Ditaduras africanas na mídia ocidental: um estudo de caso sobre O último rei da Escócia

May 24, 2017 | Autor: Camila Moreira Cesar | Categoria: Africa, Uganda, Cinema e História, Ditadura
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Ditaduras africanas na mídia ocidental: um estudo de caso sobre O último rei da Escócia Bruno Gomes Guimarães1 Camila Moreira Cesar2 Marcelo de Mello Kanter3

Introdução O filme O último rei da Escócia (O ÚLTIMO…, 2006) é uma obra de 2006 do diretor Kevin MacDonald e que rendeu o Oscar de melhor ator a Forrest Whitaker por sua atuação como Idi Amin, ditador que governou Uganda de 1971 a 1979, período retratado no filme. Adaptado do livro do jornalista inglês Giles Foden, que viveu durante muitos anos no país, a produção mescla ficção e realidade para relatar a situação política de Uganda após o golpe militar de 1971. O centro da narrativa é o personagem fictício Nicholas Garrigan (James McAvoy), um jovem médico escocês nascido em uma tradicional família da aristocracia britânica que decide se aventurar na África. Inicialmente so-

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1 Doutorando em Estudos Estratégicos Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Relações Internacionais pelas Universität Potsdam, Freie Universität Berlin e Humbold-Universität zu Berlin. Bacharel em Relações Internacionais pela UFRGS. Pesquisador associado ao Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE). Brasil. E-mail: [email protected]. 2 Jornalista, doutoranda em Ciências da Informação e da Comunicação pela Université Sorbonne Nouvelle Paris III em cotutela com a UFRGS, Mestre em Informação e Comunicação pela Université Sorbonne Nouvelle Paris III, Diretora de Cultura da Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França (APEB-FR) e associada do ISAPE. França. E-mail: [email protected]. 3 Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS e Bacharel em Relações Internacionais pela mesma universidade. Brasil. E-mail: [email protected].

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nhador e cativado pelo carisma de Amin, Nicholas perde gradualmente sua ingenuidade ao acompanhar a degradação da situação política ugandense. O filme, dessa forma, parte da perspectiva de um personagem ocidental fictício para retratar a história da ditadura de Amin em Uganda e, com isso, acaba caindo em armadilhas impostas por esse ponto de vista, especialmente quanto ao afropessimismo4. Para analisar de que forma isso ocorre ao longo do filme, primeiramente será feita uma contextualização histórica da chegada de Amin ao poder em Uganda, ressaltando os fatores internos e externos que permitiram a instalação da ditadura no país, bem como o decorrer de seu governo autoritário. Em seguida, o filme será recontado de forma crítica, contrastando-o com a história de Uganda, identificando-se problemas de enfoque e instâncias de afropessimismo. Por fim, uma breve conclusão sobre como a mídia e o cinema, em particular, tendem a retratar países africanos, especialmente aqueles em que há ditaduras, fornecerá algumas pistas de reflexão interessantes para outros trabalho que investiguem temas afins. A chegada de Idi Amin ao poder: breve contextualização histórica Uganda se tornou independente do Reino Unido em 1962. Durante os anos de autogoverno que preparava a independência, o país foi liderado pelo Partido Democrático (PD). Entretanto, houve uma nova eleição no período imediatamente anterior à independência, no qual dois partidos de oposição ao PD se uniram para excluí-lo do governo, ainda que ambos tivessem posições políticas e bases de apoio muito distintas: por um lado o Congresso Popular de Uganda (CPU), partido nacionalista liderado por Apollo Milton Obote; e, por outro, o Kabaka Yekka (KY, significando “Apenas o Rei”), partido conservador, 4 A emergência do conceito se deu a partir dos anos 1970 e 1980 e se deu em três etapas. Primeiramente, a partir de pesquisadores africanos, que colocam em discussão a premissa de que o atraso do continente seria uma consequência da colonização, chamando a atenção para a existência de um neocolonialismo e para a responsabilidade das classes dirigentes locais e suas modalidades brutais de governar. Em seguida, tem-se os atores dos setores de desenvolvimento e cooperação que, nos anos 1980, questionam a eficácia e mesmo a utilidade das ajudas internacionais à África. Por fim, um terceiro momento que integra essa abordagem afropessimista é marcada por diversos ensaístas, como o jornalista americano Stephen Smith (2003), certos dirigentes políticos e sobretudo os meios de comunicação que, conscientes ou não, corroboram para a predominância de um discurso negativo e maniqueísta sobre a historia do continente, que seria vitima de uma espécie de “maldição”. Para mais informações, ver Jean-Pierre Chrétien, 2005.

