não possuem maturidade nem psicológica nem física, questão que se aplica para a sua sexualidade. Tendo como principal marco a aprovação da Convenção sobre os Diretos da Criança pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1989, as crianças passaram a ser entendidas como sujeitos de direitos especiais, sujeitos que devem ser tutelados e protegidos pela sociedade, a família e o Estado. (Ibid., 2012: 257-258)

Assim, as crianças intersexuais são tuteladas pelo Estado justamente porque gozam da categoria de sujeitos de direitos, mas sujeitos de direitos especiais, visto que não podem consentir. De todo modo, o grande problema não seria o paciente intersexual ou seus familiares consentirem com o encaminhamento protocolar biomédico, mesmo ao inserirem e legitimarem esses sujeitos no que chamo de processo de veridicção da intersexualidade. Pois como seria não consentir? É necessário inserir o sujeito dentro dos regimes de “verdade”, e tais discursividades banham-se em orientações normalizadoras do gênero. Portanto, o problema mais evidente seria o privilégio do discurso biomédico sobre essas condições/vidas, uma vez que não tenciona suas capacidades particulares de produção de tais verdades corporais. As normas internacionais atuais se posicionam neste sentido, como aponta Paula Sandrine Machado sobre os “Princípios de Yogyakarta”, documento produzido em 2007 com objetivo de definir parâmetros sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Nesse documento, elaborado por um grupo de especialistas em direitos humanos de 25 países, há um artigo que pode ser aplicado às cirurgias precoces voltadas às crianças intersex. O item b, do princípio 18, “Proteção contra abusos médicos”, estabelece que os Estados deverão: “Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras medidas necessárias para assegurar que nenhuma criança tenha seu corpo alterado de forma irreversível por procedimentos médicos, numa tentativa de impor uma identidade de gênero, sem o pleno e livre consentimento da criança que esteja baseado em informações confiáveis, de acordo com a idade e maturidade da criança e guiado pelo princípio de que em todas as ações relacionadas a crianças, tem primazia o melhor interesse da criança.” (Princípios de Yogyakarta, 2007: 25 apud Machado, 2008a: 37).

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Ainda em relação ao tema do consentimento, a antropóloga e bioeticista Katrina Karkazis, que citei no capítulo anterior a respeito da controvérsia da nova terminologia do Consenso de Chicago (e que a apoia, entendendo tal classificação como mais neutra e mais suscetível à reivindicação de uma atenção médica standard), advoga com outras pesquisadoras e especialistas do tema sobre a relutância médico-científica em praticar de fato um “consentimento esclarecido”. Nos seus termos, o conceito se sustenta na noção de que os pacientes (e seus substitutos legais, como pais e parentes) tem o direito à autodeterminação, cuja validade se assenta no (re)conhecimento dos possíveis tratamentos e suas escolhas. Para ela, Médicos têm um dever correspondente de repassar aos pacientes informações adequadas para garantir que eles possam realizar uma decisão informada sobre suas opções de tratamento, incluindo a decisão de não se submeter a tratamento nenhum. Uma confusão comum dentro e fora da medicina seria que consentimento esclarecido consiste meramente em assinar um formulário de consentimento (normalmente no dia marcado para a realização do procedimento) depois de uma discussão apressada sobre os riscos e encaminhamentos do tratamento (Jones, McCullough & Richman, 2005). Contudo, consentimento verdadeiro e significativo é um processo de comunicação contínua entre médicos e pacientes (Karkazis, Tamar-Mattis, & Kon, 2010). Consentimento esclarecido requer que os médicos adotem medidas para garantir que seus pacientes tenham entendido as implicações imediatas e a longo prazo das intervenções médicas, como também apontar alternativas, dando tempo para que esses pacientes pesem as informações e sejam capazes de tomar decisões com o suporte dos profissionais de saúde sem coerção. (Tamar-Mattis et al., 2013: 2)84

Um contraponto interessante à essa visão é do também citado Iain Morland (2008), ele próprio intersexual, em que aponta uma crítica à posição acadêmica/ativista de consentimento e atendimento “centrado no paciente”, pois tal percepção ainda apoiaria uma suposta noção valorativa de interior/exterior. Onde a prática médica “corretiva” e “normalizadora” se propõe a resolver os problemas do exterior, à genitália e anatomia ambíguas, enquanto os movimentos sociais se prezam por uma interioridade pautada na experiência vivida e no embodiement. Na verdade, para Morland essa distinção seria mais problemática, pois os dois lados não seriam

No original: “Physicians have a corresponding duty to give their patients adequate information to ensure they can make an informed decision regarding their treatment choices, including the choice of no treatment. A common misunderstanding within and outside medicine is that informed consent consists merely of signing a consent form (often on the day of the scheduled treatment) after a cursory discussion of the procedure and its risks (Jones, McCullough,&Richman, 2005). True and meaningful informed consent, however, is a process of communication between the physician and the patient (Karkazis, Tamar-Mattis, & Kon, 2010). Informed consent thus requires physicians to take steps to ensure that patients understand the immediate and long-term implications of medical interventions and alternatives, have time to weigh these considerations, and are able to make decisions with the support of health care providers and free from coercion”. 84

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fixos e, em algum momento, estariam no outro polo do binômio. E além, em sua interpretação, tal distinção ainda fomentaria um regime hierárquico do bom e do mau manejo dos intersexuais, onde o principal seria simplesmente poder ou não decidir sobre atendimentos e intervenções (uma concepção centrada no sujeito de direitos), e não questionando o próprio discurso da necessidade biomédica e social de tratamento das pessoas intersexuais. Mas de volta ao trecho citado, tal comprometimento ético e clínico em esclarecer todos os passos da condição, das intervenções e das alternativas sociomédicas possíveis não me pareceu ser contemplada neste caso, acredito que por toda a construção e mediação da família como “vulnerável socialmente”. Os profissionais de saúde pareciam completamente iluminados pelo modelo tradicional de autoridade médica e, à vista disto, detinham um aval aparentemente incontestável de gerir o diagnóstico e indicar os encaminhamentos possíveis. Talvez só tenha visto esse tipo de interação mais horizontal no próximo caso que irei narrar, de uma jovem adolescente com SIPA, cuja identidade de gênero feminina e orientação sexual heterossexual formadas ensinam muito sobre quais roteiros de sofrimento são reconhecidos pelo saber-poder biomédico. Dito isto, para além da constituição de um quadro de vulnerabilidade incorporada às vivências intersexuais, especialmente neste caso, também há, nestas dinâmicas de gerenciamento e veridicção da intersexualidade, a construção de uma “carreira moral” de sofrimento travestida em um discurso de “bem estar” biomédico. Parece haver uma dificuldade, de fundo sociocultural, em aceitar certos roteiros de sofrimento – e justificar esses apagamentos com intervenções clínicas e cirúrgicas. A própria concepção de “saúde” e de “bem estar” estariam ligadas a uma ideia de “qualidade de vida” que não é verbalizada em nenhum momento, mas que serve de modelo para as condutas biomédicas. Para o médico e bioético Kenneth Rochel de Camargo Jr, categorias como sofrimento, vida, doença e saúde não são conceituadas ou definidas pelo saber biomédico, elas existem somente no “terreno da metafísica”. Materializam-se na prática como categorias relacionais a fim de conformarem e consolidarem a racionalidade biomédica – e o seu fim prático: a clínica. Mais além, ele indica que a medicina parte do sofrimento, tanto historicamente quanto em cada consulta, para a busca da doença. Mas que tal processo é atravessado por outros aspectos não clínicos, mas de cunho subjetivo e cultural, que de certo modo contradizem o esperado distanciamento e objetivação biomédica necessárias para a análise das doenças. Em seus termos:

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Uma contradição fundamental se destaca para o propósito desta argumentação: para o paciente, a experiência da doença (sofrimento) é um fato concreto, incapacitante de uma forma que transcende sua capacidade de autocuidado, tornando necessária a intervenção do especialista. Para o médico, o sofrimento é irrelevante, e o paciente, fonte de distorções. Sua relação se dá com a doença, e o paciente é um mero canal de acesso a ela. Um canal muito ruim, por sinal, já que introduz "ruídos" em níveis insuportáveis. (...) Assim, para o médico, a única realidade concreta é a da doença, expressão da lesão. O esquema referencial das doenças é, no entanto, mera classificação, artifício criado para enquadrar os fenômenos do processo saúde-doença. Ao esquecer isso, o médico passa a sobrevalorizar o artifício em detrimento do paciente, apagando seu sofrimento. É interessante notar que o médico, apesar de procurar sempre se colocar no polo objetivo desse confronto, não está imune, ele mesmo, às contradições da subjetividade, uma vez que seu raciocínio está sujeito ao crivo de sua experiência, instância de ressituação do conhecimento "objetivo" na sua práxis. (1992: 206, grifo no original)

Neste sentido, as dinâmicas hospitalares do caso (e de muitos outros casos de intersexualidade) imprimem um atrito entre a experiência da práxis médica – do conhecimento “objetivo”, restrito e controverso, porém, atravessado por orientações particulares das subjetividades de cada profissional de saúde – e a experiência do par “sofrimento/bem estar” que o paciente e seus familiares vivenciam nesses contextos de cuidado e de intervenção sociomédica. No fim, entre os produtos de tal atrito, podemos identificar o problema dos direitos (sexuais e humanos) ao consentimento de fato esclarecido e, um passo antes, das próprias necessidades dessas justificativas e procedimentos. Retornando ao caso em questão, enfim, com o teste de testosterona produzindo efeito, a criança virilizou. De vestidos, saias, roupas rosas e roxas, no dia da segunda aplicação, a prima levou a criança de vestido amarelo e contou que não a chamava mais de “Ana”, agora era somente “bebê”. No dia da terceira e última aplicação, tamanha era a virilização da genitália e dos traços da criança que a família se convenceu de que era um menino e modificou o nome para Wagner Luís. Com o mesmo nome do pai – cuja ausência se explica pelo fato de que não acompanhava as consultas, compareceu apenas na última, a que confirmariam a definição sexual da criança – a criança poderia, finalmente, receber alta. Sendo assim, o bebê já com 6 meses de idade, virilizado, ajustado ao código de roupas, cor e gramáticas masculinas, estava pronto para ser registrado. Depois da definição clínica no sexo masculino, realizaram o registro civil no nome de sua mãe, Michelle, e de seu pai, Wagner – a prima, Frankie, também estava presente nesta última consulta na endocrinologia pediátrica. Por fim, encaminharam-no à urologia cirúrgica, o objetivo lá será de “corrigir” cosmeticamente a genitália da criança a fim de adequá-la aos padrões masculinos hegemônicos. Resta saber,

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conforme afirmou uma das psicólogas do ambulatório, em comunicação pessoal, se Wagner Luís irá se apropriar da identidade sexual que lhe foi atribuída.