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monarquista e com base no reino tradicional de Buganda (ASEKA, 2005). Realizando uma simplificação útil, pode-se considerar Uganda como um país dividido em uma região sul, composta por alguns reinos tradicionais subnacionais, dentre os quais Buganda era o maior e mais poderoso, tendo ocupado um papel importante durante o colonialismo britânico; e a região norte, habitada pelas etnias Acholi e Lango, que não se organizavam em reinos. O CPU tinha sua base no norte (o próprio Obote pertencia à etnia Lango), e defendia o fortalecimento do Estado ugandense, opondo-se à autonomia dos reinos do sul. Por outro lado, o KY era liderado pelo rei de Buganda, Edward Mutesa II, e tinha apoio maciço neste reino. Contudo, a rivalidade de Buganda com seus vizinhos fazia com que o partido não gozasse de grande apoio no sul. Assim, o jovem país se encontrou sob a liderança de um governo de coalizão intrinsecamente instável entre dois partidos antagonistas. Para acomodar suas lideranças, Obote ocupou a posição de primeiro-ministro e Mutesa tornou-se presidente. A situação de Obote se agravou quando, em 1966, facções rivais do CPU tentaram derrubá-lo no parlamento por alegações de contrabando de ouro contra si e seu general mais próximo, Idi Amin. Amin servira nas forças militares coloniais britânicas, tendo participado na repressão aos Mau Mau no Quênia, na década de 1950, além de ter sido campeão ugandense de boxe. Quando o país alcançou a independência, Amin era um dos poucos ugandenses ocupando a posição de oficial, de forma que rapidamente ganhou importância na hierarquia militar (HUTTON; BLOCH, 2001). Ao mesmo tempo, foi acusado de apoiar extraoficialmente rebeldes congoleses e sudaneses, em troca de recursos naturais contrabandeados. Por ser aliado próximo de Obote, o primeiro-ministro acabava por ser atingido pelas acusações também. Quando tais acusações foram instrumentalizadas para tentar depor Obote em 1966, ele resistiu no poder, prendendo rivais de seu partido, fechando o parlamento e ordenando que Amin atacasse o palácio de Mutesa, que escapou e fugiu do país (ASEKA, 2005, MUTESA, 1967). Obote em seguida proclamou a república, ocupando a presidência. Tendo fortalecido seu controle sobre a política nacional, Obote dissolveu os reinos do sul de Uganda, alçou Amin à posição de Comandante das Forças Armadas e deu início a uma

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guinada nacionalista na política econômica, além de prender alguns oposicionistas de destaque. Entretanto, Obote passou a se distanciar de Amin pouco tempo depois de sua tomada do poder, por suspeitas de desvio de verba, além de Amin manter seu apoio aos rebeldes sudaneses apesar de Obote ter ordenado que esses contatos fossem encerrados (INGHAM, 1994). Conforme Obote buscou reduzir as atribuições institucionais de Amin, o general criou batalhões compostos de soldados da sua região (o distrito do Nilo Ocidental, ao noroeste do país, mas não se identificando com as culturas Acholi ou Lango), para assegurar seu controle sobre as forças armadas. Amin também passou a receber apoio estrangeiro, especialmente do Reino Unido, cujo governo se preocupava com as nacionalizações de empresas britânicas conduzidas pelo governo de Obote, e de Israel, pois este país contava com o apoio de Amin aos rebeldes sudaneses para que o Sudão não pudesse contribuir nos esforços de guerra contra Israel (MWAKIKAGILE, 2012). Em 1971, quando Obote estava fora do país em uma conferência internacional, ele ordenou a abertura de um inquérito contra Amin e a detenção do general, que reagiu e, apoiado por forças leais, tomou o poder, declarando-se presidente (DOCUMENTS..., 2002). O governo ditatorial de Idi Amin Assim que tomou o poder, em 1971, Amin procurou dissociar a sua imagem da de Obote e ganhar apoio de seus opositores. As principais medidas foram a interrupção da campanha de nacionalizações, a repatriação do corpo do Kabaka5 Mutesa, morto em 1969 durante o exílio em Londres, a libertação de presos políticos e a indicação de Benedicto Kiwanuka, do PD, para uma posição de juiz (ASEKA, 2005). Assim, Amin ganhava apoio dos Estados ocidentais — no contexto da Guerra Fria — e das elites do sul de Uganda, especialmente de Buganda. Ao mesmo tempo, com menor visibilidade, ocorreram expurgos e massacres no norte do país, tendo como principal alvo soldados das etnias Lango e Acholi, identificados por Amin como prováveis apoiadores de Obote (MWAKIKAGILE, 2012). Esse fenômeno motivou a fuga dos 5 O termo, que significa “rei” em língua ganda, era utilizado como titulo de nobreza desde o século XV em Buganda.

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partidários do CPU para a Tanzânia, onde o ex-presidente ugandense estava asilado e em que logo se constituiu um polo de opositores ao regime instalado em Kampala. Ciente dessa potencial ameaça e influenciado por sua formação militar, Amin priorizou o fortalecimento das forças armadas, recrutando soldados preferencialmente do seu distrito de origem. Esse objetivo orientou sua política externa, com o estabelecimento de parcerias com o Reino Unido e Israel calcadas na aquisição de armas e equipamento bélico. Em 1972, a ditadura de Amin passou por uma série de mudanças profundas, alterando decisivamente a inserção internacional e iniciando a desagregação econômica e institucional de Uganda. No início do ano, as forças de Obote lançaram um ataque a partir da Tanzânia contra vilarejos na fronteira de Uganda, com a expectativa de que isso desencadeasse motins que acabassem por derrubar Amin (WOMAKUYU, 2008). Entretanto, tais rebeliões não ocorreram, e as forças de Obote foram prontamente derrotadas. Pouco tempo depois, por pressão de Estados vizinhos, foi assinado o Tratado de Mogadíscio entre Kampala e Dar Es Salaam, a partir do qual ambos se comprometiam a não permitir que seus territórios fossem utilizados para lançar ataques ao Estado vizinho (NYAHAMAR, 2000). Apesar disso, o ataque transfronteiriço desencadeou duas tendências em Uganda: internamente, a ampliação da repressão política; externamente, a intensificação da busca por equipamento bélico. O ataque e os planos de coordenação com motins levaram Amin a acreditar que havia atores políticos conspirando com forças leais a Obote para derrubá-lo. Assim, mesmo figuras das elites do sul do país passaram a ser alvo de sequestros e assassinatos, até então restritos aos Acholi e Lango no norte, a exemplo do juiz Benedicto Kiwanuka, que foi detido por soldados dentro do tribunal que presidia e nunca mais visto (MWAKIKAGILE, 2012). Além disso, líderes religiosos e acadêmicos foram vitimados. O aumento da visibilidade da repressão política erodiu as bases do apoio político de Amin e aumentou as fugas do país, que passaram a contar também com membros da elite econômica. Desta forma, também a economia ugandense sofreu certos desequilíbrios, e Amin se tornou mais dependente da pequena burguesia local aliada a ele (BRETT, 2005). Essa burguesia o pressionava para colocar em prática uma africanização da economia — ou seja, o confisco de propriedades de estran-

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geiros, e sua transferência para africanos. Contudo, os supostos estrangeiros cujas propriedades eram visadas não eram efetivamente estrangeiros, mas a população — denominada “asiática” — de origem majoritariamente indiana que se instalara no país durante a colonização britânica e que detinha boa parte das instalações de processamento de commodities, comércio e indústrias não estatais. Tal discurso contra minorias economicamente poderosas não era incomum no continente na época, mas a fragilidade política de Amin o levou a adotar medidas particularmente radicais para transferir os recursos dessa população. Ao longo do segundo semestre de 1972, centenas de milhares de “asiáticos” foram expulsos do país, tendo suas propriedades confiscadas (THOMSON, 2010). Boa parte dessa população possuía passaportes britânicos e buscou emigrar para o Reino Unido, que, após oferecer grande resistência, os recebeu como refugiados. A expulsão dos asiáticos fortaleceu a popularidade de Amin internamente, mas foi bastante criticada no exterior, bem como os confiscos. A transferência de empresas e terras para indivíduos e grupos despreparados levou a uma queda na produção, agravada pela restrição do acesso ao crédito e doações internacionais em função do opróbrio da comunidade internacional em relação ao governo ditatorial de Amin. Em alguns meses, a arrecadação despencava, e a crise do governo se tornava ainda mais grave. Ao mesmo tempo, em relação ao âmbito externo, Amin intensificara seus esforços pela aquisição de equipamento para as forças armadas, atento à possibilidade de uma guerra contra seus vizinhos, onde havia comunidades de oposicionistas ugandenses. Sua insistência para que seus aliados lhe vendessem equipamento de ponta e financiassem tais vendas estremecia suas alianças (MWAKIKAGILE, 2012). Quando não logrou que Israel lhe vendesse caças Phantom — os que Israel utilizava em sua própria força aérea —, Amin optou por tentar diversificar suas parcerias. Isso resultou em uma visita à Líbia de Qaddafi, que o ofereceu ajuda financeira e armamentos em troca de Amin denunciar sua aliança com Israel6 (ODED, 2006). Já naquela ocasião ambos 6 Deve-se compreender a importância geoestratégica de Uganda para o conflito árabe-israelense, e a partir disso torna-se possível compreender os esforços de ambos os lados em ter uma aliança com o país. Essencialmente, Uganda controla algumas nascentes do rio Nilo, de modo que poderia barrá-las e afetar dramaticamente o suprimento de água do Egito e Sudão, países que à época mantinham um estado formal de guerra com Israel. Além disso, Uganda poderia ser utilizada como canal de fornecimento de armas a rebeldes sudaneses, impossibilitando que o Sudão se envolvesse em conflitos externos. Ademais, em caso

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emitiram uma declaração conjunta criticando o Estado sionista. A partir daí, Amin, até então discreto em relação à sua religião, faria uso intenso de simbologia islâmica em sua imagem pública, construindo novas mesquitas em Kampala, por exemplo. Esses gestos foram importantes para que Amin também estabelecesse uma parceria com a Arábia Saudita, que passou a lhe auxiliar financeiramente. Ao final de 1972, então, a política externa de Uganda sofrera uma reviravolta inesperada, enquanto a situação interna se tornava caótica. Com a crise econômica que assolava o país, Kampala tornou-se crescentemente dependente de seus aliados no mundo árabe para assegurar o seu orçamento. Entretanto, para manter-se no poder, Amin investia a maior parte dos recursos disponíveis nas forças armadas, recrudescendo a situação econômica geral e levando os serviços públicos à beira do colapso (BRETT, 2005). Além disso, diante das dificuldades de pagar os soldos às suas tropas, para assegurar sua lealdade, ele permitia que saqueassem a população civil e dava maior autonomia aos comandantes regionais. Ao mesmo tempo, o ditador demitia e mesmo executava oficiais que considerasse ameaças, eliminando boa parte daqueles mais bem treinados, mas mantendo outros com quem possuía laços pessoais. Essa tendência conduziu ao enfraquecimento e desmoralização do exército, mas não foi um processo desprovido de racionalidade: mesmo enfrentando uma situação política e econômica intensamente adversa, Amin logrou se manter no poder, enfrentando com êxito oito levantes militares entre 1972 e 1978. A imagem internacional de Amin era negativa, como resultado da situação interna do país, mas também de suas constantes disputas com vizinhos, como o apoio a rebeldes sudaneses, ou a ameaça de invasão ao Quênia.7 Contudo, Amin teve como episódio mais visível de seu posicionamento internacional a crise de Entebbe de 1976. Após seu novo alinhamento ao mundo árabe, ele tornara-se apoiador dos movimentos palestinos e um ferrenho crí-