*

O segundo e terceiro caso serão breves, pois acompanhei pouco do atendimento dessas duas jovens. Suas histórias servem mais para ilustrar outras trajetórias de resultados clínicos e investigações diagnósticas similares; e, quem sabe, como forma de comparar práticas, falas e ajustes que foram feitos de modo distinto ao caso do bebê Ana Luisa/Wagner Luís. De um lado, temos a história de Carla. Com 18 anos de idade, ela apareceu no ambulatório de endocrinologia pediátrica do HZN2 com a tia, as duas foram encaminhadas para o departamento pela urologia cirúrgica. Nascida no interior do Maranhão, Carla tinha um namorado de anos, por quem era muito apaixonada. Conta que ele tentava aprofundar a relação e ela não cedia, por medo. O namorado não entendia o motivo de tanto bloqueio. Ele pensou que selar seu compromisso e seriedade com a relação fosse assegurar o comprometimento sexual dela, então a pediu em casamento. Ela, com 16 anos na época, se desesperou. Termina com o namorado, cuja insistência se mantinha mesmo com o término e afastamento de Carla. Sem saída, considerou se suicidar em vários momentos. Não sabia resolver o conflito, suas angústias não eram verbalizadas em casa. A mãe sempre em silêncio, como se escondesse um segredo. Um dia acumulou coragem e contou para a tia, moradora do Bairro de Fátima no Rio de Janeiro, sua história. Até o momento não tinha menstruado, e mais, não possuía uma vagina – fato que a incomodava e angustiava muito. Não sabia os motivos nem como resolver sua condição. Antes de continuar a descrição da história de Carla, uma observação. O segredo e o silêncio são dimensões importantes nesses casos. Como vimos nos capítulos anteriores dos gerenciamentos médicos da intersexualidade, o profissional de saúde estava inserido em uma norma em que devia ocultar informações para os familiares ou jovens intersexuais, posteriormente assume uma posição de encorajar o encobrimento por parte dos familiares de certos aspectos do diagnóstico e da condição da criança/jovem intersexual. O consentimento esclarecido e o revelamento integral das questões clínicas e sociais envolvendo a intersexualidade ainda não são posicionamentos padrões nos atendimentos, mesmo com os

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novos guidelines apoiando mudanças de manejo neste sentido. Em vista disto, a dificuldade de incorporar tais mudanças nos atendimentos se deve ao fato de que outros marcadores sociais da diferença, como a construção da vulnerabilidade social no caso de Ana Luisa/Wagner Luís através de fatores como escolaridade, classe e raça/cor, são acionados na construção e administração dos casos. De modo que os pais dessas crianças e jovens intersexuais também partilham de códigos similares de conduta social, ou talvez incorporem essas posições biomédicas na medida em que são atendidos nesses espaços hospitalares, pois também tendem a gerenciar os segredos, as vergonhas e os estigmas (Sedgwick, 2007) que as experiências intersexuais de seus filhos e filhas mobilizam socialmente. O lugar do segredo dessas experiências imprime um mecanismo de constrangimento mais dramático do que a homossexualidade “no armário” analisada por Sedgwick. As regulações dos privilégios de visibilidade e das hegemonias de valores não é apenas para guardar um desejo, mas a invisibilidade total de um corpo sexuado – pelo menos até que ele seja normalizado. Retornando à história. A tia traz Carla do Maranhão até o Rio de Janeiro para morar com ela e juntas começam a investigar as possíveis explicações para o que acontecia com o corpo da sobrinha. Assim, Carla inicia seu atendimento médico em um hospital no Centro da cidade. Lá realizam o exame citogenético para definição do cariótipo, que confirma o sexo cromossômico de 46, XY. No prontuário, descrevem a impressão diagnóstica, “DDS 46, XY”, a mesma identificação do caso Ana Luisa/Wagner Luís. Não fica absolutamente claro o diagnóstico feito pela equipe médica anterior à chegada no Rio e no HZN2, e por tudo o que discorri sobre as particularidades do gerenciamento sociomédico de casos de intersexualidade é compreensível Carla não lembrar da etiologia específica. Contudo, pelo histórico dos exames realizados, pelos relatos dela e da tia, e pela definição do sexo cromossômico, a condição também parece ser a mesma: Síndrome de Insensibilidade Parcial aos Andrógenos85. Caso fosse completa, sua genitália não seria ambígua. Logo, no resultado da ressonância magnética pélvica, com contraste, os especialistas notaram duas formações ovaladas medindo cerca de 3,5 centímetros e localizadas nos canais inguinais, isto é, eram testículos não descidos. Observaram

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Tanto Carla quanto Fabiane (a próxima história a ser narrada), não possuem definições exatas de suas etiologias. Os profissionais de saúde do HZN2 não tiveram acesso aos relatos e dados médicos de seus locais de origem. Dessa forma, aproximo as etiologias dos três casos narrados não como diagnósticos “originais” ou “oficiais”, pois não há como validar nos prontuários antigos, mas como uma investigação diagnóstica que foi realizada atualmente segundo os mesmos critérios e resultados indicativos da SIPA: de genitália ambígua, definição do sexo cromossômico (46, XY), imagens de ultrassom e níveis hormonais. As variações moleculares para localização exata da condição de cada um só poderiam ser achadas com exames mais detalhados, como a tentativa da equipe de realizar um sequenciamento genético de Ana Luisa/Wagner Luís que não foi para frente.

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também estrutura peniana de dimensões reduzidas, e não perceberam evidências de útero e de ovários. Neste hospital, Carla realiza duas cirurgias, a primeira, em 2012, para a retirada das gônadas masculinas, e a segunda, em 2013, para a “feminização” de sua genitália e construção de uma “neovagina”. Na anamnese feita durante a consulta na endocrinologia pediátrica do HZN2, ela relata com abatimento e certa animosidade a maneira com que foi tratada nesse outro hospital. A lógica era de espetacularização do corpo ambíguo, com cenas de observação e discussão das especificidades do caso na frente da paciente – no estilo mais dramático das séries médicas estadunidenses. A tia complementa o relato da sobrinha: “foi tão impactante [esse tipo de comportamento médico], acho que ficamos prontas para qualquer coisa”. Tal crítica faz eco sobre o que já discorremos acerca do “treinamento do olhar” e da reprodução deste habitus a partir da experiência da prática médica e das mediações científicas. Contudo, a reprodução do saber biomédico ainda esbarra, regularmente ou ocasionalmente, dependendo dos contextos de análise, nesses limites de consentimento não esclarecido e de violações psicossociais e integridades corporais. Deste modo, Carla chega ao HZN2 já operada, mas com resultados cosméticos e funcionais insuficientes. Usava constantemente um dilatador vaginal para manter a pouca profundidade construída em sua vagina. Tal objeto é um cilindro plástico, ou de outro material, cujo objetivo é dilatar e estender o canal vaginal. Serve como recomendação médica posterior à realização de cirurgias de vaginoplastia a fim de não diminuir e fechar o canal vaginal operado. Seu uso é bastante incômodo, pois dependendo do comprimento e diâmetro do dilatador, se assemelharia ao uso de um dildo/vibrador ou de um pênis. Logo, o esforço do seu uso contínuo torna-se uma marca material efetiva na ilustração da “carreira corporal”86 que tal caso expressa. Outro encaminhamento posterior às operações foi o uso do anticoncepcional Diane 35, que Carla tomava de maneira irregular. Por conseguinte, com a retirada das gônadas masculinas e o uso do medicamento com estrogênio e progesterona sintética, seu corpo feminizou ainda mais. No prontuário, os médicos indicaram M3 para o estágio do desenvolvimento dos seus seios, logo, consideraram um aumento da mama e da aréola, mas sem separação de seus

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Agradeço à María Elvira pela expressão, inspirada tanto em Goffman quanto em Foucault, que abarcando práticas como as descritas acima, de dilatação e (re)construção de vaginas, caracteriza tais práticas como uma forma de suplício atualizado na construção cotidiana do self e do gênero.

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contornos87.

Em

relação

à

genitália,

tratavam

no

laudo

médico

como

“falus

indeterminado/ambíguo”, com 2,5 centímetros de comprimento e fusão parcial das saliências labioescrotais. Mesmo com a cirurgia feita no hospital do Centro, os médicos concluíram que tais traços e medidas representavam um Prader III – sendo possivelmente um Prader IV pré cirúrgico. Em suas observações pós consultas, os resultados não eram satisfatórios técnica e esteticamente para uma paciente cuja identidade de gênero era tão reiteradamente feminina. A narrativa de sofrimento da história com o namorado, onde não era possível a consumação sexual de seu amor, pois faltava a anatomia coerente à sua identificação de gênero, aliada ao vigoroso empenho em efetivar sua normalização corporal, representada pelo esforço do uso contínuo do dilatador vaginal – o qual só retirava para tomar banho e ir ao banheiro, e tão rápido acabasse com sua higiene, já recolocava novamente – moldava a certeza do encaminhamento clínico e cirúrgico possível tão necessário aos profissionais de saúde. A trajetória biográfica de Carla materializava as ficções e os tipos ideais normalizados da feminilidade. Ao enumerar para a psicóloga que quer 1) não ter clitóris grande, 2) não usar mais o “molde” (dilatador) e 3) a construção de uma vagina esteticamente perfeita, Carla assumia, mesmo sem saber, os efeitos e as regulações dos gêneros inteligíveis biomedicamente. Como apontou Bento (2006) em relação às experiências transexuais, a narração da história de vida é uma interpretação que está relacionalmente ligada ao ambiente em que é evocada, portanto, ao contexto hospitalar (Ibid.: 168). Logo, caracterizar a vagina que gostaria de ter, tomando para si esse modelo hegemônico de feminilidade, sem excessos ou ambiguidades, consolidava Carla nos roteiros de vida generificados normativamente, tal como sustentam também os saberes e as práticas biomédicas. A conclusão da história de Carla, até o fim de minha etnografia, foi o aval da psicologia para encaminhamento cirúrgico. A vaginoplastia para aprofundamento do canal vaginal seria realizada com a garantia de uma “trajetória de normalização” (Machado, 2008a) congruente às áreas cinzentas dos guidelines, em que se atende com o compromisso da funcionalidade heterossexual. Não havia imprecisões. A endocrinologia pediátrica receitou a manutenção do uso de Diane 35 continuamente para refinar a feminização dos caracteres secundários. Em O termo “M3” se insere dentro de um método, proposto por um médico inglês chamado J. M. Tanner, para identificar os estágios de maturação sexual. As mamas seriam avaliadas quanto ao seu tamanho, forma e características e definidas em uma tabela que vai do “M1”, estágio infantil e pré púbere, até o “M5”, estágio adulto e pós púbere. Esta identificação de maturação sexual é realizada em conjunto à análise dos pelos pubianos, cuja tabela de desenvolvimento sexual também é similar ao das mamas, indo de “P1” à “P5”. O diagnóstico, portanto, é conjunto. No caso de Carla, o prontuário médico indica “M3P4”. 87

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suma, ela era o exemplo da plasticidade de gênero levado ao limite moneyziano, pois mesmo com todos os “obstáculos” de seu sexo cromossômico, o sexo de criação feminino prevaleceu. O trabalho dos profissionais de saúde era efetivamente inseri-la, através das cirurgias “corretivas”, dentro da anatomia feminina coerente à sua identidade de gênero e, com isso, cessar o sofrimento (e o estigma) da incerteza sexual que Carla carregava. De outro lado, temos a história de Fabiane. Assim como Carla, ela também vem de outro estado para atendimento. Natural de Rondônia, ou como gostava de apontar, de sua capital, Porto Velho. Ela chega ao ambulatório de endocrinologia pediátrica do HZN2 com o pai, através de um encaminhamento do Programa de Tratamento Fora do Domicílio (TFD), e anuncia em sua primeira consulta: “eu queria ter uma vagina normal”. Fabiane nasceu com “genitália ambígua”, foi registrada com sexo social feminino, porém, desde os 3 meses de idade, cita que sua mãe notava um aumento de sua genitália. Contudo, discorre que somente aos 13 anos foi levada ao médico88, quando iniciou acompanhamento hospitalar para investigar sua condição. Nesta época realizaram o exame de cariótipo e identificaram que o sexo cromossômico de Fabiane era 46, XY. Imagens de ultrassom também constataram a inexistência de útero e ovários. Mas nada foi feito então. Posteriormente, durante a adolescência, Fabiane foi encaminhada para o Rio de Janeiro. Em 2013, foi submetida à uma biópsia gonadal no Hospital Zona Sul (HZS), quando os especialistas que a operaram encontraram testículos não desenvolvidos, por se tratar de uma jovem de 16 anos, logicamente decidiram pela remoção das gônadas. Em paralelo, iniciaram uma hormonoterapia para feminização de seu corpo com doses progressivas de hormônios, a qual foi concluída por atingir a marca “M5P5” de maturação sexual, isto é, de desenvolvimento total mamário e de pelos pubianos. Também neste outro hospital, foi submetida a uma clitoroplastia para diminuição de seu falus e confecção de pequenos lábios. Somente no segundo semestre de 2014, Fabiane é transferida para o HZN2.

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Algumas hipóteses explicativas para esse fato: pelas informações da anamnese e dos prontuários disponíveis, não se sabe nada além sobre as dinâmicas familiares que antecederam essa primeira ida (tardia do ponto de vista biomédico, pois já se encontrava, assim como Carla, na adolescência) ao hospital. Por que Fabiane e Carla não foram quando recém nascidas ou crianças ao hospital? Parece haver uma maior gestão do silêncio e do segredo por parte dessas famílias. Talvez por ambas se encontrarem em recortes regionais onde se é mais difícil falar sobre e buscar atendimento para casos de intersexualidade. Ou talvez pela falta de estrutura biomédica dessas localidades em perceber e gerenciar tais condições, o que submete ainda mais essas famílias às situações de encobrimento de estigmas.