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de guerra com Israel, o Egito precisaria concentrar suas baterias antiaéreas no entorno da região do Sinai, a fim de neutralizar a superioridade aérea israelense (como de fato ocorreu em 1973). Se a força aérea israelense pudesse utilizar bases em Uganda, seria capaz de atacar a retaguarda egípcia. Desta forma, Uganda se tornava um aliado precioso para Israel, e era importante para os Estados árabes desarticular esta aliança, cooptando o país subsaariano. Idi Amin soube instrumentalizar tais rivalidades para adquirir recursos. 7 Ainda que no continente africano Amin fosse suficientemente bem visto para ser eleito presidente da Organização da Unidade Africana (OUA) entre 1975 e 1976.

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tico de Israel, passando a contar com contingentes palestinos em sua guarda pessoal (MWAKIKAGILE, 2012).8 No final de junho de 1976, membros do grupo Frente Popular de Libertação da Palestina — Operações Externas (FPLP-OE) e de células revolucionárias alemãs sequestraram um voo da Air France que decolara de Tel Aviv, e foram recebidos por Amin no principal aeroporto internacional de Uganda, Entebbe. Soldados ugandenses mantiveram guarda sobre o local, e Amin se comprometeu a negociar com os sequestradores. Estes, por sua vez, exigiam que Israel libertasse uma lista de prisioneiros palestinos. Nos dias subsequentes, reféns não israelenses foram libertados, mas havia ainda em torno de 100 mantidos prisioneiros. Houve ainda esforços de negociação diplomática da parte de Sadat, presidente do Egito, e Arafat, secretário geral da Organização de Libertação da Palestina, mas não lograram resultado algum (ODED, 2006). Relutante em ceder às exigências, Israel optou por realizar uma operação de resgate. Para tanto, contou com o apoio dos reféns já libertos, das empreiteiras israelenses que atuaram na construção civil em Uganda até 1972 (tendo construído o terminal de Entebbe), e recebeu autorização para utilizar o espaço aéreo do Quênia graças à intervenção do ministro da agricultura queniano, Bruce Mackenzie, que possuía vínculos com serviços de inteligência israelenses e britânicos. A operação denominada “Relâmpago” resgatou praticamente todos reféns, tendo apenas uma baixa (o comandante Yonatan Netanyahu, irmão do atual primeiro-ministro israelense) (ODED, 2006). O governo Amin retaliou executando uma refém idosa que fora transferida para um hospital. Posteriormente, o serviço de inteligência de Uganda assassinou Mackenzie, plantando uma bomba em seu avião particular (BRANCH, 2011). Contudo, esse episódio não teve um impacto decisivo na permanência de Amin no poder. Sua queda seria precipitada dois anos depois, em 1978. Neste ano, o vice-presidente de Amin, Mustafa Adrisi, ficou ferido em um acidente de carro. Tropas leais a Adrisi suspeitaram que o acidente fosse uma tentativa de assassinato e se rebelaram, mas seu levante foi prontamente 8 Há indícios de que sua crítica a Israel tenha se convertido ao longo do tempo em um profundo antissemitismo, com evidências de apologias a Hitler, por exemplo. O documentário General Idi Amin Dada: um Autorretrato (1974), de Barbet Schroeder, revela imagens de Amin discutindo planos de invadir Israel, algo que era logisticamente inviável.

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debelado. Estas forças se retiraram, então, para a Tanzânia, e Amin acusou o presidente tanzaniano, Julius Nyerere, de estar acobertando seus inimigos, e ordenou uma invasão do pais, anunciando sua intenção de anexar a província fronteiriça de Kagera (MUSINGUZI, 2012). As forças ugandenses eram mais bem equipadas, mas indisciplinadas, e mais engajadas no saque de Kagera que na consolidação de sua ocupação, acabando por ser prontamente expulsas pelas tropas tanzanianas (TAGALILE, 2014). Nyerere sempre fora bastante crítico do governo de Amin e, diante da falta de ação ou apoio da comunidade internacional ou mesmo de outros Estados africanos para punir Kampala por sua invasão, tomou a decisão de invadir Uganda e derrubar a ditadura ugandense (NYAHAMAR, 2000). Com este fim, convocou a reserva de suas forças armadas e articulou-se com a comunidade de exilados ugandenses residentes na Tanzânia, organizando milícias auxiliares. Ademais, organizou a Conferência de Moshi, congregando diversos grupos oposicionistas atuantes na Tanzânia, no Quênia, na Europa e em outros locais, com o propósito de articular uma frente ampla capaz de estruturar um novo governo após a derrubada de Amin (REVISITING..., 2014). Com estes preparativos realizados, as forças tanzanianas e de oposicionistas ugandenses invadiram Uganda. Diante de sua disciplina e alta moral, as tropas de Idi Amin foram incapazes de oferecer resistência, cedendo território facilmente. Amin buscou apoio com Qaddafi, que enviou tropas líbias para apoiá-lo. Estas ofereceram uma resistência significativa, até serem derrotadas na batalha de Lukaya. Após este episódio, ficou evidente para os soldados líbios que as próprias forças ugandenses estavam mais preocupadas em bater em retirada levando todos os pertences que pudessem confiscar, e os líbios então não mais se empenharam na defesa de uma ditadura cujas próprias tropas não lutavam (TAGALILE, 2014; REVISITING..., 2014). Em abril de 1979, Kampala foi tomada pelas forças tanzanianas, e Amin fugiu para a Líbia e depois para a Arábia Saudita, onde permaneceu até sua morte, em 2003. Uganda, por outro lado, passou por uma sucessão rápida de governos interinos instáveis que organizaram uma eleição (frequentemente acusada de fraude) em 1980, devolvendo a presidência a Milton Obote (MWAIKAGILE, 2012; OKWERA, 2012; PIOT, 1980; THE..., 2011; WOMAKUYU, 2012). Seu segundo governo

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foi marcado por uma guerra civil na qual suas táticas brutais foram consideradas comparáveis à ditadura de Amin (BRETT, 2005; MWAKIKAGILE, 2012). Em 1986 um líder rebelde, Yoweri Museveni, tomou o poder e obteve a gradual pacificação do resto do país, permanecendo na presidência até a atualidade (MUTIBWA, 1992; MWAKIKAGILE, 2012). O último rei da Escócia: uma versão midiática do afropessimismo ocidental? São claros os esforços de produção e de ambientalização de O último rei da Escócia para reconstituir esse período da historia ugandense. Além de ter sido inteiramente filmado em Uganda, a obra também recria bem alguns dos momentos históricos dos oito anos em que o ditador Idi Amin esteve no poder, como a expulsão dos “asiáticos” do país e o sequestro do voo da Air France, por exemplo. Entretanto, apesar de apresentar um bom panorama da conjuntura política ugandense durante o período, não se pode perder de vista o fato de que esta é uma narrativa sobre um país africano e sua ditadura contada a partir da perspectiva ocidental, o que merece algumas considerações. Uganda no cinema: entre a independência e a eterna exploração do homem branco Considerando a representação fílmica como uma construção audiovisual e discursiva deste recorte da história africana, cabe lembrar que tal narrativa é “[...] um testemunho da sociedade que o produziu, uma vez que nenhuma produção cinematográfica, assim como nenhuma outra atividade humana, está isenta dos condicionamentos sociais e culturais da época em que foi produzido” (MELO; NETO, 2008, p. 4). Nesse sentido, a ótica do personagem fictício de Nicholas Garrigan pode revelar certos a priori em relação à forma como será retratado este episódio histórico em uma produção cinematográfica ulterior e estrangeira ao contexto no qual ele ocorreu. Por se sentir sufocado pelo ambiente conservador familiar, Nicholas decide partir em busca de aventuras e experiência pelo mundo logo após obter seu diploma em medicina. Girando o globo em seu quarto, ele escolhe Uganda ao acaso. Ao chegar nesse país, ele confronta-se com a miséria e a precarieda-

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de na qual vive o povo, algo completamente diferente daquilo ao que sempre esteve acostumado. Mas nada disso importa para Nicholas: ele desconhece a historia e o contexto sociopolítico do pais africano. Seu objetivo não é nada além de experimentar Uganda com emoção, tanto que a primeira interação dele em terras africanas é através do sexo com uma nativa já no ônibus que o levava até a comunidade junto à qual prestaria serviço médico. Entretanto, a narrativa e complexidade da representação desse período da história ugandense evoluem na medida em que Nicholas começa a se fascinar pelo carisma de Amin, um homem “do povo”, que discursa para e governa para este povo, fazendo-o acreditar que ele é como eles, que conhece suas angústias e seus anseios. A aproximação entre o ditador e o jovem médico europeu ocorre após um pequeno acidente na estrada, quando Amin e sua comitiva voltam de uma visita à comunidade na qual Nicholas está prestando auxílio. Ao sofrer um leve ferimento na mão, o presidente é socorrido às pressas pelo jovem médico, que acabara de assistir, com entusiasmo, ao seu discurso. Amin, um apaixonado pela Escócia, simpatiza com o jeito autêntico do jovem, que, mais tarde, será convidado para ser seu médico pessoal em Kampala, capital do país, ocupando, ao mesmo tempo, uma posição de conselheiro e confidente, condição que permitirá Nicholas conhecer a faceta perversa do ditador, assim como vivenciar problemas até então desconhecidos, como o da corrupção inerente ao seu modo de governar e todas as consequências perigosas que essa prática implica para aqueles que nela estão envolvidos. Somente após um período seduzido pelo poder e pela riqueza e se divertindo em festas promovidas por Amin é que Nicholas começa a se dar conta de que ele mesmo se tornou um refém do presidente, que confisca seu passaporte e o substitui por um ugandense. Essa cena mostra o desespero do jovem escocês diante da possibilidade de ficar preso em Uganda, ao mesmo tempo em que destaca aspectos psicológicos da personalidade de Idi Amin que, com um olhar e um discurso que inspiram compaixão e medo ao mesmo tempo, anuncia a Nicholas que ele deve permanecer ao seu lado para construírem uma “nova Uganda”, aterrorizando o jovem. O filme valoriza, então, o caráter dúbio do ditador, representando-o de forma mais humanizada, capaz de expressar seus sentimentos, como ocorre nessa cena quando, chorando, ele