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Encaminharam-na para a realização de uma vaginoplastia, ou seja, assim como Carla, para a construção de um canal vaginal aprofundado. Mas diferentemente desta, os relatos de Fabiane durante a anamnese apresentaram ruídos para a equipe de especialistas. Sua história impossibilitava a construção direta de certezas e coerências clínicas a fim de assegurarem os procedimentos cirúrgicos. Somente sua autodeterminação ao dizer “eu queria ter uma vagina normal”, não era suficiente para a expertise médica. Identifico, a partir dos relatos médicos informais e das anotações nos prontuários, que tal mudança de conduta é localizada na falta de reiteração, por parte de Fabiane, de características e qualidades inseridas nos roteiros tipos ideias femininos, e que transbordavam nos relatos de Carla. Primeiro, Fabiane identificava-se como homossexual. Sua orientação sexual já inviabilizava, na percepção médica, um procedimento cirúrgico realizado para o desenvolvimento funcional, tanto reprodutivo como sexual, de uma lógica heteronormativa. Quando contou do seu desejo de aprofundar seu canal vaginal, ENDOPED1 narra depois, na sala de estudos do ambulatório, que precisou explicar para ela que um canal vaginal maior era necessário ao sexo heterossexual, com penetração de pênis, e não ao sexo homossexual. Nesse momento fiquei um pouco assustada pensando em como será que entendem o sexo lésbico. Ou além, mesmo sem argumentar em favor de um ou outro tipo de prática sexual, que a encorajassem – assim como admiraram no discurso de Carla – a desenvolver sua própria autonomia sexual. Essas mudanças no manejo clínico de um mesmo diagnóstico enfatizam nuances biomédicas, nada sutis, das construções de humanidades e de corpos sexuados segundo regimes de verdade específicas. A eficiência clínica e terapêutica, como dizia Georges Canguilhem, são inseparáveis. Em seus termos, “a clínica é inseparável da terapêutica e a terapêutica é uma técnica de instauração ou de restauração do normal, cujo fim escapou à jurisdição do saber objetivo, pois é a satisfação subjetiva de saber que uma norma está instaurada” (Ibid., 2009: 185). Neste sentido, a homossexualidade produziria menos eficácia no processo de construção diagnóstica, pois seria uma orientação sexual – assim como toda a concepção de intersexualidade pelo saber biomédico – não usual, ilógica e, no limiar, anormal. Então por mais que Fabiane verbalize uma biografia de si onde identifique-se como mulher, na percepção do discurso médico hegemônico algumas fissuras se formam na narrativa em relação à utilidade daquele procedimento cirúrgico visto sua orientação sexual e, no limite, com questionamentos à validade de sua identidade de gênero posto que suas performances eram mais masculinas. Quando Fabiane conta para os especialistas sua história de vida, as psicólogas

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apontam conflitos com sua mãe que escapam à narração – parece que a mãe podava a expressão de gênero, mais masculina, de Fabiane, tentando adequá-la a padrões de uma normalidade feminina. Na visão das profissionais de saúde, mesmo afirmando sua identidade de gênero feminina, Fabiane lembra sobre uma época muito feliz em que morou com o pai e a madrasta, e podia vestir o que quisesse – uns “bermudões e chinelos de homem”. E quando voltou a morar com a mãe, durante a adolescência, comenta das brigas com ela, que tentava acabar com seu jeito aparentemente mais masculino. Nas palavras da jovem, a mãe não permitia que Fabiane usasse nada que a fizesse parecer uma “sapata”. Também não aceitava a orientação sexual da filha. Mas no decorrer da narração, vislumbra-se uma mudança na atitude materna. Quando Fabiane veio ao Rio de Janeiro para a investigação médica, conta que a mãe deu de presente um “chinelo de homem”, e ela mal acreditou. A mãe parecia incorporar, com conflitos e vagarosamente, as escolhas feitas por Fabiane. Mas essa construção de sua trajetória de vida não era suficiente para os profissionais de saúde, pois essas reflexões de si ficcionalizam uma “verdade” do sexo nos olhos dos especialistas e caso apresente qualquer ruído em relação à norma, ao tipo ideal esperado, a legitimidade da certeza diagnóstica e de intervenção não se produz. As psicólogas que a atenderam tinham como objetivo a produção de um laudo médico atestando a veracidade da produção de verdade de Fabiane, isto é, com este laudo as psicólogas autenticariam a história e a possibilidade de intervenção cirúrgica. Sem o aval da psicologia, Fabiane não faria o procedimento. Neste caso se estabelece uma inversão das especialidades com responsabilidade de gerenciamento e veridicção da intersexualidade, mas não só a psicologia tinha o poder de verificar a conformidade sexual da paciente. Fabiane estava em uma consulta, enquanto observava as rondas residenciais na sala de estudos, quando ENDOPED2 comenta que ela era “muito masculina”. Fabiane usava as mesmas roupas que eu sempre usava para ir ao hospital: jeans, camiseta e tênis all star – e também Carla, por sinal, quando participei de sua primeira anamnese no ambulatório. Mas, desta vez, a aparência básica só evidenciava o ruído dos lugares desviantes de sua história, presumida como uma falta de cuidado não feminina. Quando ENDOPED1, na ocasião em que retorna da consulta, comenta achar Fabiane feminina, ENDOPED2 rebate: “é porque ele não bate muito bem”. Gostar de chinelos masculinos, bermudões, não ser vaidosa e ter orientação sexual homossexual eram indícios, para aqueles médicos, de que algo estava errado com o seu diagnóstico.

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No momento em que Fabiane confessa, em meio às explicações hegemônicas de ENDOPED1, não descartar a possibilidade de namorar homens também, uma faísca de esperança e desespero ilumina o ambulatório de endocrinologia pediátrica. Esperança porquê de tal forma se assegura a coerência diagnóstica, com a manutenção da funcionalidade reprodutiva e sexual heteronormativas – exemplificada na cena de ENDOPED2 afirmando ser “muito importante abrir essa possibilidade” futura de sexo heterossexual. Neste registro, o procedimento cirúrgico seria aceito prontamente, como foi com Carla. Contudo, também há desespero, porque se existe um conflito com a identidade de gênero de Fabiane, como as psicólogas suspeitam, ela nunca conseguirá ser um homem funcional – pois teve seus testículos retirados e cirurgias feminizantes realizadas. A saída pensada pela equipe médica foi, por enquanto, não autorizar o procedimento cirúrgico. Fabiane teria que ir, a contragosto, de volta para Rondônia e lá se submeter a um acompanhamento psiquiátrico para validar seu pertencimento na identidade de gênero feminina. De modo distinto às decisões médicas no caso de Ana Luisa/Wagner Luís e Carla, onde o primeiro, uma criança recém nascida, não tinha autonomia de decisão/negociação sobre seus encaminhamentos biomédicos, e a segunda, convergia seus relatos de vida com os roteiros ficcionais de gênero e de sofrimento legitimados pelos profissionais de saúde, Fabiane era um ponto fora da curva. Sua autodeterminação não tinha legitimidade, pois sua trajetória de vida produzia mais fissuras do que era esperado e desejável para um caso de intersexualidade. Tornando-se praticamente uma paciente do processo transexualizador, ela só poderia ganhar o direito de modificar seu corpo com o laudo médico depois de dois anos de atendimento – e durante esse tempo de prolongamento do sofrimento, pois não há consentimento de sua escolha inicial, não podemos prever como os conflitos de certeza e incerteza irão se destrinchar. Depois de tudo, fica patente que o direito sexual de integridade corporal e de uso do próprio corpo – segundo garantias de autonomia e de autodeterminação dentro de concepções dos Direitos Humanos – são negadas quando aspectos particulares do sexo/gênero e da sexualidade desviam da norma. Quais os limites do consentimento nesses casos? Aparentemente não tão distantes. Na clínica, a experiência subjetiva do profissional, mais até do que a expertise clínica, que contará como modulador de diagnóstico e intervenção dos casos. Logo, se a discursividade biomédica percebe um determinado paciente dentro de marcas produtoras de vulnerabilidade social ou se a trajetória de vida de outro paciente reverbere ruídos que fragmentem a coerência diagnóstica, o consentimento e, consequentemente, a intervenção

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clínica serão assumidas pela equipe de profissionais de saúde para garantir a restituição de saúde/normalidade de tal pessoa. Portanto, para além das molecularidades e das classificações cada vez mais descritivas do saber científico, é na marca “sexo-gênero-desejo” anunciada por Butler (2008) que regulações, incitações e silenciamentos de corpos acontecem. Essas marcas atravessam concepções normalizadas, então culturalmente instituídas, das realidades do que podem ser homens e mulheres. Nessas interpretações da biomedicina, pedir uma vagina mais profunda não se resume a uma escolha íntima de alguém, mas se relaciona a processos em que a própria intimidade é governada e (des)construída. A tentativa biomédica de veridicção do corpo humano sexuado estão nessas narrativas, nas quais pessoas estranhas aos registros necessários e possíveis terminam com duas opções essencialistas: aceitarem os encaminhamentos biomédicos normalizantes ou continuarem com os suplícios da “incoerência” intersexual. Contudo, como notamos pelos relatos, a experiência da intersexualidade não se resume às duas opções, assim como tal processo de gerenciamento e veridicção não está isento de fugas, manipulações ou reorganizações por parte das pessoas intersexuais. Em consequência do que foi descrito anteriormente e dessas três histórias, podemos dizer que produzir uma verdade sobre o sexo segundo repetições de ficções reguladoras é uma estratégica antiga do biopoder. Como vimos nas memórias de Herculine Barbin, a estabilização de suas ambiguidades passava pela incorporação de modos de ser generificados segundo sua época, e a aparência e a confissão eram dois artifícios fundamentais desta veridicção do sexo socialmente. Atualizadas contemporaneamente, como bem discutiu Bento (2006) acerca das manipulações ficcionais do corpo/experiência transexual, a estética é uma variável significativa de negociação com a equipe médica, pois atua como um indicador de níveis de masculinidade e de feminilidade (Ibid.: 163). Mais além, essas apresentações do gênero precisam ser reiteradas com roteiros coerentes de histórias de vida. A consulta psicológica/psiquiátrica se recicla como uma nova forma de confissão, onde as jovens intersexuais têm que saber jogar, ou seja, necessitam expor suas histórias apontando a “longevidade dos conflitos” de suas identidades de gênero com suas anatomias – e as roupas, os jeitos, as relações, as memórias e as falas, todas contam para essa produção biomédica de certezas e coerências sobre o sexo.

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Algumas notas sobre desconfortos e normalizações em duas experiências 47, XXY

Ao longo do capítulo vimos como os protocolos de intersexualidade justificam, em nome da manutenção das funcionalidades reprodutivas e sexuais, as intervenções clínicas e cirúrgicas precocemente em crianças intersexuais. Também notamos que tais justificativas estão, em grande parte dos casos atendidos, claramente distantes das normas da “urgência biológica”, mas recaem no colo da “emergência social”. Como desenvolvi anteriormente, assumir problemas sociais como uma responsabilidade biomédica foi, e continua sendo, uma das estratégias do saber-poder científico. Não se restringiram apenas aos casos com risco de vida, mas todo e qualquer caso em que a expectativa hormonal, anatômica e psicossocial estivesse em conflito com os padrões vigentes. De modo que repetir, através de um modelo biomédico “consensual”, o drama da “emergência social”, sinalizando que condições intersexuais são necessárias de cuidado e atenção hospitalar precocemente, reflete de várias formas nas concepções de saúde e de doença internalizadas pela população. Visto que as estratégias biomédicas se inserem em regimes de verdade produzidos ideológica e institucionalmente no meio cultural (com conflitos e assimetrias na relação macro e suas incorporações individuais), esclareceu-se também que os profissionais de saúde clinicam na medida em que validam memórias, falas, vestimentas, expressões de gênero, entre outros aspectos, como registros verdadeiros ou falsos para a produção da coerência diagnóstica. Essas interpretações da ordem social pautam-se em um modelo específico de racionalidade, onde a “doença” é o locus analítico dentro das representações médico-científicas e a “saúde” seu mobilizador, seu fim comum, mas dificilmente enunciado (Camargo Jr, Ibid.). A clínica é um processo complexo onde se relaciona saberes biomédicos supostamente objetivados, dentro de um escopo maior de saber acadêmico e científico, e as práticas, expertises e experiências dos profissionais de saúde em seus cotidianos de atendimentos. Nos termos de Luiz Fernando Dias Duarte, O desenvolvimento do “método clínico” é o resultado de um engenhoso compromisso entre a segmentação dos domínios científicos e o olhar interpretativo sobre o corpo, seus sinais e sintomas (o que Foucault chamou de “conhecimento singular do indivíduo doente”) (Foucault, 1963). A segmentação dos domínios de saber é um dos estímulos originais ao que se veio a chamar de “especialização” médica, reproduzindo no nível das técnicas e da organização da prática médica o mencionado efeito de dissolução da totalidade da experiência da saúde/doença. Parte das críticas crescentes a esse efeito se fundamenta justamente na linguagem de defesa da “pessoa” ou da

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“personalização” – ou seja, de uma atenção à totalidade ou singularidade do doente e de sua vivência. (Ibid., 2003: 178)

As dinâmicas dos ambulatórios, as anamneses, os exames físicos, a interpretação das imagens, a produção documental nos prontuários, a construção dos diagnósticos, as intervenções clínicas e cirúrgicas, os debates em seminários, jornadas e congressos, a escrita de artigos científicos, a consolidação de certas formas de entender e conduzir determinadas situações e pessoas – todos esses passos biomédicos se entrelaçam com a totalidade social. “Da mesma forma que seus pacientes, um médico vê o mundo através do filtro de suas representações; só que o imaginário médico está sempre protegido pelo escudo da racionalidade cientifica” (Camargo Jr, Ibid.: 218). Mas até quando parece que a experiência da saúde/doença irá se dissolver ou fragmentar, nesses casos de intersexualidade, as narrativas provam o oposto. As experiências intersexuais não se encerram com as coerências diagnósticas, com as intervenções clínicas ou com as “possíveis” normalizações. Neste sentido, entendendo a discursividade médica como uma malha cultural cujos saberes e práticas atravessam e são atravessados pelos discursos sociais. Concepções sobre o corpo, a normalidade e os modelos de cuidado vigentes serão reproduzidos socialmente nas relações entre a biomedicina e a população. Os sinais individuais das doenças, os quadros comuns de mal estar, as eficácias terapêuticas, a apregoada “qualidade de vida”, esses aspectos e outros serão compartilhados pelos saberes médicos com o contexto social mais geral. Mesmo que as etiologias, terminologias e condições não sejam entendidas em suas minúcias, como retratadas nos novos modelos classificatórios e de manejo, essas pessoas, especialmente pais e familiares, irão encaminhar seus filhos e filhas para os espaços hospitalares – encarregando e legitimando a ciência médica do controle e da resolução dos desconfortos de causas biossociais. Logo, a concepção de “trajetórias de normatização” proposta por Machado (2008a) atravessa a formulação desta seção e ajuda a esclarecer as duas dinâmicas descritas a seguir. Em sua análise, propõe que os processos biomédicos relacionados ao diagnóstico e à intervenção clínica cruzam-se com demandas políticas, éticas/morais e sociais, que impactam e moldam as vidas de crianças e jovens intersexuais, como também de suas famílias. Tais processos existem “na tentativa de normatizar corpos que não podem ser normatizáveis dentro das normas de sexo e gênero hegemônicas” (Ibid.: 225). O esforço biomédico em produzir coerências, certezas e “correções”, como já vimos nos casos anteriores, pauta-se mais em uma tentativa de adequação desses sujeitos às percepções culturais de uma humanidade sexuada e binária, do que – em si mesmo – com engajamentos éticos e científicos supostamente neutros

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e naturais. Neste registro, muitas das expectativas também são incorporadas às concepções familiares e sociais do que se espera de meninos e meninas. Outras vezes, tais expectativas se perdem frente às distintas possibilidades de veridicção do sexo/gênero e da sexualidade. A “verdade” do sexo de alguém estará em tantos outros caminhos, e não só dentro das trajetórias biomédicas normativas tidas como “possíveis” e “visíveis”. Nesta seção, portanto, procuro comparar o gerenciamento sociomédico de dois casos de crianças 47, XXY atendidas no ambulatório de endocrinologia pediátrica do Hospital Zona Norte 2 (HZN2). De um lado, pretendo narrar como angústias familiares e sociais geram demandas por normalizações biomédicas em corpos de crianças intersexuais. Por outro lado, contrastando os dois casos, aponto como esses mesmos desconfortos aparecem nos espaços hospitalares através dos profissionais de saúde, que em vista de uma recusa familiar na continuidade do atendimento de uma criança intersexual, justificam-se sobre os limites de seus atendimentos e das normalizações. Gustavo, de 7 anos de idade, chegou no Hospital Zona Norte 2 (HZN2) com seus pais. A família mora em uma cidadezinha no interior do Espírito Santo, e desde 2012 se deslocam até o Rio de Janeiro para o acompanhamento do filho. Quando foram pela primeira vez ao HZN2, Gustavo já havia feito duas cirurgias urológicas em outro hospital. A primeira, em 2010 (quando tinha 3 anos), para resolver uma fimose, condição em que o prepúcio dificulta ou impossibilita a exposição total da glande do pênis. A segunda, em 2012 (quando tinha 5 anos), para tratar uma hipospádia, condição congênita caracterizada por um posicionamento atípico do meato urinário – por exemplo, o orifício por onde sai a urina pode se localizar na parte de baixo do pênis ou mais raramente na bolsa escrotal. Em vista disso, Gustavo chega ao HZN2 para continuar seu atendimento médico. Inicialmente na pediatria, a mãe de Gustavo relata na anamnese que seu filho teria uma “genitália pequena”, além de um problema de obesidade. De modo que a interna de medicina responsável pela consulta encaminhou o paciente para o ambulatório de endocrinologia pediátrica para mais investigações. No bilhete de encaminhamento, ela escreve “QP: ‘genitália pequena’”, indicando que a questão principal no atendimento era o relato da mãe em relação à genitália atípica do filho, associando desconfortos referentes ao hipogonadismo89 e obesidade da criança.

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É uma condição em que as glândulas sexuais produzem pouco ou nenhum hormônio.

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Assim que começa o atendimento, de acordo com os prontuários e os relatos médicos, Gustavo realiza um exame de cariótipo para confirmar90 a definição do sexo cromossômico, o qual revela ser 47, XXY. Esses casos são conhecidos etiologicamente como Síndrome de Klinefelter e usualmente não são associados com genitália ambígua, mas com alguma disfunção na produção hormonal – e, na maioria dos casos, acompanhada de esterilidade. A condição é uma das mais comuns referentes às combinações dos cromossomos sexuais, chegando a ocorrer “em cerca de um entre quinhentos a seiscentos recém nascidos do sexo masculino e em diferentes etnias” (Marques-de-Faria, 2002: 291)91. Na consulta com a endocrinologia pediátrica, consta em seu prontuário os resultados da anamnese e exame físico realizados, em que notificam uma genitália de 3 centímetros com desvio padrão de - 2,5 centímetros para sua faixa etária. Dos resultados de imagem, a bolsa escrotal encontrava-se contraída, com os testículos localizados no canal inguinal (imediatamente acima da bolsa testicular). Neste caso, não havia muito debate na sala de estudos quanto ao encaminhamento de Gustavo. O protocolo clínico padrão para casos de 47, XXY também se pauta no guideline: repõe-se testosterona. A fertilidade não se recupera, mas “corrige-se” a deficiência androgênica. Portanto, foi decidido que iriam aplicar, assim como no caso de Ana Luisa/Wagner Luís, uma dose de testosterona por mês, em um período de três meses, para promover estímulo fálico, virilização e desenvolvimento de caracteres secundários tipicamente masculinos. Essa terapia hormonal ocorre geralmente durante o início da puberdade masculina, por volta dos 11 ou 12 anos, mas como a mãe estava desconfortável com a genitália pequena do filho e o tratamento com hormônio masculino poderia a ajudar na distribuição de gordura e uma possível redução da obesidade de Gustavo, os médicos anteciparam a aplicação. Por último, encaminharam a 90

Estou inferindo, pois não sei de muitos detalhes dos atendimentos anteriores ao HZN2, mas a mãe indicar “hipogonadismo” na primeira consulta denuncia, de certo modo, que já sabia do sexo cromossômico do filho. Casos de 47, XXY são algumas das causas possíveis para o hipogonadismo ocorrer, então para a família saber desta condição, provavelmente teriam investigado anteriormente o sexo cromossômico de Gustavo. 91

O livro médico que retiro tal epidemiologia é uma publicação brasileira tida como referência para o tratamento clínico de casos de intersexualidade. A capa de sua segunda edição é uma foto dos pezinhos de um recém-nascido com um sapatinho do lado direito na cor azul e do lado esquerdo na cor rosa. No mesmo tópico desse trecho, colocam um quadro (chamado “frequência da SK em diferentes amostras populacionais”) comparando a variação congênita da Síndrome de Klinefelter (SK) com outros “distúrbios” de cunhos morais e psicológicos, como “homens com déficit intelectual – 1:100”, “homens em instituições psiquiátricas – 1:169” e “homens estéreis – 1:77 a 1:24”. Posteriormente, em um tópico somente para essa comparação, descrevem que indivíduos com Klinefelter estariam “cerca de cinco vezes mais” em “instituições penais ou para problemas mentais”, pois teriam um maior “déficit de aprendizado e comportamento impulsivo, o que justificaria um aumento nas prisões e na institucionalização desses indivíduos” (Ibid.: 293-294).

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criança para acompanhamento na Nutrição – prevendo retorno ao ambulatório de endocrinologia pediátrica somente em um ano, ou seja, nos últimos meses de 2015. O gerenciamento médico deste caso, um caso que pode ser considerado típico dentre os tipos de “DDS” atendidos, não levanta maiores questionamentos sobre as normalizações, de cunho sociocultural, que os profissionais de saúde incorporam às suas práticas diárias de conduta. As narrativas anteriores já esmiuçaram bastante dos atravessamentos morais, políticos e sociais do saber científico ao incitar, silenciar e regular uma “verdade” particular sobre o sexo/gênero e a sexualidade. Como também esclareceu de que maneira esse saber mais descritivo e codificado sobre os corpos se atualiza nas práticas médicas cotidianas em espaços hospitalares, evidenciando que a expertise é experiência e que esta, no fim, encontra-se dentro de um modelo maior de racionalidade e sensibilidade onde pessoas com anatomias e condições não hegemônicas necessitam de adequação aos modos de vida vigentes. Assim, o que mais difere e mobiliza nesta história seria a família, agente social e não biomédico, como representante da “trajetória de normatização”. Isto é, de que os pedidos para terapêuticas medicamentosas e cirúrgicas para “normalização” anatômica e genital se iniciaram a partir de desconfortos e anseios familiares. A necessidade de “coerência” do sexo/gênero a partir de modelos hegemônicos também pode começar no âmbito familiar. Neste caso, a interpretação do ciclo é bastante clara, as medidas biomédicas de tamanhos específicos de genitálias para meninos e meninas se alimenta de concepções tipicamente generificadas, do mesmo modo que as noções sociais mais gerais sobre saúde/bem estar e corpos saudáveis, desejáveis e humanos também atravessam as propostas repetidas pelo saber médico. Entretanto, é fundamental pontuar como a equipe de profissionais de saúde se preocupou mais, neste caso típico de Klinefelter, em tratar com mais atenção a obesidade da criança do que inseri-la imediatamente nos trâmites de “correção” corporal via uma hormonoterapia desgastante – pois assim que iniciada, terá que ser mantida ao longo da vida da pessoa. O peso da intervenção recai, aqui, no colo da família. De maneira que outro dado relevante descrito nos prontuários foi da mãe de Gustavo relatando que sua gravidez não foi aceita prontamente pela família. Com essa informação, podemos inferir a existência de um provável desconforto no ambiente familiar por outros motivos que não a condição sexual da criança. Talvez as ansiedades que tais vivências mobilizam aos olhos biomédicos e sociais tenham se multiplicado com “não conformações” familiares anteriores. E dificilmente tal angústia irá embora, pois mesmo com as dinâmicas das intervenções sociomédicas em intersexuais passando pelas justificativas de ajuste de coerências

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e prevenção de fecundidade, homens 47, XXY serão inférteis. Essa inserção biomédica é, portanto, de base estritamente sociocultural. Sua fimose e hipospádia não continham risco de vida, assim como a expectativa de normalização sexual da genitália de Gustavo refletia mais desconfortos maternos e familiares do que um distúrbio em si. Não sabemos se esses desconfortos e tentativas de medicalizações aprofundaram as próprias ansiedades (e os problemas alimentares associados à obesidade) de Gustavo, só podemos supor pelos relatos narrados e descritos. Mas como vimos com Carla e Fabiane, essas veridicções prejudicaram suas vidas, em várias medidas. Até quando decidiram conscientemente passarem pelo crivo biomédico, como forma de se conformarem para terem vidas possíveis, suas trajetórias de vida foram avaliadas e questionadas. Sendo assim, quando um paciente escapa dessas “trajetórias de normatização”, como o caso de outra criança 47, XXY atendida no HZN2, explicações são mobilizadas para tentar recuperar esse atendimento. No momento em que as estratégias de incorporação falham, justificam as faltas de medicalizações. Em instantes assim o discurso biomédico assume conscientemente o corpo como uma construção além do biológico, e vislumbra que o sexo/gênero e a sexualidade de alguém podem ser multicausais. Por conseguinte, a segunda narrativa desta seção se desvela no meio do trabalho de campo no HZN2, quando ENDOPED1 me passa dados de alguns casos de “DDS” que atendiam e eu ainda não acompanhava. Conta, especialmente, de um caso difícil que tentavam atender. Era Stephanie, uma criança de uns 2 anos de idade. Ela tinha o sexo cromossômico 47, XXY, mas também possuía uma genitália ambígua, algo não usual para a condição92. A singularidade clínica da Síndrome de Klinefelter já era motivo de “entusiasmos” na sala de estudos, tida como um caso excepcional. Associada à isso, durante a primeira anamnese que fez, existia o fato de que Larissa, a mãe, também teve outro filho (de pais diferentes) com a mesma composição cromossômica. A criança, que já teria uns 10 anos de idade, foi criada como menino pela avó paterna, com quem a mãe de Stephanie não tinha contato atualmente – e relata, como descrevem nos prontuários, que por esse motivo percebia seu filho mais como um irmão. A composição familiar aumentava, já que durante as consultas descritas a mãe de Stephanie dizia morar com outro parceiro na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. Pelos 92

A variação cromossômica 47, XXY (ou com mais cromatinas sexuais, tipo 48, XXXY e assim por diante) desenvolve usualmente fenótipos masculinos, com a presença das gônadas testiculares, porém sem o pleno desenvolvimento de suas funções. Os indivíduos são estéreis e algumas de suas características secundárias masculinas não se acentuam – por exemplo, apresentam poucos pelos em geral, testículos reduzidos, ginecomastia (crescimento das mamas), entre outros aspectos.