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abraça e diz a Garrigan que ele não pode voltar para a Escócia porque agora pertence a Uganda e é como um filho para ele. A partir daí, quando o médico se dá conta de sua própria condição de prisioneiro em Uganda, ocorre uma guinada no seu comportamento e na sua percepção sobre a realidade do país. Ao temer pela sua própria liberdade e sua vida, Nicholas se solidariza ao dilema coletivo pelo qual passa o povo ugandense, subjugado a uma ditadura cruel, evidenciando a invisibilidade dos países africanos para o Ocidente, dimensão que é valorizada no filme de Macdonald. Uma leitura apressada da realidade africana Uma primeira ressalva que pode ser feita está ligada ao tom politicamente conservador do filme. Ainda que se esforce para mostrar as atrocidades praticadas durante a ditadura Amin, o longa deixa a desejar no que tange à contextualização histórica para compreender os fatores que permitiram a chegada e a permanência do ditador no poder. Desse modo, embora critique o colonialismo e seus efeitos nefastos sobre o continente africano, o filme não problematiza o papel da ex-metrópole (Reino Unido) durante o período ditatorial, uma vez que estes foram protagonistas na ascensão desse regime autoritário que se instaurou em Uganda a partir de 1971. Procurando evitar as nacionalizações de Obote, o apoio britânico foi essencial para a derrubada do primeiro-ministro por Amin e a conseguinte instauração da ditadura no país. Mesmo que haja pitadas de críticas ao colonialismo, o filme convenientemente se inicia já quando Londres e Kampala começam a se afastar. Sintomaticamente, o personagem Stone (interpretado por Simon McBurney), o agente da inteligência britânica na capital, que representa a ex-metrópole no filme, dá a entender que Londres vê com bons olhos a caça aos comunistas inicialmente praticada por Amin e afirma que a “mão forte” é a única linguagem entendida pelos africanos. Garrigan discorda dessa visão apresentada por Stone, mas, ao longo do filme, converte-se e adota a mesma posição (neo)colonialista e afropessimista quando diz que “Isso daqui é a África. Violência se responde com violência. Qualquer outra coisa e você 293

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está morto!” (O ÚLTIMO..., 2006).9 De maneira semelhante, o afropessimismo também se faz presente quando a Sarah Merrit (interpretada por Gillian Anderson), colega de Garrigan, adverte-o que seu fascínio por Amin é ingenuidade e insinua que a África está condenada a regimes corruptos e ditatoriais. O filme parece aderir, assim, a essa visão afropessimista ao não apresentar nada que sugira que ela esteja equivocada. Outro ponto discutível é a maneira extremamente negativa de como a obra cinematográfica representa o povo e as condições de Uganda. O filme prioriza uma abordagem que opõe homem branco dominante versus homem negro dominado, o que é reiterado pela valorização da miséria, da tristeza, do desespero e pela objetificação das pessoas. Assim como muitos outros filmes que se propõem a representar a África nas telas, diversas cenas reforçam uma visão simplista e vitimizadora do povo africano, o qual estaria condenado à eterna precariedade e a um papel de sujeito de sua própria história. A reprodução desse esquema baseado no senso comum sobre o continente fica evidente na escolha de planos bastante clichês de estrada de chão batido com crianças correndo, buscando despertar no espectador sentimentos de compaixão e esperança, ou dos hospitais lotados e desprovidos de infraestrutura e médicos. Ao fim do filme, esta perspectiva reina ao enfatizar as belezas naturais do país e não seu povo ou seu sofrimento sob o jugo ditatorial de Amin. A discussão em torno da permanência de uma visão estereotipada da África é um tema trabalhado por muitos teóricos da indústria cultural, a exemplo de Theodor Adorno, um dos principais nomes da Teoria Crítica e para quem a reprodução desse retrato simplista e sustentado por uma ótica colonialista estaria ligado ao processo de estandardização dos produtos culturais, sendo os clichês uma condição necessária aos consumidores (ADORNO, 2002). Nessa lógica, mobilizando elementos visuais e discursivos calcados em uma concepção pessimista, o filme reforça essa visão sobre o continente mostrando o sofrimento como a tradução da realidade de Uganda, cujo tradicionalismo do povo, como sua ligação com a cultura local (preferência pelos curandeiros aos médicos profissionais, por exemplo), é considerado um atraso e uma resistência 294

9 Além disso, na metade final do filme, Stone não apresenta arrependimento por ter apoiado Amin, ainda que reconheça as atrocidades praticadas pelo ditador.