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relatos dos médicos, ele sempre acompanhava Larissa e a enteada nas consultas. Stephanie chega, então, ao ambulatório de endocrinologia pediátrica com 9 meses de idade. No prontuário, há relatos de Larissa de que a filha foi internada com 15 dias de vida por causa de uma bronquiolite – termo clínico para a bronquite em bebês –, quando os médicos identificaram uma “alteração” na genitália. A partir de então, fazem uma bateria de exames, dentre eles o exame citogenético para definição do sexo cromossômico: 47, XXY. No começo de 2013, as duas são encaminhadas para a primeira consulta na endocrinologia pediátrica. À primeira vista, os registros médicos nos prontuários são confusos. Nas inscrições iniciais relatam imagens de um útero (no tamanho de 29 x 15 mm) feitos por ultrassom pélvico, mas também notam um testículo direito na região inguinal. Cinco meses depois, em outra consulta, a residente responsável relata não palpar gônadas masculinas e escreve “aspecto feminino” ao se referir à genitália, apesar de descrever também que o falus de Stephanie estaria acima da média, com 1,5 cm ou 15 mm de comprimento – a medida definida pelo Consenso de Chicago para recém nascidas no sexo feminino, nos Estados Unidos, seria de 4,0 mm com desvio padrão de 1,24 (Lee et al., 2006: e490). Neste retorno, a interpretação do outro ultrassom pedido era de que a criança não tinha útero, mas gônadas de “aspecto testicular”. Vinculado ao quadro de genitália ambígua, os endocrinologistas pediátricos investigavam também, junto com geneticistas do HZN2, possíveis “dismorfias faciais” não conectadas ao “DDS”, como uma condição chamada blefarofimose – em que uma alteração congênita tida como rara estreita a anatomia das pálpebras. Na época das primeiras consultas de Stephanie, é anotado nos prontuários que Larissa estava grávida outra vez. Ao longo dos atendimentos, também há um acompanhamento desse novo bebê. Nasceu uma menina que parecia, nas descrições dos prontuários, ter alguma variação nas estruturas faciais, do mesmo modo que a irmã. Com Stephanie já com 1 ano e meio de idade, os médicos documentavam em todas as entradas de atendimentos do caso a necessidade de analisar clinicamente os prontuários antigos do irmão mais velho com o mesmo sexo cromossômico (seus dados estavam arquivados no HZS, onde ele foi atendido durante a infância) e da irmã mais nova com a mesma variação facial. Queriam fazer um grande heredograma93 para determinar as causas das diferenças congênitas da família.

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É um tipo de gráfico muito usado pela Genética para representar a herança genética dos indivíduos em questão e identificar certas características herdadas pelos cruzamentos familiares.

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No começo de 2014 a irmã mais nova faleceu, com menos de 1 ano de idade, sofrendo de um quadro pulmonar. Quando comecei o trabalho de campo no HZN2 a família de Stephanie já havia abandonado o tratamento e acompanhamento hospitalar. Talvez a morte da irmã tenha sido um fator de distanciamento – a mãe morava com o padrasto de Stephanie, pai da irmã mais nova que faleceu, o pai biológico de Stephanie não é descrito nos prontuários – talvez por morar tão longe do hospital e a locomoção ser custosa e difícil – esse caso foi o único que acompanhei onde a renda familiar estava anotada no prontuário (constava na categoria “salário da família”: 1.200 reais) – ou talvez pelo cansaço desses trâmites intermináveis de gerenciamento e veridicção da intersexualidade nos ambientes hospitalares. A mãe (pelas informações dos prontuários) e os profissionais de saúde comentavam que Stephanie era uma menina muito agitada – levantando dúvidas na mesma linha de raciocínio presente no caso de Fabiane, em que questionamentos socioculturais são feitos acerca das coerências do sexo/gênero designado. Neste caso, Stephanie foi registrada de acordo com o sexo de criação, não houve uma designação clínica baseada em um diagnóstico – ela era a exceção da Síndrome de Klinefelter, por ter uma genitália ambígua e outras condições associadas ao “DDS”. Para a formulação de um diagnóstico “coerente”, a criança teria que continuar os processos de verificação do sexo em níveis biomédicos, mas a família abandonou os procedimentos antes de qualquer produção de certeza. Ao longo do meu campo, sempre conversava com a psicóloga sobre o caso para tentar descobrir mais informações além dos dados nos prontuários. Ela tentou contatar algumas vezes Larissa, a mãe de Stephanie. Em uma das vezes, a sogra (mãe do parceiro dela e padrasto da criança) que morava na mesma casa, disse que Larissa tinha ido embora. Não tivemos muitas explicações dos motivos desse afastamento do lar. Em outra ligação, a psicóloga conseguiu falar com Larissa, já tendo retornado para a casa do parceiro, e marcou uma consulta para a semana seguinte. Eram os momentos finais do meu campo, em outubro de 2014. A família retorna com muitas histórias de como essas incertezas sobre o sexo/gênero são vividas em ambientes não hospitalares. Uma das situações narradas relaciona-se às socializações como outro marcador de diferença, isto é, como moduladores/reguladores de sexo/gênero. Larissa conta viverem em um quintal compartilhado com várias casas e que, neste ambiente, sua filha sofria constantemente

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bullying94 dos outros vizinhos, especialmente quando tentava brincar pelo quintal. Os vizinhos instigam a menina e a família chamando Stephanie de menino, que teria um pênis, e ofensas afins. Talvez por ser agitada, como a mãe e os profissionais de saúde constataram antes, ou pela própria ambiguidade genital da criança. De maneira que Stephanie também começou a internalizar alguns desses comportamentos “tomboy”95, pois queria sempre tomar banho junto do padrasto e dizia para os outros – de forma provocativa – que teria um “lulu”. A mãe ficava aflita tentando contar para ela que na verdade ela tinha uma “pepeca”, mas não surtia muito efeito. Larissa se angustiava mais frente às hostilidades dos vizinhos do que Stephanie. Enquanto a primeira sofria pelo fato da filha ter comportamentos mais masculinos e uma anatomia confusa, aprofundada pelas implicâncias de estranhos, a segunda estava mais curiosa com o próprio corpo e as possibilidades de usos dessa mesma anatomia ambígua – pelo relato não parecia que Stephanie internalizava negativamente essas hostilidades, possivelmente pela idade, com quase 3 anos, ainda não parecia compreender de forma plena as violências que as expectativas sociais também carregam em relação aos modos de viver um sexo/gênero designado. Nesta última consulta, em meio às histórias e justificativas familiares, os médicos decidiram encaminhar Stephanie para a urologia pediátrica avaliar a genitália da criança. Ela já estava registrada, mas era preciso “corrigir” esteticamente a genitália ambígua, de modo que, na interpretação biomédica, se evitem tais bullyings, desconfortos e sofrimentos sociais desnecessários. Mas a família desapareceu mais uma vez. Depois de faltar a nova consulta agendada, Larissa retorna um dia ao ambulatório para avisar que não poderia continuar com o tratamento da filha. Sua casa na Baixada Fluminense havia desabado e sido interditada pela Defesa Civil, por esse motivo estava com muitas dificuldades financeiras para levar Stephanie quase semanalmente ao hospital. Confrontados com essas explicações, os profissionais de saúde tiveram que aceitar o distanciamento de Stephanie e sua família. Assim, por mais que a dinâmica familiar fosse tão

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Expressão inglesa que define ações intencionais e repetitivas de violência física ou psicológica praticadas por indivíduos, dentro de uma relação de poder desigual, causando dor e angústia a alguém, percebido como incapaz de se defender. 95

Expressão inglesa usada para classificar meninas pré púberes que se comportam de maneira tipicamente masculinas, por exemplo, gostar de jogar bola, usar bermuda, tentar urinar em pé, dentre outras características que seriam vistas como vontades/situações/relações de meninos.

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confusa e conflituosa96, segundo uma suposta vulnerabilidade social, tal qual a mobilizada no caso de Ana Luisa/Wagner Luís, os especialistas não fizeram menção de contatar o Serviço Social ou qualquer outro órgão responsável para salvaguardar um atendimento biomédico necessário e um cuidado familiar idealmente mais capaz – em níveis financeiros, salutares, humanos, enfim, dos mesmos aspectos que surgiram em negociação anteriormente. Neste caso, não foi incitado (pelo menos não até o fim do meu campo) uma modelação dessa criança e de sua família como vulnerável, ou dentro de um roteiro de sofrimento aceitável ou questionável, Stephanie e seus familiares pareciam ser aceitos simplesmente como exceções da norma – em suas reproduções, em suas composições cromossômicas, em suas anatomias, em suas relações e vivências. Do que não se espera e não se pode controlar. Conforme aponta Machado em sua tese: Frente à exigência de restituir uma determinada ordem social no que diz respeito ao sexo, os médicos tomam as decisões baseados no esforço de “tornar invisível” tudo o que possa parecer “ambíguo” em relação aos corpos intersex e, também, no que se refere às condutas ligadas a eles. (...) No cruzamento dessas diferentes temporalidades, percebe-se um esforço constante em adequar os corpos intersex a determinadas expectativas sociais – relacionadas à fertilidade, à potencialidade para o sexo penetrativo e heterossexual, ao tamanho do pênis e do clitóris, entre outros aspectos. Desse modo, os dispositivos de normalização e regulação colocados em ação pela medicina (olhar e medir), ao mesmo tempo em que buscam “encontrar um sexo” (feminino ou masculino) no corpo das crianças intersex, pressupõem determinados marcadores de “bem-estar”, de “desejo” e de “saúde” – física e/ou psicossocial – em nome dos quais são justificadas as intervenções médicas, como a cirurgia. (Ibid.: 224-226)

Portanto, quando esses determinados marcadores implícitos se ausentam (por variados motivos de fundos socioculturais, como vimos alguns), o processo de veridicção da intersexualidade atravessa a esfera biomédica para ser compreendido em outras possibilidades produtoras de uma “verdade de si”. Resta a equipe de profissionais do HZN2 aceitar a noção submersa em cada prática biomédica em intersexuais, da “inarticulabilidade original” que tais corpos transbordam (Cabral, 2006). Até mesmo quando se tenta dissolver ou fragmentar a

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Larissa contou outra situação delicada, quando estava no mercado com a filha, e Stephanie fazia muita bagunça, sem ouvir os pedidos da mãe para se acalmar, até que derruba várias latas das prateleiras. Larissa conta que bateu na filha, mas parece bater tanto, pois foi abordada por alguém (e no relato não indicam se foi alguém conhecida) para que parasse com a “correção” violenta na criança. O evento culmina em uma ameaça da pessoa, dizendo que iria denunciar Larissa para o Conselho Tutelar. Ela não acreditou na história, mas conta que um tempo depois uma assistente social tocou em sua casa para averiguar a denúncia. O resultado da conversa foi uma assertiva dura de Larissa, alegando que se a assistente social soubesse cuidar melhor da criança, que levasse Stephanie, ela não iria se opor. Depois dessa afirmação categórica, a mãe narra que a profissional saiu da residência e findaram-se os questionamentos externos com a educação e o cuidado de sua filha.

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experiência intersexual em meio a uma vaga experiência de saúde/doença – com as classificações descritivas supostamente mais neutras, com o consentimento do tratamento sem a efetiva comunicação e esclarecimento, com a persistência da “emergência biológica e social” se traduzindo em intervenções cirúrgicas precoces, com os “roteiros de sofrimento” e as “carreiras morais/sexuais” sendo testadas continuamente a fim de garantir alguma coerência para os procedimentos –, até quando todos esses aspectos se proliferam, não se encerra a incerteza original. Logo, como outro modo qualquer de existência possível, a experiência da intersexualidade se pauta definitivamente por muitos caminhos, de modo que não deveria ser necessária a inserção dessas pessoas em dinâmicas de emergências biomédicas e sociais produtoras de humanidades e subjetividades sexuadas específicas.

***

Vimos nessas histórias que os dispositivos médico-científicos produzem subjetividades a partir de acionamentos discursivos e intervenções específicas, fazendo com que a experiência do corpo sexuado intersexual desvele que nem todas correspondem aos esquemas conceituais estáveis dados coletivamente que tornam possíveis conhecer e relacionar-se com o mundo. Mas mesmo com a reinvenção desses esquemas a partir de outras fugas e repetições generificadas, a conformidade com os modelos cognoscíveis de sexo-gênero ainda é uma marca linguística e identitária geradora de sujeitos. O ativista Mauro Cabral, ao relatar o que considera experiência intersex, alerta para a necessidade de não homogeneizar a subjetividade intersex, já que cada caso é único e cada sujeito reivindica o que considera melhor para a sua existência. Algumas pessoas podem se opor às cirurgias de normalização, outras, entretanto, podem reivindicar essas mesmas cirurgias para terem vidas habitáveis. No entanto, se as subjetividades são diversificadas, parte da experiência intersex se desenvolve em comum, já que se trata de pessoas que passaram por procedimentos médicos similares. (Pino, 2007: 168)

Neste sentido, tentei identificar redes de saberes, práticas e posições médicas ao gerenciarem casos de intersexualidade, que, por sua vez, também não seriam estritamente representativas de um discurso científico e biomédico supostamente homogêneo. Há assimetrias, disputas e falta de consensos, do mesmo modo que Nádia Perez Pino aponta as distinções entre as subjetividades intersexuais como sujeitos – com suas existências autodeterminadas a favor ou não da normalização cirúrgica – e suas experiências médicas afins.

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Tais procedimentos são referenciados e manuseados a partir de guidelines internacionais, na qual a intersexualidade surge como mais um corpo de saber “necessário” de cuidados, tratamentos, intervenções, justificações e normalizações. Em vista disso, por mais que exista uma necessidade de assistência médica integral, inclusiva e “centrada no paciente” – características difíceis de se manter nas dinâmicas de hospitais-escolas – para os casos de intersexualidade, acredito que o ganho principal deste trabalho foi a tentativa de esclarecer as técnicas e abordagens atualizadas do saber-poder biomédico quando esbarra essas situações de limiaridades sociais. Onde a falta de consentimento esclarecido, a intervenção cirúrgica precoce e a repetição de integridades corporais específicas são algumas das variáveis que desvelam como a hegemonia e privilégio do discurso médico ainda marca excessos e faltas na produção de subjetividades e verdades. O processo de veridicção da intersexualidade atravessa os guidelines e protocolos de manejo, que influenciam sim os processos decisórios dos profissionais de saúde em casos de “genitália ambígua”, normalizando e humanizando esses corpos para que sejam entendidos, reconhecidos e socializados. Mas essas demandas também surgem de familiares, de conhecidos, de estranhos, da norma e de outros profissionais de saúde – não sempre os endocrinologistas ou cirurgiões pediátricos são os agentes da intervenção precoce, mesmo que essas duas especialidades apareçam regularmente como os departamentos administradores desses casos. Neste registro, percebemos um entrelaçamento nas histórias narradas entre preocupações tipicamente sociais, ou melhor, posicionadas como inquietações complementares às biomédicas, como os códigos de roupas, cor97 e gramáticas de gênero, a vulnerabilidade social, a identidade de gênero ou a relação sexual, em associação com outras angústias propriamente biomédicas, relativas às dinâmicas particulares da falta de certeza e coerência científicas no desenvolvimento e determinação sexual. Vimos, portanto, que essas duas linhas de raciocínio e gerenciamento se cruzam e se retroalimentam continuamente. O fio condutor mobilizador dos dois caminhos centra-se na lógica do “sofrimento/bem estar”. Enquanto a expertise médica aciona o discurso do bem estar para legitimar intervenções clínicas e cirúrgicas precocemente, mascara a experiência de sofrimento dessas crianças e jovens intersexuais, como também de seus familiares. A possibilidade de sofrimento nunca é

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Azul para “meninos” e rosa para “meninas”.

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apagada, pois não há como fugir da incerteza biológica e social que essas condições carregam em nossas realidades. No futuro, pessoas intersexuais poderão assumir uma orientação sexual nãoheterossexual ou entrar em processo de transgeneridade contra o diagnóstico inicial. Elas também irão carregar as marcas dessas intervenções ao longo do tempo, tendo que manter um acompanhamento clínico contínuo, seja pelas hormonoterapia ou pelos reparos cirúrgicos. Não é garantido que os resultados funcionais e cosméticos serão totalmente positivos, pois não há avaliações longitudinais suficientes, e mesmo com a evolução das técnicas ainda existe muita controvérsia em relação ao desempenho sexual dessas pessoas. Também não há como saber dos impactos sociais a longo prazo, mas suponho que estas famílias tenham que reiterar cotidianamente – como nas observações feitas pelo ENDOPED1 – as características e qualidades do sexo designado na criança intersexual. Essas repetições provocam ruídos e fissuras nas relações, pois a expectativa parental já é incerta, fazendo com que esses jovens intersexuais absorvam cada vez mais angústias. Logo, o discurso biomédico do bem estar termina por aprofundar o ciclo de sofrimento desses sujeitos. Inspirada pela noção de “carreira moral” de Erving Goffman (1996), em que a série de mudanças vividas por essas pessoas dentro das instituições hospitalares alteram efetivamente suas percepções de si e dos outros, concluo que tais práticas clínicas e cirúrgicas feitas precocemente só intensificam os processos de incertezas. A garantia de coerência sexual se constrói inversamente ao apagamento ou à “mortificação do eu” intersexual. Contudo, mesmo com esses guidelines cada vez mais urgentes e codificados, a experiência intersexual não se esvazia completamente e continuará sendo vivida em meio a proliferação de discursividades sobre suas condições. Os efeitos das explicações dessas condições, dessas verdades, dessas estabilidades, constituem os processos de veridicção da intersexualidade. Mas como as descrições dos casos etnografados evidenciam, as controvérsias, os ruídos e as incertezas não se desmaterializam com as aplicações hormonais e os cortes de bisturi. Na verdade, espero que esses casos desvelem os jogos de pensar/poder intrínsecos aos regimes de inteligibilidade ocidental e moderna, tais como moldam nossas realidades. Talvez assim possamos iluminar criticamente algumas das representações e intervenções médico-científicas ao tentarem conformar corpos “ambíguos”, ao serem “des-feitos” (Pino, 2007), em corpos inteligíveis, em corpos funcionais, em corpos humanos. Onde, muitas vezes, a tradução dessas certezas e coerências suscitam-se através de silenciamentos, apagamentos e violações.

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Considerações Finais As Constituições Humanas: travessias antropológicas e políticas nas experiências intersexuais

As narrações das histórias de experiências de intersexualidade, ainda que terceirizadas através dos meus olhares, da minha interpretação e da minha escrita98, tentam articular os limites das constituições de humanidades através dos corpos sexuados. As negociações dos sofrimentos e estigmas, as falhas de consentimento e direitos, as estratégias de neutralizações terminológicas, as cirurgias ainda tão precoces sem resultados a longo prazo, as medicalizações incorporadas cada vez mais cedo em todas as esferas da vida social, o dimorfismo sexual como valor de uma humanidade construída (e validada) através de bisturis e fármacos. Uma constelação de atravessamentos. À vista disso, dentre outras muitas inquietações que podemos desenvolver a partir da análise dos gerenciamentos e veridicções da intersexualidade, pretendo apontar dois caminhos principais de reflexão nessas páginas de considerações finais. Por um lado, a primeira reflexão se insere em uma abordagem dos direitos humanos e sexuais; até que ponto os sujeitos de direitos (tutelados ou não) podem ser aplicados nesses casos e nessas experiências de intersexualidade? Como já indiquei no capítulo anterior, o paradigma maior não seria a possibilidade de consentimento esclarecido ou de uma comunicação efetiva entre os profissionais de saúde e seus pacientes sobre os tratamentos possíveis, mas a validade em si mesma desses próprios atendimentos e procedimentos. Então, de que tipo de direitos humanos falamos quando se visa como questão mais fundamental assegurar uma boa prática médica, onde a estratégia ética e política necessária para tal recai no colo de um humanismo que também se constitui como sexuado e binário? Um humanismo que justifica “formas inumanas de humanização” (Cabral, 2006), desde que autodeterminadas, com o intuito de que as pessoas intersexuais possam ganhar vidas humanas, vidas possíveis, isto é, vidas normalizadas e inteligíveis dentro deste marco de saber, poder e direitos da modernidade ocidental.

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A autobiografia e o testemunho são estratégias éticas e políticas importantes para uma longa lista de autores, por exemplo, ver Bourdieu, 1996; Cabral, 2006; Agamben, 2008.

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Em sua tese, Paula Sandrine Machado (2008a) já havia alertado para os perigos que uma vinculação não crítica da saúde (nos moldes dos direitos reprodutivos) enquanto direito sexual e humano significa para a experiência da intersexualidade. As práticas de “normalização” aparecem, segundo os registros biomédicos, como garantias de direito para as pessoas intersexuais. Os profissionais de saúde que acompanhei se comprometem com esta interpretação, investem diariamente na materialização desse “direito à saúde” enquanto “direito humano”. Eles acreditam nesses atendimentos. De modo que as formulações sobre a “verdade” do sexo/gênero de alguém e dos direitos e acessos à saúde pautam-se em interseccionalidades que não se fazem visíveis nos guidelines, mas sim nos gerenciamentos cotidianos. Neste sentido, o processo de veridicção ocorre além das moléculas, gônadas e hormônios, atravessam concepções generificadas, valores socioculturais, vulnerabilidades e desigualdades, que modificam os sujeitos de direitos de uma “humanidade sexuada”. Contudo, pautar-se em um direito humano e sexual de autonomia corporal também não irá desestruturar, como apontei acima, a necessidade constituinte de sujeição das pessoas intersexuais às práticas “corretivas” de “normalização”. Como a própria “humanidade” se fundamenta segundo dois sexos/gêneros particulares, como dar conta dessa abstração nas relações existentes que as extrapolam? Como conter (ou ao menos questionar a legitimidade) dessas práticas “humanizadoras”? Como fazer valer as concepções universais de autonomia e autodeterminação da pessoa em contextos de vulnerabilidade e desigualdade? São questões que se proliferam e mobilizam trabalhos futuros. Não obstante, como descreve Iain Morland (2012), ao mostrar imagens de cirurgias realizadas em pessoas intersexuais para seus companheiros de casa, as pessoas estremecem ao se darem conta dos procedimentos realizados. São imagens desconfortáveis de ver, principalmente para alguém não “iniciado” na racionalidade e realidade biomédica. Para ele, compartilhar o desconforto e o repúdio de viver em um mundo onde tais procedimentos são feitos e justificados vai além das políticas identitárias que se apoiam em direitos que também seriam, no fundo, normalizantes99. Tem a ver, conforme apontei no capítulo anterior, com a compreensão da vulnerabilidade como condição compartilhada. Neste registro, perceber a

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Na verdade, Morland (2012) vai além da análise do conforto/desconforto enquanto sentimentos envolvidos no gerenciamento e veridicção da intersexualidade para se pensar nesta como uma condição compartilhável. Ele discute as próprias construções de sensibilidade (ou a perda dela) como condições particulares da experiência intersexual, que através das práticas biomédicas expandem-se além da experiência corporal individual e ganham contornos fenomenológicos. Ou seja, ele analisa como o manejo biomédico da “senciência” dispõe uma forma muito específica das pessoas intersexuais se relacionarem com o mundo.