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à modernidade e aos avanços trazidos pelos países “civilizados” — representado no filme pelo médico escocês. Essa leitura é reforçada quando um dos personagens, ligado à esfera do poder centrada em Amin, diz que “a violência é a língua dos africanos”, afirmação que não é rebatida em nenhum momento do filme — inclusive é adotada pelo protagonista — e que justificaria, portanto, a ocorrência dos habituais golpes no continente, compreendidos, portanto, como uma etapa “normal” dentro da cultura política africana. Desse modo, ainda que O último rei da Escócia se proponha a fazer um relato histórico “fidedigno” de Uganda sob o controle de Amin, o filme não foge à regra da maioria dos produtos culturais ocidentais que versam sobre o tema. O longa reproduz, assim, esquemas interpretativos baseados no senso comum e em concepções superficiais da realidade africana, negligenciando, dentre outros, suas dinâmicas em termos de heterogeneidade étnica e social e de mobilização social e política, bem como as interações que a tornam possível (CASTELLANO DA SILVA, 2013). Sobre este último ponto em específico, o filme desconsidera, como já dito, o importante papel que potências externas tiveram para a instauração e manutenção da ditadura Idi Amin Dada após o golpe que depôs Obote do poder. Diretamente ligado ao anterior, um terceiro ponto que merece atenção são as intencionalidades por trás da escolha de um protagonista branco e britânico para narrar esse período turbulento da história ugandense. Em que pese a importância do Reino Unido no jogo político que lançou as bases para a instauração da ditadura Amin, pode-se fazer duas leituras do personagem de Nicholas. Por um lado, ele pode representar a guinada liberal que marca a mudança de atitude do povo britânico face à independência de Uganda em 1962, porém sem questionar o peso das ações executadas pelos representantes do neocolonialismo no território após o suposto reconhecimento da autonomia do país. Por outro lado, a inclusão desse personagem no enredo pode ser entendida como uma crítica a essa política se o interpretarmos como uma alusão à postura parasitária do europeu na África. Apesar de ser médico, jovem, aristocrata e esclarecido, Nicholas ignorava completamente a história de Uganda. A escolha do país como destino se deu ao acaso, em uma atitude individualista, resultado de um desconforto pessoal na sua realidade aristo-

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crática e pela busca de aventura em um país exótico, mas sobre o qual ele nada conhecia, evidenciando a invisibilidade dos países africanos enquanto Estados autônomos aos olhos dos homens brancos do Ocidente. Sob essa perspectiva, o personagem de Nicholas traduziria, então, a lógica extrativista, assim que a relação colonizador versus colonizado que ainda orienta o pensamento e as ações do povo britânico em relação ao continente africano. Além disso, como bem exposto pelo crítico Wesley Morris (2006), a decisão de se ter um protagonista branco e fictício se soma à “novelização” do filme, especificamente através do romance de Nicholas com Kay Amin (Kerry Washington), esposa do ditador. O propósito narrativo do romance é afastar e opor os dois amigos (Garrigan e Amin); porém, a decisão de incluir esse elemento novelesco para tal parece um tanto equivocada, visto que as atrocidades da ditadura, relegadas ao segundo plano pelo roteiro, têm peso suficiente para isso. Lembrando que o caso amoroso de Kay e Nicholas é fictício, torna-se bastante questionável a sua inclusão no filme, não só por sua implausibilidade, mas também por tirar importância do sofrimento do povo ugandense sob as mãos de Idi Amin, enfraquecendo o filme (MORRIS, 2006; VILLAÇA, 2007). Outro aspecto questionável jaz na representação do próprio ditador. Como visto na seção da história de Uganda, Idi Amin, mesmo comandando um regime desumano, possuía uma racionalidade por trás de seus atos. A perseguição a seus opositores e alinhamentos internacionais tinham uma lógica bastante clara. No entanto, O último rei da Escócia retira esses elementos de racionalidade de Amin. Ainda que a representação mereça louvor por humanizar o ditador, que possui sim sentimentos e emoções, estes parecem ser meramente os de uma criança mimada e não os de um general racional (MORRIS, 2006). Um último comentário refere-se ao ator capaz de transformar essa triste realidade do povo de Uganda sob a era Amin. Sobre isto, a última cena permite duas leituras. Por um lado, a fuga de Nicholas do controle doentio de Amin pode ser interpretada dentro da lógica senso comum de uma África selvagem, tomada pelo desespero e eternamente dependente dos povos civilizados mesmo após a independência das colônias. Essa leitura é reforçada pela fala do médico ugandense, que ajuda Nicholas a fugir e pede que ele “vá embora e conte ao mundo o que acontece em Uganda”. Entretanto, uma se-

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gunda leitura dessa passagem nos permite considerar que, ao invés de valorizar a imagem de um povo eternamente sujeito e jamais ator de sua história, a decisão de salvar o médico e de buscar os meios para dar um fim ao governo Amin e seus abusos foi do médico nativo, e não do estrangeiro, o qual, naquele momento, queria apenas voltar para casa. Uma tal leitura permite, portanto, interpretar a última cena como uma mensagem de que, finalmente, quem tem o poder de transformar essa realidade é o próprio povo de Uganda, colocando-o em uma posição de protagonista de sua história. O filme deixa, assim, em aberta a interpretação de sua posição neste quesito, mas ao menos incita o espectador a refletir sobre uma versão diferente da história e da realidade dos povos africanos, possibilitando apreendê-los como atores e não simplesmente subjugados aos poderes dos mais fortes. Conclusão À guisa de conclusão, podemos dizer que O último rei da Escócia, assim como outras produções cinematográficas semelhantes, apresenta pontos fracos e fortes quanto em sua tentativa de reconstituição de uma parte da história da África contemporânea. Por um lado, merecem destaque os esforços de produção empreendidos no longa para recriar a atmosfera que marcou o período Amin em Uganda. Em primeiro lugar, a filmagem, realizada inteiramente no país, valoriza a geografia e a paisagem de Uganda, assim como de seu povo, e permite ao espectador familiarizar-se com o ambiente que foi palco das atrocidades cometidas pelo ditador. A ênfase em planos abertos de paisagens e de imagens de crianças correndo e a própria fotografia do filme são esforços visíveis para situar o espectador dentro do universo do filme. Entretanto, apesar da multiplicidade e riqueza dos recursos utilizados, o longa reproduz em grande medida a mesma imagem superficial e clichê do continente africano, representado como um lugar de terceiro mundo, dominado pela tristeza, pela atrocidade e pelo sofrimento sem fim, reforçando por aí a máxima do povo africano como o povo “amaldiçoado” (CASTELLANO DA SILVA, 2013). Como citado anteriormente neste artigo, o filme pode ser igualmente analisado à luz da Teoria Crítica. Nesse sentido, a permanência de diversos traços colonialistas na representação do continente, reforçando o estereótipo