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vulnerabilidade como experiência comum aos humanos seria uma tentativa de reequilibrar as desigualdades através de um maior reconhecimento na complementariedade do sofrimento e da exposição do outro produzidas por esses modelos de humanidade sexuada, de direitos e de saúde. Por outro lado, a segunda reflexão dessa conclusão se centra no fato de que concepções de humanidade se reajustam constantemente com experiências como as dos intersexuais. Em um recorte maior, noções do humano se multiplicam principalmente no que concerne as negociações políticas, éticas e morais, e os desenvolvimentos de novas tecnologias. As políticas “da vida em si”, como sintetiza Nikolas Rose (2007), atravessam campos sociais dos mais diversos, reorganizando as vidas das pessoas em tramas cada vez mais biossociais, as quais, por sua vez, expandem as relações globais de saúde, política e direitos. Desse modo, proponho pensar que manter as experiências intersexuais dentro de um modelo de humanidade sexuada (ligada a tratados de direitos humanos e sexuais centrados no binarismo de gênero), busca encerrar tais experiências em protocolos biomédicos. Estes justificariam uma suposta coerência molecular do sexo. Quando, na verdade, o que mais parecem fazer são verificações e repetições de cunho sociocultural, como vimos anteriormente. Pretendo, então, formular uma hipótese dentro das discussões da “saúde global”, isto é, de como esses gerenciamentos e veridicções, essas governanças de corpos, reconstroem possibilidades variantes da norma – as vidas intersexuais – em segmentos de mercados terapêuticos específicos. Uma vida que importa biomedicalizada. Assim, esboço alguns dos movimentos de conversão dessas experiências que não se conformam em doenças crônicas. No capítulo 3, vimos histórias ilustrando as controversas negociações das “verdades” sociais e biomédicas com as realidades individuais, agora veremos como trâmites globais de farmacopolitizações interessam e financiam a manutenção da intersexualidade dentro de registros universais e essencialistas do que seria uma humanidade sexuada. De tal forma, faço um exercício de contextualizar. Similar à conjuntura de HIV/aids acompanhada e descrita por João Biehl (2008; 2011) nacionalmente e globalmente, nos EUA, quando se trata dos “distúrbios do desenvolvimento sexual”, parece existir um processo parecido de articulação entre diferentes atores gerindo o atendimento e tratamento da condição. Um processo de vinculação de algumas organizações não governamentais e movimentos políticos intersexuais com instituições privadas (de pesquisa e/ou biomédicas) e agências estatais de saúde, na tentativa de padronizarem seus discursos a fim de garantirem parcerias no

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atendimento e intervenção clínico-cirúrgica das pessoas intersexuais. Discursos, como atentei acima, afinados com argumentações centradas nos direitos humanos e sexuais. As realidades nos países da América Latina são mais distintas. No Brasil, não há movimento intersexual constituído, e os movimentos lgbt’s atuais não pautam como uma de suas reivindicações primárias qualquer demanda atrelada à experiência intersexual. No máximo poderíamos aproximar com demandas das experiências trans*, por exemplo, pela despatologização da transexualidade (um “risco” de acontecer aos intersexuais operados precocemente, quando na adolescência/fase adulta se percebem com outra identidade de gênero diferente à designada) e pela ampliação e acesso universal aos procedimentos de “redesignação sexual” (procedimentos similares em suas técnicas com os realizados nas crianças intersexuais, como também podem ser aplicados em casos de adolescentes intersexuais que não vivenciaram as intervenções precoces, como Carla ou Fabiane). Nos outros países da América Latina, tomo como referência o livro editado pelo filósofo argentino Mauro Cabral, Interdicciones: escrituras de la intersexualidad (2009), no qual compila artigos científicos, entrevistas, poemas, artes, dentre outros escritos, de pesquisadoras do tema e de pessoas intersexuais, todos em castellano. Além de entrevistas e relatos de intersexuais de várias localidades latino-americanas, há dois artigos que analisam a “regulação biomédica” da intersexualidade fora do eixo EUA-Europa (os outros artigos existentes são de duas pesquisadoras brasileiras, Paula Sandrine Machado e Isadora Lins França, e de uma pesquisadora espanhola, Nuria Grégori Flor). O primeiro artigo, de Eva Alcántara Zavala, relaciona a experiência da condição intersexual por famílias em situação de pobreza na busca por assistência médica na cidade do México. O segundo artigo, de Luciana Lavigne, analisa representações socioculturais sobre sexo/gênero que informam muitas das decisões biomédicas feitas por profissionais de saúde da cidade de Buenos Aires. Os dois artigos dialogam com questões muito parecidas com as que descrevi anteriormente, sobre as estruturas hospitalares e de saúde pública; os atendimentos clínicos e gerenciamentos sociomédicos diários; as intervenções

cirúrgicas precoces; as desigualdades sociais

e as construções de

vulnerabilidades/carreiras corporais e morais através de roteiros de sofrimento específicos, todos generificados, enfim, são representações e práticas que se repetem dentro de uma mesma matriz biomédica globalizada. Onde guidelines internacionais pautam saberes compartilhados pelo mundo que são atualizados em seus contextos regionais, linguísticos e de mais ou menos desigualdade, de mais ou menos acesso à saúde pública, de mais ou menos movimentos intersexuais organizados.

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Assim, também é preciso notar que os autores do livro se posicionam, em introdução escrita por Cabral, contra a nova terminologia proposta pelo Consenso de Chicago. Apesar de reconhecerem as razões para se questionar a noção de “intersexualidade” a favor de “DDS”, por exemplo, pela constante redução (tanto social quanto biomédica) do “intersexual” a uma categoria identitária e de minoria sexual, eles mantêm o posicionamento político e ético do termo. Mais além, tentam formular suas críticas em outro tom, com visões de humanidades ampliadas, pós-humanas até. Inspiram-se em Donna Haraway e Paul B. Preciado, autores que também sustentam minhas formulações. Essas formulações partem do princípio de que o sexo, do mesmo modo que foi convertido em “objeto” de governança política, com suas ramificações da gestão do corpo pela biomedicina, também importa do ponto de vista econômico. Deste processo nasce a relação com os produtos farmacoquímicos, que torna-se uma das fundações para a episteme moderna e o modo de produção capitalista persistirem. Preciado (2008) chama esse movimento pós industrial, midiático e global de “regime farmacopornográfico”100. As intensificações dos processos biológicos e moleculares e as formulações semióticas e técnicas da subjetividade sexual marcam novas formas de pensar e vivenciar o humano. Logo, a constituição de um “império dos hormônios”, como traduziu Fabíola Rohden (2008), fortalece a indústria farmacêutica que aposta cada vez mais na fabricação tecnológica de corpos sexuados. Como sabemos, as apostas não cessam na regulação e comercialização do corpo e da sexualidade, mas se expandem para diversas áreas da vida social, bem como as relacionadas com a “saúde mental”. A eficácia desse regime/mercado seria o de reduzir o humano ao medicamento. Conforme Preciado desenvolve: “o êxito da tecnociência contemporânea é transformar nossa depressão em Prozac, nossa masculinidade em testosterona, nossa ereção em Viagra, nossa fertilidade/esterilidade em pílula, nossa aids em triterapia” (Ibid.: 33). Não se sabe mais quem veio primeiro, onde termina um e começa o outro. E é exatamente pelo fato de que a “verdade” não precisa ser mais descoberta, mas sim produzida de acordo com certos modelos culturais, políticos e técnicos, que o corpo adquire “estatuto natural”. Nesta concepção de realidade, tanto

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Para cunhar esse termo, Preciado se inspira na categoria proposta por Deleuze e Guattari em Mil Platôs: “sociedade de controle”. Esta formulação seria um terceiro regime dos processos de subjetivação, nos mesmos moldes foucaultianos (2008: 66).

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o desejo sexual quanto a enfermidade não existem sem suporte técnico, farmacêutico, midiático e político. Dito isto, detenho-me agora nos processos globais de farmacopolitização no que tange às experiências intersexuais. O guideline classificatório e de manejo atual é um nó importante, onde podemos voltar e repensar outras negociações em torno de sua formulação e aplicação. O documento selou uma nova maneira de fazer política – e de cuidado médico – sobre a intersexualidade, representado pelas participações de pessoas intersexuais no Consenso de Chicago (poucas, mas existentes) e pelas articulações do seu conteúdo (e de suas práticas) com familiares, acadêmicos e movimentos sociais intersexuais em momentos seguintes. Contudo, considero fundamental iluminar outra relação existente. No final do artigo publicado em 2006, o Consenso reconhece e agradece o “suporte educacional irrestrito” concedido pela Pfizer Endocrine Care, Novo Nordisk, Ferring, e Organon (Lee et al., ibid.: e497). Todas as quatro são grandes companhias farmacêuticas multinacionais. A Pfizer tem sede nos EUA. A Organon era holandesa, mas foi vendida e incorporada à Merck & Co. em 2009, que por sua vez também tem sua matriz nos EUA. A Novo Nordisk se encontra na Dinamarca, e a Ferring na Suíça. Em vista desse amparo, como perceber os valores que estão em jogo com as agendas internacionais de “saúde global”? Nos termos de João Biehl: Como obrigar doadores a prestar contas a longo prazo, especialmente nesta época financeiramente volátil? Como as tendências de saúde global afetam o papel dos governos e suas obrigações com os direitos humanos? Além disso, como estão sendo tratadas as outras doenças mortais da pobreza que têm menos apoio político? Que projeções e sistemas de valor subscrevem as decisões políticas e a triagem médica? Problemas e questões que não eram necessariamente previstos e que agora têm de ser tratados como imperativos para salvar vidas foram transformados em novo capital geopolítico e farmacêutico. (2011: 265)

Trocando “doenças mortais da pobreza” pela intersexualidade, que transforma-se em uma condição crônica com o modelo de cuidado biomédico gestado atualmente, e que é atravessada por desigualdades e vulnerabilidades sociais (principalmente nos casos atendidos em instituições de saúde pública), podemos também pensar, assim como fez Biehl, sobre as projeções e os sistemas de valor que tangenciam as negociações políticas desses “corpos ambíguos” enquanto biocapitais. Além das controvérsias entrelaçadas nas micropolíticas discutidas no segundo capítulo, entre os atores a favor ou não da nova nomenclatura proposta pelo Consenso. E além da aplicação dos guidelines na prática médica, reforçando medicalizações e cirurgias precoces, feitas sem suporte dos resultados e impactos desses procedimentos pela precariedade dos

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estudos a longo prazo. O que proponho como pensamento futuro seria a compreensão dos tipos de responsabilidade advindas da introdução de corpos intersexuais em modelos de gestão biomédicos e farmacopolíticos. Esses suportes técnicos e institucionais são capazes de dar conta das experiências em suas relações e negociações cotidianas? Ou simplesmente terminam em apreensões discursivas segundo “puras” capitalizações de um corpo incluído no regime/mercado “tecnobiopolítico”? Nos sites das quatro empresas que financiaram o Consenso, aparece em destaque a responsabilidade como tema/tópico101. Seja associada com uma responsabilidade corporativa ou com uma meta de sustentabilidade, o termo está sempre relacionado (de maneira similar à qualidade de vida/bem estar como horizonte clínico) com o investimento e a proteção de uma “saúde global”. Um devir-mundo, supostamente comunitário, que se cumpre como função retórica. Por isso é preciso detalhar as negociações e regulações globais desse modelo de “responsabilidade”; contudo, podemos dizer que as características dessa concepção de “saúde global” vendida e financiada têm cor, endereço, sexo/gênero e sexualidade marcada. Logo, também podemos pensar, ainda dentro do texto do Consenso, se essas grandes farmacêuticas financiariam pesquisas e congressos para o tratamento de condições não patologizadas. Talvez o termo “distúrbios do desenvolvimento sexual” tenha sido escolhido não só pela bagagem sociocultural que atravessa os saberes biomédicos sobre norma e anormalidade, mas pelas pressões políticas e econômicas de farmacêuticas multinacionais. Elas precisam tratar doenças, então financiar o cuidado de “intersexuais”, como categoria identitária, não tenha tanta força quanto investir no tratamento de patologias com etiologias específicas e descrições cada vez mais complexas. Como vimos, nem toda condição intersexual constitui risco de vida, ao contrário, a grande parte dos casos atendidos integram diagnósticos de cunho sociocultural, especialmente no que se refere aos modelos e tamanhos anatômicos do corpo e aos papéis do sexo/gênero. Por conseguinte, manter certas classificações patologizadas interessam a alguém. Essas desigualdades persistentes na produção da intersexualidade enquanto condição “anormal”, pois não seria um processo lógico do desenvolvimento sexual, permite sua vinculação às negociações globais das biopolíticas. A intersexualidade torna-se não só uma

Segue os links dos sites de cada empresa onde tratam da “responsabilidade”: http://www.pfizer.com/responsibility; http://www.novonordisk.com/sustainability/; https://www.ferring.com/en/responsibility/; http://www.merckresponsibility.com/. 101

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questão da “localização científica do sexo”, ou de seus gerenciamentos diários segundo abordagens socioculturais e/ou clínico-cirúrgicas, mas de processos amplos sobre quais corpos são registrados como passíveis de serem medicados, normalizados e capitalizados. Allen Frances, psiquiatra estadunidense que durante anos dirigiu a formulação do Manual Diagnóstico e Estatístico (especificamente o DSM-IV)102, recentemente lançou um livro no qual critica a crescente medicalização da normalidade e da vida cotidiana. Saving Normal (2014) se propõe a ser um chamado, conforme informa sua descrição de venda na Amazon US, “para que todos recuperemos a totalidade de nossa humanidade”. Entretanto, podemos nos perguntar sobre essa demanda: e a humanidade que nos importa nesta análise, a humanidade escrutinada dos intersexuais, será recuperada? Será que pleitear melhores acessos e cuidados na “medicalização da vida” dessas pessoas constituirá as mesmas em seres humanos inteligíveis? Quando a própria noção atual de humano, nos moldes dos direitos humanos e sexuais, se pauta em ideais valorativos de dimorfismos sexuais, e quando a medicalização da vida é moeda corrente. Não espero formular respostas para tais questões, mas apontar para o fato de que a cidadania dessas pessoas se restringe sobremaneira quando a política, em suas múltiplas camadas, se reduz às “emergências biológicas e sociais”. Todas as histórias, experiências e negociações expostas ao longo dessas páginas estão em constante suspeitas frente às urgências biomédicas e necessidades socioculturais de “normalização”. Assim, a nova forma de “cuidar” da intersexualidade, cada vez mais (principalmente em modelos norte americanos e europeus) integrada e articulada por diversos atores sociais, à primeira vista pode garantir uma melhoria nas condições de atendimento hospitalar, mas os aspectos que englobam a necessidade “emergencial” de suas veridicções e gerenciamentos não estão sendo colocados em crítica. E por que considero importante pensar criticamente sobre essas questões? Porque por mais que a inscrição de uma pessoa como sujeito de direitos se construa através de relações de sujeição dentro de um regime/mercado tecnológico, biológico e político, em que a pessoa se torna inteligível e capitalizável dentro desses fluxos, ela terá uma vida e um valor para si independente dos trâmites de incorporação e “normalização” social. Atentar para a

Manual diagnóstico e estatístico dos “transtornos mentais” feito pela Associação Americana de Psiquiatria. Serve de base para diversos organismos (como a OMS) e profissionais de saúde pautarem seus parâmetros de condutas e atendimentos. O DSM-IV foi lançado em 1994. Atualmente se encontra na quinta edição, atualizada em 2013. 102

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relacionalidade e interseccionalidade das montagens103 possíveis de existir me parece uma tarefa de reconhecer (científica e politicamente) as percepções e as capacidades humanas que surgem da experiência de “abjeção”104. Ainda que os direitos humanos e sexuais sejam pautados por um humanismo sexuado, a experiência da humanidade e sua aplicação na vida ordinária não o são em todos os casos. Logo, abrir as possibilidades do que é o “humano” é respeitar o fato de que “contra todas as probabilidades, as pessoas continuam buscando reconhecimento social e maneiras de resistir, às vezes retrabalhando e sublimando aflições e constrangimentos” (Biehl, 2011: 274). No rastro de Butler (2008), sobre os efeitos subversivos que repetições generificadas de modo distinto da norma podem carregar, talvez ao atentar para essas experiências possamos garantir não só melhores condições de atendimentos (clínicos e institucionais), mas modificar jurisprudências com o cotidiano, com as contradições das vivências, e então expandirmos nosso tradicional humanismo e seus direitos para acomodar novos corpos e vidas.

“Para Deleuze e Guattari (1986, p. 86), montagens são inter-relações contingentes e mutáveis entre ‘segmentos’ – instituições, poderes, práticas, desejos – que constantemente constroem, entrincheiram e desagregam simultaneamente seus próprios constrangimentos e opressões”. O termo enfatiza o desejo, e as maneiras modestas, marginais e menores, que ele irrompe em campos sociais aparentemente rígidos (Biehl, 2011: 275). 103

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Butler apresenta o conceito em Problemas de Gênero (2008) e o reitera posteriormente em outros trabalhos e entrevistas, de modo que a experiência da “abjeção” seria um processo discursivo no qual determinados corpos não têm “vidas consideradas 'vidas' [isto é, vidas habitáveis de forma inteligível] e cuja materialidade é entendida como ''não importante'” (Prins, Meijer, 2002, inserção minha).

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Glossário

Cariótipo É o conjunto cromossômico dentro do núcleo de uma célula, que representaria a composição cromossômica de uma espécie. O último par dos 23 pares de cromossomos em humanos são os cromossomos sexuais, neles que se inscrevem a grande maioria das chaves para a diferenciação sexual acontecer – mas não somente, pois também há ação dos cromossomos autossômicos, como cada vez mais estudos científicos apontam. O exame de cariótipo é, portanto, um exame para determinação do sexo cromossômico ou de alguma condição congênita. Realiza-se ao extrair sangue para cultivo citogenético, com o objetivo de analisar células no estágio de metáfase da divisão celular, isto é, uma fase em que o DNA está em grau máximo de condensação e é possível a observação dos cromossomos através de um microscópio.

Clitoroplastia Cirurgia feita para a correção estética do clitóris, a fim de reduzir seu volume e/ou aumentar sua área de exposição.

Consenso de Chicago Foi uma conferência proposta em 2005 pela Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society (PES) e pela European Society for Paediatric Endocrinology (ESPE), que reuniu cerca de cinquenta médicos de várias especialidades (e, apesar de pioneira neste sentido, apenas duas participantes intersexuais, as ativistas Cheryl Chase e Barbara Thomas) para discutirem e pensarem sobre os protocolos, manejos e gerenciamentos sociais, médicos e científicos que envolvem casos de intersexualidade. Como resultado da conferência foi publicado em 2006 o texto “Consensus Statement on Management of Intersex Disorders”, que serve de guideline atual, em níveis internacionais, para tais protocolos, manejos e gerenciamentos das condições intersexuais.

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Cromatina Sexual ou Corpúsculo de BARR A cromatina sexual ou o corpúsculo de BARR acontece quando o cromossomo X está inativo e espiralizado. Isso ocorre em composições cromossômicas em que há mais de um X presente, por exemplo 46, XX ou 47, XXY. Em casos de somente um X presente (tipo 46, XY), o único X fica ativo no par dos cromossomos sexuais.

Distúrbios do Desenvolvimento Sexual (DDS) Proposta em 2006 pelo “Consenso de Chicago”, configura uma nova terminologia científica e biomédica para tratar as condições intersexuais, afastando-se de termos anteriores como intersexual e hermafrodita.

Escala Prader (I-V) A escala Prader é uma classificação de virilização elaborada em 1954 para lidar com os níveis de ambiguidade genital, sendo elas: Prader I – aumento isolado do clitóris, indicando que a virilização tenha ocorrido após 20 semanas de vida intrauterina (VIU); Prader II – aumento do clitóris associado a um introito vaginal em forma de funil, podendo visualizar-se aberturas uretral e vaginal distintas, indicando virilização iniciada com 19 semanas de VIU; Prader III – aumento de clitóris associado a um introito profundo, em forma de funil, com a uretra esvaziando-se na vagina, como um pseudo seio urogenital, há vários graus de fusão lábio escrotal indicando uma virilização ocorrida com 14-15 semanas de VIU; Prader IV – clitóris fálico com abertura urogenital em forma de fenda na base do falo, indicando virilização ocorrida com 12-13 semanas de VIU; Prader V – fusão lábio escrotal completa e uretra peniana, indicando virilização ocorrida com 11 semanas de VIU (Damiani et al., 2001: 43).

Faloplastia Cirurgia de construção ou reconstrução peniana feita com técnicas de transferência tecidual a fim de reestabelecer a capacidade funcional ou estética do pênis.

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Genitoplastia Cirurgia feminizante que engloba reconstruções clitorianas e vaginais, como a clitoroplastia e a vaginoplastia.

Guidelines São publicações ou parâmetros científicos, e neste caso biomédicos, de “consensos” protocolares, de manejo e formas de conduta referentes às condições e aos casos de intersexualidade.

Hermafrodita, Pseudo Hermafrodita e Hermafroditismo Classificação antiga, rastreada desde à Antiguidade, para identificar pessoas que continham os dois sexos ou assumiam os dois papéis sociais generificados, de posições e atitudes masculinas e femininas. Essas definições se modificam ao longo da História com o uso do mesmo termo e seus acréscimos: pseudo, falso, verdadeiro. Como possui uma conotação histórica cheia de significados e registros, sua utilização na atualidade não é bem vista por muitos acadêmicos, médicos, familiares e pessoas intersexuais. Contudo, alguns ativistas intersexuais ainda a utilizam como forma de denúncia e protesto frente às normalizações que ainda vivenciam.

Hiperplasia Adrenal Congênita (HAC) Condição que resulta na deficiência da enzima 21-hidroxilase produzida no córtex adrenal. “A ausência ou inatividade funcional dessa enzima impede a produção normal de cortisol e de aldosterona (em até 75% dos pacientes), desviando os produtos intermediários acumulados para a síntese excessiva de andrógenos”, isto é, de hormônios androgênicos, como a testosterona. A literatura médica indica que a combinação dessas variações congênitas, genéticas e hormonais, que se manifestam desde o período intrauterino, são “responsáveis pelo surgimento, ao nascimento, de um quadro clínico clássico na criança: genitália externa ambígua com vários graus de virilização (nas meninas) e macrogenitossomia (nos meninos)” (Telles-Silveira et al., 2009: 1113). Em sua forma clássica a condição também é perdedora de sal, sendo assim o único caso de intersexualidade que, à primeira vista, pode conter risco de vida.

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Hormonoterapia Administração ou supressão de hormônios para vários fins, como terapia de masculinização, feminização, tratamento de câncer, reposição hormonal após a menopausa, entre outros.

Intersexo e Intersexualidade Inicialmente um termo biomédico para classificar as variedades de ambiguidades sexuais identificadas, foi aos poucos sendo abandonada pela literatura científica e médica, ao mesmo tempo em que se consolida como uma categoria identitária e de reinvindicação social e política. Neste sentido, intersexual designa variedades de condições congênitas em que a anatomia, em suas múltiplas camadas – genitais, gonadais, hormonais, cromossômicas e moleculares – não se conformam em uma definição padrão de masculinidade e feminilidade entendidos como típicos para homens e mulheres. Principalmente em contraposição à nova terminologia proposta pelo “Consenso de Chicago”, intersexo se fortalece como uma categoria social que reflete variações biológicas e anatômicas das determinações sexuais hegemônicas.

Escala de Maturação Sexual (MXPX) Método de diagnóstico dos estágios do desenvolvimento sexual de um indivíduo, proposto por um médico inglês chamado J. M. Tanner. As mamas seriam avaliadas quanto ao seu tamanho, forma e características e definidas em uma tabela que vai do “M1”, estágio infantil e pré púbere, até o “M5”, estágio adulto e pós púbere. Esta identificação de maturação sexual é realizada em conjunto à análise dos pelos pubianos, cuja tabela de desenvolvimento sexual também é similar ao das mamas, indo de “P1” à “P5”.

Síndrome de Insensibilidade Parcial ou Completa aos Andrógenos (SIPA/SICA) A Síndrome de Insensibilidade aos Andrógenos (SIA – e AIS, em inglês) é uma condição ligada ao cromossomo X que afeta indivíduos com cariótipo 46, XY, nos quais há prejuízo total ou parcial do processo de virilização intrauterina devido à alteração funcional do receptor de andrógenos, isto é, dos hormônios masculinos (Melo et al., 2005: 88). Essa virilização

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intrauterina diminuída significa que em casos totais o fenótipo será tipicamente feminino (com o desenvolvimento de genitália feminina, apesar das gônadas testiculares não desenvolvidas), já em casos parciais o fenótipo será ambíguo, o que levará às veridicções e gerenciamentos sociomédicos de pacientes com tal condição.

Síndrome de Klinefelter (SK) Uma das condições mais comuns referentes às combinações dos cromossomos sexuais, chegando a ocorrer “em cerca de um entre quinhentos a seiscentos recém nascidos do sexo masculino e em diferentes etnias” (Marques-de-Faria, 2002: 291). É diagnosticada quando uma pessoa apresenta uma cromatina sexual a mais em seu par de cromossomos sexuais, por exemplo, na composição cromossômica 47, XXY. Seus sintomas usuais são hipogonadismo, isto é, diminuição da função das gônadas testiculares, e infertilidade.

Vaginoplastia Cirurgia que serve para dois propósitos: reconstituir a anatomia vulvo-vaginal, por exemplo, com reconstruções estéticas dos lábios vaginais, ou também criar e aprofundar um canal vaginal, procedimento que requer o uso pós-cirúrgico de dilatadores vaginais.

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Referências Bibliográficas

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