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da África como o povo primitivo, que não avançou, permanecendo estagnado apesar da independência das colônias pode ser explicada e problematizada sob a perspectiva adorniana, para o qual a reprodução desse modelo simplista seria um resultado da estandardização dos produtos culturais, sendo esta uma condição necessária devido à lógica mercantil da indústria cultural. Neste sentido, as estratégias discursivas e audiovisuais empregadas apenas corroboram para a consolidação de uma imagem afropessimista pré-concebida, resultante do senso comum, da pouca exposição e debate sobre o tema na mídia e no meio acadêmico, resultando em leituras superficiais sobre o continente no âmbito das Ciências Sociais e das Relações Internacionais, como destaca Castellano da Silva (2013). Um segundo apontamento refere-se às imprecisões sobre o pano de fundo histórico e geopolítico que ajudaria a compreender a ascensão e a permanência de Amin no poder. Se pensarmos o cinema enquanto espaço de reconstituição discursiva e imagética de períodos históricos, o filme pode ser um suporte complementar interessante para entender a ascensão da ditadura Amin em Uganda, o qual representa um dos eventos históricos mais importantes da África Oriental contemporânea. Entretanto, enquanto adaptação cinematográfica de uma história real, tal projeto opera em uma lógica de seleção e simplificação dos aspectos a serem apresentados na construção da narrativa. Tal escolha sempre levanta críticas, especialmente de historiadores, devido à preocupação destes com a leitura destes produtos como verdades históricas por parte do público (MELO; NETO, 2008). Ao compararmos a história fílmica com a “história real”, fica clara a ausência de elementos essenciais a uma compreensão mais precisa sobre os fatos, bem como erros e imprecisões cometidos pelos realizadores. Desse modo, a falta de uma problematização em torno dos fatores internos e externos que permearam a ascensão e a permanência do ditador Amin no controle de Uganda durante os anos 1970 configura um problema da perspectiva histórica. Ao não fornecer os elementos necessários para uma compreensão global da conjuntura política e geopolítica do país naquele momento, o longa peca ao não valorizar o importante papel do neocolonialismo que permeia as relações de poder entre agentes políticos internos e externos, Estado e instituições regionais. Certamente nenhum filme tem de expor todos os elementos históricos de determinado período retratado.

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Contudo, ao escolher um protagonista branco, britânico e fictício, uma contextualização maior quanto ao papel do Reino Unido seria necessária, pois o personagem não deixa de representar uma faceta da relação entre (ex-) potência colonial e país colonizado (a outra faceta seria a de Stone). Um terceiro apontamento diz respeito à representação do ditador Idi Amin Dada, interpretado pelo ator Forrest Whitaker. Embora os oito anos da ditadura Amin tenham sido brutais, o longa foge do clichê de representar o ditador africano simplesmente como alguém mau, o que enclausuraria a história em uma narrativa maniqueísta, recurso comumente empregado nesse tipo de reconstituição cinematográfica de personalidades históricas como esta. Ao contrário disso, o filme dá mais importância para a humanização do ditador, mesclando carisma, oscilações de humor, fraquezas com uma subjacente crueldade. Deste modo, o filme propõe dar mais personalidade ao ditador, oferecendo certa coerência à sua imprevisibilidade por meio da valorização da sua história de vida pessoal, a qual é intrinsecamente ligada à história política de Uganda. Mesmo que peque ao remover sinais de racionalidade de Amin e tratá-lo como uma criança, ao valorizar esses aspectos mais humanos, O último rei da Escócia oferece uma representação ambígua da figura de Idi Amin Dada, despertando paralelamente o repúdio e a empatia no público. Críticas à parte, vale destacar a importância da produção cinematográfica enquanto ferramenta de apoio para e de elucidação de eventos históricos, especialmente quando se trata da África, dada a ainda escassa atenção acordada a esta região nos debates midiáticos e, inclusive, acadêmicos, ainda entranhados de mitos. Deste modo, apesar de reproduzir uma série de leituras genéricas sobre a região e sobre o povo africano, além de imprecisões concernentes ao pano de fundo histórico e às dinâmicas internas da esfera política de Uganda durante a ditadura Amin, O último rei da Escócia traz uma leitura interessante deste passado recente da história do continente africano, convida o espectador a uma reflexão sobre a realidade de Uganda e sobre a interferência do ex-colonizador mesmo após a independência, porém concebida a partir da ótica ocidental, o que requer uma leitura mais atenta à adaptação fílmica de fatos que provêm da história real. 299

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